Descendência charrua na Pampa Ameríndia

Transcrição

Descendência charrua na Pampa Ameríndia
I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS-CIÊNCIA POLÍTICA
DA UNIPAMPA BUSCANDO O SUL
SÃO BORJA, RIO GRANDE DO SUL, 21 A 25 DE NOVEMBRO DE 2011
Descendência Charrua na Pampa Ameríndia:
memória coletiva e pertencimento étnico
Rojane Brum Nunes1
Rogério Reus Gonçalves da Rosa2
Resumo
Este texto visa destacar a centralidade do fenômeno da memória coletiva nas reconstruções
identitárias e nos pertencimentos étnicos engendrados pelos grupos e indivíduos, apesar das
rupturas espaço-temporais desencadeadas em suas trajetórias sociais. A partir da revisão
teórica de dados etno-históricos e da análise de narrativas de descendentes dos índios charrua,
considerados extintos desde o massacre de Salsipuedes, no pampa uruguaio, em 1831,
problematiza-se o uso da categoria extinção para se referir a esse coletivo ameríndio.
Verifica-se após uma análise inicial dos dados, que o fenômeno da memória coletiva e a
identidade narrativa que se configura no ato de narrar, restabelecem a continuidade temporal,
reconfigurando identidades e pertencimentos.
Palavras chaves: Descendência Charrua, Memória Coletiva, Pertencimento Étnico
Vozes da descendência: memória coletiva e pertencimento étnico
Segundo Tau Golin, o termo pampa é de origem indígena, mais
especificamente dos chíchuas. Outrora, essa noção designava um território plano com
pastagens, mas a partir da ocupação do mesmo pelos europeus, o significado do mesmo
ampliou-se, incluindo aí o sentido de campo, campanha.
Embora, genericamente, pampa apareça como tendo a característica de uma
planície, esse espaço está cheio de serros, banhados, terrenos acidentados, rios caudalosos.
Devido à relação com esse território, algumas tribos ameríndias receberam a denominação de
pampeanas, como o caso dos Abipones, Guaycurues, Yaros, Bohanes, Guenoas (Golin,
1999).
O etnocídio promovido pelas forças militares uruguaias, em 1831, a fim de
dizimar os charrua, os denominados ― índios infiéis‖ que dificultavam a ordem necessária à
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande Sul e pesquisadora do Núcleo de
Antropologia Ameríndia da Universidade Federal de Pelotas – NETA/UFPEL.
2
Orientador.
consolidação de um Estado-Nação, marca de acordo com muitas fontes históricas, a extinção
desse coletivo ameríndio.
Diga-se de passagem, o antropólogo Pierre Clastres (2004:82), assinala que
a gênese da palavra etnocídio está intrinsecamente relacionada à experiência americana, tendo
em vista que ―a história da expansão colonial no século XIX, a história da constituição de
impérios coloniais pelas grandes potências européias, está pontuada de massacres metódicos
de populações autóctones‖.
Segundo o autor, a prática etnocida parte do pressuposto de que o ―outro‖
não é apenas ―a diferença‖, mas sobretudo, a ―má diferença‖. Do mesmo modo, um dos
axiomas do etnocídio é uma hierarquia das culturas que implica uma relação de negação do
―outro‖, porém, se trata de uma negação positiva, no sentido de que ela quer suprimir o
―inferior‖ para içá-lo ao nível do ―superior‖.
Nesse sentido, no caso em questão, pode-se pensar que o processo
civilizatório, na busca de consolidar um Estado-Nação, impulsionou o massacre de
Salsipuedes, a fim de suprimir a indianidade charrua, dos denominados ―índios infiéis‖ por
lusitanos, castelhanos e criollos, na medida que dificultavam tal consolidação, ao não
aceitaram o projeto reducionista protagonizado pelos jesuítas.
Além disso, o estabelecimento de alianças temporárias ora com os
portugueses, ora com os espanhóis, criollos e com outros coletivos ameríndios como os
guaranis, reforçava a suposta ―infidelidade charrua‖. Diga-se de passagem, a palavra charrua
significa ―somos turbulentos‖, ―irados‖, ―revoltosos‖, ―destruidores‖, ―manchados‖,
―mutilados‖ (Rodolfo Sosa, 1957).3
Logo, na perspectiva de seus agentes, ―o etnocídio não poderia ser,
consequentemente, um empreendimento de destruição: ao contrário, é uma tarefa necessária,
exigida pelo humanismo inscrito no núcleo da cultura ocidental‖ (Clastres, 2004:85). Em
relação ao etnocídio charrua, Aguiar e Arocena (2007: 69) assinalam que o mesmo teve início
quando:
(...) Rivera, que había colaborado con los indios en varias de sus
escaramuzas, convence a las principales familias entonces sobrevivientes de
que se presenten ante él. Con la aquiescencia del gobierno de la época, de
400 a 500 indígenas fueron aniquilados. Sólo habrían sobrevivido el cacique
Polidoro y «el adivino» con sus respectivas familias, «quienes no acudieron
3
Para Oscar Padrón Favre, ―deveríamos falar de grupo Charrua-Minuano, pois estes dois nomes se
encontram indissoluvelmente ligados durante o século XVIII e inicio do XIX‖ (FRAVE, 1994:17; 2004;
SOSA, 1957; GONZALEZ, VARESE, 1990).
al llamado por percatarse de que se trataba de una trampa (…) Cinco
charrúas fueron capturados en Mataojo y levados a Francia —Vaimaca Perú,
Senaqué, Laureano Tacuabé y Micaela Guyunusa—, siendo el quinto —Ramón
Mataojo—, entregado al capitán Luís Barral.
A partir de então, o nascente Estado-Nação Uruguaio julgou que a
problemática ocasionada pelos indígenas estava resolvida, considerando-se como um dos
poucos países do continente que havia posto fim a uma etapa pré-civilizatória em sua história.
Enquanto isso, em 1833, os charrua enviados a Paris, foram transformados em objetos de
estudos científicos e apresentados ao mundo como "uma rara espécie de animais selvagens‖.4
Se por um lado, o massacre de Salsipuedes, justifica o surgimento de uma
nação e os seus subsequentes agencionamentos em delinear uma identidade nacional, por
outro, ele delineia um pertencimento étnico entre aqueles que se auto-definem enquanto
descendentes daqueles que sobreviveram ao etnocídio charrua.
Ao assinalarem que até os anos 1970, a ―indianidade‖ foi um tema não
tratado pela história nacional uruguaia, Aguiar e Arocena (2007: ), destacam ainda que há
atualmente no Uruguai, ―sete associações de descendentes de charruas funcionando com
vigor e reivindicando que se reconheça o 11 de abril como o Dia do Índio, em comemoração
ao genocídio charrua em Salsipuedes‖.
A extinção charrua: o massacre de Salsipuedes como ruptura espaço-temporal
Entre os descendentes charrua, encontra-se Bernardino Garcia, 69 anos, que
na ocasião da visita de pesquisadores vinculados ao NETA/UFPEL a sua residência, declara:
“sou bisneto do cacique Sepé, filho do seu neto. É uma identificação direta!”.
O cacique Sepé ao qual se refere, foi um dos poucos sobreviventes do
extermínio, em decorrência de ter previsto a emboscada do general Rivera. A ascendência de
Bernardino Garcia, foi, segundo ele informara, identificada pelo historiador Eduardo Acosta
Y Lara:
“Eu soube que era descendente por Acosta y Lara. Foi por isso que
em 1982, fui a Montevídeo, que eu não pensava em ir. Achavam que
tinha terra para os descendentes. Mas como tentamos reclamar isto,
se é que há? Queriam saber se eu estava vivo, e eu estava” (entrevista
gravada por Liza Bilhalva Martins da Silva, julho de 2011).
A descoberta também foi desencadeada pelo falecimento, em 1971, do seu
pai Avelino Garcia, então filho do cacique Sepé. O silêncio em relação à descendência
O episódio da ida dos cinco charrua para a França, é tratado na obra ―Les derniers charruas” do
antropólogo francês Paul Rivet (1930).
4
charrua carregado até morte, revelado por um historiador e anunciado pela imprensa uruguaia,
acredita Bernardino, se deve ao medo da perseguição.
Nesse particular, torna-se pertinente dialogar com Michel Pollak (1989),
para quem o silenciamento do passado, pode consistir em uma acomodação ao meio social. A
partir do seu trabalho com história oral, entre descendentes dos sobreviventes do holocausto,
ele destaca:
―Na ausência de toda possibilidade de se fazer compreender,o silêncio
sobre si próprio - diferente do esquecimento - pode mesmo ser uma
condição necessária (presumida ou real) para a manutenção da
comunicação com o meio-ambiente,como no caso de uma
sobrevivente judia que escolheu permanecer na Alemanha‖ (Pollak,
1989:13)
No Brasil, a descendência dos sobreviventes do etnocídio charrua, é
reinvidicada pelo grupo vinculado a Acuab, fundadora da aldeia Polidoro, situada na capital
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Diga-se de passagem, ela também se define como
descendente direta do cacique Sepé, assim como Bernardino Garcia.
Pode-se dizer, a partir da referência a um ancestral comum, que ambos estão
vivendo um processo de etnogênese. De acordo com o antropólogo José Mauricio Arruti
(2006:51) ―se o etnocídio é o extermínio sistemático de um estilo de vida, a etnogênese, em
oposição a ele, é a construção de uma autoconsciência e de uma identidade coletiva contra
uma ação de desrespeito‖ (Arruti, 2005:51). Em se tratando de Acuab e seu coletivo, Sérgio
Baptista da Silva(2009) considera que:
Os Charrua da aldeia Polidoro são, majoritariamente, um grupo de
parentela, constituído por laços de consangüinidade e de afinidade e
formado por vários descendentes masculinos e femininos do Akuabè
(Flor da Manhã) — cacica do povo charrua do Rio Grande do Sul —,
além de alguns de seus irmãos e irmãs, com seus filhos (Silva, 2009:278).
Percebe-se a partir das considerações acima, que alguns indivíduos tanto no
Uruguai quanto no Brasil, apropriam-se da categoria ―descendente‖, a fim de contruir e
afirmar uma identidade e uma continuidade étnica, revelando as nuances de uma política da
memória destacando que esta é também um campo de disputas (Pollak, 1989). Do mesmo
modo, essa memória reinvidicada desencadeia a reconstrução de uma identidade étnica.
Nesse sentido, o massacre de Salsipuedes, não fora uma extinção de um
grupo étnico, mas sim um violento etnocídio que provocou uma ruptura espaço-temporal na
continuidade étnica do coletivo ameríndio charrua.
Haja vista, afilio-me aqui aos estudos de Eckert e Rocha (2005) sobre
memória e duração, que a partir dos seus diálogos téoricos com Gaston Bachelard, Gilbert
Durand e Walter Benjamin, consideram que a memória é o fluxo do tempo, o qual é
descontínuo e lacunar, cujas rupturas requerem aos grupos e indivíduos o esforço humano da
duração.
Sob essa perspectiva, os universos simbólicos que orientam as suas práticas
culturais são perpassadas pelas suas experiências temporais e pelos significados a elas
atribuídos, e, sobretudo, pela identidade narrativa que se configura no ato de narrar e se
deslocar no tempo, a fim de restabelecer a sua continuidade (Ricouer, 2010).
Nesse sentido, podemos concluir que o massacre de Salsipuedes, não fora
um fim, mas sim uma ruptura espaço-temporal, consistindo em uma ―imagem-memória‖
(Eckert, 1993) que engendra uma reconstrução identitária e um pertencimento étnico entre
aqueles que se definem enquanto ―descendentes dos sobreviventes‖.
Considerações finais
Tendo em vista que os charruas tinham também como territórios, terras
pampeanas do Rio Grande do Sul, a imagem da extinção também habita as minhas próprias
memórias. Mais precisamente no ano de 1987, lembro-me de manusear e copiar do quadro
negro, um mapa do Rio Grande do Sul, onde constava a ―antiga‖ presença charrua. Tratava-se
de um mapa fragmentado em subregiões, apontava a região da Campanha, no sudoeste do
Estado, nas proximidades com o Uruguai, como sendo uma área de antiga ocupação charrua,
tendo em vista que se tratava de um coletivo ameríndio já extinto. Em meados de 2000, já
cursando a graduação em Ciências Sociais, um palestrante arqueólogo reforçara essa
afirmação.
Mais do que estabelecer uma seqüência cronológica, os jogos de memória
revisitados acima, remetem-me aos estudos recentes realizados sobre a Pampa Ameríndia, no
âmbito do Núcleo de Etnologia Ameríndia da Universidade Federal de Pelotas, que
apontaram, sobretudo, a necessidade de rever o uso da categoria extinção, para se referir aos
coletivos humanos e aos seus sistemas simbólicos configurados ao longo do tempo.
Os estudos etno-históricos, arqueológicos e antropológicos realizados no
referido núcleo, assim como a viagem etnográfica realizada pelo mesmo, ao Pampa Uruguaio
em julho de 2011, contrapõem-se a alguns dados históricos que corroboram o término da etnia
charrua a partir do massacre de Salsipuedes, em 1831.
Diga-se de passagem, nesse texto, em seu caráter inicial e exploratório,
buscou-se apontar que essa contraposição se dá pelo aporte da memória coletiva, que
enquanto fluxo de um tempo lacunar, descontínuo e permeado de incessantes rupturas, as
quais não consistem em um fim ou extinção, mas, sobretudo, em uma reconstrução que se
apóia no ato narrativo.
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