Oscar Santana dos Santos - PPGHIS
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Oscar Santana dos Santos - PPGHIS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL OSCAR SANTANA DOS SANTOS UMA VIAGEM HISTÓRICA PELAS ESTRADAS DA ESPERANÇA: representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da Estrada de Ferro Nazaré (Bahia, 1960 - 1971) SANTO ANTÔNIO DE JESUS, BA 2011 2 OSCAR SANTANA DOS SANTOS UMA VIAGEM HISTÓRICA PELAS ESTRADAS DA ESPERANÇA: representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da Estrada de Ferro Nazaré (Bahia, 1960 - 1971) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus V), como requisito final para obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof.Dr. Paulo Santos Silva. Universidade do Estado da Bahia Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local 2011 3 ___________________________________________________________________________ S237 Santos, Oscar Santana dos. Uma Viagem Histórica pelas Estradas da Esperança: representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da estrada de ferro Nazaré (Bahia, 1960 – 1971) / Oscar Santana dos Santos - 2011. 92f.: il Orientador: Prof. Dr. Paulo Santos Silva. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2011. 1. Ferrovias – História - Bahia. 2. História - Bahia. I. Silva, Paulo Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de PósGraduação em História Regional e Local. CDD: 385.098142 ___________________________________________________________________________ Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396. 4 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB Departamento de Ciências Humanas – Campus V Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local OSCAR SANTANA DOS SANTOS UMA VIAGEM HISTÓRICA PELAS ESTRADAS DA ESPERANÇA: representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da Estrada de Ferro Nazaré (Bahia, 1960 - 1971) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus V), como requisito final para obtenção do título de Mestre em História. BANCA EXAMINADORA Profª Dra. Ely Souza Estrela (UNEB) Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite (UEFS) Prof. Dr. Paulo Santos Silva (UNEB – Orientador) Santo Antônio de Jesus, 25 de abril de 2011 5 À minha mãe, Carmelita dos Santos 6 AGRADECIMENTOS A Deus, criador e protetor da minha vida. Ao Prof. Dr. Paulo Santos Silva, pela orientação, dedicação, compromisso e apoio. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da UNEB, Campus V, Santo Antônio de Jesus. À professora Ely Estrela e ao Professor Rinaldo Leite, pelas colaborações no exame de qualificação deste estudo. A Aline Najara Gonçalves, pela leitura prévia e revisão do texto. A Rosiery, Miguel e Vânia Maria Moura de Santa Inez, familiares do autor de As estradas da esperança, pessoas que colaboraram com a realização desta pesquisa, emprestando os livros (os romances), textos não publicados e indicando algumas informações sobre a vida de Antônio Leal de Santa Inez. À minha mãe, Carmelita dos Santos, que não teve oportunidade de estudar, mas sempre lutou pela educação dos filhos, discordando do meu pai quando dizia que ―a caneta do filho do pobre é uma enxada‖. Ao meu pai, Nilo Santana dos Santos, homem do campo, que batalhou muito e conseguiu, com o incentivo da minha mãe, comprar uma casa no bairro da Cajazeira, na cidade de Mutuípe, para que seus filhos chegassem ao Ensino Médio. Foi assim que pude conciliar trabalho e estudo. Você também, pai, contribuiu com minha formação, porque me tornei professor de História da Educação Básica. Aos meus irmãos, Reginaldo, Rogério, Terezinha e Suely, que sempre torceram pelas minhas conquistas acadêmicas. 7 Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho néon Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem Quem vai chorar, quem vai sorrir? Quem vai ficar, quem vai partir? Pois o trem está chegando, tá chegando na estação É o trem das sete horas, é o último do sertão, do sertão Ói, olhe o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons Ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral Amém. (Trem das sete, Raul Seixas) 8 RESUMO O objetivo desta dissertação é analisar o romance As Estradas da Esperança, de Antônio Leal de Santa Inez (1982), como fonte histórica para a interpretação do cotidiano do Recôncavo Sul e Sudoeste da Bahia, focando peculiaridades da região e o processo de desativação da Estrada de Ferro Nazaré (Bahia). Ao criar suas personagens e relatar as viagens do trem, de estação em estação, o romancista reconstrói em moldes ficcionais a história dessa ferrovia. A narrativa constitui uma interpretação das memórias de suas viagens, do desenvolvimento do comércio na região do Recôncavo Sul e do Vale do Jequiriçá na primeira metade do século XX, e da desativação da ferrovia — ―a morte do trem‖ —, dando visibilidade ao processo de desestruturação de um conjunto de cidades baianas. O trem é retratado como o principal meio de transporte da Região do Recôncavo Sul e das cidades do Vale do Jequiriçá desde o início da construção da ferrovia (1871) até sua desativação (1971). Na obra de Santa Inez, vê-se a representação do período compreendido entre os anos 1960 (início da desativação) e 1971 (liquidação da ferrovia). Para viabilizar a proposta aqui apresentada e fundamentar a análise da obra citada foram realizadas consultas a atas, relatórios, fotografias, jornais, livros de memórias e trabalhos acadêmicos que versam sobre temas correlatos. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Representação. História. Cotidiano. Ferrovia. 9 ABSTRACT The objective of this dissertation is to analyze Antônio Leal de Santa Inez’s novel, As Estradas da Esperança, as a historical source for the interpretation of the everyday life in southeast of Bahia and in an area in the same state called Recôncavo Sul, focusing on peculiarities of the region and the shut down process of Nazaré railroad in Bahia. When the author creates the characters and reports the train journey from station to station, he rebuilds the history of this railroad in a fictional format. The narrative is an interpretation of his travels memories, of the market development in Recôncavo Sul and Vale do Jequiriçá in the early 20th century, and the shutdown of the railroad — ―the train’s death‖ —, giving visibility to the process of unsettlement of a group of cities in Bahia. The train is depicted as the most important means of transportation in Recôncavo Sul region and in the cities in Vale do Jequiriçá since the beginning of the railroad construction (1871) until its close-down (1971). In Santa Inez’s work we observe the representation of the period comprehended between 1960 (beginning of the close-down) and 1971 (shut down of the railroad). To turn the proposal here presented feasible and to settle the analysis of the work studied, it was carried out examinations of minutes, reports, photographs, newspapers, memory books and academic works about correlate themes. KEY WORDS: Literature. Representation. History. Everyday life. Railroad. 10 LISTA DE ABREVIATURAS AEE – As Estradas da Esperança CPE – Comissão de Planejamento Econômico EFN – Estrada de Ferro Nazaré RFFS/A - Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima SEPLAN – Secretaria do Planejamento do Estado da Bahia TRN - Tram Road de Nazareth VFFLB - Via Férrea Federal Leste Brasileiro 11 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO, 12 2 AS ESTRADAS DA ESPERANÇA E AS REPRESENTAÇÕES DA ESTRADA DE FERRO NAZARÉ, 18 2.1 Ficção e memória na obra As estradas da esperança, 18 2.2 A trajetória de Franz, 21 2.3 O cotidiano nas proximidades da ferrovia: literatura e memória do cultivo da mandioca, 25 2.4 As representações da Estrada de Ferro Nazaré e Ferrovia na Bahia, 31 3 A REGIÃO PERCORRIDA PELO TREM DE NAZARÉ E O COTIDIANO DOS PASSAGEIROS, 40 3.1 Jequié (―Cidade Sol‖): fim de linha da Estrada de Ferro Nazaré, 41 3.2 Ferrovia, coronelismo e cidades, 48 3.3 Areia (Ubaíra): cidade mais antiga do Vale do Jequiriçá, 56 3.4 Santo Antônio de Jesus e Nazaré (Recôncavo Sul): janela do litoral, 63 4 A MORTE DO TREM: A DESATIVAÇÃO DA ESTRADA DE FERRO NAZARÉ, 66 4.1 O choro de um narrador, 66 4.2 Ferrovia e rodovia: sai o trem, entra o caminhão, 70 4.3 O retorno de Alípio para Jequié, 73 4.4 ―Doenças‖ que causaram ―a morte do trem de Nazaré‖, 77 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 83 FONTES E BIBLIOGRAFIA, 85 ANEXO, 93 12 1 INTRODUÇÃO Em As estradas da esperança, obra publicada pela Editora Clube do Livro (SP), em 1982, os editores destacam que Antônio Leal de Santa Inez estava entre os escritores brasileiros que concorreram aos últimos concursos literários para a concessão do Prêmio Nacional Clube do Livro. Informam que ele foi classificado no 6.º Concurso com a láurea de Menção Honrosa pela obra A Ilha Esquecida.1 De acordo com essa editora, o autor era nome ―de boa expressividade‖ no mundo das letras. A riqueza temática e a originalidade no estilo — poético, lírico e fotográfico — lhe dava o merecido destaque na moderna literatura nacional. Santa Inez nasceu em Laje, baixo sudoeste da Bahia, em 1927 e recebeu uma educação tradicional. Em Salvador, estudou no Colégio da Bahia e depois, em Jaguaquara (Bahia), no Colégio Taylor Egídio. Migrou para o Rio de Janeiro em 1952 e formou-se em Direito pela Universidade do Distrito Federal, em 1960. Dedicou-se à Publicidade e, em particular, à Pesquisa Mercadológica. Em 1962, assumiu o cargo de gerente no escritório de Pesquisa Mercadológica, em São Paulo e, em 1972, fundou sua própria empresa, o Instituto Paulista de Pesquisas de Mercado. Possuía cursos de especialização em Estatística e era conferencista nesta área. Publicou os romances Serra do Meio (1980), seu primeiro livro, pela Edições Melhoramentos e As estradas da esperança (1982). Escreveu também Contos de amor e ternura e A família é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia. Estes, encadernados, datilografados e guardados com muito zelo pela filha Vânia Maria, não foram publicados. Santa Inez morreu em São Paulo, em 1995.2 O romance As estradas da esperança é o objeto e a principal fonte deste estudo por representar aspectos históricos e memorialísticos da linha ferroviária que ficou conhecida como Estrada de Ferro de Nazaré (EFN). Chamada inicialmente de Tram Road de Nazareth (TRN), a ferrovia partiu de Nazaré em 1871, chegando a Jequié em 1927. Com extensão de 290 km, fazia o transporte de passageiros e dos principais produtos agrícolas da região, como café, fumo e cacau. Entre os anos de 1871 (início da construção) e 1971 (quando foi desativada), a estrada permitia a integração das micro-regiões do Vale do Jequiriçá / 1SANTA INEZ, Antônio Leal de. As estradas da esperança. São Paulo: Clube do Livro, 1982, Notas biográficas do autor, p. 9. O trabalho de pesquisa com familiares do autor não possibilitou identificar se A Ilha Esquecida é um poema, um conto ou um romance. O único texto de Santa Inez, cujo título se aproxima desta obra é A família é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia, não publicado. 2 Ibidem, p. 9. 13 Recôncavo Sul / Jequié e Salvador, conectando ferrovia e navegação, contribuindo assim com intercâmbios culturais, sociais e econômicos. Servia também para transportar passageiros e escoar a produção cafeeira do Vale do Jequiriçá, que se integrou aos principais centros regionais da época, como Nazaré, Santo Antônio de Jesus e Amargosa, além dos extraregionais como Salvador e Jequié.3 A fonte literária aqui empregada não permite explorar o período de construção e ampliação da ferrovia (1871 a 1927, quando alcança a cidade de Jequié). A maioria dos diálogos que envolvem as personagens criadas por Santa Inez acontecem no interior do trem e referem-se, principalmente, aos anos de 1960, quando começa a desativação da ferrovia na região do Vale do Jequiriçá, e 1971, ano da desativação do último trecho, que ligava Santo Antônio de Jesus e Nazaré. A obra As estradas da esperança permitiu articular uma discussão envolvendo literatura, história, memória, ferrovia e cotidiano. Neste estudo, a palavra literatura está sendo utilizada para especificar a fonte literária — o romance — como possibilidade de interpretação e compreensão de processos históricos. Já os conceitos de história e memória, apesar das aparentes semelhanças, diferem-se. No entanto, ambos têm o passado como substrato comum.4 No que se refere ao tema da ferrovia, esta relação é esclarecida no decorrer da análise da obra. Antônio Leal de Santa Inez apresenta como cenário um conjunto de cidades do interior da Bahia e as pequenas estações ferroviárias dos povoados rurais, que eram servidas pelo trem de Nazaré. O cotidiano por sua vez é representado pelas características das personagens: suas ações, envolvimentos em brigas e/ou relações amorosas, profissões (marinheiro, carpinteiro, sanfoneiro, fiscal do trem, trabalhador rural) e modos de viver (pedindo esmola, bebendo cachaça, tocando, cantando, cultivando mandioca). Em A invenção do cotidiano, Michel de Certeau analisou as práticas cotidianas das pessoas comuns, como fazer compras, caminhar pela vizinhança, arrumar a mobília ou ver televisão. A rua, o bairro, a cidade e a casa, por exemplo, são espaços que ganham sentido 3 O conceito de região não deve ser recortado apenas como uma unidade econômica, política ou geográfica. Este conceito é entendido como um campo de estudo, marcado por discursos e imagens; como uma produção imagético-discursiva gestada historicamente, em relação a uma dada área do país. Ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 2. ed, Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. p. 49. Nesta dissertação, a região é associada aos trilhos do trem de Nazaré, relacionando economia, política, rio, cidade e agricultura por intermédio do discurso literário. 4 Cf. PINTO, Júlio Pimentel. Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luís Borges. Estação Liberdade: FAPESP, 1998. p. 287-321; LE GOFF, Jacques. História e memória. 5ª. Ed. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 2003. p. 17-172; p. 419-476; CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 14 pela presença e o fazer do ser humano. Esse autor define o cotidiano como ―aquilo‖ que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente.5 O uso freqüente do trem para diversão ou trabalho; como meio de deslocamento até uma cidade maior com a finalidade de estudar num colégio importante ou consultar-se com um médico da capital; o hábito de parar nas estações para fazer um lanche; comprar um cafezinho ou um mingau; almoçar; embarcar ou desembarcar produtos e passageiros; visitar familiares ou encontrar-se com a namorada; vender doces ou frutas no interior desse meio de transporte; conversar com amigos ou desconhecidos; viajar durante a noite ou o dia e irritar-se com o atraso, a poeira ou um acidente na estrada, são atividades perceptíveis na obra As estradas da esperança. Nesse sentido, o cotidiano é a percepção do ―comum‖, daquilo que se tornou habitual e que muitas vezes não é descrito numa abordagem macrohistórica. No romance As estradas da esperança vê-se a presença de personagens simples, homens e mulheres que criavam porcos, galinhas, torravam farinha, faziam beiju de forma artesanal e sobreviviam nas proximidades da EFN. Neste estudo é feito um recorte regional, que se propõe a uma redução de escala de análise ao partir da fonte literária e de um olhar para a vida nas estações, na linha e no interior do trem de Nazaré. As experiências individuais, locais e regionais estão relacionadas a assuntos mais amplos, como a implantação e desativação de linhas férreas no cenário nacional.6 Nota-se na obra uma relação estreita entre as personagens e o narrador, o que leva a concluir que nasceram de sua memória, tendo como referência pessoas vivas, companheiras de viagens no trem.7 Assim como no discurso literário de Santa Inez, em outros romances de cunho memorialístico, os autores se revelam, criam, imaginam, contam histórias, expressam e se realizam por intermédio de suas personagens.8 Tanto na literatura como na historiografia, o tema ferrovia é bastante representado. Muitas estradas de ferro foram construídas e desativadas no Brasil. Algumas caíram no 5 CERTAU, Michel de; GIARD, Luce e MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano. 2. Morar, cozinhar. Petrópolis – Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 31. 6 Sobre a microhistória, Cf. LEVI, Giovanni. Sobre a microhistória. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p. 133 – 161; A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 7 Sobre a personagem do romance, Cf. MELLO E SOUZA, Antônio Candido de. A personagem de ficção. 7ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 1985. p. 53 – 80. 8 Cf. BAKHATIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p. (p. 3 – 20). 15 esquecimento e outras foram pesquisadas e ficaram registradas em forma de livro.9 A EFN foi privilegiada com um registro deixado por Santa Inez — a obra As estradas da esperança. Na obra Mad Maria (1980), Márcio Souza conta a história da construção da ferrovia Madeira-Mamoré com riqueza de detalhes, informando os conflitos étnicos entre as personagens que representam os trabalhadores (americanos, indianos, chineses, africanos, alemães, espanhóis, portugueses, indígenas); os desafios enfrentados para sobreviver na selva com as epidemias, principalmente de malária; as dificuldades encontradas pelos estrangeiros para retornar ao país de origem, em função da baixa remuneração que recebiam; o trabalho dos operários, enfermeiros, médicos, engenheiros e a fiscalização dos guardas para evitar as fugas; o calor; a chuva rápida; a lama; a ameaça dos escorpiões; a febre; a diarréia; a vida; a morte; enfim, o cotidiano das pessoas que se aventuraram pela Amazônia na esperança de trabalho e de uma vida digna.10 Se, por um lado, Souza apresenta um discurso amargo, vingador, trágico, denunciador de políticos corruptos e de desilusão com as ferrovias, criticando a construção da Madeira Mamoré, no início do século XX, por outro, em As estradas da esperança, Santa Inez, talvez, influenciado pelas discussões referentes ao sucateamento das linhas férreas, no Brasil, especificamente, nos anos de 1960 e à crise internacional do petróleo entre os anos de 1970 e 1980, se posiciona contra as rodovias, revela sua admiração e apego ao antigo sistema de transporte, considerando um crime ―a morte do trem‖. Ambas as obras foram publicadas em datas próximas (1980 e 1982). Elas retratam períodos diferentes, mas têm em comum o tema do cotidiano: uma narra a vida dos trabalhadores durante a construção, a outra, a vida dos passageiros do trem de Nazaré durante a desativação. Porém, o objetivo deste estudo não é fazer uma comparação das duas obras, mas ressaltar a temática das ferrovias no âmbito da literatura brasileira. No romance, O pecado viaja de trem, publicado em 1960, Nelson Gallo informa que ao longo das estações ferroviárias baianas havia carregadores, desocupados, vendedores de frutas, bolos, mingau, rolete de cana, beiju e pamonhas, assim como parentes ou conhecidos dos viajantes, que diziam uma última palavra e davam um último abraço ou aperto de mão nos 9 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos / Secretaria de Estado da Cultura, 2ª ed., 1981; HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 291 p.; MELO, Josemir Camilo de. Ferrovias Inglesas e mobilidade social no Nordeste. Campina Grande: EDUFCG, 2007. 233 p.; NUNES, Ivanil. Douradense: a agonia de uma ferrovia. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2005. 194 p.; PAULA, Dilma Andrade de. Fim de linha: a extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955 – 1974. Tese de doutorado – Dep. De História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2000. 10 SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980 / Record: 5ª ed. 2005. 461 p. 16 que partiam. ―A locomotiva arfava. A sineta vibrou. O apito estridente do chefe da estação dominou todos os outros ruídos‖.11 Neste estudo, além da análise da obra As estradas da esperança, houve a necessidade de consultar trabalhos acadêmicos que, de modo integral ou parcial, representam aspectos históricos da EFN e ajudaram a problematizar algumas questões, como a existência e desativação da ferrovia. Dessa forma, Ferrovia e Rede Urbana na Bahia, de Francisco Antônio Zorzo; As Estradas de Ferro no Recôncavo, de Lindinalva Simões; As Estradas de Ferro de Nazaré no contexto da política nacional de viação férrea, de Cássia Maria Muniz Carletto e Mudança na paisagem física e social associados à ferrovia: Estrada de Ferro de Nazaré no Vale do Jequiriçá, de Elenildo Café de Jesus foram alguns dos estudos consultados.12 Articuladas ao romance As estradas da esperança, outras fontes como livros de memórias, atas, relatórios, jornais e fotografias da EFN foram úteis para auxiliar na interpretação do recorte temporal e evidenciar as representações dessa ferrovia, principalmente nas questões referentes à desativação e à região percorrida pelo trem de Nazaré. Considerando a ambigüidade do termo representação, que, por um lado, evoca a ausência e, por outro, torna visível a realidade representada sugerindo a presença, é possível afirmar que a imagem é, ao mesmo tempo, presença e sucedâneo de algo que não existe.13 A obra As estradas da esperança, além do cotidiano, tem como matéria a região e a desativação da EFN, pois Santa Inez usou o nome real das cidades e dos povoados que eram conectados por essa ferrovia, lamentou o fim da estrada e criou personagens baseadas em suas viagens no trem. Para viabilizar a exposição dos resultados da pesquisa realizada, a dissertação foi dividida em três capítulos. O primeiro apresenta o enredo do romance, problematizando ficção, memória e cotidiano a partir da trajetória das personagens Franz, Laura e Lourenço. Destaca as representações da EFN com base na fonte literária e em alguns memorialistas, que reproduzem um discurso da ferrovia como fator de modernidade e progresso. 11 GALLO, Nelson. O pecado viaja de trem. São Paulo: O livreiro LTDA, 1960, p. 14. ZORZO, Francisco Antônio. Ferrovia e Rede Urbana na Bahia: Doze Cidades Conectadas pela Ferrovia no Sul do Recôncavo e Sudoeste Baiano (1870 – 1930). Feira de Santana, UEFS, 2001. 264 p. Livro originado da tese de doutorado, intitulada ―Práticas de Territorialização e a Formação de uma Rede Urbana no Brasil‖, Universidade Politécnica da Catalunya, Espanha, 1999; SIMÕES, Lindinalva. As Estradas de Ferro no Recôncavo. UFBA, Salvador, BA. Dissertação de Mestrado, 1970. (166 p.); CARLETTO, Cássia Maria Muniz. As Estradas de Ferro de Nazaré no contexto da política nacional de viação férrea. Dissertação de Mestrado. UFBA, 1979. (360 p.) e JESUS, Elenildo Café de. Mudança na paisagem física e social associados à ferrovia: Estrada de Ferro de Nazaré no Vale do Jequiriçá, Bahia. Dissertação de Mestrado, UESC, 2008. 84p. 13 GINSBURG, Carlo. Representação: a palavra, a idéia, a coisa. In: ___ Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 85 – 103. 12 17 O segundo capítulo ocupa-se da representação da região percorrida pelo trem de Nazaré, destacando as cidades servidas pela ferrovia, bem como suas características geográficas, culturais, sociais e econômicas. Neste capítulo o cotidiano da ferrovia e dos passageiros do trem de Nazaré é representado pelas personagens criadas por Santa Inez com o auxílio de fotografias. A parada do trem na estação promovia a feira e ―a festa‖, o comércio, os encontros, o namoro, a despedida, a política, a descrição dos alimentos consumidos e produtos agrícolas comercializados. Portanto, a região e o cotidiano aparecem entrelaçados com as cidades e a ferrovia. Os diálogos das personagens no interior do trem e nos arredores das estações fornecem subsídios para abordar essas questões. O terceiro e último capítulo aborda a desativação da EFN — o ―choro‖ do narrador com o fim da estrada, o surgimento das rodovias e as ―doenças‖ que causaram ―a morte do trem‖. As dificuldades relacionadas aos transportes no Vale do Jequiriçá são delineadas quando Santa Inez apresenta os diálogos em que o caminhão e o jipe substituem o trem nos trechos desativados. O trem foi ―aposentado‖, mas, entre os anos 1960 e 1971, havia poucos automóveis na região para transportar passageiros e produtos agrícolas. Pela forma como a ferrovia foi desativada, o Vale do Jequiriçá perdeu o seu principal meio de transporte e, por algum tempo, ficou apenas com os trilhos e estradas de rodagens precárias. A narrativa de Santa Inez indica que muitos moradores migraram para Jequié, Santo Antônio de Jesus, Valença, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.14 Definitivamente, a desativação da ferrovia alterou os meios de transportes no Brasil, e o cotidiano de numerosos homens e mulheres na Bahia. 14 Um estudo chamado ―Diagnóstico dos Municípios do Vale do Jequiriçá‖ informa que o êxodo rural desta região foi o maior da Bahia, na década de 1960, período que a ferrovia passa a ser desativada. BAHIA. Diagnóstico de Municípios Vale do Jequiriçá. Edição SEBRAE. Salvador, Março de 1995. 125p. 18 2 AS ESTRADAS DA ESPERANÇA E AS REPRESENTAÇÕES DA ESTRADA DE FERRO NAZARÉ (EFN) 2.1 Ficção e memória na obra As estradas da esperança Em nota explicativa, prefaciando o livro de seu pai, Vânia Maria Moura de Santa Inez, relata que o romance As estradas da esperança conta uma das histórias mais bonitas que ela já leu: a história de um trem que realmente existiu e foi desativado. Ela informa que seu pai viajava neste trem, conheceu as personagens que descreve e, numa daquelas viagens, conheceu a esposa, a senhora Maria Carmelita. ―Porque meu pai nasceu naquelas matas da Bahia, naqueles sertões tão bem retratados por ele‖, afirma.15 Ainda que Antônio Leal de Santa Inez não tivesse a pretensão de apresentar aspectos históricos importantes da Estrada de Ferro Nazaré, nota-se que sua obra representa traços da história e da memória dessa estrada. É inegável que Santa Inez tenha se apropriado de outras leituras, de outros discursos acerca dessa ferrovia, mas a data de publicação de sua obra, sua posição social, intelectual, sua história de vida, onde morou, estudou, trabalhou, tudo isso ajuda a compreender melhor o seu discurso literário. Ao criar suas personagens e relatar a viagem do trem, de estação em estação, falando das noites quentes em Jequié, do acidente em Lagoa Queimada, do aleijado, do sanfoneiro, da banana frita, do mingau de tapioca, de Jaguaquara (a toca da onça), da farinha de mandioca, dos beijus, dos umbus e licuris de Santa Inês, do Coronel e sua grandeza, de Areia (atual Ubaíra), da notícia da morte do trem em Mutuípe, de Laje, de São Miguel, Amargosa, enfim, de todas as estações ou cidades que o trem passava, Santa Inez constrói uma representação dessa estrada, revelando vários aspectos do cotidiano da ferrovia. Em Mad Maria, Márcio Souza descreve o cotidiano dos trabalhadores que construíram a Ferrovia Madeira – Mamoré na Amazônia, um ambiente insalubre e perigoso para suas personagens: engenheiros, enfermeiros, médicos, indígenas, pessoas de diferentes nacionalidades e origem étnicas. Esse autor conta história de forma romanceada, criticando o capitalismo e as dificuldades enfrentadas para se construir aquela ferrovia, no meio de uma floresta composta por árvores enormes, formigas, escorpiões, cobras, mosquitos, insetos, pragas naturais diversas, rios e cachoeiras. Sua narrativa informa sobre as atividades 15 SANTA INEZ, Antônio Leal de. As Estradas da Esperança. São Paulo: Clube do Livro, 1982, p. 7. 19 desenvolvidas, a carga horária de trabalho e o estado físico e psicológico dos indivíduos envolvidos na execução daquele projeto: Os chineses trabalhavam no desmatamento, iam avançando pela floresta. Os alemães cuidavam do serviço de destocamento e da terraplanagem. Os barbadianos estavam no serviço de colocação do leito ferroviário. Os espanhóis, egressos do sistema repressivo colonial em Cuba, faziam as vezes de capatazes e compunham a guarda de segurança. Cada homem tinha o seu trabalho definido, e a jornada era de onze horas por dia, com direito a um intervalo para o almoço. Mas o aspecto de cada homem era igual, independente de sua nacionalidade. Todos estavam igualmente maltrapilhos, abatidos, esqueléticos, decrépitos como condenados de um campo de trabalhos forçados.16 Mad Maria e As Estradas da Esperança, mesmo que se considerem suas diferenças quanto à forma e ao conteúdo, irredutíveis a comparações estritas, servem para abordar questões que outras fontes não permitiriam e para perceber que os discursos históricos e literários constroem uma ideia de realidade e nos ajuda a refletir sobre o ofício do historiador. Pensar uma discussão envolvendo a relação da literatura com a história exige reflexão sobre conceitos como imaginário, real, representação, discurso, narrativa histórica e ficção. Deve-se considerar que, para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou rastros, o caminho do historiador é montado por estratégias que se aproximam das dos escritores de ficção, através de escolhas, seleções, organização de tramas, decifração de enredo, uso e escolha de palavras e conceitos.17 O que diferencia o historiador do romancista é a sua dependência do arquivo, o dever de fazer a citação das fontes, a não liberdade para criar personagens e inventar os fatos. Ainda que a literatura não se comprometa diretamente com a veracidade, discursos ficcionais como o de Santa Inez contêm história e memória. O enredo do romance As Estradas da Esperança é baseado nas fugas das personagens Franz e Alípio. O primeiro rouba o seu próprio pai e, aos 15 anos de idade, foge do meio rural para a cidade. Descrito como aventureiro, torna-se marinheiro e viaja pelo mundo, mas retorna trinta anos depois. Fracassado e pobre, recomeça a vida trabalhando em fazendas. Nos diálogos que envolvem esta personagem não há muita ênfase nas viagens do trem, que acontecem ora muito distante, ora nos arredores da ferrovia. Alípio, por sua vez, engravida a personagem Rosa e foge no trem partindo de Jequié em direção a Nazaré, para não ser morto 16 SOUZA, 5ª ed., 2005, p. 20. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2006, p. 6. Disponível no sítio eletrônico http://nuevomundo.revues.org/index1560.html . Acesso em 28 de outubro, 2009. 17 20 pelo pai da moça. Alípio desce na estação da cidade de Mutuípe, consegue emprego na prefeitura e, depois de algum tempo, quando tenta retornar para Jequié, encontra problemas relacionados aos transportes, pois a EFN já havia sido desativada no Vale do Jequiriçá. Como se não bastasse a dificuldade para regressar à sua cidade de origem — algumas partes do percurso foram feitas de caminhão, jipe e caminhada —, descobre que Rosa é namorada de Franz e os dois travam uma luta por causa desta mulher. Além de Franz e Alípio, as personagens principais que figuram a obra de Santa Inez são: o sanfoneiro Patrocínio, que tocava e cantava no trem, fazendo a diversão dos passageiros; o aleijado, que ganhava a vida pedindo esmolas; o louco, que aparece na narrativa quando o trem passa pela estação da cidade de Jaguaquara e vai até Rio Fundo, próximo a Nazaré, para tratar-se com o curador Zé Felício; e o coronel Astério, que entra no trem na estação da cidade de Itaquara, acompanhado da filha Lininha e da esposa, Dona Caró, que estava doente e ia se consultar com os médicos de Salvador. Os diálogos que envolvem estas personagens acontecem no interior do trem em movimento, deslocando-se de Jequié em direção a Nazaré. Há também as personagens secundárias, como Dona Sé e Téia, que com a desativação da ferrovia no Vale do Jequiriçá migraram de Lagoa Queimada para Jequié; o tropeiro Sebastião e seu ajudante Benedito, que se tornou sócio de Franz e abriu uma carpintaria nesta cidade; Maria Soldado, cuja casa era uma espécie de pousada e bordel, também localizada em Jequié; Alexandre e Lidinha, o casal pobre, que morava em São Miguel das Matas e migrou para Santo Antônio de Jesus (onde ainda havia o trem). A narrativa envolvendo essas personagens é exterior ao trem e reflete um momento em que o trecho da estrada que ligava Santo Antônio de Jesus a Jequié já havia sido desativado. Ainda como personagens secundárias e desligadas do enredo no interior do trem, Laura e Lourenço, o casal que sonhava ficar rico cultivando mandioca, representa a vida no meio rural e foi importante para interpretar o cotidiano nas proximidades da ferrovia. Algumas práticas cotidianas também são descritas na trajetória de Franz, permitindo problematizar a relação entre ficção e memória, autor e personagem, ou seja, criador e criatura. 21 2.2 A trajetória de Franz Na abertura do romance As estradas da esperança, Santa Inez apresenta o matrimônio da personagem Lidinha — que se casou grávida de sete a oito meses, de véu e grinalda —, a primeira cerimônia que o padre Anselmo havia celebrado na igreja de São Francisco das Andorinhas. Lidinha era filha do velho Maia (Meyer), um alemão aventureiro, que se encantou com a localidade e a simplicidade dos moradores e decidiu fixar-se ali, onde também havia casado. Teve dois filhos, ficou rico e transformou-se numa pessoa muito conhecida, porém sua vida tornou-se trágica e solitária após a morte da esposa e de um dos filhos, seguida do abandono do outro, que o rouba e desaparece no mundo (AEE, p. 15 – 16).18 A referência a tais personagens torna possível problematizar ficção, memória e cotidiano, com base na trajetória da personagem Antônio Francisco (Franz), o filho que desestruturou a vida do velho Maia. Após a fuga do filho ele começou a beber cachaça, vender os bens, as terras, os objetos de valor, perdendo a vontade de viver. ―Toda a riqueza acumulada em quarenta anos de luta desapareceu em três ou quatro anos de tristeza‖ (AEE, p. 16). Ao longo da obra, Santa Inez menciona situações, modos de viver — a moça que se casou grávida, o velho que vivia embriagado, caía à porta das vendinhas e trocava objetos de valor por garrafas de cachaça — e lugares como São Francisco das Andorinhas, Lagoa Queimada (uma das estações da EFN), as noites quentes de Jequié (fim de linha da EFN) e a culinária de Nazaré (ponto de partida do trem). Ao descrever a vida da personagem Franz, Santa Inez relata que o rapaz herdara do pai o espírito de aventura e fazia mais de trinta anos que fugira de São Francisco das Andorinhas. ―Muitos diziam que ele havia morrido afogado no Paraguaçu e outros apostavam que tinha se tornado milionário na Alemanha‖ (AEE, p. 48). Entretanto, enquanto o trem fumaçava e se arrastava no calor da manhã, um homem alto e forte, rosto marcado pela vida, sujo e esfarrapado, mergulhava os pés na lama das estradas que o levavam de Ilhéus a São Francisco das Andorinhas. ―Era Franz, o aventureiro, que voltava em busca do seu porto definitivo‖ (AEE, p. 50). Franz retornou humilhado, pobre e rejeitado. Preocupava-se ao pensar na repercussão da atitude de outrora frente aos moradores e amigos de infância. Em suas aventuras nas 18 A partir daqui a abreviatura AEE será utilizada nas referências à obra As Estradas da Esperança. (SANTA INEZ, Antônio Leal de. As Estradas da Esperança. São Paulo: Clube do Livro, 1982). 22 grandes cidades, tornou-se marinheiro, viajou pelos quatro continentes, prestou serviços na guerra (os bombardeios na Europa) e passou alguns dias preso na cadeia de Ilhéus, após se envolver numa briga. Não sabia que seu pai havia morrido e que tinha uma irmã, mas voltou em busca do perdão (AEE, p. 52-53). De regresso para casa, conseguiu trabalho numa fazenda que se localizava nas proximidades de Ilhéus e Itabuna. Lá, além da casa grande, havia uma barcaça onde secava o cacau, uma venda e as casas dos trabalhadores. A narrativa de Santa Inez permite considerar que o consumo de cachaça e as aventuras com mulheres eram sinônimos de confusão e impedimento para que Franz conseguisse emprego. Porém, sua habilidade como carpinteiro contribuiu para conquistar confiança e amizade. ―Em um mês trabalhou por um ano. Consertou casas, construiu cancelas, endireitou cangalhas, refez a barcaça, recondicionou móveis inutilizados e ganhou dinheiro‖ (AEE, p. 60), revela o narrador. Nas características que atribuiu à personagem Franz, Santa Inez descreve o trabalho e o cotidiano, principalmente quando o transforma em carpinteiro. O Franz marinheiro recebeu uma referência rápida das cidades bonitas que conheceu: Paris, Londres, Nova Iorque, portos distantes do Pacífico e ilhas perdidas da Ásia (AEE, p. 79). No seu retorno de Ilhéus para São Francisco das Andorinhas, além de trabalhar em fazendas, Franz ganhou a companhia do cachorro Piau, do tropeiro Sebastião e ficou hospedado na casa de Maria Soldado, em Jequié: — Donde o senhor vem, moço? — De Ilhéus, dona Maria. — Ah!... Nasceu em Ilhéus mesmo? — Não, senhora, dona Maria. Nasci aqui perto. Na Serra das Andorinhas. — Morava em Ilhéus há muito tempo? — Na verdade, eu não venho de Ilhéus. Eu venho do mar. Fui marinheiro durante muito tempo. Mas aí me cansei, e resolvi voltar para minha terra. — Eu acho que o senhor está falando a verdade. Mas se não tiver, o senhor é que é o responsável... — Fique descansada, minha tia. As maluquices que eu tinha de fazer na vida, já fiz. Agora eu sou um homem direito (AEE, p. 81). Neste diálogo, Santa Inez descreve Maria Soldado como uma negra velha de cabelos brancos, rezadeira, um pouco curandeira, alcoviteira, festeira, alegre, cautelosa — principalmente na hora de hospedar um desconhecido—, uma espécie de mãe e ponto de apoio para qualquer problema das pessoas humildes de Jequié e cidades circunvizinhas. A mocinha grávida, a mulher doente, o velho faminto, o homem apaixonado ou o que se envolvia em confusão, todos lhes procuravam. ―Sua casa não era um bordel. Que ninguém pensasse nisto. Mas era escola de vida, igreja, delegacia, hospital, creche, hotel e clube (AEE, p. 82). 23 O narrador relata que após o banho no Rio de Contas e o almoço na casa do tropeiro Sebastião, Franz ficou em Jequié, onde em sociedade com Benedito (ajudante do tropeiro), desenvolveu a idéia de montar uma carpintaria. Ainda nesta cidade conheceu a personagem Rosa, com quem desenvolveu um romance. Antes de se cruzar com Alípio e travar uma luta em disputa de Rosa, coordenou os trabalhos para amenizar ―a cheia do Rio de Contas‖, causada pela chuva do sertão, que vinha de Brumado, de Caculé e de Condéuba. ―O Rio Gavião já estava muito cheio, e suas águas desciam e engordavam o Rio de Contas‖ (AEE, p. 104). Ao narrar a enchente do Rio de Contas, o romancista revela o seu conhecimento sobre o nome de cidades baianas — Brumado, Caculé, Condéuba —, descreve os prejuízos causados a Jequié, especificamente, ao bairro do Jequiezinho, e as coisas e animais que as águas levaram: toras de madeira, cancelas, canoas, utensílios domésticos e vacas mortas. ―Um dia aquilo não aconteceria mais. Uma represa um pouco acima de Jequié iria domar o Rio de Contas e controlar as suas águas‖ (AEE, p. 105). A referida represa é a Barragem de Pedras de Jequié, atestando que a obra As estradas da esperança é composta por ficção e memória, mesclando aspectos do imaginário e do real. A trajetória de Franz é marcada ainda por sua luta com Alípio. Depois de muita discussão na casa de Maria Soldado, o enfrentamento corporal deixou ambos hospitalizados. Enquanto Alípio foi dispensado em poucos dias, Franz ficou bastante debilitado. Teve febre, delírios e fraqueza, em decorrência de uma facada que o atingiu. O desespero de Rosa era evidente, afinal de contas, estava grávida e com o coração dividido entre o pai de seu filho e o novo amor, o carpinteiro. (AEE, p. 110). A dúvida acerca do destino de Rosa desperta uma sensação de curiosidade no leitor de As Estradas da Esperança. Os capítulos que retratam esta luta são intercalados com outros que fazem referência à desativação da ferrovia. Franz passa a ser visitado por Téia — uma adolescente que presenciou a briga —, e lhe pede que cuide de Piau, seu cão. Avaliando a situação em que se encontra, Rosa opta por dar uma segunda chance a Alípio, o homem que lhe abandonou grávida. Ao final da narrativa, os diálogos que envolvem essas personagens tratam de conciliação e declarações amorosas, do término do namoro de Rosa com Franz, do perdão de Franz a Alípio, do desejo de Franz retornar para Serra das Andorinhas e do início do romance entre Franz e Téia (AEE, p. 115 – 122). A narrativa acerca da trajetória de Franz registra que a sua vida melhorava a cada dia. Sua carpintaria em Jequié produzia pontes, janelas, vigas e assoalhos. A sociedade com Benedito havia dado certo. Criaram uma linha de móveis em madeiras nobres, que era sucesso 24 na região: mesas de jacarandá, camas de sucupira, cômodas de vinhático, arcas, malas, cadeiras, baús, armários e estantes. O principal produto, contudo, eram umas cadeiras especiais chamadas de ―espreguiçadeira‖, que se transformavam em cama. Feitas com alto acabamento em jacarandá e vendidas a particulares, eram também enviadas para Salvador. Com a demanda, os sócios não tinham como atender todas as encomendas e Franz era obrigado a ir cada vez mais longe procurando madeira: Jaguaquara, Itiruçú, Brejões, Nova Canaã, Conquista, Ubaíra, Amargosa (AEE, p. 127). Além de possuir uma carpintaria em Jequié, Franz herdou uma fazenda em São Francisco das Andorinhas, que era do seu pai, o velho Maia. Esta personagem é consagrada por Santa Inez e tem um final de sucesso. De ladrão fugitivo, torna-se marinheiro, empregado de fazendas, carpinteiro de sucesso e casa-se com uma jovem bonita. A obra é introduzida e finalizada com uma cerimônia de casamento, na mesma igreja e localidade.19 O matrimônio de Franz e Téia causou um movimento impressionante na igreja de São Francisco das Andorinhas: jipe, caminhão, pessoas à cavalo, à pé, vestidas com roupas coloridas, sapatos novos, cabelos penteados, sombrinhas nas mãos. ―Além do padre, esteve presente o tabelião, o sacristão, o juiz de paz, e tanta gente para ver o casamento‖ (AEE, p. 143). A igreja católica estava presente nos pequenos distritos na época. Chegava antes da emancipação política da cidade e outros serviços básicos. Santa Inez se revela através de sua personagem, ao descrever que o crescimento do povoado ocorreu por influência de Franz, que conseguiu escola, posto de saúde, casa de farinha, engenho de rapadura, armazém, a melhoria das estradas e as pontes (AEE, p. 145). Ele se realiza atribuindo a Franz as atividades de um prefeito. O criador se aproxima da criatura, ou seja, um pouco dos sonhos e da vida de Santa Inez coincide com as características que atribuiu à personagem Franz: o gosto pela contação de histórias infantis, as cidades por onde passou, conheceu ou gostaria de conhecer e o sucesso com a carpintaria. Enfim, o sair e retornar para São Francisco das Andorinhas — que o autor também nomeia de Serra das Andorinhas —, revela traços da memória da comunidade rural onde ele nasceu e cresceu: Serra Grande, distrito da cidade de Valença (Bahia). 19 Vânia Maria Moura de Santa Inez, prefaciando o livro do seu pai, além de afirmar que ele conheceu as personagens que descreve e a própria esposa, numa das viagens no trem, destaca: ―E muito do homem que volta, este Franz humano e generoso, tem muito de meu pai. Principalmente, a sua coragem, o seu desprendimento, a sua sensibilidade‖ (AEE, p. 7). A narrativa sobre casamento é influenciada pela própria história de vida de Santa Inez, pois quando migrou para o Rio de Janeiro ainda namorava Maria Carmelita, a mulher que ele deixou na Bahia e prometeu voltar, casar e levar consigo. Depoimento de Vânia Maria, filha do autor. Salvador, 12/12/2009. 25 É interessante pensar os motivos pelos quais uma parte da narrativa de Santa Inez se concentrou em Jequié e no conhecimento que possuía das cidades circunvizinhas. Como conseguiu abordar com propriedade a cheia do Rio de Contas, o trabalho nas fazendas e descrever os móveis da carpintaria, por exemplo? Por que São Francisco das Andorinhas caminha com Franz do início ao fim da obra? Santa Inez nasceu em 1927, migrou para o Rio de Janeiro em 1952, depois para São Paulo em 1972 e publicou sua obra em 1982. A memória que deixou registrada expressa o que viveu na Bahia, principalmente suas viagens no trem (tema do segundo e terceiro capítulos), e as lembranças dos locais por onde passou. Não aparece quase nada referente às duas grandes cidades onde morou, a não ser a curta referência ao marinheiro e o uso da gíria ―mano‖ ou ―maninho‖, quando introduz a fala das personagens. Por intermédio do discurso literário Santa Inez aproxima ficção e memória ao referirse aos nomes reais das cidades baianas, ao viver e à moradia em Jequié e São Francisco das Andorinhas e ao descrever práticas cotidianas (brigas, relações amorosas, atitudes solidárias, costumes e trabalho). Se, por um lado, a existência de personagens é uma característica da obra como ficcional, por outro, as atividades desenvolvidas pelos seres criados possibilitam o conhecimento acerca de elementos da vida do criador. Através de Laura e Lourenço, cultivadores de mandioca, obtêm-se o conhecimento de como se fazia a farinha nas proximidades da EFN. Nota-se também uma representação do trabalho, dos laços de solidariedade entre os trabalhadores, formas de viver, alimentar-se, o desejo de prosperar economicamente e, principalmente, a memória de Santa Inez ao criar essas personagens. 2.3 O cotidiano nas proximidades da ferrovia: literatura e memória do cultivo da mandioca Em O Cotidiano e a História, Agnes Heller (1992) ajuda a refletir sobre a estrutura da vida cotidiana, os preconceitos, os papéis sociais, o indivíduo e a comunidade, enfim, as relações entre a ética e a vida social. De acordo com essa autora, considera-se valor tudo aquilo que produz diretamente a explicitação da essência humana ou é condição de tal explicitação. A vida cotidiana é a vida do homem inteiro, portanto, sejam as ―práticas‖ ou o ―comportamento‖, a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a 26 atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação.20 Nesse sentido, a economia ou a política não são mais ou menos importantes que as práticas cotidianas, dignas de estudos separadamente. Estão entrelaçadas, coexistindo na vida humana. Na obra As estradas da esperança, as práticas cotidianas relacionadas ao trabalho e exterior ao trem, são representadas quando Santa Inez menciona o diálogo das personagens Laura e Lourenço, um casal que sonhava ficar rico com o plantio da mandioca. Nota-se que este romancista conhecia algumas práticas rurais, como secar o cacau, fazer beijus, cultivar o solo, plantar, cuidar, raspar, ralar e transformar a mandioca em farinha. Quando ele migrou para a cidade do Rio de Janeiro, em 1952, já tinha 25 anos de idade e, na composição de sua narrativa, percebe-se a memória de um jovem do meio rural, que expressou com indignação a desativação da EFN. Ao intercalar a viagem do trem, sentido Jequié a Nazaré, com a narrativa que envolve as personagens Laura e Lourenço, Santa Inez revela o seu conhecimento e a sua memória acerca do cultivo da mandioca. Era um casal ainda jovem, que morava nos arredores de Serra Grande e sonhava ficar rico com o plantio da mandioca.21 Eles acreditavam na possibilidade de comprar mais terras, na alta do preço da farinha e na fabricação e venda do beiju. As relações trabalhistas, o estado de saúde, a condição social e o tipo de alimentação sobressaem quando o narrador reforça que tais personagens não tinham patrões, não eram pobres, famintos, infelizes, sem esperança, ou doentes. Se houvesse doença não era diferente das dos ricos da cidade. ―Sua fome era apetite mesmo, e se a refeição não era balanceada, pelo menos era saudável, saborosa e sábia, pois vinha mantendo gerações e gerações‖ (AEE, p. 25). Pode-se afirmar que Santa Inez, em As estradas da esperança, ao narrar o cultivo da mandioca e a trajetória das personagens Laura e Lourenço, apresenta uma memória do cotidiano rural, relacionada à economia local. Segundo o autor, esta lavoura dá muito trabalho a quem se dedica a ela. Tem que limpar o mato, cavar a terra, saber plantar para as raízes não se afundarem muito, manter a lavoura limpa de matos, evitar que as formigas derrubem as folhas, combater as lagartas e impedir que animais, como os porcos ou o gado, entrassem na plantação (AEE, p. 26). Além de apresentar uma ―aula‖ a respeito dos cuidados para se cultivar a mandioca, Santa Inez informa sobre as diferentes espécies dessa planta de acordo com a linguagem dos 20 Cf. HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, 4ª ed. 1992. p. 17 – 18. 21 Comunidade rural que pertence à cidade de Valença – BA, onde Antônio Leal de Santa Inez morava com sua família antes de migrar para o Rio de Janeiro. Alguns de seus familiares ainda moram nesta comunidade (dois irmãos e alguns sobrinhos). As estações ferroviárias mais próximas eram as das cidades de Mutuípe (13 Km) e Laje (aproximadamente, 20 Km). 27 trabalhadores: ―venenosa‖ (mandioca) e ―mansa‖ (aimpim). Ele evidencia os nomes comuns ao aimpim: aimpim cacau, peixe, pacaré, aimpim pão, manteiga, vassourinha, cambraia, entre outros. Havia uma sabedoria para se fazer as roças sem misturar as espécies, com o intuito de descobrir as mais rentáveis e produtivas para se fazer uma farinha alva e cheirosa. O próprio caule dessa planta serve como semente — a maniva.22 ―A distinção básica era pelo nome; o aimpim podia-se comer cozido, frito, assado, em bolos. Os roceiros chamavam de impim. A mandioca só servia para fazer a farinha‖ (AEE, p. 26). Ao aprofundar a descrição das personagens Laura e Lourenço, o narrador relata que este era um casal unido. Amavam-se e alimentavam o sonho de prosperidade com o trabalho. Enquanto Lourenço, com a enxada no ombro, assobiava a caminho do roçado de manhã cedo para ―pegar a fresca do dia‖, Laura ficava em casa preparando o almoço, que levaria para ele mais tarde. Na hora de tomar uma decisão, um consultava o outro, por isso, ambos pensaram na possibilidade de plantar cacau enquanto a mandioca crescia, pois sabiam que alguns fazendeiros das cidades de Ilhéus e Itabuna ficaram ricos com o cultivo deste produto (AEE, p. 31-32). No trecho transcrito acima, nota-se a divisão do trabalho entre o homem e a mulher, as formas de sobrevivência em uma economia simples e artesanal, os afazeres diários assim que acordavam e o desejo de vencer as dificuldades, a vida oprimida e tornarem-se ricos. As atividades desenvolvidas pelas personagens Laura e Lourenço evidenciam o que Certeau caracterizou como cotidiano. ―Todo dia pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo‖.23 Santa Inez enfatiza que a habilidade de Laura e Lourenço era com o plantio da mandioca. Enquanto o trem descia para a cidade de Itaquara, tais personagens chegavam ao fim do eito, guardavam as enxadas e se preparavam para ir ajudar os vizinhos (as personagens Bento e Matilde). Estes pensavam em ―arrancar‖ uma tarefa de mandioca, mas sozinhos encontrariam muitas dificuldades para transformar as raízes em farinha. Precisava levar em lombo de animais para a casa de farinha, do auxílio de algumas pessoas, em sua maior parte mulheres e mocinhas, que raspavam metade das raízes enquanto outro grupo, os ―tomadores‖, seguravam as partes já raspadas e completavam o trabalho de limpeza. Com isso, as raízes escuras, sujas de terra, transformavam-se em ―pirâmides‖ de raízes brancas, alvas, descascadas, contrastando com o verde das folhas de bananeira, que serviam para forrar o 22 23 Parte externa, o caule, enquanto o termo ―mandioca‖ é utilizado para designar as raízes, os tubérculos. CERTEAU; GIARD E MAYOL, 2001, p. 31. 28 chão. Após raspar, ralava-se a mandioca, que era comprimida na prensa de madeira para extrair-lhe a seiva e facilitar a secagem. Neste processo devia haver certos cuidados, principalmente, para transformar em farelos as raízes brancas, porque as serrilhas do aparelho poderiam ferir os dedos. Era uma técnica especial e o ―cevador‖ evitava distrair-se com as conversas, para ralar as raízes mais depressa do que eram raspadas (AEE, p. 38 – 40). As lembranças de Santa Inez sobre os modos de vida no campo e o cotidiano relacionado às atividades com a mandioca, são resultado de sua infância na fazenda de seu pai, onde havia alambique, engenho, girau (secador de café), curral para o gado e uma casa de farinha.24 Entretanto, não é possível afirmar que ele executava estas tarefas ou apenas as presenciavam. A maioria das personagens de As estradas da esperança foi criada com base na trajetória de vida do autor, complementada por sua imaginação. As tramas que envolvem Franz e o seu pai, o velho Maia, por exemplo, sugere uma relação dialógica entre o campo e a cidade. São dois Franzs: o carpinteiro de fazendas, que consertava as cercas e as cancelas para o gado e o Franz comerciante (dono de carpintaria em Jequié), que produzia móveis por encomendas, para vender em Salvador. A memória de Santa Inez transita entre o campo e a cidade porque a personagem Franz desenvolve atividades em ambos os espaços. O velho Maia não sai de São Francisco das Andorinhas, torna-se rico, volta a ser pobre e quando morre deixa uma fazenda para o filho. Franz também passa por oscilações na condição social, mas finaliza com duas propriedades: a carpintaria na zona urbana – Jequié, e a fazenda na zona rural – no povoado de São Francisco das Andorinhas. Já Laura e Lourenço, além de representarem pessoas humildes e simples, oriundas do meio rural, estão localizadas na comunidade de Serra Grande, povoado em que a economia local não permitia negociações como a da cidade de Jequié. Estas personagens refletem o imaginário do romancista, entrelaçado com a localidade que ele nasceu e cresceu e com as experiências do cultivo da mandioca. Santa Inez descreve que além de servir para fazer a farinha, a mandioca também servia para fazer beiju. Depois de raspada, ralada e prensada, extraía-se a ―água de tapioca‖ para aproveitar a goma. Os cochos e as gamelas se enchiam daquela água branquicenta para que o polvilho assentasse. Horas depois era só escorrer a água já então transparente, e o que ficava no fundo do vasilhame, alvíssimo, era a goma, a tapioca, o polvilho. Era só misturar com açúcar e coco ralado, uma pitada de sal, e espalhar sobre o alguidar. Beijus de 24 Depoimento de Miguel Santa Inez, irmão do autor, nascido em 06/10/1932, residente na Fazenda Cariri, Mutuípe – BA, agricultor, 77 anos. Entrevista concedida em setembro de 2009. 29 lenço, de colher, roló, de folha; outros de massa, do próprio farelo que se transformava em farinha; outros, ainda misturando a massa e a goma, originando uma terceira categoria (A E E, p. 44). Nota-se que o conhecimento de Santa Inez não foi adquirido em livros, mas fruto de sua prática no meio rural. Em Serra do meio, seu primeiro romance publicado, ele conta uma história envolvendo a vida, os costumes, as lutas e as esperanças de uma gente simples e humilde, que habitava as matas e os sertões da Bahia.25 É um romance rural, que descreve atividades como a colheita do feijão, o hábito de apanhar café, mexer farinha, pescar de cesto e cortar fumo para o cigarro. É uma memória que representa a comunidade de Serra Grande (distrito de Valença) limitando-se territorialmente com o município de Mutuípe. Esta obra revela alguns eventos importantes que aconteciam nesta comunidade, como a missa, os batizados, a queima do Judas e a festa de São João. Outra obra de Santa Inez que permite conhecer seus familiares e um pouco da sua história de vida é A família é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia.26 Nesta obra ele menciona, além de Serra Grande, Serra do Rato, Serra do Roçado, Serra do Frio e Serra do Abiá. Informa que o mundo de seus familiares estava restrito a meia dúzia de municípios baianos: Nazaré, Amargosa, Jequié, São Miguel das Matas, Mutuípe e Valença, especificamente, em Serra Grande. Em A família é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia, Santa Inez também nos informa acerca dos produtos agrícolas cultivados, relatando que as terras de São Miguel, e dos municípios vizinhos nada tinham de especial. Cultivava-se fumo e café, cana de açúcar e mandioca, algum milho, algum feijão, que se resumia à economia local. Ele acrescenta: Tudo se processava de maneira primária, primitiva. Nem trator, nem arado, nem máquinas. O machado, a foice, a enxada e o fogo formavam a base da lavoura. [...] muita coisa produzida ali, ali mesmo era consumida: aguardente, rapadura, farinha de mandioca. Para exportar, somente fumo em folha, café e algum porco levado para o litoral, e daí para Salvador (A família é um Arquipélago, p. 4). A partir do discurso literário de Santa Inez pode-se elucidar que as comunidades rurais do Vale do Jequiriçá e do Recôncavo Sul da Bahia, localizadas nas proximidades da ferrovia, quase todas cultivavam a mandioca. A farinha servia para o consumo alimentício das próprias famílias, para vender nas feiras ou ser enviada pelo trem até a capital (Salvador). Os frutos de plantas como bananeira, mangueira, jaqueira e coqueiro, entre outros, serviam para o 25 SANTA INEZ, Antônio Leal de. Serra do meio. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1980. 115p. SANTA INEZ, Antônio Leal de. A família é um arquipélago. Obra não publicada, encadernada, datilografada, enviada de SP para a família na Bahia, com a data de 11/04/1987. 47p. 26 30 ―lanche‖, que era feito na casa de farinha durante o trabalho. Os moradores às margens da EFN, também criavam galinhas, porcos e gados. Esses animais, quando citados na obra As estradas da esperança, não aparecem integrados à dinâmica comercial do mundo capitalista, sendo relacionados apenas a uma economia de subsistência. Ainda que o sonho das personagens Laura e Lourenço fosse enriquecer cultivando a mandioca, nos diálogos criados por Santa Inez envolvendo tanto estas personagens quanto Bento e sua esposa, Matilde, notam-se laços de solidariedade entre pessoas simples, que não estavam tão afetados pelos valores do mundo capitalista. Nas comunidades rurais, às margens da estrada de ferro, era comum emprestar ou dividir a farinha, o beiju, o sal e o açúcar, entre familiares e vizinhos, que trocavam favores solidários para executar trabalhos (limpar e cultivar o solo, torrar a farinha e fazer beiju, por exemplo). Porém, não se pode pensar que as relações trabalhistas entre todos os moradores da zona da EFN aconteciam de forma amistosa. Vale reforçar que Santa Inez expressa a sua memória do cultivo da mandioca por intermédio das personagens Laura e Lourenço e, secundariamente, Bento e Matilde, referindo-se à comunidade rural de Serra Grande, distrito de Valença, de onde era originário. Este romancista representou a EFN como fator de progresso e modernidade, principalmente, para o Vale do Jequiriçá. A linha da EFN nasceu no Recôncavo Sul da Bahia e seguiu o traçado Nazaré – Onha – Santo Antônio de Jesus – Amargosa – São Miguel – Laje – Mutuípe (na época, Distrito de Paz de Mutum, que pertencia a Jequiriçá) – Jequiriçá – Areia (atual Ubaíra) – Santa Inês – Itaquara – Jaguaquara – Jequié. Ainda vale ressaltar os nomes de estações (povoados que aparecem na obra As estradas da esperança) servidas pelo trem, como Corta-mão (Amargosa), Barra do Jaguaritu (entre Mutuípe e Jequiriçá), Jenipapo e Volta do Rio (entre Ubaíra e Santa Inês), Lagoa Queimada (entre Santa Inês e Itaquara) e Caatinga e Baixão (entre Jaguaquara e Jequié). 31 2.4 As representações da Estrada de Ferro Nazaré e ferrovia na Bahia A obra As estradas da esperança evidencia um discurso de progresso acerca da EFN, quando Santa Inez informa que a cidade de Santa Inês era composta por ruas estreitas, que pareciam ficar menor ainda com a chegada do trem. [...] ―era o monstro mecânico e barulhento, a coisa maior, mais forte, mais rápida, mais moderna e mais bonita, que cortava de progresso e de alegria a pasmaceira daqueles sertões‖ (AEE, p. 53). A construção da EFN, no Recôncavo Sul e no Vale do Jequiriçá, favoreceu a integração comercial dos povoados, vilas e de um conjunto de cidades, que eram conectadas pelo trem de Nazaré. Em As estradas da esperança, ao criar o diálogo entre as personagens Alípio e ―o aleijado‖, Santa Inez registra: Alípio pensava em Rosa quando o aleijado puxou conversa: —Té onde vai, mano? — Santo Antônio. — Boa cidade. Já tive lá. Mas agora só vou até Mutuípe. Alípio resolveu dar corda ao assunto. Precisava de saber tudo daquele mundo que lhe era estranho. — Teve muito tempo em Santo Antônio? — Oito dias. — Nunca fui. A feira é boa? O aleijado entusiasmou-se. Enfim, alguém queria ouvi-lo: Boa, boa, não é. Mas é bem diferente daqui. Muita farinha, fumo, café, cacau, rapadura... E cada moça! Mas não é boa de esmola. (AEE, p. 28). A memorialista Helena Rebouças, em seu livro Mutuípe, Pioneiros e Descendentes, quando se refere à EFN, informa que a região do Vale do Jequiriçá registrou uma maior movimentação de pessoas em trânsito, fossem engenheiros, operários e curiosos. O apito da locomotiva anunciava a sua aproximação, integrava a vida da comunidade, atraía as pessoas para as estações do trem; os que iam embarcar ou esperar alguém, ou ainda adquirir jornais e revistas, que lhes traziam as novidades da capital do Estado.27 De acordo com Rebouças, o comércio em geral passou a ser beneficiado pelos trens (de carga ou não) em transportes de mercadorias — incluindo-se os produtos agrícolas exportáveis — fazendo conexão com o vapor, que partia de Nazaré para Salvador nos dias de 27 REBOUÇAS, Helena Pires. Mutuípe, Pioneiros e Descendentes. Salvador, BA: Ed. Universitária Americana, 1992. p.19-20. 32 segunda, quarta e sexta-feira e de lá voltava nos dias de terça, quinta e sábado, ao sabor da maré de enchente, deixando os viajantes à espera, hospedados nos hotéis de Nazaré.28 É compreensível que os povoados e cidades contemplados pelas estações da EFN, principalmente nas três primeiras décadas do século XX, apresentaram-se como local propício ao passeio, ao namoro, ao fluxo de pessoas, ao trabalho — dos vendedores de mingau de milho, rolete de cana, bolachinha de goma, amendoim, banana seca, ramalhetes de angélicas e frutas. Enfim, além do comércio, a passagem do trem também era diversão e trazia informação. Ao relatar a forma como as notícias chegavam à cidade de Mutuípe, Rebouças destaca: Os jornais e revistas de Salvador chegavam com regularidade a Mutuípe, comercializados pelos Srs. Mário e Pedro Mansur, que viajava de Nazaré a Jequié, vendendo: Vida Doméstica, O Cruzeiro, Noite Ilustrada, Almanaque do Tico Tico, Eu Sei Tudo, A Tarde, O Imparcial, Diário de Notícias, Folha do Roceiro (jornalzinho chistoso, crítico e que usava um linguajar sertanejo), O Paládio de Antônio Mendes de Araujo (Santo Antônio de Jesus, Jornal de Modinhas e outros. Eram sempre bemvindos, pois constituíam uma distração, vindo a isso atrelado o interesse de estar presente à passagem do trem para um namorico rápido com alguma passageira, juntando-se à massa de queimadeiros, doceiros, vendedores de frutas que apressadamente mercadejavam: ―Olha o mingau de milho‖. Olha o amendoim!‖ ―Banana seca, quem vai querer?‖.29 Em As estradas da esperança pode-se identificar a feira, o comércio, o cotidiano da ferrovia e a utilidade do trem, quando em sua narrativa, Santa Inez se refere à estação de Varzedo, explicando que a meninada vendia cajus, rolete de cana, bolinhos, laranjas, numa repetição do que vinha acontecendo nas outras cidades. ―Gente entrando e saindo, gente embarcando, a estaçãozinha movimentada. O trem era a vida. Era a certeza de que o mundo estava alí, ao alcance da mão‖ (AEE, p.70). Portanto, antes da chegada do automóvel nas cidades servidas pela EFN, o trem representava o ―progresso e a modernidade‖, porque o jornal, a revista, a notícia, a novidade, a doença (a epidemia de varíola que houve no Distrito de Mutum, em 1917), os produtos comercializados, tudo isso chegava e saía na Maria fumaça, ou estava associado aos trilhos. Na obra Colégio Taylor Egídio: 100 anos, Daria Gláucia Vaz de Andrade relata que o trem era a grande via de comunicação das ―matas do Sertão de Baixo‖ (o Vale do Jequiriçá), 28 29 Ibidem, p. 20. REBOUÇAS, 1992, p. 21. 33 tanto para efeito de correspondência, jornais, revistas, livros, catálogos, como para as idas e vindas do povo. Segundo essa autora, em 1922, quando o Colégio Taylor Egídio foi implantado em Jaguaquara, havia o trem para levar e trazer alunos, parentes e mais os missionários de outras terras que buscavam a casa de estudo como um referencial de cultura, informação e, sobretudo um celeiro de futuros intelectuais.30 É válido lembrar que Santa Inez também estudou neste colégio e usava este meio de transporte. Talvez, isso o tenha influenciado ao caracterizar a EFN de As estradas da esperança. Andrade, referindo-se à importância do trem — ―A civilização sobre os trilhos‖, citou Izaías Alves para informar que a chegada da estrada de ferro teria propiciado um grande impulso. Desde a Monarquia, a locomotiva teria despertado o povo. A autora enfatizou um discurso progressista relacionado à ferrovia, explicando que a velha Maria Fumaça invadia o sertão e cortava as serranias e os vales, como um clarim de progresso e esperança. E acrescentou: Pode a engenharia do som, pelos seus sofisticados instrumentos, reproduzir o resfolegar da máquina, o chiar das rodas sobre os trilhos e o silvo do trem, para as gerações que não o conheceram, tal qual era até a explosão das ―quatro rodas‖ dos caminhões, ônibus e carros. Mas dentro da nossa lembrança viverá a imagem e o som da locomotiva operando a tração dos vagões de cargas ou de passageiros, dobrando a curva para chegar ou para partir, num repetido adeus. 31 Em Uma história... Jaguaquara com outras histórias, Lígio Ribeiro Farias informa que em 1913, a EFN chegou ao povoado de ―Toca da Onça‖ e foi fator de grande desenvolvimento para o comércio e a agricultura.32 Ítalo Rabêlo do Amaral destaca que no projeto original de construção da estrada, os trilhos passariam fora deste povoado, mas, por influência do Coronel Guilherme Silva, o trajeto foi alterado, e a estação foi construída na sede da antiga fazenda, a referida ―Toca da Onça‖, que em 1921, já era a próspera cidade de Jaguaquara, tendo seu território desmembrado do município de Areia, atual Ubaíra.33 Em Capítulos da história de Jequié, Emerson Pinto de Araujo relata que até a primeira metade do século XIX, o comércio entre a capital e o interior do estado era feito em lombo de burro. Diariamente, chegavam a Nazaré e a Aratuípe tropas e mais tropas, trazendo café, cacau, farinha, açúcar, cereais e outros gêneros que, depois de descarregados, seguiam para Salvador em saveiros e barcos de maior porte. Em troca, as tropas retornavam conduzindo 30 ANDRADE, Daria Gláucia Vaz de. Colégio Taylor Egídio: 100 anos (org.). Ed. Eletrônica, 1998, p. 32. ANDRADE, 1998, p. 31. 32 FARIAS, Lígio Ribeiro. Uma história... Jaguaquara com outras histórias. Santo Antônio de Jesus, BA: União Artes Gráfica Editora LTDA, 2005, p. 17. 33 AMARAL, Ítalo Rabêlo do. Jaguaquara: Dados Históricos; Intendentes e Prefeitos. Salvador, Bahia, 2008, p. 18. 31 34 produtos industrializados, muitos dos quais importados da Europa. Segundo Araújo, do alto sertão chegavam boiadas para o abate, utilizando as estradas reais, também conhecidas como ―estradas muladeiras e estradas boiadeiras‖. ―Durante o inverno, as vias de acesso ficavam intransitáveis, motivo por que comerciantes, políticos, administradores e proprietários rurais idealizaram uma via férrea, partindo de Nazaré‖.34 Anterior à ferrovia, de Jequié a Nazaré, demorava-se de 12 a 16 dias para se fazer o transportes dos produtos, em lombos de animais, percurso que o trem fazia em 12 horas, levando consigo uma quantidade bem maior de produtos e passageiros. A EFN tem origem em 1871, para servir o município de Nazaré e, em 1877, uma lei provincial efetivou a concessão para ser realizado o prolongamento da linha até Santo Antônio de Jesus.35 Essa estrada não foi construída imediatamente. Alcança a cidade de Jequié, em 1927. Partia do porto fluvial no rio Jaguaripe, na borda Sul do Recôncavo, e dirigia-se para o Sudoeste da Bahia, atravessando o vale do rio Jequirçá e atingindo o meio curso do rio de Contas, numa extensão de 290 Km. A ferrovia ligava o litoral ao sertão, conectando viação férrea e fluvial, o interior do estado à capital, com o objetivo de explorar a riqueza da região. O prolongamento da EFN até Jequié estava sempre ligado às possibilidades econômicas da região. O café produzido nos vales dos rios Jaguaripe e Jequiriçá era a principal riqueza agrícola, sendo considerado de excelente qualidade. O cultivo deste produto estendia-se por toda zona do chamado ―Baixo Sudoeste da Bahia‖ (hoje, denominado de Vale do Jequiriçá) e constituiu o interesse central para a construção e ampliação da ferrovia. Porém, se por um lado, o café influencia na construção da estrada, por outro, esta também amplia o cultivo dos cafezais na região. Entretanto, vale destacar outros produtos transportados pela ferrovia, como o fumo, a farinha de mandioca, o cacau, a mamona, a banana, o sisal e outros de menor importância. Na obra As estradas da esperança, Santa Inez menciona alguns produtos agrícolas, quando o trem passava pelas estações de algumas cidades: licuri e umbu, em Santa Inês; farinha e cacau, em Mutuípe; e alambiques de cachaça, em Laje, São Miguel das Matas e Santo Antônio de Jesus. Alguns desses produtos eram de consumo local e outros seguiam até Nazaré, Salvador, e, de lá, para o mundo – o café e o fumo, por exemplo. Na Bahia e no Brasil, no final do século XIX e na primeira metade do XX, a ferrovia servia para transportar os produtos agrícolas, passageiros e fazer a conexão entre as cidades. 34 35 ARAÚJO, Émerson Pinto de. Capítulos da História de Jequié. Salvador: EGB Editora, 1997. p.180. SIMÕES, 1970, p. 25. 35 No início da obra Traços de Ontem, Joanita da Cunha Santos relata aspectos de sua memória acerca da viagem de trem de Alagoinhas para Salvador: [...] O trem cantava a única música que ele sabia: café com pão... café com pão... e se enroscava acompanhando as nascentes dos morros, atravessando túneis, pontilhões, sempre rangendo sobre os trilhos. Os rolos de fumaça e fuligem, arremetidos pelo vento, entravam às vezes pelas janelas, sujando a roupa e incomodando a vista. Já havia passado por várias estações. Em cada uma delas aparecia algo diferente para comer ou beber. Em Mata de São João, vendia-se um delicioso mingau de tapioca; mas tão quente... tão quente, quando se conseguia começar a beber (soprando) o trem dava sinal de partida. Entregava-se, às pressas, o contingente e grande parte do conteúdo.36 Além de elogiar o mingau de tapioca, consumido nas paradas do trem nas estações, a autora informa que os trens de carga saíam superlotados de engradados de laranjas, que seriam exportados para a Inglaterra. Porém, na Capital, teriam de concorrer com as afamadas e tradicionais laranjas do Cabula. Em relação à distância da viagem (Alagoinhas a Salvador), ela informa que era de 125 km de ferrovia e os alagoinhenses viajavam para a capital para resolver negócios, fazer compras, ou mesmo para assistir aos filmes em que apareciam estrelas famosas, como Greta Garbo, Marlene Dietrich e outras em voga na época.37 A memória de Joanita Cunha sobre ferrovia na Bahia permite perceber uma classe social diferente da representada por Nelson Gallo, no romance O pecado viaja de trem. Ao relatar a história das personagens Detinha, Julinda e Edna, esse autor destacou que eram mocinhas pobres, semi-analfabetas, com idade entre os 17 e 20 anos. Elas deixaram suas famílias no interior do estado e de trem chegaram à capital, Salvador, na luta pela sobrevivência. Segundo o romancista, essas jovens trabalhavam como garçonetes ou domésticas, na Baixa dos Sapateiros, nos cafés da cidade e muitas vezes, se sentiam pressionadas, seduzidas por homens casados e/ou solteiros; pelo próprio patrão que lhes davam presentes ou algum dinheiro em troca de sexo. Ao narrar sobre a morte da personagem Julinda, Gallo contou que quando ela acabara de chegar a Salvador — a ―Bahia‖ —, uma bala perdida cortou-lhe para sempre, num segundo, o fino fio da existência. O corpo moreno e bonito ficou metade dentro do ―Café Noite e Dia‖, metade nas pedras irregulares da rua suja e fedorenta. A morte colheu-a quando se levantara da mesa onde pela última vez fizera uma refeição: média de café com pão duro e amargo e uma longínqua presença de manteiga. O autor descreveu que de sua boca e do seu 36 37 SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros Editores, 1987. p.18 SANTOS, 1987, p. 23-30. 36 peito-esquerdo, beijados e mordidos por um freguês qualquer, uma hora antes da morte, o sangue corria, grosso e escuro, formando duas pequeninas lagoas rubras: uma junto à cabeça, a outra nas pedras toscas da rua: Julinda tinha apenas dezessete anos! Havia somente três dias que desembarcaram de um trem na estação de calçada e nem sequer vira a cidade. Não fora à igreja do Bonfim, conforme era seu desejo, nem contemplara, maravilhada, as praias da Barra, Amaralina e Itapoâ. Sempre desejara ver o mar e até isso lhe foi negado. Morreu sem conhecer a burguesa Rua Chile e a proletária Baixa dos Sapateiros. Sem ter o efêmero prazer de adquirir na grande cidade um vidro barato de perfume, uma caixa de pó-de-arroz ou mesmo um sabonete. Chegou e morreu à noite, não viu senão a noite e aquela rua nauseante.38 O romance de Nelson Gallo permite, a partir de suas personagens, interpretar informações acerca da vida cotidiana de mulheres e homens que chegavam ou viviam em Salvador, na primeira metade do século XX: comerciantes, vendedores ambulantes, telegrafista, estudantes, médico, delegado, trabalhadores diversos, enfim, a prostituição como uma alternativa de emprego e o destaque para o trem como o principal meio de transporte. O processo de implantação das ferrovias no Nordeste e no Brasil era resultado da organização de grupos capitalistas, tanto nacionais, como estrangeiros, atraídos pelas concessões de juros do governo provincial e imperial. Francisco Antônio Zorzo, referindo-se à implantação das ferrovias na Bahia, afirma que ―o governo central e o provincial eram os maiores fiadores dos empreendimentos e garantiam altos juros (de 6 a 12% ao ano) sobre o capital ingressado nas ferrovias‖.39 As construções de linhas férreas na Bahia tiveram altos custos e as companhias (fossem elas, nacionais e/ou estrangeiras) ―premiadas‖ com a garantia de juros, para realização da obra, caso não tivesse sucesso, a concessão era repassada a outra companhia. Com isso, algumas estradas demoravam décadas para alcançar o destino projetado. Isso aconteceu com a Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco, que após ser concedida a permissão à Junta da Lavoura e outros proprietários, teve a concessão transferida para Bahia and San Francisco Railway Company, com capital de 16. 000: 000 $ 000, instalada em Londres. A estrada atingiu a localidade de Alagoinhas em 13 de fevereiro de 1863. Em 1871, foi autorizada a continuação, chegando a Senhor do Bonfim, em 1877 e, a Juazeiro em 1895, totalizando 578 km. Esta companhia foi resgatada pelo governo federal em 1901, composta pelos ramais de Salvador (então ―Bahia‖) à Alagoinhas; de Alagoinhas a Juazeiro; de Água 38 39 GALLO, Nelson. O pecado viaja de trem. São Paulo: O livreiro LTDA, 1960, p. 20. ZORZO, 2001, p. 78. 37 Comprida a Buranhen (E. F. Centro Oeste); de Bonfim a França e Sub-Ramal Campo Formoso.40 Mais uma estrada de ferro construída no estado. Trata-se da Central da Bahia, a segunda da província, chamada inicialmente de Paraguassu Steam Tram Road Company (1865) e Brazilian Imperial Central Bahia Railway Company (1875). Esta partia de São Felix, no Recôncavo, para a Chapada Diamantina e daí para o Sul do estado e para Minas. Na década de 1920, esta estrada fez a conexão de Salvador com Santo Amaro e Cachoeira, transportando produtos, como açúcar, fumo, café e gado. Esta ferrovia foi efetivamente integradora, ligando o Recôncavo com o alto sertão, transportando produtos agropecuários e minerais. ―Entre 1876 e 1888, a empresa registrou vários anos superavitários comprovando a validade econômica de sua construção‖.41 No cenário histórico das ferrovias na Bahia, talvez fosse possível apresentar a Estrada de Ferro de Santo Amaro como a ferrovia do açúcar, por este ser o principal produto transportado. Porém, a estrada teria um sabor amargo, logo na fase inicial de construção, com problemas técnicos e terrenos sem estabilidade, causando muitas despesas para o governo provincial — altos investimentos financeiros e a não obtenção de lucros proporcionais.42 Ao se referir à Estrada de Ferro de Santo Amaro, Cássia Carletto considera que ―foi uma obra bastante onerosa para os cofres públicos, principalmente se considerarmos o regime de déficit que caracterizou a maior parte de sua atuação‖.43 Esta estrada foi iniciada em 1875, localizada no Recôncavo, partindo de Santo Amaro para Bom Jardim (Teodoro Sampaio), totalizando 40,9 km de extensão. A Estrada de Ferro de Bahia e Minas foi construída em 1881 e teve o incentivo das duas províncias. Ficava localizada no Extremo Sul da Bahia, partindo de Caravelas (Ponta de Areia) para Aimorés e daí até Araçuaí, em Minas Gerais. Os principais produtos transportados por esta ferrovia eram o cacau, café e cereais. Outra ferrovia construída no estado foi a Centro Oeste da Bahia, que ligava o Nordeste baiano ao Estado de Sergipe. Em 14 de julho de 1884, teve início a construção do trecho de Alagoinhas a Timbó e posteriormente, em 06 de abril de 1908, de Timbó a Propriá (Estado de Sergipe). Esta ferrovia transportava produtos como fumo, cereais e pecuárias suína. A última estrada a ser citada neste estudo pode ser denominada ferrovia do cacau. Obra iniciada em 12 de janeiro de 1904, localizada no Centro Sul da Bahia, partia 40 SIMÕES, 1970, p. 23-24. ZORZO, 2001, p. 80-81. 42 Ver SIMÕES, 1970, p. 25. 43 CARLETTO, 1979, p. 33. 41 38 inicialmente de Ilhéus a Itabuna, com derivações para Aurelino Leal e Itajuípe. A ferrovia Ilhéus a Conquista tinha, aproximadamente, 82 km de extensão, excluindo os desvios. Não alcançou o seu destino final (Vitória da Conquista), passando a ser chamada apenas de Estrada de Ferro de Ilhéus, a partir de 1950. Esta ferrovia foi construída para transportar, especialmente, o cacau produzido nesta região. De forma sintética tentou-se apresentar o panorama histórico das ferrovias na Bahia, notando-se que estas eram exploradas por companhias concessionárias (nacionais e estrangeiras, em sua maioria de inglesas), ou pelo regime de arrendamento. O trem partia, quase sempre do litoral, em busca do sertão, mas a maioria não penetrou profundamente as áreas sertanejas, com exceção da Estrada de Ferro do São Francisco e a Central da Bahia. Verificou-se também que as linhas férreas da Bahia nem sempre alcançavam os objetivos projetados. Algumas pararam no meio do caminho, outras tiveram seu traçado modificado e no período da República foram encampadas pelo governo federal e arrendadas. Notou-se também a falta de interligação das estradas, de recursos financeiros para ampliar as construções, ausência de manutenção, repasse dos contratos de arrendamentos e das concessões de garantias e juros, falência de companhias e criação de novos grupos capitalistas. No final do século XIX e início do XX, em quase todo o território brasileiro, o trem era o principal meio de transporte. Algumas ferrovias nasceram e viveram mais tempo, outras se tornaram patrimônio histórico e cultural; algumas morreram em fase de construção, outras eram mais rentáveis para sua região; algumas viraram atrações turísticas e muitas nem saíram do projeto. No Brasil, o tempo do trem já passou. Porém, em algumas cidades do país ainda restam os traços da história, embutidos nas construções do século XIX, nas estações, restos de trilhos e trens, na memória das pessoas mais velhas, enfim, na literatura sobre este meio de transporte. Na obra Mad Maria, Souza informa que a estrada de ferro Madeira – Mamoré foi inaugurada em 07 de setembro de 1912. Neste mesmo ano, a borracha da Amazônia tinha perdido o monopólio internacional para as plantações inglesas na Ásia e aparentemente, a ferrovia começava a deixar de fazer sentido. Em 1916, o governo brasileiro pagou ao grupo Farquhar a importância de 62.194: 374 $ 366, embora os empreiteiros exigissem um total de 100.223: 281 $ 372. Em 1966, por decisão do Ministro dos Transportes, Juarez Távora, a linha férrea foi desativada e vendida como sucata a um empresário paulista.44 44 SOUZA, 5ª Ed., 2005, p. 455 – 456. 39 Se Mad Maria é um romance histórico que tenta reconstruir a história da construção da estrada de ferro Madeira – Mamoré, As estradas da esperança é um registro memorialístico da EFN. No capítulo 16, o narrador conta que o trem havia passado por Areia, Jenipapo, Volta do Rio e Santa Inês e, antes de chegar a Lagoa Queimada, houve um acidente. As rochas saíram dos trilhos, afundaram na terra e as pranchas do fim despejaram a carga humana nos espinhos dos cactos que margeavam a ferrovia. Alguns passageiros se assustaram e a maioria gritou ironicamente: ―Chegou! Chegou! Chegou em Jequié!‖. Era apenas um anúncio falso e a pressa com que desejavam que aquele dia não existisse; uma forma de disfarçar o incômodo causado pelo sol e o calor. ―Lá do alto o sol espiava aqueles homens, sedentos, suados, caminhando para a lagoa lodosa, que se alongava pela margem da ferrovia (AEE, p. 24). A narrativa referente ao acidente permite saber que o trem deslocava-se de Nazaré para Jequié e aproxima fato e ficção, porque em 1960, a EFN já funcionava em condição precária, necessitando da substituição dos dormentes, que deslizavam sobre o leito, provocando descarrilamentos, nos trechos mais antigos da estrada. Segundo Zorzo, os problemas operacionais nas vias, estações e nos veículos eram muitos, ―com grandes danos nos equipamentos e enormes indenizações pelas perdas de mercadorias e vidas de passageiros, que chegavam, na década de 1950, à ordem de um milhão de cruzeiros em cada caso‖.45 Outro problema da EFN eram os trilhos fraturados em trechos antigos, os TR 20 (de 20 kg/m), que não haviam sido substituídos pelos TR 32 (de 32 kg/m). O acidente narrado na obra As estradas da esperança pode ter ocorrido porque os trilhos TR 20, usados no trecho entre as cidades de Santa Inês e Jaguaquara eram ainda os originalmente instalados nas obras de 1912 a 1914 e estavam desgastados nos boletos e corroídos nos patins, além de mostrarem pontas deformadas.46 O discurso ficcional não apresenta a data do acidente, porque a memória oscila no tempo. Porém, o narrador descreve o trecho da estrada (passou Areia, Jenipapo, Volta do Rio e Santa Inês e antes de chegar a Lagoa Queimada, houve um acidente) e a forma como aconteceu (As rochas saíram dos trilhos, afundaram na terra e as pranchas do fim despejaram a carga humana nos espinhos dos cactos que margeavam a ferrovia). Mesmo com algumas evidências das outras fontes, o romance não possibilita afirmar o acontecimento do referido acidente, mas indica o cotidiano e a região percorrida pelo trem de Nazaré. 45 ZORZO, 2001, p. 242. Ibidem, 2001, p. 242. Esse autor faz tais afirmações baseando-se no Plano de Reequipamento da EFN, emitido pela CPE – Comissão de Planejamento Econômico de 1958, que informa a ocorrência de 45 fraturas ao longo da linha, em 1951 e 300 no ano de 1956. Nota 8, p. 246. 46 40 3 A REGIÃO PERCORRIDA PELO TREM DE NAZARÉ E O COTIDIANO DOS PASSAGEIROS O conceito de região pode ser associado aos fatores físicos, sociais, culturais e econômicos, bem como aos elementos naturais, como o clima, o relevo, o solo, a vegetação e a hidrografia.47 O rio Jequiriçá é uma das referências que caracterizam parte da região percorrida pelo trem — o Vale do Jequiriçá. Neste sentido, o trem de Nazaré percorria uma região ou micro-regiões mista, composta por áreas de matas, abundância e escassez de água, plantações agrícolas variadas (o café, o cacau, a mandioca, o fumo, o sisal e cereais) e ligava o litoral ao sertão. Entretanto, será feito o caminho inverso (do sertão para o litoral), seguindo a narrativa de Santa Inez que ―viaja‖ pelos trilhos da EFN (de Jequié para Nazaré). Neste capítulo, as personagens envolvidas na representação da região e do cotidiano são: Alípio, que se desloca de Jequié para Mutuípe; Rosa, residente em Jequié; o sanfoneiro Patrocínio e o aleijado, que entram no trem na estação de Baixão — o primeiro vai até Nazaré, enquanto o segundo fica em Santo Antônio de Jesus; os dois soldados e o louco, que se deslocam de Jaguaquara para Rio Fundo, com o objetivo de encontrar o curador Zé Felício; o coronel Astério, sua esposa Dona Caró e a filha Lininha, localizados na estação de Itaquara, que vão até Nazaré e daí, de navio para Salvador; o fiscal do trem que aparece na narrativa na estação da cidade de Santa Inês; o coronel Marcionílio, específico da cidade de Ubaíra; o Governador do Estado, o prefeito e o noivo, localizados, especificamente, na estação de Barra do Jaguaritu e um velho que dialoga com o aleijado, quando o trem passa pela estação de Mutuípe. 47 Ver NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008, p. 25 – 30; AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Editora Marco Zero: Anpuh, 1990. p. 8; SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Região e História. Questão de Método. In: SILVA, Marcos A. op. Cit., p. 20. Neste estudo, o conceito de região está relacionado com o espaço geográfico e ao trem, um espaço móvel. Porém, a noção de espacialidade foi se alargando com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social, político e imaginário, e daí até a noção do espaço como ―campo de forças‖ que pode inclusive reger a compreensão das práticas discursivas. Consultar BARROS, José D’Assunção. História, região e espacialidade. Revista de História Regional 10(1): 95-129, Verão, 2005. 41 3.1 Jequié (“Cidade Sol”): fim de linha da Estrada de Ferro Nazaré As estradas da esperança nos permite identificar algumas características da cidade de Jequié (noites quentes, caatingas, morros pelados, desertos de velame branco e gravatá) e a região nos aspectos cultural, geofísico, econômico e social. Quando Santa Inez, no capítulo 13, apresenta As riquezas do licuri, ele revela conhecimento com o tipo de trabalho empregado para fazer ―rapadura‖ e descreve o cotidiano da personagem Alípio. O narrador conta que Alípio tinha uma vida miserável, pois acordava ainda no escuro da madrugada e ia — cada vez mais longe — derrubar as palmas dos licurizeiros, que eram trazidas como um imenso buquê verde, amarrados ao gancho, na cancalha do burro Curió. E daquelas folhas retiravam a cera — homens, mulheres e crianças de faquinha à mão, raspando o dorso de cada folha — pó branco e leve que era, depois, derretido, e formava ―rapaduras‖. ―Depois, Alípio foi aprendendo. Levava uma escada, usava uma foice de cabo longo para derrubar as folhas e, finalmente, descobriu que era mais prático levar as mulheres e crianças, armar um rancho, no mato, e trazer apenas as rapaduras de cera‖ (AEE, p. 22). O romance As estradas da esperança representa Jequié como a cidade do calor, mas este discurso vem de tempos anteriores, desde a emancipação política e pode ser constatado na letra do hino do município: Jequié cidade sol, cidade sol é Jequié... De morros circundada Um sol ardente, Rio das contas, um lençol de prata Cantando endechas pelo sol poente e às noites de luar em serenata Datas idas, um moço inconfidente ficou na terra brava, em plena mata Um marco que redoura o teu presente sob um facho de luz que se desata Refrão: Jequié cidade sol, cidade sol é Jequié... A heráldica do teu fidalgo porte Força em teu povo a sagração viril Que empolga as caminhadas do teu norte Que o teu futuro envolva em glórias mil Para que invejando a tua sorte me abisme Nas grandezas do Brasil 48 48 Hino Oficial do município, letra de Wilson Novais e Música: Maestro Alcyvando Luz. In: www.jequie.ba.gov.br. Consultado em 19 de jul. de 2010. 42 A cidade de Jequié está situada na região Sudoeste do Estado da Bahia e localizada a 360 km da capital Salvador. O nome originou-se da palavra Jaquieh, que na língua dos índios Tapuias significava ―onça‖, por influência da grande quantidade do felino na região. A alegoria da emancipação política é representada por esse animal. Algumas tribos tapuias, cotoxós e mongóis assimilavam elementos culturais do vocábulo tupi, dai admite-se uma associação das raízes do nome Jequié à palavra Jequi, cesto de apanhar peixe. O historiador Emerson Pinto de Araujo considera que a cidade é originada da sesmaria do capitão-mor João Gonçalves da Costa, que sediava a Fazenda Borda da Mata. Esta foi vendida a José de Sá Bittencourt, refugiado na Bahia após o fracasso da Inconfidência Mineira.49 Com sua morte, em 8 de Março de 1832, a fazenda foi dividida entre os herdeiros em vários lotes (em onze propriedades). Um deles foi chamado Jequié e Barra de Jequié, que se tornou distrito de Maracás, ao qual pertenceu de 1860 a 1897, e dele se desmembrou, tendo como primeiro intendente Urbano de Souza Brito Gondim. O município se desenvolveu a partir de movimentada feira que atraía comerciantes de todo território do Médio Rio das Contas, do Baixo Sul, Vale do Jequiriçá e Vitória da Conquista, no final do Século XIX e início do XX.50 49 José de Sá Bittencourt é homenageado na letra do Hino do Município ―um moço inconfidente ficou na terra brava, em plena mata‖. 50 Consultar ARAÚJO, Émerson Pinto de. A Nova História de Jequié. Salvador: EGB Editora, 1997. p. 75 – 152. Este livro é uma versão revisada e ampliada do anterior: Capítulos da História de Jequié. Salvador: EGB Editora, 1997. 262 p. 43 Pelo curso navegável do Rio das Contas, pequenas embarcações desciam transportando hortifrutigranjeiros e outros produtos de subsistência. No povoado, os mascates iam de porta em porta vendendo toalhas, rendas, tecidos e outros artigos trazidos de cidades maiores. Tropeiros chegavam à cidade de Jequié carregando seus produtos em lombo de burro. A feira livre do distrito ganhou mais organização, a partir de 1885, com a iniciativa de alguns comerciantes e líderes da comunidade italiana, que compravam todo o excedente dos canoeiros e de outros produtores. Em 13 de junho de 1910, Jequié foi elevada à condição de cidade, tornando-se um importante ponto comercial na região, abastecendo o Sudeste do Estado e a bacia do Rio das Contas. Com a enchente de 1914, a feira e o comércio passaram a se desenvolver em direção às partes mais altas. A chegada da EFN, em 1927 contou com a presença do governador Góes Calmon, sua comitiva e outras personalidades de destaque. Escolas desfilaram ao lado das filarmônicas local e de Nazaré, calculando-se que dos 13 mil habitantes da cidade, 8 mil se acotovelaram na Praça da Estação. Houve discursos eloqüentes, tendo a firma Grillo Lamberti & Cia. oferecido um lauto banquete às autoridades.51 Em As estradas da esperança foi possível notar aspectos históricos importantes sobre o cotidiano de pessoas simples; nomes de bairros; uma memória do autor sobre as condições de moradia na cidade de Jequié, referente à época e posterior à ferrovia; as transformações sócio-econômicas e a importância do trem. O narrador conta que as pessoas pareciam fantasmas na escuridão das ruas, porque a iluminação elétrica era muito ruim e as lâmpadas, esparsas, pareciam brasas. Água, luz, calçamento, tudo era precário. As ruas da periferia apresentavam enormes valetas, erosão no barro vermelho do que seria a calçada. A Rua Rio de Contas, a Gameleira, a Ladeira do 29, mesmo o Maracujá, de tantos pecados, tudo era sujo, pobre e esburacado. E nem se precisa falar na pobreza do Barro Preto, da Caixinha das Almas, do Mandacaru. Mas havia o trem. Jequié era porta do sertão. Era e é. Hoje, bonita e cuidada, asfaltada e limpa, já não se lembra a falta de água e de luz, mas ainda guarda algumas palhoças, nas pontas de ruas distantes, onde se dançava o ―pó de palha‖ e de onde vinham os moleques esfarrapados que, por um níquel, guardavam o lugar no trem para os passageiros importantes que se levantavam na madrugada (A. E. E, p. 21-22). Nesta tentativa de caracterizar a região, Jequié é o fim de linha da EFN e Alípio fugirá das noites quentes desta cidade para onde o trem lhe levar, pois, ―tirar a filha dos outros de casa‖, ou seja, engravidá-la antes do matrimônio, seria motivo de morte ou casamento 51 Consultar ARAÚJO, 1997. p.182 - 183. 44 obrigatório, por desonrar os valores familiares de uma época. O narrador conta que foi no cansaço do trabalho, nas distâncias dos descampados, nas noites quentes da caatinga que Alípio adormeceu nos braços de Rosa e gerou um filho. Porém, Rosa era ainda muito jovem, seu pai era muito valente e Alípio não queria, ainda, casar-se com Rosa nem com ninguém. E para não morrer ou não matar, achou que o melhor era fugir. ―Um homem vive em qualquer parte. Seu pensamento estava todo voltado para o drama que iria acontecer naquele dia, enquanto ele estivesse fugindo...‖ (AEE, p. 23). A narrativa de Santa Inez, além de nos apresentar o calor de Jequié, nos informa também, que Rosa escondia a barriga porque seu pai, certamente lhe daria uma surra ou a colocaria para fora de casa. Alípio, em sua primeira viagem de trem, fugindo como um medroso, sentido Jequié a Nazaré, chegava à estação de Baixão, um pobre lugarejo com algumas casas, uma estaçãozinha, duas ou três pessoas, empregadas da ferrovia e apenas alguns passageiros. A representação da região e do cotidiano sobressai quando o romancista conta que o canto do galo era referência para marcar o início do dia; quando fala da relação de amizade, respeito e condição social das personagens, para não quebrar a regra do silêncio no interior do trem, em horários determinados; quando se refere aos produtos que eram comprados e vendidos e ao movimento de pessoas na localidade. Foi nesta estação que entrou um passageiro e sentou-se bem próximo de Alípio, desenvolvendo o seguinte diálogo: — Boa noite. Ou é bom dia, nem sei. Alípio respondeu ―boa noite‖ e o aleijado falou alto: — Bom dia. É bom dia. Depois que o galo canta já é bom dia. — Se é bom dia a gente já pode se divertir. Dizendo esta frase meio descabida, o homem retirou, de um saco, uma sanfona de duplo teclado e, sem cerimônia, começou a tocar. O dia clareava, rapidamente, enquanto o sanfoneiro, risonho, orgulhoso da sua habilidade, tornava-se o centro de atenção. Alguém gritou-lhe: — Aí Patrocínio. O sanfoneiro ergueu os olhos, interrompeu a música, levantou-se e foi abraçar o amigo, numa efusão exagerada, influência da viagem. — Eu sabia que era você, compadre. Quanto tempo heim! Família vai bem? — Todos bem, graças a Deus. Mas toca, que o pessoal está esperando. Toca uma mazurca. Patrocínio voltou a tocar. O trem subia, aos poucos, para o friozinho da serra. Caatingas estaria logo ali. Onde, das janelas, se poderia comprar cuscuz de tapioca, café com leite... Era o café da manhã. Em cinco minutos (AEE, p. 29 - 30). No período de existência da EFN, saindo de Jequié, o trem passava pelo lugarejo chamado Baixão, depois Caatingas (atual entrocamento de Jaguaquara) e, 10 km mais adiante, a cidade de Jaguaquara. Percorria todo o Vale do Jequiriçá até alcançar o Recôncavo Sul 45 Baiano. Agora, entre o conhecimento sobre o plantio da mandioca, a personagem do Aleijado e do sanfoneiro Patrocínio e descrição de vales e serras, planícies e montanhas, casas humildes, o comércio, enfim, o cotidiano dos passageiros, o narrador nos informa sobre o café da manhã. Assim que o trem parava numa estação e os passageiros colocavam os rostos nas janelas, crianças, homens e mulheres, corriam, se agitavam do lado de fora, com seus tabuleiros de comida, oferecendo requeijão, banana cozida e frita, mingau, arroz doce e café com leite. Além dos alimentos consumidos, obtém-se conhecimento, também, das pssoas que viajavam no trem de Nazaré. Na primeira classe, gente bem vestida, fazendeiros de guarda-pó branco e boina escura, para se protegerem da poeira, enquanto na segunda, gente mais humilde enfrentava a sujeira que o pó brilhante de malacacheta, jogava para dentro dos vagões, endurecendo os cabelos oleados de brilhantina e irritando os olhos, muitos deles já chorosos das despedidas. ―Alípio recostou-se, fechando os olhos, ouviu o apito do chefe da estação, o apito do trem, o barulho das rodas iniciando o movimento leve, mais rápido, mais rápido, subindo para Jaguaquara. E para o mundo‖ (AEE, p. 31). O narrador de As estradas da esperança nos fala também sobre o trem de passageiros, conhecido como o ―horário‖, das dificuldades em encontrar água no povoado de Lagoa Queimada, da preocupação e saudade de Alípio por ter abandonado Rosa e da surra que esta levara quando seu pai descobriu a gravidez. A personagem Rosa, além de ser abandonada, perdeu o apoio da família e restava apenas a alternativa de alugar uma casa na Rua do Maracujá (Jequié), para criar o seu filho, pois o amor de Alípio havia desaparecido. ―E quando todos o diziam um canalha, ela, no íntimo, o defendia. Fugira, abandonara-a, desprezara-a, mas ainda era o seu homem. Seu sentimento era confuso. Nem sabia o que pensar. Mas ainda o amava‖ (AEE, p. 35). Alternando informações do cotidiano com histórias relacionadas a temas variados (relações familiares, informações sobre o colégio Taylor Egídio, diálogos do aleijado com Alípio, o barulho do trem, o som da sanfona de Patrocínio, loucura, sabedoria, política, religião, fé), o narrador apresenta a estação da cidade de Jaguaquara. Nesta, nota-se que o movimento de pessoas era maior que na anterior, porque o maquinista olhou para trás e viu que dezenas de pessoas se acotovelavam, corriam, abraçavam-se e se despediam. Uns chegavam, outros partiam. Um grupo de estudantes entrou correndo, desceu pela outra porta, cumprimentou alguém conhecido e reuniu-se ao grupinho fardado de cáqui, cabelo aparado, falando alto, gesticulando. Foi aí, então, que entraram os dois soldados e o louco. Porém, mesmo com a presença das autoridades, as pessoas se sentiram amedrontadas ao viajar junto com um louco, que se dizia prefeito de Jaguaquara e mandava prender e matar quem ele 46 quisesse. Com base neste diálogo, subentende-se que os passageiros ficaram irritados e só através de remédios conseguiram controlar aquele homem, que, antes de enlouquecer, havia sido um bom trabalhador. O aleijado perguntou se estava indo para a Bahia. O soldado sorriu, pensou um pouco e respondeu, meio constrangido, em voz baixa. — Vai até Rio Fundo. Prá ver se Zé Felício dá jeito. Zé Felício era curandeiro. Patrocínio resolveu opinar: — Pura bobagem. É perder tempo. Devia ir era mesmo para a Bahia, para o hospício. Um velho, que se mantivera calado até aquele momento, resolveu contestar: — O senhor vai me desculpar, mas eu aposto que ele volta de Rio Fundo curado. Já vi mais de um caso. O senhor já viu Zé Felício trabalhar? Patrocínio não gostava de discutir. Achava que aquele negócio de curanderismo era bobagem, mas não ia se meter a esclarecer ninguém: — Deus ajude. É o que eu desejo... (E E, p. 37 – 38). A obra As estradas da esperança possibilita uma viagem histórica na EFN, na medida em que apresenta os diálogos das personagens, envolvendo a carência da medicina, as práticas culturais relacionadas à fé, enfim, a vida no interior do trem. Talvez, pelo baixo número de médicos e hospitais nas pequenas cidades do interior da Bahia, pela ausência de recursos e os costumes da época, as pessoas mais humildes depositavam maior credibilidade no ―curador‖ do que no médico. Contudo, havia os que acreditavam, os que duvidavam e os que tinham vergonha de recorrer ao curandeirismo. Quando questionado pelo aleijado sobre o destino do louco, ―o soldado sorriu, pensou um pouco e respondeu, meio constrangido, em voz baixa: vai até Rio Fundo. Prá ver se Zé Felício dá jeito‖. Ao passar a estação de Jaguaquara, a narrativa de Santa Inez nos leva a Itaquara, onde ―O trem quebrou oportunamente‖, para esperar o Coronel Astério que ia viajar e ainda não havia chegado. Por isso, muitos passageiros desembarcaram, deixando os seus lugares ―marcados‖ por paletós, malas, embrulhos e pedindo ao vizinho: ―Me faça favor de tomar conta do meu lugar enquanto eu vou tomar um cafezinho‖ (AEE, p. 41). 47 52 Estação Ferroviária de Itaquara (Vale do Jequiriçá) A fotografia da Estação Ferroviária da cidade de Itaquara é apenas um traço minúsculo da região percorrida pelo trem de Nazaré, mas possibilita leituras e interpretações sobre o número de pessoas que supostamente chegavam, saíam ou estavam esperando o transporte; quem eram os viajantes, a forma como estavam vestidos e até mesmo a ansiedade com o horário. No plano objetivo pode ser visto o tamanho da estação, com o nome grafado na parede, os trilhos, os passageiros, a mala de viagem e uma relação do registro fotográfico com o narrativo, a EFN, nomeada por Santa Inez de As estradas da esperança. Na estação da cidade de Itaquara localiza-se uma personagem, que, apesar de utilizar o mesmo trem, viajaria em outra classe com a família: o Coronel Astério. Fazendeiro rico e político de prestígio, segundo o narrador, tinha o poder de atrasar a viagem em alguns minutos. Santa Inez apresenta em sua obra muitas histórias das viagens no trem, reinventando-as. Talvez não seja possível encontrar semelhantes informações sobre esta estação em outras fontes históricas. Infere-se da narrativa de Santa Inez que quando o trem parava na estação as pessoas compravam frutas, lanchavam e formava-se um comércio diversificado. Ele conta que havia 52 Fotografia que representa a Estação Ferroviária de Itaquara. Época da ferrovia. In: JESUS, Elenildo Café de. Mudança na paisagem física e social associados à ferrovia: Estrada de Ferro de Nazaré no Vale do Jequiriçá, Bahia. Dissertação de Mestrado, UESC, 2008. p. 69. 48 os mendigos, uma procissão de miseráveis, cegos, velhos, mulheres com ―rencadas‖ de filhos ou grávidas, justificando com isto a necessidade de esmolas. A personagem ―o aleijado‖ se revoltava com aquela desonestidade, argumentando que dois ou três precisavam, mas o resto era tudo gente sã e até gente rica, pedindo sem precisão. A polícia não percebia aquela desonestidade, mas naquela confusão e velhacaria, Itaquara era uma festa. Havia gente falando alto, numa expressividade artificial, gente acertando negócios, deixando recados, reconhecendo velhos amigos e prometendo visitas recíprocas. Os namoros surgiam, em cada vagão, em cada janela, em cada sombra de árvore. Mocinhas sorrindo acanhadas, ou rapazes curtidos de sol, chapéu levantado na testa e o nível de aparência dividindo os mundos: ―Os mais bem vestidos em frente às primeiras classes, os outros namorando as passageiras das segundas, fora da sombra da estação...‖ (AEE, p. 42). A feira, os alimentos comercializados, os objetos usados para descascar as frutas (facas de jagunço), os indivíduos (crianças, mendigos, cegos, aleijados, velhos, mulheres grávidas, etc.), a forma como os rapazes e as moças estavam vestidos, os namoros em frente às primeiras e segundas classes, tudo isso está relacionado ao cotidiano da EFN. Ao mencionar O Coronel e sua grandeza maior, o narrador informa que este chegou à estação de Itaquara com a mulher, a filha, a empregada e o rapaz que trazia o burro que carregava as malas com as roupas para a permanência na Capital. De acordo com o romancista, Dona Carolina, esposa do Coronel Astério, estava doente e consultar-se-ia com os médicos de Salvador. Seu estado de saúde era instável: talvez fosse hospitalizada ou operada; poderia voltar sã ou morrer por lá. Em relação ao meio de transporte, fica explícito que o burro era o principal meio de condução para levar objetos e produtos agrícolas das fazendas até a estação. Além disso, transportava o que chegava de trem, da estação para as casas (na zona urbana ou rural) localizadas nas proximidades da ferrovia. 3.2 Ferrovia, coronelismo e cidades Outro tema relacionado à parada do trem na estação de Itaquara é o coronelismo. O poder do coronel é evidenciado quando sua filha Lininha descobre que tem um sanfoneiro viajando e tocando na segunda classe. Como a família da ―grandeza maior‖ viajava na primeira classe, ela pede ao seu pai que traga o tocador para este vagão. Porém, o Coronel justifica que não pode porque a passagem do tocador é de segunda. A filha insistiu, sentou-se no braço da poltrona do pai, passou-lhe o braço pelo pescoço, sorriu, agiu com astúcia e este 49 não resistiu. Levantou-se e foi até o vagão onde Patrocínio conversava com um dos soldados. Pediu licença e dirigiu-se ao sanfoneiro: — Bom dia, — Bom dia, coronel. — Seu Patrocínio, eu vim aqui meio sem jeito prá lhe fazer um pedido. — Peça, coronel. — É que minha filha ouviu falar no senhor, e ela queria ouvir o senhor tocar. Ela... O senhor sabe como é moça. E dividindo a culpa: — Eu também gosto. Acho que todo mundo gosta. — Pois não, coronel. Vou com muito gosto. Levantou-se, mas parou, pensando. O coronel antecipou-se: — Não se preocupe. Eu falo com o chefe. Meio acanhado, meio vaidoso, Patrocínio sorriu, o aleijado piscou-lhe o olho e a sanfona foi promovida à primeira classe e, o que era mais importante, aos ouvidos delicados do anjo cor-de-rosa (AEE, p. 47- 48). Ao satisfazer o desejo da filha do coronel, o sanfoneiro também se promoveu e se apaixonou por ela. Logo depois da estação de Itaquara e Lagoa Queimada estava a estação da cidade de Santa Inês, local em que o poder e riqueza do coronel sobressaiu quando o chefe do trem entrou na classe para conferir o bilhete de passagem e ignorou a presença do sanfoneiro no vagão. Nota-se que o poder do fiscal se equiparou ao do coronel, que propôs pagar a diferença no valor da passagem do tocador, já que fora a seu convite que ele se colocou ali. Porém, o cobrador do trem responde: — Deixe isso prá lá, coronel. O coronel Astério ficou em dúvida se devia insistir ou se seria melhor dar algum dinheiro, por fora, ao chefe. Mas ficou com medo de ser recusado. Optou pela fórmula mais cômoda. — então, muito obrigado. Três idéias diferentes marcavam o episódio. Do ponto de vista do coronel a razão era simples: Sou rico, sou respeitado, sou adulado. Do ponto de vista do chefe do trem a idéia era: Sou chefe. Aqui quem manda sou eu. Não é uma migalha de dinheiro que compra a minha vontade. Patrocínio pensava! Minha música é tão boa que eu posso viajar de graça onde quiser. Na segunda classe o aleijado dizia a Alípio: acho que o chefe não vai cobrar nada do coronel. É bom ser rico, prá ser chaleirado (AEE, p.52). A cidade de Santa Inês aparece no romance como a terra dos umbus e licuris, composta por uma vegetação, clima e relevo semelhantes aos das cidades de Itaquara, Jaguaquara e Jequié. Ao se referir à parada do trem na estação desta cidade, o narrador conta que o movimento era grande e havia gente desembarcando correndo, gente mercando, aos 50 gritos, seus produtos, meninos vendendo ―rosários‖ de licuri, grandes quantidades de umbus nos tabuleiros: ―Imbu, imbu doce. Dois tostões a caneca‖. À medida que o trem corta a região semi-árida, os passageiros observavam os burros amarrados, as cabras pastando, algumas crianças brincando, rostos nas janelas, as casinhas de palha das pontas de rua, os campos onde floresciam de branco as juremas e, na beira dos riachos, as ingazeiras. ―E na paisagem cinzento-parda os pontos verdes marcados pelos umbuzeiros, como uma nota de esperança na paisagem agreste‖ (AEE, p. 54). 53 Antiga Rua do Pontal da cidade de Santa Inês (Vale do Jequiriçá) As características da região e, especificamente, das cidades servidas pelo trem de Nazaré, estão relacionadas aos produtos (frutos), que eram vendidos e cultivados, bem como, à criação de animais (cabras, gados) e à paisagem agreste. A fotografia da Rua do Pontal da cidade de Santa Inês não apresenta o trem, uma estação movimentada ou uma pessoa que sirva para associar à personagem do coronel, descrito por Santa Inez. Mas são notáveis as árvores podadas (talvez, o motivo que seduziu o fotógrafo), com sombras, denunciando o dia e o sol, um grupo de no máximo dez pessoas, a casa e os trilhos da estrada. No traçado da ferrovia e no direcionamento da narrativa de Santa Inez, que acompanha o trem de Jequié a Nazaré, depois da cidade de Santa Inês está localizada Ubaíra e o narrador descreve a personagem do Coronel Marcionílio, fazendeiro temido, conhecido pelos seus 53 Fotografia que representa a antiga Rua do Pontal da cidade de Santa Inês, na época da ferrovia. Arquivo particular – Ely Marques. In: JESUS, Elenildo. Op. Cit. p. 64. 51 crimes e por promover o julgamento de pessoas. É uma referência rápida e curta a esta personagem, específica da cidade local, externa à viagem do trem e não ocupa mais de quatro linhas da obra. Porém, os diálogos que envolvem a personagem do Coronel Astério, que ―pegou o trem‖ na estação da cidade de Itaquara, seguem até Nazaré. São coronéis diferentes: Marcionílio, talvez seja fruto de uma memória que representa o auge do coronelismo no Brasil — severo, temido, autoritário, ligado a político importante da capital, uma espécie de fazendeiro, delegado e político, que detinha e controlava o poder em algumas cidades do interior da Bahia, especificamente na primeira República. Astério, por outro lado, representa o coronel brando, simples, equiparado ao maquinista e ao fiscal do trem. A sua influência de poder encontrava-se em sintonia com a decadência da ferrovia, necessitando de consolo de outras personagens humildes. Se em As estradas da esperança, Marcionílio é apenas uma personagem criada por Santa Inez, em Capítulos da história de Jequié, Marcionílio Sousa, à frente dos seus cabras, chegou a cercar a cidade de Santa Inês, retirando os trilhos da Estrada de Ferro Nazaré, depois de enfrentar a volante policial chefiada por Mota Coelho.54 O motivo que o levou a tomar tal atitude, foi os desagrados políticos provocados pelo Governador da Bahia, Antônio Ferrão Moniz do Aragão, eleito para o quadriênio 1916-1920. Aragão era um homem autoritário, descendente da antiga nobreza lusitana e entrou em choque com as oligarquias e os coronéis do sertão, criando atritos com os correligionários do próprio José Joaquim Seabra, que o fizera sucessor, após ter governado o estado de 1912-1916. Conforme Araújo, não foram poucas vezes que a força pública foi chamada para manter, a ferro e a fogo, a autoridade de Antônio Moniz. Com isso, sua popularidade foi desgastada, perdeu o apoio dos coronéis e o respaldo do comércio, dificultando a volta de Seabra, que parecia tranqüila, ao governo do estado. A comunidade comercial e financeira de Salvador, sem perda de tempo, se aglutinou em torno do nome do juiz federal Paulo Martins Fontes, lançado candidato à sucessão estadual (1920-1924). Rui Barbosa que fora derrotado na eleição presidencial por Epitácio Pessoa, querendo se vingar de J.J. Seabra, que chefiara na Bahia a campanha do seu oponente, apoiou a candidatura de Paulo Fontes. Outros políticos seguiram-lhe o exemplo, o mesmo acontecendo com a maior parte dos clãs sertanejos, no afã de recuperar o espaço perdido. Portanto, acrescenta Araújo: O pleito foi renhido. Os resultados finais não coincidiram, e tanto os partidários de Seabra quanto os de Paulo Fontes se consideraram vitoriosos. Em tais casos, 54 ARAÚJO, 1997, p. 157. 52 segundo a Legislação em vigor, caberia ao Legislativo, onde Seabra dispunha de maioria, dar a palavra final. Sabedores disso, Horácio de Matos, que contava com mais de 2.600 homens armados, Castelo Branco, Douca Medrado, Marcionílio Sousa e outros oligarcas que dispunham, juntos, de cerca de 4.000 jagunços, planejaram um ataque à capital, onde a força pública tinha apenas um efetivo de 2.500 soldados mal equipados. Seria uma repetição do que ocorrera no Ceará, tempos atrás, quando Pe. Cícero com seus comandados marchou sobre Fortaleza, depondo o governador.55 Seabra foi salvo pela intervenção federal na Bahia, determinada por Epitácio Pessoa. Foi reconhecido pelo Legislativo, mas perdeu o domínio no interior. Os coronéis, em troca do acordo firmado com Epitácio, puderam continuar com os seus ―exércitos particulares‖ e objetivaram a revogação do dispositivo da lei de 11 de agosto de 1915, que assegurava ao governador a prerrogativa de nomear os intendentes, os quais voltaram a ser eleitos pelo povo, embora com mandato de dois anos. Esta alteração aconteceu em maio de 1920, pois a Reforma Eleitoral de 1915, havia sido imposta pelo próprio Seabra, que nos últimos meses do seu governo (1912-1916), nomeou, nada menos de 135 intendentes para um total de 141 prefeituras existentes.56 Em Mad Maria, J.J. Seabra também é citado como político de grande influência nas relações políticas da Bahia e do Brasil. É uma personagem caracterizada como Ministro da Justiça e Negócios Interiores, no governo do presidente Rodrigues Alves e de Viação e Obras Públicas, no do Marechal Hermes. Ele é um homem rico, de temperamento forte, destemido e autoritário por sua formação ligada à terra, embora já pertencesse a uma geração de citadinos senhores de engenho, que conheciam mais facilmente o sabor de um vinho que o odor adocicado do mel fervendo nos grandes tachos. O coronelismo exercia uma influência significativa, desde o controle político nos pequenos municípios, até o comando da política nacional. A obra As estradas da esperança não apresenta datas relacionadas aos ―coronéis‖ criados por Santa Inez e não trata desse período; é apenas uma reminiscência histórica do romancista. Mas, esse modelo político influenciou nas decisões políticas, econômicas e sociais do Vale do Jequiriçá. Quando a Vila de Jequiriçá emancipou-se de Ubaíra, em 1891, segundo Aníbal José de Andrade, o primeiro Intendente do município foi o Dr. Francisco Martinho das Chagas e o primeiro Presidente do Conselho e pioneiro da emancipação política foi o Coronel Vicente das Chagas de Jesus.57 É interessante notar que ambos possuíam o sobrenome Chagas e eram da mesma família. Nestes 55 ARAÚJO, 1997, p. 156 – 157. Ibidem, p. 161. 57 ANDRADE, Aníbal José de. Meu relato sobre a vida política do Município de Jequiriçá. 2º ano Ginasial – Ginásio Clemente Caldas. Nazaré, 06 de setembro de 1941. p. 6. 56 53 municípios, os cargos políticos eram exercidos pelos parentes do coronel, amigos, ou afilhados políticos, o que gerava conflitos na disputa do poder local, quando havia rivalidade entre os coronéis. Em 1926, quando foi instalado o município de Mutuípe, o primeiro intendente foi o Dr. Bartolomeu Chaves, médico, figura de grande influência na emancipação política da cidade.58 O distrito de Mutum foi desmembrado da cidade de Jequiriçá, que tinha como intendente, o Coronel Vicente das Chagas, que havia se promovido, politicamente, nos anos anteriores, quando Jequiriçá desligou-se de Ubaíra. O coronel era freqüentemente dono de terras (senhor de engenho ou fazendeiro); o componente dominante da classe dirigente do Brasil agrário. Porém membros de outras classes sociais, tais como comerciantes, advogados, médicos, burocratas, professores, industriais e até mesmo padres tinham o posto de coronel da guarda.59 Portanto, quando, em As estradas da esperança, Santa Inez se refere à passagem do trem pela estação de Areia (Ubaíra), nota-se que a sua memória evidencia uma recordação do coronelismo. ―Era comarca. Tinha fórum e juiz. Tinha médico — Dr. André — famoso em todo o sudoeste. Suas ruas ainda sentiam os passos e o prestígio do Padre Galvão, político famoso; do Coronel Marcionílio, fazendeiro temido...‖ (AEE, p. 54). Ao analisar os escritos literários, históricos e memorialísticos sobre as cidades que eram servidas pela EFN, notou-se uma relação entre ferrovia e coronelismo. Em Capítulos da história de Jequié, Araújo relata que durante a chamada Revolução de 1930, o município contava com um número reduzido de policiais e ficou à mercê de dois grupos de Jagunços: o de Tranquilino — que apoiava o governo Washington Luís em âmbito federal e Vital Soares na esfera estadual —, e o de Silvino do Curral Novo — favorável aos revolucionários. O primeiro grupo, no dia 24 de outubro, obrigou a administração local do Banco do Brasil a encaminhar um telegrama à Superior Administração na capital, informando sobre as ameaças dos jagunços, a falta de segurança para a cidade e a agência, especificamente ao gerente, que havia sido procurado à noite, em sua casa, por homens suspeitos. Não satisfeito com os resultados do primeiro telegrama, no dia seguinte, o mesmo grupo de jagunços invadiu a estação ferroviária, motivando a expedição de um segundo telegrama, dirigido ao governador 58 REBOUÇAS, 1992, p. 40. Cf. PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquia – 1889-1943. São Paulo. Civilização Brasileira, 1979. p. 26. Sobre este mesmo tema é interessante ver também os estudos de: LEAL, Victo Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo, Nova Fronteira. 1997; FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. Vol. 2. 8.ª ed. São Paulo, Globo. 1989. 59 54 do Estado: ―Cidade infestada por jagunços; famílias em pânico; acho-me refugiado. Apelo Vossa Excelência providenciar urgente garantia a população em sobressalto‖.60 Na mesma noite daquele dia chegou a Jequié a notícia da vitória dos revolucionários e o povo ganhou as ruas em passeata acompanhada de discursos, banda de música e pipocar de foguetes. Tranquilino e seus comandados, derrotados, deixaram Jequié levando dois caminhões, transportando mais de cem jagunços. Porém, com a chegada das tropas policiais, sob o comando do coronel João Facó, houve perseguição, que resultou na prisão do grupo. Em poder dos jagunços de Tranquilino foram encontradas 1.800 armas e munição para 72.000 tiros.61 Além de Jequié, o coronelismo também exerceu influência na cidade de Jaguaquara. Lígio Farias informa que em 1913, após enfrentar árduas lutas políticas, o coronel Guilherme Silva conseguiu a passagem da Estrada de Ferro de Nazaré pela sede do povoado, impedindo que a estação fosse construída na Casca. ―Ele já amava demais esta terra que o recebeu, que o projetou politicamente em todo o sudoeste baiano, por isso não admitia a passagem da estrada de ferro por fora do povoado‖.62 Na obra As estradas da esperança, nota-se a influência do mandonismo no Vale do Jequiriçá, quando Santa Inez se refere à passagem do trem pela estação da cidade de Itaquara. ―O trem ficou meia hora parado, porque o Coronel Astério, fazendeiro rico e político de prestígio ia viajar com a família, e ainda não havia chegado‖ (AEE, p. 41). Na obra Jaguaquara, Ítalo Rabêlo do Amaral informa que o coronel Guilherme Martins do Eirado e Silva era proprietário da Fazenda ―Toca da Onça‖ e fundou a cidade, traçando as ruas com vinte e trinta metros de largura, orientando a construção das casas para que não fossem feitas fora do alinhamento, nos terrenos de sua propriedade. Segundo Amaral, além de ser o primeiro intendente do município, o coronel fez muito pela cidade. ―Ele lutou pela criação do Distrito da Paz, Agência do Correio, pela criação de escolas públicas estaduais, mudança do nome de Toca da Onça para Jaguaquara e elevação de Jaguaquara à categoria de Vila e Município‖.63 O coronel Guilherme Silva nasceu em Póvoa de Varzim, em Portugal, em 26 de maio de 1873. Em 11 de janeiro de 1886, ainda adolescente, partiu de Lisboa e embarcou para a Bahia no paquete inglês ―La Plata‖, da Mala Real Inglesa. Desembarcou na Penha (Salvador), 60 ARAÚJO, 1997, p. 169 -170. Ibidem, p. 170. 62 FARIAS, 2005, p. 17. 63 AMARAL, Ítalo Rabêlo do. Jaguaquara: Dados Históricos; Intendentes e Prefeitos. Salvador, Bahia, 2008, p. 23-24. 61 55 em 26 de janeiro desse mesmo ano, onde permaneceu até 1890, empregado na firma de Felipe Nery Valle Souto e João Baptista Lima. Em 1890 transferiu-se para Nova-Laje e no ano seguinte fixou-se em Areia, até 1896, quando se mudou para a fazenda ―Toca da Onça‖. Casou-se com D. Maria Luzia de Souza e Silva, com quem teve dez filhos. Faleceu na cidade de Jaguaquara, em 31 de maio de 1952.64 Conforme os escritos de Amaral, este coronel fez as seguintes doações: terreno para construção da igreja e casa paroquial, terreno para a construção do Colégio Luzia Silva, doação de uma área de seis mil e quinhentos metros quadrados para o Ginásio Pio XII e doação dos terrenos do Cemitério e do mercado Municipal. Para o Governo do Estado, doou a faixa de terra para a construção da EFN e do Hospital da cidade. O Jornal Local ―A luz‖, de 12 de dezembro de 1920, publicou o resultado do Recenseamento de Jaguaquara, que era de 18.000 habitantes. A cidade conseguiu a sua emancipação política, desmembrando-se de Areia, em 1921. Dois fatores contribuíram com essa taxa populacional alta, principalmente, se compararmos aos demais povoados, distritos e municípios do Vale do Jequiriçá na época. O primeiro seria o prestígio de ser ponta de trilhos até 1927, quando a ferrovia alcança Jequié. O segundo está relacionado com a chegada das primeiras famílias de italianos e portugueses, a partir de 1915, que resultou no incentivo da agropecuária, estabelecimento de casas comerciais de compra e venda, por atacado e varejo, dos produtos agrícolas (café, fumo, mandioca e cereais), gêneros alimentícios, tecidos, calçados, chapéus e artigos de armarinho. Ainda é possível colocar em evidência um terceiro fator constatado nos escritos de Amaral, referente aos anos de 1920 e 1930, ao relatar que em Jaguaquara, passavam, diariamente, centenas de retirantes. Alguns, sem condições de continuar a caminhada, deixavam-se ficar definitivamente nesta cidade. Crianças e velhos esqueléticos, devido à fome, à desidratação e à diarréia, permaneciam o tempo de se restabelecerem, a tratar-se com chá da entrecasca do araçá, voltando a pôr o pé na estrada.65 Esta memória pode ser conciliada com a de Santa Inez, em As estradas da esperança, porque ele também se refere a um alto número de mendigos e miseráveis nos arredores das estações da EFN (AEE, p. 42). Foi possível notar uma relação entre ferrovia, coronelismo e cidades, porque os municípios servidos pela EFN surgiram e cresceram em função dos trilhos, principalmente no período em que o poder dos coronéis teve grande visibilidade (Primeira República). É neste período que a estrada está sendo construída no Vale do Jequiriçá. A existência de uma estação 64 65 AMARAL, 2008, p. 23. Ibidem, p. 28. 56 ferroviária num povoado ou distrito associado à produção agrícola e ao tempo que ficara como ―ponta de trilhos‖ favorecia o comércio, crescimento populacional e a emancipação política. 3.3 Areia (Ubaíra): cidade mais antiga do Vale do Jequiriçá 66 Antiga Estação Ferroviária de Ubaíra A região do Vale do Jequiriçá era ocupada por tribos indígenas, e seu povoamento só se efetivou após 1790, quando João Gonçalves da Costa foi encarregado de combater os índios que habitavam próximos às margens do rio Jequiriçá. O município de Ubaíra é um dos mais antigos do Vale e o seu território compreendia toda área onde hoje estão os municípios de Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Jequiriçá e Mutuípe. Fica localizado a 270 km da capital (Salvador) e foi desmembrado da Vila de Valença por resolução Provincial de 1833, com o nome de Vila de Jequiriçá. O primeiro intendente foi o Coronel Silvério Pinheiro de Matos, que tomou posse em 1889. A sede foi elevada à categoria de cidade em 1891, com a denominação de Areia, alterada para Ubaíra, em 1943.67 66 Fotografia que representa a Estação Ferroviária de Ubaíra. Fonte: Livro dos Municípios da Bahia. In: JESUS, Elenildo, 2008, p. 55. 67 Informações obtidas através do Guia Cultural da Bahia. Recôncavo. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 1997; Diagnóstico de Municípios Vale do Jequiriçá. Edição SEBRAE. Salvador, Março de 1995. p. 29; Site http://pt.wikipedia.org/wiki/Ubaíra. Acesso em 21 de jul. de 2010. 57 A ―viagem‖ pela obra As estradas da esperança permitiu perceber que o trem deixava para trás o semi-árido e adentrava uma região mais verde, com maior volume de água. Quem passa por Santa Inês percebe que o rio Jequiriçá é apenas um riacho, já Areia é caracterizada pelo autor como uma cidade de ―progresso‖, principalmente, se comparada a outras cidades do Vale, tais como Itaquara, Santa Inês, Jequiriçá, Mutuípe e Laje. Entre a cidade de Santa Inês e Ubaíra havia as pequenas estações de Volta do Rio e de Jenipapo. A paisagem mudava pouco a pouco, as árvores apareciam com maior freqüência e as terras ficavam mais verdes. ―O riozinho que acompanhava a ferrovia tomava ares de importância e se dava ao luxo de formar aguadas, pequenos lagos e represas e até alguma corredeira‖ (AEE, p. 55). À medida que o trem se afasta de Jequié, Jaguaquara, Itaquara e Santa Inês, percebe-se que a partir de Ubaíra, Jequiriçá, Mutuípe, Laje e até Nazaré, a região ganha nova caracterização e ampliação dos produtos agrícolas cultivados. Ao enfatizar a parada do trem na estação de Barra do Jaguaritu (entre Jequiriçá e Mutuípe), Santa Inez informa que o Rio Jequiriçá recebia uma porção de pequenos afluentes, que vinham das matas chuvosas e sombrias, composta por terras de mandioca e de cacau, terras de onça e de caititu, terras de farinha boa e de gente melhor ainda. O autor sinaliza que Barra do Jaguaritu era uma fazenda, um rio, uma parada de trem — quando havia trem. ―Hoje, Barra é uma saudade. Como é saudade a alegria, o progresso, a esperança daquelas cidades onde o trem era uma festa. Trem de gado, trem de carga, trem de passageiros, trem político...‖ (AEE, p. 62). Hoje, Barra é a curva, é o campo de futebol, é a divisa limite entre as cidades de Mutuípe e Jequiriçá e poucos conhecem o segundo nome (Jaguaritu). A rodovia criou outra referência — curva da Barra, local conhecido pelo alto índice de acidentes de trânsito. Ao se referir a esta estação, Santa Inez apresenta muitas histórias referentes ao nível de escolaridade do prefeito, à proximidade do rural com o urbano, às necessidades do povo e à campanha política do governador do estado. 58 68 Estação Ferroviária de Barra A fotografia da Estação Ferroviária de Barra é posterior ao funcionamento da ferrovia e apresenta uma pequena casa, com aspecto velho e desativado; outros meios de transportes como o cavalo, a bicicleta, o automóvel (o fusca); o surgimento das rodovias; aspecto da paisagem geográfica e o elemento que a coloca em movimento — as pessoas. Não foi possível identificar se o autor dessa foto quis registrar a passagem de algum político em campanha pelas cidades do Vale, uma inauguração, comemoração ou festa. Todavia, nota-se que os traços da ferrovia foram substituídos pela estrada de rodagem. Conforme relata o romance, em Jaguaritu, um dia, parou um trem, carros novos, enfeitados, trazendo o Governador do Estado em campanha política. Como o prefeito de Jaguaritu não havia sido informado da chegada do trem, acreditou que se tratava de alguma brincadeira dos seus opositores, de modo que, quando o trem chegou — e ficaria no máximo 20 minutos, pois havia outras cidades a visitar —, o prefeito estava na roça. Mesmo trajando botas enlameadas, roupa velha e com a barba por fazer, foi ao encontro do Governador e sua comitiva. Entretanto, ao chegar, diante da magnitude da beleza daquele trem, mulheres de chapéu, homens de cravo à lapela, sentiu-se acanhado e procurou desaparecer no grupo que se formou na pequena estação. Neste momento, na alfaiataria ao lado, um moço fazia a prova final do terno do casamento e, como estava bem vestido, resolveu ir ver o Governador. Pela 68 Fotografia que representa restos da Estação Ferroviária de Barra. In: JESUS, Elenildo. Op. Cit. p. 51. 59 aparência destacada foi tomado por Prefeito. E o Governador, risonho, abraçou-o efusivamente, e formou-se o seguinte diálogo absurdo, um pensando em administração política e o outro em casamento: — Meus parabéns! Estou vendo que o senhor é um homem que sabe ver as coisas que interessam. Como vai a terra? O que o Sr. Está precisando? — Ah, doutor. Eu preciso de muita coisa. Mas a terra, se não fosse a formiga, ia bem. — Eu sei, eu sei, vou mandar um agrônomo resolver este caso de formiga. Mas me diga como vai a Prefeitura. —Prá falar a verdade, não vai bem. Dizem que o Prefeito não faz nada. — E o senhor, o que está fazendo para mostrar que isto é uma calúnia? — Eu não faço nada porque eu acho que é verdade mesmo. — Por que? — Porque é um coitado, analfabeto, ignorante, que não sabe nem pedir as coisas que precisa. O Governador olhou para o Secretário, olhos umidecidos e comentou: — Esta simplicidade, esta pureza, esta franqueza me comove. Anote para falar comigo sobre benefícios para Jaguaritu. E voltando-se para o pseudo Prefeito. — O que o Sr. Deseja receber do Governo do Estado? — Se o Sr. Puder, eu tenho muita vontade de ganhar um rádio. — Um rádio? — É. Notícias dos preços, políticas... O trem apitou, o Governador abraçou-o, comovido, o moço de terno novo, os presentes bateram palmas. E Jaguaritu, durante algum tempo recebeu verbas, vantagens e até um aparelho de rádio que ficou instalado no salão principal da Prefeitura (AEE, p. 63-64) Neste diálogo envolvendo o noivo (falso prefeito) e o Governador, Santa Inez constrói uma pilhéria, apresenta o perfil do prefeito (um coitado, analfabeto, ignorante), as promessas políticas e um pedido do eleitor — um rádio. Parece um pedido simples, mas muito significativo para a pessoa (o noivo) e também para a época, porque possibilitava saber as notícias dos preços e da política. Logo depois da estação de Jaguaritu estava Mutuípe, cidade caracterizada por Santa Inez como produtora de farinha, café, cacau, laranja, fumo e os festejos culturais: o Carnaval, o São João e a festa de São Roque, o padroeiro da cidade. O trem ―morreu‖, mas a festa de São Roque continua, com caminhadas pelas ruas da cidade, todos os anos, organizada por homens e mulheres religiosos, ligados à Igreja Católica. A passagem de Alípio era para Santo Antônio de Jesus, mas ele troca com o aleijado e resolve ficar em Mutuípe, seu novo destino. Em torno do diálogo que envolve essas duas personagens está explícito o conhecimento de Santa Inez sobre a cidade de Mutuípe, principalmente, quando se refere às serras, ao rio correndo manso no meio da cidade, a pracinha enfeitada de flamboyants e ao obelisco da fundação apontando para o céu. (AEE, p. 64). 60 69 Praça Dr. Bartolomeu Chaves — Inauguração da 2a Estação Ferroviária de Mutuípe. O Jornal O paládio, edição do mês de dezembro do ano de 1946, destaca como notícia principal ―Um dia de glórias para Mutuípe‖, exaltando a inauguração da nova Estação Ferroviária da cidade. Ressalta ainda, que ―O majestoso edifício da nova Estação Ferroviária‖ foi a concretização de um sonho dos mutuipenses, que se delineou desde o processo da emancipação político-administrativa, conquistada em 1926. O Jornal O Mutuípe, edição de janeiro de 1946, já noticiava a planta da fachada interna desta mesma estação, enfatizando que o prefeito Rodolfo Rebouças, desde o início de sua gestão, vinha trabalhando em prol dessa realização, só obtendo, porém, pleno e decisivo apoio por parte do Interventor Renato Aleixo. As informações desses dois jornais nos ajudam a ler e interpretar o conteúdo da fotografia acima, porque, além de revelar a ―satisfação‖ dos políticos com a inauguração da nova estação, informa que, no dia 18 de dezembro de 1946, a partida do trem especial da vizinha cidade de Laje conduzia as altas autoridades, que chegariam a Mutuípe. A visita do Exmº Sr. 69 Praça Dr. Bartolomeu Chaves. Fotografia que representa a inauguração da 2a Estação Ferroviária de Mutuípe, em 1946. Acervo Particular: Osvaldo Nascimento. In: JESUS, 2008, p. 49. 61 Interventor Federal do Estado, na época, General Cândido Caldas e sua comitiva foi recepcionada pelo Prefeito Rodolfo Rebouças, outras autoridades, as escolas e uma incalculável multidão.70 Com base na narrativa de Santa Inez, o trem deixou Mutuípe, onde Alípio ficou pensando em Rosa, passou, sem parar, por Canal Torto e entrou em Laje por um extenso pontilhão que cortava o rio (este pontilhão ainda existe para a passagem de pedestres). O aleijado conversava, agora, com um velho e falava de remédios, de curandeiros, do sobrenatural, de milagres e, quando questionado sobre a ausência de suas pernas, se havia sido desde o nascimento ou doença, explicou: — Foi o trem de Montes Claros. Eu era menino. Prá isso aqui não há remédio. O velho, sem ter o que comentar, falou: — É. Deve ser triste. — Pois eu vou lhe dizer uma coisa. Deus me deu este castigo, mas me deu um consolo muito grande, que é a coragem que eu tenho. E o senhor pode crer que eu vivo melhor do que muito vagabundo que tem por aí que tem as duas pernas. O aleijado falava como se fizesse um discurso político. O velho sentiu-se ofendido com a frase final: — Mas o senhor vive da caridade. — Vivo. Mas não roubo nem tomo nada de ninguém. Se eu peço e me dão, o senhor acha errado? O senhor já pensou em quanto parasita vive por aí, que não faz nada e vive bem, e ainda se acha bom? Pense bem, mesmo sem pedir esmola, quem não trabalha, que não produz nada, também vive da caridade. E é pior do que aleijado, porque pode trabalhar e não trabalha. O velho ficou pensativo. O aleijado tinha razão (AEE, p. 67-68). Esta viagem histórica e literária na região percorrida pelo trem de Nazaré, que ora está relacionada aos aspectos geofísicos, ora aos aspectos culturais e a ambos os aspectos ao mesmo tempo, nos informa que depois da estação da cidade de Mutuípe estava a cidade de Laje. Ao se referir à parada do trem nesta cidade, o romance menciona a existência de alambiques — que ficavam à margem da ferrovia —, a presença de gente descalça, chapéu de palha na cabeça, gente humilde, vinda de Terra Preta e de Serra Grande, do Capim e do Canto Escuro, da Torre e de Terra Caída, do Bom Jardim e do Parafuso, do Ribeirão e da Jubeba, de Sete Voltas e do Cariri... Lugarejos que, como Laje, também viviam do trem. ―Que lhes garantia um dia e uma hora para irem, e um dia e uma hora para voltarem. O trem era uma certeza, e a certeza dá tranqüilidade...‖ (AEE, p. 68). No traçado da estrada e da narrativa de Santa Inez, sentido Jequié a Nazaré, depois da estação de Laje vem Engenheiro Pontes e, em seguida, São Miguel das Matas. Dalí, o trem 70 Informações obtidas através do Jornal O Paládio de Santo Antônio de Jesus, 18 de dezembro de 1946. Bahia, ano 46, nº 2.225; Jornal O Mutuípe, edição de janeiro de 1946. Ano II. nº 2. 62 partia para Amargosa, passando por Corta-Mão. O autor desenha a região, dizendo muito do seu conhecimento acerca da EFN. Refere-se à importância do povoado de Corta-Mão, ao comércio, ao sertão e às matas de Valença, à saudade do tempo da ferrovia e a um tempo, que possibilita refletir a forma como as mulheres eram tratadas pelos homens. Isso é notável no diálogo que envolve as personagens o coronel Astério, o sanfoneiro Patrocínio e Lininha. [...] — Tempo bom aquele, Coronel. Lininha resolveu interferir: — Bom nada, seu Patrocínio. Uma pobreza terrível e uma ignorância ainda maior. Naquele tempo uma moça era tratada como uma escrava, prisioneira. Se fosse naquele tempo eu não poderia estar aqui conversando com o senhor. Foi então que Patrocínio percebeu que aquele tempo era, realmente, o tempo pior que poderia existir. Emendou-se: — Bom nada! A gente fala por falar, mas aquele tempo... aquele tempo... sei lá! Bom é hoje. O sorriso de Lininha iluminou o vagão, que partia menos rápido do que o coração do sanfoneiro (AEE, p. 69). Quando Santa Inez se refere à cidade de São Miguel e Amargosa, notam-se as reflexões sobre os aspectos históricos das cidades, o comércio, os habitantes e suas respectivas profissões, a forma como o trem viajava e o tipo de cultivo agrícola que havia às margens da ferrovia. Segundo o autor, Amargosa se chamava Nossa Senhora do Bom Conselho, mas mudaram o nome e um frade amaldiçoou a cidade, porque tiraram o nome da Santa. Porém, tinha padre, doutor, juiz, colégio e não havia nada amargando. O romancista conta algumas piadas por intermédio de suas personagens, dizendo que a cidade ―é o único lugar do mundo onde o rio corre prá cima, seu Leite é o negro mais negro que já vi e até as laranjas que os meninos vendem, eles dizem laranja doce de Amargosa‖ (AEE, p.70). A região, o cotidiano, o econômico, o político, o social e o cultural aparecem misturados na narrativa de Santa Inez. Ele indica que o trem permitia as conversas entre os passageiros, cortava pastagens, roças de fumo, plantações de mandioca, passava pela estação de Varzedo, deixava para trás o conjunto de municípios do Vale do Jequiriçá e descia para o litoral, para o nascente, em direção a Santo Antônio de Jesus e Nazaré. 63 3.4 Santo Antônio de Jesus e Nazaré (Recôncavo Sul): janela do litoral De Varzedo (sentido Jequié a Nazaré), o trem partia para Santo Antônio de Jesus, caracterizada por Santa Inez como cidade das angélicas, das palmeiras imperiais, dos horizontes abertos, planos, arenosos, salpicados de casinhas pobres, de roupas estendidas nos varais improvisados, de crianças brincando às margens da estrada, que se pontilhavam de branco, dos pequenos jardins de perfumadas angélicas, que serviam para o enfeite das igrejas e o buquê tradicional das noivas. O trem havia deixado para trás os alambiques de Ponto Sampaio, de Santana, com suas malhadas, seus canaviais e seus riachinhos correndo sobre pedras. Ao chegar à cidade das palmeiras, ―o trem parou, e pela importância da cidade ficaria parado mais tempo do que nas outras estações...‖ (AEE, p.75). Carletto assinala que na abertura dessa estrada, em 1880, quando foi inaugurado o trecho Nazaré - Santo Antônio, o município foi ponta de trilhos durante dez anos. Por isso, em pouco tempo a cidade se tornou um dos principais centros comerciais da redondeza.71 Outro aspecto que pode ter influenciado o crescimento e a prosperidade de Santo Antônio de Jesus, sobressaindo-se mais que outras cidades do Vale, foi o fato de ter sido beneficiada com a estrada de ferro por mais tempo que outras cidades da região, tanto na inauguração, quanto no momento de desativação. Sem falar que a cidade foi logo contemplada com as estradas de rodagem e depois, com a BR-101. ―Em 1930, foi construída a estrada de rodagem de Nazaré a Santo Antônio de Jesus, praticamente margeando a via férrea. O sistema rodoviário passaria a substituir gradativamente a ferrovia‖.72 A sua localização geográfica também influenciou — proximidade a Nazaré e Salvador —, e, também, por ser ponto de passagem dos habitantes de municípios vizinhos. Logo depois de Santo Antônio localizava-se Taitinga, também conhecida como Rio Fundo (Muniz Ferreira), onde o curandeiro Zé Felício era a esperança para realizar milagres e curar as pessoas. Nota-se que boa parte dos passageiros — pessoas simples e humildes, com problemas de saúde —, desembarcou nesta estação: o louco, uma velha com a filha doente e quase todos os passageiros dos vagões de segunda classe. Quando Santa Inez narra a chegada do trem em Taitinga, infere-se que tanto nesta estação quanto na cidade de Nazaré, as práticas culturais relacionadas ao curandeirismo eram freqüentes. Porém, muitas pessoas não gostavam de revelar que se consultavam com o ―curador‖ por diversos motivos: não informar que estava doente, evitar as críticas das pessoas 71 72 CARLETTO, 1979, p. 59. ZORZO, 2001, p. 202. 64 que viam aquela atividade inferior à medicina e por influência do processo histórico de perseguição à cultura da população pobre, sem acesso à saúde e à educação. Percebe-se também a existência de pessoas que duvidavam da eficácia do ―curador‖. EM RIO FUNDO A ESPERANÇA É ZÉ FELÍCIO [...] Tem gente que acredita, tem gente que não acredita. Eu acredito. Já vi milagre. O senhor veja, uma moça forte dessas, só tem dezessete anos, e com uma coisa dessas... O passageiro perguntou: — Tem o que dona? A moça interrompeu a velha. Quase gritando, envergonhada: — Cala a boca, mãe. A velha se irritava: — Cala a boca por que? Doença qualquer um tem. Ta aí prá todo mundo. Mas tu vai sarar, se Deus quiser. Seu Zé Felício vai te curar. Tu vai ver. Tu volta boa. Pode crer em Deus. A moça empurrava a velha para a saída, para longe dos passageiros curiosos. — Vamos embora. O trem só pára um instante. Também os soldados e o louco se aproximaram da saída. Parecia que todos os vagões da segunda classe despejavam ali a sua carga de mazelas e esperanças. Todos em busca do milagre que fluía das mãos de Zé Felício, dos seus tambores, do seu incenso, das suas preces, do seu conhecimento daquelas almas aparentemente tão simples, mas, no fundo, tão complexas (AEE, p. 75). Nazaré se aproximava. Alípio ficou em Mutuípe, o aleijado em Santo Antônio, o louco, os soldados e a senhora com a filha doente, ficaram em Rio Fundo. O sanfoneiro Patrocínio, que se apaixonara pela filha do coronel ficaria em Nazaré, hospedado no Hotel Colombo. Com base na narrativa de Santa Inez, o trem cortava planícies, cada vez mais, sentindo a presença do mar, a influência dos rios lentos, do litoral, passando Onha e chegando a Nazaré, escrita com ―th‖ (Nazareth) na parede da estação, as ruas estreitas, quase um túnel por onde o trem passava entre acenos, rostos sorridentes e olhares ansiosos. O narrador se refere aos velhos sobrados e ao rio Jaguaripe, informando que este era lamacento, mal cheiroso e humilde, no momento de vazante, e sereno, na hora de maré alta. Ao se referir à estação de Nazaré, Santa Inez nos informa sobre o prolongamento da ferrovia até São Roque; sobre os pequenos navios da Navegação Baiana (o Mascote, o Paraguassu, o Valença), que levava os passageiros do trem até Salvador; sobre o povo da cidade; o artesanato; a culinária; as lutas patrióticas; a influência africana; o surgimento das rodovias; a tristeza das cidades com ―a morte do trem‖, enfim, que a cidade fora, durante muito tempo, o começo e o fim da ferrovia. Com sua forma de narrar e envolver o leitor, ele refletiu a desativação e um possível retorno da ferrovia. (AEE, p. 83-84). 65 Muitas das informações históricas que se encontram na documentação de arquivo e nos livros de memórias fazem conexão com a narrativa de Santa Inez. O traçado da estrada, a utilidade da ferrovia, a decadência, o surgimento das rodovias, a crítica à indústria automobilística e ao petróleo. Em relação à região pode-se dizer que ela é mapeada de forma histórica e poética, com referência às cidades, que eram servidas pelo trem, bem como ao comércio, feira, produtos agrícolas cultivados e comercializados, os habitantes, a hidrografia (abundância ou escassez de água), o clima (o sol e calor de Jequié), a vegetação (parte semiárida, matas, pastagens), enfim, morros, planícies, solo arenoso e a forma como a estrada foi desativada. Neste capítulo, o discurso literário, com o auxílio de algumas fotografias, permitiu reconstruir a linha do trem de Nazaré, problematizando o cotidiano da ferrovia a partir dos diálogos das personagens no interior do trem. 66 4. A MORTE DO TREM: A DESATIVAÇÃO DA ESTRADA DE FERRO NAZARÉ 4.1 O “choro” de um narrador Em As estradas da esperança Santa Inez considerou que a EFN era um ser vivo e seria crime desativá-la. Não eram apenas os trilhos, os dormentes, os pontilhões, estações, os trens e os vagões, que estavam sendo paralisados, mas um conjunto de cidades que viviam à sua margem. O narrador ―chora‖ como se tivesse perdido um ente querido, argumentando que ―uma ferrovia é a economia, a saúde, a esperança e até o amor, o destino, a felicidade e a morte (AEE, p. 125). Se, por um lado, a construção da EFN, no início do século XX, na região do Vale do Jequiriçá e sua extensão até Jequié representaram avanço comercial e populacional, por outro, a sua desativação a partir de 1960, culminando com sua extinção em 1971, trouxe dificuldades econômicas, principalmente para os moradores da Região do Vale.73 O ―choro‖ do narrador e de moradores de cidades como Amargosa, São Miguel, Laje, Mutuípe, Jequiriçá, Ubaíra, Santa Inês, Itaquara e Jaguaquara justifica-se porque, na época, esses municípios não foram contemplados com as rodovias. A política rodoviária só foi efetivada imediatamente para ligar cidades maiores e mais importantes economicamente. A partir de 1964, a ferrovia funcionava apenas no trecho compreendido entre São Roque do Paraguaçu e Santo Antônio de Jesus, numa extensão de 64 km. Notam-se as dificuldades com a ausência do trem, no Vale do Jequiriçá, quando o narrador se refere à personagem do sanfoneiro Patrocínio, que se apaixonou pela filha do Coronel (Lininha) e ficou hospedado na cidade de Nazaré até ela retornar de Salvador. Porém, quando o sanfoneiro comprou a passagem, com a data marcada para o possível encontro com sua paixão, no trem, nem reparou que só poderia seguir até Ubaíra, onde começava a desativação da estrada. De acordo com a narrativa de Santa Inez, Patrocínio não sabia que o Coronel Astério e a família nunca mais viajariam naquele trem, porque sua fazenda ficava no município de Itaquara. Iriam de navio até Ilhéus e, de lá, de ônibus até Jequié (cidades maiores, contempladas com as rodovias), depois de carro e a cavalo até o destino final (AEE, p. 86). 73 Segundo dados do IBGE, o êxodo rural do Vale foi o maior da Bahia em 1960. Ver Diagnóstico de Municípios Vale do Jiquiriçá. Edição SEBRAE. Salvador, março de 1995. p. 29. 67 O trem era um espaço móvel que permitia o reencontro das pessoas, favorecendo laços de amor, amizade, o comércio, o emprego (para quem tocava e cantava, como era o caso do sanfoneiro), o pedido de esmola (o aleijado), enfim, era parte da vida de quem o usava. Por isso, em seu discurso literário, Santa Inez não aceita o fim da estrada e argumenta que um dia o trem voltaria e o povo compreenderia ―que alguns hectares de eucaliptos plantados à margem das ferrovias resolvem o problema do trem, que não polui, não provoca acidentes, não dá enfarte‖ (AEE, p. 84). Ele se posiciona contra o advento do automóvel e favorável às linhas férreas. Suas lágrimas podem ser evidenciadas quando narra que o trem era o principal meio de transporte que alimentava aquelas pequenas e ―doces‖ cidades do sudoeste baiano. Movido a lenha e água, arrastava cinco a seis vagões, levava e trazia gente, notícias e esperança. Por isso, o fim da estrada contribuiu com a migração dos jovens para Salvador, para São Paulo e Rio de Janeiro, ―deixando pobreza, solidão e saudades nas cidadezinhas poéticas e no coração dos velhos, que não tinham mais para onde ir, nem o que fazer, nem o que ver e nem mesmo o que falar‖ (AEE p. 30). É notável na narrativa de Santa Inez, que no período de existência da ferrovia, Ubaíra era apontada como uma cidade importante, mas com ―a morte do trem‖ sofreu despovoamento e estagnou seu crescimento. ―Foi uma das grandes vítimas da morte do trem. Deficitário ou não, primitivo ou não, quem matou aquela ferrovia contribuiu — e continua contribuindo — para o despovoamento do sudoeste baiano‖ (AEE, p. 55). Segundo o romancista, a juventude que vivia às margens da EFN, ao migrar para os grandes centros urbanos brasileiros, ocasionou, principalmente, o crescimento da marginalidade miserável e mal adaptada da periferia de Salvador, de São Paulo e do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que lamenta o fim da ferrovia, o narrador revela um trem lento, fora do horário, enguiçando na estrada. ―O trem estava atrasado. Pequenas demoras, pequenos enguiços, improvisaram em Areia o almoço que seria em São Miguel, cinco ou seis estações à frente‖ (A EE, p. 57). Após a passagem do trem por Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Areia (Ubaíra), a estação de Jaguaritu (entre Jequiriçá e Mutuípe), o narrador, através do diálogo de dois viajantes, lamenta, indica os motivos e a forma como a ferrovia foi desativada: — Estão falando que o trem vai acabar. Você já ouviu falar? — Já. Isso é bom mesmo. — Você acha? — Acho. Trem velho, sujo, só vive fora do horário, nem água não tem... — E de que modo este povo vai viajar? 68 O outro falou, brincando. — A pé. Gente pobre viaja a pé. O viajante se revoltava: — Mas é um crime. Estas cidades todas vivem do trem. Bem ou mal, é por este trem que toda esta região tem contato com o mundo. Será que vão mesmo... — Vão, sim. Daqui a um mês ou dois o trem só vem até Laje. Eles fazem assim. Depois só até São Miguel. Depois só até Santo Antônio. Depois acaba. Fica só na saudade. Mas a rodagem já está aí. — Aí aonde? E quem tem dinheiro para comprar carro, comprar caminhão? Quem sabe dirigir? E os pobres, como vão viajar? — Pobre não viaja. Se entoca... (A E E, p. 65-66). Com a desativação da EFN, a economia do Vale do Jequiriçá entrou em declínio por não poder escoar sua produção através da ferrovia, que ligava o porto fluvial de Nazaré (a partir de 1940, o de São Roque) até Jequié. Outro fator que está implícito na citação acima é que as estradas de rodagens não foram construídas imediatamente para interligar os municípios vizinhos. Quando a ferrovia foi desativada, a partir de 1960 e 1970, Santo Antônio de Jesus e Jequié foram cidades contempladas, respectivamente pelas BRs 101 e 116. Já as cidades de Nazaré, Aratuípe, Muniz Ferreira e também as outras cidades do Vale tiveram pouca produção agrícola e ficaram mal comunicadas com a rede rodoviária regional, sofrendo decréscimos populacionais e/ou registrando um crescimento não significativo. A importância da EFN torna-se evidente nos argumentos do narrador quando ele afirma que ―estas cidades todas vivem do trem. Bem ou mal, é por este trem que toda esta região tem contato com o mundo‖ (AEE, p. 65). Mesmo com todos os problemas que a ferrovia apresentava: ―trem velho, sujo, viajando fora do horário‖, esse meio de transporte continuava sendo útil, principalmente para as pessoas que não tinham como viajar. Ou seja, ―quem tinha dinheiro para comprar carro, comprar caminhão? Quem sabia dirigir?‖. A obra As Estradas da Esperança nos faz ―viajar‖ na história da estrada de ferro, seguindo a localização geográfica das cidades que fazem parte da região do Vale do Jequiriçá.74 Ao explicar em sua narrativa que a estrada foi desativada aos poucos, o narrador ―derrama suas lágrimas, chorando a morte do trem‖: Laje estava doente. Morria aos poucos. Mas, no momento em que se tornou terminal ferroviário, tornou-se importante, seu comércio cresceu, vinha gente de vários lugares para tomar, ali, o trem. Era a melhora que antecede a morte. A chama da vela que se alteia no momento em que se extingue. Laje iria morrer. Mas, por enquanto, apresentava um aspecto de renovação, de renascimento. O prenúncio irônico da agonia, da decadência. 74 Depois de Mutuípe, o autor apresenta a cidade de Laje, em seguida, São Miguel, Amargosa e nos faz alcançar o recôncavo baiano: Santo Antônio e Nazaré. 69 Era de Laje que o trem saía, ainda madrugada, devagar e barulhento, como um animal gigantesco ainda mal acordado (AEE, p. 125-126). Na citação acima está explícita a denúncia de Santa Inez contra a desativação da ferrovia e é notável também o crescimento do comércio de Laje, quando se torna terminal ferroviário. Ou seja, de acordo com a narrativa, o trem só vinha até Laje, por isso ―vinha gente de vários lugares para tomar, ali, o trem‖. Portanto, os trechos dessa estrada de Laje até Jequié (Mutuípe, Jequiriçá, Ubaíra, Santa Inês, Itaquara e Jaguaquara) já tinham sido desativados e os moradores dessa região, que haviam se acostumado com o trem, encontravam dificuldades para viajar, comunicar-se com o mundo e comercializar, principalmente, os produtos agrícolas. É visível na obra a riqueza de informações e reflexões do autor sobre a EFN, que representava a ―vida‖ para as cidades do sudoeste baiano, sendo que a sua desativação representou a ―morte‖, ou seja, uma agonia com ―choros‖ dos moradores destas cidades, que estavam acostumados com esse meio de transporte. Além de mencionar a tristeza e o ―urbanicídio‖ das cidades, causadas pela morte do trem, a obra revela a existência de pessoas que trabalhavam na ferrovia, vendendo passagens, tocando o sino da estação e sinalizando o momento da chegada e da partida do trem (A E E, p. 29). 75 O fim da estrada de ferro foi melancólico e o narrador lamenta a desativação da ferrovia onde as velhas locomotivas, umas a óleo, outras a lenha, numeradas, marcavam de fumaça e de barulho todo o percurso do trem, de Nazaré a Jequié; enfeitavam a noite, riscando-a com clarões de farol, levando e trazendo carga, gente e animais. O autor chora e denuncia a morte do trem, levando a compreender que as velhas locomotivas ―morreram sem glória, devagarinho, despedaçadas, estraçalhadas, um cano arrancado, uma torneira quebrada, um sino roubado, um pedaço de metal vendido irregularmente...‖ (AEE, p. 84). Com isso, a população ficou isolada, sofrendo com a forma de retirada dos trilhos (por trecho), restando apenas saudades daquela paisagem compostas por caatingas, riachos, fazendas, despedidas, a alegria das estações e o comércio. Em muitas cidades do interior, construídas às bordas dos trilhos, a população se dispersou lentamente depois do fim do transporte ferroviário e do processo de concentração populacional nos grandes centros urbanos, a partir da década de 1970. 76 Santa Inez também 75 De acordo com o romancista, ―urbanicídio‖ significa atraso (morte) do desenvolvimento das cidades do sudoeste baiano e do Vale do Jequiriçá, que dependiam da EFN. 76 PAULA, Dilma Andrade de. Fim de linha: a extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-1974. Tese de doutorado – Dep. De História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2000, p. 74. 70 foi um desses jovens que fugiram para as grandes capitais, deixando para trás a família e saudades dos pequenos municípios da região do Vale do Jequiriçá e do Recôncavo Baiano. 4.2 Ferrovia e rodovia: sai o trem, entra o caminhão A situação crítica que domina a EFN, em 1945 reflete uma crise generalizada no transporte ferroviário no Brasil. O governo brasileiro, a partir daquele momento passou a investir nas rodovias. Quando o narrador enfatiza A decisão do aleijado, que se encontra em Santo Antônio de Jesus, necessitando retornar para Jequié, cujo trecho da estrada havia sido desativado (em maio de 1964), nota-se que a alternativa de transporte neste momento histórico é o caminhão. Além das dificuldades com o percurso (Santo Antônio de Jesus – Ilhéus – Itabuna e poucos caminhões para Jequié), o aleijado passava a enfrentar também o problema da falta de experiência com a rodovia, ou seja, as viagens de caminhão. Como Santo Antônio de Jesus tinha sido contemplada com a BR-101 e ainda havia o trem — estava crescendo e se desenvolvendo, a esperança do aleijado estava depositada na possibilidade de estruturar a sua vida e a de sua família nesta cidade. ―Talvez conseguisse uma casinha no Andaiá, ou em São Benedito‖ (AEE, p. 95). Ficou subentendido, na narrativa de Santa Inez, que estes eram bairros habitados por pessoas pobres e humildes, na época. Porém, mesmo conseguindo a casa, como buscaria a família em Jequié? Ao se referir à erradicação de ramais ferroviários, no Brasil, Dilma Andrade de Paula, em sua tese Fim de linha explica que este foi um processo político, institucional, jurídico, técnico e estratégico, que envolveu a constituição de Grupos de Trabalho formados por consultores estrangeiros, diretores do DNEF (Departamento Nacional de Estrada de Ferro), DNER (Departamento Nacional de Estrada de Rodagens), RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima), Ministério do Planejamento e representantes das Forças Armadas, que programavam e selecionavam, não só os ramais a erradicar, mas também a construção de rodovias substitutivas. Foi necessária a elaboração de leis e decretos, que garantiam verbas e disciplinavam o programa. Não bastava retirar as linhas, precisava-se criar a cultura do ―antiferroviarismo‖. Literalmente, significava erradicar, termo originado do latim erradicare, que significa desarraigar; arrancar pela raiz, geralmente empregado para o ato de exterminar pragas da agricultura. Para desarraigar, foi preciso produzir e cultivar o discurso do deficitário, do antieconômico, do empreguismo das ferrovias, do seu atraso tecnológico crônico em contraponto ao progresso, que chegava pela via rodoviária. Nesse sentido, a 71 civilização do automóvel ganhava espaço, legitimidade e força política, enquanto o transporte ferroviário estrangulava-se.77 A narrativa de As estradas da esperança sugere as lamentações da população com o fim da estrada, principalmente quando se refere à estação de Lagoa Queimada, povoado localizado entre a cidade de Santa Inês e Itaquara. O romancista conta que Lagoa Queimada se transformou em Lagoa Morta e estava mais triste, mais abandonada, mais isolada, na solidão do mundo. O trem, que agitava o marasmo, com a sua presença certa e segura, já não chegava até ali. Morria em Ubaíra, pois ―aquele marca-passo do coração da cidadezinha fora trocado por alguns caminhões irregulares, que cortavam a pracinha como feras estranhas, buzinando, ameaçando atropelar as cabras, os cães, as galinhas‖ (AEE, p. 97). Nota-se que ―a morte do trem‖ interferiu na feira, no hábito de vestir-se bem, calçar-se e ir à estação; no transporte de alunos da região, para o referencial Colégio Taylor Egídio da cidade de Jaguaquara; e no cultivo agrícola das pequenas e grandes propriedades em torno da EFN, pois muitas pessoas se mudaram para cidades maiores. As estradas da esperança revela que a desativação da linha férrea, por trecho, foi muito desconfortável porque as crianças ficavam andando pelos restos dos trilhos e os adultos comentavam a volta do trem: — Ouvi dizer que mês que vem ele está aí de novo. — É. Disseram que o prefeito de Jequié já falou com o Governador. — Onde já se viu isso? Vai acabar é com o Colégio de Jaguaquara. Na própria conversa percebia-se a esperança e a descrença. Dona Severina era mais pragmática: — Isso aqui, sem o trem, é como defunto. Só vai piorar. Eu gosto daqui, mas não fico. — E para onde a senhora vai Dona Sé? — Prá qualquer lugar. Isso aqui ficou muito triste. Acho que vou prá Valença. Já fui lá. É uma cidade bonita, grande, tem fábrica de tecidos, tem muito peixe... Téia ouvia-a encantada. — Me leve, quando a senhora for. — Olha que eu levo. Se teu pai deixar, eu te levo. (AEE, p. 98). O trecho da ferrovia que ligava o Vale do Jequiriçá a Jequié foi o primeiro a ser desativado. Sem o trem, muitas pessoas iam tentar a sobrevivência em outros municípios como Valença, Santo Antônio de Jesus, Salvador e até mesmo São Paulo. Em As estradas da esperança, as personagens Téia e Dona Sé, abandonaram suas casas e migraram de Lagoa Queimada para Jequié, na cabina de um caminhão (AEE, p. 98 - 99). Com a morte do trem, as cidades do Vale do Jequiriçá ficaram desvinculadas comercialmente e perderam seu elo, porque o caminhão, além de ser um transporte diferente, 77 PAULA, 2000, p. 189 – 190. 72 ainda era escasso. Com o fortalecimento do transporte rodoviário, incrementa-se a saída do transporte ferroviário. De acordo com Paula, ―quem persistia na utilização dos precários trens era a população de baixa renda, tanto no transporte suburbano quanto no do interior‖. 78 Na forma de pensar dessa autora, esse dado favoreceu o golpe final nas ferrovias, porque era preciso força política/econômica para fazer frente aos interesses multinacionais, que estavam associados aos nacionais, corporificados no Estado brasileiro. Somando-se a isso a idéia do moderno, representado pelo automóvel. Na narrativa de Santa Inez, especificamente, o diálogo da substituição do trem pelo caminhão, fica evidente as dificuldades que os ricos e, principalmente, os pobres enfrentaram com a desativação da ferrovia. A obra As estradas da esperança possibilita pensar na conciliação da rodovia com a ferrovia. Numa breve reflexão sobre a retirada dos trilhos no Brasil, nota-se que as estradas de ferro foram construídas para transportar as riquezas existentes ao longo das linhas (produtos agrícolas, cargas diversas, minérios, entre outros). Poucas ferrovias se preocuparam com o transporte de passageiros, porque no caso da EFN, o lucro desta estrada não era resultante deste tipo de transporte. Os responsáveis pelos transportes na Bahia não estavam preocupados em articular ferrovia e rodovia. O objetivo era a substituição de um sistema de transporte pelo outro. A ampliação da rede de vias terrestres e do parque de automóveis, caminhões e ônibus, no interior do estado, notadamente após a década de 1930, alterou profundamente o papel da EFN. O trem, o único meio mecânico de locomoção disponível, durante décadas, passou a ser considerado um sistema enrijecido e pouco operativo, com demoras intoleráveis de 60 e até 90 dias para a entrega de mercadorias. Em seu estudo, Zorzo informa que no ano de 1934, a relação entre a lotação utilizada e a oferecida pelos trens da empresa era de menos da metade, ou seja 49%. Em 1935, ao ser entregue a BA-2, de Ipiaú até Itabuna e ao porto de Ilhéus, o cacau da região da mata passou a ser transportado pela rodovia para esse porto, a fim de se dirigir a Salvador. O tráfego descendente Jequié a Nazaré perdeu enormemente seu volume de cargas. No tempo do transporte de cargas por tração animal, a ferrovia concentrava muito mais a produção regional. As 10.065 toneladas de cacau, transportadas pelo trem de Nazaré, em 1938, baixaram para 304 toneladas em 1954. As 18.536 toneladas de café, transportadas em 1937, reduziram-se a 1.380 toneladas em 1952. A conclusão da rodovia Rio-Bahia (BR-116), na década de 1950, também enfraqueceu as possibilidades da EFN.79 78 79 PAULA, 2000, p. 249. ZORZO, 2001, p. 242-243. 73 Deduz-se das informações acima que o transporte de mercadorias era mais importante e lucrativo que o de passageiros, porque quando há redução no volume de cargas transportadas pelo trem, a ferrovia passa a ser desativada. Infere-se também que parte da produção passou a ser escoada pelas rodovias. Em As estradas da esperança, o narrador revela sua preferência pelo trem, desqualificando as viagens de caminhão, argumentando sobre o perigo e o desconforto que este meio de transporte causava com os tombos, balanços e as dificuldades dos passageiros para subirem até a carroceria. O seu posicionamento de apreço à ferrovia pode ser evidenciado no retorno de Alípio para Jequié. 4.3 O retorno de Alípio para Jequié Alípio foi uma das personagens que enfrentou dificuldades com a desativação da estrada, para retornar para Jequié e também para os braços da sua amada (Rosa). Ele ―trabalhava como diarista na Prefeitura de Mutuípe, trocando lâmpadas queimadas, fincando postes, abrindo e fechando a água da usina‖ (AEE, p. 96). Quando pensou em regressar à família, o trem só o levaria até Ubaíra e, daí até Jaguaquara, logo, deveria aventurar-se num caminhão ou num jipe para seguir viagem. Como as cidades do Vale do Jequiriçá não eram contempladas pela BR-101, nem pela BR-116, restando apenas as deficientes estradas de rodagens, subentende-se que o número de jipes e caminhões disponíveis era menor que nas rodovias federais. Ao narrar a viagem de Alípio, de Ubaíra até Jaguaquara Santa Inez registra que o caminhão era uma solução para se aproximar de Jequié e que na carroceria deste meio de transporte já havia algumas pessoas, entre elas, mulheres e crianças: E o caminhão seguiu, sacolejando, trepidando, parecendo ter as rodas quadradas. Uma velha começou a rezar, em voz alta, enquanto se ouvia, em contra-ponto, o choro amedrontado de uma criança. Alípio afundou o chapéu na cabeça, para que o vento não o levasse, e ficou pensando na diferença que havia entre a viagem de trem e aquela tortura de sol quente, de saltos e de perigo que era o caminhão (AEE, p. 97). Com a desativação da ferrovia, a cidade de Jequié foi contemplada pela BR-116 (rodovia também chamada de Rio-Bahia) e continuou crescendo. Com Santo Antônio de Jesus não foi diferente, porque havia o transporte rodoviário (ligando-a diretamente com Feira de Santana) e o trem, mesmo em situação precária, ainda fazia o percurso São Roque do 74 Paraguaçú – Santo Antônio de Jesus. Entretanto, as cidades do Vale do Jequiriçá enfrentavam sérios problemas com transportes. Ao se referir à decadência da EFN e a desarticulação da rede urbana, Zorzo considera que São Miguel transformou-se num município isolado e decadente e decresceu em números populacionais. A desativação do ramal ferroviário de Amargosa, no início da década de 1960, aliada ao declínio do seu principal cultivo, o do café, correspondeu a incontestável perda populacional. ―Ubaíra e a zona adjacente do Vale do Jequiriçá também sofreram muito com a decadência da ferrovia, juntamente com Santa Inês‖.80 A narrativa referente ao retorno da personagem Alípio para Jequié evidencia as dificuldades da população com a ausência do trem no Vale do Jequiriçá. DE JAGUAQUARA A JEQUIÉ O caminhão despejou a sua pobre carga de gente e pacotes e sacolas e malas na praça de Jaguaquara. Alípio estava ali, com fome, desorientado. Teve vontade de perguntar para que lado ficava Jequié, e andar até morrer. Mas ficou com vergonha, acanhado. — O senhor sabe de alguém que vai prá Jequié? — Ali na oficina tem um moço que leva o pessoal. Ele tem um jipe. Alípio foi até a oficina: — É daqui que sai um jipe prá Jequié? — Não. Daqui sai um jipe prá qualquer lugar. O senhor contrata a viagem, e eu levo o senhor até onde o senhor quiser. Alípio não gostou do discurso. Não gostava de ser tratado como criança. Se o desgraçado do jipe ia para qualquer lugar, é claro que iria até Jequié. Não gostou da cara do sujeito. — E por quanto o senhor me leva até Jequié? — O senhor vai sozinho? Era uma pergunta idiota. Alípio chegou a pensar que era brincadeira do outro. Como iria sozinho, se não sabia dirigir? E mesmo que soubesse, o outro iria entregar-lhe o jipe? — Como, sozinho? O senhor não vai dirigindo? Foi a vez do outro sorrir: — O senhor sabe quanto custa uma viagem daqui até Jequié? — Não. — Pois é por isto que eu estou perguntando se o senhor vai sozinho. Eu costumo levar cinco ou seis. Já levei oito. Quando é muita gente a despesa fica dividida. Porque eu tenho que cobrar ida e volta, porque não sei se vou achar passageiros para voltar. Entendeu agora? Alípio teve vontade de dar-lhe um soco. Mas estava aprendendo a conviver com o mundo. — Se eu for sozinho, quanto o senhor cobra? O outro não respondeu. Examinou-lhe a roupa, a bagagem — aquela malinha azul, de madeira — e disse: — É melhor o senhor esperar. Daqui a dois ou três dias eu já juntei gente bastante para uma carga. Ficaram conversando mais um pouco e Alípio ficou sabendo que, mesmo dividindo por cinco, a sua passagem iria custar vinte vezes mais do que se fosse de trem. E se 80 ZORZO, 2001, p. 235. 75 ele fosse sozinho chegaria pedindo esmola, porque todo dinheiro que trazia não dava para aquela viagem. — Quer dizer, que o senhor acha que só vai daqui a três dias? — É. Mas não posso garantir. Se tiver passageiros... (AEE, p. 99-100). O trem sai da história entra o caminhão e o jipe, mas Alípio não tinha dinheiro para pagar a despesa com a passagem e viajar sozinho. Esperar mais passageiros demoraria mais dois ou três dias, mesmo assim a passagem custaria bem mais do que se fosse de trem. O que fazer diante de tal situação? O trem estava velho, atrasava, mas todos os dias fazia o percurso Nazaré a Jequié e vice-versa. A partir da dificuldade desta personagem, pode-se imaginar o sofrimento de toda população do Vale com transporte, principalmente, nas décadas de 196070, que a estrada estava sendo desativada e o número de automóveis ainda era baixo. Se o lombo dos animais era a opção para transportar a produção agrícola, das fazendas nos arredores da ferrovia até as estações, agora, juntamente com o caminhão e o jipe, servia também para transportar as pessoas do meio rural para as cidades e de uma cidade para outra. O trem tinha sido ―enterrado‖, mas os dormentes levariam Alípio até Jéquié, porque, hoje, pela rodovia (que foi construída seguindo os trilhos do trem), a distância entre estas duas cidades é aproximadamente de 60 km. UM A UM, OS DORMENTES SÃO CONTADOS [...] Jequié não estava longe. Se aquele trem lento vinha tão rápido, ele poderia ir a pé. Por que não? Sabia andar, não era aleijado; a mala estava leve. A noite vinha chegando. Melhor, ainda, porque ninguém iria rir dele. Comprou alguma coisa para comer, comprou um facão novo, já que ia viajar sozinho e à noite, e esperou a escuridão. Mas não esperou muito, que estava com pressa. Pouco se importava que risse dele, com aquela mala ridícula, como criança, contando os velhos dormentes, que prendiam os trilhos: um, dois, três, quatro, cinco, seis... O fundo das casas, o fundo da igreja, do templo batista, das ruas da Muritiba, Casca, o começo da ladeira... As luzes do ginásio parecia que alguém cantava, talvez estivessem em festa. Os dormentes tinham uma distância uniforme que lhe obrigava as passadas. Talvez, por isto, estivesse cansado. E aquele diabo de mala, como pesava! Nunca imaginou que uma malinha daquelas pesasse tanto. Antes tivesse mesmo esperado. O homem do jipe estava com a razão. A distância era enorme. As mãos doendo na alça da mala, o melhor é levá-la ao ombro ou, como as negras, na cabeça, um, dois, três, quatro, o ginásio ainda está ali, essa estrada dá voltas... A noite fresca leva Alípio estrada afora. No céu, profundo e aveludado, luzem mundos de estrelas. O caminho de são Tiago, estrada de luz sem trilhos, sem dormentes, lança uma claridade suave sobre os passos do viajante. Ah, se o trem passasse por aqui! Café com pão, bolacha não, café com pão, bolacha não... Piiiiiiiii... A primeira luz da manhã encontrou-o cansado, sedento, faminto, contando dormentes em direção a Jequié: um, dois, três, quatro, cinco... (A E E, p.100-101). 76 Além da personagem Alípio, outras personagens da narrativa de Santa Inez estão chegando a Jequié (Dona Sé e Téia). A estrada fora desativada por trechos, perdendo espaço para as rodovias, porque no pensamento e interesse das autoridades políticas brasileiras, naquele momento, o automóvel representava o moderno e o trem estava ultrapassado. Entretanto, no processo de substituição da ferrovia pela rodovia, o Vale do Jequiriçá, composto por cidades distantes umas das outras, aproximadamente, entre 10 e 20 km, foi muito prejudicado com a ausência do trem, porque não era contemplado, nem com a BR-101, nem com a 116. Restavam as estradas de rodagens e os deslocamentos mais extensos, em lombos de animais, para os produtores agrícolas. Havia estações da ferrovia não só nas cidades, mas em localidades rurais — povoados como Barra (entre Mutuípe e Jequiriçá); Jenipapo (entre Ubaíra e Santa Inês) e Lagoa Queimada (entre Santa Inês e Itaquara). Como a cidade de Jaguaquara está localizada a mais ou menos 10 km da BR-116, o povoado aí existente se transformou num grande distrito, cujo nome é ―Entrocamento de Jaguaquara‖, por influência da rodovia. Este distrito tem uma população igual ou maior que a da cidade de Jequiriçá, ou da de Santa Inês, ou Itaquara. Outra cidade que ganhou um ―entrocamento‖ foi Laje, por estar localizada a 15 Km da BR-101. Já as cidades de Mutuípe, Jequiriçá, Ubaíra, Santa Inês e Itaquara, que são mais afastadas destas duas BRs, tiveram crescimento populacional baixo, se comparado com a população que havia na década de 1970. Cada um destes municípios, ainda hoje, tem população inferior a 30.000 habitantes. O surgimento das rodovias foi fator influenciador do crescimento populacional de alguns municípios (Santo Antônio de Jesus e Jequié). Porém, outros fatores como a localização e o comércio com cidades vizinhas podem explicar porque algumas cresceram, outras não e algumas perderam população, no período de convivência da ferrovia e a rodovia (1950 – 1970). Santo Antônio de Jesus, Capela do Padre Mateus, na época em que pertencia a Nazaré, foi ponta de trilhos por 10 anos (1880-1890), no início da construção da ferrovia. Foi beneficiada também, no período de desativação da estrada, porque usou o trem por mais tempo que as outras cidades do Vale do Jequiriçá. Quando Nazaré deixou de ser ponto de partida para se tornar apenas ponto de passagem do trem, a partir de 1940, com a inauguração do porto de São Roque, perdeu importância comercial e teve baixo crescimento populacional. Na medida em que as cidades servidas pelo trem passaram a escoar parte de sua produção pelas rodovias e a manter vínculo comercial com outras cidades (com Vitória da Conquista, Ilhéus, Itabuna, Feira de Santana), a EFN entrou em crise e Nazaré das Farinhas teve seu comércio prejudicado. 77 Jequié, que era o fim de linha da estrada, não sofreu muito com ―a morte do trem‖, porque ganhou a rodovia e ampliou seu contato com cidades maiores como Vitória da Conquista, por exemplo. Portanto, a desativação da EFN no Vale do Jequiriçá obrigou cidades como Santa Inês, Itaquara e Jaguaquara a intensificarem seus contatos com Jequié e a usar a BR-116. Já as cidades de Jequiriçá, Mutuípe, Laje, Amargosa e São Miguel, passaram a usar a BR-101, favorecendo o comércio com Santo Antônio de Jesus. 4.4 “Doenças” que causaram “a morte do trem de Nazaré” Em As estradas da esperança, o romancista considera que a ferrovia era uma porta para o mundo e a decisão do governo em desativá-la nada tinha de democrática, mas o povo tão ignorante não fez nenhuma manifestação para impedir ―o direito divino dos que decidem‖ (AEE, p.135). Ou seja, ―a morte do trem‖ teria sido uma decisão autoritária dos governantes, que não dependiam daquele meio de transporte e nunca havia utilizado aquele serviço. É válido lembrar que em pleno regime militar as pessoas não tinham espaços para reclamar e se posicionar contra a desativação da EFN. Em seu estudo Douradense: a agonia de uma ferrovia, Ivanil Nunes analisou a desativação desta ferrovia paulista, argumentando sobre o ―fim da era ferroviária‖. Nunes sinalizou, que após a crise de 1929, teria ocorrido a decadência do complexo cafeeiro, esgotando-se, por conseqüência, o modelo de transportes baseado na ferrovia. A partir de 1940, no Brasil, foi feita a opção pelo ―rodoviarismo‖ e a partir de 1960 se iniciou uma verdadeira operação de desmonte do sistema ferroviário paulista.81 No terceiro capítulo dessa obra, intitulado de ―A retirada dos trilhos‖, Nunes considerou o ano de 1961 como marco de substituição das ferrovias por estradas de rodagens. Em sua argumentação, além de citar a publicação do Decreto-Lei número 2.698, de 27/12/1955, que dentre outras providências, estabelecia a substituição de ferrovias, reconhecidamente deficitárias, por rodovias, este autor pontua um conjunto de fatores que favoreceram o crescimento rodoviário, asfixiando as ferrovias e provocando a retirada de ramais, considerados ―antieconômicos‖. Entre estes fatores, estariam o caminhão, o ônibus e automóveis, como os concorrentes das ferrovias, apoiados, tanto pela vantagem comparativa em determinados percursos (comparação do tempo, velocidade e custo da viagem, por 81 NUNES, Ivanil. Douradense: a agonia de uma ferrovia. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2005. p. 18. Livro originado da dissertação de Mestrado em Economia, UNESP, Araraquara, 2002. 78 exemplo), quanto pela infra-estrutura montada pelo setor público para o beneficio desses novos elementos.82 Ainda que o processo de desativação da Douradense tenha sido semelhante ao da EFN, não se pode pensar que a retirada dos trilhos no Brasil aconteceu de forma homogênea. Isso dependia muito da importância da ferrovia e dos interesses dos governos (estadual e federal, em parceria com os administradores privados). Paulo Roberto Cimo Queiroz problematizou o debate acerca da retirada dos trilhos, fazendo-nos pensar se naquele momento (1950-1970), o Brasil tinha ou não condição de modernizar sua rede ferroviária. Ele considerou que o triunfo das rodovias teria sido obtido graças a um verdadeiro complô, envolvendo, numa vasta trama de corrupção, os governos e as grandes empresas petrolíferas e automobilísticas (todas estrangeiras) — complô pelo qual se teriam deliberadamente deixado as ferrovias à míngua de recursos, os quais, em contrapartida, haveriam sido generosamente fornecidos ao setor rodoviário.83 Ao analisar os principais fatores que conduziram à retirada das linhas da Douradense, Nunes assinala o aumento da despesa de custeio, principalmente a partir de 1918; queda do número de passageiros transportados já na década de 1920 (em 1925); redução na tonelagem transportada de café a partir de 1939; redução da receita com as crises conjunturais (1ª e 2ª Guerras Mundiais, intercaladas pela Crise de 1929), causando déficits crescentes à Companhia, os quais a impossibilitaram de cumprir seus compromissos financeiros. Portanto, a operação desmonte nas linhas da Douradense é entendida por esse autor como uma ―agonia‖, devido ao seu processo relativamente lento de desativações parciais em função do asfaltamento das estradas. Em decorrência disso, houve a substituição das Jardineiras pelos ônibus e aumento do número de caminhões na região (Douradense), que provocaram ao longo do tempo a perda da concorrência dos trechos restantes da ferrovia.84 O processo de desativação da EFN, de certa forma, foi muito parecido com o da Douradense, em comparação aos trechos da estrada, que eram desativados de forma a causar uma ―agonia‖ na população do conjunto de cidades servidas pelo trem de Nazaré. Em 1963, o tráfego da estrada já não era realizado em toda sua extensão. O trecho Santa Inês – Jequié havia sido interrompido, assim como o ramal de Amargosa. Continuava em funcionamento o trecho São Roque – Santa Inês, numa extensão de 189 km. 82 NUNES, 2005, p. 156. QUEIROZ, Paulo Roberto Cimo. Notas sobre a experiência das ferrovias no Brasil. História Econômica & História de Empresas. 1991, p. 91. 84 NUNES, 2005, p.185 – 186. 83 79 Porém, ―a morte do trem de Nazaré‖ foi causada por ―doenças‖ específicas. Além da concorrência rodoviária, queda da produção agrícola e desgaste da ferrovia, aconteceram algumas enchentes (em 1947, 1952 e 1960), que causaram grandes estragos e prejuízos à EFN, destruindo estações, pontes e interferindo no tráfego. Em As estradas da esperança, ao se referir à passagem do trem pela estação de Laje, Santa Inez informa que a cidade se chamava Nova Laje, porque todo ano a enchente levava as casas, que eram muito próximas ao rio e o povo tinha que reconstruí-la.85 Em 1964, foi supresso o tráfego de Santo Antônio de Jesus a Jequié, em caráter definitivo, funcionando apenas, de modo precário, o trecho São Roque do Paraguaçu – Santo Antônio, numa extensão de 64 km.86 O início da ligação da EFN, em 1957, entre Santo Antônio de Jesus e Cruz das Almas tinha o objetivo de integrar o trem de Nazaré à Via Férrea Federal Leste Brasileiro (VFFLB), para diminuir a dependência com a navegação marítima no intercambio com Salvador, pois o porto de São Roque encontrava-se carente de instalações adequadas, guindastes e armazéns. O cais estava sob ameaça de possíveis desabamentos e não sendo feitos os reparos ficou comprometido o transporte das mercadorias. Com a desativação de trechos da estrada e o trem perdendo espaço para as rodovias, foi cancelada a ligação entre a EFN e a VFFLB (Santo Antônio de Jesus e Cruz das Almas). No ano de 1965, ocorreu o desmoronamento parcial do cais do porto de São Roque, tornando a situação insustentável, contribuindo para o fechamento do último trecho em tráfego (Santo Antônio a Nazaré), em 1971. Neste mesmo ano de liquidação da EFN, foram iniciadas as operações Ferry Boat entre Salvador e a Ilha de Itaparica, ligando esta ao continente, na parte de Nazaré, pela ponte do Funil.87 No capítulo 137, O direito divino dos que decidem, Santa Inez retoma o discurso sobre a utilidade do trem de Nazaré para o conjunto de cidades servidas pela ferrovia. Além disso, sobressai nos argumentos do autor que ―a morte do trem‖ foi uma decisão do governo, sem se preocupar com a população ou tomar medidas para salvar a ferrovia. A obsolescência da EFN, incapaz de competir com o transporte rodoviário, associada à ausência de uma política que integrasse ferrovia, rodovia e navegação resultaram no enrijecimento e crise do sistema ferroviário baiano. 85 As enchentes mais comentadas, ainda hoje, pela população do Vale do Jequiriçá, são a de 1914 e de 1960, que destruíram casas da cidade de Laje e outras cidades do Vale: Mutuípe, Jequiriçá e Ubaíra. Nos relatórios e Plano de Reequipamento da EFN, referentes aos exercícios de 1947, 1952 e 1960 constam enchentes nos rios Jequiriçá e Jaguaripe, que causaram sérios prejuízos à estrada. 86 Relatório da EFN, referente ao exercício de 1964, p. 1 e 2. 87 Ver CARLETTO, 1979, p. 231. 80 Conforme o estudo de Carletto, a situação de crescente abandono do parque ferroviário brasileiro só tomaria uma dimensão nova a partir de 1973, com a crise internacional do petróleo. O Brasil, que vinha sendo um país francamente rodoviário, com uma média de 80% do seu transporte de carga feito por rodovia, viu-se obrigado a repensar a sua política de transporte. Isso porque a inauguração de rodovias de custo elevado e manutenção cara, ao lado da crescente desarticulação de ramais ferroviários, passou a despertar críticas cada vez mais freqüentes.88 Em As estradas da esperança, Santa Inez sinaliza que um dia o trem voltará. Não se trata de ficar chorando e sofrendo com a desativação das ferrovias no Brasil, ou adotar uma postura favorável ou cruciante para as rodovias, mas pensar a integração desses meios de transportes de forma a contribuir com o desenvolvimento do país. Na análise da narrativa de Santa Inez, além de notar a saudade e apego ao trem, vê-se também que este estava sujo, velho e ―doente‖, trafegando para a morte. Percebe-se, ainda, a substituição deste pelo caminhão e o jipe. No diálogo do aleijado com a personagem Franz, obtêm-se as seguintes informações: [...] Se ainda tivesse o trem eu ia ver você todo mês. Mas agora... — Mas agora tem esse Jipe brabo. Se você não se importar de viajar junto desse cão feio. — Eu vou gostar muito de ir lá. Se não for trabalho... — Não é. Eu estou sempre por aqui, por causa dos meus negócios. E a fazenda é quase caminho. O trem ainda existia. Mas era um pouco como o próprio aleijado: Toda uma grandeza de possibilidade contida dentro de uma limitação imposta. O aleijado mesmo comentava: — Esse trem é igual a mim. Ele, que me cortou as pernas, agora tem os trilhos — as pernas dele — cortadas. É um trem aleijado (AEE, p.141 - 142). A associação do personagem aleijado com o trem, que estava com o tráfego limitado, restando apenas os trilhos de Santo Antônio de Jesus a Jequié e funcionando precariamente, de São Roque do Paraguaçu a Santo Antônio, indicava o caminho para a morte e restava somente a esperança. Era uma esperança depositada na possibilidade de estruturar a vida, aguardando, quem sabe um dia, o seu retorno. A presença dos trilhos, nos trechos desativados, ao mesmo tempo em que significava o fim, a saudade e a dor, representava também a existência de um trem que podia ser reativado. É possível imaginar o sofrimento da população, necessitando daquele meio de transporte, vendo os trilhos e sabendo da morte. Talvez, alguém (um prefeito das cidades servidas pelo trem, um engenheiro, o governador) 88 CARLETTO, 1979, p. 261 – 262. 81 tomasse uma atitude para evitar a desativação e revitalizar aquele trem aleijado. Com entusiasmo e paixão, o aleijado, que agora morava em Santo Antônio de Jesus, contou sua vida, falou do trem e escreveu uma carta com ―A mensagem de esperança‖ para um amigo que morava em Jequié: Agora, todo dinheirinho que ganho, vou comprando terras. Porque eu sei que mais dia menos dia, o trem vai voltar. Às vezes, eu até ouço o apito dele, quando estou cortando sola, bordando as caronas das selas. Eu acho que quem tiver juízo vai comprar umas terrinhas e plantar eucalipto. Vai reflorestar. E, de quebra, plantar cajueiros, mangueiras, jaqueiras, que se a gente não aproveitar, os passarinhos aproveitam. O trem, agora, não vai mais até Laje. Aquela parte, que é uma pena, vai morrer, como as outras morreram. Mas um dia o trem voltará. Talvez já não seja para mim. Mas meus filhos viajarão, como eu viajei, conversando com a gente, comprando copos de mingau, rolete de cana... (AEE, p.145 - 146). Quando aparece na narrativa de Santa Inez a alternativa do reflorestamento às margens da ferrovia, imagina-se o desmatamento e subentende-se que o combustível utilizado pelo trem de Nazaré era outro fator de preocupação dos administradores da estrada. ―Eu acho que quem tiver juízo vai comprar umas terrinhas e plantar eucalipto. Vai reflorestar‖ (AEE, p. 145). Em 1947 são adquiridos os terrenos das fazendas ―Bela Floresta 1ª‖, ―Bela Floresta 2ª‖ e do sítio ―Boa Vista‖, situados entre os km 107 e 109 da linha tronco, no município de São Miguel das Matas, com o objetivo de construir o Horto Florestal da EFN. A aquisição destas propriedades, de animais e de ferramentas atingiu a soma de Cr$ 200.000,00 (duzentos mil cruzeiros) e era uma aspiração preconizada desde 1935, para suprir a estrada, que já enfrentava a crise de combustível e dormentes.89 As matas próximas à ferrovia estavam devastadas, porque se fazia o uso da lenha como combustível e também na confecção dos dormentes. Segundo Carletto, ―além de escassa, a lenha já era extraída a mais de 8 léguas de distância da linha. No inverno, o seu transporte, quando não cessava, tornava-se caro e dificílimo‖.90 Josemir Camilo de Melo, referindo-se ao fracasso das Ferrovias Inglesas no Nordeste, argumentou que o combustível importado foi um dos fatores que influenciaram a baixa rentabilidade no tráfego, dificultando o reembolso da taxa de garantia de 7% de juros. Melo explicou: 89 90 Relatório da EFN, referente ao exercício de 1947. Ver p. 6; 13; 14 e 20. CARLETTO, 1979, p. 214. 82 O transporte de combustível da Europa para o Brasil encarecia manter ferrovias nos trópicos, porque envolvia riscos e seguros altos. As próprias retortas de carvão para fabricar a hulha vinham também da Inglaterra. No final do século XIX, a importação deste combustível caiu em 20% e as ferrovias se adaptaram para usar lenha, começando aí, uma grande devastação do meio ambiente. 91 A constituição do Horto Florestal da EFN seria uma iniciativa louvável, se o trem de Nazaré necessitasse, naquele momento, apenas de dormentes e do combustível — a lenha. Mas, os investimentos para restaurar e reequipar a ferrovia foram deslocados para as rodovias, estacionando o trem na história. Entre as ―doenças‖ que ocasionaram ―a morte do trem de Nazaré‖, estão a proibição da exportação do café de terreiro, cultivado por pequenos agricultores do Vale; a crise que esse produto vivenciou a partir de 1930; o péssimo estado de conservação da ferrovia; a concorrência das rodovias, com a introdução do automóvel; a despesa maior que a receita, em decorrência da queda no transporte de cargas; o combustível utilizado – a dificuldade de encontrar lenha nas proximidades da ferrovia; as indenizações, resultantes dos acidentes, pois o trem já estava ―velho e sujo, vivendo fora do horário‖; as enchentes de 1947, 1952 e 1960, nos rios Jaguaripe e Jequiriçá, que causaram prejuízos à estrada; enfim, as políticas de transportes no cenário nacional, que influenciaram no fechamento dessa ferrovia. A partir da Segunda Guerra Mundial, no Brasil, na Europa e no mundo, o trem não representava mais o moderno e o automóvel era o transporte da vez. Porém, As estradas da esperança evidencia o apreço de Santa Inez por este meio de transporte. É explícito o seu desejo e esperança na ―ressurreição‖ da ferrovia, a partir da criação da personagem ―o aleijado‖: ―Mas um dia o trem voltará. Talvez já não seja para mim. Mas meus filhos viajarão, como eu viajei, conversando com a gente, comprando copos de mingau, rolete de cana...‖ (AEE, p. 146). Infere-se que o romancista enfatiza o retorno da linha férrea e ao mesmo tempo sugere que o trem foi desativado porque estava com dificuldade de se locomover. A retirada dos trilhos foi comparada à ausência das pernas da personagem o aleijado, sugerindo que a falta dos membros ao corpo era como aquele meio de transporte para a população, especificamente, a do Vale do Jequiriçá. 91 MELO, 2007, p. 160. 83 CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra As estradas da esperança pode ser caracterizada como o romance da Estrada de Ferro Nazaré, porque é a ferrovia que aparece em primeiro plano. Porém, também pode ser classificado como o romance do cotidiano rural; do cultivo da mandioca; da saudade do trem no Vale do Jequiriçá; das cidades baianas (além das que eram conectadas pela EFN, são citadas também Ilhéus, Itabuna, Vitória da Conquista, Brumado, Caculé e Condéuba); memorialístico, porque Santa Inez cria e reproduz seus enredos (a maioria deles), com base em sua experiência de vida na Bahia. Mesmo tendo morado no Rio de Janeiro e em São Paulo, é de cidades como Jequié, Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Ubaíra, Jequiriçá, Mutuípe, Laje, São Miguel das Matas, Amargosa, Varzedo, Santo Antônio de Jesus e Nazaré, que ele relembrou e localizou suas personagens. O trem funciona como um espaço móvel para a composição de sua narrativa. A Bahia como um espaço que necessitava ser lembrado, descrito, quem sabe, conhecido pelos amigos de São Paulo ou por intelectuais, que debateram o tema ferrovia entre os anos de 1970 e 1982, quando publicou sua obra. Talvez, nada disso o tenha influenciado a produzir o romance As estradas da esperança e o motivo pode ter sido diversão, prazer e a vontade de ser escritor. Com apenas duas obras, Santa Inez contou e cantou a sua terra, sua gente, principalmente, Serra Grande (onde nasceu e cresceu) representada por Serra do meio, primeiro romance publicado, em 1980. Esse escritor de dois livros contribuiu para articular uma discussão envolvendo ficção, representação, história, memória, cotidiano e ferrovia. O objetivo não foi dissertar esses conceitos teoricamente, mas localizá-los na obra As estradas da esperança, com o auxílio das outras fontes citadas: os livros de memórias, os outros textos literários de Santa Inez, algumas fotografias, alguns jornais e os relatórios da EFN. Os trabalhos acadêmicos sobre ferrovia na Bahia e no Brasil, mencionados nesta dissertação, também contribuíram para a descrição e entendimento dos problemas da pesquisa: a representação do cotidiano, da região e da desativação da linha férrea. Tanto o romance quanto os livros de memórias representaram um discurso de modernidade, progresso, utilidade e saudade, referente ao trem. As fotografias, os jornais e relatórios sobre a EFN foram de fundamental importância para situar o recorte temporal (1960-1971), porque a fonte literária é rica em descrições cotidianas, mas não oferece datas, oscilando no tempo. 84 As Estradas da Esperança serviu para abordar questões que outras fontes não permitiriam e para levar a entender que os discursos históricos e literários constroem uma idéia de realidade e nos ajuda a refletir sobre o ofício do historiador. Na literatura, os romancistas têm liberdade para criar personagens e inventar os fatos, além disso, é um discurso que dispõe de maior habilidade para seduzir o leitor e não se compromete diretamente com a veracidade. O pesquisador da história depende do arquivo, deve fazer as citações dos mais variados tipos de fontes usadas na pesquisa, caracterizar seu objeto, situá-lo no tempo e no espaço e apresentar uma escrita atraente. Ao longo da análise do romance As estradas da esperança, o objetivo foi problematizar o cotidiano, a região e a desativação da EFN, com base na trajetória das personagens e nos papéis desenvolvidos, como se fossem pessoas vivas. Muitas vezes estas personagens são reproduzidas de situações reais e ajudam a interpretar a vida do criador. As informações sobre a vida de Santa Inez — ano e onde nasceu, estudou, morou, em que trabalhou, o que leu, publicou — serviram para classificar sua obra como romance memorialístico, por suas vivências na EFN (as viagens no trem), a região (o uso dos nomes reais das cidades) e o tempo que retratou. O título da dissertação é ―Uma viagem histórica pelas estradas da esperança‖ e não ―a‖ viagem, porque muitas outras viagens podem ser feitas, alcançando novas temáticas e problemáticas. Porém, o que foi observado, foi escrito com o objetivo de evidenciar que a obra As estradas da esperança serviu para representar aspectos históricos e memorialísticos da EFN. Se Mad Maria é uma tentativa de reconstrução da história da ferrovia Madeira – Mamoré, sugerindo temáticas e questionamentos, referentes ao meio ambiente amazônico, saúde, corrupção, prostituição, a política nacional no início do século XX, o cotidiano dos trabalhadores, o surgimento da cidade de Porto Velho, em função do trem e uma crítica à modernidade e ao capitalismo, As estradas da esperança representa a memória de Santa Inez. Suas lembranças sobre os modos de viver, os aspectos da economia local e regional, o surgimento, crescimento e desarticulação de um conjunto de cidades baianas, tudo isso, atrelado à Estrada de Ferro Nazaré. Este estudo chega às considerações finais, sinalizando a possibilidade de ampliação da historiografia sobre a implantação e desativação de linhas férreas na Bahia e no Brasil, a partir de discursos literários. 85 FONTES E BIBLIOGRAFIA MEMÓRIAS E ROMANCES ANDRADE, Daria Gláucia Vaz de. Colégio Taylor Egídio: 100 anos (org.). Ed. Eletrônica, 1998. 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Depoimento de Vânia Maria Moura de Santa Inez, Psicóloga, filha de Antônio Leal de Santa Inez, nascida em 06/05/1956, que concedeu a entrevista em 12/12/2009, no seu apartamento, em Salvador – Bahia. LIVROS, ARTIGOS, DISSERTAÇÕES E TESES ABREU, Martha. O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 1830 – 1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: FAPESP, 1999. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2001. ALVES, Isaias. Matas do Sertão de Baixo. Rio de Janeiro, Editora e Publicidade Guanabara, 1967. AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Editora Marco Zero: Anpuh, 1990. ARAÚJO, Émerson Pinto de. Capítulos da História de Jequié. Salvador: EGB Editora, 1997. 262p. BAHIA - Diagnóstico de Municípios Vale do Jequiriçá. Edição SEBRAE. Salvador, Março de 1995. 125p. 89 BAKHATIN, Mikhail. 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MAPA DO VALE DO JEQUIRIÇÁ – DIVISÃO TERRITORIAL (Cidades do Vale que eram servidas pela ferrovia: Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Ubaíra, Jequiriçá, Mutuípe, Laje, Amargosa e São Miguel). SEPLAN – Secretaria do Planejamento do Estado da Bahia (Disponível em: <www.seplan.ba.gov.br/mapa>. Consultado em 08 de agosto de 2010). 94