EQUIPE 178 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Transcrição

EQUIPE 178 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
EQUIPE 178
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
CASO SERAFINA CONEJO GALLO E ADRIANA TIMOR
Vs.
ELIZABETIA
Relatório de Defesa – Representantes das Vítimas
EQUIPE 178
I
EQUIPE 178
ÍNDICE
1. DECLARAÇÃO DOS FATOS............................................................................................1
2. ANÁLISE LEGAL...............................................................................................................2
2.1 Análise quanto ao processo (Questões preliminares de admissibilidade).....................2
2.1.1 Falta de efetividade dos recursos internos........................................................2
2.1.2 Inadequação e ineficácia da ação de inconstitucionalidade............................8
2.2 Análise quanto ao mérito...................................................................................................9
2.2.1 Violação à cultura indígena................................................................................9
2.2.2 Negação do direito de constituir família – discriminação e tratamento
desigualitário ..........................................................................................................................14
2.2.3 Violação do direito à honra e à dignidade.......................................................18
2.2.4 Negação do direito de livre expressão da vontade..........................................21
2.2.5 Teoria do reconhecimento, de Axel Honneth, aplicada ao caso concreto....22
2.2.6 Uma vida de luta pelo reconhecimento............................................................24
3. MEDIDA DE SEGURANÇA............................................................................................27
4. CONCLUSÃO....................................................................................................................29
5. SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA...............................................................................30
II
EQUIPE 178
ÍNDICE DE JUSTIFICATIVAS
1.
LIVROS E DOCUMENTOS LEGAIS
1.1 LIVROS
•
GOMES, Luís Flávio; PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de proteção dos
direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
(Pág. 03)
•
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo, Ed. Martin Claret,
2002. (Pág. 14)
•
HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais.
São Paulo: Ed. 34, 2003 (Págs. 22, 23 e 24)
•
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos
sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Editora Saraiva, 3ª
Edição, 2012. (Pág. 18)
•
Dicionário de Ciências Sociais Alain Birou, Publ. D. Quixote, nº5, Lisboa 1982. (Pág. 25)
1.2 ARTIGO JURÍDICO
•
MORENO, Jamile Coelho. Conceito de minorias e discriminação. (Pág. 24)
1.3 DOCUMENTOS LEGAIS
•
Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), 1988. (Pág. 11)
•
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969:
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 25, Proteção judicial (Pág. 3)
III
EQUIPE 178
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 1.2. Obrigação de respeitar os
direitos (Pág. 15)
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 17. Proteção da família (Pág.
15)
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 24. Igualdade Perante a Lei
(Pág. 17)
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 11. Proteção da honra e da
dignidade (Pág. 18 e 28)
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 13. Liberdade de pensamento e
de expressão. (Pág. 21)
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 5. Direito à integridade pessoal
(Pág. 28)
•
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948
- Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: Artigo VI (Pág. 15)
- Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: Artigo V (Pág. 18)
- Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: Artigo XI (Pág. 28)
•
Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948:
- Declaração Universal dos Direitos Humanos: Artigo II-1 (Pág. 17)
•
Resolução da Organização dos Estados Americanos AG/RES. 1271 (XXIV 0/94) (Pág.
18)
•
Resolução da Organização dos Estados Americanos AG/RES. 2435 (XXXVIII-O/08)
(Pág. 22)
IV
EQUIPE 178
•
Opinião Consultiva OC 11/90, par. 36, da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Págs. 4 e 6)
•
Informe 10/95 da Comissão Interamericana, caso n. 10.580, Equador (Pág. 7)
•
Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos,cde 17 de novembro de 2005
sobre o caso das Crianças e Adolescentes Privados de Liberdade no Complexo do
Tatuapé da FEBEM Vs. Brasil, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Voto
Concordante do Juiz A.A. Cançado Trindade. (Pág. 19 e 20)
2.
JURISPRUDÊNCIA
•
Corte IDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Fundos,
Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C No. 79 (Págs. 12 e 13)
•
Corte IDH. Caso Escher e outros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Fundos, Reparações
e Custas. Sentença de 6 de julho de 2009. Série C No. 200 (Pág. 20)
•
Corte IDH. Caso Tristán Donoso Vs. Panamá. Exceções Preliminares, Fundos,
Reparações e Custas. Sentença de 27 de janeiro de 2009. Série C No. 193 (Pág. 21)
•
Corte IDH. Caso Yatama Vs. Nicarágua. Exceções Preliminares, Fundos, Reparações e
Custas. Sentença de 23 de junho de 2005. Série C No. 127 (Págs. 27)
•
Corte IDH. Caso Fairén Garbi y Solís Corrales Vs. Honduras. Exceções Preliminares.
Sentença de 26 de junho de 1987. Serie C No. 2 (Págs. 4, 5 e 7)
V
EQUIPE 178
1. DECLARAÇÃO DOS FATOS
Elizabetia é uma nação localizada no continente Americano, atualmente um
Estado democrático e soberano. Foi uma colônia europeia durante o século XVI e o
berço da cultura indígena Granti, cujos traços, ainda que de forma tímida, pairam entre
os elisabetanos hodiernamente. Em 28 de novembro de 1963 Serafim Conejo Gallo
nasce no País de Elizabetia, na província elisabetana de Santa Marta, cujas
características são de um lugar eminentemente agrário e com pensamentos
conservadores herdados dos antigos colonizadores europeus pelas elites aristocráticas
locais.
Serafim sempre foi um menino com características e comportamentos
explicitamente dotados de certa feminilidade. Quando a situação foi tomando
proporções maiores, já que o comportamento do menino vinha incomodando muitas
pessoas, as autoridades locais resolveram remover Serafim da província de Santa Marta
e levá-lo para um local de internação para menores abandonados, onde sofreu inúmeras
humilhações e inclusive foi violentado.
Aos 16 anos, então, por não mais suportar a situação desumana a que estava
submetido, Serafim resolve fugir do centro de internação na Virgínia e vai para a cidade
de São Benito, onde assume de vez a sua identidade de gênero, tornando-se mulher
transexual e se prostituindo com o nome de Serafina.
Serafina teve muitas conquistas como mulher transexual, lutou em prol de
benefícios para os transexuais, criando para isso o movimento Mariposa, além de
finalmente conseguir, após muitas humilhações e lutas na sua vida, ser reconhecida
oficialmente como mulher e ter seu nome mudado, para todos os efeitos civis e legais
em geral.
1
EQUIPE 178
Depois de uma série de conquistas e lutas por seus direitos e reconhecimento
como mulher, a senhora Serafina começa a se descobrir melhor, a se esclarecer mais a
respeito dos seus sentimentos, chegando à convicção de que é mulher lésbica. Desde
então começa a ter um relacionamento com a senhora Adriana Timor. Dessa relação
sentimental surge a decisão e o desejo de contrair matrimônio.
Apresentando sua pretensão diante do Estado elizabetano, as senhoras tiveram
seu pedido negado. Assim, em face do insucesso, as senhoras Gallo e Timor
apresentaram, através do Movimento Mariposa, uma petição inicial à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, em 1º de fevereiro de 2012, contra a qual o Estado
expôs seus argumentos de defesa. Em 13 de fevereiro de 2013, a Comissão submeteu o
Caso à apreciação da Corte Interamericana, a qual emitiu uma Resolução incidental,
determinando que seriam analisadas as Exceções Preliminares, e convocando uma
audiência sobre exceções preliminares e, eventualmente, sobre o mérito, reparação e
custos (sucumbência), para maio de 2013.
2. ANÁLISE LEGAL
Em face do Caso e uma vez elencados os trâmites do processo até o atual
estágio, apresentar-se-ão os argumentos favoráveis às autoras.
Indubitavelmente, há, neste caso, diversas violações por parte do Estado não só à
Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), mas também à Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) e a resoluções da Organização dos
Estados Americanos (OEA).
2.1 Análise quanto ao processo (Questões preliminares de admissibilidade)
2.1.1 Falta de efetividade dos recursos internos
2
EQUIPE 178
No que concerne ao esgotamento dos recursos internos, analise-se o que dizem
Galli e Dulitzky, no livro “O Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos
e o direito brasileiro”:
“No tocante à regra do prévio esgotamento de recursos internos, a jurisprudência
da Corte Interamericana estabeleceu a obrigatoriedade de os Estados oferecerem
recursos adequados e efetivos para as vítimas. Por recursos adequados, a Corte
Interamericana estabeleceu que são os recursos idôneos para proteger a situação jurídica
infringida. Por recursos efetivos, a Corte estabeleceu que sejam recursos capazes de
produzir o resultado para que foram concebidos e que responsabilizem as autoridades
responsáveis, sem que representem situação de risco para os interessados pela condução
imparcial pelas mesmas autoridades responsáveis. Desta forma, não basta a existência
dentro do aparato normativo interno de recursos meramente formais, Os recursos
internos devem ser eficazes na reparação das violações de direitos humanos”.
O artigo 25 da Convenção Americana afirma:
Artigo 25. Proteção judicial
“1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso
efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem
seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente
Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando
no exercício de suas funções oficiais.”
Por
recursos
efetivos,
consideram-se
aqueles
capazes
de
proteger
pragmaticamente o direito violado, ou, na interpretação do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, na Opinião Consultiva OC 11/90 (Exceções ao Esgotamento dos
Recursos Internos), par. 36, solicitada pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos: “A Corte considera que, nos casos estabelecidos pela Comissão, são os
3
EQUIPE 178
fatores expostos os que fazem com que os recursos sejam adequados e efetivos, [...], ou
seja, são idôneos para proteger a situação jurídica infringida e capazes de produzir o
resultado para o qual foram concebidos.”
Quanto à não exigência do esgotamento dos recursos internos nos casos em que
tais recursos não forem efetivos, a jurisprudência da Corte IDH, por sua vez, afirma no
Caso Fairén Garbi y Solís Corrales Vs. Honduras, Exceções Preliminares, par. 81, da
Corte Interamericana de Direitos Humanos: “A Comissão [...] disse que não era
exigível o prévio esgotamento dos recursos internos, em caso de absoluta inefetividade
do Poder Judicial”. Também na Opinião Consultiva OC 11/90 (Exceções ao
Esgotamento dos Recursos Internos), par. 34, solicitada pela Comissão Interamericana
de Direitos Humanos: “O artigo I da Convenção, obriga os Estados-partes não somente
a respeitar os direitos e liberdades reconhecidos nela, mas também a garantir o seu
livre e pleno exercício a toda pessoa sujeita à sua jurisdição. A Corte já expressou que
esta disposição contém um dever positivo para os Estados. Deve-se precisar também
que garantir implica a obrigação do Estado de tomar todas as medidas necessárias
para remover os obstáculos que possam existir para que os indivíduos possam desfrutar
dos direitos reconhecidos pela Convenção. Por conseguinte, a tolerância do Estado às
circunstâncias ou condições que impeçam os indivíduos de recorrer aos recursos
internos adequados para proteger os seus direitos, constitui uma violação do artigo
1º(1) da Convenção” (Caso Velásquez Rodríguez, supra 23, parágrafo 68; Caso
Godínez Cruz, supra 23, parágrafo 71 e Caso Fairén Garbi e Solís Corrales, Sentença
de 15 de março de 1989, Série C, n. 6, parágrafo 93).
Logo, diante das considerações de Maria Beatriz Galli e Ariel E. Dulitzky, das
determinações do artigo 25 da Convenção e das citadas determinações jurisprudenciais
4
EQUIPE 178
da Corte IDH, pode-se perceber a falta de efetividade dos recursos disponíveis em
Elizabetia.
As autoras receberam repetidas negativas de seus pedidos, sem que tenha havido
uma análise justa e não-discriminatória por parte dos órgãos competentes. Preferiu-se o
conservadorismo à Justiça. É secular a tradição conservadora da atual gestão do governo
elizabetano. Todavia, a posição particular do grupo em poder não pode nem deve
interferir nas decisões tomadas em relação aos direitos humanos. É esperado que líderes
nacionais não façam cumprir sua própria opinião, mas primem verdadeiramente pela lei
supranacional de proteção aos direitos da pessoa humana.
Não é isso que tem acontecido em Elizabetia no caso Serafina Conejo Gallo e
Adriana Timor. O pedido das duas senhoras de uma autorização para contrair casamento
vagueou das primeiras instâncias administrativas até as apelações com o remédio
constitucional do amparo, e a resposta que recebeu foi unânime em sua negação e
insuficiente em seus argumentos (uma demonstração explícita de “práticas toleradas
pelo Poder Público” com o objetivo de impedir que as demandantes alcançassem sua
pretensão, práticas estas que foram rejeitadas pela Corte na OC 11/90).
Ora, e qual é a “razoabilidade” encontrada na “exclusão de um casal do mesmo
sexo da instituição do matrimônio”? (Autos do Processo, pág. 9, par. 45) Não seriam
estes exemplos das tais “razões fúteis” condenadas pela Corte? Sem dúvida, o suposto
argumento de “preservar a família” acaba traduzindo-se por “manter os moldes
retrógrados e radicais de estrutura familiar”, quando poder-se-ia, em vez disso, optar
pela ampliação do conceito e possibilitar a emergência de novas formas – tão
estruturadas e felizes quanto – de famílias.
As autoras, teoricamente, não esgotaram os recursos internos disponíveis em
Elizabetia. No entanto, esgotou-se para elas a efetividade dos recursos. De nada
5
EQUIPE 178
adiantaria-lhes continuar lutando internamente contra um Estado organizado em todas
as suas instâncias em prol de uma mesma opinião preconceituosa e pré-estabelecida. Por
mais instâncias que houvesse, é nítido para qualquer um que a resposta dada a elas seria
a mesma das instâncias anteriores.
Assim, é incoerente o argumento do Estado de que as peticionárias não
esgotaram os recursos internos, pois ele próprio deu provas de que seus recursos
internos eram inefetivos e ineficazes. Vale lembrar, aqui, que ao Estado cabia a
demonstração de efetividade de seus recursos (Caso Velásquez Rodríguez Vs.
Honduras, Exceções Preliminares, par. 88, da Corte Interamericana de Direitos
Humanos: “Dos princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos resulta
[...] que o Estado que alega o “não esgotamento” tem a seu cargo indicar quais
recursos internos devem esgotar-se e demonstrar sua efetividade.”). Como essa
demonstração não foi feita, subentende-se o reconhecimento tácito da inefetividade dos
recursos por parte do Estado.
Outro ponto importante a ser elencado é o seguinte: embora a “inefetividade dos
recursos” não seja uma das exceções que permite o não esgotamento dos recursos do
artigo 46.2 da Convenção, ela é uma exceção legitimada em decisões e posicionamentos
da Corte IDH, como no Caso Fairén Garbi y Solís Corrales Vs. Honduras, Exceções
Preliminares, par. 83, da Corte Interamericana de Direitos Humanos: “O Tribunal deve
reiterar que, embora o esgotamento dos recursos internos seja um requisito de
admissibilidade perante a Comissão, a determinação de se tais recursos são interpostos
e esgotados ou se o caso está na presença de uma das exceções à aplicabilidade dessa
exigência é uma questão relativa à interpretação ou aplicação da Convenção, como tal,
é da competência do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 62.1 da Convenção.
[...]”
6
EQUIPE 178
Ou seja, compete ao Tribunal resolver se a “inefetividade dos recursos” é ou não
motivo suficiente para desconsiderar que os recursos não foram esgotados (em teoria).
E, como o próprio Sistema Interamericano tem demonstrado, esta tese é não somente
válida e aceitável, como também justa e justificada:
Informe 10/95 da Comissão Interamericana, caso n. 10.580 Equador de 12.09.1995, par.
90: “A inexistência de recursos internos efetivos coloca a vítima em estado indefeso e
explica a proteção internacional. Por isso, quando quem denuncia uma violação aos
direitos humanos aduz que não existem tais recursos ou que são ilusórios, a iniciativa
de solicitar a proteção pode não só estar justificada como também ser urgente.”
Neste sentido, fica provada a validez da admissibilidade, pois a falta de meios
internos idôneos para proteger a situação das autoras caracterizava-lhes urgência de
buscar amparo internacional. Os mecanismos internos mostraram-se insuficientes e
ineficazes e, já aguardando por uma resposta semelhante às anteriores (a qual foi-lhes
confirmada em 16 de maio de 2012), as autoras foram levadas a recorrer à CIDH em 1°
de fevereiro de 2012, como sua única esperança face ao Estado intolerante.
Desta feita, é válida a admissibilidade e é evidente a competência do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos na análise e julgamento deste caso, haja vista a
posição de violação e omissão por parte do Estado de Elizabetia. Fica provado, também,
que o esgotamento formal dos recursos não se deu porque não havia para ele
justificativa material, uma vez que a posição do direito interno era unânime em seu
julgamento, não havendo execução eficaz da Justiça e dos direitos humanos.
2.1.2 Inadequação e ineficácia da ação de inconstitucionalidade
Quanto à Ação de Inconstitucionalidade, alegada pelo Estado como um dos
recursos aos quais as autoras poderiam ter recorrido, observe-se o texto do artigo que
dispõe sobre essa ação na íntegra:
7
EQUIPE 178
Artigo 110 – Constituição Política de Elizabetia: “A ação de inconstitucionalidade é
uma ação cidadã. Pode ser interposta a título pessoal por qualquer cidadão ou cidadã.
Para tanto, é requisito prévio contar com a aprovação da Promotoria de Direitos
Humanos da República. Toda demanda de inconstitucionalidade será apresentada
diretamente à Câmara Constitucional da Corte Suprema de Justiça, e deve-se ajuntar a
ela a autorização outorgada pela Promotoria de Direitos Humanos da República.”
Se o próprio Estado considera “razoável” “excluir um casal de mesmo sexo da
instituição do matrimônio”, quanto mais não o faria a Promotoria de Direitos Humanos
de tal República? É improvável que houvesse aprovação pela Promotoria de Direitos
Humanos da República para uma ação de inconstitucionalidade que visasse à
autorização legal de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Num país que coloca os
princípios ideológicos particulares acima dos princípios dos direitos humanos é
esperado que haja repulsa a qualquer tipo de ação que coloque à prova os valores
instaurados.
Todavia, suponha-se que a Ação de Inconstitucionalidade do artigo 396 do
Código Civil tivesse sido impetrada pelas autoras (Artigo 396: Todo casal composto por
um homem e uma mulher maiores de 18 anos, pode, por mútuo consentimento, contrair
matrimonio. [...]). Se, por um lado, o artigo 396 do Código Civil (lei
infraconstitucional) limita o matrimônio a casais heterossexuais, a própria Constituição
Política de Elizabetia o faz, em outras palavras, quando versa, em seu artigo 85:
Artigo 85 - Constituição Política de Elizabetia: “A família, derivada da união livre
entre um homem e uma mulher, é a unidade fundamental da sociedade e merece a
proteção especial de todas as instituições do Estado”.
Ora, a Constituição mesma viola os direitos humanos ao fazer essa delimitação
do conceito de família, de modo que a Ação de Inconstitucionalidade, se fosse ser
8
EQUIPE 178
proposta, o seria em face da própria Constituição, o que tornaria o processo ainda mais
difícil e improvável de êxito.
A desestruturação estatal é tão mais explícita quando se observam tais
incoerências dentro da própria Carta-Mãe, que se apresenta como uma faca de dois
gumes, garantindo a não-discriminação (Art. 9º), de um lado, mas discriminando por si
mesma, de outro (Art. 85). E o que é pior: discriminando e fazendo exclusões no âmbito
menor e mais necessitado de respeito, que é a família.
Deve-se entender que a questão é muito mais complexa do que as simples
alegações processuais tentam aparentar. Houve desrespeitos inegáveis a direitos
essenciais. Havendo negligência na promoção desses direitos, um Estado nunca se
fortalecerá.
2.2 Análise quanto ao mérito
2.2.1 Violação à cultura indígena
A cultura indígena Granti deixou vários elementos que foram assimilados aos
costumes, tradições, convicções e à própria peculiaridade do povo de Elizabetia. A
Nação elisabetana foi o berço dessa mencionada cultura, cujos traços, ainda que de
forma tímida, pairam entre os elisabetanos hodiernamente.
Trazendo esse fato para o caso em questão, é revelado nos autos que a família
de uma das vítimas (Serafina Conejo Gallo) ainda preservava alguns traços da
civilização Granti: viviam na província de Santa Marta (região provinciana e de
economia predominantemente agrícola), localizada na região sudeste, lugar em que mais
se concentrava o povo de etnia Granti.
Os Granti certamente deixaram sua herança cultural entre a família Conejo
Gallo, influenciando os seus costumes, comportamentos e convicções, já que eles
viviam em uma região ainda marcada por elementos indígenas, trazidos desde a época
9
EQUIPE 178
colonial. Outro fato que confirma a herança cultural dos indígenas recebida pela família
de Serafim é o seguinte trecho, que consta nos autos (Autos do Processo, pág. 5, par.
23): “Como parte do seu argumento, a professora explicou-lhe que o pai e a mãe de
Serafim “não tinham perdido o índio” e toleravam a perversão do comportamento [do
filho]”.
Em relação ao comportamento da vítima, a professora, que não aceitava de
forma alguma o seu comportamento fora dos padrões conservadores da província,
achava estranho que os pais desta nada fizessem para mudá-lo, percebendo, então, que o
problema era cultural: a família de Serafina ainda não tinha abandonado a herança
indígena dos Granti, se posicionando de forma pacífica em relação à feminilidade do
filho.
Para provar a relação do comportamento afeminado de Serafina e a aceitação
pacífica desta na família com a tradição cultural Granti é curioso lembrar os relatos
feitos pelo explorador Fernando de Cáceres, que conviveu em 1505 com o povo Granti,
segundo os quais os rituais entre os indígenas explicitavam nítidas características
transexuais: “os homens escolhidos para a celebração [...] tiravam suas roupas e
demonstravam ser belas índias que a seguir colocavam belas vestimentas. [...] Entravam
depois na dança belas mulheres índias que ao tirar a roupa mostravam serem homens
jovens, filhos dos caciques.” (Autos do Processo, pág.3, par. 9)
A partir desse relato a respeito da questão cultural que envolve o caso, pode-se
chegar, então, ao que é de grande relevância: a violação da cultura indígena, que não só
ocorreu na época colonial em Elizabetia, mas também durante a vida inteira de Serafina.
Já se sabe que a peticionante e sua família herdaram os traços da civilização
Granti, porém, o que não foi explicitamente relatado nos autos é a forma repressora
tomada pelo Estado em relação ao comportamento da vítima durante a sua infância, pois
10
EQUIPE 178
o que se fez foi apenas condená-la de forma violenta, castigando-a com açoites e
humilhando-a perante toda a escola em que estudava.
Que tolerância havia por parte dessa Nação “democrática” em relação à
influência cultural no comportamento da vítima? Certamente o caminho trilhado foi o
da discriminação e intolerância, mostrando que o Estado foi omisso em relação a
conservar a cultura daquele povo. Desta vez, o Tratado que disciplina o respeito à
cultura, especificamente, é o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo
de San Salvador):
Artigo
14
–
“Direito
aos
benefícios
da
cultura
2. Entre as medidas que os Estados-partes neste Protocolo deverão adotar para
assegurar o pleno exercício deste direito, figurarão as necessárias para a conservação,
desenvolvimento e divulgação da ciência, da cultura e da arte.”
Em Sentença proferida em 31 de agosto de 2001 pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos (Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs.
Nicarágua), houve expressa defesa aos direitos culturais (de onde depreende-se que
assim como a cultura Granti, a cultura elizabetana também deve ser protegida), mas
ressalvando que é imprescindível o respeito mútuo entre as culturas, para que ambas
possam sobreviver e conviver:
Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua, par.14, da Corte
Interamericana de Direitos Humanos: “Com efeito, muitas são, em nossos dias, as
sociedades multiculturais, e a atenção devida à diversidade cultural nos parece que
constitui um requisito essencial para assegurar a eficácia das normas de proteção dos
direitos humanos, nos planos nacional e internacional. Do mesmo modo, consideramos
que a invocação das manifestações culturais não pode atentar contra os estandartes
11
EQUIPE 178
universalmente reconhecidos de observância e respeito aos direitos fundamentais da
pessoa humana. Assim, ao mesmo tempo que afirmamos a importância devida à
diversidade cultural, inclusive para o reconhecimento da universalidade dos Direitos
Humanos, rejeitamos com firmeza as distorções do chamado “relativismo” cultural.”
Contudo, não há - nem nunca houve - o exigido respeito por parte do Estado
elizabetano à cultura indígena. Aculturação e exterminação sempre foram lemas
implícitos desse país. Em vez de “conservar” a tradição dos nativos, como requer o
artigo 14 do Protocolo de San Salvador, Elizabetia sempre optou por excluí-la. Em vez
de primar pelo “multiculturalismo” aprovado pela Corte Interamericana (a cujas
Convenções e Decisões está sujeito o país, por ser signatário dos Tratados
Interamericanos), o Estado Elizabetano preferiu impor sua cultura como a única
aceitável.
Ficam evidentes, pois, a má aplicação e as distorções ao relativismo cultural
por parte do Estado de Ellizabetia durante a vida de Serafim. O Estado, deste modo,
sempre subjugando as tradições indígenas, colocou sua própria cultura como superior.
Isso demonstra claramente a deturpação ao relativismo cultural, que apregoa que não
existe cultura alguma superior às demais.
Reiterando o posicionamento da Corte IDH sobre estas violações, observe-se
que a própria Corte reconhece, em trechos de uma decisão, o quanto a cultura indígena
tem sido afetada ao longo da História:
Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua, par.16, da Corte
Interamericana de Direitos Humanos: “Na história dos países que hoje conformam a
América Latina, tem-se proliferado o assédio contra as expressões coletivas do direito
indígena, que violam imediatamente os direitos individuais dos membros das
comunidades [...]. Isto contribuiu para liquidar grande parte dos povos indígenas e
12
EQUIPE 178
levá-los não só a seu desaparecimento cultural, mas também a seu desaparecimento
físico.”
É amplo o histórico de violência contra os costumes, comportamentos e rituais
Granti cometida pelo Estado elizabetano. Todavia, por mais que se tente, não é possível
matar uma cultura se ela continua viva no sangue de seus sucessores étnicos.
A forte ligação entre o papel social e a carga psicológica dos ancestrais Granti e
a posição sexual da Srª. Serafina atesta a necessidade de reconhecer nessa tradição o
caráter intrinsecamente cultural dela. A história de Serafina é, pois uma continuação da
história de seus pais étnicos, no que diz respeito aos traços culturais e axiológicos.
O papel social, no que concerne à identidade de gênero do povo Granti, está
metaforicamente descrito no ritual de adoração à Granti’Itna e é totalmente diverso do
tido como “normal” para a cultural ocidental.
A identidade psicológica e social de Serafina, sem dúvida alguma, pode ser
explicada por meio do sentido atribuído ao ritual da cultura Granti, já que este
demonstra notórias características de identidade de gênero segundo as quais homem e
mulher não são aqueles convencionados e impostos como tais pela sociedade póscolonialismo, mas sim aqueles que naturalmente se veem como um ou outro.
A repetição de tal comportamento e posicionamento por parte de Serafina
decorre do conceito de fato social, o qual apresenta-se como um complexo de
comportamentos típicos, valores e normas sociais, fornecendo um padrão compreensivo
para a conduta dos indivíduos.
O que ocorre, no entanto, é a desconsideração deste papel social na realidade
de Serafina. Ignorando que a conduta da vítima está intimamente ligada a suas raízes
étnico-culturais, o Estado aplica-lhe arbitrariamente um outro conceito: o de Fato
Social, do sociólogo Émile Durkheim.
13
EQUIPE 178
Diferentemente do “Papel Social”, o “Fato Social” é a imposição de
comportamentos baseada na “organização definida”. O próprio Durkheim o define
como “toda maneira de fazer, fixado ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo
uma coerção exterior”. Ou, em outras palavras, o comportamento da sociedade não é
assimilado naturalmente pelo indivíduo (Papel Social), mas é imposto por ela.
Na vida de Serafina esta imposição comportamental, que lhe obrigava a tentar
agir de forma “normal” (entenda-se: socialmente aceita), trouxe as já mencionadas
consequências drásticas. Embora a cultura elizabetana não seja em nada superior à
granti, aquela subjugou esta a seus próprios padrões de “bem” e “mal”; de “bom” e
“ruim”.
Para que essa violenta sequência de exterminação de valores e de aculturação
chegue ao fim, é preciso um posicionamento decisivo por parte da Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
2.2.2 Negação do direito de constituir família – discriminação e tratamento
desigualitário
A “união de fato” entre pessoas do mesmo sexo, injustamente afasta a
possibilidade de este vínculo ser considerado como família, além de ser fator que
impede a adoção de maneira conjunta. Ou seja, em outras palavras, a legislação
elizabetana só reconhece a instituição “família” por meio do matrimônio (Art. 406.
União de fato: “2. A união de fato, conformada por duas pessoas do mesmo sexo. [...]
Essa união não será considerada “família” no sentido do artigo 85 da Constituição, e
não tem o direito à adoção de maneira conjunta”.
Deste modo, única saída para que as autoras conseguissem a concretização de
seu direito à formação de uma família era o matrimônio. Entretanto, o Estado negou às
duas mulheres esse direito, mesmo havendo explicitamente na Declaração Americana
14
EQUIPE 178
dos Direitos e Deveres do Homem artigo que assegura-o, a saber, o artigo VI, segundo o
qual:
“Art. VI: Toda pessoa tem direito a constituir família, elemento fundamental da
sociedade, e a receber proteção para ela.”
Ora, à luz do artigo I da mesma Declaração e do artigo 1.2 da Convenção
Americana de Direitos Humanos, “pessoa” é todo ser humano: “Art. I. Todo ser
humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa.”. Convenção “Art. 1.2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.”
Assim sendo, pois, o direito de constituir família através do instituto matrimônio
é garantido a qualquer ser humano, independentemente do sexo a que pertença.
Reiterando tal garantia, a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu texto,
prescreve: Artigo 17. Proteção da família. “1. A família é o elemento natural e
fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É
reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem
uma família, [...] na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação
estabelecido nesta Convenção.”
O artigo 17.2 é claro ao reconhecer o direito de contrair matrimônio tanto ao
homem quanto à mulher - quaisquer que sejam suas opções -, e não necessariamente ao
casal heterossexual (homem e mulher). O homem tem este direito, a mulher tem este
direito, ou seja, a pessoa o tem.
A lei interna do Estado de Elizabetia, em sua Constituição Política e em seu
Código Civil, reserva este direito somente ao casal composto por homem e mulher
(Constituição - Artigo 85 / Código Civil - Artigo 396.). Tais leis internas, entretanto,
afetam o princípio da não-discriminação contido na Convenção, conforme o qual, “os
Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades
15
EQUIPE 178
nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja
sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo,
idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou
social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.” (Artigo
1.1)
Fica claro que não se justifica o fato de tantos pedidos de reconhecimento de
matrimônio entre pessoas do mesmo sexo terem sido denegados pelo Estado nas
inúmeras tentativas levadas a juízo pelas vítimas do Caso, porque seria possível aceitar
a oficialização do casamento homossexual com base na observância ao princípio da
não-discriminação, contido tanto na Constituição interna, quanto na Convenção
Americana.
Diante disso, percebe-se que o Estado, sendo omisso em relação ao
reconhecimento do casamento homossexual entre Serafina e Adriana, não só trouxe
repercussões para a esfera particular desse caso, mas certamente também chegou a
atingir determinados grupos (gays, lésbicas, transexuais) que precisam de amparo legal
e estatal para que se minimize a marginalização, discriminação e exclusão deles.
Esse mesmo Estado que propaga uma democracia em prol da igualdade e nãodiscriminação age como se esses grupos não necessitassem de apoio.
Depreende-se, portanto, que há ofensa do Estado aos Direitos Humanos, tanto
na lei formal (a legislação), quanto no caso concreto (a negação do pedido das senhoras
Timor e Gallo, ao desconsiderar fator tão importante para elas no que diz respeito ao
reconhecimento legal do casamento homossexual para constituição de família).
Ofensas tais não podem ser aceitas no século XXI, diante das inúmeras
conquistas galgadas ao longo da História. O Estado não pode negar o direito à família,
unidade fundamental da sociedade, por um motivo discriminatório, pois ela (a família)
16
EQUIPE 178
merece proteção especial de todas as instituições estatais. Se não existirem garantias
reais e respeito às diferenças, de nada valerá o proclamado pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948), em seu artigo II-1: “Toda pessoa tem capacidade para
gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição.”
Não fossem bastantes as graves e ilegais atitudes discriminatórias cometidas,
ainda há nítido tratamento desigual às cidadãs.
No artigo 24 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos tem-se
estabelecida a igualdade perante a lei: “Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por
conseguinte têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.”
A igual proteção da lei poderia ser assegurada e aplicada de maneira mais
efetiva por meio do tratamento igual em relação ao casamento, no sentido de que
pessoas do mesmo sexo pudessem ter o direito, assim como os heterossexuais, a contrair
casamento sob as mesmas formalidades e efeitos legais, pois, afinal de contas, todos são
iguais perante a lei e não é admissível a discriminação.
Outrossim, “integram a essência dos direitos humanos” “o direito à igualdade
material, o direito à diferença e o direito ao reconhecimento de identidades”, nas
palavras de Flávia Piovesan, no livro “Direitos Humanos e Justiça Internacional”.
Citando Boaventura de Souza Santos, a mencionada autora relembra: “Temos o direito a
ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes
quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que
reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades.”
17
EQUIPE 178
Com certeza Elizabetia nunca vivenciou na prática o que se conhece por
princípio da alteridade, não sendo ao menos capaz de apreender o outro na plenitude da
sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Há, na verdade, falta de
um mínimo de tolerância em relação ao outro e suas diversidades.
A resolução 1271 (XXIV 0/94) da Organização dos Estados Americanos sobre
não discriminação e tolerância assegura que : “O racismo e a discriminação em suas
distintas formas atentam contra os princípios e práticas da democracia como forma de
vida e de governo e, em definitivo, perseguem sua destruição.”
2.2.3 Violação do direito à honra e à dignidade
O matrimônio e a constituição de família são direitos, como visto,
interamericanamente assegurados. É essencial, para a promoção dos direitos humanos,
que não haja violações a estes direitos, uma vez que “toda pessoa tem direito à
proteção da lei contra os ataques abusivos à sua honra, à sua reputação e à sua vida
particular e familiar” (artigo V – Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem). Se a própria lei estatal ataca abusivamente os direitos, compete a um órgão
superior ao Estado protegê-los.
No que concerne à proteção da Honra e da Dignidade, especificamente, está
estabelecido no artigo 11 da Convenção: “Toda pessoa tem direito ao respeito de sua
honra e ao reconhecimento de sua dignidade”. A respeito da dignidade, é de suma
importância lembrar o Voto Concordante do juiz A.A. Cançado Trindade: Caso das
Crianças e Adolescentes Privados de Liberdade no Complexo do Tatuapé da FEBEM
Vs. Brasil, par. 11, da Corte Interamericana de Direitos Humanos: “[...] Encontra-se a
concepção kantiana da pessoa humana como um fim em si mesmo, que abarca
naturalmente as crianças, ou seja, todos os seres humanos independentemente das
limitações de sua capacidade jurídica (de exercício). Tal desenvolvimento é guiado
18
EQUIPE 178
pelo
princípio
fundamental
do
respeito
à
dignidade
da
pessoa
humana,
independentemente de sua condição existencial.”
A finalidade de se trazer o caso acima citado é delinear a importância que deve
ser dada à tutela da dignidade da pessoa humana de forma irrestrita, ou seja, para todos,
independentemente de seu posicionamento sexual (para o caso contencioso em
discussão) ou de condições de capacidade de gozo do direito (para o caso acima
mencionado).
O que se pretende explicitar é que o princípio fundamental do respeito à
dignidade da pessoa humana deve ser aplicado incondicionalmente, sem haver
discriminação em face às condições existenciais dos indivíduos. Em outras palavras:
seja criança ou adulto, homossexual ou heterossexual, pobre ou rico, negro ou branco,
enfim, em relação a todos, os direitos fundamentais da pessoa humana devem ser
assegurados, pois os Direitos Humanos existem em benefício do ser humano enquanto
pessoa, não em relação ao papel social que esta exerce na sociedade.
O que necessariamente deve haver é a tutela erga omnes (para todos) dos
direitos da pessoa humana, proteção esta que deve ser proporcionada pelo poder estataljurisdicional, segundo defende Cançado Trindade, no Voto Concordante do caso
supracitado: Caso das Crianças e Adolescentes Privados de Liberdade no Complexo do
Tatuapé da FEBEM Vs. Brasil, par. 22, da Corte Interamericana de Direitos Humanos:
“Já havia eu advertido para a premente necessidade da promoção do desenvolvimento
doutrinal e jurisprudencial do regime jurídico das obrigações erga omnes de proteção
dos direitos da pessoa humana”.
De forma complementar a isto, ressalve-se que a pretensão afirmada por
Serafina e Adriana vai além da mera permissão para contrair casamento. O que está por
19
EQUIPE 178
trás desse pedido ao Estado é, juntamente com a busca por reconhecimento da dignidade
inerente à pessoa humana, a luta para que seja respeitada a honra destas mulheres.
Quando se fala em respeito à honra, é importante lembrar que esta mostra-se de
duas formas diferentes, a saber, a honra objetiva (como a sociedade vê o indivíduo) e a
honra subjetiva (como realmente o ser humano se enxerga), ou, nos termos da Sentença
proferida pela Corte IDH para o Caso Escher e outros Vs. Brasil, de 06 de julho de
2009, par. 117, “reputação” e “honra”: Caso Escher e outros Vs. Brasil, par. 117, da
Corte Interamericana de Direitos Humanos: “Por último, o artigo 11 da Convenção
reconhece que toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra; proíbe qualquer
ataque ilegal contra a honra e reputação e impõe aos Estados o dever de oferecer a
proteção da lei contra tais ataques. Em termos gerais, o direito à honra se relaciona
com a autoestima e valia própria, enquanto a reputação se refere à opinião que outros
têm de uma pessoa”.
A mesma garantia de respeito tanto à honra quanto à reputação é reafirmada na
Sentença do Caso Tristán Donoso Vs. Panamá, par. 57, da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (parágrafo de texto/redação igual ao supracitado).
De tais definições percebe-se que tanto a honra (ou honra subjetiva) quanto a
reputação (honra objetiva) de Serafina foram maculadas. A primeira foi violada pelo
fato de não ter sido dada à autora a possibilidade de assumir e viver o seu gênero
psicológico, o que causa profundos traumas pessoais de autoaceitação. A segunda
mácula à honra é devida ao desrespeito explícito, pela sociedade de modo geral, diante
de seu posicionamento diferente e minoritário (homo e transexual).
Fica clara, então, a omissão estatal em relação à garantia da tutela da honra e
da dignidade da pessoa humana. A triste conclusão desta postura estatal e social é a
seguinte: o Estado e a sociedade elizabetanas não estiveram presentes nos momentos em
20
EQUIPE 178
que Serafina deles precisava (fica clara a omissão) e, nos instantes em que eles agem na
vida dela, é para negar direitos e inclusões (ações omissivas).
2.2.4 Negação do direito de livre expressão da vontade
Outro direito muito importante para este caso e perante o qual Elizabetia é um
tanto negligente é o da liberdade de pensamento e de expressão, estabelecido no artigo
13 da Convenção Interamericana:
“1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão [...]”
Ora, se o Estado assegura esse direito, como é que se pode admitir que ele o
arranque arbitrariamente dos indivíduos que, expressando livremente sua vontade,
almejam a união homoafetiva? Isso não só fere o princípio da liberdade de pensamento
e de expressão, como também deturpa o princípio da identidade de gênero, o qual todo
ser humano tem direito a exercer.
Em relação a isso, é importante salientar que essa conduta estatal
discriminatória não é muito diferente do que os colonizadores fizeram, na época em que
Elizabetia era colônia europeia, com a cultura indígena Granti, arbitrariamente
massacrada e reprimida pelos europeus, simplesmente porque estes a consideravam
inapropriada para os seus padrões e interesses.
O princípio da identidade de gênero entra em conflito com a forma
conservadora com que o Estado vem defendendo a proteção à família.
A partir do momento em que é negado o reconhecimento da união
homoafetiva, por causa dos conservadorismos intrínsecos às autoridades estatais,
percebe-se esse entrave, pois o modo como o Estado preserva as instituições familiares
arcaicas gera um óbice para que os indivíduos consigam autoafirmar sua identidade de
gênero.
21
EQUIPE 178
Ora, se a noção de família no mundo pós- moderno em que vivemos hoje já
está bastante transformada, não existindo mais o paradigma da família nuclear, é um
tanto retrógrado esse posicionamento estatal que não acompanha a evolução da
sociedade.
A Organização dos Estados Americanos, no que diz respeito à orientação
sexual, estabeleceu resolução sobre Direitos Humanos, orientação sexual e identidade
de gênero, fixando dispositivos que expressam a necessidade de se tutelar tais bens
jurídicos. Na resolução AG/RES. 2435 (XXXVIII-O/08), assegura-se: “Expressar
preocupação com a violência e violações de direitos humanos relacionados, cometidos
contra indivíduos por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero”. O
Estado, que sequer expressa essa preocupação, mostra-se ainda mais ausente na
concretização do que estabelece essa resolução.
O ponto de partida para se atingir essa tutela ao bem jurídico dos direitos
humanos de minorias sexuais se daria com a possibilidade de se reconhecer legalmente
a contração de matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, o que seria um meio para as
vítimas (Serafina e Adriana) terem acesso a um direito fundamental: a família.
2.2.5 Teoria do reconhecimento, de Axel Honneth, aplicada ao caso concreto
Delineadas as sequências de violações aos direitos humanos a que estava
submetida a vítima, percebe-se que esta foi exposta a variadas formas de degradação da
sua dignidade. Essas formas de desrespeito social se revelam em três dimensões,
segundo a teoria do reconhecimento de Axel Honneth, que são elas: a esfera do amor,
do direito e da solidariedade.
Começando pela primeira forma de reconhecimento, a do amor, é notório que
ela foi arrancada de Serafina pela arbitrariedade do Estado em dois momentos: o
primeiro se deu quando ela foi tirada do seio e proteção da sua família e levada para um
22
EQUIPE 178
centro de menores abandonados; o segundo se deu a partir do momento em que as
autoridades estatais violaram mais uma vez o direito à família da vítima, não
reconhecendo o casamento desta com a sua companheira, o que, segundo Honnet, gera
um não- reconhecimento primário, da afetividade em si, pois “é nas relações afetivas de
reconhecimento da família que os indivíduos são reconhecidos como seres carentes, ou
como podemos afirmar, é nas relações primárias que as pessoas vivem as experiências
do amor e da amizade.”
A dimensão jurídica caracteriza-se, segundo Honnet, pela “relação cognitivoformal de reconhecimento do direito”, em que as pessoas se identificam como
indivíduos dotados de direitos, ou pessoas de direito. Dito isto, em relação ao
reconhecimento do direito, no caso concreto, este certamente não foi concretizado, pois
Serafina não teve sequer chegou a um efetivo esgotamento de recursos, que dirá ao real
reconhecimento dos seus direitos como pessoa humana, que se materializariam por meio
de um justo trâmite legal. O Estado nega a esfera de reconhecimento jurídico à vítima.
No que concerne à terceira esfera do reconhecimento, a da solidariedade, que
trata do igual sentimento de honra e dignidade, bem se sabe, segundo os relatos do
mérito, que a vítima teve seus direitos à honra e à dignidade violados. Com tudo isso,
será mesmo que se pode afirmar que Serafina se sentiu e ainda se sente honrada pelo
Estado, igualmente aos demais indivíduos que seguem seu papel social de gênero
“normal”?
O ideal de solidariedade certamente não impera no Estado elisabetano, pois
solidário este seria se reconhecesse os grupos de minorias sexuais, apreendendo estes no
auto-respeito, no reconhecimento dos seus valores e da igualdade em honra e dignidade.
O menosprezo dos elisabetanos em relação às minorias sexuais gera a perda de estas
terem a “possibilidade de entender a si próprio como um ser estimado por suas
23
EQUIPE 178
propriedades e capacidades características” (Honnet). Sem essa possibilidade um
transexual se sente digno da sua existência como pessoa? Certamente não...
2.2.6 Uma vida de luta pelo reconhecimento
Serafina passou a sua vida inteira tendo seus direitos Humanos, Culturais,
Sociais e Econômicos violados. É fundamental, pois, explicitar que Serafina pertencia a
diferentes grupos minoritários, cumulativamente descendente de povos indígenas
(minoria étnica); membro de classe economicamente desfavorecida (minoria econômica
e social); separada do núcleo familiar e impedida de ter seu pleno desenvolvimento
(minoria no sentido sócio-psicológico); incluída entre os que receberam pouca educação
formal (minoria no sentido intelectual); transsexual (minoria sexual/de identidade de
gênero e cultural).
Lembrando que o termo “minoria”, aqui, não se refere a número, mas a direitos
assegurados. Jamile Coelho Moreno, em seu artigo intitulado “Conceito de Minorias e
Discriminação”, conceitua à luz da Antropologia o termo “minorias”: “No aspecto
antropológico, a ênfase é dada ao conteúdo qualitativo, referindo-se aos subgrupos
marginalizados, ou seja, minimizados socialmente no contexto nacional, podendo,
inclusive, constituir uma maioria em termos quantitativos. Dessa forma, para ser objeto
de tutela internacional, a minoria deve, necessariamente, ser caracterizada pela posição
de não dominância que ocupa no âmbito do Estado em que vive.”
O Dicionário de Ciências Sociais Alain Birou, por sua vez, versa: “Numa
sociedade global, uma minoria é uma sociedade particular caracterizada por aspirar a
um modo de viver próprio que a distingue do conjunto e que, de certo modo, a põe à
parte”. Neste esteio, entendendo a condição múltipla de marginalização a que a Srª.
Serafina foi submetida durante toda a sua vida, analise-se em que grau a
responsabilidade por tal exclusão é do Estado.
24
EQUIPE 178
Primeiramente, no que tange à garantia étnico-cultural, é notório que o Estado
violou-a quando não reconheceu nos comportamentos da vítima (descendente da
civilização Granti) aspectos peculiares à cultura indígena Granti, que deveriam ser
tutelados pelo Direito e pela sociedade.
Quanto ao desfavorecimento financeiro, não se pode falar apenas numa questão
meramente econômica, mas precipuamente social. A região geográfica em que viviam
Serafina e sua família é de economia não muito desenvolvida, baseada na agricultura e
com índices de desenvolvimento muito baixos, o que trouxe como consequência uma
população segregada, com acentuadas desigualdades econômicas e sociais.
Contudo, estas desigualdades não decorrem de causas geográficas ou da
organização histórica daquela economia, mas da omissão do Estado em tentar mudar
este quadro, ou seja, o Estado não enxerga as necessidades econômicas das populações
desfavorecidas, negando-se a efetivar políticas públicas de melhoria das condições,
mantendo-as na situação de marginalizadas. No caso concreto, isto denota uma omissão
estatal frente às condições econômicas desfavoráveis da vítima e de sua família.
No que concerne às garantias de pleno desenvolvimento psicológico e
emocional, houve um desrespeito inadmissível, pois o Estado tirou a vítima do seio da
sua família sem que esta consentisse, levando-a para um centro de menores
abandonados, onde deixou-a desprotegida, desamparada e sem os cuidados afetivos que
só se encontram no lar. No centro de menores abandonados em que foi deixada,
Serafina foi submetida a todo o tipo de violência, o que entravou seu pleno
desenvolvimento psicológico e emocional, trazendo prejuízos a sua integridade como
pessoa humana.
25
EQUIPE 178
Ao afastá-la de casa, retirou-se-lhe também o acesso à escola, tendo, pois, o
Estado negado à Srª Serafina a educação formal, o que também constitui um fator de
marginalização e não dominância.
E, por fim, Serafina teve sua identidade cultural e pessoal sempre posta à prova,
além de ter tido denegado o direito à família, dada a falta de prestação jurídica para
reconhecer o casamento entre as peticionantes; logo o Estado omitiu-se a aceitar
completamente a identidade de gênero de Serafina, não providenciando os meios para
que ela pudesse ser socialmente aceita, acrescido o agravante de o Estado não ter
prestado uma tutela jurisdicional justa e eficaz.
Some-se a todos esses atos comissivos a posição de desprezo do governo quanto
à liberdade de expressão da vítima, sua dignidade humana e a clara violação ao
princípio da não- discriminação. Contra todos esses obstáculos lutou Serafina a sua vida
inteira, e, para piorar a situação, a vítima não consegue ter ao menos a tutela jurídica
dos seus Direitos Humanos. Fica claro o desamparo estatal frente às violações à pessoa
humana de Serafina: minoria étnica, econômica, social, sexual e cultural, além
prejudicada psicológico e intelectualmente.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, atenta a situações em que o
Estado não cuida de seus grupos minoritários, já reconheceu que este tipo de omissão
configura-se como ofensa não a um, mas a vários direitos. No voto concorrente do Juiz
Sérgio Garcia Ramirez à Sentença do Caso Yatama Vs. Nicarágua, par. 5, da CIDH:
“[...] A Corte tem estado em casos que envolvem membros de grupos humanos
minoritários - geralmente comunidades indígenas e étnicas - presentes em várias
sociedades nacionais – em que a reflexão costuma adquirir mais ênfase na análise de
fatores de eliminação, exclusão, marginalização ou de "contenção". Se trata de
expressões ou aspectos da violação de direitos, exercidos com intensidade variável.
26
EQUIPE 178
Identificam-se na mesma linha de conduta e expressam diferentes pontos de processos
históricos em que estão inseridos. Têm características específicas e envolvem uma
violação ou risco iminente de violação dos princípios de igualdade e nãodiscriminação, projetado em diversas áreas da vida social. Se traduzem na infração de
numerosos direitos.”
3. MEDIDA DE SEGURANÇA
Devido ao estado de saúde da senhora Adriana Timor, tornou-se ainda mais
urgente a necessidade de concessão da autorização para que as autoras possam contrair
matrimônio. Eis a causa pela qual foi interposta a presente Medida de Segurança.
Como exposto nos autos, a senhora Adriana Timor está passando por um quadro
de hemorragia interna, devida à ruptura de um aneurisma cerebral congênito, segundo
laudos médicos. Para que ela sobreviva sem sequelas como a Amnésia Anterógrada e
outros traumas, faz-se necessária a realização de uma cirurgia de emergência. Tal
cirurgia, contudo, só pode ser feita se houver uma autorização por parte dos parentes ou
do cônjuge. Diante da ausência daqueles, só resta à senhora Timor a chance de que a
senhora Gallo assine a autorização, sendo preciso, para tanto, que haja o matrimônio
entre elas.
Entram em questão, aqui, outros direitos além do já exposto direito de contrair
matrimônio, como por exemplo, o Direito à integridade pessoal, disposto no artigo 5º da
Convenção Americana: “1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade
física, psíquica e moral”.
Caso não faça a cirurgia, dizem as análises médicas, a senhora Adriana Timor
tem grandes chances de sofrer de Amnésia Anterógrada. Para que seja respeitada sua
integridade física, psíquica e moral é imprescindível que a cirurgia seja realizada.
27
EQUIPE 178
Não se trata de um objeto, que pode ordinariamente ser danificado. Fala-se de
uma vida, com identidade, com história, com posicionamentos em relação ao mundo e a
si mesma, que, além de assegurada, deve ser integralmente protegida. Traumas
psíquicos como a amnésia anterógrada são uma forte violação a esse direito à
integridade.
Ademais, que dignidade teria uma mulher que, por causa de omissão cirúrgica,
perdeu sua história? Viver sem memórias seria o equivalente a não viver. As marcas de
suas conquistas seriam apagadas para atender às vontades arbitrárias de um governo. A
cirurgia, portanto, constitui muito mais do que um mero procedimento médico. Ela é a
forma de proteger a dignidade de pessoa humana da Srª. Timor, a qual é garantida pelo
artigo 11 da Convenção (Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade – citado na pág. 18
deste Memorial)
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem completa:
Artigo XI. “Toda pessoa tem direito a que sua saúde seja resguardada por medidas
sanitárias e sociais relativas à alimentação, roupas, habitação e cuidados médicos
correspondentes ao nível permitido pelos recursos públicos e os da coletividade.”
Como é possível oferecer à senhora Adriana Timor a melhor assistência médica,
é isso que deve ser feito. Não basta continuar monitorando o quadro clínico da paciente
– entenda-se por isso: assistindo à morte gradativa da Pessoa Adriana Timor. Urge a
necessidade de tratá-la, de fazer a cirurgia e, assim, obter os bons frutos que dela
possivelmente virão, a saber, a recuperação total da enferma.
Se dar a autorização para contrair matrimônio às senhoras Adriana Timor e
Serafina Conejo Gallo já era algo indispensável para o cumprimento e eficácia da
justiça, muito mais o é diante do quadro de saúde apresentado por uma das senhoras.
28
EQUIPE 178
O matrimônio entre as duas é, mais do que nunca, necessidade de fato e de
direito.
4. CONCLUSÃO
O que se pode inferir depois de citados os fatos do caso e os motivos de direito
pelos quais o reconhecimento da união homoafetiva é importante, não só para o
benefício das minorias sexuais, mas também para o fortalecimento de um Estado
democrático e pluralista, é que, apesar do reconhecimento da universalidade dos direitos
humanos continuam a ocorrer e a persistir atos de discriminação, intolerância e
marginalização de grupos minoritários, o que ameaça a dignidade, convivência e
respeito que deve existir entre indivíduos, grupos e nações.
Assim, deve haver uma relação em que o Estado assegura aos indivíduos a não
violação dos seus direitos humanos e fundamentais, proibindo ingerências abusivas ou
arbitrárias na vida privada de cada indivíduo, sendo as ofensas contra a sua honra ou
reputação totalmente rechaçadas.
O caso em discussão aponta para todas essas questões e a legalização do
casamento entre pessoas do mesmo sexo envolve muito mais do que a mera garantia de
um direito, engloba também o fortalecimento da democracia do Estado por meio da
concretização dos direitos humanos, assegurados através de tratados internacionais, bem
como a legitimação do poder estatal, o que seria até um benefício para a nação de
Elizabetia.
Em suma, impossibilitadas de lutar com suas próprias forças e desiludidas
quanto à justiça de sua pátria, a senhora Adriana Timor e sua companheira, a senhora
Serafina Gallo, confiam, agora, unicamente na Justiça Internacional, acreditando que
nela encontrarão resolução para a grave trajetória de desrespeito e violação a direitos
que vêm enfrentando.
29
EQUIPE 178
5. SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA
Depois de expostos os fatos do caso Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor v.
Elizabetia, bem como os motivos de direito que precisam ser reconhecidos pelo Estado,
pede-se o deferimento da medida provisória exigida pelo movimento Mariposa a fim de
que se permita que Serafina possa autorizar a cirurgia de sua companheira Adriana,
como se desta fosse cônjuge.
Além disso, solicita-se a autenticação e legalização do casamento para as
partes-vítimas, que há muito têm lutado por esse direito, levando sempre denegações
por parte das autoridades elisabetanas.
Além do reconhecimento do direito à oficialização do casamento entre as
partes, solicita-se que o Estado indenize estas, reparando-as nos danos à sua dignidade,
honra e integridade pessoal.
30