Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano
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Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano
Antonio Quinet Maria Angélica Peixoto Nildo Viana Raimundo Lima Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano Antonio Quinet Maria Angélica Peixoto Nildo Viana Raymundo Lima Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano Edições Germinal © Todos os Direitos Reservados para esta edição à Edições Germinal Capa: Nildo Viana Edições Germinal Goiânia – Goiás 2002 Edições Germinal http://www.edicoesgerminal.hpg.com.br/ [email protected] Caixa Postal 10006 CEP 74025-970 Goiânia - Goiás Índice Apresentação 07 Universo Psíquico e Reprodução do Capital Nildo Viana 09 Normalidade, Excepcionalidade e Capitalismo Maria Angélica Peixoto 25 A Ciência Psiquiátrica nos Discursos da Contemporaneidade Antonio Quinet 31 Crítica do Gozo Capitalista Raymundo Lima 39 Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo Nildo Viana 43 As Novas Formas do Sintoma na Medicina Antonio Quinet 61 O Significado do Natal Nildo Viana 68 O Tempo da Saturação Raymundo Lima 73 Psicanálise dos Filmes de Terror Nildo Viana 76 Sobre os Autores: Antônio Quinet – Psiquiatra, psicanalista, Doutor em Filosofia pela Universidade Paris VIII, membro da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano, professor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, autor de As 4+1 Condições da Análise (Rio de Janeiro, Jorge Zahar), Teoria e Clínica da Psicose (Forense Universitária), A Descoberta do Inconsciente – Do Desejo ao Sintoma (Rio de Janeiro, Jorge Zahar) e Um Olhar a Mais – Ver e Ser visto na Psicanálise (Rio de Janeiro, Jorge Zahar). Maria Angélica Peixoto – Socióloga, Especialista em Aprendizagem e Diferenças/UFG; Mestre em Sociologia/UnB; Professora da Universidade Católica de Goiás; Autora do Livro Inclusão ou Exclusão? O Dilema da Educação Especial (Goiânia, Edições Germinal, 2002) e de artigos em revistas e coletâneas. Nildo Viana – Graduado em Ciências Sociais, Especialista e Mestre em Filosofia, Mestre em Sociologia/UnB; Doutor em Sociologia/UnB. Professor da Universidade Estadual de Goiás e autor de diversos artigos e livros, entre os quais Escritos Metodológicos de Marx (Goiânia, Edições Germinal, 1998/2001); A Questão da Causalidade nas Ciências Sociais (Goiânia, Edições Germinal, 2001); A Filosofia e Sua Sombra (Goiânia, Edições Germinal, 2000); Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico (Goiânia, Edições Germinal, 2002); Violência Urbana: A Cidade Como Espaço Gerador de Violência (Goiânia, Edições Germinal, 2002). Raymundo Lima – Graduado em Psicologia em 1980, Mestre em Psicologia Escolar (1985). Professor do Depto. de Fundamentos de Educação, na área de Metodologia e Técnica de Pesquisa, da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente cursa o Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Segue a linha de pesquisa Pensamento em Psicanálise, licenciado da Biblioteca Freudiana de Curitiba – Centro de Psicanálise. Em Maringá, é fundador do grupo Ato: Transmissão em Psicanálise, onde também escreve, mensalmente, assuntos sobre Psicanálise, Educação e Sociedade no jornal local (Maringá Missão – da Arquidiocese) e no Site: www.espacoacademico.com.br Apresentação O mundo contemporâneo traz a marca do existente em crise e do novo existente em germe, mas ainda-não-existente. Existe uma crise? Na verdade, a crise apenas nos ronda, está esboçada. Sabemos dela pelos sinais que nos envia. Os sinais da crise apontam para a necessidade de repensar a sociedade existente, repensar o capitalismo, que muitos haviam falado do seu triunfo definitivo e de sua insuperabilidade. Mas pensar hoje o capitalismo significa pensar não só o modo de produção capitalista e seu desenvolvimento mas também seu cotidiano, sua reprodução, suas contradições, suas minúcias, seus sinais e sintomas. Daí a importância dos artigos aqui presentes, abordando tais elementos e realizando uma avaliação do mundo em que vivemos. Mas que sinais são estes? Os sinais da crise, que nos ronda, podem ser vistos no processo de produção, de distribuição, de reprodução do capitalismo e no nosso cotidiano. A destruição ambiental em escala nunca vista antes na história da humanidade começa a mostrar seus efeitos nefastos, sendo um dos sinais do qual falamos. Apesar das denúncias da destruição ambiental e dos seus efeitos concretos sobre parte da população, nada se faz para impedir a deterioração geral do meio ambiente, demonstrando que a racionalidade do capitalismo gera a irracionalidade dos seres humanos, isto é, a dinâmica do capitalismo produz seres humanos que realizam sua autodestruição ou deixam que outros o façam sem agir e lutar contra isto. A falta de percepção da realidade, onde os seres humanos se refugiam no mundo imaginário, seja o da virtualidade e das ilusões da informática, seja no mundo das drogas ou das finanças, é apenas outro sinal de uma sociedade que se deteriora ao transformar o artificial em mediação geral das relações sociais, o que faz os indivíduos não darem mais conta de distinguir entre o real e o imaginário, entre a determinação e o determinado. Os problemas psíquicos (que recebem os nomes da moda, de acordo com a classificação dos especialistas, produtores e reprodutores do mercado consumidor composto pelos portadores de tais problemas, consumidores de remédios, terapias, psicocirurgias etc.) assolam os seres humanos, condenados ao trabalho alienado, ao lazer alienado, ao mundo generalizado da alienação, da burocratização e mercantilização das relações sociais. Outros sinais estão na nossa frente, basta vermos o crescimento da violência criminal, o aumento da miséria e do desemprego, as dificuldades de reprodução de países capitalistas subordinados, o fortalecimento da extremadireita (fascismo e neonazismo) e o ressurgimento das buscas de alternativas e do esquerdismo, a ameaça de guerra, o crescimento de seitas religiosas e do extremismo religioso, a evaporação da estabilidade social, a nova configuração da organização do trabalho e das relações de trabalho marcadas pelo aumento da exploração e uso de “métodos secundários de exploração capitalista”, a supremacia do neoliberalismo e da ideologia do mercado enquanto regulador absoluto das relações sociais. Milhares de outros sinais do tempo poderiam ser colocados, mas bastam estes para se ver que algo está acontecendo e que o resultado deste processo poderá ser o caos ou uma nova sociedade. Como explicar estes sinais? A psicanálise assume um papel importante para explicar alguns destes sinais. Ela consegue revelar o que muitas ideologias ocultam, inclusive a irracionalidade das ações humanas num mundo destrutivo, ou melhor, auto-destrutivo. Assim, os textos aqui presentes apontam para uma melhor compreensão de aspectos do capitalismo e do cotidiano através de um conjunto de artigos e análises que bebem na fonte da psicanálise, através de uma pluralidade de contribuições. No artigo Universo Psíquico e Reprodução do Capital temos uma visão geral do modo de produção capitalista e seus efeitos sobre a mentalidade dos indivíduos. Já em Normalidade, Excepcionalidade e Capitalismo temos uma visão que coloca em questão a idéia de normalidade e a produção capitalista de “normais” e “anormais”, bem como dos efeitos sobre os “excepcionais”. Em A Ciência Psiquiátrica e Os Discursos da Contemporaneidade temos a relação instituída entre o discurso capitalista e o discurso psiquiátrico, revelando as fontes da ideologia científica nesta área do saber. Em Crítica ao Gozo Capitalista temos a análise de como o capitalismo cria um gozo artificial, consumista, e a visão do seu caráter ilusório. Os demais artigos tratam de temáticas do cotidiano de forma crítica: Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo aborda estes seres das revistas em quadrinhos como expressão dos valores dominantes e ao mesmo tempo do desejo coletivo de liberdade, revelando seu caráter contraditório; As Novas Formas de Sintoma na Medicina mostra a relação entre medicina e capitalismo, mostrando elementos nem sempre perceptíveis em tal relação; O Significado do Natal mostra a mercantilização do natal e no seu efeito de produção de desejo inautêntico e de pseudestesia coletiva de alegria; O Tempo da Saturação também aborda a questão da mercantilização do natal e o relaciona com o tempo e sua percepção; Psicanálise dos Filmes de Terror busca descobrir a dinâmica de produção destes filmes, relacionando-os com o psiquismo de seus produtores. Enfim, um conjunto de artigos que nos ajudam a pensar o cotidiano e o capitalismo a partir da contribuição teórica da psicanálise, valendo-se de suas correntes culturalista, lacaniana e freudo-marxista. Universo Psíquico e Reprodução do Capital Nildo Viana “O coração faz revoluções, a cabeça reformas; a cabeça põe as coisas em posição, o coração põenas em movimento. Mas só onde existe movimento, efervescência, paixão, sangue, sensibilidade, aí reside também o espírito.” Ludwig Feuerbach A sociedade capitalista se fundamenta na exploração e alienação de milhões de seres humanos. No entanto, tal sociedade vem se reproduzindo durante séculos. Sem dúvida, existe aqueles que resistem, lutam. As lutas operárias do século 19 e 20 demonstraram que existe um potencial revolucionário adormecido que em momentos de crise despertam. No entanto, a reprodução do capitalismo é o cotidiano, o permanente. Quais são os elementos que permitem a reprodução da dominação do capital? Existem vários elementos, mas aqui iremos destacar o universo psíquico, especialmente a mentalidade, como um dos mais importantes destes elementos. Obviamente que o conceito de mentalidade está relacionado com outros conceitos, tais como os de inconsciente, repressão, sociabilidade, entre outros, pois aqui se trata de pensar a reprodução do capital a partir de uma análise marxista, assimilando a contribuição da psicanálise, o que nos leva a não isolar – o que seria um procedimento ideológico – os aspectos da realidade, que estão inseridos numa totalidade concreta. Assim, iremos analisar a relação entre universo psíquico e reprodução do capital a partir das contribuições de autores como Freud, Fromm, Marcuse, entre outros. Freud e Marcuse fornecem elementos teóricos que nos ajudam a compreender o universo psíquico. O conceito freudiano de “aparelho mental” é fundamental: “Ao longo dos vários estágios da teoria de Freud, o aparelho mental aparece-nos como uma união dinâmica de opostos: do inconsciente e das estruturas conscientes; dos processos primários e Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 9 secundários; das forças herdadas, ‘constitucionalmente determinadas’, e das adquiridas; da realidade psicossomática e da externa. Essa construção dualista continua a prevalecer mesmo na posterior topologia tripartida do id, ego e superego; os elementos intermediários e ‘sobrepostos’ tendem para os dois pólos. encontram sua mais impressionante expressão nos dois princípios básicos que governam o aparelho mental: o princípio de prazer e o princípio de realidade”1. Para Freud, a satisfação das necessidades humanas só pode ser realizada através do controle sobre a natureza. Este controle se realiza por intermédio do trabalho e isto faz com que toda civilização realize uma coerção ao trabalho e a repressão aos instintos. Segundo Freud: “Expressando-o de modo sucinto, existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não tem valia alguma contra suas paixões”2 . Portanto, a dicotomia entre princípio de prazer e princípio de realidade surge devido as condições de produção e reprodução da vida material pressionarem os indivíduos para que trabalhem e renunciem aos seus instintos. Posteriormente, Freud utiliza os conceitos de id, ego e superego para analisar o aparelho mental. No id reside os “instintos orgânicos” de um indivíduo, expressões do instinto de Eros e do instinto de destrutividade3. No ego, realiza-se a percepção consciente e é dirigido por considerações de segurança. O ego realiza uma mediação entre o id e o mundo externo. Isto, entretanto, só ocorre até, aproximadamente, a idade de cinco anos, pois nesta época ocorre uma mudança: “Uma parte do mundo externo foi, pelo menos parcialmente, abandonada como objeto e foi, por identificação, incluída no ego, tornando-se assim parte integrante do mundo interno. Esse novo agente psíquico continua a efetuar as funções que até então haviam sido desempenhadas pelas pessoas do mundo externo: ele observa o ego, dá-lhe ordens, julga-o e ameaça-o com punições, exatamente como os pais cujo lugar ocupou. Chamamos este agente de superego e 1 MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização – Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. 8a edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1988, p. 41-42. 2 FREUD, Sigmund. O Futuro de Uma Ilusão. In: Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 89. 3 “O id obedece ao inexorável princípio de prazer” (FREUD, S. Esboço de Psicanálise. In: ob. cit. p. 239.) Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 10 nos damos conta dele, em suas funções judiciárias, como nossa consciência. É impressionante que o superego freqüentemente demonstre uma severidade para a qual nenhum modelo foi fornecido pelos pais reais, e, ademais, que chame o ego a prestar contas não apenas de suas ações, mas igualmente dos seus pensamentos e intenções não executadas, das quais o superego parece ter conhecimento”4. É esta introjeção da “razão” e da “racionalidade” submetida ao princípio de realidade que é denunciada por Marcuse: “Sob o princípio de realidade, o ser humano desenvolve a função da razão: aprende a ‘examinar’ a realidade, a distinguir entre bom e mau, verdadeiro e falso, útil e prejudicial. O homem adquire as faculdades de atenção, memória e discernimento. Torna-se um sujeito consciente, pensante, equipado para uma racionalidade que lhe é imposta de fora. Apenas um modo de atividade mental é ‘separado’ da nova organização do aparelho mental e conserva-se livre do domínio do princípio de realidade: é a fantasia, que está ‘protegida das alterações culturais’ e mantém-se vinculada ao princípio de prazer. Em tudo o mais, o aparelho mental está efetivamente subordinado ao princípio de realidade”5 . Portanto, a relação entre princípio de prazer e princípio de realidade é fundamental para se compreender o funcionamento do universo psíquico do indivíduo. Acontece que a teoria de Freud e o “complemento” de Marcuse apresentam alguns equívocos que devem ser colocados. Marcuse demonstrou que a concepção freudiana do princípio de realidade é conservadora. Freud, ao considerar eterna a luta pela existência, o que significa que o princípio de prazer e o princípio de realidade são inconciliáveis e que a repressão aos instintos é insuperável, acaba realizando uma racionalização da sociedade repressiva. Segundo Marcuse, o desenvolvimento tecnológico abre perspectivas para a superação da “luta pela existência” e para a plena satisfação das necessidades. Além disso, Marcuse busca “extrapolar” os conceitos freudianos e acrescenta os conceitos de “mais-repressão”, que são as restrições requeridas pela dominação social, e de “princípio de desempenho”, que é a forma histórica predominante do princípio de realidade na sociedade capitalista. Marcuse avança em relação a Freud ao reconhecer o caráter histórico do princípio de realidade. No entanto, o seu conceito de “mais-repressão” é equivocado, pois a sua noção de uma “repressão básica” que seria necessária 4 5 FREUD, S. Esboço de Psicanálise. ob. cit. p. 245. MARCUSE, H. ob. cit. p. 35. Devemos acrescentar aqui que esta introjeção é a da racionalidade instrumental e dos valores burgueses que lhe acompanha. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 11 para se perpetuar a espécie humana é apenas citada mas não é fundamentada. Que instintos essa repressão atinge? E, se estes instintos são reprimidos, eles não povoarão o inconsciente e assim se perpetuará o antagonismo entre princípio de prazer e princípio de realidade? Não existe algo como uma “repressão básica” mas sim uma humanização de “instintos”, o que significa uma alteração apenas na forma de sua realização e não sua supressão ou repressão (ou mesmo “modificação”, como diz Marcuse). O conceito de “mais-repressão” só tem valor se for compreendido como uma “repressão excedente”, que é uma repressão intensiva, ou seja, superior à vivida pela maioria das pessoas numa determinada sociedade e que excede a capacidade humana de suportá-la sem provocar danos psíquicos6. A definição marcuseana do princípio de realidade na sociedade capitalista como “princípio de desempenho”, que é identificado com o “trabalho alienado”, é produto de uma confusão. O trabalho alienado não é um “princípio” e sim uma realidade, ou seja, é o próprio desempenho ou realidade e não um princípio introjetado pelo indivíduo em sua consciência. A confusão de Marcuse tem como base sua aceitação acrítica da teoria freudiana. A civilização executaria o papel de coagir os seres humanos ao trabalho e realizar a repressão sexual. Em primeiro lugar, os seres humanos não são coagidos apenas ao trabalho; em segundo lugar, a repressão não é apenas da sexualidade; em terceiro lugar, nem todos os seres humanos são coagidos ao trabalho, pois em certas sociedades ou períodos históricos as mulheres e/ou os membros da classe dominante são poupados do trabalho social7. 6 Foi neste sentido que esta expressão foi utilizada em outro trabalho, escrito posteriormente à versão original deste (cf. V IANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002). 7 Outras teses de Marcuse são criticáveis, tais como: sua aceitação da ficção freudiana da horda primitiva, mesmo reservando-lhe mero “valor simbólico”, pois o amplo material historiográfico e etnográfico acumulado desde a época de Freud até os dias de hoje deveriam ter sido utilizados para confirmar, refutar ou aprofundar as teorias freudianas; a sua aceitação do “complexo de Édipo”, outra ficção freudiana, mesmo retirando-lhe a importância; a sua defesa das “perversões sexuais” (veja-se, sobre isto, uma crítica em: FROMM, E. A Descoberta do Inconsciente Social. São Paulo, Manole, 1992); a sua postulação, juntamente com Freud da existência de um “instinto de morte” (veja uma crítica em: MACINTIRE, A. As Idéias de Marcuse. São Paulo, Cultrix); a sua abstração metafísica dos conceitos de “sociedade” e “indivíduo”, que deixa de lado as divisões sociais (classe, sexo, raça, etc.), e individuais; e , por fim, sua crítica equivocada ao “neofreudismo” de E. Fromm, K. Horney e outros (para uma crítica, veja: V IANA, Nildo. Marcuse e a Crítica ao Neofreudismo. In: http://orbita.starmedia.com/~nildoviana1/marcuse.html). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 12 Por conseguinte, se negamos a definição marcuseana do princípio de realidade estabelecido pela sociedade capitalista (o princípio de desempenho), então devemos apresentar uma concepção alternativa do princípio repressivo de realidade da sociedade burguesa. Se tal princípio é a introjeção no universo psíquico (não utilizamos o conceito freudiano de “aparelho” porque ele é produto de uma analogia que impõe limites à realidade que busca expressar) do indivíduo de uma realidade, a nossa tarefa é descobrir que realidade é essa que é introjetada. O modo de produção capitalista cria uma sociedade competitiva. Esta competição está presente entre os capitais individuais, que impulsiona a acumulação de capital, e entre os trabalhadores que lutam pelo emprego de sua força de trabalho. A competição se generaliza em toda a sociedade e ultrapassa os marcos da produção para chegar até as relações de distribuição e ao conjunto das relações sociais. Tal como colocou E. Fromm: “O funcionamento econômico do mercado repousa sobre a competição de muitos indivíduos que querem vender suas mercadorias no mercado correspondente, assim como o seu trabalho ou os seus serviços no mercado de trabalho e de personalidade. Esta necessidade econômica de competição conduziu, especialmente na segunda metade do século 19, a uma atitude cada vez mais competitiva, caráctereologicamente falando. O indivíduo se sentia compelido pelo desejo de ultrapassar o seu competidor, com o que ficou totalmente invertida a atitude característica da época feudal, segundo a qual cada um tinha na ordem social o seu lugar tradicional com o qual devia contentar-se. Produziu-se, em oposição à estabilidade social do regime feudal, uma mobilidade social inaudita, na qual todos lutavam por conquistar os melhores lugares, embora fossem poucos os escolhidos para ocupá-los. nessa luta pelo sucesso ruíram as regras sociais e morais de solidariedade humana; a importância da vida consistia em ser o primeiro em uma corrida competitiva”8 . A competição para ficar no cume da pirâmide social é revelada pela busca de status, luta por ascensão social, etc. Esta competição social está presente no conjunto das relações sociais capitalistas. Além disso, o modo de produção capitalista cria um processo de crescente mercantilização e burocratização das relações sociais. A mercantilização das relações sociais é produto da expansão da produção capitalista de mercadorias que se generaliza e invade todos os setores da vida social. Os meios de produção, os meios de consumo e a força de trabalho tornam-se, sob o capitalismo, 8 FROMM, E. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 8a Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p. 95. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 13 mercadorias e com o desenvolvimento capitalista tudo passa a ser medido pelo seu valor de troca, inclusive as pessoas. Embora isto não ocorra diretamente, as pessoas passam a ser avaliadas não pelo que são e sim pelo que possuem. Simultaneamente, as pessoas interiorizam isto e passam a se avaliar pelo que possuem e não pelo que são9. Se as pessoas passam a ser avaliadas pelo que possuem, então o consumismo desenfreado será incentivado tanto pela competição social quanto pela compulsão automática pelo ter como satisfação substitutiva à repressão das potencialidades humanas realizadas pela sociedade capitalista. A burocratização das relações sociais é provocada pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista que aumenta a intervenção estatal, expande o setor de serviços, desenvolve a “sociedade civil organizada” e expande o domínio burocrático nas empresas privadas devido ao processo de oligopolização da economia. Portanto, a competição social, a mercantilização e a burocratização das relações sociais são os elementos constitutivos da sociabilidade capitalista. Por “sociabilidade” entendemos o conjunto das relações sociais que realizam, no nível do cotidiano, a reprodução das relações de produção dominantes. O modo de produção condiciona todas as outras esferas da vida social criando um verdadeiro modo de vida à sua imagem e é este último que denominamos sociabilidade10. Este modo de vida, entretanto, não se implanta imediatamente com a ascensão do modo de produção capitalista. Aqueles que denunciaram a integração da classe operária no capitalismo devido ao aumento do seu nível de renda viram apenas um lado da questão. Na verdade, tal integração ocorreu graças à instauração de um modo de vida capitalista também no interior da classe operária. O que explica isso é o desenvolvimento capitalista. Este é um desenvolvimento contraditório: ao mesmo tempo que precisa “revolucionar” constantemente os meios de produção, ele necessita barrar este desenvolvimento. Isto é provocado pela composição orgânica do capital e, conseqüentemente, pela tendência à queda da taxa de lucro médio11. Mas o 9 cf. sobre isso: FROMM, E. Ter Ou Ser? 4a Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1987; FROMM, E. Do Ter ao Ser. São Paulo, Manole, 1992. 10 Vê-se, portanto, que o conceito de sociabilidade aqui exposto é totalmente antagônico ao do sociólogo “formalista” G. Simmel. Este elabora o conceito de sociabilidade tendo como “modelo” as reuniões da classe burguesa e por isso pode postular sua “autonomia”, seu caráter “lúdico” e sua “artificialidade” (cf. MORAES FILHO, E. (org.) Simmel. São Paulo, Àtica, 1983) 11 A composição orgânica do capital se caracteriza pelo dispêndio cada vez maior que o capitalista é constrangido a realizar com os meios de produção, devido ao valor incorporado neles pela força de trabalho, enquanto que o aumento de mais- Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 14 capitalismo, como demonstrou Marx, cria contra-tendências e busca evitar o seu colapso. A partir das crises do capitalismo mundial que provocaram as duas guerras mundiais, a classe dominante buscou superar esta tendência através da intervenção estatal na produção-distribuição-circulação, da expansão transnacional e da expansão da produção de meios de consumo e do setor de serviços. É a partir da segunda guerra mundial que isto se generaliza na Europa Ocidental e interfere no modo de vida da classe operária. A burocratização das relações sociais já era uma realidade no início do século. O estado, as empresas privadas e as instituições civis já manifestavam o predomínio das relações burocráticas e foi isto que proporcionou o “desencantamento do mundo” e a teoria da burocracia de Max Weber. A classe operária também passava a conviver cada vez mais com o burocratismo nas relações sociais. Tanto nas empresas quanto em suas próprias organizações se instauravam relações sociais burocráticas12. Era absolutamente visível a burocratização de partidos e sindicatos. Robert Michels foi o primeiro grande critico da burocratização das organizações operárias e avançou ao afirmar que os partidos políticos são “criadores de novas camadas pequeno-burguesas”13. A burocracia partidária e os representantes partidários no parlamento e no governo se autonomizam e desligam-se da classe operária, tanto do ponto de vista material quanto do teórico, formando as bases sociais do reformismo (com todas as suas conseqüências: oportunismo, revisionismo de direita, eleitoralismo, etc.) dos partidos social-democratas, “socialistas” e “comunistas”. A burocratização dos partidos políticos “ditos” operários é reforçada pela presença no seu interior da burocracia sindical. O marxismo, desde Engels, realizou uma critica radical aos sindicatos, mas alguns dos “auto-intitulados” marxistas não superaram certas ambigüidades14. O processo de burocratização dos sindicatos também vem se reforçando cada vez mais com o desenvolvimento capitalista. valia relativa proporcionada pela força de trabalho se torna proporcionalmente menor em relação a este dispêndio, o que leva à queda da taxa de lucro médio. 12 “É interessante observar que o espírito burocrático penetrou não só a administração dos negócios e do governo, mas também os sindicatos e os grandes partidos socialistas democráticos da Inglaterra, Alemanha e França (FROMM, E. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. ob. cit. p. 130). 13 cf. MICHELS, R. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília, UNB, 1982. 14 Veja-se, por exemplo, o caso de Trótski: para ele, a burocracia sindical é reacionária e contra-revolucionária , e os sindicatos, “neutros” , social-democratas, “comunistas”, e “anarquistas”, se degeneraram devido ao seu vínculo com o poder estatal. Mesmo assim, segundo ele, deve-se continuar atuando neles, só que “discretamente” para evitar a perseguição da burocracia sindical (cf.: TRÓTSKI, L. Escritos Sobre Sindicatos. São Paulo Kairós, 1978) Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 15 Entretanto, a burocratização de partidos e sindicatos não foram suficientes para impedir o desencadeamento da luta operária. A Revolução Russa, a Revolução Húngara, a Revolução Italiana, a Revolução Alemã, entre outras, demonstraram que a luta de classes no inicio do século estava se radicalizando. A democracia representativa já era uma forma de dominação burguesa, mas ainda não tinha a “eficácia política” que possui hoje. A classe dominante, a partir de então, busca fazer da democracia burguesa o principal ponto de apoio para sua dominação. O sistema parlamentar e o sistema eleitoral são organizados de tal forma que, através da democracia burguesa, não só fique impossibilitado o surgimento de “brechas revolucionárias” como passa a ser uma fonte de corrupção dos movimentos políticos de esquerda. O grande feito do estado capitalista, a partir da segunda guerra mundial, é, além da intervenção no processo de produção-distribuição-circulação de mercadorias, a sua intervenção política nas instituições da sociedade civil. O estado cria novas instituições estatais e amplia as que já existiam (exército, polícia, escolas, hospitais, etc.) e busca controlar e regular o conjunto das instituições da sociedade civil através da legislação, das exigências para dotação de recursos e realização de convênios (o que também é realizado por instituições privadas fundadas por empresas oligopolistas), etc. A chamada “sociedade civil organizada” tem como função realizar uma “mediação burocrática” entre sociedade e estado. Por isso, nada mais equivocado do que postular uma estratégia política socialista baseada na luta pela conquista dos “institutos democráticos” da sociedade civil, tal como preconizou Gramsci e seus adeptos. Se Gramsci escreveu suas teses numa época em que a “sociedade civil” ainda não era visivelmente uma “sociedade burocrática”, o mesmo não vale para os gramscianos que com base no pensamento de Gramsci justificam seu reformismo e capitulação diante das instituições burocráticas. A mercantilização das relações sociais invade o modo de vida da classe trabalhadora a partir do fim da segunda guerra mundial. A produção capitalista se expande para além das fronteiras da Europa Ocidental (expansão transnacional), mas também invade lugares que antes eram ocupados pela produção pré-capitalista. Os investimentos na produção de meios de produção são, em parte, desviados para a produção de meios de consumo. A produção capitalista de meios de consumo surge visando atender principalmente o consumo da burguesia e só num segundo momento o das classes exploradas. A partir da segunda guerra mundial, produz-se novos meios de consumo para a burguesia e também começa-se a produzir meios de consumo para as massas trabalhadoras que antes tinham outra fonte. Segundo A. Granou: Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 16 “Praticamente, pode dizer-se que, até cerca da metade do séc. 20, os meios de subsistência das classes trabalhadoras provinham, para a quase totalidade, da agricultura e dos pequenos artífices, isto é, de setores de produção dominados pela pequena produção comercial”15. O modo de vida capitalista cria relações mediadas pela mercadoria (e pela burocracia). A produção capitalista invade a agricultura, o setor de meios de consumo e busca incessantemente aumentar o consumo produzindo “necessidades fabricadas”16 . A produção de meios de consumo descartáveis e a obsolescência planejada de certos produtos são outros meios que o capital utiliza para combater a tendência à queda da taxa de lucro médio. A expansão dos serviços sociais (tanto através das instituições estatais quanto particulares) refletem um duplo processo: de burocratização e de mercantilização das relações sociais. As instituições estatais, evidentemente, apresentam um menor grau de mercantilização e um maior grau de burocratização, enquanto que nas instituições privadas ocorre o fenômeno inverso. Os indivíduos, inclusive os da classe operária, para terem acesso ao serviço de saúde, de transporte, educação e aos lazeres, entre outros, devem passar pela mediação burocrática e mercantil instituída pela sociedade capitalista17. Portanto, esta é a realidade que o universo psíquico de um indivíduo introjeta e reproduz nas suas elaborações mentais. É nesse plano históricoconcreto que podemos compreender a forma estabelecida pela sociedade capitalista do princípio repressivo de realidade. O princípio de realidade também pode ser chamado de mentalidade. O conceito de mentalidade 15 GRANOU, André. Capitalismo e Modo de Vida. Porto, Afrontamento, 1975, p. 45. Sobre “necessidades fabricadas”, cf. GORZ, André. Estratégia Operária e Neocapitalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1968; FROMM, Erich. Do Amor à Vida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986. 17 Tendo em vista que este texto teve sua versão original escrita em 1992 e foi publicado pela primeira vez em 1994, pode se perguntar se essa análise do capitalismo continua válida. A resposta é positiva, pois a realidade aqui apresentada continua existindo, apesar das mudanças que vem ocorrendo nos últimos anos, quando o capitalismo entra em uma nova fase, a da acumulação integral (cf. VIANA, Nildo. O Significado Histórico do Toyotismo. Teoria Crítica da Sociedade - CEPS. Nº 2, abril de 2001), pois a competição é exarcebada devido as condições de crise, desemprego e insegurança vivida nesta nova realidade e a mercantilização se aprofunda, chegando a algumas poucas esferas que até alguns anos atrás estavam pouco influenciadas por ela. A burocratização, por sua vez, acompanha a mercantilização, com exceção da que ocorre na esfera estatal (o neoliberalismo realiza uma diminuição na intervenção estatal, mas que além de variar com o país e a época, só atinge algumas esferas e sofre, dependendo das lutas sociais, retrocessos). 16 Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 17 facilita a percepção do caráter histórico do princípio de realidade. Podemos, assim, distinguir a mentalidade arcaica das sociedades simples da mentalidade feudal da idade média na Europa Ocidental. A forma dominante de mentalidade hoje é aquela que introjeta a sociabilidade capitalista e a reproduz nas elaborações mentais e pode ser chamada de mentalidade burguesa. O conceito de mentalidade não só é mais apropriado do que o de “princípio de realidade” mas também mais apropriado do que o conceito de “caráter social” de Erich Fromm. Embora o “princípio de realidade” não seja apresentado por Fromm como equivalente ao “caráter social”, isto é possível na medida que tanto um como o outro desempenham o mesmo papel: “Os membros da sociedade e/ou as várias classes ou grupos sociais dentro dela tem de se comportar de modo a funcionar no sentido exigido pelo sistema social. É função do caráter social modelar as energias dos membros da sociedade de modo que seu comportamento não seja questão de decisão consciente sobre a obediência ou não ao padrão social, e sim um desejo de agir tal como tem de agir, e ao mesmo tempo encontrem satisfação em agir de acordo com as exigências de sua determinada cultura18. O processo de introjeção do princípio repressivo de realidade começa, como observou Freud, na infância19. Segundo E. Fromm: “A estrutura da sociedade e a função do indivíduo nessa estrutura determinam o conteúdo do caráter social. A família, por outro lado, pode ser considerada como o agente psíquico da sociedade, a instituição que tem a função de transmitir as exigências da sociedade à criança em desenvolvimento. A família executa esta função de duas maneiras: 1) pela influência do caráter dos pais sobre a formação da criança; como o caráter da maioria dos pais é expressão do caráter social, transmitem dessa forma as características essenciais do caráter socialmente desejável à criança; 2) além do caráter dos pais, o método de preparo infantil habitual numa cultura também tem a 18 FROMM, E. Meu Encontro Com Marx e Freud. 7a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. p. 78. E. Fromm faz algumas considerações sobre o caráter social que são válidas e portanto aplicáveis ao conceito de mentalidade: existem diferenças de mentalidade de acordo com a classe social, a formação cultural, as características de cada indivíduo, etc. (cf. a tipologia de caráter social em: FROMM, E. Análise do Homem. 2a Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1961). 19 “A primeira razão porque os homens servem de bom grado é que nascem servos e são criados como tais” (LA B OETIE, E. Discurso da Servidão Voluntária. 4a Edição, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 25). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 18 função de modelar o caráter da criança numa direção socialmente desejável”20. O conteúdo da mentalidade é formado pelos valores, razão e sentimentos conscientes do indivíduo. É o conjunto de elementos conscientes que fazem um indivíduo agir, é a força motriz de seu comportamento e também da produção de idéias e concepções sistematizadas ou articuladas (ideologia, teoria). Vimos até aqui como que o princípio repressivo de realidade age no universo psíquico do indivíduo. A mentalidade dominante possui a aparência de ser irremovível e intransponível por que não só introjeta a sociabilidade como é confirmada e exigida constantemente por essa mesma sociabilidade. A competição social, por exemplo, não só está presente na realidade cotidiana e na mentalidade dos indivíduos, como exige dele um comportamento competitivo, sob pena de ser considerado “preguiçoso”, “anormal”, “fracassado” etc. Assim, A mentalidade burguesa afirma que o ser humano é tal como é (diga-se de passagem, tal como é na sociedade burguesa) e isto é confirmado por suas idéias (mentalidade, cultura, ideologia) e por sua prática (sociabilidade) e é exigido por esta mesma sociabilidade e mentalidade. Com isto se retira toda a historicidade da formação da mente humana. Por isso, a transformação da mentalidade em alguns indivíduos é praticamente impossível sem antes ocorrer (ou começar a ocorrer) uma transformação na sociabilidade. Somente em períodos de transformação radical das relações sociais estes indivíduos cedem ao “principio de prazer”. Outros podem até mesmo aceitar superficialmente as teorias revolucionárias e no cotidiano reproduzir a mentalidade e a sociabilidade dominantes. Se até aqui nos limitamos a ver a ação do princípio de realidade sobre o universo psíquico do indivíduo, é necessário observarmos a ação do “princípio de prazer”, pois é aí que reside a resistência, ou seja, um dos elementos de ruptura com a reprodução do capitalismo. Podemos, retomando Freud, dizer que o “id” obedece aos instintos sexuais e destrutivos, expressos pelo princípio de prazer. Entretanto, é necessário romper, assim como fez Reich, com a idéia de existência de um “instinto de morte” ou de “destrutividade”. Tal concepção é nitidamente conservadora, pois, neste caso, os “instintos” ganham uma justificativa para serem reprimidos. Segundo um “freudo-marxista”, a tese do instinto de morte de Freud “Parece sustentar que a tendência a destruir é um componente natural da psicologia do homem, e se não for encaminhada para o exterior, levará à autodestruição. Se isso for certo, sem dúvida estará coerente com grande parte da historia do homem, repleta de 20 FROMM, E. Meu Encontro Com Marx e Freud. ob. cit. p. 81. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 19 perseguições religiosas e políticas, de torturas e crueldades, e a presente ameaça de uma destruição nuclear. Mas seria erro pensar que a teoria freudiana leva inevitavelmente a uma visão pessimista da capacidade que tem o homem de dominar esses impulsos agressivos. O eu racional do homem, o produto da interação entre os impulsos do id de satisfação incondicional e as exigências do mundo exterior, oferece a esperança de que ele será capaz de dominar essas forças interiores destrutivas e dirigi-las para finalidades socialmente valiosas. O próprio Freud teve de criticar os psicanalistas que adotaram uma opinião demasiada desesperada das possibilidades de controle racional e assinalou que, por mais fraco que fosse o ego em relação às forças demoníacas dentro de nós, o crescimento do conhecimento e compreensão da psicologia humana proporcionou o melhor meio de libertar o ego de sua servidão aos propósitos do id. ‘Onde houve id, haverá ego’, escreveu ele”21. Esse postulado da existência de um “instinto de morte” leva, necessariamente, à defesa da necessidade de repressão. Freud, definitivamente, não era um revolucionário, mas o freudo-marxismo de Osborn e Marcuse apresenta-se como tal. Osborn defende claramente a necessidade de um princípio de realidade repressivo em relação ao instinto de destrutividade. O ego deve dominar o id. Neste caso, princípio de prazer e princípio de realidade são inconciliáveis. Osborn acaba justificando certa forma de repressão na nossa sociedade. Claro que tal repressão se refere ao instinto de morte. No entanto, se não existir nenhum “instinto de morte”, algo vai ser reprimido como se fosse este. Assim, uma greve operária, um assassinato, a guerra entre nações, o massacre de índios, o extermínio de menores abandonados e a violência contra a mulher podem ser “interpretados” como manifestação do “instinto de morte” e não como produto de certas relações sociais. Marcuse é mais refinado teoricamente e afirma que o “instinto de morte” numa sociedade repressiva é muito mais destrutivo do que seria em outras condições históricas e sociais e que numa civilização não-repressiva seria transformado em algo inofensivo. Tal posição é parecida com a de Erich Fromm22. Para Fromm, necrofilia (amor à morte) é uma potencialidade humana secundária enquanto que a biofilia (amor à vida) é uma potencialidade humana primária. A primeira só desenvolve 21 22 O SBORN, R. Psicanálise e Marxismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1966, p. 47-48. “Proponho um desenvolvimento da teoria de Freud na seguinte direção: a contradição entre Eros e a destruição, entre a afinidade com a vida e a afinidade com a morte é , de fato, a contradição mais fundamental no homem”; “o instinto de vida (...) constitui a potencialidade primária do homem; o de morte , uma potencialidade secundária” (FROMM, E. O Coração do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1965, p. 54-55). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 20 quando a segunda não o faz e isto só ocorre em determinadas condições sociais e históricas. Acontece que tanto uma quanto outra análise justifica um certo quantum de repressão na nossa sociedade. Além disso, se formos analisar casos históricos-concretos, é impossível defender a existência de um “instinto de morte”. Segundo Freud, a repressão aos instintos trazem sérios problemas mentais (psicoses, neuroses, etc.) e quanto maior for a intensidade da repressão maior será os efeitos psíquicos negativos. Se pegarmos como exemplos histórico-concretos os padres e as freiras, veremos que o “instinto de morte” não existe ou então não se manifesta. Neste último caso, onde se manifestam os efeitos psíquicos negativos? Aliás, tendo-se em vista que esta é uma hiper-repressão (pois há, neste caso, a simultânea repressão dos instintos sexuais), deveríamos chegar a conclusão que todos os padres e freiras são neuróticos... Esta crítica é válida para Marcuse mas não para Fromm, que não se limita a tese Freudiana dos instintos. E. Fromm parte do conceito de “natureza humana” e daí postula a existência de diversas potencialidades humanas que vão além dos “instintos sexuais” e do “instinto de morte”. Com isso, o exemplo citado perde validade, pois a repressão de certas potencialidades é parcialmente (afinal, mesmo neste caso, deveria ocorrer efeitos psíquicos negativos, mesmo que em menor grau) compensada pelo desenvolvimento de outras. Entretanto, se o amor à morte (necrofilia)é uma potencialidade humana, então não faz sentido qualificar as pessoas “necrófilas” de “doentias”. O que é natural, por definição, não é doentio e vice-versa. Só que Erich Fromm define Hitler como um “doente mental” em diversas oportunidades, por ser ele um sádico, um necrófilo23. Portanto, existe uma incoerência teórica em Fromm e isto foi provocado por sua insistência em postular a existência de um “instinto de morte”. Neste aspecto, Reich foi o freudo-marxista mais conseqüente24. Ao que se refere, pois, o princípio de prazer? Certamente não se refere aos “instintos orgânicos” teorizados por Freud. As noções de “instintos”, “pulsões”, “impulsos” devem ser substituídas pelo conceito de necessidades. Estas expressam potencialidades que precisam se realizar e se referem não só às necessidades orgânicas como também às necessidades especificamente 23 FROMM, E. O Medo à Liberdade. 13a Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1981; FROMM, E. O Coração do Homem. ob. cit.; FROMM, E. Do Amor à Vida. ob. cit.; FROMM, E. Hitler. in: CANEVACCI, M.(org.). Dialética do Indivíduo 3a Edição, São Paulo, Brasiliense, s/d. 24 Para uma crítica mais aprofundada da tese do “instinto de morte” e uma contextualização histórica de seu surgimento, cf. VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Ob. cit. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 21 humanas, como, por exemplo, a criatividade25. Estas necessidades são acompanhadas por outras que podem ser consideradas inautênticas26. Por isso, estão presentes tanto no inconsciente quanto na consciência. As necessidades reprimidas povoam o inconsciente e as demais necessidades (autênticas e inautênticas) estão vivas e atuantes na consciência. Portanto, o princípio de prazer não só comanda o inconsciente como influencia a consciência. O universo psíquico do indivíduo é, portanto, o palco do conflito entre princípio de prazer e princípio repressivo de realidade, devido ao fato de viver numa sociedade repressiva. É necessário acrescentar que as necessidades frustradas conscientes criam uma contradição no universo psíquico do indivíduo e ameaça o predomínio absoluto da mentalidade. Uma parte do princípio de prazer é consciente e cria um “conflito consciente ao nível da consciência” e outra parte é inconsciente e, conseqüentemente, seus efeitos são não-conscientes. Se ao nível da consciência também se manifesta o princípio de prazer, então não é só nas manifestações do inconsciente (na fantasia e na utopia, segundo Marcuse) que se realiza a crítica do mundo existente. Devemos, então, tratar inicialmente do inconsciente e das suas tentativas de ascender até a consciência. Antes de tudo, deve-se colocar que existe um inconsciente individual e um inconsciente coletivo. Por inconsciente coletivo não entendemos nem a concepção metafísica de Jung nem a concepção conservadora da “história das mentalidades”27. Jung e P. Áries significam um 25 cf. FROMM, E. O Conceito Marxista do Homem. 8a Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983; LOBROT, M. A Favor Ou Contra A Autoridade. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977; VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Ob. cit. 26 Sobre necessidades inautênticas, cf. VIANA, Nildo. A Questão dos Valores. Revista Cultura & Liberdade. Ano 2, nº 2, abril de 2002. 27 “Nossa psicologia sabe que o inconsciente pessoal nada mais é do que uma camada superposta que se assenta em uma base de natureza inteiramente diversa. Esta base é o que chamamos inconsciente coletivo. A razão desta denominação está na circunstância de que, ao contrário do inconsciente pessoal e de seus conteúdos meramente pessoais, as imagens do inconsciente mais profundo são de natureza nitidamente mitológica. Isto significa que estas imagens coincidem, quanto à forma e ao conteúdo, com as representações primitivas universais que se encontram na raiz dos mitos. Elas não são mais de natureza pessoal, mas são puramente suprapessoais e, conseqüentemente, comuns a todos os homens. Por isso é possível constatar sua presença nos mitos e nas fábulas de qualquer povo e de qualquer época, bem como em indivíduos que não têm o menor conhecimento consciente de mitologia” (J UNG, C. G. Psicologia e Religião Oriental. 3a Edição, Petrópolis, Vozes, 1986, p. 97); “Mas o que é o inconsciente coletivo? Sem dúvida, seria melhor dizer não-consciente coletivo: comum a toda uma sociedade em determinado momento. Não-consciente: mal percebido, ou totalmente percebido Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 22 retrocesso teórico em relação à Freud. Em ambos a base concreta (mesmo sendo de caráter orgânico, instintual) da teoria freudiana é abolida e substituída por uma teoria da “repetição gratuita”. Com isto abole-se o aspecto revolucionário da teoria Freudiana. No caso de Áries, o inconsciente coletivo torna-se equivalente ao conceito de mentalidade e esta se caracteriza pela repetição automática e mecânica, ou seja, é algo tão manifesto que pode ser considerado uma “visão de mundo”; no caso de Jung, o inconsciente coletivo é reduzido à arquétipos autônomos e imutáveis que se manifestam em todas as épocas e lugares. O inconsciente individual se refere às potencialidades humanas reprimidas em um indivíduo e o inconsciente coletivo se refere às potencialidades humanas reprimidas em um conjunto de indivíduos (classe, sexo, etc) ou a todos os indivíduos de uma sociedade, já que numa sociedade repressiva nem mesmo os membros da classe dominante podem desenvolver todas as suas potencialidades28. O inconsciente coletivo, assim como o individual, se manifesta em sonhos, fantasias, etc. Estas formas de manifestações do inconsciente são formas de tentar ascender ao nível da consciência29. A outra parte do princípio de prazer chega até a consciência. Um conjunto de necessidades humanas (fome, sede, etc.) são imediatamente reconhecidas através da consciência. Tanto a satisfação das necessidades como a consciência delas são diferentes em grupos sociais diferentes. A mais importante forma de consciência coletiva é, sem dúvida, a consciência de classe. A história da humanidade tem sido comandada pela dinâmica da luta de classes. Toda classe dominante busca conservar as relações de produção dominantes e assim manter o seu poder. As classes exploradas, por sua vez, buscam transformar as relações de produção e instaurar um novo modo de produção. A classe revolucionária realiza uma crítica da sociedade existente e, ao mesmo tempo, apresenta um projeto político de uma sociedade alternativa. Este projeto quando possui possibilidade de se transformar em pelos contemporâneos, porque, é óbvio, faz parte dos dados imutáveis da natureza, idéias recebidas ou idéias no ar, lugares comuns, códigos de conveniência e de moral, conformismos ou proibições, expressões admitidas, impostas ou excluídas dos sentimentos e dos fantasmas” (ÀRIES, P. História das Mentalidades. in: LE GOFF, J. (org.) A História Nova. São Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 174). 28 Cf.: V IANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Ob. cit. 29 Para uma análise mais aprofundada da concepção junguiana, abordando seus aspectos aceitáveis e inaceitáveis, bem como para uma análise mais detalhada do inconsciente coletivo, cf. V IANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Ob. cit. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 23 realidade é uma utopia concreta, tal como colocou Ernst Bloch. A consciência de classe de uma classe revolucionária é uma utopia concreta. A classe revolucionária de nossa época é o proletariado. Entretanto, a sua consciência de classe se apresenta, num primeiro momento, como contraditória, ou seja, possui elementos de aceitação e ao mesmo tempo de negação da sociedade existente, e, num segundo momento, supera sua contradição através da luta de classes e se torna consciência revolucionária. Mas existe um outro obstáculo, derivado da mentalidade burguesa, ao desenvolvimento da consciência de classe do proletariado, que é o chamado “realismo” (e seu derivado, o realismo político, que se opõe a todo “utopismo”). O que é o realismo? Segundo Fromm: “O ‘realista só vê os aspectos superficiais das coisas; vê o mundo manifesto, pode reproduzi-lo fotograficamente em sua mente e pode agir manipulando as pessoas e as coisas tal como aparecem neste retrato”30. O realismo, assim, é a incapacidade mental de ultrapassar a aparência e atingir a essência, pois esta nos remete aos conflitos sociais e psíquicos do mundo contemporâneo e da necessidade de transformação social. Este é uma expressão racionalizada da mentalidade burguesa e nada mais que isto, sendo, pois, mais um elemento consciente que contribui para a reprodução do capital. Este texto é uma versão modificada do artigo publicado originalmente em Revista Ruptura, ano 2, num. 2, maio de 1994, sob o título de “A Utopia Concreta Contra o Realismo Político”. 30 FROMM, E. Análise do Homem. ob. cit. p. 86. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 24 Normalidade, Excepcionalidade e Capitalismo Maria Angélica Peixoto Curioso é notarmos o que por vezes é normal em dada sociedade, noutra pode ser considerado anormal. Karen Horney, trata assim, a questão da normalidade: “O conceito do que é normal varia não só com a cultura, mas também, dentro da mesma cultura, com o passar do tempo... O conceito de normalidade muda, igualmente, nas diferentes classes sociais...”1 Antes de abordarmos outros autores, tais como Fromm e Schneider, forçoso se torna perguntar: qual a importância de se definir normalidade para a compreensão da especificidade do excepcional?2 Seguiremos os passos de Horney para delimitarmos a importância de tal definição. Embora Horney não tenha se referido especificadamente à questão do excepcional, tentaremos compreendê-lo dentro da lógica do pensamento de tal autora. Então, podemos dizer que o excepcional só poderá ser compreendido dentro de uma dada sociedade, neste caso, a sociedade capitalista. Como tal sociedade lida com seus membros? O que ela exige de cada indivíduo nela inserido? Nada mais que a inserção na lógica da competição, em busca de espaços no seu amplo e vasto universo mercantil. Neste sentido, o excepcional se dirigirá à escola para sanar suas “deficiências” (inatas ou adquiridas). Tais “deficiências” se não forem sanadas integralmente, colocará o aluno excepcional em visível desvantagem diante da lógica competitiva da sociedade capitalista. A ele, então, serão reservadas atividades que exigem pouco mais que nada, ou seja, atividades onde as potencialidades do “deficiente” não estarão sendo trabalhadas integralmente. Caberá a tal aluno um espaço próximo à marginalidade, visto que ele estará longe do critério de normalidade adotado pela sua sociedade, o de estar apto integral e totalmente para a competição. Sua mão-de-obra será explorada e pouco valorizada. Erich Fromm completa o pensamento de Horney quando questiona o relativismo sociológico. Os adeptos de tal postura consideram uma sociedade 1 HORNEY, K. A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo. 10a edição, São Paulo, Difel, 1984, p. 13. 2 Por excepcional entenda-se “pessoa portadora de deficiência”. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 25 normal quando funciona e que a patologia é definida como um desvio da norma, assim sendo, um indivíduo é considerado como portador de uma patologia quando possui dificuldades de se ajustar ao estilo de vida da sociedade na qual se insere. Tal postura, reflete a posição dos positivistas frente à questão do excepcional. Fromm, a partir do questionamento de tal relativismo, estabelecerá as premissas básicas de seu pensamento: “O que tem sido muitas vezes chamado de natureza humana não passa de uma de suas muitas manifestações – e freqüentemente de manifestações patológicas...” O verdadeiro problema está em deduzir a essência comum a toda a raça humana das inumeráveis manifestações da natureza humana, tanto normais quanto patológicas, como os podemos observar nos diversos indivíduos e diferentes culturas”3 . Importa aqui demarcar a diferenciação entre normal e patológico. Nem sempre o que é considerado normal em dada formação social, está de acordo com as reais potencialidades humanas. Numa sociedade capitalista várias formas de comportamento se manifestam e são consideradas normais e, outras consideradas patológicas por estarem em flagrante contradição com a norma. Exemplificando, podemos eleger como ilustração a variada nomenclatura construída para enquadrar os que desviam da norma estabelecida. Aqui se encaixam os alunos que apresentam problemas emocionais, distúrbios de linguagem, problemas de aprendizagem, etc. No capitalismo, à medida, que os conflitos de classe vão crescendo, há a necessidade de se criar um conjunto de ideologias que propiciem uma justificação para o funcionamento contraditório do sistema. Vimos, com isso, que não são os indivíduos os responsáveis por esta ou aquela “deficiência”, mas ao contrário, se esta ou aquela deficiência existe e passa por uma “validação consensual”, importa reconhecermos que o problema é da sociedade que propiciou as condições que levaram a tal deficiência. Assim sendo, a sociedade ao validar como patológicos comportamentos que manifestam problemas emocionais, distúrbios comportamentais, etc., como sendo inerentes à natureza individual deste ou daquele ser, nada mais faz do que revelar o seu caráter conflituoso e contraditório. Revelando, assim, que o problema reside na estrutura de sua formação social e não na estrutura individual. Numa dada formação social, como a formação social capitalista que tem como essência a exploração de uma classe sobre a outra através da extração 3 FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 8a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p. 27. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 26 de mais-valor, é recorrente o fato de que os indivíduos terão defeitos “socialmente modelados” e apresentaram distúrbios freqüentes. Perguntamos, então, é o sistema capitalista uma formação social capaz de estimular em seus membros comportamentos e atitudes realmente sadias? Ao eleger uma nomenclatura que dê conta dos “desvios” de comportamento, de linguagem, etc., o capitalismo enquanto sistema, nada mais faz, a partir, de uma validação consensual, do que segregar em grupos aqueles indivíduos que de certa maneira nada mais fazem do que reagirem à negatividade do sistema. Ao dar ênfase nos atributos inatos, como os propiciadores de uma integração ou não na lógica do sistema, o capitalismo nada mais revela do que o seu caráter doentio e neurótico, enquanto, formação social e, é justamente o caráter social que Erich Fromm questiona, na medida em que ele acredita que se um indivíduo manifesta-se fora da norma, as causas de tal comportamento deve ser encontradas no próprio sistema – se algum indivíduo falha não é ele necessariamente o responsável, mas ao contrário, a responsabilidade e do sistema que propiciou as condições de tal fracasso. Para Fromm, o que importa na questão da normalidade e anormalidade é definir através de certos critérios, e neste caso o critério eleito é o do encontrar respostas que dêem conta de definir a verdadeira natureza humana vista aqui como saudável e positiva. Fromm acredita que é possível delinear a natureza humana, a partir, da observação de várias formações sociais e nelas observar o que tem de universal em cada uma, ou seja, o que em cada uma é inerente ao ser humano. Se ao nascer o indivíduo se defronta com uma formação social incapaz de lhe propiciar as condições necessárias para que esta verdadeira natureza manifeste, tal indivíduo estará sujeito ao malogro, tendo apenas uma pequena chance de reagir ao dado. No caso específico dos excepcionais, que vivem sob o signo do capitalismo, vimos que tais reações se manifestam quase sempre de forma passiva. Podemos considerar como reação a uma sociedade doente, a “doença” mental, só que tal resistência é manifestada passivamente. O indivíduo considerado doente mental encontra como resposta aos estímulos negativos impostos pela sociedade, uma gama de comportamentos que serão considerados por esta mesma sociedade como “doentios”. Não há nenhuma garantia em afirmar que “n” indivíduo possui dificuldades de aprendizagem. Tais dificuldades podem apenas serem uma forma de reação aos conteúdos 0- pouco ou nada interessantes - propostos pela escola. O mesmo podemos dizer para pessoas diagnosticadas como portadoras de distúrbios emocionais. Estes distúrbios, podem ser nada mais do que uma forma de reagir, ainda que passivamente, a estímulos externos negativos, como por exemplo, a imposição da lógica competitiva que exige que sejamos os melhores em tudo que fazemos e realizamos. Para os Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 27 deficientes físicos tal reação pode provir da não aceitação dos padrões estéticos de beleza da sociedade. Segundo potencialidades, o importante é transformar a resistência passiva de certos indivíduos, e neste caso, do excepcional (mental, físico, etc.) em resistência ativa. Como se dá isto? Colocando em xeque tal sociedade. Não adianta resolver o problema do excepcional de forma parcial, integrá-lo não significa salvá-lo, mas ao contrário, aumentar ainda mais o grau de segregação a que estão diariamente sujeitos. Para Schneider, “Uma teoria psicanalítica materialista da doença deve ter início com a realização - e deve fazer propaganda do fato no consciente do público - de que a ‘doença mental’, seja neurose ou psicose, funcional ou de dependência, deveria ser considerada sempre de dois aspectos opostos. Da perspectiva da ‘saúde oficial’, isto é, do ponto de vista da utilização, é um ‘rótulo’ para a força de trabalho deficiente, nãorentável e até turbulenta. Do ponto de vista do trabalho assalariado, nada mais é, por outro lado, que uma inconsciente fuga mental, isto é, uma tentativa para libertar-se das condições de trabalho e socialização capitalistas, uma recusa sintomática a ‘prosseguir’”4. Neste sentido, Schneider acredita que se dermos conta de auxiliarmos o “deficiente” a reagir ativamente, estaremos ajudando-o a colocar em questão a própria formação social que deu origem aos conflitos individuais e sociais que são lhe impostos. Só que para tanto é preciso questionar a fundo a própria estrutura social, desmantelando-a inteira e completamente. E ao fazermos isto, não podemos deixar de nos incluirmos também aí, porque não só os excepcionais apresentam problemas de adaptação, nós também os ditos “normais” estamos envolvidos no processo de alienação imposto pelo sistema até a raiz. É principalmente, através da escola, a escola vista aqui como a propiciadora da reprodução social do capitalismo que os ditos excepcionais vão dar de frente com sua “deficiência”. E aqui é importante colocarmos que se tal aluno “excepcional” pertencer a uma classe social desfavorecida os seus conflitos como indivíduo atingirá um nível de segregação muito mais elevado. Exemplos não faltam para reforçar esta tese: o baixo capital cultural5de um aluno pertencente à classe dominada o colocará em visível desvantagem dentro da lógica competitiva (isto se agrava mais ainda no caso do aluno “excepcional”); a classe dominante imporá o seu arbitrário cultural6 4 SCHNEIDER, Michael. Neurose e Classes Sociais – Uma Síntese Freudo-Marxista. Rio de Janeiro, Zahar, 1977, p. 330. 5 Cf. B OURDIEU e P ASSERON, J-C. A Reprodução. Elementos Para Uma Teoria do Sistema de Ensino. 2a edição, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982. 6 Cf. B OURDIEU, P. & PASSERON, J-C. Ob. cit. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 28 impossibilitando, assim, através da violência simbólica uma reação realmente eficaz que dê conta de se desvencilhar das armadilhas, vendo-a em sua essência e não em sua aparência, neste caso a dominação de classe. Bueno, ao tratar da relação de normalidade-excepcionalidade, mostra-nos o quanto é importante inserirmos tal questão em sua formação históricosocial concreta7. O autor também questiona o conceito de normalidade, no entanto, não chega a aprofundá-lo. Associa o grau de integração ou não do aluno excepcional à classe a qual pertence. Se um aluno da classe dominante possui como deficiência a surdez, ele nem mesmo será considerado anormal (isto ilustra a afirmação de Horney que associa a variação do conceito de normalidade também à classe), pois receberá uma gama de atendimentos que possibilitará sua inserção na sociedade forma favorável. No entanto, se tal aluno pertencer a uma classe socialmente dominada ele será considerado surdo-mudo, pois a ele será negado as condições que possibilitem sua integração na sociedade, estará assim na marginalidade do sistema e portanto, será considerado anormal. Para concluir, notamos que os termos “excepcionalidade” e “normalidade” estão inseridos num discurso ideológico. Mas não existe excepcionalidade e normalidade? Não existe a norma e a exceção? Retomando Schneider, podemos dizer que isto deve ser tratado sob dois aspectos opostos: a) do ponto de vista da ideologia dominante (e das relações sociais estabelecidas) o indivíduo normal é aquele que possui um comportamento socialmente aceitável (segue as normas sociais) e um rendimento adequado no trabalho (ou seja, é produtivo) e o indivíduo excepcional é aquele que não se encaixa nos padrões de comportamento ou rendimento socialmente aceitos. Aqueles que possuem “deficiências” físicas e mentais estarão incluídos, na maioria dos casos (pois a maioria pertence às classes desfavorecidas), entre os excepcionais, pois às dificuldades de ordem física e mental junta-se as dificuldades de ordem social; b) do ponto de vista crítico, a normalidade e a excepcionalidade são categorias ideológicas que apenas reproduzem no discurso a opressão existente na sociedade. Não existem indivíduos “normais” e “excepcionais” e sim indivíduos integrados e marginalizados. Os indivíduos marginalizados são aqueles que possuem um “comportamento desviante”, para utilizar linguagem da sociologia conservadora, ou que recusam o trabalho alienado. Os “deficientes”, neste caso, tendem a ser marginalizados, embora não faltem tentativas de integrálos, mas tentativa esta dificultada pelas próprias condições físicas e mentais. Mas, antes de encerrarmos, devemos deixar claro que existem indivíduos com dificuldades físicas e mentais maiores na sua inserção social, tal como é 7 BUENO, José Geraldo. Educação Especial Brasileira: Integração/Segregação do Aluno Diferente. São Paulo, Educ, 1997. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 29 o caso de surdos, mudos, etc. Porém, numa sociedade capitalista, a situação destes indivíduos se torna mais grave e é isto que cria o seu processo de marginalização, o que poderia ser superado somente em uma sociedade igualitária. É neste sentido que Eric Plaisance afirma que o problema da “deficiência”, no caso da deficiência física, deve ser analisado em sintonia com o que ele denomina “deficiência sócio-cultural”. Segundo suas próprias palavras: “De nossa parte, seríamos favoráveis a uma limitação do sentido do termo ‘deficiência’ aos casos em que as deficiências físicas, mentais ou sensoriais fossem objetivamente reconhecidas (anomalias diversas devidas a lesões, doenças, lesões hereditárias ou adquiridas). Mesmo se limitarmos assim o sentido do termo ‘deficiência’, devemos estar atentos à sua dimensão social, que não é sempre claramente percebida, pois a tendência mais forte é, ao contrário, de reduzir a deficiência de origem física à sua dimensão deficitária, numa perspectiva estritamente médica. Uma crítica dessa visão errônea da deficiência já aparecia nos trabalhos do filósofo Georges Canguillem, especialista em biologia, que insistia sobre o aspecto relativo do julgamento de normalidade ou anormalidade, mesmo quando se trata do corpo (...). Isso porque, dizia ele, é além do corpo que é necessário olhar para apreciar o que é normal ou anormal para esse próprio corpo: ‘com uma enfermidade como o astigmatismo ou a miopia, uma pessoa seria normal em uma sociedade agrícola ou pastoral, mas anormal na Marinha ou Aviação’ (...). Compreende-se, pois, que julgamentos de valor, com dimensão necessariamente social, intervenham na distinção do normal e do patológico e no reconhecimento de uma deficiência. É necessário, portanto, distinguir o que resulta da enfermidade ou de deficiência (e a este nível o modelo médico de interpretação e tratamento é pertinente) o que é decorrente do handicap, na encruzilhada da enfermidade e das normas sociais (conseqüentemente, o modelo médico deve ser integrado em um modelo que faça necessariamente intervir as determinantes sociais)”8. Por isso é preciso levar em consideração a produção social da deficiência e as dificuldades de integração dos indivíduos na sociedade, principalmente aqueles que possuem diferenças físicas ou corporais. Uma sociedade igualitária seria o estado ideal para a resolução desta problemática, pois as exigências sociais sobre os indivíduos e o modo de relação entre eles assumiriam uma dimensão muito mais humana e saudável, 8 PLAISANCE, Eric. Da Deficiência Física à Deficiência Sócio-Cultural. In: N ETO, Maria I. D. (org.). A Negação da Deficiência. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 30 o que possibilitaria aos indivíduos diferentes uma inserção fácil e agradável no conjunto das relações sociais. Texto publicado originalmente em: PEIXOTO, Maria Angélica. Inclusão ou Exclusão: O Dilema da Educação Especial. Goiânia, Edições Germinal, 2002 (cap. 3, com o título “Normalidade: Uma Definição”). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 31 A Ciência Psiquiátrica nos Discursos da Contemporaneidade Antonio Quinet Para abordar a questão da ciência e da ética no que concerne a psiquiatria, gostaria de introduzir a teoria do discurso, proposta por Jacques Lacan no final dos anos sessenta, que formaliza os laços sociais entre os humanos na medida em que são seres de linguagem e de libido. Discursos: Laços Sociais Em o Mal-estar na Civilização, Freud aponta o relacionamento com os outros homens como a causa de maior sofrimento do homem. O mal-estar na civilização é portanto o mal-estar dos laços sociais. Estes se expressam nos atos de governar e ser governado, educar e ser educado e também, como mostrou Freud, tanto no vínculo entre analista e analisante, que ele inaugurou, quanto no ato de fazer desejar, como as histéricas o ensinaram. Essas quatro formas de as pessoas se relacionarem entre si - governar, educar, psicanalisar e fazer desejar – Lacan chamou de discursos pois os laços sociais são tecidos e estruturados pela linguagem. Governar corresponde ao discurso do mestre/senhor em que é o poder que domina; Educar constitui o discurso universitário dominado pelo saber; Analisar corresponde ao laço social inventado no início deste século por Freud em que o analista se apaga como sujeito por ser apenas causa libidinal do processo analítico. E o discurso da histeria é aquele que é dominado pelo sujeito da interrogação (no caso da neurose histérica, trata-se da interrogação sobre o desejo) que faz o mestre não só querer saber mas produzir um saber. A relação médico-paciente pode entrar nessas quatro modalidades de laço social. Tomemos exemplos simples e um pouco caricaturais. Quando o médico manda e o paciente obedece (até na prescrição de um remédio) estamos no Discurso do Mestre; quando o médico ensina ou convence o que a psiquiatria tem a dizer sobre seu caso, ele se encontra no Discurso da Universidade; quando o médico cala e ocupando o lugar de objeto causa de desejo em transferência faz o paciente segredar aquilo que ele mesmo nem sabia que sabia, vemos a emergência ao Discurso do Analista. E quando o médico se vê impulsionando a se deter, a estudar e a escrever para produzir um saber provocado pelo caso do paciente estamos no Discurso Histérico. Dentre esses quatro discursos, o discurso da ciência se assemelha mais, por sua estrutura de produção de saber, ao discurso histérico. Histeria, aqui, não se refere à neurose do mesmo nome, mas uma forma de relacionamento Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 32 humano em que um provoca no outro o desejo e a criação de um saber (tal como as histerias fizeram com Freud). O que se espera da ciência é efetivamente a produção de saber sobre o real. Mas isso não quer dizer que ela não entre nos outros discursos - ela também entra tanto no discurso universitário quanto no discurso do mestre. Nossa civilização atual é dominada pela ciência. É uma civilização científica cujo mal-estar se expressa nas doenças dos discursos. O mal-estar da civilização científica se apresenta hoje como doenças predominantemente oriundas do Discurso Capitalista que é nova modalidade do Discurso do Mestre. São essas doenças do discurso que o psiquiatra é chamado a tratar. O discurso como laço social é um modo de aparelhar o gozo com a linguagem na medida em que o processo civilizatório, para permitir o estabelecimento das relações entre as pessoas, implica a renúncia da tendência pulsional em tratar o outro como um objeto a ser consumido: sexualmente e fatalmente. Pois a inclinação do homem é ser o lobo do outro homem, ou seja, abusar dele sexualmente, explorá-lo, torturá-lo, matá-lo saciando no outro sua pulsão de morte erotizada. A civilização exige do sujeito uma renúncia pulsional. Todo laço social implica um enquadramento da pulsão resultando em uma perda real de gozo. Todo discurso é portanto um aparelho: aparelho de gozo. A ciência também pode entrar na categoria de discurso como enquadramento de gozo na medida em que tem por finalidade a conquista do real, ou seja, a colonização do real pelos aparelhos simbólicos que as fórmulas matemáticas representam. A Ciência no Discurso Universitário A ciência pode se desenvolver segundo o discurso universitário onde o saber é quem manda, é ele o agente do discurso pois se encontra no lugar do comando, ocupado inicialmente pelo mestre antigo (S2). O discurso do mestre moderno é o discurso universitário: o mestre foi substituído pelo saber universal científico. Conseqüência: tirania do saber, que exige, a qualquer custo, a obediência ao mandamento do saber, a ordem que se apresenta como a verdade da ciência. Essa ordem pode ser assim formulada: “Tudo pelo o saber!” ou “Saiba tudo sobre tudo, sem nada deixar escapar”. Podemos continuar a formulação do imperativo epistemológico: “Não importa o que aconteça, continue avançando; continue trabalhando para o saber”. “Não importa os meios nem os fins – não deixe de produzir saber”. Eis a representação-meta que ordena a fala implícita na conquista da ciência; ele é o significante-mestre que ocupa todo o lugar da verdade no discurso universitário e por isso mesmo ele a rejeita (S1). A verdade no discurso universitário – a verdade do sujeito – é rejeitada em prol do mandamento de tudo saber. O mestre da ciência universitária é o saber e nada pode detê-la como o tentam os comitês de ética criados para nela colocar uma barreira, um Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 33 freio, uma regulação. Mas em contraposição a uma ciência universitalizante só é possível uma ética do particular como propõe a psicanálise, que inclua o sujeito cuja essência, segundo Espinosa, é o desejo. No discurso universitário da ciência tudo que é tratado pelo saber é considerado um objeto ( a ), mesmo quando são homens e mulheres tratados epistemicamente. Trata-se de objetivar, objetalizar para aplicar o saber. Isto não é segredo nem novidade no âmbito médico. Qual é o sujeito que corresponde ao discurso da ciência universitária? Surpreendentemente é o sujeito da crença, o crente. Ao universal da ciência responde não o sujeito da ciência, mas o sujeito da Igreja Universal. Pois é lá que ele encontra prêt-à-porter o máximo da totalidade do saber: aquele que tudo sabe, o Onisciente. Eis a divinização do saber promulgada pela idealização do discurso universitário da ciência. Deus é o cúmulo do saber. Paradoxalmente, eis o ápice do discurso da ciência. O desenvolvimento da ciência não tem produzido mais materialistas agnósticos do que antigamente. Pelo contrário, há uma multiplicação das práticas mágico-religiosas como tem acontecido aqui no Brasil, onde, por exemplo, não cabe mais fieis nos templos e por isso o Bispo Macedo está construindo uma série de maracanãs para eles. E não só no Brasil, também na França há um crescimento do número de crentes onde, por exemplo, exorcistas e feiticeiras estão se multiplicando para atender a demanda de exorcismo e de práticas de demologia. Isso que também tem ocorrido em outros países, mostra a produção em massa do sujeito da crença ( $ ), por definição dividido entre o “no creo en la bujas” e o “pero que las hay, las hay”. O sujeito dividido como produto da ciência, resto do saber científico é também aquele que é excluído por ela. E é por isso que ele acredita desacreditando na ciência. Mas a ciência também produz as suas crenças, digamos assim, endogâmicas. Será este o caso das neurociências? Será que não há uma tendência da psiquiatria, influenciada pelas neurociências de criar uma nova mitologia cerebral? Elizabeth Roudinesco, como disse recentemente, avançou a hipótese de que estaria ocorrendo neste fim de século o que ocorreu no final do século XIX em que com a evolução industrial que acompanhou os grandes avanços da ciência, concomitante ao desenvolvimento da psiquiatria, foi constituída uma mitologia cerebral que localizava na anatomia do cérebro os males da alma. Será que hoje não se está constituindo com as neurociências uma nova mitologia do elo perdido entre o substrato neuro-hormonal e os fenômenos clínicos? Afinal, clinicar não é assim tão preciso, como lembrou Gilda Paoliello em sua abertura. E os psiquiatras não devem ser os crentes do “Neurônio Universal”. Fazer a ciência se manter fiel a seus postulados é também uma questão de ética. Uma ética própria à ciência para que ela mantenha seus limites - se mantenha nos limites de suas descobertas. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 34 A Ciência no Discurso Capitalista Assim como Freud em O Mal-estar na Civilização, Lacan em Televisão, em 1974, preocupa-se com o mal-estar na modernidade, diagnosticando-o como o produto do discurso capitalista. Este sim, corrige-se Lacan, é o laço social dominante em nossa sociedade (e não o discurso da universidade como discurso do mestre moderno, como afirmara no seminário O Avesso da Psicanálise, em 1969/1970). Isso hoje, em 1999, é ainda mais verdadeiro com o desmantelamento dos regimes das sociedades não-capitalistas. O capital invadiu tudo: é o que se chama de globalização. Como afirma Jean Baudrillard em Sociedade de Consumo, vivemos hoje em uma espécie de evidência do consumo e da abundância, criada pela multiplicação de objetos, na qual os homens da opulência não se cercam mais de outros homens e sim de objetos (TVs, carros, computadores, fax, telefones). Suas relações sociais não estão centradas nos laços com outros homens, diz Baudrillard e sim na recepção e manipulação de bens e mensagens. O discurso capitalista efetivamente não promove o laço social entre os seres humanos: ele propõe ao sujeito a relação com um gadget, um objeto de consumo curto e rápido [$ ¬ a]. Esse discurso promove um autismo induzido e um empuxo-ao-onanismo fazendo a economia do desejo do Outro e estimulando a ilusão de completude não mais com a constituição de um par, e sim com um parceiro conectável e desconectável ao alcance da mão. Isso pode efetivamente levar à decepção, tristeza, tédio e nostalgia do Um em vão prometido ou a diversos tipos de toxicomanias entre as várias doenças do discurso capitalista. A sociedade regida pelo discurso capitalista se nutre pela fabricação da falta de gozo, produz sujeitos insaciáveis em sua demanda de consumo. Consumo de gadgets que essa mesma sociedade oferece como objetos do desejo. Promove assim uma nova economia libidinal. Por outro lado, ao colocar a mais-valia no lugar da causa do desejo, essa sociedade transforma cada um num explorador em potencial de seu semelhante para dele obter um lucro de um sobre-trabalho não contabilizado – o que produz a dita “lei de Gérson”, querer obter vantagem em tudo. Se o Gérson levou a culpa, isso só faz escamotear que essa é a lei do discurso capitalista. Obter vantagem para quê? Para consumir mais, mais objetos produzidos pelo capitalismo científico-tecnológico. Nesse ciclo, o lugar da mais-valia coincide com o dos objetos de gozo – gozo prometido e não alcançável por estrutura. “A mais-valia”, diz Lacan, “é a causa de desejo da qual uma economia faz seu princípio”. A ciência no discurso capitalista é a produtora dos objetos de consumo, que operam como causa de desejo. O saber científico nesse discurso é capitalizado para fabricar os objetos que possam representar os objetos pulsionais [S2 ® a]. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 35 O Discurso do Capitalista fabrica um sujeito animado pelo desejo capitalista – desejo que o leva a produzir, ou seja, materializar o significantemestre desse discurso: o dinheiro que em seu caráter virtual se chama capital [$ ® S1]. Esse sujeito como falta-a-ser é o sujeito como falta-a-ser-rico; e a faltade-gozo se inscreve como a falta-a-ter-dinheiro, é o sujeito descapitalizado. Assim o Discurso do Capitalista produz o sujeito inadimplente, o sujeito da dívida que se eterniza. O Discurso do Capitalista cria a dívida que só aumenta: começa-se a se pagar os juros, os juros dos juros e os juros dos juros dos juros. A moratória é, pela lógica do Discurso do Capitalista, exdívida. A moratória constitui uma figura da castração na medida em que coloca uma barreira à insaciabilidade do capital que se manifesta na perenização da dívida. O Discurso do Capitalista difere do Discurso do Mestre/senhor que estabelece uma laço social entre aquele que manda e aquele que trabalha, como aparece em Hegel na constituição da consciência de si na dialética do senhor e do escravo. Neste há uma articulação entre o desejo de um com o desejo do outro, entre a vida e a morte, entre o trabalho e a casa, entre o objeto e o gozo. Nessa dialética, o saber transformador que é o trabalho está do lado escravo. No Discurso do Capitalista não há mais vínculo entre o senhor moderno, o capitalista, e o proletário. A figura do capitalista de hoje tende a desaparecer e no lugar dominante temos a figura impessoal do capital globalizado. O Senhor Absoluto moderno, que vem no lugar hegeliano da Morte, é o Capital em relação ao qual, vaticina Lacan, somos todos proletários. O discurso capitalista ao ser dominante visa a sobrepor o mercado à sociedade. Para ele, não existiria mais sociedade, só mercado, cujas leis, já dizia Adam Smith, são invisíveis. A mão invisível que regula o mercado (ainda que se tente personificar o capital na figura do empresário capitalista) não tem regulação nenhuma possível pois não há lei, só imperativo. Trata-se de um discurso sem lei, que foraclui a castração como indica Lacan. Ele é impossível de ser regulado, confessa o próprio George Soros, ele mesmo assustado com as ondas de altas e quedas das bolsas provocadas por suas próprias intervenções. O Discurso Capitalista não é um laço social que regulariza como o é o Discurso do Mestre. Sua política é a liberal, do neoliberalismo, do cada um por si e um contra todos, já que o sol não brilha para todos. O Discurso do Capitalista não é regulador, ele é segregador. A única via de tratar as diferenças em nossa sociedade científica capitalista é a segregação determinada pelo mercado: os que tem ou não acesso aos produtos da ciência. Trata-se, portanto, de um Discurso que não forma propriamente laço social mas segrega: daí a proliferação dos sem: terra, teto, emprego, comida, etc. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 36 Os que estão with o discurso capitalista são out: os without. Quem é com está sem, sua lógica obriga. Em contraposição, a psicanálise propõe a ética da diferença e não a ética da segregação. Como Pensar a Ciência no Discurso do Capitalista? O discurso capitalista, como dissemos, produz objetos que visam a saturação do sujeito tamponando sua falta com gadgets que propõe como objetos de gozo anulando toda questão sobre o desejo. Esse modo de laço social faz crer que é possível o sujeito encontrar em um objeto sua satisfação. O significante-mestre capital é quem comanda o saber científico: é ele quem financia as pesquisas, patrocina os pesquisadores, induz a elaboração do saber, obrigando este a dobrar-se à “política dos resultados”. Pois o saber científico, praticamente subsumido pela tecnologia, tem que produzir objetos S2 ® a. É o que vem apontando, entre outros, Marilena Chauí no que tange a universidade que está pressionada a uma política de resultados e direcionada para o mercado. Na psiquiatria, os objetos produzidos pelo saber da neurociência são os medicamentos que podem facilmente virar objetos de consumo quando a psiquiatria entra no discurso do capitalista. É preciso uma ética que possa vir barrar o imperativo de gozo imposto pelo discurso capitalista científico neoliberal: império do ter, império do individualismo, da competitividade. Esse discurso cria uma comunidade monstruosa de pares, como aponta Roberto Romano. É uma comunidade, melhor dizendo de pseudo-pares – que se querem ímpares (pois cada um é ímpar) – em que são menos pares e colegas juntos por uma mesma causa ou uma mesma orientação, do que inimigos mordidos pela agressividade e pela competitividade em obter financiamento para suas pesquisas. Basta um sinal verde para que se soltem os cães ferozes da reserva de mercado atacando-se colegas, na véspera “amigos”, em nome de uma defesa territorial. É o que se vê na política universitária, denunciada por Romano, é que se viu recentemente entre psicanalistas. Degradação dos laços sociais, império do discurso capitalista na área do saber. Contra o imperativo do ter, a psicanálise propõe a ética da falta-a-ter, que se chama desejo, e a gestão, não do capital financeiro, mas do capital da libido, por definição, sempre no negativo. Contra o imperativo da competitividade neoliberal, a ética da diferença. Gostaria de lançar aqui a seguinte questão: até que ponto o desenvolvimento das neurociências e da psicofarmacologia se presta ao Discurso Capitalista? O dinheiro investido em suas pesquisas não poderiam estar invertendo a ordem das coisas? Em vez de termos drogas cada vez mais eficazes para combater novos males decorrentes da transformação da Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 37 sociedade, será que não são os “males” que agora são criados e categorizados em novas síndromes para serem então tratados pelas novas drogas? O Diagnóstico a Serviço do Discurso Capitalista Temos aqui duas hipóteses: a evolução da ciência na psiquiatria produz novos remédios para novos males; ou ela produz os “males”, pseudos novos males, para que sejam tratados por medicamentos que ela fabrica. Neste caso, vemos as neurociências a serviço do discurso capitalista não só produzindo novas drogas (novos gadgets) mas produzindo também novas categorias diagnósticas que justificariam assim “médica-mente” a utilização dos psicofármacos. Senão, vejamos. O que orienta hoje o psiquiatra em sua função diagnóstica? Para que o diagnóstico não seja uma etiqueta ou um simples procedimento classificatório digno de um “jardim das espécies” apropriado para a botânica ou para o zoológico, é necessário que ele cumpra a função de remeter à estrutura que o condiciona. Como não temos na psiquiatria a autópsia que venha confirmar a doença da qual o sintoma seria o sinal, é na construção do caso clínico – a partir de um saber sobre a subjetividade particular de cada paciente que a psicanálise permite elaborar – que um diagnóstico aparecerá como conclusão do processo de investigação. O que vemos hoje nos manuais psiquiátricos de diagnóstico? Os tipos clínicos clássicos da neurose não mais se encontram no DSM IV ou no CID 10. A neurose obsessiva foi substituída por TOC (Transtornos Obsessivos Compulsivos) e a histeria por Transtornos Dissociativos e Somatoformes. Ao substituir as doenças próprias da psiquiatria clássica por transtornos opta-se mais pela descrição e pela comunicação desses fenômenos entre colegas que por uma clínica em que cada caso seja efetivamente um caso e onde os fenômenos sejam considerados sintomas, ou seja, formações de compromisso entra as diversas instâncias do aparelho psíquico. Os manuais de diagnóstico atuais parecem tomados pela preocupação de se constituir uma língua comum entre psiquiatras de todo o mundo, como um esperanto que pudesse terminar com o mal-entendido próprio à comunicação. Baseados no ideal da visibilidade e na dualidade saúde versus transtorno, os manuais dão a impressão de se pretenderem um instrumento que associa o máximo da descrição (um paciente pode receber vários números correspondentes a múltiplos diagnósticos) dentro de uma margem mínima de erro com o ideal de transmitir um modelo médico para a psiquiatria. Se o próprio médico fosse fazer, a título de exercício, seu próprio diagnóstico com franqueza e sem pudor, ele certamente encontraria muitos números que Ihe cabem. E assim como Simão Bacamarte, generalizaria a tal ponto os diagnósticos que eles perderiam totalmente seu valor clínico. Os manuais de diagnóstico são deliberadamente a-teóricos, voltando-se para uma descrição que seja partilhada pela maioria dos psiquiatras do mundo. Assim toda e qualquer Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 38 hipótese etiopatogênica é excluída, como também desaparece o próprio conceito de doença, uma vez que esta não deixa de estar vinculada a um processo do qual se espera conhecer, um dia, seus elementos e sua dinâmica. Fundar uma prática de diagnóstico baseada no consenso estatístico de termos relativos a transtornos, que por conseguinte devem ser eliminados com medicamentos, é abandonar a clínica feita propriamente de sinais e sintomas que remetem a uma estrutura clínica, que no caso, é a estrutura do próprio sujeito. É estar a serviço de uma psiquiatria ativa de resultados já estabelecidos previamente pela lógica do mercado de psicofármacos. Situando o problema no âmbito da ética, podemos nos perguntar se não estaria havendo uma inversão do procedimento psiquiátrico: os medicamentos determinam os diagnósticos. O desaparecimento da neurose da classificação psiquiátrica não teria alguma relação com o lançamento de medicamentos propondo o tratamento de transtornos neuróticos? Podermos dar como exemplo a propaganda de Zoloft para tratar de TOC. Restituir a função diagnóstica no tratamento psiquiátrico a partir de uma clínica do sujeito é um dever ético que a psicanálise propõe a psiquiatria. Assim como ir contra a dissolução da clínica substituída pelo binômio norma X transtorno, para privilegiar o sintoma como uma manifestação do sujeito. Isto é uma forma de sair do discurso do capitalista que condiciona desde o diagnóstico até o tratamento para restituir à medicação seu justo valor paliativo e não resolutivo do sofrimento mental. Pois a psicanálise não se opõe à psiquiatria, mas sim a todo Discurso que suprime a função do sujeito. Pois clinicar é preciso e não existe clínica dessubjetivada. Eis a ética da diferença que a psicanálise contrapõe à prática normativa da psiquiatria enquanto serva do capital. Não devendo sujeitar-se nem ao discurso universitário nem ao discurso capitalista, a ciência – eis a tarefa que cabe aos cientistas – deve corresponder à estrutura de discurso que mais dela se aproxima: o discurso da histérica. No caso da psiquiatria, isto significa que o avanço na ciência aqui deve ser motivado pelo sujeito patológico, sofredor, sujeito dividido, sujeito da esquize que se manifesta na clínica. É preciso que o agente das neurociências seja o sujeito da clínica ( $ ) que ao interpelar com seu pathos o mestrecientista, ( S2 ), o faça produzir o saber ( S2 ), mesmo sabendo que este saber não dará conta de todo real ( a ) em jogo na verdade de sofrimento subjetivo. Texto publicado originalmente em: Psicanálise e Psiquiatria Controvérsias e Convergências (Editora Rios Ambiciosos), coletânea organizada pelo autor que fez parte da Coleção Bacamarte ao lado de Extravios do Desejo - Depressão e Melancolia (org. A. Quinet), A Clínica da Esquize - Autismo e Esquizofrenia na Clínica da Esquize (org. S. Alberti); A Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 39 Psicanálise e a Clínica da Reforma (F. Tenório) e Na Mira do Outro - A Paranóia e seus Fenômenos (org. A. Quinet). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 40 Crítica ao Gozo Capitalista Raymundo de Lima O final de ano é ao mesmo tempo bom e ruim. Bom momento para se fazer reconhecimento quanto as realizações e os ganhos. É quando revemos parentes e amigos, uma maneira de dar provas que continuamos vivos, apesar de tudo. Mas, também é momento se encarar o lado negativo: reconhecer as perdas, os danos e o que ficou por se realizar. Imagens de tristezas e de dor nos obriga a elaborar lutos, imprescindíveis para podermos bem continuar a vida. No âmbito social, nos vemos jogados na repetição dos anos anteriores do consumismo, pressionando-nos a comprar objetos que na maioria não necessitamos. O ideologia proclama “consuma, para existir”. Como se não bastasse passar o ano sob os efeitos da globalização, a competição do mercado, o medo do desemprego ou de fechar a loja ou empresa no final do ano, temos ainda que suportar ouvir em todos os lugares aquelas harpas de Natal, hoje dividindo espaço com o romantismo tristonho de Roberto Carlos e o som carismático-alegrinho do Padre Marcelo, ambos seduzindo-nos a comprá-los. Ao lado da crítica marxista, a psicanálise pós-Freud, também fez uma crítica ao discurso capitalista, que, como sabemos, atravessa até mesmo os descapitalizados, dos trabalhadores aos micro-empresários. O capitalismo constitui um modo de pensar e agir que influencia a todos, inconscientemente. Sua função é produzir desde coisas até idéias, valores e crenças que se situam no lugar da causa do desejo humano. Portanto, a função ideológica do sistema capitalista serve tanto para justificar suas contradições quanto para disfarçar sua radical falta de ética. No capitalismo, todos perdem sua condição de sujeitos autônomos e viram consumidores-objetos. Mas, compensados pela ilusão de liberdade. A bem da verdade, no capitalismo, ao consumir coisas somos também consumidos pelo sistema. É próprio dele se intensificar o superego de todos, uniformizando-os na resposta a ordem: “Consuma. Tenha. Só assim gozarás a vida”. Desgraçados aqueles coitados que não conseguem responder afirmativamente a ordem do capital. Pagam com a marginalização, a exclusão e a angústia. Os pobres, são visivelmente excluídos do sistema porque faltalhes o poder de compra. Os de classe média, quer sustentados por salário ou algum capital da micro empresa, tentam, mas também não conseguem acompanhar os apelos do poder capitalista. Quem já não sentiu ansiedade por não poder acompanhar o lançamento do mais novo tipo de celular, de carro, do DVD que vai substituir os CDs? Após ter comprado um videogame, vi o Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 41 entusiasmo dos meus filhos quase ficar abalado quando um vizinho disse-lhes que já tinha um modelo mais novo no mercado. Ou seja, tais objetos representam mais que coisas de uso. Sendo fetiches, eles transbordam em significados, tais como: estar sintonizado com os últimos lançamentos da tecnologia, o status social, prestígio, poder de compra (“eu tenho, você não tem”). É bom estar incluído e causa angústia se ver excluído. E, o modo de ser incluído no capitalismo é ter coisas. Não ter é se tornar marginal ao sistema. Em verdade, a operação capitalista faz o objeto agir amarrando o sujeito. Hoje em dia, esse objeto “amarrador” é produzido pela ciência, ou melhor, pela tecnologia, definitivamente a serviço da ideologia do mercado. A universidade não fica fora desse jogo. Cada vez mais os projetos de pesquisa e ensino estão voltados para apoiar a lógica de mercado. Não mais existe produção de saber desinteressado. O capitalismo é mestre em colocar em todos os espaços “a mais-valia no lugar da causa do desejo e transformar cada um em explorador potencial do outro, para dele obter lucro, um sobre-trabalho não contabilizado” (A.Quinet). Diante dessa dominação sem limites, de corpos e mentes, em escala mundial, surge uma pergunta: para além do posicionamento tradicional de esquerda, e das ONGs – recentemente em protesto contra a globalização em Nice-Franca, será que existem outros tipos de reações “inconscientes” a essa dominação e uniformização de tudo? O psicanalista Antonio Quinet, em recente seminário em Belo Horizonte, ensaiou uma reflexão que aponta alguns atos psicossociais como formas de protestos contra o imperialismo capitalista. O primeiro protesto “inconsciente” estaria em marcha por movimentos religiosos. Ou seja, tanto os discursos capitalista e científico que pretendem a dominação total dos espaços humanos estariam provocando, hoje, uma reação religiosa de massa. Por traz do crescimento das várias religiões e seitas haveria aí a recusa de acreditar na ideologia que diz que a totalidade do poder está no Capitalismo e todo o saber está na Ciência. Ora, para o crente, “a totalidade de tudo está é em Deus. Quem é onisciente é Deus. Só Deus é o Poder”. Esse “argumento” atravessa tanto as seitas, os esoterismos até mesmo as grandes religiões tradicionais ou modernas, da Teologia da Libertação aos Carismáticos e Fundamentalistas cristãos ou islâmicos. Ao contrário de Marx, Freud e Nietzsche, que imaginaram a ciência reinando em paz sem o “ópio” ou “ilusão religiosa”, observa-se hoje um fato social curioso: quanto mais se desenvolve a ciência, mais há um aumento impressionante da religiosidade. “O desenvolvimento da ciência não tem produzido mais materialistas agnósticos ou ateus, mas tem produzido mais religiosos”, de crentes tradicionais aos que acreditam em milagres, duendes, fadas ou o poder dos astros. O mundo continua sendo vítima de fanáticos como Jin Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 42 Jones, Koresh, Assarara, o Hesbbolah, mas, há também grupos de religiosos que dialogam fé e razão, são críticos dos maus governos e, lutam pelo ecumenismo e pela paz. Também multiplicaram-se as formas de religiosidade. Se há demanda de artistas excêntricos, alguém funda uma nova igreja para atendê-los. Se há muitos humildes se sentindo pouco à vontade em templos suntuosos, então funda-se mais uma portinha com uma placa “igreja/templo” na frente, geralmente num bairro de periferia. Vale até mesmo fazer o culto numa sala de estar de família. A cultura pós-moderna já chegou as coisas da fé. Como qualquer negócio, estão se alastrando construções em série de igrejas e mega-encontros nos estádios de futebol, praças ou ruas. Evidentemente que o capitalismo está por traz dessa explosão religiosa. Sem nenhuma má fé e sem pudor, ele explora mais um ramo de negócio. Estamos numa época cujos valores “plantam bananeira” e a fé para ser reconhecida tem que virar show, com músicas segmentadas e coreografadas tudo made in capitalismo, estetizado por Hollywood. As reações patológicas constituem a segunda forma de protesto contra o discurso capitalista. Doenças como a depressão, o alcoolismo, os espancamentos domésticos de mulheres e crianças, as toxicomanias nas suas mais variadas formas, desde medicamentos às drogas ilícitas, são resultados de uma ideologia que promete, mas jamais satisfaz a alma das pessoas. As coisas dos shopping centers podem trazer conforto, jamais felicidade. Em verdade, o segredo do capitalismo é manter os sujeitos sempre em falta. O sistema sabe calcular como fazê-los voltar a demandar mais e mais coisas. Suspeita-se que as toxicomanias jamais serão erradicadas no capitalismo porque o sistema é quem as sustenta. “O toxicômano é o modelo de consumidor contumaz”, declarou a psicanalista Angela Valore. Claro, de consumidor, ele termina também sendo consumido duas vezes: pelas drogas e pelo sistema. Mas, calcula o narcotraficante “inteligente” a exemplo do que vinha acontecendo com os consumidores de crack, ele não deve ser consumido todo. Se todos morrerem de consumir crack, não haverá mais produção, nem comércio. A lógica do narcotraficante e do ideólogo do capitalismo é que, há de se ter um consumidor dependente mas distante na morte. O capitalismo é um sistema que vicia a sociedade no limite do consumo. Terceiro, há ainda, uma patologia advinda dessa ideologia: Como as pessoas são mediadas por valores mais representativos para o sistema capitalista, tais como: coisas, títulos, cargo, função, elas terminam sendo transformadas em objetos. Alienadas de sua totalidade existencial, as pessoas muito pouco se dão umas as outras. No trabalho e nas escolas há colegas, nunca amigos. Nas igrejas, irmãos em Cristo. No mundo dos negócios, parceiros. No crime, cúmplices. Resulta daí um “autismo induzido” (sic!); um faz de conta que somos autênticos nos relacionamentos de trabalho, na Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 43 escola, na universidade, nas igrejas, nos clubes. Faz de conta que somos amigos, mas no fundo, todos sabem da pouca confiança existente com relação ao outro, sentem a falta de profundidade nas trocas humanas e o pouco tempo que sobra para conversar e se conhecer melhor o próximo. O sistema capitalista impõe-nos um mascaramento automático: “tudo bem?” e o outro: “tudo”. Não há disposição ou interesse de perguntar “e você, como vai?” Afinal, no capitalismo, os incluídos no consumo se sentem bem porque estão “preenchidos” pelo Deus do consumismo. Como disse K. Popper, todas as tentativas ideológicas de trazer o céu para a terra, não só fracassaram como até fundaram o inferno entre os homens. Foi o caso do nazi-fascismo, do comunismo, dos fanatismos de todos os tipos, e no momento, do capitalismo de corte neoliberal. Que haja mais conscientização e que as pessoas não percam sua condição de sujeitos de seu desejo na onda consumista das festas de fim de ano. É uma simples sinalização psicanalítica para o próximo milênio. O presente texto foi publicado originalmente na Revista Espaço Acadêmico (http://www.espacoacademico.com.br/). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 44 Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo Nildo Viana O sucesso das histórias em quadrinhos no século 20 é espetacular. Elas começaram a ocupar um espaço cada vez maior a partir do início deste século. Um conjunto de pesquisadores começaram a se debruçar sobre elas e fornecer sua explicação, tais como sociólogos, semiólogos, etc. Uma das constatações que se pode retirar do estudo das histórias em quadrinhos1 é a de que ela pode ser dividida em diversos gêneros. Podemos citar os quadrinhos humorísticos, eróticos, de aventuras, entre outros. Iremos, aqui, tratar de um desses gêneros, a saber: o gênero da super-aventura. Neste gênero os personagens principais são os super-heróis. Este gênero surge num determinado período histórico. Geralmente a história das histórias em quadrinhos é dividida em períodos, a saber: o primeiro período, correspondente à época da formação, vai de 1895 a 1928, marcado pela existência dos primeiros quadrinhos Yelow Kid (menino amarelo) e Buster Brown (embora existam interpretações discordantes a respeito do nascimento dos quadrinhos e do papel pioneiro geralmente atribuído a Yelow Kid) e pelo seu desenvolvimento com as histórias de Little Nemo in Suberland (O Pequeno Nemo no País dos Sonhos, de Oucault), Krazy Kat e o surrealista e ainda atual Félix, The Cat (O Gato Félix). Neste 1 Apesar de ser repetitivo em textos sobre histórias em quadrinhos, nunca é demais lembrar que as Histórias em Quadrinhos recebem diversas denominações em países diferentes: em Portugal, são chamadas de histórias aos quadradinhos; na Itália, fumetti (“fumacinhas”, os balões do diálogo); na França, Bandes Dessinées (Bandas — ou “tiras” — Desenhadas); nos Estados Unidos, Comics (derivado de Comics Trips, Tiras Cômicas), Comix, Comics Trips, Funnies (“engraçados”), que apesar de perderem o seu caráter exclusivamente humorístico, manteve o nome de origem; na Espanha Tebeo (derivado do nome de uma Revista em Quadrinhos muito popular neste país cujo título era a sigla T. B. O. que ficou sendo chamado tebeo ou tabeó); no México, Historieta; no Japão, Mangá; no Brasil, Histórias em Quadrinhos ou Gibi (derivado de uma antiga revista com o mesmo nome, palavra que significava originalmente “moleque”). Sobre estas denominações, cf. BIBE-LUYTEN, Sônia. O Que é História em Quadrinhos. 2a edição, São Paulo, Brasiliense, 1987; MOYA, Álvaro (org.). Shazam! São Paulo, Perspectiva, 1972; B ARON-C ARVAIS, Annie. La Historieta. México, Fondo de Cultura Económica, 1989. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 45 período, os quadrinhos apareciam em tiras de jornais e não em revistas e eram produzidos no círculo dos jornais. Mas esta situação mudou: “Este ciclo de libérrima fantasia criativa, tanto na escolha dos personagens e situações, como em audácias técnicas e narrativas, entrou em declínio por volta de 1915, devido em parte à estandardização e conservadorismo industriais impostos ao gênero, quando os comics ficaram tutelados pelos Syndicates distribuidores de material desenhado aos jornais, poupando assim às empresas jornalísticas a manutenção de desenhistas privativos, embora tivessem de renunciar ao luxo do ‘exclusivo’ nesse campo. Estes Syndicates, que representaram o fim de uma fase jornalística tradicional em benefício de um mais elevado nível capitalista de divisão do trabalho e da produção, foram na realidade uma conseqüência lógica do prévio desenvolvimento das agências distribuidoras de notícias na indústria jornalística: a francesa Havas (1835), a inglesa Reuter (1851) e as norteamericanas Associated Press (1848) e a United Press (1907). Paralelamente às agências de notícias, Irving Bacheller criou, em 1880, uma agência de representação de jornalistas, detendo os direitos exclusivos de suas crônicas e reportagens, iniciativa esta aplicada em 1881 por S. S. McClure para a produção de novelistas (como Arthur Conan Doyle, Rudyard Kipling e Robert Stevenson). Além disso, a existência de um novo e crescente mercado para ilustrações, anedotas gráficas e comics motivou o aparecimento, desde o início do século, de agências distribuidoras deste material, além do literário, tais como: Color Process Syndicate, Otis Wood Syndicate, etc. No entanto, o máximo impulso que esta atividade recebeu proveio do germano-americano Moses Koenigsberg, que desde 1905 se ocupava na distribuição de comics para a cadeia Hearst; em 1915, criou o King Features Syndicate, poderosa agência de dimensão internacional, à qual se seguiriam o Chicago TribuneNew York News Syndicate, fundado em 1919 pelos diários de Chicago e Nova York, o United Features Syndicate, filial da agência United Press, etc.”2. Desta forma, ocorre uma estandardização tanto formal quanto temática (segundo Gubern, “preferência por assuntos e situações inocentes, evitando incomodar sua vasta e heterogênea clientela”) das histórias em quadrinhos. Esta burocratização e mercantilização da produção e distribuição das histórias em quadrinhos teve como conseqüência uma diminuição considerável da liberdade de produção dos criadores de histórias. A chamada “tira familiar” que, embora fizesse uma sátira com a família (mas reafirmando-a), passou a se impor, tal como na obra de McManus (criador de Pafúncio e Marocas). O período posterior foi marcado pelo apogeu das histórias em quadrinhos. De 1929 a 1939 surge e se desenvolve com sucesso o gênero aventura, expresso nas aventuras de Tarzan (Harold Foster), O Príncipe Valente (também de Foster), Buck Rogers (Dick Calkins), Mandrake e Fantasma 2 GUBERN, Román. Literatura da Imagem. Rio de Janeiro, Salvat, 1979, p. 88. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 46 (ambos de Lee Falk), Terry e Steve Canyon (criados por Milton Caniff), Agente Secreto X-9 e Flash Gordon (os dois de Alex Raymond) e o detetive Dick Tracy (produzido pelo escritor de romance policial Chester Gould), entre inúmeros outros. Estas histórias em quadrinhos abriram caminho para o fantástico e para o gênero da super-aventura. O medieval Príncipe Valente tinha fantásticas aventuras enfrentando monstros da pré-história, Tarzan também se aventurava em civilizações esquecidas convivendo simultaneamente com situações típicas do passado (pré-história) e do presente, Mandrake realizava as mais fantásticas mágicas e efeitos ilusionistas em suas aventuras, Flash Gordon vivia aventuras em outros planetas, Brick Bradford também realizava viagens inacreditáveis, inclusive no mundo microscópico (veja o fantástico Viagem ao Interior de uma Moeda) e assim por diante. Do mundo dos heróis ao mundo dos super-heróis foi um passo3. Quem São os Super-Heróis? Alguns poderiam falar em gênero dos super-heróis, mas a definição de super-herói que forneceremos a seguir irá esclarecer a escolha da denominação de super-aventura. Em primeiro lugar, é necessário distinguir o herói do super-herói. Em sentido amplo, o herói é um indivíduo que possui qualidades consideradas especiais, tais como habilidades físicas, mentais ou morais. A coragem é o atributo mais característico do herói. A qualificação de herói, no entanto, não é reservado apenas ao mundo da fantasia, pois ele é aplicável a indivíduos concretos que se destacam em nossa sociedade. O herói, portanto, possui uma existência real. Ele pode ser transportado para a literatura, as histórias em quadrinhos, o cinema, a televisão, etc.4. Nas 3 Esta periodização está incompleta, pois deveria abranger o período posterior que apresenta não só a super-aventura como também a criação dos quadrinhos mais ideológicos de todos os tempos: Disney, que surge com Mickey Mouse e se desenvolve com toda a “Família Disney” (sobre a família de patos burgueses vejase: D ORFMAN, Ariel & MATTELART, Armand. Para Ler o Pato Donald. Comunicação de Massa e Colonialismo. 2a edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980; MIRANDA, Orlando. Tio Patinhas e os Mitos da Comunicação. 2a edição, São Paulo, Summus, 1978; MARTINS, José de Sousa. Tio Patinhas no Centro do Universo. In: Sobre o Modo Capitalista de Pensar. 3a edição, São Paulo, Hucitec, 1982). Posteriormente, ocorre o desenvolvimento de outros gêneros tais como o erótico (Barbarella, Jodele, Saga de Xam, etc.), o violento (Kriminal, Diabolik, Satanik), o gênero marginal (crítico e politicamente engajado), entre inúmeros outros. O período da crise (1939-1948) foi superado e novos gêneros surgiram e continuam se desenvolvendo. Sobre o desenvolvimento histórico das histórias em quadrinhos se encontra diversas informações em Marny, Gubern, Bibe-Luyten, Baron-Carvais e Moya. 4 Sobre o herói na ficção: cf. KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo, Ática, s/d. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 47 histórias em quadrinhos existem muitos heróis, tais como Tarzan, Akim, Targo, Tex Willer, Tintin, Asterix, etc.; nos seriados de TV se pode ver Zorro (os dois “zorros”, o capa e espada e o cowboy), James Bond, O AranhaNegra, Daniel Boone, Paladino, A Justiceira, etc. O que distingue um super-herói de um herói? A primeira resposta, e a mais simples, é a de que o herói possui habilidades excepcionais mas humanamente possíveis enquanto que o super-herói possui habilidades sobrehumanas. Os super-heróis são sobre-humanos e o modelo que encarna este ser extraordinário é o Super-Homem. A palavra inglesa “super” tem como correspondente em português a palavra “sobre”, e isto quer dizer que SuperHomem significa sobre-homem. Mas isto é insuficiente para definir um super-herói. Um super-herói só é um super-herói quando tem que colocar em prática seus poderes e isto só pode ocorrer havendo uma população de seres poderosos num mundo em que ele vive e combate, ou seja, o super-herói só pode existir, ao contrário do herói, em constante relação com super-vilões e com outros super-heróis. Em poucas palavras, o super-herói só pode existir havendo um mundo habitado por seres super-poderosos. O Super-Homem, o primeiro super-herói criado (em 1938), vive num mundo habitado por Lex Luthor, Batman, Aquaman, Arqueiro Verde, Coringa, etc. O Homem-Aranha convive com o Dr. Octopus, o HomemAreia, o Duende Verde, o Hulk, o Homem de Ferro, etc. Por conseguinte, podemos dizer que um super-herói é: 1) um ser que possui poderes sobrehumanos, extraordinários; 2) um ser que existe numa convivência com outros seres extraordinários e poderosos como ele. Só pode existir um super-herói no interior de uma Super-Aventura, ou seja, no interior de uma aventura extraordinária envolvendo outros seres extraordinários. Mas como surge um super-herói? De onde vem os seus poderes sobrehumanos? Alguns já nascem com estes super-poderes, tal como é o caso de super-heróis (e super-vilões) que são de outros planetas ou mundos, como é o caso do Super-Homem (que veio do planeta Clipton) e de Thor, o deus do trovão, que já nasce com super-poderes por ser um deus. Os super-heróis que nascem humanos adquirem seus super-poderes por três vias diferentes: a) através de suas habilidades físicas e mentais excepcionais criam roupas e instrumentos que multiplicam suas capacidades. Este é o caso de Batman, Homem de Ferro, Gavião, o Arqueiro, etc. Estes, na verdade, poderiam ser considerados apenas heróis, mas por estarem inseridos numa super-aventura (o mundo de Batman é o mesmo do Super-Homem, Mulher-Maravilha, Aquaman, etc.; e o mundo do Homem de Ferro e do Gavião é o mesmo do Homem-Aranha, Thor, Surfista Prateado, Namor, X-Man, etc.); b) através do contato com radioatividade, energia nuclear ou cósmica, etc., eles realizam um mutação e adquirem super-poderes. O Homem-Aranha ganha seus poderes graças a uma picada de uma aranha contaminada com radioatividade; Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 48 o Quarteto Fantástico (Homem-Elástico, o Coisa, Tocha Humana e MulherInvisível) adquire seus poderes após pousar numa ilha infectada de radioatividade cósmica; Hulk através da exposição do cientista Bruce Banner (no seriado da televisão, David Banner) aos raios gama; o Surfista Prateado através dos poderes cósmicos doados a ele por Galactus; c) através da iniciação no mundo da magia, onde se adquire poderes mágicos, tal como é o caso do Dr. Estranho. A partir disto podemos distinguir três tipos de super-poderes: o poder tecnológico, o poder mágico e o poder energético (ou “cósmico”). O poder tecnológico é uma extensão do corpo humano, é um instrumento (roupa, arma, etc.) que permite ao seu portador ultrapassar os limites humanos (voar, lançar raios, etc.); o poder mágico se inspira no pensamento religioso e é daí que vem o seu caráter misterioso, inclusive de sua origem; o poder energético é um poder que se extrai da natureza, ou seja, o ser humano (ou qualquer outro ser) se apossa da energia (cósmica ou qualquer outra) e ela se torna uma parte dele. A diferença entre o poder tecnológico e o poder energético ou mágico se encontra no fato de que o portador do primeiro depende do seu aparato tecnológico (Batman depende de sua roupa, cinto, carro, etc.; o Homem de Ferro depende de sua armadura) enquanto que o portador do poder energético ou mágico contém o poder em sua própria estrutura orgânica. No mundo dos super-heróis a magia (o sobrenatural) e a ciência (o tecnológico) se misturam e mantêm suas especificidades. Os super-heróis não são apenas aquilo que se vê nas revistas em quadrinhos. Existe algo mais que não está escrito ou desenhado. Trata-se da emergência dos super-heróis. Por qual motivo surgem os super-heróis? Para respondermos esta questão teremos que, brevemente, tratar da relação entre super-heróis e sociedade. Os super-heróis surgem na sociedade capitalista contemporânea, sendo que esta proporciona suas condições de possibilidade. Para existir histórias em quadrinhos é necessário existir meios de produção (tecnologia de reprodução em massa, por exemplo) e distribuição de histórias em quadrinhos, bem como um mercado consumidor. Mas estas determinações estão presentes não só no gênero super-aventura mas em qualquer outro gênero de histórias em quadrinhos. O que possibilita este gênero específico, além das determinações gerais das histórias em quadrinhos, é o surgimento de um mercado consumidor específico, a juventude, que começa a ser explorado com o gênero da aventura na década de 30 (1931-37), com as histórias fantásticas de Flash Gordon, Mandrake, Dick Tracy, Príncipe Valente, Buck Rogers, Tarzan, Brick Bradford, Jim das Selvas, Fantasma, Garth, etc.). Além disso, o enclausuramento dos indivíduos em instituições burocráticas e o domínio do mercado na vida social da sociedade capitalista propiciaram uma necessidade de se sentir algo no imaginário que não se podia sentir na realidade. O processo de Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 49 burocratização e mercantilização das relações sociais no capitalismo cria a necessidade, através da fantasia, de superar a prisão que se tornou a vida social e conquistar uma liberdade imaginária para compensar a falta de liberdade real. No presente texto deixaremos de lado o problema das determinações sociais do gênero da super-aventura e desenvolvermos uma análise de apenas como elas se manifestam concretamente nas histórias, ou seja, em sua estrutura narrativa própria. Iremos destacar, neste sentido, num primeiro momento, a relação entre super-heróis e axiologia (“ideologia”), e num segundo momento, a relação entre super-heróis e inconsciente coletivo. Isto, sem dúvida, nos remeterá ao estudo da relação entre super-heróis e sociedade, mas isto só ocorrerá de forma subordinada ao nosso objetivo central. Super-Heróis e Axiologia A partir da definição acima de super-herói, podemos, agora, relacionar super-herói e “ideologia” (axiologia)5. Muitos já denunciaram o caráter “ideológico” dos super-heróis. Os nazistas, por exemplo, afirmaram que “o Super-Homem é judeu”. Sem dúvida, a era da super-aventura surge no período que antecede a Segunda Guerra Mundial. A necessidade de heróis de carne e osso para sacrificar sua vida na guerra criou a necessidade da fantasia dos super-heróis. O Super-Homem surgiu neste contexto e a afirmação dos nazistas é correta em um certo sentido: o Super-Homem não é judeu no sentido correto do termo, já que ele não possui religião (e nem no sentido nazista e ideológico do termo, já que o Super-Homem não é um ser humano, não poderia ser da “raça” dos judeus) mas é “judeu” no sentido de que realmente ele é inimigo dos nazistas e defensor dos Estados Unidos, devido 5 Utilizaremos as expressões ideologia e ideológico em dois sentidos. Um é o utilizado por alguns dos “críticos” das histórias em quadrinhos e tem o significado de uma concepção valorativa. Porém, numa perspectiva dialética, toda forma de consciência é valorativa. Desta forma, não há sentido em acusar algo de ser valorativo, pois tudo é valorativo. Quando se acusa as histórias em quadrinhos de serem valorativas o que se quer dizer na verdade é que elas possuem outros valores, que não os mesmos dos seus críticos. O que alguns querem dizer, neste caso, é, na verdade, “axiologia” e “axiológico”. Entendemos por axiologia o padrão dominante de valores em nossa sociedade, os valores burgueses (cf. VIANA, Nildo. A Questão dos Valores. Revista Cultura & Liberdade. ano 2, n. 2, abril de 2002). Quando utilizarmos os termos ideológico e ideologia neste sentido usaremos aspas para demarcar a diferença desta concepção com a nossa, mas na maioria dos casos substituiremos estas expressões por axiologia e axiológico. Para nós, ideologia é uma falsa consciência da realidade elaborada de forma sistemática (que, sem dúvida, carrega valores, que são correspondentes aos interesses da classe dominante). Sobre ideologia, cf. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 8a edição, São Paulo, Hucitec, 1990. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 50 ao fato dele simbolizar o “homem livre” norte-americano. Desta forma, ele assume a característica comum de todos os “inimigos imaginários” criados pelos nazistas, assumindo a forma de mais um “conspirador judeu”. O caso do Capitão América é ainda mais esclarecedor. A sua origem, na ficção, ocorre durante a Segunda Guerra Mundial. Steve Rogers era um soldado que foi exposto a uma experiência científica que pretendia criar super-soldados norte-americanos para combater os seus inimigos na Segunda Guerra Mundial. Um soro foi criado para fornecer uma força sobre-humana aos soldados e a experiência com Steve Rogers apresentou os resultados esperados. O super-herói foi reforçado por um uniforme – que é inspirado na bandeira dos Estados Unidos – e um escudo poderoso. Ele foi responsável por inúmeras vitórias do exército norte-americano. Por fim, ele caiu numa geleira e ficou congelado por décadas, até que, por acaso, Namor, O Príncipe Submarino, em um momento de irritação com os seres humanos, joga para longe uma imensa geleira e esta derrete libertando o Capitão América, que passa a atuar em nossa época. O Homem de Ferro também surgiu num contexto de guerra – a guerra do Vietnã – e foi no contexto desta guerra que Tony Stark foi obrigado a criar a armadura do super-herói, mais tarde alterada para uma cor e forma diferente. O seu caráter axiológico se encontra também na atividade enquanto indivíduo comum: “Tony passa a ser proprietário de um poderoso complexo industrial onde aperfeiçoa e constrói armas e materiais para guerra, em defesa do mundo capitalista”6. Mas, sem dúvida, a origem, o nome, a finalidade, a ação, as ligações com o poder oficial e o uniforme do Capitão América fazem dele o mais axiológico dos super-heróis existentes. A própria personalidade do Capitão América, marcada pelo “espírito de liderança” e “bom senso”, é expressão da axiologia norte-americana segundo a qual os Estados Unidos tem o papel de “líder mundial”. As histórias antigas do Capitão América durante a Segunda Guerra Mundial são extremamente axiológicas, e contam não só com a figura de Hitler e vilões poderosos (Caveira, Capitão Nemo, etc.) como aliados de confiança (Buck, O Patriota, Tocha Humana Original, Namor, etc.) como também aliados “duvidosos” na luta contra o nazismo, tal como o super-herói russo Guardião Vermelho, que até aparece conversando com outro ditador famoso da época, Stálin. Foi nesta mesma época que surgiu o herói Tio Sam, desenhado pela primeira vez pelo renomado Will Eisner e que fornece uma idéia do clima da época, pois o seu uniforme e nome, assim como os do Capitão América, já diz tudo. Muitos heróis e super-heróis foram acusados de serem axiológicos (“ideológicos”) devido ao racismo que se vê em alguns deles e isto reflete, 6 C AVALCANTI, Ionaldo. Esses Incríveis Heróis de Papel. São Paulo, Mater, p. 68. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 51 em alguns casos, a verdade. Estes e outros aspectos axiológicos podem ser encontrados em inúmeros super-heróis. O gênero da super-aventura é acusado de ser “ideológico” (axiológico) por outros motivos, tais como o “anonimato social” (identidade secreta), o “exemplo social” do super-herói, a imagem da sociedade como não sendo dividida em classes sociais, “mistificação do arsenal nuclear”, caráter atemporal das histórias7. Entretanto, consideramos que reside aí alguns exageros. O anonimato social ou identidade secreta (que, aliás, ao contrário do que pensa este autor, acompanha a maioria mas não todos os super-heróis), segundo o antropólogo Luís Fernando Baêta Neves, serve para demonstrar “a possibilidade de uma continuidade entre a vida quotidiana de qualquer indivíduo (de qualquer leitor, portanto) e a vida maravilhosa e plena de realização, de poder e de notoriedade de um herói sacralizado”8. Desta forma, há um ocultamento da personalidade civil que se expressa no exercício de uma “profissão corriqueira”. Os super-heróis trabalham como qualquer cidadão (Baêta Neves cita Batman como uma exceção e se esquece do Homem de Ferro, que também é um milionário), mas não usam seus super-poderes para se manterem financeiramente. Por qual razão? Por dois motivos, segundo este antropólogo: a) se fizesse isso estaria rompendo com a axiologia que apresenta o trabalho como “dignificante e enaltecedor”, que é aquele que é realizado dentro da ordem social e das normas legais; b) a grande ação heróica aparece como “gratuita” e como “obrigação” de todos, servindo como “exemplo social”. Desta forma, tal aspecto da vida do super-herói se apresenta como axiológica e conservadora, pois apresenta uma falsa consciência da realidade e faz apologia da sociedade e dos valores existentes. Esta visão apresenta alguns problemas. O “anonimato social” (identidade secreta) tem sua razão de ser na própria estrutura do gênero da super-aventura (e também dos heróis comuns) que é uma extensão da sociedade capitalista. Qual é a razão da identidade secreta? Em primeiro lugar, para proteger pessoas próximas do super-herói, que podem ser vítimas de seus inimigos. Os inimigos existem devido a luta pelo poder, a criminalidade, que são geradas pela desigualdade (social). Tendo-se em vista a existência dos super-vilões (quase que totalmente ausentes na análise de Baêta Neves) e a possibilidade de vingança, seqüestro, etc., nada é mais natural e necessário – numa sociedade caracterizada pela desigualdade e que por isso necessita de superheróis – do que a identidade secreta. Em segundo lugar, existem super-heróis que estão bastante próximos do poder (Batman e Robin, Capitão América, 7 Cf. B AÊTA NEVES, Luís Fernando. O Paradoxo do Coringa. Rio de Janeiro, Achiamé, 1979. 8 Cf. B AÊTA NEVES, Luís Fernando. Ob. cit., p. 92. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 52 etc.) mas a maioria possui uma relação ambígua com o poder. Basta citar os exemplos do Homem-Aranha e do Hulk para ver isto. De onde vem esta ambigüidade? Vem do fato de que a idéia de justiça e a ação do super-herói nem sempre está de acordo com a justiça oficial. Esta contradição entre a justiça oficial e a justiça do super-herói aponta para um questionamento da ordem jurídica-institucional e isto vai contra a argumentação de Baêta Neves. O fato do super-herói trabalhar como qualquer cidadão não é tão genérico assim, pois, além dos capitalistas (Batman, Homem de Ferro) existem aqueles que simplesmente não trabalham (Namor, Hulk, Visão, Surfista Prateado, etc.). Além disso, a profissão exercida geralmente não é de tempo integral, pois isto dificultaria a ação do super-herói, tal como a de jornalista (Super-Homem, Homem-Aranha), advogado (Demolidor), médico (Thor), etc., ou seja, são free-lance ou profissionais liberais. Há também casos onde os super-heróis usam seus poderes para ganhar dinheiro: o jornalista Peter Parker (Homem-Aranha) sempre usa suas habilidades para tirar fotografias para vender para o jornal O Clarim; a principal habilidade natural de Tony Stark (Homem de Ferro) é a intelectual, que ele utiliza como empresário, mas, mais importante que isso, o Homem de Ferro se apresenta socialmente como guarda-costas de Tony Stark (ou seja, de si mesmo em sua identidade de homem comum) e de suas empresas, o que significa que é um super-herói “por profissão”. Por fim, o fato da ação heróica ser “gratuita” e ser vista como “obrigação” não é, em si mesma, conservadora ou axiológica, pois num mundo onde tudo foi mercantilizado e o trabalho deve ser retribuído com dinheiro, este tipo de atividade “desinteressada” (no sentido de interesse pessoal egoísta) apresenta, na verdade, uma visão alternativa do trabalho. Daí seu “exemplo social” não ser problemático nem axiológico. A afirmação de que a super-aventura transmite uma visão da sociedade como se ela não fosse dividida em classes sociais é questionável. Sem dúvida, a super-aventura não focaliza a questão social e nem os conflitos sociais mas nem por isso se pode dizer que ela apresenta uma visão da sociedade como destituída de divisão social. A própria existência de criminosos, de super-vilões, as causas das origens de alguns super-heróis e super-vilões apontam para a existência de conflitos sociais. O HomemAranha, por exemplo, após adquirir seus poderes os utiliza para ganhar dinheiro e é somente quando um familiar seu é assassinado por um criminoso é que ele resolve combater a criminalidade. Aí está presente a manifestação aparente de um conflito social mas o desenvolvimento das histórias acaba apresentando outros elementos para se observar as origens sociais da criminalidade e, por conseguinte, a visão das injustiças sociais. Mas aqui aparece realmente uma visão axiológica da sociedade não tanto pelo fato de que a divisão social não é enfatizada e sim pela própria característica do heroísmo: o individualismo. As histórias dos super-heróis Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 53 são histórias de indivíduos extraordinários e nunca de grupos sociais, tal como se vê na historiografia tradicional, que se caracteriza por retratar a história dos “grandes homens” e não a dos grupos sociais. Além do individualismo se revela aí um “desenraizamento social” do super-herói. Quando este desenraizamento se rompe, tal como no caso do Capitão América, o super-herói se vê forçado a assumir uma posição e, portanto, ficar ao lado de um dos grupos sociais existentes, que geralmente são os grupos dominantes e isto reforça o seu caráter axiológico. Jacques Marny colocou que a evolução interior dos heróis (e dos super-heróis, diríamos nós) no decorrer dos anos apresenta a tendência para se adaptar às normas sociais. Segundo ele: “A tendência que se verifica na maior parte dos casos é para um alinhamento segundo as normas sociais. No princípio duma série, o herói é o homem marginal, o franco-atirador da ordem e da justiça. Mas há um dado momento em que colabora com as forças da ordem organizadas, tais como o exército e a polícia do seu país. Foi o que aconteceu com Tarzan, Flash Gordon, Superman, Terry, o Fantasma e muitos outros. Contudo, temos de ter em conta que esta colaboração episódica foi devida, na maior parte das vezes, as circunstâncias históricas, concretamente a última guerra mundial: o herói mobilizou-se espontaneamente, visto que a luta contra as forças do mal requeria a união sagrada”9. Embora existam exceções (tal como Batman, que está sempre do lado da polícia, ou seja, do poder), é o momento histórico que faz com que o superherói reencontre suas raízes sociais. Isto, no caso dos heróis (e aqui distinguimos herói de super-herói), é diferente, pois as suas características humanas extraordinárias mas não sobre-humanas fazem dele um ser enraizado socialmente e é por isso que se pode encontrar um herói de “esquerda” (tal como Robin Hood e Zorro, um lutando contra o despotismo feudal e outro contra a colonização espanhola) 10 muito mais facilmente que um super-herói de “esquerda”. A “mistificação do arsenal nuclear” é apontada por Baêta Neves como mais um aspecto axiológico da super-aventura: 9 MARNY, Jacques. Sociologia das Histórias aos Quadradinhos. Porto, Civilização, 1970, p. 128. 10 Sobre o herói de “esquerda”: KOTHE, Flávio. Ob. cit. Aqui se trata do Zorro de capa e espada e não do cowboy (que no Brasil recebeu o mesmo nome mas que se trata de uma alteração totalmente sem sentido, pois no original norte-americano ele é Lone Ranger, “Cavaleiro Solitário”), este sendo considerado extremamente “ideológico” (cf. D ORFMAN, Ariel & J OFRÉ, Manuel. Super-Homem e seus Amigos do Peito. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 54 “Quando se dá a atribuição de super-poderes por acidente e/ou experiência com arma altamente desenvolvida, ocorre, também, a mistificação e fetichização do arsenal nuclear. Isto se dá porque este é valorado de modo absoluto quanto a seu poder e quanto à irreversibilidade dos efeito que produz. Do lado do caráter de fetiche do instrumento nuclear pode-se ler, também, uma crítica liberal à atuação deste sobre o ser humano, que se deforma ao se expor a ele. Assim, dentro de uma posição tecnocrática dominante, aparece uma palavra de crítica que visa aplacar e não destruir a vigência da ideologia tecnocrática, mitificadora da técnica e da ciência”11. Existe na super-aventura, sem dúvida, uma visão ambígua da ciência (no que se refere às ciências naturais). Basta ver os casos de Hulk, X-Man, o Quarteto Fantástico, etc., para se compreender isto. O Hulk e o Coisa (membro do Quarteto Fantástico) são exemplos de uma crítica dos efeitos da ciência: a deformação do corpo humano. Neste caso se vê a contradição entre um efeito estético indesejável (ambos se transformam em figuras monstruosas do tipo Frankstein, que pode ser considerado o modelo seguido e o tema clássico da simbolização artística dos monstros que a ciência pode criar) e a potência adquirida. Estes dois super-heróis simbolizam a ambigüidade do desenvolvimento científico e que o “avanço” provocado por ela (domínio sobre a natureza e a sociedade) traz em si aspectos indesejáveis (a feiúra, mas que no caso pode ser considerado um símbolo da desumanização e do sentimento de culpa que acompanha a ciência, o que leva o indivíduo a se sentir “feio”). Mas, a nosso ver, o que a super-aventura faz não é uma crítica liberal à ciência e sim uma reprodução do caráter contraditório da ciência, que, ao mesmo tempo, realiza progresso e retrocesso, desenvolve o controle e o descontrole sobre o meio ambiente onde vive a humanidade (transformando-o e destruindo-o), melhora e piora a qualidade de vida e assim por diante. A última questão colocada por Baêta Neves é o caráter atemporal da super-aventura. Os super-heróis estão fora da história, pois não vivem eventos em sua vida que se desenvolvem cronologicamente. Geralmente não se formam, não se casam, não tem filhos, etc. O mesmo ocorre com a sociedade onde eles vivem. Em primeiro lugar, é preciso colocar que existem muitas exceções e que recentemente isto começou a mudar, basta citar o casamento do Homem-Aranha como exemplo. Em segundo lugar, a estrutura própria da super-aventura dificulta o desenvolvimento de certos acontecimentos, pois casamento, filhos, etc., criam obstáculos para a ação do super-herói (tal como o trabalho em tempo integral). Em terceiro lugar, se o super-herói se desenvolvesse normalmente como um indivíduo comum ele 11 BAÊTA N EVES, Luís Fernando. Ob. cit., p. 95. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 55 seria muito mais axiológico do que já é12. Em quarto lugar, se a sociedade se transformasse radicalmente, acabando com as desigualdades sociais e por conseguinte com a razão de ser da criminalidade e dos super-vilões, então acabaria a razão de ser do super-herói. A super-aventura possui uma temporalidade que é marcada pela seqüência sucessiva de aventuras, onde o passado não pode mais voltar mas explica o motivo de muitas ações presentes. Isto é axiológico? Ora, se imaginarmos um super-herói revolucionário que interfere nas relações sociais buscando a transformação social, a mesma coisa ocorreria. Se a desigualdade acabasse, o super-herói também acabaria. Isto é próprio da estrutura da super-aventura. Mas uma análise do mundo dos super-heróis deve também distinguir entre os “mundos” povoados por diferentes super-heróis, tal como o mundo Marvel – da Marvel Comics, criadora do Homem-Aranha, Os Inumanos, Hércules, Magneto, Demolidor, Hulk, etc. –, o mundo Detective Comics (conhecida pela sigla DC) – criadora do Super-Homem, Flash, Lanterna Verde, Homem-Borracha, Batman e outros. Estas são as duas mais poderosas fábricas de super-heróis. A DC Comics produz super-heróis e histórias não só mais simples como também mais axiológicas. A recém-criada Image (fundada por ex-desenhistas e roteiristas da Marvel) vem ganhando espaço e competindo com ambas com sua safra de super-heróis, cujo mais famoso é Spawn, que se transportou recentemente para as telas do cinema (Spawn, O Soldado do Inferno), mas também apresenta outros como Dragon, Hitchblade, Angela, etc. Esta nova fábrica de super-heróis se caracteriza pela alta qualidade do desenho e pela pobreza dos roteiros, além de possuir um caráter muito mais axiológico que as outras duas (para se ter uma idéia, a maioria dos seus super-heróis trabalham para a polícia e suas histórias são recheadas de anticomunismo grosseiro – o que não deixa de ser estranho, tendo em vista que ela surgiu nos anos 90 e se comporta como se o marcartismo ainda estivesse em moda e a URSS existisse e fosse ameaça — e pela expressão fascista “comuna” para se referir aos “comunistas”). Também poderíamos citar os fracassados super-heróis brasileiros, tais como Fantastic Man, Raio Negro, Mylar, Fantasma Negro, Capitão Atlas, Capitão Estrela, Mistyko, Hydroman, etc. A sua estrutura, então, é que é conservadora? Julgamos que não, pois a estrutura da super-aventura reproduz a sociedade capitalista contemporânea e somente surgiu devido as condições sociais originadas dela. Mas a permanência da estrutura da super-aventura (e da própria super-aventura, o 12 Este é o caso do Homem-Aranha que, “recentemente” (...) se casou e passou a ter preocupações corriqueiras (ciúmes, vontade de chegar em casa mais cedo, etc.), além de um monótono “amor perfeito”, sem conflitos internos (como se isso fosse possível em nossa sociedade...). Isto sim é axiológico... Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 56 que é a mesma coisa) é resultado das contradições da própria sociedade contemporânea e o conservadorismo seria a ilusão de que não há mais contradições sociais e que, por isso, não há mais necessidade de super-heróis e super-aventuras. Consideramos que a raiz dos equívocos de Baêta Neves se encontra no fato dele não ser um leitor de histórias em quadrinhos. Ele mesmo reconhece que sua análise foi baseada no Pequeno Dicionário dos Super-Heróis, artigo publicado na Revista Vozes, de Moacir Cirne, um especialista em semiologia dos quadrinhos. Fundamentar-se em um texto desta natureza sem ir à fonte é questionável, pois uma análise não pode se basear só em descrições estáticas retiradas de um dicionário, pois deve também ter acesso ao movimento vivo da super-aventura. Neste caso, uma tal análise só poderia provocar equívocos. Por último, podemos dizer que a preocupação com o caráter axiológico da super-aventura e das histórias em quadrinhos em geral é legítima quando nos dedicamos a pesquisar tal fenômeno social; porém, todas as formas de manifestações culturais que são de ampla circulação (e que são transmitidas através de empresas oligopolistas de meios de comunicação de massas) são axiológicas e por isso a análise da super-aventura deve ir além da constatação óbvia do seu caráter axiológico. Deve desvendar seu processo de formação, suas características e o que mais existe no seu interior. Os Super-Heróis e o Inconsciente Coletivo Até agora discutimos os aspectos axiológicos e conservadores possivelmente encontrados na super-aventura, mas a partir de agora iremos tratar de outro aspecto: o da super-aventura como manifestação do inconsciente coletivo. Isto é necessário devido ao fato de que o mundo dos super-heróis é um mundo de fantasia, produzido pela imaginação, e por isso mesmo é locus de manifestação do inconsciente, tal como afirma a psicanálise. Porém, não trataremos aqui do inconsciente individual e sim do inconsciente coletivo, que definiremos mais adiante, pois não se trata de analisar obras de autores enquanto indivíduos e sim um gênero como um todo, o que leva a analisar a obra coletiva de uma infinidade de autores individuais. Os super-heróis são seres sobre-humanos e que por isso mesmo superam as limitações humanas. Segundo Jacques Marny, “eles são personagens vivos, mágicos da ilusão e da fantasmagoria, mas também são mestres do sonho e símbolo do desejo de poder”13. É justamente aí que encontramos a relação entre super-heróis e inconsciente coletivo. Mas antes de tratar desta relação é preciso analisar o que é o inconsciente coletivo. Freud dizia que o universo psíquico (ou, segundo suas palavras, “aparelho psíquico”) do indivíduo era composto pela consciência e pelo inconsciente (inicialmente ele 13 MARNY, Jacques. Ob. cit., p. 277. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 57 o dividia em dois componentes – princípio de prazer e princípio de realidade – e posteriormente em três – id, ego e superego –, embora um grande número de psicanalistas prefiram utilizar sua concepção inicial). O inconsciente era produto da repressão que a sociedade fazia aos instintos do indivíduo, o lugar onde vivem os desejos reprimidos. Freud nunca usou a expressão “inconsciente coletivo”, considerando que não haveria nenhuma vantagem com sua utilização, embora aceitasse a idéia de um conteúdo coletivo para o inconsciente, tal como propôs Jung14. O primeiro a se referir a um inconsciente coletivo foi o seu colaborador e posteriormente dissidente, Carl Gustav Jung, que forneceu uma visão metafísica deste conceito, que representaria, segundo ele, arquétipos universais e imutáveis. A renovação ocorreu com Erich Fromm (embora ele fale de “inconsciente social” e não em “inconsciente coletivo”). Erich Fromm define inconsciente social da seguinte maneira: “A diferença entre a expressão de Jung, ‘inconsciente coletivo’, e o ‘inconsciente social’ aqui empregada é a seguinte: o ‘inconsciente coletivo’ indica diretamente a psique universal, grande parte da qual não pode nem mesmo tornar-se consciente. O conceito de inconsciente social parte da noção do caráter repressivo da sociedade e se refere àquela parte específica da experiência humana que uma determinada sociedade não permite que atinja a consciência”15 . Desta forma, o inconsciente coletivo é expressão de um desejo reprimido socialmente que atinge o conjunto da sociedade ou então grupos sociais no seu interior. A posição de Fromm, entretanto, é limitada, pois sua visão do inconsciente é puramente cultural, esquecendo que o processo psíquico é um processo energético. Além disso, Fromm considera que tudo o que é reprimido faz parte do inconsciente, o que é um equívoco16. 14 “Não nos é fácil transferir os conceitos da psicologia individual para a psicologia de grupo, e não acho que ganhemos alguma coisa, introduzindo o conceito de um inconsciente ‘coletivo’. O conteúdo do inconsciente, na verdade, é, seja lá como for, uma propriedade universal, coletiva, da humanidade” (FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1975, p. 156). Isto revela uma certa ambigüidade e a solução de Freud é “trabalhar com analogias”, o que é um procedimento menos proveitoso do que aceitar a idéia de um inconsciente coletivo. 15 FROMM, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud. 7a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 109. 16 Para uma visão mais detalhada da concepção de inconsciente coletivo em Jung e inconsciente social em Fromm, bem como uma visão crítica, acompanhada por uma proposta alternativa inspirada no marxismo, cf. V IANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 58 O inconsciente coletivo, do nosso ponto de vista, é o conjunto de necessidades/potencialidades reprimidas em todos os indivíduos que formam uma coletividade (grupo, classe etc.). É no mundo da fantasia, dos sonhos, etc., que ele se manifesta mais constantemente. Os sonhos comuns em um grupo social ou na sociedade são geralmente inacessíveis mas a fantasia não. As aventuras dos super-heróis expressam uma fantasia que é expressão do inconsciente coletivo: o desejo de poder. Ora, vivendo em uma sociedade dominada pela repressão, pela burocracia, etc., nada é mais natural do que buscar, na fantasia, ultrapassar este estado de coisas. Citemos dois exemplos colocados por Erich Fromm: “Deve haver muitos comerciantes em nossas cidades grandes que tenham um cliente que precise muito, digamos, de um terno, de roupa, mas que não dispõe de dinheiro suficiente para comprar nem mesmo o mais barato. Entre comerciantes (especialmente os mais abastados), haverá uns poucos que sintam o impulso natural e humano de dar essa roupa ao cliente, pelo preço que este puder pagar. Mas quantos se permitirão adquirir consciência de tal impulso? Creio que serão poucos. A maioria o recalcará, e poderemos ver entre eles alguns que terão, na noite seguinte, um sonho que expressará o impulso reprimido, de uma forma ou de outra”. “O moderno ‘homem de organização’ pode sentir que sua vida não tem sentido, que seu trabalho o aborrece, que tem pouca liberdade de fazer e pensar como quer, que está perseguindo uma ilusão de felicidade que jamais se torna verdade. Mas se ele tivesse consciência de tais sentimentos, seria muito prejudicado em sua atuação social. Sua consciência constituiria um perigo real para a sociedade tal como está organizada, e em conseqüência o sentimento é recalcado”17. A partir destes dois exemplos, podemos observar que a falta de liberdade na sociedade contemporânea cria o desejo de liberdade, de poder (não no sentido de dominação e sim de potência). Entretanto, este desejo é reprimido e não se manifesta na consciência coletiva mas tão-somente no inconsciente individual e coletivo. O desejo reprimido de liberdade, de ser livre e superar os limites impostos pela sociedade repressiva, encontra no mundo dos superheróis uma de suas formas de manifestação mais espetaculares. Estes rompem com os limites impostos, combatem a injustiça (embora a idéia de justiça que se passa é mais a ditada pela consciência do que pelo inconsciente), defendem os “fracos e oprimidos” – que são aqueles que continuam submetidos à opressão –, etc. Voar, por exemplo, é um símbolo de liberdade, de superação de limites, e muitos super-heróis possuem este poder. Desta forma, a super-aventura é, em parte, manifestação do inconsciente coletivo e é por isso que ela (e não só ela como também os heróis comuns) 17 FROMM, Erich. Ob. cit., p. 115. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 59 tem um público tão grande. Revela-se aí, o potencial emancipador das aventuras dos super-heróis ao manifestar o desejo reprimido de liberdade. O processo de criação da super-aventura é um processo consciente no qual o criador envia uma mensagem na maioria das vezes axiológica. Porém, nenhuma produção cultural é somente consciente e junto com o processo consciente caminha o processo inconsciente. No caso da ficção isto é ainda mais forte. Na super-aventura a imaginação ganha autonomia na narrativa e isto permite uma manifestação mais forte do inconsciente. Porém, além do inconsciente individual derivado da repressão individual que se manifesta em cada obra individual, também se manifesta o inconsciente coletivo, derivado da repressão coletiva. Tal repressão coletiva é a do mundo burocrático e mercantil em que vivemos. Se lembrarmos que a produção da super-aventura é uma forma de manifestação da criatividade, que é uma potencialidade humana reprimida em nossa sociedade, então podemos supor que ela é, para os criadores, um momento de liberdade e de realização. Porém, devemos reconhecer que tal criatividade se manifesta mas de forma controlada. Os criadores de super-aventuras não são livres para produzirem o que quiserem e como quiserem. Eles estão submetidos às grandes empresas que controlam esta produção, seja a Marvel Comics, a DC, a Image, ou qualquer outra. Tais empresas são tão burocráticas e mercantis quanto qualquer outra. A partir disto se conclui que tal controle é um dos elementos que originam tal produção. A vontade de liberdade inconsciente cria aventuras onde o ser humano rompe com seus limites (naturais e sociais). Essa ruptura com os limites faz dele um “super-homem”, um ser impotente diante da burocratização e da mercantilização que se torna um ser “poderoso”. Um ser que pode superar as injustiças fazendo justiça por suas próprias mãos, alguém destituído de poder e dominado no trabalho, na escola, na família, etc., que se levanta e passa por cima de tudo que lhe aprisiona e realiza os seus desejos de aventura e liberdade. O modelo exemplar, o Super-Homem, acompanhado por suas cópias, Capitão Marvel (Shazam), Homem-Aranha, Thor, Hulk, Batman, etc., são aqueles que fazem o que gostaríamos de fazer mas não fazemos: desafiar o mundo. Ser um super-herói significa ser sobre-humano, o que quer dizer ser mais do que um simples marionete da sociedade repressiva. A super-aventura significa a carta de alforria imaginária do ser humano escravizado no mundo da burocracia e da mercadoria. O público leitor da super-aventura é composto em grande parte por crianças e jovens que ainda não estão envolvidos neste mundo institucional repressivo. Porém, estão submetidos à outras formas de repressão (familiar, escolar, entre outras) e se identificam com os atos heróicos que expressam seu desejo de liberdade. Por isso, surge um mercado consumidor bastante fiel da super-aventura. Mas, de qualquer forma, tanto os produtores quanto os Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 60 consumidores da super-aventura manifestam o desejo inconsciente de liberdade em resposta ao mundo burocrático e mercantil fundamentado na repressão. Porém, o inconsciente coletivo só se torna explosivo quando se torna consciente. O inconsciente coletivo tornar-se consciente (que só pode ser uma consciência coletiva, fruto de um processo coletivo), neste caso, significa o reconhecimento da necessidade de liberdade. Tal como Marx colocou, a consciência do que não é consciente é fundamental para o processo de libertação humana: “É preciso tornar a opressão real mais opressiva, acrescentando-lhe a consciência da opressão; é preciso que a vergonha se torne ainda mais vergonhosa, apregoando-a. (...). É preciso mostrar e ensinar ao povo a assustar-se de si próprio, para infundir-lhe coragem”18. Descobrir o inconsciente coletivo por detrás das produções axiológicas é, portanto, fundamental para o desenvolvimento desta consciência coletiva e tarefa essencial do pensamento marxista. É impossível para o marxismo contemporâneo desconhecer a importância da psicanálise para compreender as lutas sociais e, em especial, as produções axiológicas e imaginárias, tal como as histórias em quadrinhos. Super-Heróis: Entre a Axiologia e o Inconsciente Coletivo O mundo dos super-heróis tem, portanto, duas faces: a axiologia (com seu caráter conservador) e a do inconsciente coletivo (com seu caráter contestador). Essa dupla face dos super-heróis revela que o objetivo consciente dos criadores das histórias é determinado pelos valores dominantes e em certos períodos históricos isto se torna mais forte ainda. Entretanto, ao dar vida à história, escapa-lhes o seu domínio total e quando a fantasia se manifesta, o inconsciente coletivo também aparece. Os leitores, porém, não são atraídos graças aos aspectos axiológicos e sim pelo aspecto inconsciente. O aspecto “ideológico”, sem dúvida, exerce influência sobre os leitores mas em grau muito menor do que se pensa, pois a atenção do leitor fica mais presa não nos detalhes da narrativa que expressam o seu caráter axiológico e sim nos aspectos fantásticos da história (os combates, a luta pelo poder, os tipos de poderes, os mundos estranhos e maravilhosos, etc.). Os aspectos axiológicos da super-aventura, e das histórias em quadrinhos em geral, é palco de uma disputa política intensa e isto é tão verdadeiro que a 18 MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. In: Revista Temas de Ciências Humanas. Nº 2, 1977, p. 4. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 61 intervenção do estado neste tipo de produção, visando manter a “moral e os bons costumes”, produziu uma extensa legislação restritiva a respeito19. Mas, ao contrário do caso dos heróis, onde surgiram vários “heróis revolucionários” e “contestadores”, no mundo dos super-heróis quase não há contestação consciente. Poderíamos dizer que existem poucos super-heróis contestadores, tal como Namor, O Príncipe Submarino – que sempre aparece na superfície terrestre para combater a poluição e destruição ambiental que afeta os mares. Porém, as últimas histórias de Namor provocaram uma reviravolta neste personagem. Este, em seu passado, chegou a se unir com O Incrível Hulk para derrotar Os Vingadores – grupo de super-heróis comandados pelo Capitão América e que teve diversas formações, sendo que a formação desta época contava com o Homem de Ferro, Thor, HomemFormiga, entre outros –, um grupo tão bem visto pelo poder que tinha sua sede fornecida pelo governo dos Estados Unidos. As últimas histórias deste super-herói apresentaram sua reformulação e sua personalidade foi alterada. O seu “ódio contra a humanidade” (na verdade contra suas ações destrutivas e irracionais) foi explicado por um “desequilíbrio sangüíneo” que provocava “flutuações de personalidade” (em especial sua ira...) e um dispositivo de reciclagem “corrigiu o problema”. A partir daí Namor não seria mais o mesmo: tornou-se calmo e controlado como qualquer outro super-herói conservador. A luta cultural que existe nos demais gêneros das histórias em quadrinhos está praticamente ausente no mundo dos super-heróis. Neste mundo, criado a partir de um contexto histórico preciso e voltado para satisfazer necessidades de uma nação em guerra (os primeiros super-heróis da história – SuperHomem e Capitão América – surgem nos Estados Unidos, tanto os da Marvel Comics quanto os da DC Comics, e só depois começam a ser criados também em outros países e só nestes casos começam a romper com o conservadorismo exacerbado existente nos EUA), não se poderia esperar nenhuma mudança revolucionária consciente. Tal mundo se desenvolve de 19 Cf. MARNY, J. Ob. cit. A censura oficial aos quadrinhos, como não poderia deixar de ser, assumiu um caráter extremamente conservador. No Brasil, o Código Moral que rege as Editoras especializadas tem os seguintes itens: “as histórias em quadrinhos devem ser um instrumento de educação, formação moral, propaganda dos bons sentimentos, a exaltação das virtudes sociais e individuais; é necessário o maior cuidado para evitar que as histórias em quadrinhos, descumprindo sua missão, influenciem perniciosamente a juventude ou dêem motivo a exageros da imaginação da infância e da juventude; não é permitido o ataque ou a falta de respeito a qualquer religião ou raça; os princípios democráticos e as autoridades constituídas devem ser prestigiados, jamais sendo apresentados de maneira simpática ou lisonjeira os tiranos ou inimigos do regime e da liberdade” (CIRNE, Moacir. A Explosão Criativa dos Quadrinhos. Petrópolis, Vozes, 1974, p. 11). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 62 forma ligada às grandes empresas oligopolistas, mantendo íntima relação com o poder. Isto esvaziou o seu conteúdo crítico consciente. Por outro lado, em nenhum gênero de história em quadrinhos se encontra a presença tão marcante do inconsciente coletivo como na super-aventura. E sobre o inconsciente coletivo a única censura possível é a que a consciência dos indivíduos realiza e, portanto, não é possível nenhuma censura estatal, pois o estado não pode censurar o que já foi censurado e aquilo do qual ele não tem consciência. Este texto é uma versão modificada do artigo publicado originalmente em Revista Cultura & Liberdade, Nupac, Goiânia, ano 2, num. 2, abril de 2002, com o título de “O Mundo dos Super-Heróis”. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 63 As Novas Formas do Sintoma na Medicina Antonio Quinet A medicina hoje aparece mais do que nunca como um produto da conjunção da ciência com o discurso capitalista. A corrida pela descoberta da vacina da Aids, a medicalização crescente não mais apenas da doença mas principalmente da saúde, a fabricação de novas demandas endereçadas ao médico, a biologização dos ideais estéticos, a hormonização de processos antes naturais, tudo isso e muito mais é impulsionado pela mão, não mais tão invisível como queria Adam Smith, que regula um mercado ferozmente competitivo. Essa “mão” hoje dita as linhas de pesquisa científica a serem seguidas, por que é ela quem as financia: essa “mão” é que escreve os currículos dos médicos-cientistas fazendo-os aparecer como figuras do mestre moderno, quando, de fato, estão a serviço do discurso do capitalista, que constitui, como mostra Lacan em Televisão, o discurso dominante de nossa civilização, responsável portanto por seu mal-estar1. “Marx , disse Lacan, foi o primeiro a ter a idéia do que é um sintoma”2. Esse sintoma, relativo ao discurso capitalista, é a conhecida jornada de trabalho, onde se revela a mais-valia, e que obedece a um imperativo, ou em seus termos, a um “apetite”, a uma “cupidez cega”, que não há lei que o barra, pois “parece ser para muitos fabricantes uma tentação grande demais para que possam resistir a ela”3. Esse gozo do sintoma social aplicado à Medicina faz os médicos horrorizados se reunirem em Comitês de Ética e apelarem ao Legislativo para que fabrique leis capazes de refrear “a paixão desordenada do capital”. Um exemplo pitoresco disso é o desenvolvimento do que se chama de “a psicologia do consumidor”. Sendo a sociedade de consumo a expressão mais banal do discurso do capitalista, que promove um endividamento progressivo do indivíduo e uma alienação crescente ao Outro do apelo comercial que multiplica objetos imaginários de desejo, nada mais lógico do que se detectar novos sintomas e novos doentes: “os compradores compulsivos”. O Dr. Peter Lunt, do Departamento de Psicologia da University College de Londres, estudioso deste novo sintoma afirma que ele 1 LACAN, J. Télévision. Paris, Seuil, 1974, p. 25 e 26. LACAN, J. “Conférences et Entretiens dans les Universités Nord-Américaines – Yale University, Etourdit”. Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976, p. 34. 3 Retirado de um relatório de um inspetor de fábrica, in: MARX, K. Le Capital, cap.X, Garnier-Flammarion, p. 193 – citado em N AVEAU, P. “Marx e o Sintoma”, Falo 3, Salvador, Fator, p. 116. 2 Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 64 pode ser “a expressão de uma insatisfação ou como um tipo de experiência quase sexual”. Se sua manifestação de gozo não passa desapercebida, nada impedirá que seus portadores sejam enquadrados pela DSM IV como TOC (Transtorno Compulsivo Obsessivo) para serem medicados com Aropax ou similares. Por outro lado, condicionada pelo discurso da ciência, a medicina, foraclui de seu âmbito a dimensão do sujeito por lidar com um real que não é o mesmo real da psicanálise. Enquanto para esta o real em jogo é relativo à castração e à falta do Outro, o real para a ciência é tudo aquilo que ainda não foi simbolizado por seu discurso. O projeto da ciência de colonizar todo o real com seus significantes lhe confere um aspecto de loucura ao rejeitar de sua esfera qualquer subjetividade. Não há nada na própria ciência, e podemos dizer, na própria Medicina, que possa deter seus avanços. Eis o outro aspecto que impele à formação de Comitês de Ética na tentativa de frear ou pelo menos canalizar o projeto científico. A Medicina Cosmética Localizada antes nos salões de beleza, a cosmetologia parece invadir cada vez mais a medicina: não apenas a dermatologia, mas também a endocrinologia e a cirurgia. Comandada pelos ideais estéticos de um Imaginário, a medicina com sua oferta cria novas demandas para aqueles que pretendem se furtar ao confronto com a falta reparando alguma falha anatômica de seu corpo. A resposta médica ao incidir no corpo com implantes, próteses, enchimentos de silicone, inibidores do apetite, estimuladores da libido, hormônios rejuvenescedores, anabolizantes, virilizantes, feminizantes, etc. recusa o aporte da psicanálise que demonstra que o corpo do humano não se desvincula do sujeito do Inconsciente. É no corpo humano que o simbólico toma corpo, pois o corpo “a ser levado a sério, é, primeiramente, aquilo que pode trazer a marca para ser colocado em uma seqüência de significantes”4. A medicalização, por exemplo, da puberdade e da menopausa insere, por um lado, o sujeito no discurso capitalista transformando-o num consumidor de drogas e objeto da indústria do climatério, e, por outro lado, no discurso da ciência reduzindo-o a um corpo doente a ser tratado. A medicina ao responder com medicação, cirurgia ou hormônios não detecta que toda demanda é demanda de complementação do ser do sujeito que é pura falta-a-ser. Faz crer assim, respondendo à demanda de juventude, de beleza, de correção sexual, que a complementação é possível. Não se trata para nós de lamentar os malefícios do progresso da medicina, recusando seus benefícios terapêuticos. Seríamos, no mínimo, chamados de ingratos. Trata-se, antes, de seguir a orientação de Lacan, em seu texto “A 4 LACAN, J., “Radiophonie”. Scilicet 2/3, Paris, Seuil, 1970, p. 61. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 65 Ciência e a Verdade”, e de “reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica”5. O que isto significa em relação à medicina cosmética? Significa sustentar que o corpo é o lugar privilegiado do princípio da castração para o sujeito capitonado, baseado no simbólico pelo Nome-do-Pai. E o princípio da castração faz objeção ao UM totalizador do Imaginário do corpo que a medicina cosmética coloca em oferta no mercado do desejo. Introduzir o Nome-do-Pai significa opor um NÃO aos imperativos da moda estética. A moda é comparada por Lacan ao leito de Procusto, personagem da mitologia grega que, instalado no meio de uma estrada, submetia os viajantes ao seguinte suplício: ele fazia os pequenos se deitarem em um leito grande e os grandes em um leito pequeno. Os pequenos eram estirados até ficarem do tamanho do leito e os grandes tinham suas pernas cortadas para caberem no leito. Eis a função da moda para Lacan. A medicina cosmética é, na verdade, uma clínica feita no leito de Procusto. O próprio sujeito do Inconsciente, como sujeito de desejo denuncia o fazde-conta desse simulacro cosmético da medicina. Foi publicada uma reportagem no Jornal O Globo (5/4/1997) sobre os Drag kings, mulheres virilizadas artificialmente através de hormônios, que levam o semblante de bancar o homem às máximas conseqüências. Entre esses novos senhores um caso bastante freqüente chama a atenção. Trata-se de mulheres que se transformam em homens para terem um relacionamento com homens, suas relações adquirindo assim seu traço “homossexual”. Os Drag kings são, portanto, fruto da transformação da histeria pela ciência médica a serviço dos semblantes: fingem com a plástica ter um pedaço de salmão quando na verdade continuam sendo o salmão por baixo do plástico. Utilizando o recurso da ciência médica, a histérica continua denunciando a impostura do mestre, como sempre foi sua função social. Sendo a histeria o próprio Inconsciente em exercício, sua manifestação sempre aponta para uma falha no saber médico. A Genética “Muitos cientistas acreditam que a terapia genética seja o quarto estágio da medicina, depois da descoberta dos microorganismos patogênicos, da anestesia, da introdução das vacinas e dos antibióticos”6. O termo clonagem, derivado do grego klón que significa broto, é uma forma de reprodução assexuada, cuja prémière feita a partir de embriões de mamíferos foi estrelada pela ovelha escocesa Dolly. Órfã de pai e mãe, brotada como cópia fiel, Dolly fez estremecer o Imaginário do planeta. E a realização do sonho ou pesadelo de fabricação in vitro do homem ainda ficou mais próxima com a lembrança de que já em 1993 os cientistas norte-americanos da Universidade 5 6 LACAN, J. “La science et la vérité”. In: Ecrits. Paris, Seuil, 1966, p. 875. Mais! Folha de São Paulo (13/4/1997). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 66 George Washington já tinham feito a clonagem de embriões humanos que foi interrompida quando os clones ainda tinham poucas células. Dolly trouxe à cena pública o ideal da eternização de ídolos populares cujos clones se perpetuariam e se reproduziriam e, por que não? – a ponto de se chegar a comprar um clone de uma Catherine Deneuve aos vinte anos. Ao se pensar em quem seria não mais um colunável, mas um clonável, não se viu nas pesquisas de opinião a proposta de se clonar pessoas anônimas, anódinas ou anômalas. E sim pessoas famosas, belas, inteligentes. Não se evocou a clonagem de um deficiente físico ou de um limítrofe, mas só aqueles que podem representar nossa bela raça humana. O que não está longe do ideal eugênico. A “clonagem humana”, como diz Umberto Eco, “nada mais seria do que tentar novamente aquilo que os nazistas já tentaram: produzir através de hábeis cruzamentos somente indivíduos altos, louros, saudáveis e fortes, para obter um exército de super-homens”7. A discussão sobre a clonagem confirma a previsão de Lacan relativa à incidência social da medicina a qual “que não poderá evitar”, diz ele, “nem o eugenismo nem a segregação da anomalia”8. Por outro lado, a clonagem atiça a fantasia da reprodução de cópias idênticas, geminadas trazendo a possibilidade de o indivíduo vir a encontrar um si mesmo no outro – o que Lacan há setenta anos já mostrara ser a base da constituição do eu no Estádio do Espelho. Hoje, o estádio da clonagem é uma reatualização da miragem do eu que se projeta das almas gêmeas aos corpos clonados. “Nas elucubrações fantásticas sobre a clonagem”, como diz ainda Umberto Eco, “há uma forma de determinismo materialista ingênua, segundo a qual o destino de uma pessoa é definido unicamente por seu patrimônio genético”. Introduzir aqui o Nome-do-Pai é reafirmar o materialismo dos significantes que determinam o sujeito e que não há sujeito que não esteja atrelado ao desejo do Outro. O clone humano é uma ficção científica que foraclui a dialética do desejo, degradando o Nome-do-Pai ao reduzi-lo a um patrimônio de DNA. Através da transgenética – transferência de material genético – é possível se criar seres mistos como um animal transgênico que é produzido a partir de um embrião em cuja carga genética foi incorporada uma seqüência de DNA de outra célula. Pode ser assim feito um porco com algum órgão humano que sirva mais tarde para transplante. Assim teremos bancos de órgãos vivos. Se isso é possível a ciência já tem condição de criar efetivamente animais que até então só povoaram nosso Imaginário. Em quanto tempo veremos Pégasos e Unicórnios, Sereias e Centauros na Disneylândia da ciência? Ou um museu 7 8 VIP-Exame, abril 1997 LACAN, J. Ecrits. ob. cit., p. 854. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 67 de horrores onde o lugar de honra seria aquele rato com orelha humana cuja foto escandalizou a todos há não muito tempo. Enquanto isto não aparece, podemos dizer com Lacan que a “questão é de saber se, devido à ignorância de como esse corpo é sustentado pelo sujeito da ciência, vai-se chegar no Direito a se desmembrar esse corpo em função de troca”. Questão que nos é colocada efetivamente aqui no Brasil pela lei de doação compulsória de órgãos pós mortem e sobre o mercado pirata de órgãos em vida. Com a psicanálise aprendemos que o órgão é significantizado, pois o corpo enquanto tal é tomado pelo corpo simbólico, não sendo portanto objeto de troca a ser mercantilizado ou posto à disposição do Outro social. O transplante de um órgão não equivale à troca de uma bobina, pois implica um grande trabalho subjetivo e uma reordenação da imagem corporal. Reprodução Assistida O banco de esperma, a inseminação artificial e a fecundação in vitro, a barriga de aluguel e o congelamento de embriões que podem permanecer vivos durante 50 anos – tudo isso é hoje uma realidade, que a ciência põe à disposição do consumidor. Entre o desejo sexual e a reprodução humana há algo que se chama vagamente de vida, que Freud nomeou como Eros, deus do desejo para os gregos, pulsão de vida para os modernos. É propriamente o Eros feminino que faz na subjetividade essa ligação, pois ele, como o descreve Freud, vai do Penisneid, inveja e desejo de pênis ao desejo de filho. Nada é evidente no percurso que vai do desejo de filho à sua realização, como nos mostra os percalços desse desejo em análises de mulheres. É nesse hiato que se interpõem as ciências da vida, da biologia à medicina, para responder ao enigma da insatisfação do desejo feminino. A resposta é baseada na desvinculação da reprodução e do ato sexual. Se os métodos contraceptivos cortam esse vínculo para fazer valer o sexual, liberando Eros da reprodução, por outro lado a ciência promove a partir de seu método conceptivo a fecundação com a exclusão de Eros. A distinção entre o Nome-do-Pai e o pai imaginário que introduz a psicanálise mostra que o desejo feminino não é separável da lei simbólica e que não se pode préjulgar a concepção sem pai ou a produção independente, pois não há mulher igual a outra. O Stress Busines Ao lado da depressão há outra doença que vem sendo considerada pela mídia como a doença da atualidade. “Na base da competição sem lei, ameaças de desemprego e lucro a todo custo, a selvageria do sistema econômico fez do estresse a doença deste fim de século”9. E para novas formas do sintoma, novas tecnologia são inventadas e avalizadas pelo mestre moderno da medicina, que com seus diplomas e 9 Revista de Domingo/JB, 30/3/97. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 68 títulos garante a “seriedade” do negócio. Mas hoje em dia, o Mestre médico não tem pudor de se manifestar como agente do discurso capitalista. “Todo sofrimento cria um mercado” – diz o neurologista dono das academias de ginástica Fisilabor e do Wellness Center. E o dono da clínica Med-Rio Stress acrescenta: “Investi R$ 1 milhão e espero ter retorno em 3 anos”. Apoiado nos progressos da neurologia, faz-se no Wellnes Center, o cliente passar os primeiros 20 minutos numa poltrona japonesa que massageia a coluna enquanto ouve música suave e vê imagens da natureza. A meia hora seguinte, ainda com música, ele recebe de olhos fechados os lampejos produzidos por óculos elétricos cuja freqüência das luzes fazem o cérebro relaxar, como nos explica o doutor. Mas ainda há uma outra opção para os mais estressados: uma cápsula de isolamento sensorial apelidada de Kinder Ovo gigante. O médico Eric Albert, fundador do Instituto Francês da Ansiedade e do Estresse, denuncia o trabalho como a maior causa do estresse revelando que mais de 50% de seus clientes são assalariados10. Efetivamente, como disse P. Naveau, “é no corpo do trabalhador que Marx há muito, já havia lido o gozo do mestre para detectar o sintoma social, como uma manifestação de um estudo patológico do funcionamento do corpo social”11. Se antes a Medicina do trabalho podia ser considerada uma aliada do trabalhador para barrar o gozo do Mestre, hoje a Medicina do estresse parece estar a serviço do capitalista ao tratar o rebotalho do seu discurso com máquinas de reciclagem para que voltem à ativa mas sem excessos. Daí o tratamento desse novo doente: o workaholic. O saber sobre o gozo que a Psicanálise com sua contribuição traz para a comunidade científica se contrapõe à concepção higiênica descrita pelo Dr. Eric Albert que declarou que “Do ponto de vista fisiológico é claro que o sexo acalma por causa da circulação de substâncias endógenas que o ato sexual provoca”. Reintroduzir aqui o Nome-do-Pai é reafirmar que o sexo caminha pelas suas impossibilidades e se um corpo é feito para gozar, o gozo do corpo do Outro não é sinal de seu amor e o gozo próprio ao corpo se situa fora dele, em um objeto sem substância que o condensa em qualquer objeto do mundo empírico. A angústia, como o excesso de gozo que retorna sobre o sujeito, denota a presença desse objeto que o remete a sua própria castração. E para esta não há remédio, só desejo. Não é possível medicalizar a angústia que é, segundo Freud, sempre angústia de castração. O parâmetro mais importante para os adeptos da Medicina do Estresse é, de acordo ainda com Dr. Albert, a auto-estima, significante-choque de outro subproduto dessa medicina-psicanalítica: a neurolingüística. Esta, que 10 11 Jornal do Brasil, 16/3/97. N AVEAU, P. ob. cit., p. 19. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 69 confessa tomar por base a imagem da informática como paradigma do humano, considera, segundo o Dr. Lair Ribeiro, que tudo o que somos e que acreditamos está codificado, programado, formatado no cérebro de cada um. O computador é o modelo para a lógica do pensamento. Mas essa banalização faz do homem uma máquina neuronal de onde o desejo e o inconsciente estão excluídos. E tudo é canalizado para a auto-sugestão, a auto-imagem, a autoestima, mostrando que essa “neurolingüística” é nada mais nada menos do que um subproduto, um refugo da cultura do narcisismo que promove a inflação do imaginário. A psicanálise recebe os rebotalhos do discurso da ciência lá onde desponta o sintoma no sentido analítico como “o retorno da verdade na falha de um saber”12. É o que sempre acontece quando a Medicina reduz a um organismo o sujeito – este se manifestará então no sintoma mostrando o furo no saber. Como, por exemplo, o sujeito hemofílico que vivia causando-se ferimentos em acidente, mesmo sabendo o quanto lhe poderiam ser fatais: seu comportamento constituía assim uma falha no saber médico. A psicanálise poderá ser a saída dos impasses da medicina acossada entre o discurso da ciência (cuja estrutura é, para Lacan, quase idêntica ao discurso da histérica) e o discurso do capitalista, modalidade moderna do discurso do mestre. A medicina é o sintoma dessa conjunção. Do lado da ciência, a Medicina-histérica faz de seus médicos impotentes produtores de um saber que lhes escapa. Do lado do capitalismo, a Medicina-mestre impõe seus enxames de significantes-mestres e fabrica objetos de gozo para engordar o futuro de uma ilusão que se espatifará quando do próximo encontro com o real. Os rebotalhos do discurso médico constituem para o analista novas formas do sintoma que ao serem observados de perto são tão velhas quanto as roupas do rei quando ele está nu. O riso do analista que indica a saída desse discurso constitui uma maneira de dizer NÃO aos imperativos de gozo do mestre desfazendo com o Witz os semblantes de sua autoridade, como o menino do conto de Andersen. Texto publicado originalmente em: A Descoberta do Inconsciente do Desejo ao Sintoma (Jorge Zahar Editor) da coleção do autor ao lado de As 4+1 Condições de Análise e Um olhar a Mais - Ver e Ser Visto na Psicanálise. 12 LACAN, J. Ecrits. Ob. cit., p. 234. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 70 O Significado do Natal Nildo Viana Se olharmos no dicionário, veremos que o natal é uma festa cristã realizada no dia 25 de dezembro, cujo objetivo é comemorar o nascimento de Jesus Cristo. Logo, o significado do natal é puramente religioso, cristão. No entanto, uma análise histórica e crítica nos revela que as coisas não são bem assim. O natal sofreu mudanças de significado no decorrer da história da humanidade e é isto que iremos colocar no presente texto. O natal foi, em sua origem, uma festa pagã. Como sabemos, o paganismo é uma doutrina religiosa politeísta que era predominante antes da era cristã. As festas pagãs de Saturnália (17 a 24 de dezembro) e Brumália (25 de dezembro) faziam parte da cultura popular na Roma Antiga (e na região da Pérsia) e foram substituídas pelo natal cristão. Na Brumália, o nascimento de Júpiter (também chamado Mitra), o Deus-Sol, era comemorado no dia 25 de dezembro e se chamava Mitraica. Apesar disto, a festa em si não tinha caráter religioso e sim “mundano”. A maioria dos símbolos do natal também possui origem pagã. A origem da árvore de natal possui duas hipóteses: para uns, ela foi introduzida como símbolo da festa por Martinho Lutero, um dos principais arquitetos da reforma protestante (Século 16); para outros, sua origem se encontra na mitologia babilônica, segunda a qual Ninrode (filho de Cam, neto de Noé), depois de morto, gostava de receber presentes debaixo de uma árvore, no dia do seu aniversário, dia 25 de dezembro. Se a hipótese verdadeira for a segunda, a árvore de natal também teria origem pagã. As velas constituíam uma tradição pagã, pois eram acesas durante o crepúsculo para homenagear o Deus romano Júpiter. A guirlanda, coroa verde com fitas e bolas coloridas, fazia parte dos costumes populares para decorar edifícios. O Papai Noel tem sua origem na lenda de Nicolau, Bispo de Mira, Século 5. A lenda diz que ele presenteava, em segredo, três crianças de uma família pobre, todos os anos, no dia 06 de dezembro. No entanto, a mitologia babilônica de Ninrode, citada anteriormente, já colocava a oferta de presentes, mas que era feita para a “divindade” e não para crianças pobres. Outras versões do Papai Noel existiram, tal como a expressa no conto popular russo Babushka. O conto relata a história de Babuskha, uma velhinha que foi convidada pelos três reis magos para ir à Belém ver o Menino Jesus que havia acabado de nascer e que recusou o convite devido ao frio intenso que fazia naquela noite. No dia seguinte, ela juntou presentes para o Menino Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 71 Jesus, mas como não sabia o caminho e os três anciãos já haviam partido, partiu procurando-o sem nunca encontrá-lo, mas deixando para todos os meninos que encontrava um brinquedo como presente de natal. O Papai Noel tem diversos nomes (e formas) em países diferentes. Na Alemanha, é Kriss Kringle (“criança de cristo”); na França, é Pere Noel; Nos Estados Unidos e Canadá é Santa Claus (devido à origem lingüística holandesa, derivada de São Nicolau); na Inglaterra é Father Christmas; na Costa Rica, Colômbia, algumas partes do México, é El Niño Jesus; em Porto Rico ele é substituído pelos Três Reis Magos (Melchior, Baltazar e Gaspar); na Suécia é Jultomten; na Holanda, Kerstman; na Finlândia, Joulupukki; na Rússia, é Grandfather Frost ou Babushka; na Itália é Befana ou Babbo Natal; em Portugal é Papai Natal (Noel é o mesmo que natal); no Japão é Jizo e na Dinamarca é Juliman. O Papai Noel recebe nomes diferentes em países diferentes, mas em alguns recebe “formas” e origens diferentes, tal como em Porto Rico (três reis magos), na Rússia (Babushka) e na Itália (Befana, uma bruxa que desce pela chaminé e entrega presentes). A questão do presente é mais complexa. Na verdade, o natal se apresenta, na atualidade, como uma troca de presentes entre adultos e no ato de presentear crianças. No mito babilônico há oferta de presente para a divindade; enquanto que na lenda de São Nicolau e Babushka, há oferta de presentes para crianças. Mas sua origem parece estar ligada à cultura popular pagã, pois a troca de presentes era um costume tanto na Mitraica quanto na Saturnália. De tudo isto que vimos, podemos dizer que o natal tem sua origem numa festa pagã. Esta festa pagã se converteu em festa cristã a partir do século 4, quando Constantino, Imperador Romano convertido ao cristianismo, transformou o dia do Deus-Sol em dia do nascimento de Cristo (cuja data exata é desconhecida). Tal como coloca o historiador das religiões Mircea Eliade, “desde o princípio, o cristianismo sofreu influências múltiplas e contraditórias, sobretudo as do gnosticismo, do judaísmo e do ‘paganismo’”. Ele acrescenta que os padres da Igreja “cristianizaram os símbolos, ritos e os mitos asiáticos e mediterrânicos ligando-os a uma história santa”1. A Igreja Romana introduziu o natal como festa cristã, pois a hegemonia do cristianismo surgiu num terreno dominado por uma cultura popular, de forte influência pagã, que ela não podia simplesmente descartar, já que isto provocaria resistência à doutrina cristã. Desta forma, a Igreja Romana buscou assimilar a cultura popular e cristianizá-la, fornecendo, assim, um significado cristão a uma festa pagã, mas, ao mesmo tempo, mantinha grande parte de 1 ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Lisboa, Edições 70, 1980, 143. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 72 suas características e assim fazia uma concessão necessária para facilitar sua aceitação. Desta forma, o significado original do natal era mundano, de caráter pagão, ou seja, orientado para os prazeres da alimentação farta, alegria, etc. A Igreja Romana forneceu uma ressignificação do natal, dando-lhe um significado religioso. Este significado predominou durante toda a Idade Média, período em que a religião cristã dominou absoluta no mundo feudal ocidental, embora tenham sobrevivido alguns resquícios da influência pagã na cultura popular. No entanto, um novo significado passaria a ser atribuído ao natal na Idade Moderna, ou seja, na sociedade capitalista. O significado religioso permanece, mas é, em alguns aspectos, relegado a segundo plano, e, em outros, é assimilado pelo novo significado que adquire. Qual é este novo significado do natal? É o significado mercantil. O natal se torna uma grande festa consumista, amplamente explorada pela publicidade. O significado mercantil assimila o significado religioso e transforma o sentido dos símbolos natalinos. O fundamental passa a ser o presente e a figura preponderante passa a ser o Papai Noel, um velhinho que distribui presentes para todas as crianças (e não apenas para as pobres, como originalmente) sem nenhuma justificação. Este personagem vem apenas para apresentar como natural e universal algo que é constituído histórica e socialmente e que serve a interesses “ocultos”. A troca de presentes se torna generalizada e tem atrás de si um conjunto de interesses: oferece-se um presente em troca de outro presente ou então de um favor, ou, ainda, de algo que revela um interesse oculto. Uma pessoa pode dar um presente para outra visando receber outro presente em troca e tal troca pode representar uma posição social ou status (o valor financeiro do presente varia com a posição do indivíduo na hierarquia social). Um presente pode ser oferecido a um subalterno esperando que ele retribua não com outro presente, mas sim com gratidão, trabalho, dedicação (é o caso, por exemplo, das empresas que fornecem “cestas de natal” aos funcionários). O presente pode ser oferecido pelo subalterno ao seu superior, esperando, em troca, um presente melhor (devido suas “posses”), benevolência ou qualquer outra vantagem (devido seu “poder”). O bajulador é o principal distribuidor de presentes. Por fim, o presente pode ser expressão de afetividade: presenteia-se a quem se gosta e, se ele for um “igual” (adulto), espera-se que ele retribua sob a mesma forma, e, se for uma criança, espera-se a retribuição em forma de afetividade ou gratidão. O problema aparece, neste último caso, devido ao fato de que o processo de mercantilização das relações sociais cria em muitas pessoas a idéia de que o presente é equivalente ao amor e não apenas uma forma, entre inúmeras outras, sob a qual ele se manifesta. Realiza-se, assim, Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 73 uma inversão entre o símbolo (presente) e o simbolizado (amor), no qual a primazia passa a pertencer ao primeiro em detrimento do segundo. Desta forma, não receber um presente aparece como o mesmo que não ser amado. Cria-se, assim, o fetichismo do presente. As crianças são treinadas para viver nesse mundo mercantil desde cedo: em uma idade em que não possuem recursos financeiros para dar presente, um adulto lhe fornece dinheiro para comprá-lo e entregá-lo, principalmente no Dias das Mães e dos Pais, mas também no natal (há casos em que os pais dão dinheiro para os filhos comprar presentes para eles mesmos ou para o outro – o pai para a mãe ou vice-versa...). A publicidade, os costumes, cria na criança uma expectativa de ganhar presente. No natal, para o imaginário infantil, é um dia para se ganhar presente. O processo de troca de presentes na sociedade capitalista existe durante o ano inteiro (aniversário, dia da criança, dias dos namorados, dia dos pais, dia das mães, etc.) mas se intensifica no natal. No dia do aniversário, apenas o aniversariante ganha presente; no dia das crianças, apenas as crianças e assim por diante. No natal, a troca de presentes (mercadorias) se torna generalizada. Os meios de comunicação e a publicidade se encarregam de inculcar nas pessoas a necessidade de receber e dar presentes. O desejo de receber presente tem sua fonte na idéia transmitida pela publicidade e pelos meios de comunicação de que ele é um equivalente do amor ou então devido a interesses de aquisição de bens e vantagens. O desejo de dar presentes é produto tanto da publicidade quanto da pressão social (aquele que não dá presente não ama...) que, caso não seja efetivado, produz remorso (sentimento de culpa) no indivíduo. Assim, o capitalismo manipula sentimentos e produz valores visando aumentar o mercado consumidor. Todos sabem que no fim de ano, devido ao natal e ao ano novo, há um aquecimento nas vendas e no processo de produção em alguns setores, nos quais alguns setores do comércio e indústria são extremamente beneficiados (indústria e lojas de brinquedos, por exemplo). Outros costumes e desejos são fabricados, como a “ceia de natal”, decoração, determinados alimentos, etc. Numa sociedade onde houve a “mercantilização de tudo”2, isto tudo se torna mercadoria (presente, alimento, decoração, roupa, etc.) e se tornam necessidades fabricadas pelo capitalismo visando a reprodução ampliada do mercado consumidor. Isto recebe incentivo através do 13o salário e dos empregos temporários da época. Resta, para aqueles que não possuem dinheiro para realizar o ato fundamental do natal atual – comprar –, a insatisfação manifestada sob as mais variadas formas (tristeza, conflitos familiares, etc.). 2 WALLERSTEIN, Imannuel. O Capitalismo Histórico. São Paulo, Brasiliense, 1975; V IANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital (no presente volume). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 74 O natal também possui um significado de produzir uma pseudestesia coletiva de alegria. O clima de festividade, mesclado com o consumismo e mensagens religiosas de harmonia e paz, provoca uma falsa sensação de alegria – para aqueles que se inserem no mercado consumidor – que logo se dissipa e é substituído pela dura realidade da vida cotidiana, com todos os seus conflitos e dilemas. Desta forma, o natal ganha um significado predominantemente mercantil na sociedade contemporânea e os apelos para a recuperação de seu sentido religioso só possuem ecos em círculos restritos, nos quais a religiosidade ainda é importante. Assim, o natal revela ser aquilo que Marx afirmou ser a religião, pois ele revela ser a expressão e, ao mesmo tempo, a “dignidade espiritualista”, a “sanção moral”, o “complemento solene”, o “consolo” e a “justificação” deste mundo mercantil e coisificado. A superação da pseudestesia coletiva de alegria que é o natal, a falsa alegria, deve, pois, ser substituída pela verdadeira alegria, que vai muito além da coleção de mercadorias e presentes ou de apelos hipócritas a uma religiosidade silenciada pelo reino da mercadoria. O natal é expressão deste mundo e a superação deste é o meio necessário para a superação da pseudestesia natalina. Desta maneira, as flores imaginárias que enfeitam nossa prisão e nos consolam para continuar nela, uma vez descobertas, deverão ser arrancadas para que no lugar delas possam brotar flores verdadeiras, pois somente assim a alegria imaginária será substituída pela alegria real. O presente texto foi publicado originalmente no Jornal Opção, em 28 de Dezembro de 2001, contendo algumas alterações formais. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 75 No Tempo da Saturação Raymundo Lima Você já notou como as pessoas andam exclamando “como passou rápido esse ano?”, “já é natal?!!!” Também se tornou comum nos surpreendemos já com 50 anos, meio século de vida! Os filhos, como cresceram tão rápido! A frustração daqueles que não conseguiram encontrar seu amor e casar na marca dos 30, vê o tempo passar ainda mais rápido... Não faz muito tempo, tínhamos prazer em participar do ritual do fim de ano. Tínhamos tempo disponível para escolher os presentes e cartões de boas festas para os parentes e amigos, colegas etc. Escolhíamos alguns com desenhos personalizados para cada um dos nossos endereçados (lembro-me que, quando matávamos um porco também era assim: o pedaço mais nobre ia para uma autoridade ou alguém melhor posicionado na hierarquia da família, já os pedaços menos nobres ia para os de menor prestígio). A ideologia capitalista imprimiu a idéia obsessiva de que tempo é dinheiro. Que é preciso correr contra o tempo. Ora, o tempo em si não tem nada a ver com dinheiro, não corre, não muda e não para. O tempo é eterno. “O tempo foi e não é mais e vai ser e ainda não é” (Corbisier). No dizer de Aristóteles, o tempo parece ser o movimento e a mudança. Todavia, o movimento e a mudança estão unicamente nas coisas, ao passo que o tempo está em toda parte e em todas as coisas igualmente. O tempo não existe sem movimento e, no entanto, o tempo não é movimento, mas alguma coisa do movimento. É, portanto, a força da ideologia em nos, adicionada a velocidade rápida das coisas em transformação no mundo atual que nos faz ansiosos com relação ao tempo. Estamos sempre com a sensação de que estamos perdendo tempo. Hoje, tudo parece rápido demais para podermos processar o entendimento das complexas transformações. A rapidez traz cansaço porque temos muito mais coisas para fazer que a trinta anos atrás. Se o computador melhorou o nosso rendimento e diminuiu as tarefas manuais, por outro lado, aumentou muito nossa carga de trabalho. Se antes atendíamos um telefonema por dia, com o celular o sujeito se obriga a atender um enorme volume de ligações. Ninguém sabe ainda qual é o nosso limite para responder as novas tecnologias. Sentimos pressionados a andar rápido, a ser eficiente e estar bem informado sobre tudo. O aumento da velocidade da informação e mudança da ordem das coisas certamente está afetando o psiquismo humano. Vivemos os acontecimentos on-line. Se cai a bolsa de valores de Kuala Lumpur, no minuto seguinte estamos ansiosos porque no Brasil muita gente pode perder o emprego. Minutos após a proibição da salsicha na Alemanha devido ao medo Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 76 da doença da vaca-louca, sente-se o contentamento dos criadores de gado daqui. Afinal, irão exportar mais e a melhor preço. Um palestrante da moda disse que, o mundo não premia esforços mas resultados. É terrível essa verdade. Gente da direita, de esquerda e do centro, religiosos e não religiosos, todos correm para recuperar o prejuízo antes de vir a ser prejuízo. Tanto no Japão como no Brasil, todos querem ser primeiro lugar ou pelo menos estar incluído na onda do momento. Podem não gostar da globalização mas o sistema capitalista fundado na globalização pressiona todos a competirem, a se informarem, a se atualizarem, a curto prazo. O tempo, pensado pela física, é relativo. No sistema econômico ele é pragmático e objetivo. O tempo, pensado pela psicanálise, é subjetivo. No inconsciente não há tempo. O inconsciente não tem história. Nele os acontecimentos são après-coup, isto é, o indivíduo modifica posteriormente os acontecimentos passados em função de experiências novas. Os registros do inconsciente se atualizam sempre como se não houvesse registros fiéis do acontecido. Portanto, há e sempre haverá choque entre o mundo subjetivo e o mundo capitalista globalizado. São interesses distintos. As pessoas desejam a felicidade, algo difícil de ser definido, mas que necessariamente passa pela subjetivação (não existe “a felicidade” mas, “minha felicidade”, “sua felicidade”...) já o sistema demanda eficiência e lucro. Muitos gurus da globalização, os babacas de plantão do sistema, discursam que a felicidade está em responder as pressões do mercado. Nada é mais ideológico do que esse posicionamento. Portanto, não é o tempo que está andando muito rápido, mas a velocidade dos acontecimentos de nosso tempo faz com que as distâncias pareçam cada vez menores. A física antecipou essa constatação empírica. Se tudo é mais veloz e não conseguimos acompanhar, filtrar, processar e reter o sentido, é possível resultar em nosso psiquismo certa sensação de esquizofrenia ou loucura. Ficamos em estado de ex-tase, isto é, fora-de-nosso-centro. O normal de tudo isso é ficamos divididos entre o que conseguimos captar e o que falta de significação. Ficamos confusos entre o passado conhecido e a incerteza do futuro. Alguém certa vez disse que, o “absurdo é o que está esvaziado de sentido”. Estamos, vivendo o absurdo da existência. Nela há escoamento do sentido. “Pra quê tudo isso?” sinalizou o escritor José Saramago. A vida corrida como está não a usamos, não a saboreamos porque faltanos sabedoria. Falta-nos o carpe diem, a escolha, a coragem e a determinação de colher a vida, aproveitá-la enquanto é tempo. A vida escorre-nos e logo irá embora. Ninguém volta a viver o minuto que escapa. Resta-nos a sensação de espanto do que já foi rápido demais. Essa sensação de rapidez e escoamento é a primeira vez que a humanidade sente na história. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 77 Podemos estar saturados da pressão ideológica capitalista, mas ainda a suportamos, tanto é que terminamos nos rendendo aos apelos das datas comemorativas ou comerciais que nos obriga a comprar, comprar e comprar. Consumir é a ordem para sermos preenchidos de nadas. Há ainda, uma outra ordem de pressão: atualize-se, faça curso, ascenda na sua carreira. Ora, progredir não é mais sinônimo de saber, mas de poder numa hierarquia de valores tecnoburocráticos. Se você está competindo, logo existe. Se parou, ou se nega entrar nesse jogo, é visto como um Zé Ninguém, um coitado, um revoltado, um dinossauro ou um louco... Por noticiários vemos que os mais aquinhoados não mais se satisfazem em comprar no Brasil ou no Paraguai. Vão fazer compras em Miami ou New York. Lá não se sentem saturados, mas empanturram-se de novidades no paraíso das compras. E depois dos EUA, onde irão, já que a compulsão neurótica às compras sempre aumenta, sempre pede algo a mais? Existe gente sonhando ser possível no futuro consumir num shopping, em Marte ou em Alfa Centauro. Nessa época do ano, o chamado “espírito de Natal” anda tão saturado pelos brasileiros que vivem nos EUA, que terminam voltando ao Brasil para passar o fim de ano. Minha opinião é que os americanos do norte gozam desse espírito natalino devido ao seu infantilismo capitalista sui generis. Não demorará muito tempo para que as pessoas nessas épocas estejam tão saturadas, tão consumidas por esse capitalismo voraz que esquecerão de desejar aos conhecidos “Feliz Natal”. Já notaram o pouco entusiasmo como as pessoas desejam votos de boas festas? Já sentiram o constrangimento de ter que participar de sessões de amigos secretos, nem sempre amigos e, ao receber presentes que não necessitamos, ter ainda que fazer cara que gostou? Atualmente, muito pouco se envia cartão de boas festas. Dizer “Feliz natal e Próspero Ano Novo”, virou lugar comum e dito descartável. Mas, que fazer se são poucas as opções quanto a desejar votos? Afinal, ainda precisamos dos ritos de passagem de ano, de século, de milênio, etc. O presente texto foi publicado originalmente na Revista Espaço Acadêmico (http://www.espacoacademico.com.br/). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 78 Psicanálise dos Filmes de Terror Nildo Viana Qual é a lógica que está por detrás dos filmes de terror? Existem algumas características comuns a quase todos os filmes de terror. O apelo ao sobrenatural está presente em todos. O sobrenatural, por sua vez, possui sua origem no pensamento mítico e foi substituído pelo pensamento religioso. O sobrenatural, nas sociedades onde o pensamento mítico foi substituído pelo pensamento religioso, está ligado à distinção entre o bem e o mal. É o sobrenatural de caráter religioso que distingue o absurdo e o extraordinário destes filmes com os que se vê nos contos de fadas, nos sonhos, na literatura, etc. A dicotomia entre o bem e o mal existentes nos filmes de terror não pode ser explicada apenas pelo seu caráter religioso, pois é preciso explicar o motivo de sua permanência em nossa sociedade, marcada por um amplo processo de racionalização que a torna uma sociedade extremamente “racionalista”. A própria permanência da religião deve ser explicada. A religião persiste porque a “miséria real” persiste, ou seja, porque a sociedade continua sendo marcada pela miséria, exploração, alienação e repressão. A sociedade contemporânea reprime as potencialidades humanas. O “sucesso econômico”, a busca de status, a competição social, substituem e reprimem a realização dos desejos autênticos que são reprimidos1. A repressão dos desejos humanos faz com que estes sejam lançados no mundo do inconsciente. Este, então, como já havia colocado Freud2, se manifesta nos sonhos, na fantasia, etc. Os desejos reprimidos povoam o inconsciente e este se manifesta em diversas oportunidades. Mas, além disso, a não-satisfação de desejos cria a sombra, um novo componente psíquico, que gera distúrbios psíquicos (neurose, psicose, etc.), agressividade etc. Quanto mais o inconsciente se manifesta, mais se descarrega a ansiedade e as tensões; quanto menos, menor, por conseguinte, será a descarga, que será concretizada de outra forma. Assim, quanto maior a repressão e quanto menor a descarga do inconsciente, ou o desenvolvimento da persona (sublimação), maior será a 1 Cf. V IANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital (no presente volume). 2 Cf. FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise. São Paulo, Abril Cultural, 1978. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 79 força da sombra3. Esta análise poderá colaborar com a compreensão da estrutura dos filmes de terror. Os filmes de terror mais antigos apresentavam um conflito entre o bem e o mal, tais como os mais recentes. Porém, entre os mais antigos e os mais recentes há uma diferença fundamental: nos mais antigos, o que predominava era a vitória do bem sobre o mal e nos mais recentes ocorre o contrário. Qual o motivo desta mudança? Podemos supor que a razão disto se encontra na identificação com o bem, no primeiro caso, e com o mal, no segundo. A identificação com o bem, neste caso, significa uma identificação com o bem tal como este é concebido pelos valores cristãos e assume um caráter de uma tentativa de assustar os “infiéis” pelo temor. Esta hipótese só pode ser comprovada mediante uma pesquisa concreta. Mas ela é confirmada, pelo menos parcialmente, pelos discursos aterrorizantes de certas igrejas que permanecem até os dias de hoje. Mas o que nos interessa aqui são os filmes de terror mais recentes. Podemos dizer que nestes filmes há uma identificação do criador do seu enredo com “o mal”. Esta hipótese não tem como fundamento apenas o fato de que o mal triunfe mas também pela própria estrutura de tais filmes. Neste sentido, é exemplar o filme O Monstro Canibal. Ele conta a história de uma desenhista. Ela era especialista em história em quadrinhos de terror que se encontrou com alguns “amigos” (invejosos e plagiadores, com apenas uma exceção) em um casarão num fim de semana. Ela passou a sua estada discutindo com o seus colegas e, a cada discussão, encontrava inspiração para desenhar um monstro canibal devorando suas vítimas, que ela desenhava com todas as características físicas de suas companhias de fim de semana. Entretanto, o monstro aparecia na realidade (do filme, é claro) e devorava realmente as pessoas, que iam desaparecendo uma por uma e ninguém desconfiava de nada, pois, como o monstro era canibal, ele comia suas vítimas e não sobravam restos e assim todos os restantes pensavam que eles tinham simplesmente ido embora. No final do filme, ocorre a tragédia de que o único dos presentes que era amigo da desenhista acaba sendo devorado pelo monstro e ela se torna consciente de que era responsável por tudo, ou seja, que era o seu desejo e o seu ódio (seu “mal” interior, sua sombra) que fazia surgir o monstro, que o alimentava e dava força e tudo que daí decorria, através dos seus desenhos. Ela também percebeu que isto estava cada vez mais longe do seu controle, tal como se pode notar no fato de seu amigo também ter sido devorado, ou seja, a sombra tomou conta dela. Os desenhos anteriores são todos queimados e ela cria, então, um desenho onde o monstro 3 Uma exposição do significado destes conceitos (sombra, persona etc.) se encontra em: VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 80 desaparece e todos os seus amigos retornam ao mundo dos vivos. Mas da lixeira retorna o monstro que devora a todos, inclusive a desenhista. O retorno do monstro apenas simboliza que o mal está dentro dela e que seu esforço “racional” em superá-lo é inútil, pois ele é mais forte e sempre volta. É a vitória do mal sobre o bem. Este filme é paradigmático, pois revela que o mal (no caso, o monstro canibal) tem origem no ódio que a desenhista sente em relação a algumas pessoas. O que se vê, a partir disto, é que uma obra fictícia (a história em quadrinhos de um monstro canibal) expressa sentimentos reais (o ódio da desenhista). O mesmo pode ser dito a respeito do próprio filme O Monstro Canibal, uma criação fictícia que manifesta sentimentos reais e que toma esta própria relação entre ficção e sentimentos como tema e isto é feito de tal forma que revela a lógica de produção deste tipo de filme. Mas se O Monstro Canibal apresenta de forma um tanto quanto explícita esta relação, o mesmo não ocorre com os demais filmes de terror. Entretanto, em muitos se percebe esta relação de forma implícita. Basta ver o tema recorrente do perigo do espelho ou dos sonhos. O que o espelho e os sonhos refletem além de nós mesmos? O mal está do outro lado do espelho e nos ameaça a devorar ou destruir e os sonhos, tal como no filme O Pesadelo, é onde o mal se manifesta e busca penetrar no nosso período de vigília (quando estamos acordados). O “outro” que é o mal (a sombra) está nos sonhos e espelhos, o que reflete o nosso “lado obscuro”. Enfim, estes filmes retratam os conflitos dos seus criadores com os seus fantasmas interiores. A identificação com o mal é decorrente da situação do criador do filme, não só pelo fato de que assim ele descarrega seu ódio destrutivo de forma fictícia, sendo uma mistura da manifestação da persona (o que Freud chama de sublimação)4 comandada pela sombra, mas também pelo fato de que ele é o “dono” da história e é ele que irá descarregar o ódio e por isso o mal não lhe é ameaçador mas sim para aqueles que ele odeia. Aliás, daí podemos sugerir a hipótese de que as pessoas que são destruídas nestes filmes sejam símbolos de tipos de pessoas que o criador da história realmente odeia. O ódio é produto do sentimento de impotência e da vontade de vingança. Este ódio é produto da sombra, das energias destrutivas acumuladas no indivíduo devido à mais-repressão da sociedade repressiva. Podemos abrir um parêntesis aqui para explicar que o sentimento de impotência pode produzir diversas reações. Entre estas reações se destacam o ódio e o medo. Isto ocorre principalmente no interior de relações sociais nas quais o sentimento de impotência diante de injustiças ou das ações de pessoas tirânicas produz ódio ou medo. Juntamente com o ódio vem o desejo de 4 Cf. FREUD, Sigmund. Ob. cit. No entanto, nossa concepção tem algumas diferenças em relação à de Freud (veja Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 81 vingança e junto com o medo vem a submissão. Cada indivíduo possui uma predisposição maior para um ou para outro e isto depende do seu processo histórico de vida, que fornece uma determinada configuração ao seu universo psíquico, embora isto possa ser alterado no conjunto das relações sociais (a diminuição da repressão, por exemplo, pode alterar tal configuração). Entretanto, é preciso ressaltar que há o predomínio de um ou de outro mas ambos estão, de certa forma, presentes. Não há nenhum submisso que não alimente um quantum de ódio pelo seu tirano e não há nenhum revoltado que não carregue em sim um quantum de medo, a não ser em casos concretos raros. Se não fosse assim, o medroso seria incapaz de qualquer ato de rebeldia, o que não se verifica na realidade, e o revoltado tentaria concretizar sua vingança imediatamente, o que não ocorre efetivamente e é justamente esta situação que permite a emergência do ódio e do medo. O ódio contido pode se manifestar através de outras formas de violência e agressividade, ou mesmo sob formas socialmente permitidas, tal como, segundo nossa hipótese, a produção de filmes de terror. No caso de O Pesadelo, as vítimas do criminoso “ressuscitado” Fred Krueger (que morreu queimado pelos moradores do bairro onde se desenvolve o filme após ter sido absolvido pelo crime de assassinato de crianças) eram três jovens “normais”, um jovem envolvido com drogas e uma mulher alcoólatra, mãe de uma das vítimas. Estes jovens passam a sonhar que um homem/monstro misterioso que possui lâminas nas mãos os perseguem (individualmente) e eles acordam pouco antes de serem mortos. Fred Krueger voltou para se vingar e a vingança surge a partir do momento em que, passando por cima da lei e da decisão judicial, os moradores fizeram justiça com as próprias mãos. Duas das vítimas eram parentes de um delegado (uma era a esposa, que participou da perseguição a Krueger e que inclusive guardou a arma que ele utilizava para matar as crianças – laminas que se encaixavam nas mãos como uma espécie de luva – e a outra era a filha). O delegado não fez e nem podia fazer nada para salvá-las, assim como também não salvou Fred Krueger. No fundo, o ódio do criador deste filme, podemos supor, é direcionado para aqueles que fazem justiça com as próprias mãos. Isto, entretanto, é apenas uma hipótese provisória que somente uma pesquisa sobre tal criador poderia confirmar ou refutar. Mas é bem mais provável e menos discutível a idéia de que o filme de terror manifesta os conflitos interiores de seu criador. De qualquer forma, no universo psíquico do indivíduo convive as energias reprimidas, incluindo a sombra, o lado perverso provocado por um processo de mais-repressão e de falta de possibilidade de auto-realização individual, seja através da manifestação da persona, ou de qualquer forma de satisfação substituta. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 82 O presente texto foi publicado originalmente no Jornal Opção, em julho de 1997, contendo algumas alterações formais e de conteúdo. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano 83 Coleção Temas Germinais A Coleção Temas Germinais pretende germinar pensamentos, idéias, críticas, questionamentos e abrir espaço para que se possa semear um novo mundo. A Questão da Causalidade nas Ciências Sociais é um texto que interessa a quem trabalha com epistemologia, filosofia, ciências sociais, marxismo e outros temas próximos. Este livro apresenta um breve histórico da idéia de causalidade na filosofia e nas ciências naturais e faz uma abordagem de sua elaboração nas ciências sociais e apresenta a concepção de Marx sobre as múltiplas determinações dos fenômenos sociais em oposição à idéia de causalidade. TEMAS GERMINAIS 02 Inclusão ou Exclusão: O Dilema da Educação Especial é um ensaio crítico e A Coleção Temas Germinais pretende Inclusão ou Exclusão? O Dilema da Educação Especial atual a respeito de um dos temas mais debatidos na área educacional nos últimos anos. Livro de interesse para educadores, sociólogos, por um lado, e para indivíduos Maria Angélica Peixoto “excepcionais”, bem como seus familiares e profissionais que trabalham com educação especial. A autora desvenda a Edições fonte ideológica que está por detrás da Germinal visão da excepcionalidade e descobre a origem das concepções de educação especial, revelando que a proposta de inclusão está intimamente ligada à política neoliberal do Estado Capitalista contemporâneo, expressão da tentativa de solucionar o problema da crise de acumulação de capital.