Falhámos a meta da biodiversidade para 2010. E agora?
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Falhámos a meta da biodiversidade para 2010. E agora?
Quinta-feira 22 Abril 2010 dia da terra Falhámos a meta da biodiversidade para 2010. E agora? Onze objectivos que tínhamos de cumprir e o que estamos a fazer Os animais e plantas que estão prestes a desaparecer do país Oito casos de sucesso e de fracasso em Portugal 20 anos PUBLICIDADE 2 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 O mundo falhou, a Europa falhou, Portugal falhou. E agora? Comentário Ricardo Garcia a Revisitar qualquer meta planetária na área ambiental é sempre um exercício angustiante. Partimos para a missão já predispostos a encontrar um mau resultado. A frustração é o corolário mais natural desse processo. Existem, é claro, casos positivos. A luta contra o buraco na camada de ozono, por exemplo, vai no bom sentido. Mas o combate pela preservação da diversidade biológica está entre os exemplos de fracasso. O mundo entrou no Ano Internacional da Biodiversidade sem razões de júbilo nessa matéria. Era justamente agora, em 2010, que se deveria ter conseguido “uma redução significativa” do ritmo com que plantas e animais estão a desaparecer da face da Terra, sobretudo por obra humana. A promessa tinha sido feita em 2002, na Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo, com a solenidade própria que esse tipo de eventos impõe. Um ano antes, a União Europeia tinha-se comprometido a um passo ainda maior: o de estancar, igualmente até 2010, a perda de biodiversidade nos seus Estados-membros. Ambas as metas falharam, rotundamente. Em Janeiro passado, Ahmed Djoghlaf, secretário executivo da Convenção da Diversidade Biológica – ao abrigo da qual a meta de 2010 foi adoptada – declarou de modo inequívoco: “Continuamos a perder biodiversidade a um ritmo sem precedentes”. As pressões mantêmse sobre os ecossistemas mais ricos em variedade de formas de vida, como a floresta tropical e os recifes de corais. Não há qualquer sinal de abrandamento no número de espécies ameaçadas de extinção. assumidos pelas Nações Unidas, em áreas tão diversas como a protecção de habitats e de espécies individuais, a promoção de práticas tradicionais ou a cooperação e a investigação científica. A cada um deles, respondemos com um caso português. O objectivo não é mostrar se falhámos ou não. Pelo contrário, as histórias que aqui trazemos revelam que nem tudo está parado. Há pessoas e instituições vivamente empenhadas em salvaguardar o nosso património biológico, na tentativa de tornar o país menos insustentável. Mas também há sinais negativos. Grande parte das espécies ameaçadas em Portugal não está a recuperar. Plantas e animais invasores prosseguem a sua conquista do território, subjugando outras espécies, praticamente sem qualquer impedimento. No final deste retrato sobre onde estamos em 2010 no que toca à biodiversidade, cabe perguntar o que é que se segue. Uma nova meta será útil? Talvez sim. Sem um farol, mesmo que débil, a viagem torna-se ainda mais difícil. Embora a deficiente monitorização seja um dos calcanhares de Aquiles da meta de 2010, os indicadores que existem mostram na sua maioria uma tendência negativa. O mundo falhou, a Europa falhou, Portugal falhou. Não haverá, naturalmente, uma razão única para explicar este fracasso. Como em tudo que envolva a sustentabilidade – este conceito tão prezado nos discursos quanto ignorado na prática –, poderemos facilmente agarrar-nos às explicações mais fáceis, como a adopção de políticas erradas, a ausência de instrumentos económicos, a inércia à mudança no comportamento humano. A história sugere que é preciso uma boa crise ambiental para que se ultrapasse a inacção. Infelizmente, no caso da biodiversidade, a crise existe mas não se vê facilmente. São raros os casos em que o cidadão comum se dá conta de que o declínio da população de um animal ou de uma planta o afecta. As pescas, pelo seu peso comercial, são um exemplo. Mas se um minúsculo caracol desaparece do mapa – e há pelo menos 40 ameaçados de extinção em Portugal – provavelmente ninguém dará por isso. Nesse aspecto, é natural que as alterações climáticas despertem mais atenção. Basta um furacão, uma seca prolongada, umas cheias avassaladoras para pôr o mundo todo a falar dos perigos que nos espreitam quando mexemos no clima. A proeminência actual do tema até tem conspirado contra outros problemas ambientais, que estão a ficar em segundo plano – e o da biodiversidade não é excepção. O falhanço da meta de 2010, por isso, não surpreende. Nem seria de esperar que em oito anos a sociedade revertesse um mal que começou a fazer há dois séculos e meio, com a Revolução Industrial. A alternativa que surge agora é empurrar para a frente o compromisso. Fala-se numa “visão” para 2050, com uma nova meta para 2020. Neste Dia da Terra, o PÚBLICO faz uma viagem aos caminhos concretos que tinham sido traçados para travar a redução da diversidade biológica. Eram onze os objectivos Na charneca do Ribatejo a mão humana está a ajudar. Por Ricardo Garcia e Daniel Rocha 22 24 Além de sol e mar, o país quer ecoturismo. Por Ana Rute da Silva 26 28 Colorida, viscosa e talvez terapêutica. Por Teresa Firmino Sumário 4 6 10 12 Aqui está a nascer a primeira reserva natural privada em Portugal. Por Abel Coentrão e Paulo Pimenta Andam à procura de um preço para a biodiversidade. Por Lurdes Ferreira 14 15 18 Paisagem em lume brando. Por Herique Pereira dos Santos Não são daqui mas ocuparam o país. Por Andrea Cunha Freitas Castas de vinho portuguesas uesas são um património único o mas em risco. Por David Lopes Ramos Araras, ovos, crocodilos, marfim, a natureza ilícita em Portugal. Por José Bento Amaro 20 A gralha está de volta, e o que era antigo também. Por Alexandra Lucas Coelho e Rui Gaudêncio Temos de criar auto-estradas para a biodiversidade. Entrevista de Ricardo Garcia Ajudar a proteger oteger a costa de Moçambique. bique. Por Nicolau u Ferreira Directora Bárbara Reis Editor Ricardo Garcia Redactores Abel Coentrão, Alexandra Lucas Coelho, Ana Rute Silva, Andrea Cunha Freitas, David Lopes Ramos, José Bento Amaro, Lurdes Ferreira, Nicolau Ferreira, Teresa Firmino Directora de arte Sónia Matos Editor de fotografia Miguel Madeira Repórteres fotográficos Adriano Miranda, Daniel Rocha, João Gaspar, Paulo Pimenta, Pedro Cunha, Rui Gaudêncio Infografia Joaquim Guerreiro e José Alves Olhe pelo futuro Quem olha por si, também olha pelo seu futuro. E para o fazer é crucial cuidar do ambiente em que vivemos. É com este pensamento que Vitalis se coloca na vanguarda da inovação ao desenvolver garrafas com muito menos plástico. As novas garrafas PET de Vitalis são as mais leves do mercado, conseguindo ser ainda mais resistentes e mantendo inalteradas as qualidades e a pureza da sua água. Beba Vitalis, o futuro agradece. 4 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 1 Promover a conservação da diversidade de ecossistemas, habitats e biomas Aqui está a nascer a primeira reserva natural privada em Portugal Áreas protegidas de gestão municipal e particular são a nova linha da frente da preservação de zonas naturais importantes no país. Na reserva da Faia Brava, com 600 hectares, acreditase que a conservação da natureza é também uma tarefa dos cidadãos. Por Abel Coentrão (texto) e Paulo Pimenta (foto) consequências na vegetação e, consequentemente, nas condições de vida das aves e das outras espécies que a ATN tenta proteger. Localização Ri oD ou ro ZPE do Côa ZPE do Douro Reserva Faia Brava a ued Ág Rio Côa às transformações impostas pela presença do homem na paisagem, reconhecíveis nos pombais caiados de branco, nos caminhos abertos pelos rebanhos de ovelhas, nos montados de sobro e azinho, e nos olivais que, parecendo desafiar as regras do equilíbrio, se estendem encosta abaixo. O problema é que, quase tanto como as aves, perdoando-se o exagero, nesta zona do país o homem é bicho a merecer pelo menos o estatuto de espécie quase ameaçada, de tão poucas que são as pessoas que se vêem nos caminhos percorridos desde esse lugar de nome premonitório, Vilar de Amargo, na estrada EN322, que liga Almendra a Figueira de Castelo Rodrigo, até este vale que lhe corre paralelo. E o despovoamento trouxe vários desequilíbrios a uma área que, para efeitos de conservação, até está incluída na Zona de Protecção Especial (ZPE) do Vale do Côa, mas que se apresenta desprotegida perante vários perigos: como o do fogo que, em 2003, aqui lavrou durante 15 dias, destruindo 1500 hectares da ZPE e matando um terço dos sobreiros com mais de 50 anos. Era o terceiro ano do projecto Faia Brava. Mas aquele incêndio, um sério revés, foi também um Rio a À porta de um pombal sobranceiro ao vale escarpado onde o rio Côa serpenteia, ainda indomado, uma cama de penas no chão de granito diz-nos que a hierarquia da cadeia alimentar funcionou a favor de uma das aves que, lá de cima, parece vigiar a nossa incursão na reserva da Faia Brava. Não terá sido o grifo, como necrófago que é. Provavelmente a matança foi coisa de águia-real ou da águia-de-Bonelli. Esta última, com o abutre-do-Egipto, foi uma das espécies cuja conservação animou, há uma década, o trabalho inicial da Associação Transumância e Natureza, estando na origem de uma reserva natural hoje com 600 hectares e prestes a ganhar o estatuto de primeira área protegida privada do país. Estamos na região do Riba-Côa, no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, com Cidadelhe, já do lado de Pinhel, a pontuar de branco a crista oeste deste vale fechado em que o rio imortalizado pelas gravuras rupestres abre o seu caminho até ao Douro. As escarpas, assim inacessíveis, são óptimos locais para pouso e nidificação de aves rupícolas (ou aves das rochas, literalmente), que aqui, como na área vizinha do Parque Natural do Douro Internacional, se adaptaram sinal da urgência do trabalho que estava e continua a ser realizado por esta organização não-governamental ligada geneticamente aos holandeses da Fundação Transumância e Natureza que, em 2000, começou a comprar terrenos nas freguesias de Algodres e Vale Afonsinho para criar uma área para a conservação das aves rupícolas. A bióloga Alice Gama, uma portuense que entre 2003 e 2006 investigava aves de rapina na Costa Rica e nos EUA, não tem uma imagem viva desse incêndio. Mas conhece bem as suas Avistado abutre-negro O fogo acelerou um processo evidente de degradação daquele ecossistema, de onde, por falta de alimento, foram desaparecendo espécies que, por sua vez, alimentavam estas aves. “Em 15 anos, a população da águiade-Bonelli caiu para metade”, contabiliza Alice Gama, notando que a zona delimitada pelo Douro, a norte, o Águeda, a leste, e o Côa, a oeste, é, em Portugal, o segundo habitat mais importante desta espécie, depois da serra algarvia. Há, na área da Faia Brava, um casal, que já teve crias, entretanto. Já a águia-real, notícia pelo seu quase desaparecimento no Parque Nacional da Peneda-Gerês, vive nesta região do país melhores dias, e um casal vagueia pelos territórios do Riba-Côa, onde nidifica ainda uma família de cegonha-negra. Quanto aos necrófagos, agradecem bem a comida que recebem do alimentador de abutres construído pela ATN, que contabiliza a presença, todos os anos, de quatro casais de brintango, o nome local para o abutre-do- Egipto, e uns cinquenta pares de grifos, estes presença constante nos ares. E há dias, já depois da nossa passagem pela reserva, foi de novo avistado um abutre-negro na Faia Brava. “É uma espécie extinta como nidificante em Portugal, com indivíduos em dispersão entre Portugal e Espanha, e que no futuro próximo pode voltar a nidificar em Portugal. Quem sabe no Côa?”, explicava, num e-mail cheio de esperança, a bióloga que lidera a jovem equipa técnica da ATN, da qual fazem parte ainda um engenheiro florestal, que tem o apoio de dois trabalhadores permanentes, e Fernando Romão, o nosso guia e responsável pela tarefa, ainda praticamente a começar, de divulgação turística deste espaço, uma valência cujo retorno financeiro será outra fonte de receita para o muito que há a fazer para assegurar, e aumentar, a biodiversidade neste vale ao qual Alice gostaria, um dia, de ver regressar o lobo. Com recurso a trabalho próprio e a acções de voluntariado, a ATN começou por recuperar oito pombais. Perto de um dos que visitámos, as moscas e o cheiro a carne putrefacta, restos do talho, diz-nos Fernando Romão, atraem- Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 5 Há 47 áreas protegidas em Portugal, três das quais criadas em 2009 Garranos na Faia Brava Fernando Romão guiou-nos pela reserva no rio Côa nos para o alimentador dos abutres. No caminho até à zona escarpada, uma manada de garranos faz-se à fotografia, assinalando outra das acções mais bem sucedidas da ATN, que, lançado um apelo na Internet e entre os associados, conseguiu “adoptantes vitalícios” (por 150 euros) e anuais (50 euros) para comprar 25 cavalos desta raça. Número bastante para o cercado de cem hectares construído para albergar os animais, que entretanto já se vão reproduzindo. Os garranos são outros trabalhadores da Faia Brava, já que controlam os matos e fertilizam os solos, apoiando assim os objectivos de contenção de incêndios e de repovoamento florestal, que entre 2005 e 2008 levou à plantação de 15 mil árvores de espécies autóctones, num esforço que tem sido continuado. As operações de gestão da população de coelho-bravo, o cultivo extensivo de cereais, como o trigo e o centeio (que aumentam o alimento disponível para as presas das aves de rapina, como o coelho e a lebre, a perdizvermelha, o pombo-da-rocha e o pombo-torcaz), os projectos de recuperação dos cursos de água e muitas outras acções assinaladas nos relatórios anuais e no “excelente” plano de gestão da Faia Brava levam o Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) a olhar para a reserva da ATN como algo que tem tanto de “pioneiro” como de “ímpar”. “É uma aprendizagem conjunta. Esperamos concluir em breve o processo de classificação da Faia Brava”, explica ao PÚBLICO Anabela Trindade, vice-presidente do ICNB. “Temos esperança de que sirva de exemplo e que venha a ser reproduzido noutras zonas do país”, admitiu, argumentando que a conservação da natureza não pode depender apenas do Estado, sendo, também, uma tarefa dos cidadãos. Para já, o Decreto-Lei 142/2008, que abriu as portas, pela simplificação de procedimentos, à criação de áreas protegidas por iniciativa privada mas também municipal, foi já aproveitado por algumas autarquias. Gaia criou a Reserva Natural Local do Estuário do Douro, Caldas da Rainha tem Esta entidade bancária acabou por se tornar sponsor da Faia Brava, fazendo um generoso desconto no empréstimo e apoiando ainda, durante dois anos, uma campanha de divulgação da reserva. Já a EDP, que financiou o Plano de Emergência para a Recuperação de Três Espécies de Aves Rupícolas no Parque Natural do Douro Internacional – no qual a ATN foi chamada a colaborar –, atribuiu em 2009 ao projecto Faia Brava – um lugar para a Biodiversidade (ATN, Universidade de Aveiro e Stichting Transhumance en Natuur, Holanda) verbas do seu fundo para a biodiversidade. O Biofaia, na sua denominação mais curta, vai permitir, por exemplo, melhorar as condições de alojamento (campismo) dos voluntários que todos os anos participam nas acções desenvolvidas na reserva. Outra forma de chegar a fundos foi a criação de uma Zona de Intervenção Florestal em duas das três freguesias onde se localiza a área protegida. A ATN procura já a Reserva Natural Local do Paul da Tornada e Vila do Conde garantiu finalmente um estatuto de protecção para aquela que, em 1958, foi reconhecida como a primeira área a proteger no país. Trata-se da antiga Reserva Ornitológica do Mindelo, agora denominada Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde. Também no Grande Porto, Valongo tem a decorrer o processo de criação da Área Protegida das Serras de Santa Justa e Pias, tendo terminado recentemente o período de discussão pública. Como se paga o projecto? A Faia Brava é, em Portugal, um laboratório de novas experiências no domínio do financiamento da conservação da natureza. Com cerca de 200 sócios, a Associação Transumância e Natureza (ATN) teve a sorte de estar ligada, na origem, a uma fundação homónima, de origem holandesa, que lhe abre portas para apoios de mecenato vindos do estrangeiro. Mas, além disso, ensaiou outras estratégias de obtenção de fundos para a aquisição de propriedades no Riba-Côa que, entre os contratos já formalizados e outros alvo de compromissos para futuro, chegam já aos 600 hectares de área protegida. Uma delas passa, por exemplo, pela venda de azeite biológico produzido a partir das oliveiras que pontuam todo o território da reserva, cuja receita é transformada... em terra. Não chega é para muito. Os últimos 200 hectares, na margem esquerda do Côa, em Cidadelhe, Pinhel, faziam parte da Quinta da Ervideira, para cuja compra a ATN contraiu um empréstimo no BES. apoios dos fundos comunitários para o mundo rural para as suas actividades agrícolas, até porque estas são essenciais para os objectivos de conservação da biodiversidade que estão na origem da Faia Brava. A associação, que investiu, no ano passado, 300 mil euros no projecto, tem como objectivo crescer até aos mil sócios até 2015 e atrair, em 2011, mil visitantes. Gente que poderá conhecer, e apoiar, este pioneiro projecto de conservação ainda sem paralelo em Portugal. 6 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 2 a Uma das crias do lince-ibérico morreu há dias, mas não é razão para desanimar. O projecto de recuperação desta espécie em Portugal continua a trazer mais benefícios do que custos à sociedade portuguesa – disso não têm dúvidas os investigadores ligados à protecção da biodiversidade, mesmo reconhecendo que não há um valor económico imediato para o definir. Na luta contra as alterações climáticas e os gases com efeito de estufa, tudo é medido em toneladas de CO2 e com um valor de mercado. Na Europa, no passado dia 16, valia 14 euros a tonelada. Na biodiversidade, a métrica não encaixa: uma tonelada de quê? A que preço? Uma primeira medida vem do valor que a sociedade atribui ao lince, por exemplo, com os fundos dados às organizações não-governamentais (ONG) que defendem a sua preservação. “Trabalham com milhões de euros que alguém voluntariamente lhes deu, logo, é uma prova do seu valor”, afirma José Lima Santos, professor no Instituto Superior de Agronomia e responsável pela área de Economia, Política e Sociologia do Ambiente. Os fundos das ONG são “uma boa Promover a conservação da diversidade de espécies estimativa do valor que a sociedade decidiu gastar com o lince”, afirma também Tiago Domingos, investigador no IN+, Centro de Estudos em Inovação, Tecnologia e Políticas de Desenvolvimento do Instituto Superior Técnico, onde é também professor. Esses fundos estão longe de definir o valor económico da preservação desta espécie, que será superior a isso. Mas a dificuldade em se chegar a um número mais consistente é quase universal. A natureza presta ao homem uma multiplicidade de serviços que lhe sustentam a vida e dão bemestar. Mas como são públicos, sem mercados e sem preços, “raramente são detectados pela bússola económica a que estamos habituados”, explica um relatóriomarco da União Europeia sobre a economia dos ecossistemas e da biodiversidade, liderado pelo economista Pavan Sukhdev. Em Portugal, são vários os serviços que os ecossistemas (plantas, animais e microrganismos) prestam: produção de alimento, água, madeira e cortiça; protecção do solo; regulação da qualidade da água e do ciclo hidrológico; sequestro do carbono; valor estético e cultural da paisagem; recreio e turismo. A natureza assegura-os diariamente sem que os consumidores tenham a noção do seu valor económico ou a tenham muito parcialmente com os alimentos e o sequestro de carbono. Por isso, à falta de métodos directos de valorização de bens e serviços que o homem toma como grátis, como a clássica luz do farol ou o teorema de Pitágoras, os investigadores têm desenvolvido métodos de aproximação. Um deles é perguntar às pessoas quanto estão dispostas a pagar. Não são conhecidos estudos destes para o lince-ibérico, mas já foram aplicados em outras áreas com resultados que surpreendem, como aconteceu em PEDRO CUNHA Planície ocupada por cereais em Castro Verde Andam à procura de um preço para a biodiversidade Quanto vale uma espécie? A resposta não é fácil. Medir o valor económico e monetário dos serviços que a natureza fornece ao homem é um desafio global. Em Portugal, sabe-se que cada cidadão está disposto a dar 30 euros do seu bolso para preservar a estepe cerealífera de Castro Verde. Por Lurdes Ferreira Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 7 Há pelo menos 17 mil animais e plantas ameaçadas no mundo e 165 em Portugal Castro Verde. Cada português está disposto a pagar, em média, 30,4 euros do seu bolso para preservar a estepe cerealífera de Castro Verde e dar alimento a várias espécies de aves protegidas, concluiu Cristina Marta-Pedroso na sua tese de doutoramento, após um inquérito de 2005 a um grupo representativo da sociedade portuguesa e com métodos considerados inovadores, nomeadamente o uso de Internet. À falta de uma medida e de um preço de mercado que definam este projecto de protecção de biodiversidade, os 30,4 euros são quanto as pessoas se dispõem a pagar pelo bem-estar que a estepe cerealífera proporciona, em detrimento de outras alternativas. “São métodos validados. Se os pressupostos forem correctamente aplicados, as estimativas são fiáveis”, afirma a investigadora do Politécnico de Bragança. Com investigação posterior, Cristina Marta-Pedroso mostrou que o donativo de 30,4 euros, convertido numa anuidade constante a 40 anos, dava 446 euros por hectare por ano – ou seja, é mais do que os 89 a 160 euros anuais de custos da erosão do solo, perda de nutrientes, preservação de espécies e identidade da paisagem. Significa que a sociedade tem um benefício líquido de 286 a 357 euros por hectare/ano com este projecto: ganha entre o dobro e o triplo do que gasta com ele. Com um balanço positivo, a decisão pública vai no interesse da sociedade, de acordo com a teoria económica. Mas neste caso o interesse público até nem é linear, dado que a protecção da fauna estepária de Castro Verde implica uma prática agrícola que erode o solo. Ainda assim, os benefícios são superiores ao custo de não fazer e a introdução de práticas inovadoras sustentáveis nas sementeiras pode impulsionar ainda mais os ganhos. Lince-ibérico está em risco de extinção É o que defende Tiago Domingos, para quem a inovação é uma parcela da solução mais importante do que parece nos problemas da biodiversidade. Quanto a Marta-Pedroso, está convicta de que a zona, com características únicas, “tem potencial para desenvolver uma agricultura sustentável”. O método empírico tanto serve em Castro Verde como nas florestas do estado norte-americano do Wyoming e da Noruega e no deserto do Colorado. Estudos pioneiros na década de 1980 “descobriram” o valor económico que os caçadores davam à existência ameaçada do urso-pardo e das ovelhas Bighorn, que os norte-americanos davam à preservação do Grand Canyon e que os noruegueses atribuíam às chuvas ácidas. As pessoas estavam muito mais dispostas a pagar pela conservação dos bens ambientais do que se imaginava e a aceitarem impostos significativos para o efeito, como as 800 coroas norueguesas anuais per capita para combater as chuvas ácidas. Contudo, apesar dos anos passados e dos estudos feitos, permaneceram as dificuldades em determinar o valor económico dos ecossistemas e em mobilizar as sociedades para o efeito. PUBLICIDADE Números 5 biliões de dólares Valor dos serviços naturais que se manterão nas áreas protegidas a nível mundial, desde que sejam investidos anualmente 45 mil milhões de dólares. O rácio custo-benefício é de um para cem. The bed of your dreams.* 100 mil a 600 mil dólares Estimativa do valor global dos serviços de ecossistema dos recifes de coral, por quilómetro quadrado. O custo de proteger estas áreas marinhas está estimado em 775 dólares por quilómetro quadrado, quase mil vezes menos. 50 mil milhões de euros Estimativa do valor equivalente à perda anual dos serviços dos ecossistemas terrestres. É uma perda de bem-estar, não de PIB. Uma grande parte dos benefícios ambientais também não se inclui no PIB. 7 por cento As perdas acumuladas de bemestar, por destruição do capital ambiental do planeta, serão equivalentes a sete por cento do seu consumo anual em 2050. 500 milhões 350 mil milhões de dólares As Hästens são internacionalmente reconhecidas como as melhores camas do mundo porque, sendo camas completas que já integram os respectivos colchões, formam conjuntos absolutamente ecológicos, sustentáveis, biodegradáveis e produzidos com responsabilidade social, por artesãos na Suécia. Hästens em Portugal: www.hastens.rroudes.com www.hastens.com/en HÄSTENS STORE LISBOA Rua de S. Bernardo, 43 B 1200-824 Lisboa (Lapa) Tel: +351 213 975 106 Email: [email protected] * A cama dos seus sonhos. IC ECOLA B RD EL Montante das transacções de créditos ambientais das zonas húmidas, em 2006, nos EUA, para compensar a degradação dos ecossistemas causada pela agricultura e actividade económica. Empresas e indivíduos compram os créditos aos Bancos de Mitigação de Zonas Húmidas. Por serem integralmente constituídas por materiais naturais - lã, algodão, linho, crina, pinho, testados na Natureza ao longo de milhões de anos -, as camas Hästens são únicas a garantir um ambiente verdadeiramente natural, totalmente saudável, no espaço em que respira e em que se revigora durante o sono. NO Número de pessoas que beneficiam dos serviços dos ecossistemas das barreiras de coral – como pesca, recreio, recursos para a farmacêutica e protecção costeira. 331 013 8 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Haverá mais de dez milhões de espécies no mundo, mas só conhecemos 1,7 milhões Sobreiro, uma espécie protegida É mais fácil dar valor ao clima Dar um preço a uma tonelada de dióxido de carbono foi tarefa fácil. Mas na avaliação dos serviços dos ecossistemas torna-se tudo mais complicado. Por Lurdes Ferreira a Ao fim de dez anos, a UE reconheceu que o seu plano para travar a perda de biodiversidade fracassou e que vai precisar de outra década para chegar às metas que se tinha proposto. Diligentes e entusiasmados a traçarem planos contra as alterações climáticas, os decisores políticos estão a falhar na luta pela biodiversidade. Nas alterações climáticas, usamse indicadores transparentes e imediatos, como as emissões e a concentração de CO2. Na biodiversidade, para começar, o problema não é um, mas sim três: não se lida apenas com a perda de espécies emblemáticas, como o lince, mas também com a estabilidade dos ecossistemas e os recursos genéticos. Mas a diferença fundamental é o valor económico. Os economistas conseguiram dar um preço ao carbono, mas ainda não à biodiversidade. A conservação dos ecossistemas pode ir desde o sequestro do carbono, proporcionado pelas florestas e pastagens, a todo o trabalho invisível da natureza na regulação da qualidade da água. Para muitos investigadores, a estabilidade dos ecossistemas até é a frente de batalha mais importante e menos cuidada da biodiversidade, por tratar dos serviços públicos que servem de base à vida humana e não têm preço. Teixo preservado Já quanto aos recursos genéticos, contam com a atenção das indústrias farmacêutica e agroalimentar. As farmacêuticas, por exemplo, redescobriram o teixo, que foi quase extinto por ser venenoso, tendo agora um valor económico e sendo, por isso, preservado. À indústria agro-alimentar, onde entram os produtores de arroz, milho, trigo, açúcar e fruta, interessa o melhoramento genético, que tem um valor económico. À pergunta sobre o valor a dar aos serviços ambientais, o relatório europeu da economia dos ecossistemas e da biodiversidade, de Pavan Sukhdev, diz que “os decisores políticos têm muitas vezes insuficientes factos, ferramentas, argumentos ou suportes para tomar uma decisão diferente da que tomam e evitar a perda de biodiversidade. Isto é particularmente lamentável, dado que muita da biodiversidade perdida traria mais benefícios para a sociedade do que os ganhos privados”. Este economista, que na banca abriu espaço à “economia TOMAS BRAVO Para a indústria alimentar, o melhoramento genético tem um valor verde”, reconhece que há um problema de desconhecimento e de ferramentas económicas. “Provavelmente, nunca seremos capazes de avaliar toda a gama de serviços de ecossistemas (…). Devido à limitação das nossas ferramentas económicas, uma parte ainda mais pequena destes serviços consegue ser valorizada em termos monetários”, diz Sukhdev. E conclui: “O problema é potencialmente severo e economicamente significativo, mas sabemos relativamente pouco, ecológica e economicamente, sobre os impactos da perda futura da biodiversidade.” “A biodiversidade é um assunto muito mais complexo. A sua relação com a catástrofe não é tão linear como no CO2, tão imediata e tão fácil de comunicar, apesar do consenso científico de que estamos a perdê-la. É mais fácil vender a ideia da catástrofe do carbono, embora não seja segura”, afirma José Lima Santos, professor do Instituto Superior de Agronomia e investigador em economia do ambiente. Relatório menos mediático Os gases com efeito de estufa partilham a mesma característica e têm um impacto global, produzindo os mesmos efeitos em Portugal ou na Polinésia. Na biodiversidade, há milhões de espécies e o seu impacto é regional ou local. Em 2006, o relatório Stern estimava que o custo de fazer nada para combater as alterações climáticas era de 20 a 26 biliões de dólares em 2010, o que era muito superior ao custo de agir. Foi um número sonante que ficou no ouvido. Há dois anos, o estudo de Sukhdev tentou aplicar o mesmo conceito à biodiversidade. Não chegou a valores monetários como Stern, nem ao seu mediatismo, mas concluiu também que o custo ambiental de nada fazer é muito maior. “Não se sabe exactamente quanto estamos a perder”, reconheceu no relatório, embora definisse claramente o que estava em causa: se nada se fizer, em 2050, terão sido destruídos 11 por cento das áreas naturais que restavam em 2000, com a expansão da agricultura e das infra-estruturas e as alterações climáticas; quase 40 por cento do solo destinado a práticas agrícolas Uma questão de valor económico entre o Gerês e Monsanto O professor do IST Tiago Domingos costuma levar uma pergunta provocatória para as aulas: o que será que presta mais serviços de ecossistemas à sociedade? Os 70 mil hectares do Parque Nacional da Peneda-Gerês ou os 500 da serra de Monsanto? Dá depois uma pequena ajuda. Em unidades físicas é o Gerês, mas Monsanto presta mais serviços de ecossistemas, como a regulação do clima local, a uma maior população envolvente. “Em termos económicos, [Monsanto] é desproporcionadamente mais importante, porque tem um mercado muito maior.” Aliás, o valor económico da serra na saída ocidental de Lisboa não vem apenas dos serviços dos ecossistemas, mas também da resistência da sociedade à pressão imobiliária. As tentativas de expansão imobiliária têm sido contidas, “o que significa que a sociedade decidiu manter Monsanto, que valeria muito mais dinheiro, se o terreno fosse urbanizável”. Implicitamente, atribui-se a Monsanto aquilo que os economistas chamam “custo de oportunidade” e que neste caso é um valor muito elevado, sabendose que a passagem de um terreno rústico a urbanizado aumenta, em geral, o valor em uma centena de vezes. Portanto, a provocação é concluir que, se fosse preciso comparar o Gerês e Monsanto, o valor económico da serra à porta de Lisboa seria provavelmente muito maior. L.F. de baixo impacto poderão ser convertidos para usos agrícolas intensivos; 60 por cento dos recifes de coral terão desaparecido logo em 2030, devido à pesca, poluição, doenças e alterações climáticas. Mesmo que o esforço para dar um valor monetário aos bens da biodiversidade se limite muito ao meio da investigação, a sociedade portuguesa vai ter de lidar cada vez mais com este assunto. A directiva europeia da responsabilidade ambiental, de 2008, abre caminho para a utilização destes métodos para a compensação de prejuízos ambientais e promete exercer uma forte pressão sobre as empresas. Também o Conselho Mundial para o Desenvolvimento Sustentável está a incentivar o mundo empresarial a incluir o valor dos serviços dos ecossistemas na sua gestão financeira e de risco. A velocidade pode ser lenta e o problema complexo, mas Lima Santos acredita que a sociedade está a caminhar para indicadores que medirão com crescente rigor o valor da biodiversidade. O caso Exxon Valdez É nessa caminhada que se enquadram decisões como a que se seguiu ao derramamento de crude do Exxon Valdez, no Alasca. Perguntou-se aos norte-americanos quanto estavam dispostos a pagar por petroleiros mais seguros e por sistemas de segurança para evitar um desastre semelhante no futuro. O valor a que se chegou era cerca de cinco por cento do PIB português e 2,8 vezes mais do que os pedidos iniciais de indemnização do estado do Alasca e do Governo dos EUA à Exxon, e acabou por determinar as penalizações reais e o lançamento de medidas de protecção pagas pelo consumidor através dos preços (mais altos) da gasolina. Para este professor do ISA, casos de responsabilidade ambiental como este dão razão ao economista David Pearce e ao seu conceito do valor económico total (VET), somando aquilo que não parece mas tem valor económico: o uso real do meio ambiente, actual e futuro, por parte dos pescadores, caçadores, ornitólogos, caminheiros, amantes da paisagem, entre outros, e o valor, também actual e futuro, que o ser humano dá à existência de outros seres, como o lince-ibérico ou a baleia-azul. “É o conceito ideal”, diz Lima Santos acerca da teoria desenvolvida pelo inglês, que foi um dos pioneiros da economia do ambiente. EXPOSIÇÃO AMBIENTE TURISMO CULTURAL À LUZ DA SOMBRA À VOLTA DOS JARDINS AMÉRICA DO NORTE INTRODUÇÃO À JARDINAGEM E AGRICULTURA BIOLÓGICAS – CURSOS TÉCNICOS DE JARDINAGEM A ARTE EM NOVA IORQUE E A ARQUITECTURA DE CHICAGO MUSEU 23 ABR (Sex.) E 24 ABR (Sáb.) Visita Guiada por Ricardo Nicolau 22 ABR (Qui.), 18h30 DARA BIRNBAUM A MATÉRIA NEGRA DA LUZ DOS MEDIA 27 MAR - 04 JUL 2010 MUSEU Visitas Orientadas às exposições aos Sábados das 17h00-18h00 e aos Domingos das 12h00-13h00 CONVERSAS SOBRE O AMBIENTE MOBILIDADE 17 MAI 2010 (Seg.) CONSUMO RESPONSÁVEL 20 MAI 2010 (Qui.) ÁGUA 22 MAI 2010 (Sáb.) CRIANÇAS FAMÍLIAS EM SERRALVES DESCUBRA ACTIVIDADES DIFERENTES TODOS OS DOMINGOS! ACESSO GRATUITO COM O APOIO DE De Frank Lloyd Wright e Mies Van der Rohe às intervenções arquitectónicas contemporâneas. O jazz e os finais de tarde outonais transformam Nova Iorque e Chicago em duas cidades cativantes, que se reinventam a cada viagem. Mais informações em www.serralves.pt FINS-DE-SEMANA EXCLUSIVOS AMIGOS DE SERRALVES DE SERRALVES À BRETANHA RESTAURANTE JANTARES VÍNICOS SYMINGTON 29 ABR 2010 (Qui.) 20h30 Os Jantares Vínicos de Serralves realizam-se periodicamente, sempre acompanhados por um enólogo convidado. APOIO INSTITUCIONAL 02 SET - 12 SET 2010 (INSCRIÇÕES ATÉ 12 JULHO) MECENAS EXCLUSIVO DA EXPOSIÇÃO Fundação de Serralves /Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / www.serralves.pt / [email protected] 09 – 13 JUN 2010 (INSCRIÇÕES ATÉ 30 ABRIL) Bretanha uma região de características próprias e singulares, é um pequeno mundo à parte. Lugar de marinheiros e de lendas, que irá seduzir os Amigos de Serralves a também serem Amigos da Bretanha. Mais informações em www.serralves.pt MECENAS EXCLUSIVO DO MUSEU © SilvanaTorrinha LOURDES CASTRO E MANUEL ZIMBRO 06 MAR - 13 JUN 2010 10 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 3 Promover a conservação da diversidade genética Castas de vinho portuguesas são um património único mas em risco Há mais de 200 videiras autóctones no país. Mas essa diversidade pode desaparecer em 30 anos. Há quem esteja a trabalhar contra este cenário. Por David Lopes Ramos a País vinhateiro, Portugal é, no conjunto das nações produtoras, a que é mais rica em videiras autóctones. São mais de 200, numa superfície muito mais exígua do que as de Espanha, França, Itália, que têm um número de castas semelhante ao nosso. É uma “riqueza muito grande do país”, sublinha Antero Martins, professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA), em Lisboa, na área da Genética Quantitativa e Melhoramento de Plantas. E é uma riqueza de três tipos. “As castas são muito numerosas e de qualidade assinalável”, explica. Tal significa que podemos “fazer vinhos diferentes e de alta qualidade, inovadores e competitivos”. Depois, há que avaliar o que existe dentro de cada casta. Cada uma tem “muitas coisas diferentes; muitos genótipos diferentes”, diz. É com a diversidade existente em cada casta que “se faz a selecção”. Antero Martins chama a atenção para o facto de “a variabilidade genética dentro de cada casta ser uma vertente menos percebida pelo cidadão comum, mas com um enorme potencial para a valorização do vinho e da sua imagem. Pela exploração da variedade intravarietal, podemos mudar o rendimento da casta do simples para o quíntuplo e o açúcar, antocianas e acidez do simples para o dobro”, diz o especialista. JOÃO GASPAR Antero Martins, investigador do Instituto Superior de Agronomia Pólo experimental Património em risco Finalmente, há as chamadas videiras silvestres, que eram inteiramente ignoradas ainda há dez anos. “Daí para cá, já foram identificados cerca de 20 povoamentos, sobretudo nas bacias do Guadiana, Almansor, Ponsul e Sado, e existem indicadores de que esse número poderá subir para lá da centena quando se puder fazer o varrimento integral de todas as linhas de água do país”, diz Antero Martins. “Somos ricos nestes três compartimentos da variabilidade. Muito ricos.” Portugal tem ainda alguma vantagem no conhecimento das castas, fruto do trabalho desenvolvido nos últimos 30 anos por Antero Martins e seus colaboradores, juntamente com universidades, organismos do Ministério da Agricultura e algumas empresas. estava, nesta matéria, como há um século e há muitos séculos: não havia praticamente erosão genética da videira. Daí para cá, a erosão genética está a acontecer a um ritmo extraordinariamente veloz. De tal modo que, se nada fizermos para a conter, arriscamo-nos, pela década de 20, vá lá, até 2030, a perdermos praticamente toda a variabilidade genética nos três compartimentos referidos: entre as castas, dentro de cada casta e nas videiras silvestres”. Ou seja, sublinha Antero Martins, “algo que temos cá há milhares de anos pode desaparecer nuns curtíssimos 30-40 anos. São as mudanças do mundo que carregam consigo essas consequências perversas. Aliás, isto passa-se não só com a videira, mas com o mundo em geral, com a vida selvagem, com a vida animal e a vida vegetal. A erosão genética é um fenómeno perverso associado ao desenvolvimento das sociedades mais avançadas. Outro problema é o relacionado com o grande emagrecimento do aparelho humano, sobretudo nos organismos do Ministério da Agricultura, de investigadores e de técnicos para se debruçarem sobre todos estes problemas”. A erosão genética nas videiras está a ocorrer a um ritmo extraordinariamente veloz e preocupante Dadas as boas notícias, encaremos o lado menos risonho da realidade. O professor do ISA alerta para a existência de “muitos problemas para tirarmos partido dessas vantagens – quer das materiais, quer das do conhecimento. O problema mais grave, altamente preocupante, é que a diversidade genética das videiras autóctones está a desaparecer. É o fenómeno da erosão genética. Observa-se em todas as sociedades desenvolvidas e, em Portugal, no caso da videira, a um ritmo extraordinariamente veloz e preocupante”. Até por volta de 1985, “tudo Antero Martins sabe que a erosão genética não se pode parar de um momento para o outro, mas também sabe que há “meios alternativos” para a travar, mantendo e valorizando “um capital criado ao longo de milénios e que nos foi legado pelos nossos antepassados”. E o primeiro passo já foi dado com a criação, em Setembro de 2009, da Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira (APDV), que agrupa 13 associados, mas que, a curto prazo, se alargará a 30-40 entidades. Tendo como objectivo central a travagem da erosão e a valorização da variabilidade ainda existente, há outros dois instrumentos essenciais que accionará: “Prospecção generalizada em todo o território nacional de amostras representativas da variabilidade de todas as castas e de núcleos de videiras silvestres; plantação e guarda das amostras prospectadas e de parte das videiras silvestres num grande pólo experimental central.” Os fundadores da APDV foram: o Instituto Superior de Agronomia, o Instituto Nacional dos Recursos Biológicos, Universidade de Trásos-Montes e Alto Douro, Direcção Regional de Desenvolvimento Agrário dos Açores, Câmara Municipal de Palmela, Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense, Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, Associação dos Viticultores do Concelho de Palmela, Associação Técnica dos Viticultores do Alentejo, Sogrape Vinhos, SA, Real Companhia Velha, José Maria da Fonseca Vinhos, SA, e Symington Vinhos. Trabalha-se actualmente, e de forma intensa, junto do Ministério da Agricultura para que este ceda, em condições favoráveis para a APVD, uma propriedade de 100 hectares com aptidão agrícola, onde se plantem as castas que representem a própria variabilidade genética. Parte do trabalho já está feito: há 65 castas, aproximadamente 15 mil clones, já guardadas em propriedades privadas por esse país fora. Negoceia-se com o Ministério da Agricultura a afectação ao projecto de parte do actual Centro Experimental de Pegões. As mudanças no Governo atrasaram o processo, mas Antero Martins entende que há condições para o fazer avançar. Serão precisos, nos cálculos do professor do ISA, 1,5 milhões de euros para o trabalho de recolha e plantação das 250 castas. O investimento será “reprodutivo”, garante: “Pensamos obter dinheiro para financiar as actividades mais diversas”. Há já projectos próprios e outros em associação com os espanhóis apresentados a organismos comunitários. Depois de instalado, o projecto “pagar-se-á a si próprio com a venda em leilão das uvas”. Mas, segundo Antero Martins, há que agir com rapidez. “O vinho é algo que atravessa a sociedade toda, a começar pela paisagem. Se Portugal não tivesse videiras, era completamente diferente. Tem a ver com a economia, religião, arte, sociologia”, diz. Deve haver poucas famílias em Portugal que não tenham alguma relação com o vinho. Apoiar-se este sector é fundamental, para que isto ande para a frente. Nós trabalhamos na origem de tudo, as plantas. É aí que se tem que começar a trabalhar”, conclui. 12 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 4 Promover o uso e o consumo sustentável Araras, ovos, crocodilos, marfim, a natureza ilícita em Portugal Há quase 400 apreensões anuais de espécies selvagens comercializadas ilegalmente em Portugal. É apenas a ponta do iceberg. Por José Bento Amaro a Três metros e meio de altura, quatro toneladas de peso. Um elefante. Em África? Não. Num atrelado, passeando por meia Europa, desde a Suécia até ao Algarve. Não é um cenário das telas imaginado por Emir Kusturica ou Ettore Scola, mas antes uma situação real, ocorrida há quatro anos. O paquiderme, cuja missão final seria exibir-se, no Verão, pelas praias algarvias, é apenas um dos muitos animais que anualmente são detectados em situação ilegal no país. Um exemplo, de peso, de um crime – o tráfico de animais. Só em Portugal, foram feitas, em média, 383 apreensões de espécies comercializadas ilegalmente entre 2003 e 2008. Na avifauna, o país tem um troféu. “Portugal é uma porta de entrada para o tráfico de aves”, assegura João Loureiro, responsável do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) e pelo cumprimento das regras da CITES, a convenção internacional que controla o comércio de espécies de fauna e de flora. Ovos de araras e papagaios, contrabandeados por via aérea, são a principal irregularidade que os responsáveis nacionais pela CITES detectam anualmente. Vêm, quase sempre, do Brasil. “Normalmente são as raparigas que vêm trabalhar para as casas da noite que transportam, em cintas colocadas em redor da cintura, os ovos das aves. Não há perigo de os ovos quebrarem, porque a partir da primeira semana tornam-se muito resistentes”, diz João Loureiro. Traficar ovos de arara ou de papagaio é uma imensa fonte de rendimentos. Os traficantes podem fazer, por um só papagaio dos mais comuns, 500 euros. Mas há algumas espécies de araras que podem vir a ser comercializadas por até 20 mil euros. Prática recente O contrabando de ovos é uma prática relativamente recente, calcula-se que tenha começado a ser massificada a partir de 2000. Julga-se que possam entrar 3000 ovos por ano. Antes, as redes organizadas mandavam as aves vivas envolvidas em panos e papéis molhados e fechadas dentro de caixas. Era assim, nos confins dos porões dos aviões, que atravessavam o Atlântico. Cerca de 80 a 90 por cento aterravam já cadáveres na Portela. “Um animal apanhado na selva custava ao traficante uns trocados, mas depois, caso chegasse vivo ao destino, seria vendido por muitos milhares. Era sempre lucro”, explica João Loureiro. A dimensão desta actividade mede-se ainda pelo número de operações que levaram ao desmantelamento de redes de traficantes. “Em seis anos acabámos com seis redes”, garante João Loureiro. A tarefa do pessoal que trabalha na CITES não é, no entanto, fácil. Actualmente são oito os funcionários destinados a uma panóplia de funções, que passam pela emissão de mais de dez mil documentos anuais. A fiscalização das entradas marítimas é praticamente inexistente. A eventual entrada em Portugal de répteis e anfíbios é quase desconhecida. “Sabemos que existe algum comércio ilegal, em feiras, de algumas espécies vindas do Norte de África, mas não temos uma noção exacta da dimensão desta actividade”, diz João Loureiro. O biólogo salienta, contudo, que existe um elevado número de casos de contrabando de espécies provenientes de Angola. “É um país onde trabalham muitos portugueses. Quando regressam a Portugal, duas ou três vezes por ano, trazem muitas vezes papagaios, tartarugas ou, mais frequentemente, peças de marfim. A maior parte destas pessoas não sabe que está a cometer um ilícito”, explica. Apreensões no país 577 451 363 314 318 275 2003 2004 2005 2006 2007 2008 FONTE: CITES Portugal é, em consequência desta ligação a África, o país europeu que mais marfim apreende todos os anos. Angola, por sua vez, não é um dos 175 países mundiais aderentes à CITES, situação que também facilita a tarefa dos traficantes. Mas Portugal não é apenas local de destino de espécimes contrabandeados. No ICNB há registo de estrangeiros que procuram no país os ovos de algumas espécies protegidas, que são negociados no exterior, por preços elevados. “Sabemos que há ingleses e irlandeses que vêm a Portugal pilhar ovos. Procuram, sobretudo, aves de rapina. Mas também abetardas e sisões”, diz João Loureiro. Combater este tráfico é, por enquanto, uma tarefa complicada. Para fazerem sair os ovos do país, os traficantes recorrem ao correio. Enchem caixas que remetem para o estrangeiro, sobretudo para Inglaterra, e que não são levadas por ninguém. Só quase por milagre são vistoriadas. Macaco de Vila Franca As medidas para combater o tráfico de espécies têm vindo a ser melhoradas. Até 2006, quem fosse apanhado com um animal proibido ficava apenas sujeito a uma coima de pouco montante. Depois, essas infracções passaram a ser tipificadas como contrabando qualificado. Já este ano, desde Janeiro, as autoridades portuguesas criaram o registo do criador. Este tipo de procedimento, assim como as novas regras para a posse de grandes mamíferos nos circos, irá ajudar a ter uma melhor noção da quantidade de espécimes existentes e saber quais os circuitos da sua comercialização. Ao mesmo tempo poderão evitar situações de abandono. João Loureiro afirma que por vezes o telefone toca para dar conta de situações como o aparecimento de uma jaula com leões ou a tentativa de abandono de tigres à porta de zoológicos. Existem muitas situações bizarras. Há uns anos, uma senhora que circulava de carro entre Aljezur e Odemira viu dois crocodilos, com cerca de dois metros e meio, a atravessarem a estrada. Ligou para a GNR e disseram-lhe que não estava em condições de continuar a conduzir. Como insistiu muito, uma patrulha ter com ela. “Ainda foram a tempo de ver os animais a escapulirem-se para os arrozais da zona. Nunca mais foram vistos”, disse ainda o responsável do ICNB. Mas há outras situações. Um posto médico de Vila Franca de Xira já comunicou ao ICNB seis casos de pessoas mordidas por um chimpanzé. Apesar destas queixas, até hoje ninguém foi capaz de dizer onde se encontra o “macaco de Vila Franca”. Avensis. Qualidade com carácter. Desde €27.900*. Agora com a oferta de bancos em pele e GPS**. O carácter faz de nós diferentes e únicos. O Avensis respira carácter em todos os detalhes. No design atlético e elegante. No equilíbrio do motor 2.0 D-4D de 126 CV e na força do 2.2 D-CAT de 177 CV. Na tecnologia Toyota Optimal Drive, que garante a máxima potência e binário e níveis mínimos de emissões e consumos. No conforto do interior luxuoso e ergonómico. Na capacidade de proporcionar uma experiência de condução única por um preço de entrada na gama a partir de €27.900*. E agora o Avensis vem com a oferta de bancos em pele e GPS na versão 2.0 D-4D Exclusive. 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Durante 25 anos, em meados do século XIX, fora rendeiro de uma propriedade em Coruche, na charneca seca e arenosa do Ribatejo. Em 1903, comprou as terras e passou o resto da vida a trabalhá-las para saldar o investimento. Quatro gerações depois, a Machoqueira do Grou – nome da propriedade, de dois mil hectares – tornou-se num exemplo de gestão agrícola sustentável e em prol da diversidade biológica. Mais do que isso, a história dessa herdade ribatejana é uma narrativa modelar de como as paisagens se alteram, e com elas a biodiversidade, por obra de factores que muitas vezes nos passam despercebidos. Hoje, os seus vales são tapetes verdes de pastagens. Aqui e ali, vêem-se algumas cabeças de gado da raça preta, autóctone. Nas encostas e nas terras mais altas, domina a floresta – montados, pinhais, eucaliptais – entremeada de manchas de matos mediterrânicos. Num sobreiro avista-se uma cegonha e um mocho. Duas águiasde-asa-redonda levantam voo à passagem do automóvel. Na propriedade, há também garçascinzentas, peneireiros, cotovias. Há cem anos era tudo diferente. Plantavam-se cereais, de forma rudimentar, manual. Os matos eram limpos para dar lugar aos prados. A floresta começava a ocupar o lugar dos arbustos. Os incêndios eram avalassadores. “Um fogo, no início do século XX, só parava quando chovia ou quando não havia mais nada para arder”, afirma António Gonçalves Ferreira, 43 anos, trineto de Alfredo Cunhal e hoje um dos administradores da herdade. O que se via há um século já estava modificado 50 anos depois. O mercado alterou a paisagem. A cortiça passou a ter mais valor, o montado ganhou peso. E, para abrir a porta a culturas então rentáveis, construiu-se uma barragem, por volta de 1950. O cereal cedeu espaço a campos de arroz. As ribeiras, que eram intermitentes, passaram a ter água o ano todo, atraindo diferentes espécies de animais e plantas. Electricidade e frutas Depois, foi a vez da tecnologia. A chegada da electricidade à herdade permitiu bombear a água até às zonas mais altas. Surgiram os pomares, que vingaram dos anos 1970 aos 1990, chegando a produzir mil toneladas de fruta por ano. Agora, a actividade na Machoqueira do Grou gira sobretudo em torno da floresta e da Gado da raça preta, autóctone pecuária, sob a capa reforçada da sustentabilidade. Numa região de solos pobres, a ordem é manter ou melhorar as condições actuais. “Com pequenas adaptações, conseguimos promover o potencial, ao invés de reduzi-lo”, diz António Ferreira. As zonas florestais são decididas conforme a capacidade do solo em cada ponto. “No local certo, a espécie certa”, afirma Jaime Caiado, 38 anos, primo de António e também administrador da herdade. O plantio em maior escala começou há já quatro décadas e prossegue. Nos últimos três anos, foram plantados 102 mil sobreiros e 61 mil pinheiros mansos. A arborização teve reflexos positivos nos aquíferos. Ao invés de escorrer facilmente para as ribeiras e para a barragem, a água infiltrase com mais facilidade no solo e recarrega as reservas subterrâneas. Na limpeza do montado, há uma Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 15 Área urbana em Portugal cresceu 50 por cento na década de 1990 Subúrbio de Lisboa Paisagem em lume brando Opinião Henrique Pereira dos Santos técnica proibida: a gradagem. É com algum orgulho até que Jaime Caiado aponta para um tractor numa encosta, a arrastar uma alfaia agrícola. “É um corta-matos”, diz. O equipamento apara as ervas e arbustos, sem os arrancar, e deixa o material cortado no solo, para o enriquecer com matéria orgânica. Numa gradagem, que revolve a terra, o efeito seria o contrário. Em muitos pontos, nem se planta nada sob os sobreiros, para evitar a erosão e o empobrecimento do solo. Deixa-se a vegetação lá estar, apenas controlando-se o seu crescimento com o corta-matos. O próprio gado ajuda no controlo da vegetação. Mas o seu almoço mais apetitoso vem das chamadas pastagens biodiversas – uma mistura de diferentes plantas sobretudo autóctones, que, uma vez semeadas, mantêm-se ao longo de vários anos. Ironicamente, a dieta do gado por pouco não inviabilizou o negócio. Por ser mais escura, a sua carne era inicialmente rejeitada pelos talhos. “Tínhamos imensa dificuldade”, conta António Ferreira. Mas o produto acabou por ganhar a simpatia de algumas cadeias de supermercados. As pastagens acabam por funcionar ainda como faixa de segurança contra o fogo. Noutras propriedades na região, o abandono rural levou ao avanço do mato e da floresta sobre os vales, aumentando a carga combustível contínua. Algumas práticas na herdade da Machoqueira do Grou acabaram por se associar a projectos externos. Cerca de 90 hectares de pastos biodiversos da herdade integram a rede de um projecto demonstrativo de gestão agrícola sustentável – o Extensity – ligado a investigadores do Instituto Superior Técnico. Outros 140 hectares de novas pastagens fazem parte de outro projecto, de sequestro de carbono pelas plantas – um hectare de pasto biodiverso retira cinco toneladas de CO2 da atmosfera por ano. Em 2008, a herdade obteve também a certificação de gestão sustentável da sua floresta, atribuída pelo Forest Stewardship Council, e que obriga a medidas rigorosas no terreno. A herdade viu o seu trabalho coroado no ano passado, com um prémio de sustentabilidade e biodiversidade, atribuído pela Corticeira Amorim, Autoridade Florestal Nacional, ICNB, Quercus e WWF. Sentimento positivo Os resultados concretos sobre a biodiversidade ainda estão mal avaliados, aguardando um sistema de monitorização que está a ser montado. “O feeling é de que as coisas estão a melhorar. Neste momento, há mais diversidade florística”, afirma António Ferreira. O exemplo da Machoqueira do Grou não é o único a indicar que a intervenção humana na paisagem pode, nalguns casos, enriquecer a diversidade biológica. Num estudo de 2008, o investigador José Lima Santos, do Instituto Superior de Agronomia, sugere que a agropastorícia extensiva em Castro Laboreiro, no Parque Nacional da Peneda-Gerês, aumentou de 41 para 71 o número de espécies nidificantes de aves na região – antes ocupadas por carvalhais. Na Machoqueira, a acção humana parece ir num sentido semelhante. “A perspectiva de não fazer é pior do que a de fazer”, resume Jaime Caiado. a Imagine que no próximo Verão todo o vigor desta Primavera excepcional se transformou em lenha e erva pronta a arder. Imagine que por um azar dos Távoras uma semana seguida de vento leste traz consigo fogos severos e incontroláveis. Imagine que lhe perguntam o que se pode fazer que contribua para amainar o fogo descontrolado. Eu tenho uma ideia para o ajudar a responder. No momento do fogo, quase nada se pode fazer, mas hoje, tal como em todos os dias antes que tudo esteja a arder, pode fazer-se uma coisa muito útil: olhar para o que comemos. Um exemplo simples que me parece claro: o leitor sentou-se num restaurante e pediu um prato. Para entreter pega no pão e come uns bocadinhos, enquanto espera. Se o fez com manteiga, financiou a produção de leite a partir de gado estabulado alimentado a rações cujos cereais foram com certeza produzidos intensivamente no outro lado do mundo. Se o fez molhando o pão num bocado de azeite, financiou olivais algures. O território está há alguns milhares de anos a ser influenciado pela mão humana e a força central da influência dessa “mão invisível” é o “pão nosso de cada dia”. Como parecemos tão pequenos quando olhamos para o monte que nos cerca, tendemos a achar que sem a invenção da retroescavadora e a descoberta do petróleo barato a nossa capacidade de construir paisagens é muito limitada. Para contrariar esta ideia, tomemos como exemplo a “revolução do milho”, e o pouco tempo que demorou a transformação de Portugal. A introdução do milho em Portugal resulta dos Descobrimentos. É pois uma realidade relativamente recente em Portugal – terá os seus quatrocentos anos. A cultura do milho vem permitir alimentar muito mais gente. Em todas as regiões, onde o seu cultivo teve êxito, a riqueza aumentou quase imediatamente e a população multiplicou-se com rapidez. Em poucas dezenas de anos a paisagem das zonas que podem produzir milho alterou-se profundamente, encheu-se de socalcos, encheu-se de gente, de casas, de solares. Portugal descaiu para o litoral, acentuando as assimetrias norte/ sul, interior/litoral, que hoje conhecemos. A alimentação mudou radicalmente, e a broa tornou-se rainha. Em zonas de granito, com solos muito permeáveis e muita chuva, como acontece nas principais zonas de milho de Portugal, os solos tendem a acidificar rapidamente e há uma grande exportação de nutrientes, o que faz aumentar a importância da estrumação das terras. Antes da introdução dos adubos quase toda a estrumação depende da capacidade de fazer chegar ao campo os matos das encostas, em condições de libertarem os nutrientes necessários. Este processo inicia-se nos montes envolventes aos campos agrícolas com a roça do mato, prossegue com o seu transporte para a cama do gado, continua com a sua remoção para o ar livre e termina com o seu transporte e enterramento no campo. De tal modo a paisagem do Minho anterior ao século XVII, ou mais precisamente do Noroeste a norte do Mondego, nos é estranha e distante que dificilmente a conseguimos imaginar hoje sem os socalcos, sem milho, sem feijão, sem batata (introduzida bastante mais tarde). Ou mesmo sem o arame, que também só chega pelo século XVIII, e que hoje segura as videiras empurradas para a margem do socalco; ali onde não criam ensombramento que prejudique o milho que mata a fome à família inteira. O milho é uma boa ilustração de como são poderosos os processos socioeconómicos na construção das paisagens que conhecemos, mesmo que nos pareça tão pouco o que pomos no prato em cada dia. É talvez o caso de mais profunda e rápida alteração da paisagem que conseguimos encontrar em Portugal, sobretudo se não considerarmos o actual abandono rural, cujas consequências na evolução das paisagens estão por avaliar inteiramente. Por esta razão, em vez do desdém que hoje as elites do país dedicam ao mundo rural em tudo o que não diga respeito ao turismo, a questão agrícola e da produção de alimentos era uma matéria central da sociedade anterior à sua importação maciça, permitida por uma relativa riqueza a partir de meados do século XX. Se ao pequeno-almoço comemos fruta, cereais industriais e iogurtes, em vez de pão de centeio com queijo de ovelha, se substituímos sumos de laranja por bebidas industriais, cuja origem desconhecemos, ou farinheiras remediadas por excesso de bifes, ou feijões, favas e grão por batatas fritas em óleos produzidos a partir de campos de girassol, o que estamos a fazer é abdicar de umas paisagens a favor de outras. Quando hoje deixamos de comer umas couves pencas cortadas como para o caldo verde, aferventadas e passadas por azeite, temperadas com alho e acrescentadas ou não com broa, optando por saladas de alface, estamos a trocar a paisagem que conhecíamos pela que resulta de hectares de estufas de produção intensiva, sem que se vislumbre qualquer benefício para a saúde e a dieta. De variarmos tão pouco o que comemos simplificamos as paisagens e aumentamos a uniformidade de que nos queixamos tantas vezes, que é uma das causas principais dos fogos que em alguns Verões nos afligem. A simplificação não se faz sentir em cada campo agrícola apenas em consequência da mecanização, como por vezes se pensa, mas reflecte sobretudo a simplificação alimentar do mundo urbano. Arquitecto paisagista, autor do livro Do Tempo e da Paisagem 16 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Biodiversidade portuguesa em risco Adeus... ou talvez não CR Mais de uma centena de animais e plantas está em risco de extinção em Portugal. Aqui estão alguns dos mais ameaçados e outros que já desapareceram do país. Há espécies, porém, em recuperação Joaquim Guerreiro e Ricardo Garcia Morcego-de-ferraduramediterrânico Rhinolophus euryale CR Há pelo menos 13 espécies ameaçadas de morcegos em Portugal, das quais sete estão “criticamente em perigo” Criticamente ameaçado EN Em perigo VU Vertebrados em risco no país EN Vulnerável MAMÍFEROS AVES Cágado-de-carapaça -estriada Tendência 25 96 Ameaçados Não ameaçados Emys orbicularis Ameaçado pela urbanização, agricultura e captura RÉPTEIS 104 9 Víbora de Seoane 303 Vipera seoanei Encontrada em apenas 1,3% do território nacional 37 ANFÍBIOS PEIXES 2 EN 18 22 51 Urso pardo Ursus arctus Há muito desaparecido do território nacional Lince-ibérico Lynx pardinus Há mais de uma década que não é visto em Portugal. Está em pré-extinção CR CR Lobo Canis lupus EN Cabra-montês Antes presente em todo o país, agora sobretudo a norte do Douro Lobo-marinho Capra pyrenaica Monachus monachus Tem vindo a reaparecer no Gerês, vinda de Espanha População caiu 80% mas está a recuperar. Só ocorre na Madeira Truta-marisca Lampreia-do-rio Lampetra fluviatilis Diferente da lampreia-marinha. Distribuição muito reduzida CR CR Salmo trutta Sável Em declínio acentuado CR nos rios onde ainda existe (Lima e Minho) Alosa alosa Salmão do Atlântico Salmo salar População em declínio sobretudo devido às barragens EN Resiste apenas no Minho e no Lima, mas a desaparecer CR Plantas ameaçadas Destas oito espécies, sete só existem em Portugal e em mais lugar nenhum. Há pelo menos mais 15 plantas em risco de extinção no país Corriola do Espichel Convolvulus fernandesii Linaria ricardoi Linaria ricardoi Narciso do Mondego Narcissus scaberulus Trevo-de-quatro-folhas Marsilea quadrifolia Só existe no cabo Espichel e na serra da Arrábida. Está ameaçada pelo turismo, lazer e expansão urbana Dizimada por herbicidas desde a década de 50, está restrita a algumas zonas do Baixo Alentejo Só existe na bacia do Mondego. O avanço dos pinhais e eucaliptais pode complicar-lhe a vida Embora presente em muitas partes do mundo, praticamente despareceu de Portugal. Só se encontra no Peso da Régua. FONTES: Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves; Redlist/IUCN; ICNB; Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal; Atlas dos Répteis e Anfíbios de Portugal; Aves de Portugal e da Europa FOTOS: Bernardo Quintela (lampreia); Cristina Abreu e Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 17 VU VU Geomitra turricula Discula tectiformis ludovici CR Helix idiomela suplicata Discula bicarinata 5 17 10 cm Águia-imperial (Aquila adalberti) CR CR Lemniscia michaudi Há 210 espécies de moluscos na Madeira que não existem em mais lugar nenhum. Um quarto está ameaçado e 40 são consideradas extintas -2 Caseolus bowdichianus 5 -10 85 cm Á Ág Águ Águia-imperial gu guia iiaa--im a iimp mp m pe eri er ri ria all (A ((Aq Aquil Aq uiil u uila il a a adal da dal d alb al ber be errti) e ti) ti i) (Aquila adalberti) Falcão-da-Rainha (Falco eleonorae) CR 15 cm Toirão 5 17 (Turnix sylvatica) -2 10 cm 30 cm -1 65 cm Rolieiro 14 0 (Coracias garrulus) CR Prilo (Pyrrhula murina) Salamandra lusitânica 15 cm Chioglossa lusitanica VU VU Tritão-palmado Triturus helveticus CR 40 cm Airo (Uria aalge) Águia-pesqueira (Pandion haliaetus) CR Abutre-preto (Aegypius monachus) CR Boga do Sudoeste Chondrostoma almacai CR Existe apenas nas bacias do Mira e do Arade CR CR Saramugo Enguia-europeia Chondrostoma lusitanicum Anaecypris hispanica Anguilla anguilla Distribuição fragmentada dificulta a sua recuperação Peixe que só existe na bacia do Guadiana População caiu 75% nos últimos 20 anos Boga portuguesa Esturjão o Acipenser sturio EN Há várias décadas que desapareceu do país Insectos sectos Miosótis-das-praias Omphalodes kuzinskyanae Diabelha do Almograve Plantago almogravensis Diabelha do Algarve Plantago algarbiensis Alcar do Algarve Tuberaria major Só existe no Parque Natural de Sintra-Cascais, onde enfrenta a pressão da expansão urbana e do pisoteio Está à beira da extinção mundial restrita a um único ponto em Portugal, perto de Vila Nova de Milfontes Distribuição restrita a algumas zonas do Algarve interior. Ameaçada pela urbanização e extracção de argila Apenas se encontra em 12 núcleos no Algarve. A maior parte está ameaçada por novos projectos urbanísticos Há quatro borboletas ameaçadas em Portugal. A Pieris wollastoni está praticamente extinta Dinarte Teixeira (moluscos); D. Lignard (falcão-da-rainha); Faísca (águias imperial e pesqueira); Jorge Palmeirim (morcego); José Teixeira (salamandra); José Viana (airo, abutre-preto, rolieiro); Maria J..C.Pereira (bogas); Martin Wiemers (borboleta); Pedro Monteiro (priolo); ICNB; Corbis; PÚBLICO 18 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 6 Controlar a ameaça das espécies invasoras Não são daqui mas ocuparam o país Por Andrea Cunha Freitas a São muitas. Entre animais e plantas, a lista de espécies exóticas invasoras parece não ter fim. Umas mais perigosas do que outras. Umas classificadas como invasoras e outras que apresentam risco ecológico – o que quer dizer que podem (ainda) não ser encontradas no território nacional. O perigo existe xiste quando as espécies são capazes, zes, por si próprias, de ocupar o território de forma excessiva, em área ou em número de indivíduos, provocando uma modificação significativa nos ecossistemas, usando os recursos necessários à sobrevivência das espécies locais, ou seja, quando causam estragos. Mais do que encontrarmos uma espécie num território que não corresponde à sua área de distribuição natural e que, por isso, é exótica, estas espécies invasoras não só estão “fora do lugar” (chegam por acidente ou de forma intencional, por motivos económicos, por exemplo), como são prejudiciais. E aqui falamos de algas, crustáceos, peixes, insectos, aves, plantas que ameaçam terra, água e territórios intermédios. Falamos de espécies tão pouco conhecidas que não têm sequer nome comum, até às tradicionais e aparentemente inofensivas margaridas. Falamos, por exemplo, do eucaplipto que, apesar de parecer que o encontramos em todo o lado, está muito longe de invadir Portugal como outras espécies mostraram ser capazes. Na natureza afinal tudo muda e, por isso, tudo se transforma. O Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade avançou com uma revisão da lei aprovada em 1999 para o controlo da introdução de animais e plantas exóticas Nome científico: Lepomis gibbosus Nome vulgar: Perca-sol É natural da América do Norte e o primeiro registo em Portugal é de 1970. Hoje vive e multiplica-se nas bacias cias hidrográficas do Ave, e, Cávado, Douro, Guadiana, diana, Leça, Lima, Lis, Mira, Mondego, dego, ribeiras do Algarve, ribeiras do Oeste, Sado, Tejo e Vouga. Compete por alimentos e espaço com outras espécies e é predador. or. Nome científico: Oncorhynchus mykiss iss Nome vulgar: Truta arco-íris É natural da América do Norte e está em Portugal desde o início do século XX. Está nas bacias hidrográficas do Cávado, Douro, Minho, Mondego, Tejo e Vouga. Suspeita-se que tudo tenha começado com uma fuga de uma aquacultura. Tem um comportamento predador e competitivo prejudicial. Nome científico: Mustela vison Nome vulgar: Visão-americano Como o próprio nome indica, a sua distribuição natural é na América do Norte. Em Portugal, vive no Norte e pode ser encontrado na bacia hidrográfica do Minho, Lima em Portugal – porque desde 1999 há mais e diferentes. No entanto, depois de ter ficado meses em consulta pública, o plano de revisão terá sido arquivado numa gaveta. É impossível falar de todas as pragas ao mesmo tempo. Aqui ficam por isso apenas alguns exemplos. Truta arco-íris e Cávado. A invasão terá começado após fuga de quintas de produção de peles. É predador de espécies nativas como a toupeira-de-água e répteis ripícolas. Nome científico: Eichhornia crassipes (C.R.P.Mart.) Solms. Laub. Nome vulgar: Jacinto-de-água Veio da América do Sul por causa da beleza das suas flores e conquistou Portugal, sobretudo Douro Litoral, Estremadura, Ribatejo, Alentejo e Beira Litoral. Entre outros aspectos negativos da sua presença para outras espécies indígenas (reduz a biodiversidade da flora e fauna), forma um tapete na superfície da água. Pode interferir na agricultura, pesca e lazer (navegação). no passado para fixar os solos. É provavelmente a espécie invasora mais agressiva nos sistemas terrestres do país. É estimulada pelo fogo e forma povoamentos densos que impedem o desenvolvimento de outras espécies. Nome científico: Procambarus clarkii Nome vulgar: Lagostim vermelho da Louisiana É natural do Sul e Centro dos EUA e hoje poderá ser encontrado em todas as bacias hidrográficas de Portugal. O primeiro registo no território é de 1979. Tem um impacto grave junto dos peixes e plantas com que partilha as águas. Mimosa Visão-americano Lagostim vermelho Nome científico: Acacia dealbata Link Nome vulgar: Mimosa Uma árvore perene, de folha verde acinzentada e flor amarelo vivo. Veio do Sudeste da Austrália como uma planta ornamental. Hoje está em todo o território português, tendo sido cultivada Nome científico: Ailanthus altissima (Miller) Swingle Nome vulgar: Espanta-lobos, árvore-do-céu É originária da China central e de Taiwan. Está em todo o território português, tendo sido introduzida para arborização. Forma um tapete que impede o crescimento de outras espécies, compete pela luz e água, produz substâncias tóxicas que se acumulam no solo e que podem ser prejudiciais ao homem (erupções cutâneas). Nas cidades podem fazer estragos nas fundações de prédios e outras infraestruturas. Fontes: ICNB e site “Plantas Invasoras de Portugal”, do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra e Escola Superior Agrária de Coimbra Publicidade Estação Biológica do Garducho a Estação Biológica do Garducho foi galardoada com o Prémio FAD, o mais importante galardão da arquitectura ibérica, atribuído pela Fundação Arquifand (Barcelona, Espanha). A Estação contempla diversas funcionalidades designadamente áreas expositivas, de trabalho técnico e de alojamento, funcionando como um laboratório, observatório e museu, onde através dos múltiplos espaços é possível “atravessar” diversos habitats e descobrir as particularidades da fauna e flora destes distintos lugares. A área expositiva está disponível ao público e consiste num mega-arquivo onde © 2009, André Carvalho | José Manuel Silva (Rights Reserved) será armazenado e catalogado material biológico e artístico representativo da fauna e flora, organizado pelos cinco habitats mais representativos da O Centro de Estudos da Avifauna Ibérica é uma Organização Não região: estepes cerealíferas, montados, bosques e matagais mediterrânicos, Governamental de Ambiente, sem fins lucrativos, com sede em Évora, com cursos de água e hortas e pomares. origem nos finais da década de 70 por iniciativa de um grupo informal de jovens entusiastas pela observação de aves. Constituído formalmente em 1991, o CEAI tem a sua actividade centrada na educação e informação ambiental, em acções de investigação e conservação de espécies e habitats. Geograficamente, a sua intervenção é dirigida para o Sul de Portugal, nas regiões do Alentejo e Algarve. Numa primeira fase, o enriquecimento deste arquivo e a dinamização da Estação constituem o projecto “Biodiversidade em Arquivo” financiado por Islândia, Liechtenstein e Noruega através do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu. O principal objectivo é fomentar o conhecimento científico sobre a biodiversidade, com o intuito de sensibilizar para a sua conservação. O material será exposto no espaço público da Estação Biológica Em 1997, o CEAI adquiriu um antigo posto da guarda fiscal localizado do Garducho. As acções de educação ambiental, os percursos pedestres, os na fronteira com Espanha, no concelho de Mourão, com o objectivo de cursos e workshops, as saídas de campo, os campos de férias, um concurso vir a instalar uma Estação Biológica. O património natural existente na de peças de arte alusivo à biodiversidade, são algumas das actividades a região de Moura, Mourão e Barrancos é de relevante interesse nacional e desenvolver no âmbito deste projecto. comunitário, levando à classificação de duas áreas classificadas ao abrigo de Directivas Comunitárias que integram a REDE NATURA 2000. A importância deste património justificaram o interesse do CEAI em adquirir esta infra-estrutura. Localizada na zona Norte da Margem Esquerda do Guadiana, a região de Moura-Mourão-Barrancos constitui local de abrigo e de reprodução de várias espécies emblemáticas e ameaçadas de extinção, como a Águiaimperial-ibérica, o Grou-comum, a Águia de Bonelli, a Abetarda, o Sisão e o Cortiçol-de-barriga-preta. A sua importância destaca-se também por ser um local de ocorrência histórica de Lince-ibérico, a espécie de felino mais ameaçada do mundo, constituindo um dos locais mais adequados para uma © 2009, André Carvalho | José Manuel Silva (Rights Reserved) futura recolonização da espécie. A descoberta da paisagem e da biodiversidade através do olhar da ciência, Com o apoio do Programa Operacional Regional do Alentejo (QCA III), a da arquitectura, da poesia e da arte, é a experiência que a Estação Biológica Estação Biológica do Garducho tomou o lugar do antigo posto fiscal e será do Garducho propõe aos seus visitantes. oficialmente inaugurada em 2010. A remodelação do ex-posto, a cargo de Ventura Trindade Arquitectos e da Construções Monsaraz, concilia a traça contemporânea com a beleza da paisagem, incorporando diversas preocupações ambientais, como a produção de energia solar, o isolamento em aglomerado negro de cortiça, a utilização de sulipas de madeira reutilizadas no pavimento exterior e a recolha de águas pluviais. Em 2009, CEAI - Centro de Estudos da Avifauna Ibérica Rua do Raimundo, 119. Apt 535 7002-506 Évora Tel: +351 266 746 102 Fax: +351 266 745 782 www.ceai.pt | [email protected] www.ceai.pt/ebg | [email protected] 20 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 7 Enfrentar os desafios das alterações climáticas e da poluição sobre a biodiversidade Temos de criar auto-estradas para a biodiversidade As alterações climáticas irão perturbar animais e plantas já em situação de stress, diz nesta entrevista o biogeógrafo Miguel Araújo. Em Portugal, um novo clima poderá empurrar as espécies para outro lado. É preciso garantir que tenham por onde passar. Por Ricardo Garcia a Na literatura científica sobre biodiversidade e alterações climáticas, há um nome português incontornável: Miguel Araújo, 40 anos, geógrafo com doutoramento em Biologia, é um dos autores mais citados mundialmente. O cientista divide a sua actividade profissional entre Madrid, onde é investigador principal no Museu Nacional de Ciências Naturais, e Évora, em cuja universidade lidera a cátedra de Biodiversidade Rui Nabeiro. A sua principal área de estudo é a modelação da distribuição das espécies num futuro climático diferente. É possível já apontar efeitos das alterações climáticas na biodiversidade? Já há bastantes evidências, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Há vários estudos que demonstram que há alterações nas datas de nidificação das aves, nas datas de floração das plantas, nas datas das migrações. Também há dados de alterações na distribuição de espécies. A tendência tem sido para a deslocação em latitude, para norte, no caso do hemisfério Norte, e em altitude, das regiões mais baixas para as regiões mais altas. E as espécies que já não têm para onde ir? Obviamente, se uma espécies sobe para norte e chega à costa Norte da Escandinávia, tem o mar à frente. Já não migra mais. A não ser que tenha capacidade de migrar para longas distâncias e eventualmente ocupar parte do território Árctico e da Gronelândia. É possível para algumas espécies, mas para outras não. Em altitude é o mesmo, as espécies alpinas sobem e chega uma altura em que não podem subir mais. Mas pior do que não poder subir mais é começarem a receber fluxos de espécies que vêm de baixo e que competem com elas. É correcto dizer que as alterações climáticas actuais vão provocar muitas extinções? As espécies que viveram há 20 mil anos, quando estávamos no pico do último glaciar, tiveram de se adaptar a um novo regime climático. Já se tinham adaptado antes, porque desde há dois milhões de anos que estamos em ciclos constantes de aquecimento e arrefecimento. Portanto, a fauna que temos hoje está historicamente preparada para este tipo de oscilações climáticas. Temos é de perguntar o que é que mudou desde há 20 mil anos para cá. A maior parte das populações nativas da fauna e da flora encontrase numa situação de extrema fragilidade. Nós ocupamos, com as nossas actividades, 35 por cento da área do planeta. Apropriamonos da produtividade primária bruta em 24 por cento. O que sobra para as outras espécies é obviamente menor do que há 20 mil anos. As suas populações estão frágeis, numa situação de stress, de perturbação. Um segundo factor, que está associado ao primeiro, é que há 20 mil anos as espécies podiam movimentar-se em todo o território. Hoje, temos estradas, barragens, cidades, ambientes inóspitos, como a agricultura intensiva. Portanto, não são as alterações climáticas, consideradas de uma maneira isolada, que irão causar uma extinção em grande escala. As alterações climáticas são um elemento novo nessa equação. De que dimensão pode falar-se em termos de extinções? Na realidade, não se sabe. Uma extinção é algo muito difícil de prever. É o desaparecimento do último indivíduo de uma determinada espécie. Nós temos um conhecimento muito deficiente de quantas espécies há no planeta, não conhecemos exactamente a sua localização. Dada a nossa ignorância, é impossível propor um número ou uma percentagem. Podemos é fazer estimativas sobre quais as espécies que poderão beneficiar ou vir a ser prejudicadas pelas alterações climáticas. Por exemplo? As espécies adaptadas a climas frios vão perder. As espécies adaptadas a climas subtropicais poderão perder, se a evolução for no sentido de uma maior aridez. As adaptadas a climas mediterrânicos áridos vão ganhar. As espécies adaptadas a regiões temperadas poderão ganhar também, porque são espécies que estão hoje um pouco por toda a Europa do Sul e Central. São espécies cosmopolitas, e que se espera que migrem para grande parte da Escandinávia. Na Finlândia, os observadores de aves todos os anos regalam-se com as novas espécies que aparecem, vindas do Sul. As análises que temos feito indicam que a maior parte das espécies perde – a maior parte das espécies estudadas, não todas as que existem. Que trabalho tem feito nessa área? Compilamos a distribuição das espécies em mapas e relacionamos estatisticamente estas distribuições com parâmetros climáticos. [Depois] projecta-se essa relação estatística no tempo e no espaço, utilizando cenários climáticos. E vê-se em que medida é que essa distribuição tenderá a aumentar ou a diminuir e onde é que poderá aumentar ou diminuir. E o que é que esta análise mostra para Portugal? Mostra que há uma degradação das condições climáticas para uma grande parte das espécies de Portugal, que começa no Sudoeste do país, no Algarve, e que se vai expandindo para nordeste, gradualmente, até 2080-2100. Que espécies são essas? São aves, mamíferos, anfíbios e répteis. Basicamente, todos os vertebrados terrestres. O que vai acontecer com essas espécies? Isso é o que não estamos ainda em condições de dizer. Algumas das espécies que ocorrem no Sul da Península Ibérica também ocorrem no Norte de África, em ambientes nalguns casos mais áridos do que aqui. Não temos a distribuição destas espécies no Norte de África. Não conseguimos estudar a relação estatística que têm com Não nos interessa modificar muito o padrão com o qual co-evoluímos. Pode vir uma nova biodiversidade. Será que nos seria benéfica? Miguel Araújo, biogeógrafo Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 21 ANO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE Verões em Portugal podem ser 7ºC mais quentes em 2100 ANTONIO RIVAS/AFP 1.º Ciclo das Conferências da Biodiversidade FACULDADE DE CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA · GRANDE AUDITÓRIO Abril a Junho Dia B – DIA DA BIODIVERSIDADE CAMPANHA PÚBLICA NACIONAL PARA A OBSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE 22 Maio Exposição “Insectos em Ordem” MUSEUS DA POLITÉCNICA · ANTIGO PICADEIRO DO COLÉGIO DOS NOBRES 27 Maio 2.º Ciclo das Conferências da Biodiversidade FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN · AUDITÓRIO 2 Exposição “Linces, Lobos e Águias-reais” MUSEU NACIONAL DE HISTÓRIA NATURAL · SALA BOCAGE 28 Outubro Biodiversidade em Concerto AULA MAGNA DA REITORIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA PA RCERIA Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal Associação Biodiversidade para Todos A POI O PL / M p: CO ENQUA DR A MENTO MA rápido. Será que esses novos tipos de vida nos seriam benéficos? Não há nenhuma garantia. Na prática, o que poderia ser uma medida de adaptação para a biodiversidade? A ciência tem de determinar quais as áreas que serão importantes para a biodiversidade no futuro. Uma vez que saibamos quais são, temos de determinar se as espécies serão capazes de chegar lá. Temos de pensar em corredores ecológicos para ligar as áreas em que elas estão hoje e onde elas estarão no futuro. Temos de criar auto-estradas da biodiversidade, que hoje não existem. Acontece que muitas das áreas que possam vir a ser auto-estradas da biodiversidade ou novas áreas a proteger estão a ser ocupadas por actividades económicas. Existe um conflito evidente entre algumas medidas de adaptação das sociedades humanas às alterações climáticas e as medidas de adaptação necessárias à biodiversidade. Um exemplo paradigmático é o das barragens. Sabendo como hoje já é difícil criar uma nova área protegida, não será impraticável essa ideia das auto-estradas da biodiversidade? Estamos a falar de problemas de gestão, não é esta a minha especialidade. Passo a batata quente aos políticos. Nós [cientistas] podemos oferecer cenários. Não devemos substituirmo-nos aos políticos e dizermos o que eles devem fazer. ht t Acha que o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) exagera nas suas conclusões sobre a biodiversidade? O IPCC tem pouca informação para produzir projecções globais sobre a biodiversidade. Ainda não há nenhum estudo que analise os impactos globais na biodiversidade em relação às alterações climáticas. O IPCC compila os estudos que há para diferentes regiões, e depois extrapola para o resto do planeta. É o que é possível fazer neste momento, mas está longe do ideal. Vale a pena fazer alguma coisa, ou é melhor deixar vir outra diversidade biológica para ocupar o lugar da que conhecemos hoje? Outra diversidade biológica virá seguramente, mas não sei se estaremos cá para ver. A remoção da biodiversidade num sistema pode ser muito rápida, pode acontecer de um dia para o outro. A geração de biodivesidade é um processo mais longo, é um processo evolutivo, que dura regra geral mais de dois, três milhões de anos. Devemos então preocupar-nos? Como principais interventores e modificadores do planeta, temos uma obrigação moral, sobretudo para com os nossos filhos, de lhes deixar um mundo que é parecido com o que nós tivemos. Por outro lado, pelo princípio de precaução, não nos interessa modificar muito o padrão com o qual co-evoluímos. Pode vir uma nova biodiversidade. Imagine que, por hipótese, fosse RA o clima nessas áreas. Isso geranos projecções talvez demasiado catastrofistas para algumas espécies que ocorrem no Sul. Mas só para essas. De tudo o que está a dizer, ressalta uma grande incerteza... Se se utilizar esse tipo de modelo para dizer que 30 por cento das espécies de Portugal e Espanha vão-se extinguir em 2050, é uma afirmação claramente abusiva. O que se modela são as perdas de qualidade climática para cada uma das áreas. Uma espécie poderá extinguir-se ou não, poderá migrar ou não, poderá adaptar-se ou não, em função de uma série de factores. Há incertezas ecológicas, que têm a ver com a resposta destas espéceis à degradação das condições ambientais, e há incertezas algorítmicas, que têm a ver com os diferentes modelos. Estamos a desenvolver modelos mais complexos para o lince, onde entramos em linha de conta com as alterações climáticas, a variação na disponibilidade alimentar, com simulações da doença hemorrágica viral e da mixomatose. Podemos aqui fazer cenários de extinção para a espécie. E o que dizem esses resultados? Temos resultados provisórios. Há uma degradação dos habitats no Sul da Península Ibérica, maioritariamente em função do clima. E haverá uma progressiva deslocação dessas condições para norte. A serra da Malcata estará no futuro em condições muito boas para albergar o lince. Setembro a Novembro PROG Serra da Malcata terá condições óptimas para o lince no futuro ET / O oe bi ve n tos2010.ul.p t 22 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 8 Manter a capacidade dos ecossistemas em prover bens e serviços e suportar a vida Além de sol e mar, o país quer ecoturismo O turismo de natureza está a crescer em Portugal. É um dos vários serviços que a diversidade biológica oferece. Conhecer o património natural é a melhor forma de o preservar. Por Ana Rute da Silva a O hotel Vila Galé Albacora, no Parque Natural da Ria Formosa, não vai fechar portas no próximo Inverno. Será a primeira vez desde que foi inaugurado em 2000. O antigo arraial da pesca de atum e as velhas casas dos pescadores de Tavira estão transformados num hotel de quatro estrelas com cómodos quartos, mas para ficar no mapa dos turistas todo o ano. Bruno Martins, director da unidade, percebeu que era preciso mais do que oferecer os habituais serviços de sol e mar: o hotel podia ser o trampolim para múltiplas actividades na natureza, receber o exigente ecoturista e dar a conhecer às famílias portuguesas que o Algarve é, por exemplo, um sítio privilegiado para a observação de aves. Foi a ria Formosa, cujo parque natural é a segunda zona húmida mais importante de Portugal, que deu ao Vila Galé Albacora o que faltava para ser mais do que um empreendimento turístico concentrado na piscina, nas espreguiçadeiras e no serviço de quartos. A crise, diz Bruno Martins, fez a região olhar para dentro e perceber que o turismo de natureza pode ser a motivação secundária “e ajudar a fidelizar clientes fora da época alta”. A mudança de estratégia desta unidade hoteleira é apenas mais um sinal dos passos, ainda pequenos, que têm sido dados para mostrar Portugal como destino para os amantes da natureza. As potencialidades são imensas: 21 por cento do território é formado por áreas protegidas (Espanha tem apenas sete por cento) e, segundo o Plano Estratégico Nacional do Turismo (PENT) – que consagra o turismo de natureza como um dos produtos estratégicos –, a taxa de crescimento estimada é de nove por cento ao ano, acima da média internacional, que é de sete por cento. Portugal “parte de uma base muito reduzida e, por isso, o potencial de crescimento é maior e mais rápido que noutros destinos”, considera o PENT. Onze por cento do PIB mundial tem a assinatura da indústria do turismo e das viagens. O sector emprega 200 milhões de pessoas e, por ano, faz deslocar no planeta 700 milhões de viajantes, número que deverá duplicar em 2020. Cerca de nove por cento destas pessoas viajam porque querem conhecer património natural e é aqui, nesta equação de difícil equilíbrio, que se joga a preservação da biodiversidade. A organização nãogovernamental Conservation International olha para a indústria como uma oportunidade e uma ameaça. A natureza e as actividades de aventura são um dos segmentos de maior crescimento e o turismo tanto pode ser um actor fundamental para a conservação, como uma temível ameaça, se Têm sido dados passos, ainda pequenos, para mostrar Portugal como destino para os amantes da natureza Compra sobretudo programas de Verão e em agências de viagens Informa-se através de brochuras ou opiniões de terceiros Perfil do turista da natureza Compra através da Internet ou associações especializadas Informa-se através de revistas, clubes ou Internet Quer contemplar a natureza, observar a fauna, praticar desporto Quer descansar, desligar, caminhar, descobrir novas paisagens, fazer fotografia GPS Viaja cinco vezes por ano Turista hard Entre os 20 e os 35 anos Estudante ou profissional liberal FONTE: Plano Estratégico Nacional do Turismo Fica alojado em bed & breakfast, parques de campismo, casas rurais e refúgios de montanha 20% Dá preferência a pequenos hotéis de 3 e 4 estrelas, e casas rurais 80% Viaja entre uma a duas vezes por ano Turista soft Famílias com filhos, casais e reformados José Alves Praticante de actividades como rafting, caiaque ou hiking Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 23 Na Europa, fazem-se 22 milhões de viagens internacionais por ano motivadas pelo turismo de natureza feito da forma errada. A discussão parece ter, entretanto, dado um passo em frente. Dar a conhecer o património natural é a melhor forma de o preservar, defende Luís Patrão, presidente do Turismo de Portugal. E por cá “ainda não se estão a aproveitar todas as potencialidades nesse capítulo”. O sol e a praia ainda são os argumentos de maior peso junto dos turistas (nacionais e estrangeiros) e é também esta imagem que mais vende lá fora. Conhecer o património natural acaba por ser uma coincidência feliz durante a estadia. Segundo o PENT, apenas quatro por cento dos visitantes vêm expressamente para conhecer a riqueza natural, mas para Luís Patrão o número é “enganador”. “Se é verdade que não vêm por causa do turismo de natureza, a verdade é que este produto acaba por ser um complemento extraordinário das visitas que fazem ao país. Quem vem ao sol precisa que lhe seja proposto outro tipo de actividades”, disse, acrescentando que é preciso investir em sinalética, explicar melhor os fenómenos naturais e “dotar os parques de estratégia de visita”. Calcular o potencial económico para Portugal da biodiversidade, enquanto produto turístico, “é difícil”, adianta por seu lado Luís Correia da Silva, consultor e exsecretário de Estado do Turismo, no Governo de Durão Barroso. Em 2006, a sua empresa fez um estudo para o Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB), no âmbito do Programa de Visitação e Comunicação dos Parques de Portugal, que previa até 2013 um aumento de visitantes nas áreas protegidas que existem em solo nacional. Segundo o estudo, que serviu de base ao programa de visitação, haverá 822 mil pessoas que procuram nos espaços protegidos conceitos como o turismo de natureza. A procura potencial interna é de 2,7 milhões de visitantes por ano. De acordo com dados divulgados pelo ICNB – que não respondeu em tempo às questões enviadas pelo PÚBLICO – no ano passado 44.099 pessoas participaram em visitas guiadas em 24 áreas protegidas, 33 por cento das quais no Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros, o mais importante repositório das formações calcárias do país. A Reserva Natural da Serra da Malcata só recebeu 30 visitantes em todo o ano. E a das Berlengas nenhum. Os números referem-se aos turistas que usufruíram de visitas guiadas, mas são uma amostra do potencial ainda por explorar. “Nós temos um conjunto de parques únicos, perto das cidades, fáceis de aceder”, lembra Luís Correia da Silva, sublinhando que, independentemente da sua riqueza, funcionam ainda numa lógica de restrição. À procura da natureza Observação de baleias e aves é um bom negócio Só nos Açores, há 25 empresas e 54 embarcações mobilizadas em torno dos cetáceos. Observar aves também é uma actividade em expansão. Nestes casos, a biodiversidade dá dinheiro a Se há produto que em Portugal marca terreno, é a observação de baleias e golfinhos nos Açores e na Madeira. Domingos Leitão, coordenador do programa terrestre da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), diz mesmo que o programa de turismo de natureza dos Açores é o único bem enquadrado na legislação e devidamente promovido. “Não fazia mal nenhum olhar para o exemplo dos Açores.” Em Portugal, o Fundo Internacional para o Bem-estar Animal estima que a observação de cetáceos tenha criado receitas directas e indirectas de 15 milhões de euros. Só da venda de bilhetes nos Açores e na Madeira, somam-se 2,9 milhões, diz outro estudo, liderado pela bióloga Marina Sequeira, do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade. Nos Açores, foram feitas 50 mil saídas em 2008 e, segundo Miguel Cymbron, director regional do Turismo dos Açores, há 25 empresas que se dedicam à observação de cetáceos, com 54 embarcações. O negócio começou a ser explorado por estrangeiros e as ilhas foram consideradas as segundas melhores do planeta para o turismo sustentável pela revista norte-americana National Geographic Traveller e o terceiro melhor destino do mundo para a observação de cetáceos pelo jornal britânico The Telegraph. A proibição da caça à baleia fez, de muitos pescadores, vigias que colaboram com as empresas turísticas. Cliente exigente Com os portugueses ainda a despertar para o turismo da natureza, as estratégias de promoção devem centrar-se nos mercados estrangeiros, defende Domingos Leitão. Este turismo das aves, dos cetáceos, da geologia e da flora exige qualificação e informação credível. O cliente é exigente, com poder de compra, não se ilude com a natureza descaracterizada. “A qualidade não é só intrínseca da biodiversidade. É do produto, da informação que se presta”, afirma. Outro nicho de mercado em crescimento é da observação de aves, que leva, por exemplo, 48 milhões de norte-americanos e 2,4 DANIEL ROCHA Empresas querem atrair estrangeiros para as aves portuguesas milhões de ingleses a sairem de casa. A SPEA tem três mil sócios e o número de portugueses que se dedicam a esta actividade não deve superar os cinco mil. Encontrar informação sobre as espécies que se podem ver em Portugal não é fácil, mas regiões como o Algarve ou o Centro despertaram recentemente para o fenómeno. Para chegar aos clientes estrangeiros, o Vila Galé Albacora e duas agências de animação turística algarvias, a Lands e a Formosamar, partilharam os custos de um stand, viagens e despesas para estarem presente na Feira Internacional de Turismo Ornitológico (FIO), que decorreu no final de Fevereiro no Parque Nacional Monfragüe, na Extremadura espanhola. As três empresas estão a trabalhar em parceria para captar mais clientes, vender o Algarve da paisagem ainda protegida e conseguir ultrapassar a barreira da sazonalidade. “A comunicação para o exterior ainda não é fácil”, admite Bárbara Abelho, 33 anos, gerente da Lands, justificando as vantagens da parceria. Monfragüe é um dos pontos privilegiados para a observação de aves em Espanha e conseguir atrair os turistas para Números 2,7 milhões Procura potencial, em número de visitantes, de ecoturismo e turismo da natureza em Portugal 822 mil Pessoas que buscam o conceito de ecoturismo nas áreas protegidas portuguesas 42.860 Participantes de visitas guiadas nas áreas protegidas portuguesas em 2009 15 milhões Receitas, em euros, geradas pela observação de cetáceos em Portugal 9% Taxa de crescimento anual do turismo da natureza no país 4% Percentagem de turistas que visitam Portugal motivados pelo património natural este lado da fronteira também é fundamental para os operadores. Mas há outro desafio para quem quer fazer negócio com turismo da natureza: disputar um mercado ainda reduzido com empresas sem licença ou guias particulares que levam os turistas em circuito paralelo e sem fiscalização. “É difícil, quando a maior parte da oferta é ilegal”, diz Ricardo Barradas, que fundou a Natura Algarve. Luís Patrão, presidente do Turismo de Portugal, que regula a actividade do sector, tem dúvidas quanto à existência de um número expressivo de empresas ilegais e diz que a nova legislação, em vigor desde o ano passado, já permitiu legalizar mais de 600 empresas de animação turística. De norte a sul, a preservação da biodiversidade passa pelo grau de informação dos visitantes. Organizações não governamentais, como a Liga para a Protecção da Natureza, a SPEA e a Quercus são fundamentais para divulgar o património ambiental, diz Ricardo Barradas. Dar o impulso que falta ao turismo de natureza em Portugal passa por unir os interesses económicos com a consciência ecológica. A.R.S. 24 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 9 Manter a diversidade sóciocultural das comunidades locais A gralha está de volta, e o que era antigo também Quer subscrever uma cabra? Pode dar-lhe nome, mas sobretudo contribui para a biodiversidade. Como? As cabras ajudam a gralha-de-bico-vermelho. É ir à aldeia de Chãos ver. E ainda há chícharos, tecelagem e ervas de cheiro. Alexandra Lucas Coelho (texto) e Rui Gaudêncio (fotografias) a Encostas verdes salpicadas de azedas, tufos violeta que são alecrim, pólens doces no ar. É Primavera na serra dos Candeeiros, e agora subimos para a aldeia de Chãos. Rio Maior está a dez quilómetros, Lisboa a uma hora. Duas ou três casas de emigrantes mais vistosas, e a estrada da aldeia termina num planalto de cortar a respiração: pastagens fofas, um burro, oliveiras e vista até Santarém. Foi aqui que a cooperativa Terra Chã fez o seu centro cultural, com restaurante, alojamento, atelier de tecelagem e jardim de cheiros. – Conciliamos ambiente e cultura – diz Júlio Ricardo, 51 anos, professor primário, apresentandonos o seu conterrâneo António Frazão, 46 anos, vigilante de natureza. Sem receberem um tostão, são ambos motores da cooperativa. Como Júlio tem de ir acompanhar um grupo de trabalhadores que veio da aldeia da Benedita para ter formação, é com António que vamos subir à serra, onde está um dos grandes projectos para preservar a biodiversidade. – Vão lá acima ver o rebanho antes que desça, e com este tempo conseguem ver até às Berlengas – explica Júlio. – São 150 cabras serranas ecotipo ribatejanas. Estão lá com um dos nossos pastores. Como é que as cabras contribuem para a biodiversidade? Com queijos? – Também dão queijo, mas sobretudo contribuem para a preservação dos habitats da gralhade-bico- vermelho, uma espécie em vias de extinção na nossa serra. Para quem nunca ouviu falar na gralha-de-bico-vermelho, a relação entre cabras e gralhas é um grande mistério, mas certamente tudo se irá desvendar lá em cima. Quantas pessoas tem a aldeia? – 161 – diz Júlio. – 162 – corrige António. E riem-se. – Tivemos de as contar uma a uma para ter a certeza, porque eu dizia sempre que a aldeia tinha 120 pessoas – diz Júlio, que antes de desaparecer com o seu grupo ainda nos leva ao jardim de cheiros. Aqui estão as plantas aromáticas que se podem encontrar ao caminhar pela serra, muito bem dispostas e coloridas, com os seus contrastes de vários verdes, violetas e amarelos. – Ó António, esta como se chama? – pergunta Júlio. – Santolina. E aqui tomilho, erva-cidreira, caronila, lúcia-lima, alecrim, rosmaninho... Uma festa. – É pedagógico – resume António. – As pessoas já não têm tanta vivência do campo como quando os pais passavam o conhecimento para os filhos, porque andavam sempre com eles. Agora as pessoas vêem estas plantas na serra e já não sabem o nome delas. Tudo isto é parte da missão da cooperativa, consideram estes aldeões. – Aqui, a particularidade é irmos aos pormenores, àquilo que é pequenino, como as orquídeas ou os rosmaninhos. Ou a gralha. E cá vamos nós, com António a guiar, por uma estrada de pedras e pó, serra acima. Passamos pinheiros mansos, oliveiras e eucaliptos, e depois a vegetação começa a ficar mais baixa, dominada por tufos formidáveis de cor violeta. – São os maiores campos de alecrim que conheço – diz António. À direita aparece uma cova meio semeada. – Isto é uma dolina, uma depressão que aparece nos maciços calcários e que tem a ver com abatimentos. Estes solos são óptimos, e regam-se por precipitação oculta, com a humidade transportada nos ventos. Aqui estão a plantar batata. Que se dá bem em terras altas. Estamos agora a uns 400 metros. E o que a seguir aparece é toda uma paisagem de torres eólicas, a girarem lentas, porque não há muito vento. Quando há vento, o barulho é o de um avião que não aterra, está sempre no ar, explica António. O que mói a aldeia inteira, sobretudo porque a torre 22 está por cima da aldeia. – Estamos a tentar negociar uma paragem dessa eólica durante a noite. De um lado e do outro, o violeta do alecrim e o amarelo do tojo. – Agora vamos devagar, ver onde o pastor anda… Ah, está ali. Uma silhueta de cajado entre as eólicas. Paramos o carro, metemonos pelo mato a caminho da silhueta. E de repente António pára Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 25 Cento e onze alimentos estão certificados como produtos de qualidade portuguesa Queijo da Serra Chícharos Com cem euros, apoia-se uma cabra por três anos a olhar para cima, em êxtase. – Espectacular! É a gralha. Já não a via cá há um ano. Ouve-se uma espécie de guincho e vê-se um pontinho preto no céu. – Bom sinal. Anda a reconhecer o território para ocupar este espaço. Entretanto, as cabras aproximamse, castanhas, de pêlo brilhante e comprido, em torno do pastor, que vem de mochila e boné desportivo. – Sou mais velho que a serra – diz ele. – Tenho 55 anos. Um jovem, afinal, diria a serra. Chamam-lhe Neves. Há 20 anos tinha um rebanho seu. Agora recebe um salário para pastorear o rebanho comunitário, que é este. – É um dos cooperantes na secção de silvopastorícia – explica António. – E temos outro pastor que hoje está de folga. Fazem as folgas um do outro. E virando-se para Neves: – Ouviste agora uma gralha? O pastor não ouviu. Ladeado por um par de cães, um escuro e um claro, avança com as cabras, sempre a mastigarem. – São cinco machos, tudo o resto é fêmea – diz António. – Esta parte da pastagem é a mais fácil, mas depois os pastores ainda tratam da ordenha e da amamentação dos cabritos. Mas ainda não chegámos à parte em que as cabras ajudam as gralhas. Como é, então? – O projecto foi iniciado pela Quercus. Os estudos dizem que uma das razões para a gralha-debico-vermelho estar em extinção é o abandono do pastoreio. Porque a gralha tem um bico curvo e fininho e procura alimentação em espaços abertos, onde mexe a terra à procura de insectos e bagas. O abandono do pastoreio leva a habitats mais altos de mato, e a gralha não consegue procurar alimentação. Em suma, as cabras comem o mato, que fica mais rasteiro, e assim as gralhas podem voltar. – A nossa cooperativa tinha começado a fazer a actividade Seja Pastor por Um Dia, e com esse historial a Quercus convidou-nos para dinamizar o pastoreio aqui em cima. Falámos com as pessoas que tinham cabras, vimos que não tínhamos garantias por aí, e tivemos de avançar para um rebanho comunitário. Compraram 150 cabras. – Comunitário quer dizer que qualquer pessoa pode subscrever uma cabra com um donativo de cem euros por três anos. Isso significa que durante três anos contribui para a biodiversidade. Uma vez por ano tem direito a participar na Rota dos Pastores, com almoço, e pode dar nome à cabra. E comer cabrito. É a ordem natural, que António resume nesta frase lapidar: – Os machos têm de ser comidos. A relação no rebanho é de um macho por 20 fêmeas. Portanto, cabrito assado. E com as cabras velhas, chanfana. Entretanto chegámos a uma misteriosa vedação no meio do mato, em forma de quadrado, que no interior não parece conter nada. – São 100 metros quadrados para podermos fazer monitorização entre espaços onde o rebanho anda e zonas onde ele não entra. E o rebanho também é importante para a criação de zonas descontínuas, contra os fogos florestais. António pára de repente, a olhar para o chão, e põe-se de cócoras. – Olhe, isto é uma orquídea. Minúscula, a crescer mesmo à beira do caminho. E do outro lado, entre tufos de alecrim, outra. E uma terceira, linda, fúcsia. São um dos orgulhos da aldeia de Chãos, as orquídeas, e António traz mesmo com ele uma pasta com os vários tipos. – Esta é uma Orchis mascula – mostra, comparando com a fotografia. O caminho de volta à aldeia é preenchido com o inventário de estratégias das orquídeas para atraírem insectos onde depositam o pólen, que assim é transportado até outra flor. O fascinante mundo da polinização. Já no centro cultural, António parte e a visita do PÚBLICO termina de novo com Júlio. Para vermos ainda a oficina de tecelagem, a esta hora deserta. – Isto eram velhos teares da serra dos Candeeiros, e inovámos para estes, chamados “de alto liço” – explica Júlio, dando uma pancada num e uma pancada no outro. O de alto liço é vertical como uma harpa. Não é fácil tornar novo o velho. Hoje as pessoas querem outros padrões, outras peças. A ponto de as lançadeiras (a peça de madeira que lança o fio de um lado ao outro do tear) terem de vir da Suécia. – Mas se queremos manter a tradição temos de inovar. Podia ser um lema destes aldeões. Foram a França e Espanha ver projectos de desenvolvimento local. Quando viram centros culturais, com salas de espectáculo e tudo, pensaram: por que não em Chãos? – Agora, estamos a construir o plano estratégico de desenvolvimento da nossa cooperativa com professores e alunos da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. No jardim de cheiros, as abelhas andam em volta do rosmaninho, e no restaurante do centro cultural, com uma bela vista, ainda há chícharos, essa alternativa ao feijão que caiu em desuso mas que a cooperativa recuperou. – Lá adiante é a Arrábida, vê? – aponta Júlio. Para quem queira fazer cursos de formação ou actividades, a cooperativa tem alojamento com quartos para seis. No bar vendem-se queijinhos de cabra frescos e secos. E em breve vai vender-se o que os teares produzem. – E já viram aquilo? – pergunta Júlio apontando para uma casinha debruçada sobre o vale. – É a nossa cisterna. As cisternas da região estão em desuso, mas a cooperativa quer recuperá-las, e usar essa água para as regas. – Com o que choveu este Inverno, já temos lá dentro cem mil litros. 26 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 10 Mais capacidade financeira, humana, científica e tecnológica para implementar a Convenção Colorida, viscosa e talvez terapêutica Da ilha do Faial chegou uma surpresa: o Porto da Horta está pejado de uma lesma-do-mar, onde se isolou uma molécula nova. Os primeiros testes indicam que tem propriedades farmacêuticas. Se daqui surgir uma patente, as populações locais deveriam receber parte dos benefícios? Há uma discussão em curso sobre isto a nível mundial. Por Teresa Firmino a Parece feita de veludo e, só de a ver em fotografias, apetece tocarlhe para confirmar se é macia. E as suas cores, um azul e um verde vistosos, são um aviso aos predadores, como se gritasse aos quatro ventos para não a comerem, que é tóxica. O aviso é a sério: a Tambja ceutae é uma lesma-do-mar que acumula uma molécula tóxica, agora descoberta, para defesa própria. A espécie já é conhecida há mais de 20 anos: com cerca de 2,5 centímetros de comprimento, foi encontrada pela primeira vez em 1988 em Ceuta, daí o nome científico que lhe atribuíram. Tanto em Ceuta como em Marrocos, Sul de Espanha, Canárias, Cabo Verde, Madeira e Açores, os locais onde entretanto tem sido observada, nunca primou pela abundância. Mas em Agosto de 2007 as coisas mudaram: numa campanha internacional de estudo das lesmasdo-mar do Atlântico, que incluiu o biólogo português Gonçalo Calado e que passou por locais como as Bermudas ou o Brasil, os cientistas mergulharam numa zona mesmo à mão de semear e deram de caras com ela. Estava colada à ilha do Faial, a pouca profundidade. “Encontrámos muitos exemplares dentro do Porto da Horta. Apanhámos algumas dezenas, entre meio metro e dois metros de profundidade. Foi fantástico”, conta Gonçalo Calado, professor da Universidade Lusófona e investigador do Instituto Português de Malacologia. Por que é que há ali tantas Tambja ceutae? A resposta encontrase no que lhe serve de alimento. Ela come um briozoário, animal que vive agarrado ao fundo por um pé (parece um raminho) e que se alimenta de partículas que filtram da água. Ora, esse briozoário, da espécie Bugula dentata, existe em grande quantidade nas paredes do Porto da Horta. “E ela cresce e multiplica-se lá. Facilmente se localizam centenas de exemplares.” Nessa campanha, também a observaram no mar, entre as ilhas do Faial e do Pico – mas em menor quantidade, porque o briozoário é aí mais escasso. Os exemplares recolhidos foram congelados e encaminhados para um laboratório em Itália, para uma série de estudos. “Só agora foi possível obtê-la em quantidade suficiente para os estudos químicos”, explica Gonçalo Calado. Guerra contra o cancro Os especialistas de lesmas-do-mar (ou nudibrânquios, como lhes chamam) sabem que este grupo de animais foi desenvolvendo a capacidade de fabrico ou de acumulação de substâncias químicas que afastam, ou até matam, os predadores. Não têm concha, o que à partida é uma desvantagem, mas arranjaram outros meios de protecção – avançaram para a guerra química. E a coloração chamativa do corpo, associada às armas químicas que desenvolveram, funciona como um aviso aos potenciais predadores. Cores vivas costumam ser sinónimo de lesmas tóxicas, mas também as há imitadoras: embora sejam comestíveis pelos predadores, protegem-se atrás da cópia das cores vistosas de outras espécies, essas sim indigestas. Para os seres humanos, as armas químicas das lesmas-do-mar podem revelar-se valiosas. Vários estudos têm demonstrado que são detentoras de moléculas raras na natureza, que podem ter também interesse farmacêutico. Por exemplo, a empresa PharmaMar, em Madrid, tem estado a testar moléculas oriundas de lesmas-domar contra o cancro. A ideia não é apanhá-las até à exaustão para extrair as suas moléculas; antes é inspirar-se nessas moléculas para as fabricar em laboratório. Os resultados dos estudos químicos da Tambja ceutae foram apresentados na revista científica Bioorganic & Medicinal Chemistry Letters, num artigo publicado em Fevereiro e que o Instituto Português de Malacologia divulgou este mês em comunicado de imprensa: a equipa isolou uma nova molécula e ela apresenta propriedades antitumorais. A nova molécula chama-se tambjamina K. Como se depreende pela letra, é a 11.ª molécula desse grupo, que recebeu este nome porque as tambjaminas foram isoladas pela primeira vez em lesmas-do-mar do género Tambja (de uma espécie diferente da estudada agora). As tambjaminas também estão presentes em bactérias e noutros invertebrados marinhos, como os briozoários. Aliás, a Tambja ceutae deve adquirir a molécula através da comida. “Foi detectada em pequenas quantidades no briozoário. Muito provavelmente, é o briozoário que a produz e a lesma-do-mar, ao comê-lo, guarda a molécula para a sua própria defesa”, diz Gonçalo Calado, um dos autores do artigo científico. Os testes, ainda muito preliminares, revelaram que a tambjamina K possui actividade contra células humanas cancerosas do cólon, do útero e do cérebro, por exemplo. Dependendo da concentração, a molécula exibiu uma actividade tóxica notável tanto em células tumorais como em células não tumorais de mamíferos, concluiu a equipa no artigo, acrescentando que a tambjamina K impediu a proliferação de todas as linhas celulares testadas. Uma patente em vista? “A molécula é promissora, mas ainda não está em fase de ser patenteada. Ainda está longe de uma patente”, responde Gonçalo Calado. Antes de Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 27 Entre 1981 e 2006, 47 por cento dos novos medicamentos contra o cancro foram obtidos a partir de produtos naturais RICARDO CORDEIRO/UNIVERSIDADE DOS AÇORES As lesmas-do-mar foram encontradas dentro do porto da Horta mais, é preciso encontrar grupos científicos que se interessem pela molécula, nomeadamente em empresas farmacêuticas, e que avancem com uma bateria de testes mais específicos. Mas desta história pode tirar-se uma lição: “O mar como fonte de substâncias naturais para uso humano ainda nos traz muitas surpresas, mesmo quando olhamos para espécies relativamente comuns e em áreas muito humanizadas, como é o caso do Porto da Horta”, sublinha Farmacêuticas beneficiam da biodiversidade o biólogo. “Quem diria que no Porto da Horta existia uma espécie com uma molécula nova, que é promissora em termos de algum tipo de tratamento?” Partilhar os benefícios Esta lesma-do-mar pode também ser ilustrativa de um debate em curso entre os 193 países que ratificaram a Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas, em vigor deste 1993. Além da conservação e do uso sustentável da biodiversidade, esta convenção defende a partilha equitativa dos benefícios comerciais resultantes da utilização de recursos genéticos. Os países têm estado a preparar o rascunho de um protocolo, que vão discutir em Outubro, em Nagóia, no Japão: o objectivo é chegar-se a um acordo vinculativo sobre o acesso e a partilha dos benefícios de recursos genéticos. Como devem ser partilhados os benefícios do desenvolvimento de uma molécula (cujo fabrico O mar como fonte de substâncias naturais para uso humano ainda nos traz muitas surpresas é comandado por genes, em última análise)? Só a empresa que investiu deve ter direito a eles? Ou também devem ser partilhados pelas populações locais onde essa molécula foi encontrada? E ainda pela humanidade? A discussão promete aquecer e, enquanto não soubermos o que resultará da conferência de Nagóia, desvende-se se o aspecto da Tambja ceutae é como parece, fofo e quase almofadado. Pois não é. “Tem um muco à volta. É viscosa.” PUBLICIDADE NA VALORPNEU NADA SE PERDE, TUDO SE TRANSFORMA. Uma iniciativa: Um pneu pode levar 600 anos a decompor-se. Para nós é um instante. Hoje, a Valorpneu é já responsável pela recolha e valorização de quase 100% dos pneus usados em Portugal, reciclando, recauchutando e valorizando-os como fonte de energia. Vamos continuar a deixar uma marca positiva no Ambiente. 28 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Objectivo 11 a Na ilha de Inhaca, na baía de Maputo, os pescadores moçambicanos contam que a primeira refeição que tomavam em criança era feita todos os dias, entre a casa e a escola, com as bagas e os frutos que recolhiam da natureza. A biodiversidade costeira e o cultivo ainda dão o pequenoalmoço, o almoço e o jantar a muitas comunidades que vivem ao pé do mar no Norte e Sul do país. Talvez por isso o biólogo José Paula tenha sentido mais receptividade por parte da população do que estava habituado. Durante as duas últimas décadas, o professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa andou a avaliar a riqueza natural das áreas marinhas fronteiriças de Moçambique, uma empreitada que não recebeu apoio financeiro directo do Estado português. “O Governo não está a dar nada” para o estudo científico do mar nos países lusófonos, constatou o especialista em ecologia marinha. Só em 2009 é que a Fundação para a Ciência e Tecnologia criou o Programa de Ciência Global para apoiar cientistas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Até agora, o que havia era incipiente e José Paula sentiu falta de uma colaboração estável. “Já disseminei o novo programa em Moçambique, há pessoas interessadas”, frisou o investigador. A investigação só se tornou possível devido aos programasquadro da União Europeia. Desde 1991, vários projectos foram aprovados para o estudo da conservação da costa Sudeste africana. O último, que custou 1,7 milhões de euros, terminou em 2008. Foi o projecto Transmap, que avaliou e identificou os hotspots de biodiversidade para a definição de zonas de conservação de áreas marinhas. “O primeiro passo foi juntar todos os conhecimentos que existem sobre a zona costeira numa base de dados que actualmente está sediada na África do Sul”, explicou. O site gerido pelo Instituto para a Investigação Oceanográfica, em Durban, agregou uma listagem bibliográfica dos relatórios e documentos guardados nas instituições sobre a fauna e flora costeira, parâmetros ambientais e legislação. Quem quiser pesquisar sobre o material produzido pode aceder ao site www.transmap-metadata.org.za. A base de dados está dividida em quatro: os documentos de base, que existiam antes dos projectos, e os documentos biofísicos, socioeconómicos e de governação que entretanto foram produzidos. A Faculdade de Ciências está ainda a preparar um site onde os principais relatórios saídos dos projectos ficarão disponíveis ao público. A investigação, segundo as regras do financiamento europeu, tinha que abarcar pelo menos dois países europeus e dois países africanos. Alguns dos parceiros europeus foram a Universidade Mundial Marítima, da Suécia, e o Museu de História Natural, de Londres, que teve um papel importante na identificação de espécies desconhecidas. Em África, o projecto integrou instituições da Tanzânia, como o Instituto para as Ciências Marinhas, e da África do Sul, como a Universidade da Cidade do Cabo, juntando os dois países que fazem fronteira com Moçambique no litoral. Assegurar uma repartição justa e equitativa dos benefícios do uso de recursos genéticos JOSÉ PAULA Estrelas-do-mar na ilha dos Portugueses, na baía de Maputo Novas espécies As florestas de mangais, os recifes de corais e os bancos de ervas marinhas são dos ecossistemas mais importantes da costa africana, que albergam espécies emblemáticas como tartarugas, cetáceos ou o celacanto, um peixe ancestral. “Foi feita uma avaliação mais fina da biodiversidade daquelas zonas”, explicou o biólogo. A pesquisa já permitiu conhecer três espécies novas de copépodes, crustáceos microscópicos que vivem nos sedimentos. A lógica da conservação foi avaliar os locais Ajudar a proteger a costa de Moçambique Houve workshops com os chefes das aldeias, mas também teses de mestrado na universidade em Maputo. O projecto Transmap estudou a vida marinha costeira de Moçambique e fomentou o diálogo entre os países. O dinheiro veio todo da Europa. Por Nicolau Ferreira Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 29 Entre 1998 e 2005, foram dados 6,7 mil milhões de euros em ajudas para a biodiversidade dos países em desenvolvimento que devem ser protegidos para que se transformem num berçário de biodiversidade capaz de alimentar as regiões em redor. O dugongo é um dos animais que pode beneficiar dessa política de protecção. Este mamífero “pasta” nas águas do litoral e está em perigo de extinção em todo o Índico, por ser fácil de se caçar. “Mata-se um dugongo e dá para uma aldeia inteira, estamos a falar de comunidades que estão sempre no limiar da fome”, diz José Paula. Ao longo dos anos foram feitos vários workshops com as entidades locais, os pescadores, os chefes das aldeias. Houve um esforço paralelo para caracterizar as fontes de subsistência das comunidades, que no Norte, onde só agora está a chegar a electricidade, se limitam quase sempre à horta e ao que a natureza dá. “Os locais de maior riqueza natural são os mais povoados”, explica o investigador, acrescentando que as actividades tradicionais estão em equilíbrio com os recursos. Mais participação “Existe actualmente mais diálogo e debate entre as instituições locais sobre matérias de conservação. É notório o debate nos processos de participação pública dos projectos de avaliação impacto ambiental”, disse ao PÚBLICO Adriano Macia, professor da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, que esteve à frente da equipa da universidade que integrou o projecto. O especialista em ecologia marinha deu o exemplo do Ministério das Pescas, que está interessado em utilizar o modelo do Transmap para definir as áreas marinhas protegidas a criar na região de Nampula, no Norte de Moçambique. Do ponto de vista científico, o trabalho foi acompanhado por estudantes moçambicanos e proporcionou teses a investigadores que absorveram o saber e aprenderam técnicas. “Tivemos mestrados e licenciados que fizeram as suas teses no Trabalho de campo no arquipélago das Quirimbas âmbito do projecto”, explicou Macia, um dos nove doutorados do Departamento de Biologia. “Contribuiu para a formação de massa crítica”, acrescentou. José Paula considera que a realidade científica do país está a mudar. “Começa-se a fazer projectos conjuntos em que há um interesse de ambas as partes”, refere. As normas europeias impulsionam este crescimento, todo o material comprado para o projecto ficou nos centros locais de investigação. As sondas, os meios operacionais de amostragem e o equipamento informático foram alocados à Universidade de Maputo ou ao Centro para o Desenvolvimento Sustentável para a Zona Costeira, em Xai-Xai, a Norte de Maputo. Houve harmonização das leis entre Moçambique e a Tanzânia – que já tem o Parque Marinho da Baía de Mnazi e do Estuário do Rovuma, junto à fronteira –, o que vai permitir um plano de gestão consensual. No Norte do Moçambique, definiram-se três regiões marinhas a conservar: o estuário do Rovuma (o rio que faz fronteira com a Tanzânia), a região junto à zona central do Parque Nacional das Quirimbas e, finalmente, uma terceira região JOSÉ PAULA “Em Moçambique, os locais de maior riqueza natural são os mais povoados”, diz o biólogo José Paula É necessário apoio o para ção cumprir a convenção Investigadores no barco ao largo da ilha de Inhaca marinha, perto da povoação de Mocimboa da Praia, que fica entre as duas últimas regiões. O próximo passo é conciliar as vontades de todos os intervenientes, mesmo que desde 2006 a situação se tenha complicado. “Entretanto descobriu-se petróleo e as prioridades mudam”, constatou o biólogo referindo-se às prospecções feitas na baía do rio JOSÉ PAULA Rovuma. Adriano Macia concorda com este contratempo: “A questão recente dos hidrocarbonetos e a pesca podem estar a pesar no adiamento da declaração desta área.” Mas José Paula não desanima quanto à protecção da biodiversidade marinha: “Existe uma grande vontade, os políticos com quem contactei estão muito receptivos.” PUBLICIDADE 30 • Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 Sucessos e fracassos O regresso Pássaro dos Açores vai sair do falcão ao Alentejo da extinção Foca-monge à conquista da Madeira Laboratório de excelência no Porto 1 3 4 No coração da floresta sempre verde da ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, há pelo menos uma ave feliz. O priôlo (Pyrrhula murina), uma das aves mais ameaçadas da Europa, está prestes a sair da categoria de “criticamente em perigo” de extinção. A União Mundial de Conservação (UICN) prepara-se para a promover em Maio, fazendo entrar a pequena ave na lista das espécies “em perigo”, revelou Luís Costa, director executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). No início deste século, a população mundial do priôlo estava reduzida a um grupo de entre 120 e 140 indivíduos, concentrada num cantinho montanhoso da ilha, nos concelhos do Nordeste e da Povoação. A ave, com 30 gramas e cerca de 16 centímetros de comprimento, estava a desaparecer devido à falta de alimento. A justificação estava no “recuo da floresta laurissilva e da proliferação das espécies exóticas”, explicou. Hoje estima-se que a população de priôlo esteja algures entre os 500 e os 800 casais. Mas as boas notícias não são fruto do acaso. De 2003 a 2008, a SPEA conseguiu recuperar 230 hectares de floresta nativa, através do corte e do controlo da vegetação exótica e da plantação de espécies autóctones. Tudo aconteceu no âmbito do projecto europeu LIFE Recuperação do habitat do priôlo na zona de protecção especial Pico da Vara/Ribeira do Guilherme. “As condições de trabalho não foram as melhores por causa dos declives daquela região montanhosa”, contou Luís Costa. Apesar disso, o esforço de recuperação daquela floresta ainda não terminou. Em 2009 arrancou um outro projecto, Laurissilva sustentável, através do qual a SPEA pretende recuperar mais 120 hectares. Para isso, está já a funcionar uma estufa e um viveiro para produzir plantas nativas da ilha. “Hoje temos 19 mil plantas”, disse Luís Costa. “O nosso objectivo é chegar a 2019 com mil casais de priôlo”, num total de 350 hectares de floresta recuperados. O esforço – que também envolveu a Secretaria Regional do Ambiente, a Direcção Regional dos Recursos Florestais, as câmaras do Nordeste e de Povoação e a Universidade dos Açores – já foi distinguido como uma referência na Europa. Este mês, a plataforma Birdlife International citou-o como um dos cinco melhores projectos da União Europeia. PEDRO MONTEIRO/SPEA 2 A pouco e pouco, o território do peneireiro-das-torres (Falco naumanni), o falcão mais pequeno de Portugal, espalhase pelas planícies do Alentejo. Mais do que uma conquista, é o regresso da espécie a locais que foi obrigada a abandonar. No final do século XX, a espécie estava a regredir, à medida que desapareciam as suas áreas de alimento nos campos de cereais. A agricultura de sequeiro era substituída pela de regadio e as searas por olival e vinha. “Esta espécie depende de um habitat agrícola específico, com cereal de sequeiro com pastagens, onde está o seu alimento”, explica Rita Alcazar, da Liga para a Protecção da Natureza (LPN) em Castro Verde. Há cerca de 20 anos que a LPN está presente nas planícies de Castro Verde com projectos agro-ambientais para recuperar o habitat de várias espécies de aves, uma das quais o peneireiro-das-torres. Rita Alcazar recorda o desaparecimento da colónia de 80 casais que existia no Castelo de Castro Marim. “Temos recuperado várias colónias, estabelecendo protocolos de colaboração com proprietários para recuperar paredes de montes onde as aves pudessem nidificar”, explicou. Foram instaladas caixas-ninho e erguidas torres de nidificação ou muros altos cheios de cavidades para as aves fazerem ninhos. Ao todo, a LPN já disponibilizou mais de 800 novos locais de nidificação. “Resultou muito bem e a espécie conseguiu aumentar rapidamente nas colónias antigas e colonizar os novos locais.” Em menos de dez anos a população triplicou. Na década de 90 existiam 150 casais e em 2006, data do último censo, eram já 450. Para dar nova ajuda, a liga tem a funcionar em Évora um centro de reprodução que ajuda as aves feridas ou as crias que caem dos ninhos. Como prova do sucesso conservacionista, o programa LIFE 2002 a 2006 Peneireiro das Torres foi premiado pela Comissão Europeia em 2009 como um dos melhores 26 projectos para conservação das espécies. Não significa que os bons resultados na conservação desta espécie, classificada como Vulnerável no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, se traduza num baixar de braços. Na calha estão já outros projectos, nomeadamente a construção de uma nova estrutura para nidificação no Vale do Guadiana e um esforço de reintrodução da espécie em Évora. ANTÓNIO CARRAPATO Os esforços para recuperar a população de lobo-marinho (Monachus monachus) da Madeira têm 22 anos. “Quando começámos a trabalhar, em 1988, existiam apenas entre seis e oito animais nas ilhas Desertas”, recordou Rosa Pires, do Parque Natural da Madeira. A espécie, actualmente classificada como Criticamente em Perigo no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, ficou reduzida a uma população extremamente pequena: primeiro, por causa da caça para fins comerciais e, depois, devido à actividade pesqueira. Os lobos-marinhos, também conhecidos por focas-monge, acabavam presos nas artes de pesca, principalmente nas redes de emalhar, ou eram capturados ilegalmente. Em meados do século passado, agudizou-se o conflito entre o lobo-marinho e os pescadores, dado que ambos se batiam pelo peixe nos mares da Madeira. As ameaças fizeram dela a foca mais rara do mundo e uma das espécies mais ameaçadas de extinção. Hoje a população do arquipélago da Madeira está estimada entre 30 e 40 animais e a sua área de distribuição deixou de ser exclusiva das Desertas e foi alargada à ilha da Madeira, com registos da sua presença desde 1997. Em 2000, este passou a ser um local de residência. “Antes só havia lobos-marinhos nas ilhas Desertas e agora estão em qualquer sítio da Madeira.” É um facto que esta população ainda é demasiado pequena para deixar de causar preocupação, mas pode dizer-se que está em crescimento. Apesar disso, no ano passado só foi detectada uma cria, “o que não quer dizer que não tenham nascido mais”, disse Rosa Pires, explicando que 2009 foi um mau ano a nível de agitação marítima. “Não conseguimos muitos postos de observação.” Um dos marcos nesta história de conservação é a criação da Reserva Natural das Ilhas Desertas, em 1990, cujo principal objectivo foi a protecção do lobo-marinho. Além da monitorização contínua dos animais e da protecção do seu habitat, grande parte do esforço concentrou-se na sensibilização dos pescadores e da população em geral. “O nosso trabalho leva sempre em consideração a população madeirense, especialmente os pescadores”, explicou Rosa Pires, salientando a importância de não ignorar as suas condições socioeconómicas. “Estamos numa fase em que não podemos só criar reservas e legislação. Porque os animais não ficam confinados a espaços.” CESAR MADUREIRA Os cientistas estão no centro da equação quando se fala de conservação da natureza. Em Portugal, há um laboratório que dá cartas dentro e fora de fronteiras. O Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) recebeu, a 16 de Dezembro de 2008, a classificação de Excelente na última avaliação conduzida pelo painel internacional da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Foi o único centro na área da biodiversidade a receber essa distinção. Criado em 2002, o Cibio começou a trabalhar com dez pessoas com o objectivo de aplicar a investigação à conservação. “Hoje são 70 doutorados e mais de 200 investigadores”, contou Nuno Ferrand Almeida, biólogo e coordenador científico daquele centro, a funcionar na Universidade do Porto. O laboratório reúne investigadores das áreas da genética molecular e populacional, biologia populacional, taxonomia, ecologia, conservação e gestão dos ecossistemas e da paisagem. Do total dos investigadores, 20 por cento “não são portugueses, são de toda a Europa, Estados Unidos, China, Rússia, entre outros países”. Actualmente, este centro de investigação tem pólos na Universidade dos Açores, na Universidade de Évora e no Instituto de Investigação Científica e Tropical, em Lisboa. Segundo Nuno Ferrand Almeida, o centro funciona com base em três componentes da biodiversidade: diversidade genética das populações, distribuição das espécies e ecossistemas e, por fim, os recursos genéticos e a domesticação. Estas três vertentes são trabalhadas por 12 grupos de investigação. “Já há propostas para criação de mais dois grupos de trabalho que poderão avançar este ano”, adiantou. Actualmente, o Cibio tem investigadores espalhados pelos quatro cantos do planeta, especialmente no Norte de África, em países como Tunísia, Mauritânia, Líbia e Marrocos. Ferrand Almeida explicou que colabora com as instituições responsáveis pelos parques naturais desses países para aconselhar na gestão das espécies. O coordenador salienta o trabalho no âmbito da biologia do coelho, procurando saber, por exemplo, como se transformou a espécie selvagem em doméstica e tentando descobrir formas para fazer frente às doenças virais que ameaçam as populações. PAULO PIMENTA Público • Quinta-feira 22 Abril 2010 • 31 As histórias das espécies que representam vitórias e derrotas emblemáticas da conservação em Portugal. Por Helena Geraldes HUGO DELGADO JOSÉ VIANA/SPEA PAULO RICCA DR Mimosa, a árvore fora de controlo Os últimos airos das Berlengas Lagoas temporárias em silêncio O adeus à águiapesqueira 1 As falésias rochosas das ilhas Berlengas, que albergam a única colónia do país de airos (Uria aalge), assistem ao desaparecimento desta ave marinha. Em 1995 restavam apenas 34 indivíduos de uma população que chegou a ter seis mil casais no início do século XX. Hoje, são avistadas “apenas oito a dez aves, que não se sabe ao certo se nidificam nas Berlengas”, contou Pedro Geraldes, especialista em aves marinhas da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). Escolhida como símbolo da Reserva Natural das Berlengas, esta espécie tem sofrido uma regressão drástica e hoje está classificada como Criticamente em Perigo pelo Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. Este estatuto tem poucas hipóteses de vir a mudar nos próximos tempos e o arquipélago, que representa o limite a sul da distribuição da espécie na Europa, poderá deixar de o ser. Nem mesmo a criação da reserva das Berlengas, em 1981, conseguiu travar o seu declínio, cujas causas ainda não estão preto no branco. “Existem várias possibilidades, como as artes de pesca (principalmente a rede de emalhar), o aquecimento global, a diminuição dos stocks piscícolas e a pressão das gaivotas. Mas o problema é que ainda não se conseguiu definir a causa principal”, disse o biólogo. Fazendo lembrar um pequeno pinguim, o airo passa a maior parte do tempo na superfície da água, de onde mergulha em busca das suas presas. Esta situação acaba por tornar a ave particularmente susceptível às redes de pesca. E os seus “vizinhos” nas Berlengas também não ajudam, especialmente a gaivota-depatas-amarelas (Larus cachinnans), que compete com o airo nas pescarias e pode mesmo ser um predador dos juvenis. Em meados dos anos 90, a Operação Larus tentou reduzir a população das gaivotas, mas sem sucesso duradouro. “Com tantas gaivotas na ilha, não há grandes condições para o airo. Nunca houve regras para o proteger, nem um esforço directo. Nem sequer se tentou, assumiu-se logo o declínio.” Hoje não se sabe se esta colónia terá possibilidades de algum dia vir a recuperar. “Quando uma população atinge um nível muito baixo de indivíduos deixa de ser viável, tornando-se muito sensível à predação.” 2 Se a biodiversidade que passa despercebida aos nossos olhos tivesse um símbolo, as lagoas temporárias seriam um bom candidato. Estes corpos de água de pequena dimensão estão dispersos por campos agrícolas ou bosques um pouco por todo o país. A sua principal característica é encherem-se no período das chuvas e secarem no Verão. No entanto, esta inconstância não impediu a União Europeia de considerá-las um dos habitats prioritários para a conservação da natureza. Nelas vivem espécies de plantas e de animais especializadas, muitas delas raras e do tempo dos dinossauros. Como o pequeno crustáceo Triops cancriformis – cujos ovos podem permanecer “adormecidos” nos sedimentos secos das lagoas durante anos – ou o camarão-fada. Este animal existe apenas numa lagoa em todo o Reino Unido. Ambas as espécies, com as suas formas, fazem lembrar os seres descobertos nas profundezas dos oceanos, raramente vistos e conhecidos. É um pequeno mundo de invertebrados, mas também de sapos, rãs e tritões, que apenas sobrevive porque estas lagoas não têm predadores, neste caso, peixes. E não têm peixes porque secam no Verão. Mas os últimos 20 anos não têm sido favoráveis às lagoas temporárias. Segundo Pedro Beja, biólogo do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO), são habitats que “passam por um processo de destruição muito rápido”, sendo drenadas e terraplenadas, principalmente por causa da intensificação da agricultura e das construções urbanas. “Estão a desaparecer pouco a pouco e sem ninguém dar por isso.” As lagoas temporárias mais bem estudadas estão no litoral alentejano. Em 1991, o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina fez um primeiro inventário. Foram encontradas, com a ajuda de fotografia aérea, 295 lagoas. “Em 2009 voltámos aos mesmos locais. O que lhes aconteceu foi catastrófico”, comentou. Desapareceram 45 por cento. E Pedro Beja pormenoriza: a taxa de desaparecimento fora do parque natural foi de 16 por cento; dentro da área protegida foi de 47. “O estudo mostrou que nem por estarem em parques naturais são protegidas. São um habitat que sofre com um fracasso das estratégias de conservação”. Esta história “ilustra a perda, quase sem se dar por isso, de uma biodiversidade que estava em todo o lado”. 3 4 As florestas portuguesas já não conseguem esconder as flores amarelas da mimosa. Esta árvore, originária do Sul da Austrália e da Tasmânia, está hoje espalhada por todo o país de forma descontrolada. Tanto assim é que a Acacia dealbata ganhou o estatuto legal de espécie invasora. A Universidade de Coimbra (UC) acredita que talvez seja a mais agressiva em solo de Portugal Continental. Tudo começou quando quisemos trazer esta árvore para fins ornamentais e para fixar os solos. Hoje é uma verdadeira dor de cabeça para associações florestais, municípios, empresas e particulares. E não é por desfear a paisagem. Elisabete Marchante, especialista em plantas exóticas e invasoras na UC, explica que a espécie, em povoamentos muito densos, “compete com as plantas nativas pelos recursos”, nomeadamente pela água, e “altera o funcionamento do solo”. Uma má notícia para as espécies autóctones, “que se adaptaram a características do ecossistema”. Há vários anos que um pouco por todo o país se tenta controlar o avanço da mimosa. O método utilizado tem sido o corte da árvore. Mas sem grandes casos de sucesso para contar. Elisabete Marchante, investigadora do Centro de Ecologia Funcional daquela universidade, acredita que há coisas a melhorar. “A bem da eficácia, seria necessário aplicar sempre um herbicida para matar a raiz, o mais rapidamente possível a seguir ao corte da árvore. Mas nem sempre isso é feito.” Mas mais grave é a falta de um controlo de continuidade. “Tentar controlar uma mancha de mimosas requer um acompanhamento que pode durar vários anos. Deve voltar-se várias vezes para controlar a germinação, que nunca deve ser uma operação a curto prazo.” De facto, esta árvore rebenta vigorosamente após o corte e “estes métodos nunca garantem que a mimosa não volte a germinar”. A missão torna-se quase impossível quando a mancha é de grande dimensão. Os vários tipos de controlo de exóticas invasoras estão descritos na legislação desde 1999. Mas trata-se “apenas de linhas gerais, nada dedicado a cada espécie”. As pessoas foram tomando consciência de que esta bonita árvore é também perigosa: “Há casos de sucesso em que as pessoas se têm esforçado por não abandonar o controlo. Mas ainda há muito trabalho a fazer.” O século XX traçou uma rota de declínio para a águia-pesqueira (Pandion haliaetus) em Portugal. Foi um caminho sempre descendente que terminou em 1997 com a morte da última fêmea, enrolada numa rede de pesca. A espécie chegou a nidificar desde a costa rochosa da Estremadura (possivelmente Pinhal de Leiria) até à costa sul algarvia (zona de Albufeira). O declínio começou no início do século XX, marcado pela campanha do Estado contra os animais tidos como nocivos, de 1938 a 1967. A águia-pesqueira estava na lista dos animais a abater. Mas depressa se percebeu que a espécie estava a desaparecer do país. Nos anos 70 existiam três casais a nidificar e em 1992 apenas um. Em 1997, o biólogo Pedro Beja, então no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, recuperou o corpo da última fêmea, morta, num ninho das falésias, com a ajuda de um helicóptero da Marinha. O macho acabou por desaparecer em 2002. Apesar da espécie ter beneficiado da criação do Parque Natural do Sudoeste Alentejano em 1995, “nunca houve um projecto de recuperação activa” da espécie. A primeira tentativa só começou em 1997, “quando se avaliaram as condições para uma possível reintrodução da águiapesqueira”, contou Pedro Beja, hoje investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, na Universidade do Porto. Mas esta não foi uma história de sucesso. “Em 1997 foi construída a infra-estrutura para receber o projecto, no concelho de Vila do Bispo, estabelecidos contactos com eventuais dadores [de Finlândia, Escócia, Alemanha e Córsega] e havia apoio por parte das entidades” responsáveis. A reintrodução da águia-pequeira em Portugal chegou a ser considerada o projecto mais importante para a conservação da espécie no Mediterrâneo. Mas tudo parou em 1998 quando mudou “a presidência do Instituto de Conservação da Natureza”, contou. “O projecto só precisava de uma decisão política e dos pedidos formais aos países dadores”, notou. Algo que nunca aconteceu. Em 1999, os responsáveis desistiram do projecto. “O fracasso da águia-pesqueira é também o fracasso da comunicação das questões de conservação da natureza. É preciso comunicar o interesse e o valor das espécies.”