Travessia
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Travessia 5 anos Caderno de Experiências 2016 Travessia Apresentação Caderno de Experiências 2016 Há 5 anos na estrada Move - Teoria de Mudança Avaliação de projetos com tecnologias digitais na educação pública brasileira O investimento social privado e o desejo de incidir nas políticas públicas de educação: aprendizagens Avaliação em saúde: a importância dos modelos teóricos para projetar impacto social Avaliação e desenvolvimento organizacional: fortalecendo estratégias e impactos sociais Gustavo Valentim Histórias de vida e avaliações de impacto Quem faz a Move 2 Apresentação O Caderno de Experiências que você tem em mãos é um marco significativo dos cinco primeiros anos da Move. Se a travessia não pode ainda ser considerada longa no tempo das instituições, ela tem sido uma densa articulação de pessoas e desejos, escolhas e investimentos, serviços e parcerias a mobilizar um trabalho que já produziu inúmeras narrativas sobre o Brasil e sua educação, direitos humanos, saúde e meio-ambiente. As mais de quinhentas demandas de consultoria que recebemos nesse período resultam da firme aposta no desenvolvimento da sociedade brasileira, nosso alicerce ético. Nessa trilha, soubemos nos manter fiéis a uma práxis de desenvolvimento que conjuga liberdades democráticas e redução de desigualdades e garantia de direitos e promoção de diversidades, além da preservação de incalculáveis patrimônios étnicos, culturais e ambientais. À senda iniciada por dois no início de 2010, juntaram-se mulheres e homens cuja importância foi sublime para que os passos se tornassem firmes, e a aventura, mais interessante. Somos muito gratos à dedicação, à seriedade e ao senso crítico dos colaboradores que passaram e ficaram, aos sócios que embarcaram de ponto em ponto e aos parceiros que se moveram conosco. O pluralismo que tanto valorizamos emerge exatamente do convívio e das construções dessa comunidade. Foram também a diversidade de práticas, pensamentos, parcerias e sujeitos que permitiram a elaboração de um novo referencial estratégico para a Move para os próximos cinco anos. A Teoria de Mudança que trazemos à luz nesta publicação enlaça princípios, estratégias, resultados, missão e visão de maneiras que compreendemos serem relevantes para a sociedade brasileira e para fortalecer entre todos nós o conceito de interesse público. À medida que elegemos a prática da Move como eixo deste documento, esperamos que as histórias que compartilhamos no Caderno de Experiências demostrem a importância que atribuímos aos processos sociais com os quais interagimos. Fazer da experiência objeto de reflexão e aprendizagem é crucial para produzir descobertas e responsabilidades, para disparar mudanças e encorajar inovação e para permitir que as vivências se enraízem. Olhado de diversos ângulos e sem ingenuidades, o fazer é a exata matéria prima da qual se extrai o futuro. Do lugar que escolhemos pensar e influenciar a sociedade brasileira, seguiremos imbuídos da missão de apoiar organizações públicas e privadas a ampliar e qualificar os impactos sociais e socioambientais de suas ações. Guia-nos a visão de um futuro no qual as organizações reconhecem as realidades em que atuam, realizam ações qualificadas de interesse público e produzem impactos relevantes e sustentáveis para a sociedade. Enquanto esse futuro não nos visita com a força necessária, recorremos a Guimarães Rosa para sustentar o poder transformador da experiência-bem-vivida-porque-bem-pensada, compreendendo que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Rogério Silva e Daniel Brandão Sócios-diretores Travessia | Caderno de Experiências 2016 3 Há 5 anos na estrada ONDE ATUAMOS ÁREAS DE EXPERTISE DEMANDAS E FATURAMENTO 2011 A 2015 143 133 118 $ 83 42 EDUCAÇÃO 72% 33% 8% 2013 2014 MEIO AMBIENTE GARANTIA DE DIREITOS 50% 2011 2012 2015 SAÚDE Artigos, livros, notas técnicas, palestras, debates e seminários foram sistematizamente realizados e alcançaram milhares de pessoas Oferecemos consultorias pró-bono para diferentes ONGs do campo dos direitos humanos Neutralizamos 54 toneladas de Carbono em parceria com o IDESAM Tornamo-nos uma Empresa B Travessia | Caderno de Experiências 2016 4 Versão 2016 MOVE • TEORIA DE MUDANÇA VISÃO ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS RECONHECEM AS REALIDADES EM QUE ATUAM E REALIZAM AÇÕES DE INTERESSE PÚBLICO QUALIFICADAS, PRODUZINDO IMPACTOS SOCIAIS E SOCIOAMBIENTAIS RELEVANTES E SUSTENTÁVEIS PARA A SOCIEDADE MISSÃO RESULTADOS IMPACTOS APOIAR ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS A AMPLIAR E QUALIFICAR OS IMPACTOS SOCIAL E SOCIOAMBIENTAL DE SUAS AÇÕES Ecosistemas de educação, saúde, assistência social, direitos humanos e meio ambiente fortalecidos Políticas, programas e projetos sociais e socioambientais qualificados e eficazes Atores e equipes alinhados aos resultados e impactos almejados Organizações mais conscientes dos resultados e impactos de suas ações Decisões tomadas com base em evidências e conhecimento da realidade Organizações capazes de demonstrar os resultados e impactos de suas ações Práticas e instâncias de controle social fortalecidas Processos organizacionais mais claros, conscientes e eficientes Organizações mais capazes de gerenciar seus processos de planejamento, monitoramento e avaliação Organizações e intervenções sensíveis às questões de gênero e étnico-raciais ASSISTÊNCIA SOCIAL EDUCAÇÃO ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS PRESSUPOSTOS PRINCÍPIOS SERVIÇOS ESTRATÉGICOS PRODUTOS MEIO AMBIENTE Informações e análises avaliativas DIREITOS HUMANOS SAÚDE Sistemas de monitoramento Avaliações com rigor técnico e pluralidade metodológica Cada demanda é única e exige resposta específica Teoria de mudança Matrizes avaliativas Monitoramento com indicadores precisos e uso de tecnologias Comunicar resultados de forma clara e acessível para diferentes públicos Planejamento, avaliação e monitoramento são dispositivos para promover desenvolvimento organizacional Estudos de avaliabilidade Planos estratégicos Cursos, palestras, conferências e aulas Produção e disseminação de teorias e práticas de planejamento, monitoramento e avaliação Processo de planejamento articulado aos contextos social e institucional Realizar processos atentos às questões de gênero e étnico-raciais A superação das desigualdades sociais precisa de organizações públicas e privadas fortes Artigos, ensaios e livros Trabalhar com tendências, criatividade e inovação nos processos de consultoria Ser colaborativo com equipes e parceiros, na concepção e execução da consultoria Participação potencializa processos de aprendizagem organizacional Travessia | Caderno de Experiências 2016 5 Gustavo Valentim Mariana Pereira Ana Carolina Vargas A s tecnologias digitais impactam com crescente intensidade o cotidiano global, transformando comportamentos e maneiras de realizar as diversas tarefas cotidianas. Elas permeiam modos de relacionamento e convivência, interferem e medeiam os processos informacionais e comunicativos entre as pessoas, alterando os meios de produção, difusão, acesso à informação e ao conhecimento. A relação das pessoas com o conhecimento se modifica, tornando inevitável à educação lidar com as influências já operantes da cultura digital, bem como, com as potencialidades e dificuldades do uso das tecnologias nos processos de ensino-aprendizagem no ambiente escolar. 1. Políticas e projetos de integração de tecnologias digitais na educação: um olhar avaliativo Desde o surgimento e disseminação das tecnologias da informação, sua incorporação no campo educacional gerou expectativas significativas quanto ao potencial não apenas de melhorar resultados de aprendizagem, mas de solucionar desigualdades históricas no acesso Gustavo Valentim Avaliação de projetos com tecnologias digitais na educação pública brasileira As TIC podem ser incorporadas de diferentes maneiras ao contexto educacional, em uma gradação que parte da simples existência de infraestrutura nas escolas e chega à mudança efetiva nas práticas, com incorporação plena e transversal nos currículos. Seus efeitos, influências e potencialidades, porém, ainda estão pouco claros e sistematizados, apesar do significativo esforço já feito para compreendê-los. Nesse sentido, a avaliação de projetos em educação envolvendo tecnologia se oferece como meio fértil para obtenção de subsídios e evidências que permitem ampliar a compreensão dos resultados obtidos, em suas variadas dimensões, e dos elementos do processo transformacional colocado em curso no contexto escolar em decorrência da incorporação das tecnologias digitais, podendo orientar, assim, novas iniciativas. A Move trabalha há dois anos com avaliação de iniciativas privadas de inserção de tecnologias digitais em escolas públicas. Apostamos no processo avaliativo como meio de ampliar a compreensão sobre as diversas facetas do impacto delas no contexto escolar e como fonte de aprendizados para os diversos atores implicados, contribuindo, dessa maneira, para o aprimoramento das iniciativas e potencializando seus alcances. Partilha-se aqui elementos importantes dessas experiências. da população ao conhecimento e ao ensino, fundamentalmente nos países ditos subdesenvolvidos1. No contexto de movimentos e investimentos globais2 que buscam propiciar a declaração de vontade política para a ampliação do acesso aos benefícios das tecnologias, pautando ações concretas no sentido de formar uma sociedade da informação para todos, o Brasil, desde a década de 1990, tem feito esforços na ampliação e consolidação das políticas de inserção das TIC na educação pública brasileira. Variadas são as iniciativas municipais e estaduais, públicas e privadas de diferentes naturezas que vêm sendo implementadas. Em nível federal, desenvolveram-se iniciativas como o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo) que, desde 1997, visa promover o uso pedagógico das tecnologias da informação e comunicação nas redes públicas de educação básica. Travessia | Caderno de Experiências 2016 6 Avaliação de Projetos com Tecnologias Digitais na Educação Pública Brasileira Ele forneceu basicamente infraestrutura, estando ainda em estágios iniciais de desenvolvimento. No entanto, segundo Rosa e Azenha3, constata-se a ausência da institucionalização de uma política de inserção de tecnologia no cenário da educação nacional, tendo-se realizado apenas ações pontuais, consideradas como parciais, genéricas e caracterizadas por um desenvolvimento casual e experimental no ambiente escolar, mesclando ações diversas dos setores público e privado, raramente pensadas e executadas em diálogo. Circunscrevendo-se inicialmente a questão da tecnologia na educação brasileira à infraestrutura existente, constata-se uma significativa limitação de acesso do corpo discente aos equipamentos e à internet. Dentre as escolas que responderam ao Censo Escolar 2014 realizado pelo MEC, 78% declararam ter computadores, porém apenas 55% os disponibilizam para uso com os alunos4. Ainda assim, dentre essas, o baixo número de computadores existentes para uso pedagógico revela a limitação no acesso dos estudantes a esses equipamentos – 50% possuem até dez equipamentos para uso pedagógico e apenas 1% tem mais de trinta máquinas para esse fim. Em relação à conexão, 61% possuem internet, mas apenas a metade dispõe de banda larga. Apesar de ser evidente que o Brasil está muito aquém do necessário em termos de infraestrutura, sua existência não reflete, obrigatoriamente, o aprimoramento dos processos de ensino-aprendizagem. A tecnologia digital em si não é a solução dos problemas educacionais, mas figura entre os elementos que compõem o conjunto de transformações necessárias para o alcance equitativo da melhoria do ensino no país. A realização de seu potencial inovador envolve a mudança de práticas educacionais e de cultura organizacional, cuja efetivação supõe, como condição, o envolvimento dos diversos atores do contexto escolar, em especial aqueles que a utilizarão no dia-a-dia para ensinar. O envolvimento dos profissionais das redes de ensino na elaboração e execução dos projetos tornase crucial para a sustentabilidade das intervenções, fadando ao fracasso projetos impostos de fora que desconsideram o contexto inerente a sua execução. Assim, há um longo caminho a ser percorrido entre a existência de condições e o estabelecimento de novas práticas educacionais e de processos de ensinoaprendizagem. A grande maioria dos estudos e pesquisas empreendidos nos últimos anos sobre os resultados da inserção de tecnologias na educação, segundo pesquisa realizada pela Unesco , buscou verificar a equidade de acesso a equipamentos e internet, havendo pouquíssimas tentativas de documentar e investigar sua relação com melhoras significativas nos processos e resultados de aprendizagem. Mesmo quando se empreendeu análises sobre as práticas, na maioria das vezes, essas são experimentais e focadas no desempenho dos alunos em avaliações oficiais após um período de utilização de tecnologias no contexto escolar . Os resultados encontrados são alarmantes para os entusiastas de TIC na educação, pois poucos apontam alguma evolução no desempenho em tais testes. No geral, a maioria apresenta um decréscimo de rendimento e, em apenas em alguns contextos, os estudantes conseguem equiparar-se ao resultado de outras instituições que mantém o ensino centrado na estrutura professor, quadro negro e livros7. A tecnologia digital em si mesma não é obviamente a panaceia dos problemas educacionais, mas figura no Brasil entre os elementos que compõem o conjunto de transformações necessárias para o alcance equitativo da melhoria do ensino. Esses dados podem levar a crer, equivocadamente, que o emprego de tecnologia na educação não surte efeitos significativos na melhoria da aprendizagem dos alunos. Entretanto, surge o questionamento sobre a existência de mudanças efetivas nas práticas educacionais ou se as TIC continuam sendo empregadas como mais um instrumento dentro dos padrões já consagrados pelas instituições escolares. Além disso, coloca-se em cheque se as avaliações oficiais pautadas nos modelos já consagrados são de fato o meio mais adequado para avaliar tais resultados, evidenciando a necessidade de se construir outras formas de mensurar e captar o desenvolvimento de competências específicas. Outra chave de leitura possível, no entanto, é o questionamento do pressuposto subjacente a respeito da existência de uma linearidade causal entre a inserção de TIC na escola e a melhoria no desempenho em avaliações, considerando-se e analisando-se aquém do necessário os diversos elementos em cena Travessia | Caderno de Experiências 2016 7 Avaliação de Projetos com Tecnologias Digitais na Educação Pública Brasileira no contexto escolar, a complexidade do processo transformacional e os ganhos intermediários. A própria busca de resultados das iniciativas centrada no desempenho dos alunos em avaliações deve, portanto, ser questionada. Desse modo, torna-se inegável a necessidade de realizar estudos sobre a integração das tecnologias digitais na educação de maneira mais complexa e dinâmica, lançando luz sobre o contexto e revelando transformações de processos que não necessariamente têm impacto no curto ou médio prazo sobre o desempenho dos alunos, mas que modificam o modo como os atores da comunidade escolar se relacionam entre si e com o conhecimento que circula naquele ambiente8. Nesse sentido, a avaliação dos resultados de inserção de tecnologia nas escolas está menos a serviço da validação de práticas, considerando seus efeitos no desempenho em avaliações, do que no aprimoramento e ajuste das iniciativas em busca de efeitos no contexto cultural e organizacional amplo em que se insere o processo de ensino-aprendizagem. 2. A experiência da MOVE A Move realiza a avaliação dos resultados de dois projetos da área de educação da Fundação Telefônica Vivo9 que articulam tecnologias da informação e comunicação ao ensino formal de escolas públicas brasileiras. Esses projetos implementaram infraestrutura (acesso à internet, tablets e netbooks e reforma elétrica) em três instituições de ensino, situando-as entre o 1% das escolas públicas brasileiras com melhor conexão à internet10 e entre os 10% com maior quantidade de computadores disponíveis para o uso pedagógico . Além disso, foram desenvolvidos dois ambientes virtuais de aprendizagem para uso pedagógico11 com alunos e empregados modelos diferenciados de formação dos professores de acordo com o contexto específico de cada unidade. Um primeiro passo fundamental, ainda na concepção dos projetos, em 2013, foi a coordenação pela Move de uma série de oficinas com todos os parceiros envolvidos (Fundação Telefônica, parceiros executores e escolas) para mapear, dar visibilidade e produzir acordos entre os responsáveis dos dois projetos sobre as estratégias e expectativas de resultados. Tais encontros, que tiveram como produto a pactuação de uma Matriz de Avaliação12, evidenciaram-se como uma oportunidade de alinhamento e aprendizagem para os atores envolvidos, favorecendo a eficiência das iniciativas que dali seguiram. Todo o desenho da avaliação foi orientado por cinco focos avaliativos, envolvendo o desafio de avaliar resultados dentro do contexto escolar – como as condições criadas para a apropriação das tecnologias, a maneira de organizar o ambiente escolar, a prática pedagógica dos professores e o desenvolvimento de competências dos alunos relacionadas às TIC – e também fora dela e na influência das iniciativas para outros contextos. A partir desses grandes campos, comuns a todos os projetos e escolas, foram respeitadas as especificidades de cada intervenção no detalhamento dos resultados esperados nos indicadores e descritores. O desenho da abordagem metodológica utilizada nessa avaliação buscou captar com sensibilidade, por meio de técnicas qualitativas (entrevistas, grupos focais, coleta de materiais multimídia, como vídeo e foto), as influências da intervenção, por vezes sutis, nas mudanças organizacionais, tendo em vista a espe- cificidade de cada contexto cultural e organizacional. Procurou-se também oferecer uma visão macro de cada contexto, registrando gradações de resultados em todos os indicadores, com coleta de dados por meio de questionários (com professores e alunos). Dessa maneira, combinaram-se as dimensões qualitativa e quantitativa em narrativas sobre os efeitos da presença das tecnologias digitais (equipamentos, softwares e internet) na formação das práticas pedagógicas das escolas em questão entre 2014 e 201513. A realidade pode ser melhor compreendida a partir da escuta de múltiplos atores. Foram envolvidos nas coletas parceiros financiadores e executores dos projetos, profissionais das Secretarias Municipais de Educação, corpos diretivos, docentes e discentes, além de famílias pertencentes à comunidade escolar. A expressão das diferentes percepções sobre as influências da intervenção no cotidiano escolar, cada uma ancorada em diferentes lugares organizacionais, revelou os diversos sentidos em construção a respeito da inserção da tecnologia naqueles ambientes. A análise do material permitiu não apenas a construção de um olhar complexo sobre a realidade da intervenção e seus efeitos em diferentes dimensões, mas também favoreceu ajustes no decorrer do processo, alimentando os planejamentos estratégicos dos projetos a partir das reflexões sobre as ações em andamento. Esse conjunto de técnicas e prismas sobre a realidade de cada escola compuseram mosaicos das transformações disparadas em cada cotidiano – desde a produção de tecnologia em projetos de alunos até a redução do tempo para atualização dos dados da escola no sistema da Secretaria Municipal de Educação. O conjunto de resultados e análises foram, então, Travessia | Caderno de Experiências 2016 8 Avaliação de Projetos com Tecnologias Digitais na Educação Pública Brasileira alvo de debate com cada instituição de ensino, tanto para apropriação dos acontecimentos captados pela avaliação quanto para refletir sobre dimensões da própria pesquisa. Os relatórios finais foram, portanto, fruto das análises produzidas e amadurecidas pelos debates subsequentes às devolutivas para cada ator. 3. Principais aprendizados A análise transversal dos três contextos escolares presentes nessa experiência da Move revela elementos importantes para a reflexão sobre a interface crítica de articulação entre tecnologias e o contexto da educação pública brasileira. Tais elementos são organizados aqui em três grandes campos, formando um tripé que pode ser observado na Figura 1. Desenvolver ações para estas três dimensões nos contextos que recebem projetos e programas dessa natureza é crucial para que as estratégias se sustentem nas instituições de ensino. Infraestrutura é prerrogativa para a realização de ações que envolvam tecnologia. Em ocasiões nas quais foram desenvolvidas formações sem a presença efetiva daquela, o projeto encontrou resistência por parte do público beneficiário. Após a criação de condições suficientes para o trabalho pedagógico, a sustentabilidade passou a ser o grande desafio. A obsolescência dos equipamentos é rápida e, em se tratando de instituições públicas, a preocupação de toda a comunidade com a manutenção foi recorrente e intensa. A conexão que permite o uso pedagógico das tecnologias pelos o aluno também se colocou como uma questão difícil manejo, devido a estrutura e disponibilidade de financiamento pela própria escola. Os resultados mais efetivos no enfrentamento dessas questões no âmbito da experiência avaliativa da Move decorreram do estreitamento de relações do projeto com cada Secretaria Municipal de Educação (SME). Tal estratégia leva à segunda dimensão de análise: a política-institucional. Ela reflete a relação entre os atores responsáveis pelos encaminhamentos que mantém a vida do projeto nas escolas, em dois âmbitos principais: entre os sujeitos da própria comunidade escolar, e desses com os gestores da política municipal de educação. O fortalecimento da relação com a SME trouxe soluções para a sustentabilidade da infraestrutura. Há outros exemplos das consequências dessa parceria para a qualidade do projeto, como o estabelecimento de carga horária e dedicação exclusiva para os professores reinventarem seu modo de ensinar e a Infraestrutura Técnica Política Institucional Dimensões fundamentais para inserção de tecnologia no ambiente escolar oficialização de um novo projeto político pedagógico para respaldar juridicamente a proposta inovadora da escola perante a rede de ensino. No âmbito intra-institucional, a presença dos recursos digitais e o acesso à imensa gama de informações pela internet provocou transformações em toda a cultura escolar. O desenvolvimento do trabalho no dia-a-dia escolar conduzido pelos profissionais dos projetos tornou-se cada vez mais relevante nas três escolas avaliadas. Essas pessoas, para além da formação em si, atuaram na facilitação e na manutenção dos acordos firmados no âmbito das intervenções, e mantiveram constantes trocas com os sujeitos, favorecendo o surgimento de novas ações no curso do cotidiano. Os relatos demonstraram que as resistências e medos se dissolveram a partir da confiança estabelecida pelo contato interpessoal constante com outros professores que ocupam espaços de lideranças nos projetos e com profissionais das equipes de implantação. A dimensão técnica foi essencial para professores e alunos se apropriarem dos hardwares e softwares disponíveis, aprimorarem os processos pedagógicos já em curso na escola, ousarem na criação de novas práticas (contando ou não com o uso de tecnologia) e produzirem tecnologia a partir dos conhecimentos adquiridos. Nos dois anos de trabalho, as escolas que utilizaram a tecnologia para aprimorar o modo de funcionamento já em curso conseguiram resultados sobretudo com o grupo de professores, mesmo criando ambientes virtuais de aprendizagem específicos para os alunos. Os caminhos de resultados até os processos de aprendizagem dos alunos pareceram mais longos nesses casos, pois as práticas continuaram sendo nos moldes anteriores à chegada da tecnologia, e os recur- Travessia | Caderno de Experiências 2016 9 Avaliação de Projetos com Tecnologias Digitais na Educação Pública Brasileira Gustavo Valentim sos tecnológicos desempenharam, essencialmente, o papel de acesso à informação – já disseminado entre os alunos tanto na escola como no âmbito pessoal. A escola que alcançou resultados mais expressivos nos cinco focos avaliativos foi a que, partir da entrada da tecnologia, iniciou um processo de transformação pedagógica radical. Os novos recursos foram incorporados como um dos pilares do novo projeto político pedagógico, construído em colaboração entre as equipes diretiva, docente e executora da iniciativa. A formação foi fundamental para que os profissionais da instituição refletissem sobre novos modos de ensinar, para além da lógica de transmissão de conteúdo unilateral por parte dos professores. Esses, aos poucos, foram experimentando e assumindo as tecnologias digitais em suas práticas e realizaram, por exemplo, a integração das atividades de robótica no ensino de matemática e aliaram a programação de software na resolução de questões de projetos de ciências da natureza. Além dessas três dimensões, outro aspecto importante a ser considerado na interface tecnologias e educação é a sua influência potencial nas Competências do Século XXI14. As competências avaliadas no âmbito deste trabalho foram Comunicação, Colaboração, Criatividade e Competência TIC. No início dos projetos, havia uma expectativa sobre a possível influência da presença da tecnologia no desenvolvimento dessas características. A pesquisa revelou que a simples presença das tecnologias ou a utilização delas para acesso à informação na internet tem pouca ou nenhuma influência nas competências avaliadas – nem mesmo na Competência TIC – nos alunos. O desenvolvimento mais expressivo foi encontrado nos contextos em que foram fomentadas práticas pedagógicas mais coletivas entre os estudantes, com articulação de conhecimentos em projetos práticos e com produção de tecnologia no desenvolvimento das atividades propostas. Por fim, o último aspecto a se destacar sobre essa experiência diz respeito à inspiração do projeto para as políticas públicas. No município que contou com forte articulação política com a Secretaria Municipal de Educação, a iniciativa resultou em inovações nas políticas públicas de educação da gestão responsável em vários aspectos, como a compra de tablets e netbooks e a instalação de conexão para toda a rede municipal; a oferta de formações para gestores escolares com a temática tecnológica; e a constituição de um núcleo de tecnologia dentro da SME. Além disso, fomentou que um grupo de escolas da rede assumisse a reformulação dos próprios projetos políticos pedagógicos com vistas à inovação pedagógica – não necessariamente por meio da tecnologia, mas através de práticas menos unidimensionais no processo de ensino-aprendizagem. Dentro de um contexto nacional de práticas isoladas e fragmentadas, esse município constituiu um exemplo de sucesso de integração das TIC na educação de forma generalizada nas escolas da rede municipal de educação. 4. Considerações finais Em 2015, a Move organizou com a Fundação Telefônica Vivo e a Unesco o “Painel de Avaliação: educação e tecnologias digitais”15. Na preparação para o evento foram entrevistados oito gestores de projetos de tecnologia e educação no Brasil sobre os desafios de se implementar e avaliar iniciativas nessa área. Este texto dialoga e traz reflexões sobre três deles. O primeiro é a existência de certa tensão entre o caráter inovador da tecnologia e o caráter conservador de alguns contextos escolares. A experiência da Move mostra que os resultados mais expressivos e mais abrangentes acontecem nas instituições de ensino que se abrem para transformações mais fundamentais em sua concepção pedagógica e na rotina escolar. Contudo, é imprescindível considerar que tamanha modificação demanda um processo de construção de confiança entre todos os atores envolvidos no processo – equipe de implementação, comunidade escolar e Secretaria Municipal de Educação. Assim como podem trazer resultados, os processos disruptivos também podem gerar insegurança e conflitos. Para enfrentá-los Travessia | Caderno de Experiências 2016 10 Avaliação de Projetos com Tecnologias Digitais na Educação Pública Brasileira é preciso cuidado e tempo, bem como segurança nos acordos firmados na nova relação que se estabelece. Em segundo lugar há no âmbito da avaliação, desafios para superar a expectativa de resultados de caráter quantitativo, em especial os vinculados ao desempenho em provas oficiais de avaliação (por exemplo, Prova Brasil16). A apropriação da tecnologia pela comunidade escolar pode interferir nas relações pessoais e nas relações com o conhecimento, expressando-se mais como uma mudança de cultura do que como uma alteração no desempenho em testes representada por notas. Ela acarreta modificações nos modos de aprender o conteúdo escolar e pode ter reflexos no desempenho. Contudo, como mostra a sistematização da Unesco17, não há garantia de que conduzirá a melhores indicadores quantitativos padronizados. É preciso inovar também no olhar avaliativo o que, segundo nossa experiência, requer a adoção de uma multiplicidade de métodos e o envolvimento de diversos atores na coleta dos dados. Em consonância com os dois primeiros, o terceiro desafio trazido pelos gestores é a incoerência entre as expectativas e o período de duração da intervenção. Se o olhar para os resultados se restringem a notas ou se entender que há uma curva ascendente e rápida de aprimoramento dos processos escolares a partir da entrada da tecnologia digital, os projetos mostraram que a frustração é quase inevitável. Torna-se imprescindível para esse tipo de iniciativa considerar o tempo de reformulação e maturação das novas concepções e práticas, que deve ser incorporado pela avaliação na construção do plano avaliativo e contribuir para um alinhamento de expectativas entre todos os envolvidos. Notas bibliográficas 1 Vivancos, J., Tratamiento de la información y competencia digital, Madrid, Alianza Editorial.2008 2 A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) que ocorreu nos anos de 2003 e 2005, nas cidades de Genebra, Suíca, e Túnis, Tunísia, respectivamente, e fomentada pela Organização das Nações Unidas (ONU) orientou investimentos globais e nacionais, concedendo força e institucionalidade a iniciativas que países como Chile, Costa Rica, Brasil, Argentina e México têm desenvolvido para inclusão das TIC na educação. 3 Rosa, Fernanda R., Azenha, Gustavo S. Aprendizagem móvel no Brasil: gestão e implementação das políticas atuais e perspectivas futuras, Zinnerama, São Paulo, 2015. 4 Dados sistematizados pela Move a partir dos Microdados do Censo 2014 disponibilizados pelo INEP no endereço: http://portal.inep.gov.br/basica-levantamentos-acessar. 5 Unesco. Tecnologias para a transformação da educação: experiências bem-sucedidas e expectativas. 2014. 6 Carneiro, Roberto; Carlos Toscano, Juan; Díaz, Tamara. Los desafios de las TIC para el cambio educativo, Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura (OEI)2009. 7 Op. Cit. Unesco, 2014. 8 Op. Cit. Vivanco, 2014; Rosa e Azenha, 2015 9 Criada em 1999, a Fundação Telefônica Vivo é o braço de investimento social do Grupo Telefônica no mundo. Está presente em 16 países e tem a missão de contribuir com o desenvolvimento de indivíduos e da sociedade por meio de ações que fomentem a inovação com o uso da tecnologia digital. 10 Ministério da Educação/Inep. Censo Escolar 2014. 11 Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nas escolas brasileiras: TIC Educação 2013 [livro eletrôni- co], 1. ed. – – São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014. 12 Uma matriz avaliativa é um dispositivo que contribui para equipes, programas ou organizações expressarem claramente os resultados que suas intervenções sociais pretendem gerar, bem como os indicadores associados a tais resultados. Move (2015) 13 Nas três escolas foram feitas duas coletas de dados nos anos de 2014 e 2015, a primeira mais próxima do início dos projetos e a segunda no decorrer do processo. 14 O referencial teórico que sustentou a compreensão de Competências do Século XXI foi o produzido pela Partnership of 21th Century Skills. 15 Evento realizado no dia 12 de junho de 2015 e que contou com apresentações e debate sobre seis experiências em avaliação de projetos de tecnologia e educação de diferentes países da América do Sul, entre eles Brasil, Chile, Colômbia e Uruguai. Mais informações em: http://fundacaotelefonica.org.br/noticias/como-avaliar-a-inovacao-tecnologica-na-educacao-painel-fomenta-debate-e-traz-experiencias-sul-americanas/ 16 Trata-se de uma avaliação organizada pelo Ministério da Educação (MEC) aplicada aos alunos da 4ª série/5ºano e 8ªsérie/9ºano do Ensino Fundamental das escolas públicas das redes municipais, estaduais e federal, tendo como objetivo avaliar a qualidade do ensino oferecido nas escolas públicas. 17 Op. Cit. Unesco, 2014. Travessia | Caderno de Experiências 2016 11 O investimento social privado e o desejo de incidir nas políticas públicas de educação: aprendizagens Walquíria Tiburcio Juliana Moraes Daniel Brandão Bruna Ribeiro Contexto geral A conjuntura social atual enfrenta grandes desafios no que se refere à garantia de um futuro melhor e mais justo para todos, com demandas por políticas e serviços públicos de qualidade que colaborem para o enfrentamento das desigualdades, pautado pela valorização da diversidade e pela garantia de equidade de acesso aos programas e serviços. Nesse cenário, a educação tem papel primordial: além de ser conside- rada um direito em si, é um meio indispensável para o acesso a outros direitos fundamentais1, e nesse sentido vem ganhando espaço na agenda de políticas públicas para garantir atendimento e qualidade, assegurando sua função social. O Brasil avança no alcance da educação no que diz respeito às diferentes etapas de ensino, com exceção da creche que, segundo dados2 de 2014, atende apenas 29,6% das crianças de 0 a 3 anos. A etapa fundamental da educação básica atinge 97,1% de crianças e jovens com idade entre 6 e 14 anos, e 61,1% dos jovens de 15 a 17 anos estão matriculados no ensino médio. Esses números, somados à recente expansão do acesso à universidade, aumentaram a escolaridade média da população. Entretanto, os dados referentes à qualidade do ensino mostram a necessidade de investimentos. Cabe ressaltar que, para todos os dados consultados, observam-se desigualdades para os recortes de renda, raça, região do país e localização da escola, se urbana ou rural. A pesquisa “Education at a Glance 2015: OECD indicators”3 ressalta em suas notas sobre o Brasil que equidade, juntamente com infraestrutura e remuneração docente, são questões desafiadoras precisam de atenção. Nesse contexto de avanços e atenções, o Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado e sancionado em junho de 2014 após cerca de quatro anos de tramitação e intenso debate, representa movimento importante na definição de parâmetros firmes a fim de que o Estado brasileiro, além de garantir às crianças e adolescentes o direito à aprendizagem, assegure também o direito à educação de forma ampla, democrática e equitativa. Para que o Estado possa avançar na oferta de políticas públicas que respondam às necessidades pontuadas pela sociedade, é preciso que elas sejam bem desenhadas no campo técnico e político. As políticas públicas são um conjunto de processos que podem ser desagregados em fases que, no todo, são denominados ciclo de política pública (in MARCHETTI, 2013)4. Esse é um processo dinâmico que produz aprendizado (SOUZA, 2006) , compreendendo de três até sete movimentos, a depender da literatura adotada. Para fins deste artigo adotamos três grandes movimentos: (a) formulação, (b) implementação e (c) avaliação. Em linhas gerais, a formulação envolve debate e planejamento na tentativa de instalar um processo democrático que procura assegurar participação social na formulação de alternativas de solução para uma agenda específica reconhecida por um conjunto de atores. A implementação exige a definição de ações que permitam que as metas da política formulada sejam alcançadas. E a avaliação deve investigar o alcance dos resultados esperados da política em questão. Vale ressaltar que o ciclo de políticas públicas é um modelo analítico, por isso não corresponde a um processo linear de fases que se sucedem. Existem disputas e interesses de diversos grupos, e as fases são permeadas de processos políticos e de inúmeras instâncias de decisão. Assim, o ciclo pode se desenvolver em diferentes formatos, a depender dos fatores que influenciam as fases. O Plano Nacional de Educação citado acima expressa movimentos do ciclo de política pública. A construção de sua formulação foi permeada por disputas intensas da qual participaram organizações da sociedade civil dos setores público e privado, movimentos sociais e conselhos e fóruns de educação institucionais, entre outros atores. Foi um amplo movimento Travessia | Caderno de Experiências 2016 12 O investimento social privado e seu desejo de incidir em políticas públicas de educação: aprendizagens • Organizações da sociedade civil • Movimentos sociais • Conselhos e fóruns Fo rm • Garantia de transparência • Controle social Ava li ul a ç ã Impactos: • Recursos • Tensão Público/Privado • Sistema Nacional de Educação o CICLO DO PNE Impleme PNE ão aç de articulação e debate das 20 metas prioritárias da educação brasileira6 para a próxima década. O movimento de implementação exige a definição de ações para que as metas da política formulada sejam alcançadas. Nesse sentido, para cada meta do PNE há um conjunto de estratégias que informa quais caminhos priorizar/trilhar para sua consecução. Por fim, a avaliação deve investigar o alcance dos resultados esperados da política em questão, apontando o compromisso público com a transparência no âmbito da garantia de direitos. Vale notar que o movimento de implementação e avaliação do PNE ainda está em construção, no processo de integrar as esferas estadual e municipal, além de incentivar a sociedade civil a participar e a se comprometer com a qualidade da educação. Um dos aspectos mais importantes do plano é a garantia de recursos, discussão em pauta no Senado e que pode afetar sua implementação7. No que se refere à avaliação da qualidade, os Indicadores da Educação Básica no Brasil figuram como elemento importante, pois apresentam parâmetros de avaliação mais densos8. O que se propõe é uma avaliação institucional liderada pela própria escola, portanto com caráter diferente das avaliações oficiais focadas em uma análise do sistema educacional a partir do desempenho acadêmico dos estudantes. O instrumento referencia dimensões como ambiente educativo, práticas pedagógicas, ambiente físico da escola, gestão escolar democrática e formação dos profissionais como pilares importantes para uma prática educativa de qualidade. Vemos atualmente uma crescente mobilização da sociedade civil organizada para impulsionar agendas, programas e projetos que almejam atuar tanto na for- • Verificação do alcance dos resultados ção nta • Definição de estratégias, ações e responsabilidades O que avaliar? Como avaliar? mulação de políticas públicas de educação, buscando incidência, como no desenvolvimento de projetos paralelos a políticas já implementadas, com o desejo de fortalecê-las em aspectos pontuais ou específicos. A possibilidade de atuação das organizações é bastante ampla, atende interesses distintos e detém uma pluralidade de estratégias que vem sendo foco de estudos e análises da Move. A avaliação de projetos na área de educação: aprendizagens O campo educacional ocupa espaço importante nos processos de avaliação da Move desde sua fundação. A multiplicidade de experiências conduzidas por organizações civis, empresas e institutos empresariais, com atuação em diferentes escalas, desde uma única escola a projetos que envolvem toda uma rede mu- Travessia | Caderno de Experiências 2016 13 O investimento social privado e seu desejo de incidir em políticas públicas de educação: aprendizagens nicipal ou ainda vários municípios, demandam arranjos analíticos cuidadosos e criteriosos, uma vez que lidam, em diferentes medidas, com a complexidade do processo educacional. A educação é área estratégica e, por isso, tem destaque junto às instituições. Compôs, ao longo de 2015, 30% do rol de projetos de avaliação da Move, com destaque para gestão pública, tecnologia, educação integral, educação infantil e gestão escolar. Dado o contexto apresentado e o intenso debate sobre a qualidade da educação, têm ocorrido diversas iniciativas com diferentes propostas e níveis de intervenção, visando mobilizar os atores da rede educacional para implementar modelos de gestão e práticas pedagógicas de melhoria do sistema de ensino-aprendizagem. A aproximação da Move com essas iniciativas por meio da avaliação de projetos revela duas ambições do investimento social privado. A primeira é influenciar a qualidade da gestão pública da educação a partir do desenvolvimento de projetos de iniciativa própria, desenvolvidos paralelamente aos serviços públicos. A outra envolve incidir na formulação de políticas públicas na tentativa de influenciar o desenho, a implementação e/ou a avaliação da política, com o desejo de garantir novos parâmetros de atuação do setor público. As duas maneiras de atuar diante do sistema público de educação apresentam fragilidades e fortalezas, a depender dos interesses colocados pelas instituições atuantes. De qualquer maneira, é inegável que as iniciativas têm possibilitado a produção de conhecimento na área, o que é importante para conectar novas práticas locais à ambição de colaborar com a transformação do sistema. Assim, a condução de processos avaliativos de diferentes programas e projetos que atuam nesses âmbitos evidenciou aspectos importantes. Elegemos quatro aprendizagens com o objetivo de ajudar a qualificar as estratégias das organizações de modo a potencializar suas intervenções, atentando para a manutenção de uma relação responsável entre poder público e investimento social privado, pois ainda que ambos tenham um objetivo comum – a garantia de uma educação de qualidade –, os caminhos, as formas e as capacidades de operar mudanças são distintos. 1. A importância do contexto e a potência da participação O primeiro ponto sensível ao conjunto de projetos estudados pela Move aponta para a construção de um olhar que alie a leitura de contexto a um processo participativo. Compreender conjunturas políticas e estruturais específicas das diferentes localidades deve ser ponto de atenção. Às vezes, dependendo do tipo de intervenção, não é possível operacionalizar mudanças locais da forma esperada por motivos que fogem à governabilidade do projeto, demandando ações que não estão em seu escopo. A Move avaliou um projeto de educação em 2015 envolvendo localidades que eram prioritárias para a instituição e outras que eram definidas pelas Secretarias de Educação. Em nenhuma delas priorizou-se uma análise de contexto para verificar a viabilidade do projeto. Como consequência, o alcance de resultados foi prejudicado nas localidades que eram prioridades (somente) da instituição, pois, além de um Estar consciente das demandas e oportunidades locais é fundamental para alinhar expectativas entre os envolvidos e definir rumos contexto político e de uma estrutura de Secretaria de Educação desfavoráveis, a iniciativa não era prioridade para a equipe técnica, o que gerou entraves na condução das estratégias e comprometeu as ações. As necessidades variam nos diversos contextos e se transformam ao longo do tempo, o que demanda avaliação constante e flexibilidade para se adaptar aos movimentos, otimizar recursos e potencializar resultados. Estar consciente das demandas e oportunidades locais é fundamental para alinhar expectativas entre os envolvidos e definir rumos. Nesses momentos, é importante realizar uma escuta atenta e trabalhar em colaboração permanente. Qualquer movimento planejado deve ter um sentido para todos em qualquer iniciativa, seja uma experiência pontual ou uma intervenção de maior envergadura. Em 2015 a Move realizou a avaliação de outro trabalho que, antes de desenhar suas estratégias, conduziu um amplo diagnóstico junto aos atores sociais do campo educacional, investigando quais as necessidades do município em questão. O processo apoiou e referendou a iniciativa junto aos atores locais, engajando-os no planejamento e no desenvolvimento das ações a partir de uma decisão compartilhada sobre as prioridades. Esse movimento potencializou o projeto. Travessia | Caderno de Experiências 2016 14 O investimento social privado e seu desejo de incidir em políticas públicas de educação: aprendizagens Operar programas e projetos junto às redes educacionais requer um movimento dialógico entre organizações e poder público, garantindo inclusive espaços para recusas ou mudanças de rota, respeitando as necessidades locais e garantindo a governabilidade da ação. Por vezes, pode-se definir inclusive que o projeto não tem condições de ser executado em determinado contexto. 2. A avaliação do processo e a análise do tempo No que tange à expectativa de resultados no campo educacional, vale considerar a necessidade de definir o que se espera a curto, médio e longo prazos, pois as ações demandam intervalos diferentes para favorecer transformações. No geral, as intervenções têm objetivos ousados, focados na aprendizagem acadêmica de crianças e adolescentes. Contudo, há um caminho a ser percorrido para conseguir impactar os estudantes, e esse percurso deve ser bem delineado, sempre levando em conta a existência de uma cadeia de resultados que opera no tempo para permitir qualquer modificação da realidade. Entre 2014 e 2015, realizamos a avaliação de um projeto onde, inicialmente, a principal ambição era ter resultados expressivos na alfabetização de alunas e alunos a partir de uma estratégia de formação docente. O caminho percorrido junto ao cliente foi evidenciando que, para além do impacto em alfabetização, também seria de extrema importância reconhecer e celebrar os resultados intermediários junto ao grupo de professores e professoras, valorizando aspectos como ganhos na capacidade de planejamento de aulas e na forma de avaliação dos estudantes. Reconhecer e avaliar o processo é também uma mensagem que reforça o caráter complexo do fazer educativo. Nesse cenário, definir qual o tempo necessário para alcançar cada um dos resultados que uma intervenção almeja ajuda a definir as estratégias e as metas de forma mais realista, evitando frustações e articulando melhor a relação entre o público-alvo do projeto e a organização em questão. Clesio Sabino 3. As implicações práticas de tempos políticos Um fator importante e bastante crítico para o qual as organizações devem estar atentas é a troca de gestão municipal. É sabido que essa transição resulta em muitas mudanças de cargos e funções nas Secretarias e na rede de escolas, o que pode impactar as parcerias e as práticas em andamento. O que confere Travessia | Caderno de Experiências 2016 15 O investimento social privado e seu desejo de incidir em políticas públicas de educação: aprendizagens maior possibilidade de continuidade das ações é o alinhamento a uma demanda local, o que potencializa a intervenção e aumenta sua sustentabilidade. De qualquer forma, esse é um desafio a que todo projeto está sujeito. A continuidade das ações está diretamente ligada a uma vontade política e a credibilidade perante a sociedade parece cada vez mais abalada. No entanto, construir espaços participativos, onde as demandas locais são priorizadas e o controle social é estimulado pode ser um caminho para preservar a intervenção de agendas partidárias. Um estudo de campo realizado para uma avaliação em 2015 deparou-se com uma Secretaria Municipal de Educação onde, apesar de a maior parte da equipe técnica ter cargos comissionados, a rotatividade era bem pequena. Os técnicos tinham atribuições claras e davam conta de resultados expressivos para a sociedade, que em contrapartida era atenta a qualquer mudança interna que pudesse impactar o desempenho da educação no município. 4. O reconhecimento do trabalho docente Muitos dos programas e projetos avaliados pela Move têm o espaço escolar como locus de atuação, envolvendo, em certa medida, grande parte dos atores que ali circulam. Nesse sentido, professoras e professores são público-alvo das estratégias implementadas em grande parte das iniciativas. Essa escolha aponta o reconhecimento, por parte do investimento social privado, de que o trabalho docente é dos mais relevantes para o processo educativo. O pensamento de Henry Giroux9 aponta para a necessidade de se ter um olhar diferenciado sobre a profissão docente, que reconheça a possibilidade de implementação de um ensino crítico reflexivo por esses/essas profissionais. Isso somente será viável se tal dimensão for considerada quando da formulação das políticas, programas ou projetos que impactam o trabalho dessa classe. Em uma avaliação conduzida entre 2014 e 2015 na área de tecnologia e educação, destacou-se um programa que apostava na capacidade de professoras e professores reformularem suas práticas pedagógicas. Em um desenho que convidava à participação reflexiva sobre a própria prática, os docentes tinham autonomia para repensar estratégias e metodologias de ensino, implicando-se na transformação de suas realidades e requalificando, assim, a práxis pedagógica. 5. Conclusão O cenário político que se configura no presente nos dá pistas de certa urgência na consolidação de um Estado capaz de desenvolver e executar políticas públicas de qualidade e com transparência. Nesse caminho, as organizações do investimento social privado encontram oportunidades para influenciar, questionar e somar em possibilidades, na medida em que atravessam tantas realidades educacionais. O poder público e a sociedade no geral vêm aprendendo a dialogar. Embora isso nem sempre ocorra de forma tranquila, o ruído e o embate também fazem parte do jogo democrático que se quer plural e inclusivo. A Move compartilha aqui essas aprendizagens no desejo profundo de que possam atrair olhares atentos daqueles e daquelas que se lançam no campo educacional em busca da melhoria da qualidade da educação de crianças e jovens. Notas bibliográficas 1 OLIVEIRA, R.P. de. “O direito à educação”. IN: OLIVEIRA, R. P. de.; ADRIÃO, T. (orgs.) Gestão, financiamento e direito à educação: análise da Constituição Federal e da LDB. 3a edição revisada. São Paulo, Xamã, 2007. 2 Os dados aqui apresentados podem ser encontrados no Observatório do PNE (http://www.observatoriodopne. org.br/). A plataforma monitora os indicadores referentes a cada uma das 20 metas do Plano Nacional de Educação – PNE. 3 Essa publicação oferece dados sobre a estrutura, o financiamento e o desempenho de sistemas educacionais de 34 países membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), assim como de alguns países parceiros e do G20. (www.oecd.org/education/education-at-a-glance-19991487.htm) 4 OLIVEIRA, Vanessa . “As fases do processo de políticas públicas.” In: MARCHETTI, V. (org.), Políticas públicas em debate, São Bernardo do Campo. MP Editora, 2013. 5 SOUZA, C. “Políticas públicas: uma revisão da literature”. IN: Sociologias, ano 8 no 16, Porto Alegre, 2006. 6 Brasil. [Plano Nacional de Educação (PNE)]. Plano Nacional de Educação 2014-2024 [recurso eletrônico] : Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara. 7 Muitas entidades estão em luta contra tentativas de estabelecer desvinculações de recursos, bem como a desconstrução do regime de partilha na exploração do petróleo. http://www.campanhaeducacao.org.br/?idn=1480. 8 Indicadores da Educação Básica (http://portal.mec.gov. br/seb/arquivos/pdf/Consescol/ce_indqua.pdf). 9 GIROUX, H.A., Os professores como intelectuais – Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1997. Travessia | Caderno de Experiências 2016 16 Avaliação em saúde: a importância dos modelos teóricos para projetar impacto social Rogério Silva Max Gasparini A avaliação em saúde no Brasil encontra-se em vigoroso processo de desenvolvimento: existem desde uma profusão de conceitos e abordagens metodológicas1 a estudos que buscam compreender a trajetória histórica da área a partir dos agentes de interesse envolvidos com suas práticas2. Três elementos concomitantes constituíram originalmente esse campo no país: a organização e a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS); a constituição do espaço da Saúde Coletiva e o papel indutivo de financiadores internacionais com exigentes padrões de avaliação3. Nesse cenário, é necessário aprofundar e divulgar técnicas e enfoques metodológicos de avaliação tradicionalmente oriundos e circunscritos ao campo acadêmico, que cada vez mais têm sido apropriados por agentes públicos e privados interessados em programas e serviços de saúde. Atenta a essa tendência, a Move tem se esforçado para apoiar a qualificação da avaliação nessa área, tendo como base rigoroso respaldo teórico-metodológico e firme conjunto de princípios relativos à saúde enquanto direito fundamental. Modelos teóricos na avaliação em saúde Um processo de avaliação consiste centralmente em observar e refletir de modo crítico sobre as atividades desempenhadas. Desde cedo nos familiarizamos com o exercício de avaliar e ser avaliado – é tarefa cotidiana presente em vários momentos da vida4. Avaliamos a qualidade daquilo que nos cerca, dos alimentos que consumimos às condutas que observamos. Somos avaliados na escola, no trabalho, por amigos e familiares e, de forma não sistemática, emitimos juízos de valor acerca dos elementos que compõem a sociedade em que vivemos. Essa dimensão da avaliação ligada ao senso comum apenas serve para explorar o sentido da palavra como algo que todos já experimentamos, seja de maneira mais positiva, seja de modo mais negativo. Ao pensarmos, contudo, em avaliação de programas e serviços de saúde, passamos a operar com uma atividade que deve ser sustentada por certos pressupostos teóricos, metodológicos, éticos e políticos de natureza intencional e sistemática, o que torna a tarefa mais complexa, ainda que bastante possível. Nesses casos, sabemos que avaliar consiste em formar juízos de valor consistentes sobre a relevância e o mérito do que está sendo avaliado. Uma vez que não se deve julgar a partir de qualquer opinião ou impressão, procuramos construí-los com base em critérios explícitos capazes de demonstrar se aquilo que fazemos no cotidiano dos serviços de saúde está bom ou ruim, se alcança ou não os objetivos, se deveria ser feito ou não. Tal empreendimento requer boas reflexões e escolhas, trazendo o desafio de analisar e compreender a realidade, aspecto que procuramos abordar neste artigo. Comecemos pensando que toda intervenção em saúde carrega uma teoria subjacente à prática. Sendo frutos de algum nível de planejamento, as ações que conhecemos apoiam-se em um certo desenho lógico, em um encadeamento de compreensões mais ou menos lineares, que resultou em um constructo particular. A forma como compreendemos a realidade e os processos saúde-doença, a maneira como pensamos a terapêutica, a natureza das relações que estabelecemos com os atores sociais ou os estilos com os quais gerenciamos as organizações são variáveis cruciais no desenho de um programa ou serviço de saúde. Tais concepções nem sempre estão explícitas para os atores, por diferentes razões. Sejam resultantes de mudanças nos quadros funcionais, do cotidiano veloz a obstruir práticas reflexivas ou de estratégias de gestão, é muito comum que as intervenções se separem de seus propósitos, ou que a imagem geral da teoria de um programa se enfraqueça ou se ausente ao longo do tempo. É essa lacuna na explicitação da teoria de um programa que nos remete à importância de reconstruir os modelos teóricos das intervenções que se pretende avaliar. Travessia | Caderno de Experiências 2016 17 Avaliação em saúde: a importância dos modelos teóricos para projetar impacto social Assim como em qualquer ciência, é importante reconhecer o objeto de avaliação para que se possa avaliá-lo, isto é, representá-lo em seus componentes, fluxos, relações causais, pressupostos, apostas e expectativas. Para certos autores, esse exercício denomina-se construção da teoria do objeto-modelo5, processo que permite enxergar melhor o serviço ou programa que se deseja analisar, permitindo escolhas técnicas e políticas para desenvolver uma avaliação. Ainda que pareça paradoxal, uma boa avaliação começa por reconhecer que o objeto se encontra idealizado6, ou seja, carregado de leituras e desejos frente aos quais avaliar será um exercício de mediação. Se o modelo teórico que construímos explicita uma certa aposta na direção de uma linha de atenção em saúde, a avaliação poderá revelar em que medida esta linha se sustenta na realidade, o que ele produz e não produz, os efeitos que alcança ou não etc. Em outras palavras, uma avaliação lida o tempo todo com diferenças, discrepâncias, tensões e lacunas entre o que se projetou e o que se realizou, entre o que se desejava e o que se alcançou, entre o que era necessário e o que foi possível. Um modelo teórico pode ser entendido como uma proposta de ordenar os componentes de um serviço, projeto ou programa de modo articulado com os resultados que se pretende alcançar. Mais do que reconhecer componentes, o uso de modelos teóricos favorece que se apresente, com a maior clareza possível, as ideias (problemas, pressupostos) e as hipóteses (estratégias, encadeamentos, resultados esperados) que lhes conferem sentido e racionalidade7. Uma das características mais importantes de um modelo teórico é a capacidade de deixar claras as relações causais entre ações e resultados, mesmo que elas sejam pouco lineares, demonstrando que o uso de certos insumos, operados por profissionais com uma abordagem particular e chegando aos usuários com uma qualidade determinada significarão a solução dos problemas que desencadearam as ações, os programas ou os próprios serviços8, criando impacto positivo na realidade. Ao mesmo tempo em que apontamos a importância dos modelos teóricos para desenhar os objetos de avaliação, existe uma dimensão processual de suma importância para que os mesmos “parem de pé”: valorizada por diversos autores e escolas, resume-se à possibilidade de produzir diálogos e acordos entre os atores envolvidos em uma avaliação9. se pretende agir. Por exemplo, o alto índice de pessoas com hipertensão arterial pode ser entendida como uma situação que se quer equacionar. Uma vez explicitada, é necessário ter clareza das causas que serão visadas na intervenção e quais seus determinantes. Voltando ao exemplo, podemos focar a intervenção nos hábitos de vida que contribuem para os quadros de hipertensão, tais como o fumo, o sedentarismo e o consumo de sal de cozinha. Essa fase de construção do modelo lógico poderia ser chamada de modelo causal da intervenção. Situação Problema A importância de construir esquemas visuais Para diversos autores e nas diversas oportunidades nas quais trabalhamos com modelos lógicos, as imagens de mapas, roteiros, esquemas, desenhos e fotografias de um serviço ou programa são bastante importantes. É por meio dessas representações que muitas vezes visualizamos as concepções e os caminhos da intervenção, e que relacionamos de modo mais equilibrado os diversos componentes da realidade, os quais, de outras formas, poderiam se tornar invisíveis ao olhar. Uma imagem é, nesse sentido, uma plataforma para estimular o diálogo. Há muitas maneiras de se elaborar um modelo teórico. O uso de esquemas visuais e fluxogramas conferem inteireza e movimento aos componentes e tem sido quase uma unanimidade em avaliação. Na construção do modelo teórico de uma intervenção, é importante explicitar a situação problema sobre a qual Causas visadas Determinantes Modelo Causal No esquema a seguir, vejamos uma primeira imagem que articula diferentes componentes básicos para a reconstrução teórica de um serviço ou programa, já tendo explicitado o Modelo Causal que originou ou justifica a intervenção. Produtos Recursos Atividades Resultados finais Resultados intermediários Impactos Estrutura do Modelo Lógico10 Travessia | Caderno de Experiências 2016 18 Avaliação em saúde: a importância dos modelos teóricos para projetar impacto social O esquema acima é um bom exemplo dos componentes mais frequentes em um Modelo Lógico. Eles demonstram os elementos causais de uma intervenção, desde os recursos necessários até os impactos esperados, e favorecem a visualização das conexões. É exatamente da busca de relações entre os vários elementos de um serviço ou programa que os modelos lógicos emergiram, ou seja, da necessidade de superar isolamento e fragmentação, contradições e incoerências. Em última instância, o Modelo Lógico estabelecido deverá responder à situação problema no qual se planeja atuar, em um movimento circular. Passos para elaborar a modelagem de um programa ou sua Teoria de Mudança Situação problema Modelo Lógico (recursos, atividades, produtos...) Em busca de uma leitura sistêmica do objeto avaliado, aposta-se em enxergar: (a) os problemas que requerem intervenções; (b) as estratégias escolhidas para intervir; (c) as atividades necessárias para colocar em prática as estratégias; (d) os produtos imediatos dessas atividades; (e) os resultados intermediários de atividades e projetos; (f) os resultados finais esperados pela intervenção; e, o que é desejável, mas nem sempre fácil, (g) os impactos da intervenção. No contexto da avaliação de programas e serviços em saúde, eles podem ser compreendidos como os efeitos mais transformadores das intervenções em populações ou grupos em grandes intervalos de tempo11. Causas visadas Determinantes Inserção do Modelo Lógico no pensamento sobre a realidade Diferentemente de outras teorias sociais, a teoria na avaliação de programas tem como elemento fundamental sua característica prescritiva, ou seja, além de descrever determinada intervenção, deve também apontar sugestões acerca do que deve ser feito para tornar algo melhor ou atingir determinados objetivos12. Huey-tsyh Chen, tido como o autor que provavelmente mais desenvolveu a técnica de modelização13, nos ensina que a construção da teoria do programa deve agregar todo o conhecimento disponível sobre o programa avaliado, envolvendo perspectivas, hipóteses e expectativas dos principais interessados na avaliação, inclusive por meio da observação de seu funcionamento. Essa proposta de construção da teoria do programa que busca incorporar tanto os saberes científicos quanto os saberes dos grupos implicados na avaliação14 constitui-se em uma abordagem integrativa, no sentido do termo atribuído por Chen. Dessa forma, podemos prosseguir propondo a elaboração de modelos lógicos baseados nas seguintes etapas: (a) produção de um ambiente de diálogo que facilite a compreensão e a organização das reflexões do grupo; (b) utilização correta de perguntas norteadoras de cada passo; (c) revisão de documentos organizacionais acerca da intervenção; e (d) produção de imagens significativas15. Um bom ambiente de diálogo Um dos maiores desafios encontrados hoje nas organizações e nos serviços em geral, independente do campo de atuação, é a criação de espaços de diálogo, reflexão e construção coletiva das questões ligadas ao cotidiano do trabalho. Na gênese de processos dialógicos está a necessidade premente de fazer circular a palavra e de produzir trocas e ambientes que valorizam a escuta. Se “palavra que circula é saber que circula, poder que opera e se movimenta”16, a construção de um Modelo Lógico que realmente faça sentido e se apoie na experiência de todos os envolvidos em uma determinada intervenção não pode abrir mão de ser gerado em espaços onde a palavra possa circular sem constrangimentos ou coerções. Impera ainda em muitos espaços de trabalho um centralismo exagerado na figura do gestor, em detrimento da criação de ambientes onde todos são convidados a participar e nos quais suas perspectivas, experiência e conhecimento são valorizados. Acreditamos que tal processo deve ser incentivado no interior do trabalho em saúde, apontando para um horizonte onde a cogestão17 subsidie não só pro- Travessia | Caderno de Experiências 2016 19 Avaliação em saúde: a importância dos modelos teóricos para projetar impacto social cessos avaliativos mais democráticos e responsivos, mas também contribua com a criação de sentido para todos que nele atuam. Perguntas norteadoras O uso de perguntas norteadoras tende a auxiliar a produção do Modelo Lógico das intervenções. Tais perguntas buscam objetivar os sentidos da intervenção a ser modelizada, clarificando com maior precisão os componentes que nele deverão constar. Em nossas sistematizações a partir da experiência de trabalho com diversos parceiros18 19, formulamos um conjunto de perguntas sequenciais que tem por objetivo guiar um processo de modelização. Nesse caso, procuramos usar as perguntas conjugando os verbos no presente, para marcar o papel de análise e compreensão que queremos destacar para os processos de modelagem. 1. Quais os principais problemas, agravos de saúde ou demandas que o serviço ou programa se propõe a combater? 2. Tomando como base tais problemas, agravos ou demandas, que transformações de longo prazo ou que impactos o programa pode alcançar? 3. Com quais atores o serviço ou programa trabalha? Que estratégias são utilizadas para cada público? Como cada ator tem sido impactado por determinada estratégia? 4. Há resultados de curto e de longo prazo encadeados? Quais são eles? 5. Que indicadores são capazes de mostrar o alcance de tais resultados de curto e médio prazo, bem como o impacto do serviço ou programa? 6. O caminho de transformação que o serviço ou programa percorre está claro? Há lacunas? Há pontos de maior potencial? Há condições necessárias que estão ou não estão acontecendo? 7. Em que medida a relação entre as estratégias e os resultados é consistente? 8. Que imagem melhor expressa o modelo do serviço ou programa? Revisão de documentos Se em muitos processos de avaliação é crucial produzir informações novas entrevistando pessoas ou observando atividades, é também muito importante saber usar documentos como fontes de dados e análises. Termos de Referência, Relatórios, Protocolos e Prontuários estão entre os elementos que podem ser de grande utilidade quando se deseja enxergar a estrutura de um serviço ou programa. Uma análise criteriosa desses materiais auxilia ainda na elucidação das propostas iniciais que sustentavam a estratégia idealizada pela intervenção avaliada, de modo a captar os limites do plano original ou os caminhos que obtiveram sucesso. Esse tipo de análise contribui para tornar visível a relevância estratégica de uma intervenção e ajuda a ter clareza acerca de sua lógica de funcionamento. produzir reflexão crítica e diálogo, ajudando grupos a se surpreender com a realidade em curso, com os pressupostos, as expectativas etc. Trazemos aqui como exemplo uma imagem elaborada para representar o Modelo Lógico do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica, o PMAQ, do Ministério da Saúde20. A imagem sintetiza aquilo que vimos discorrendo até aqui acerca da compreensão da proposta das intervenções, agregando tanto elementos descritivos quanto prescritivos. Utilizamos esse exemplo para demonstrar a possibilidade de construção de imagens significativas, mas não advogamos que exista uma forma correta de se elaborar Modelos Lógicos. Desde que alguns princípios básicos sejam considerados, entre eles a capacidade do modelo de demonstrar claramente as relações causais entre as diferentes etapas de uma estratégia, as representações do movimento de uma determinada intervenção podem variar tanto em função da própria intervenção quanto das ferramentas utilizadas, da cultura institucional e da criatividade dos desenvolvedores. Imagens significativas Um dos diferenciais da modelagem é a crença de que as imagens podem demonstrar o ordenamento, o fluxo e a articulação do conjunto de componentes de um serviço ou programa. Diante da complexidade da área da saúde, elas são muitas vezes dispositivos para Travessia | Caderno de Experiências 2016 20 Avaliação em saúde: a importância dos modelos teóricos para projetar impacto social PROBLEMAS PROBLEMAS E PROPÓSITOS OBJETIVOS • Grandes discrepâncias no acesso e qualidade da atenção básica • Escassez de padrões de qualidade para a atenção básica • Frágil cultura de avaliação nas equipes nos gestores do SUS • Baixa resolutividade da atenção básica ESTRATÉGIAS • Se a atenção básica não funciona, o SUS não funciona • Cada equipe precisa se responsabilizar por qualidade • Cada gestor precisa se comprometer com qualidade • Quem avança em qualidade deve ser premiado • Há diversos esforços na direção de qualificar a AB, que irão intervir em sinergia com o PMAQ PRODUTOS Adesão e contratualização: compromisso de gestores e equipes com processo de avaliação e com melhoria de indicadores Avaliação externa: visita de avaliadores externos das IES parceiras, para aplicar instrumentos a gestores, equipes e usuários Desenvolvimento: melhoria das ações por meio de autoavaliação, monitoramento, educação permanente e apoio institucional Pactuação: gestores e equipes analisam desempenho e pactuam metas de melhoria de acesso e qualidade RESULTADOS • 5.560 municípios aderidos ao PMAQ RESULTADOS • Fortalecer a cultura de monitoramento e avaliação no SUS, tanto nos espaços de gestão quanto nos de atenção • Disseminar e fortalecer a Política Nacional para Atenção Básica no SUS PRESSUPOSTOS ESTRATÉGIAS • Comprometer gestores e equipes da atenção básica com a melhoria do acesso e da qualidade dos serviços de saúde • 100% das equipes da atenção básica certificadas • Desempenho dos serviços publicado para apreciação pública • Dados comparativos sobre AB disponíveis para o Brasil • Produção científica sobre o tema aumentada Gestores do SUS conhecem detalhes sobre a qualidade dos serviços e ampliam seu poder de intervenção Gestores do SUS conhecem detalhes sobre a quali Equipes ampliam sua responsabilização sanitária sobre os territórios em que atuam dade dos serviços e ampliam seu poder de intervenção Práticas de acolhimento, acessibilidade e gestão do cuidado integral e singular fortalecidas Práticas de educação permanente e de trabalho multiprofissional fortalecidas IMPACTO IMPACTO • Usuários vinculados à atenção básica, a reconhecendo como porta de entrada do SUS • Serviços de evidente qualidade na percepção de usuários, profissionais, gestores e sociedade • Atenção básica operando com máxima resolutividade e forte impacto positivo sobre o SUS Modelo Lógico do Programa de Melhoria de Acesso e Qualidade na Atenção Básica do SUS (PMAQ/AB) Travessia | Caderno de Experiências 2016 21 Avaliação em saúde: a importância dos modelos teóricos para projetar impacto social Conclusão A discussão em torno da elaboração de Modelos Lógicos suscita questões referentes ao próprio ato de fazer ciência e ao ato humano de analisar a realidade e atribuir sentido a suas ações . A modelização de intervenções é uma herança antiga dos primeiros esforços em sistematizar e atribuir causalidade aos fenômenos complexos da natureza e da vida social. Por essa razão, Potvin e outros (2006) discutem sobre a implicação das diferentes tradições cientificas e filosóficas que norteiam a concepção de realidade, ou a ontologia, com a qual o avaliador compreenderá seu objeto de investigação. A forma como o avaliador sistematiza as ações de um determinado programa para aferir sua lógica de funcionamento é determinada por convicções ontológicas prévias enraizadas em tradições filosóficas, científicas, ideológicas, metodológicas e conceituais. Os autores apontam que há três grandes tradições principais dessa natureza e discutem sua implicação na formulação de conceitos referentes aos programas: (a) a postura realista empírica, (b) o idealismo e (c) realismo crítico . Enquanto a tradição realista empírica tem raízes na lógica positivista e os idealistas se associam às correntes fenomenológicas e ao psicologismo, a abordagem do realismo crítico busca considerar a dinâmica e o papel dos atores sociais implicados em um determinado programa, considerando a mútua relação entre os agentes de conhecimento e os objetos, enquadre no qual nos localizamos. Tal abordagem se coaduna com a proposta defendida neste artigo, uma vez que considera a dinâmica de uma determinada intervenção enquanto processo em constante transformação, inter-relacionado com o papel exercido por seus diversos atores e implicados em diferentes contextos históricos, sociais, políticos e econômicos. A proposta com a qual nos identificamos não só contribui para uma análise crítica acerca da modelização, expondo suas preferências concei- tuais e com isso desvelando os riscos de um possível enquadramento de fenômenos sociais complexos, como também abre caminho para formular ferramentas analíticas capazes de superar as concepções meramente lineares de causa e efeito presentes na racionalidade positivista. Notas bibliográficas 1 Castanheira, E.R.L. et al. “Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB”. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, out-dez, 2014. 2 Furtado, J; Vieira-da-Silva, L.M. “A avaliação de programas e serviços de saúde no Brasil enquanto espaço de saberes e práticas”. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(12): 2643-2655, dez. 2014. 3 Furtado, J. “Avaliação de programas e serviços, introduzindo alguns conceitos”. In: Gastão, W. S. C.; Minayo, M.C.S; Akerman, M; Drumond Junior, M,;Carvalho, Y.M (orgs.) et al. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006, pp. 715-739. 4 Medina, F.G. et al. “Uso de modelos teóricos na avaliação em saúde: aspectos conceituais e operacionais”. In: HARTZ, Z.M. de A.; VIEIRA-DA-SILVA L.M. (org.). Avaliação em saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. Salvador: EDUFBA, 2005. 5 Medina, F.G. et al. “Uso de modelos teóricos na avaliação em saúde: aspectos conceituais e operacionais”. In: HARTZ, Z.M. de A.; VIEIRA-DA-SILVA L.M. (org.). Avaliação em saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. Salvador: EDUFBA, 2005. 6 Cassiolato, M.; Gueresi, S. Como elaborar modelo lógico: roteiro para formular programas e organizar avaliação. Brasília: 2010. 7 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Caderno de Estudos do Curso em Conceitos e Instrumentos para o Monitoramento de Programas Brasília, DF: MDS, Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; Secretaria Nacional de Assistência Social, p. 91, 2014. 8 Cruz, M.M. “Avaliação de Programas de Prevenção de DST/AIDS para Jovens: Estudo de Caso numa Organização Governamental e numa Organização Não-Governamental do Município do Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ), 2006. 9 Cassiolato, M.; Gueresi, S. Como elaborar modelo lógico: roteiro para formular programas e organizar avaliação. Brasília: 2010. 10 Vieira-da-Silva, L.M. Avaliação de políticas e programas de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. 11 Chen , T. H. Theory-Driven Evaluations. Beverly Hills: Sage, 1990. 12 Champagne, F. et al. “A análise de implantação”. In: BROUSSELE, A. et al. (orgs.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. 13 Medina, F.G. et al. “Uso de modelos teóricos na avaliação em saúde: aspectos conceituais e operacionais”. In: HARTZ, Z.M. de A.; VIEIRA-DA-SILVA L.M. (org.). Avaliação em saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. Salvador: EDUFBA, 2005. 14 Brandão, D; Magalhães, B. 2014. “Avaliação de impacto”. MOVE SOCIAL. Relatório Anual: Impacto Social. 2013/2014. 15 Silva, R. “Sobre avaliação e desenvolvimento organizacional”. In: Otero, M. Contexto e prática da avaliação de iniciativas sociais no Brasil: temas atuais. São Paulo: Instituto Fonte/Peirópolis, 2012, pp. 43-60. 16 Campos, G.W.S. “Clínica e Saúde Coletiva Compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde”. In: Campos, G.W.S; Minayo, M.C.S; Akerman, M; Drumond Junior, M,; Carvalho, Y.M. (orgs.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2007, pp. 132-153. 17 Brandão, D; Ribeiro, A. “Teorias de mudança”. Move Social. Relatório anual: Impacto social. 2013/2014. 18 Silva, R.R.; Akerman, M.; Furtado, J.P.; Gasparini, M.F.V. Subsídios à Meta Avaliação do PMAQ. In: Akerman, M.; Furtado, J.P. (ORG.) Práticas de avaliação em Saúde no Brasil: diálogos. Porto Alegre: Rede Unida, 2015. p.327-355. 19 Medina, F.G. et al. “Uso de modelos teóricos na avaliação em saúde: aspectos conceituais e operacionais”. In: HARTZ, Z.M. de A.; VIEIRA-DA-SILVA L.M. (org.). Avaliação em saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. Salvador: EDUFBA, 2005. 20 Potvin, L.; Gendron, S; Bilodeau, A. “Três posturas ontológicas concernentes à natureza dos programas de saúde: implicações para a avaliação”. In: Bosi, M.L.M.; Mercado, F.J. Avaliação qualitativa de programas de saúde: enfoques emergentes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. Travessia | Caderno de Experiências 2016 22 1. A superação das desigualdades sociais exige organizações públicas e privadas fortes; 2. Planejamento, avaliação e monitoramento são dispositivos para promover o desenvolvimento organizacional. Avaliação e desenvolvimento organizacional: fortalecendo estratégias e impactos sociais Antonio Ribeiro Madelene Barboza Elis Alquezar A relação entre avaliação e desenvolvimento organizacional é um tema central na atuação da Move. Neste Caderno de Experiências, trazemos foco ao campo da avaliação de estratégias organizacionais, uma prática emergente nos últimos anos. Nossa Teoria de Mudança ergue-se sobre três premissas que sustentam nossa atuação no campo do desenvolvimento social e socioambiental, e dentre as quais duas delas nos inspiram diretamente no presente ensaio: Tais linhas foram construídas a partir de inúmeras experiências da equipe da Move com organizações públicas e privadas no campo de desenvolvimento social e socioambiental, levando-nos a compreender o potencial desses atores para promover e provocar transformações sociais. Ao longo dos anos, observamos como nossas intervenções por meio de planejamento e avaliação apoiaram essas organizações no processo de se tornarem atores fortes, conscientes e estratégicos em suas áreas de atuação. Portanto, as premissas nos servem como guia na busca de realizar a nossa missão de “apoiar organizações públicas e privadas a ampliar e qualificar o impacto social e socioambiental de suas ações”. Afirmamos, por meio delas, o lugar de destaque das organizações públicas ou privadas na execução das mudanças sociais e socioambientais, bem como a urgência em se tratar e estimular o desenvolvimento organizacional. O que entendemos por desenvolvimento organizacional De uso cotidiano há algumas décadas, as expressões desenvolvimento organizacional ou desenvolvimento institucional se constituem a partir de teorias e reflexões variadas advindas dos campos da economia, da ciência política e da sociologia. Nossa visão baseia-se na compreensão de que organizações sociais são sistemas vivos em constante transformação. Compõem- -se de elementos concretos, como pessoas, recursos, estruturas e procedimento, e de elementos abstratos, como ideias, visões, identidade e relações de poder. Juntos, formam a capacidade que a organização possui para seguir o direcionamento que se propõe na busca de realizar sua missão no mundo1. A capacidade organizacional e seu direcionamento são eixos que ora crescem, ora diminuem, ora mudam de direção – o desenvolvimento organizacional está estreitamente ligado à ideia de um processo dinâmico em curso ao longo do tempo. Organizações sociais são entidades permeáveis em constante interação com o mundo por meio dos serviços que prestam para os públicos-alvo por meio de parcerias e intervenções, influenciando e sendo influenciadas pelo contexto e seus acontecimentos. O desenvolvimento de uma organização deve ser compreendido como sua identidade e sua capacidade, e por aquilo que busca realizar no mundo. Como bem define Armani (2011), o desenvolvimento organizacional diz respeito aos “processos e iniciativas que visam assegurar de forma duradoura a realização da missão institucional e fortalecer o posicionamento estratégico de uma determinada organização na sociedade”. Avaliação como parte do ciclo de gestão organizacional Apoiar as organizações a compreender seus caminhos de desenvolvimento e a construir a capacidade de tomar decisões conscientes sobre a direção que devem seguir torna-se então fundamental para garantir intervenções que geram impactos duradouros no campo social. Reconhecemos que o planejamento estratégico, a avaliação e o monitoramento são passos importantes no ciclo de gestão. Eles propiciam que Travessia | Caderno de Experiências 2016 23 a atuação seja coerente com a missão, respeitando as características institucionais e o direcionamento estratégico, e criando formas de acompanhar o que a organização realiza. Também permitem julgar o valor e o mérito das ações e aprender para tomar novas decisões qualificadas. Um dos modelos cíclicos de gestão mais famosos, o PDCA (também conhecido como ciclo de Deming ou ciclo de Shewhart), já aponta há muito tempo o planejamento e a avaliação como elementos centrais em uma sequência gerencial exemplar. Seguindo essa lógica, a avaliação é a etapa onde se produzem informações, análises e aprendizagens capazes de mobilizar debates, orientar a atuação e fortalecer posicionamentos e estratégias organizacionais. Avaliação em nível de estratégias institucionais Mesmo tendo um papel fundamental na promoção de desenvolvimento organizacional, as avaliações no campo social tradicionalmente se empenham em medir resultados e impactos de projetos e programas de forma circunscrita, sem trazer aprendizagens que dialogam com a organização como um todo. Nos últimos anos, porém, percebeu-se nas organizações do campo social a necessidade de compreender os resultados e os impactos da atuação em um nível estratégico institucional. Trata-se de uma demanda por uma avaliação nova e distinta, que não seja somente a “soma” de avaliações programáticas ou de projetos. Perguntas avaliativas feitas por algumas organizações que atendemos têm indicado claramente um pedido de olhar que ultrapassa os programas e as iniciativas isolados. • Que impacto nossa organização tem na Agir Avaliação e desenvolvimento organizacional: fortalecendo estratégias e impactos sociais Avaliar Ciclo PDCA Clássico sociedade? • Em que medida nossas iniciativas se complementam e potencializam resultados? • Qual o valor coletivo do conjunto de iniciativas no alcance de resultados? Estamos aqui a tratar, portanto, do campo da estratégia – conceito que recebeu muitas definições na literatura de desenvolvimento organizacional. Mintzberg et. al., por exemplo, listam não menos de dez escolas de pensamento sobre estratégia em seu livro Safari de Estratégia. Na definição sintética do Patton e Patrizi: “Compreende-se geralmente que estratégia trata sobre para onde uma organização está se direcionando e como pretende chegar lá”. Silva e Brandão, bem complementando, definem estratégia como “[...] um conjunto de escolhas que uma organização é capaz de fazer para garantir ações com legitimidade social e relevância técnico-política, de forma a potencializar sua capacidade de produzir transformações positivas em uma certa realidade socioambiental.” Muitas vezes, no entanto, as estratégias de uma organização não estão claramente explicitadas – compõem-se de um conjunto de elementos como a atuação programática, o posicionamento político, a articulação no campo, a cultura organizacional etc. Nesse sentido, por se tratar de uma combinação de ações e elementos, sua avaliação torna-se um desafio, necessitando de desenhos cuidadosos e capacidades avaliativas institucionais que consigam dar conta de tal complexidade. Em nossa experiência, algumas práticas e ferramentas têm se mostrado úteis. Ferramentas que apoiam avaliação das estratégias institucionais Para realizar avaliações no nível das estratégias é fundamental desenhar um mapa para visualizar esse campo organizacional. Uma ferramenta como a Teoria de Mudança2 permite que elas sejam visualizadas em um encadeamento lógico de ações, resultados e impactos de maneira clara e de fácil compreensão para todos os atores-chave. Ela expressa as relações de causalidade, consequência e impacto entre os elementos e retrata com precisão a complexidade das ações nos campos social e socioambiental. Também explicita os pressupostos e/ou princípios que guiam a organização ao propor sua intervenção no mundo. A Travessia | Caderno de Experiências 2016 24 Avaliação e desenvolvimento organizacional: fortalecendo estratégias e impactos sociais Teoria de Mudança é uma ferramenta de planejamento e de avaliação de grande valia; porém, no processo de avaliação das estratégias organizacionais, é preciso atentar ao risco de limitar a avaliação a focar somente nas estratégias planejadas. Retomando Minztberg, a estratégia deve ser compreendida como aquilo que foi planejado (estratégia pretendida) e também aquilo que surgiu em resposta a desenvolvimentos e mudanças no contexto (estratégia emergente), compondo o que de fato ocorreu (estratégia realizada). Portanto, é necessário desenhar um processo avaliativo capaz de utilizar a Teoria de Mudança em diálogo com a implementação das estratégias previstas na prática. Realizamos recentemente uma avaliação no nível da estratégia organizacional de uma fundação corporativa atuando há 25 anos no Brasil. Para compreender a complexidade e a profundidade dos resultados e impactos gerados pela combinação entre ação programática, apoios específicos a atores e movimentos estratégicos, e o próprio posicionamento e participação ativa da entidade, estruturou-se uma avaliação “de duas vias”. No primeiro eixo foram coletadas evidências de indicadores de resultados gerados a partir de estudos do conjunto de propostas programáticas e políticas institucionais e da Teoria de Mudança da organização. O outro eixo partiu de uma busca ampla nos campos temáticos de atuação da fundação, coletando dados por meio de entrevistas e grupos focais com organizações parceiras e outros atores. Esses dois eixos permitiram uma verificação de resultados conforme as estratégias planejadas, assim como dos resultados das estratégias emergentes. Além disso, foi possível compreender o potencial da Ator Ator Resultados Inputs Atividades/ Estratégias PRODUTOS/ OUTPUTS Impactos Ator Ator Pressupostos Elementos básicos de uma Teoria de Mudança Travessia | Caderno de Experiências 2016 25 Avaliação e desenvolvimento organizacional: fortalecendo estratégias e impactos sociais combinação das estratégias e suas formas de inter-relacionamento na prática, resultando na identificação de um conjunto de drivers que indicam quais fatores e elementos contribuem para os resultados de forma transversal. Uma outra ferramenta de grande importância para uma organização na avaliação de nível estratégico são os Sistemas de Monitoramento e Avaliação Institucionais. Compostos por um conjunto de categorias constitutivas de programas ou áreas de atuação, explicitam indicadores comuns entre eles e que, ao serem monitorados periodicamente, geram informações que podem alimentar processos de avaliação das estratégias institucionais. Reconhece-se que esse tipo de sistema, por trabalhar com indicadores universais, traz o risco de uniformizar a avaliação de programas muito distintos entre si, tornando a compreensão de resultados superficial e pouco relevante. Portanto, é fundamental que os sistemas de monitoramento e avaliação sejam acompanhados pelas equipes técnicas e que seja feita a análise coletiva institucional dos dados para qualificar e validar sua compreensão. Na nossa experiência, as melhores soluções são aquelas que combinam dados dos sistemas institucionais com outras fontes transversais de coleta, tais como estudos de caso e insumos programáticos específicos. Recentemente, também tivemos a oportunidade de trabalhar na avaliação dos resultados decorrentes das doações realizadas por outra fundação brasileira. Nesse caso, foi fundamental a construção de um painel organizador de dados antes monitorados por distintos instrumentos e de maneira desarticulada, para ampliar as reflexões sobre as estratégias e po- sicionamentos organizacionais. Construímos, em um processo participativo com a equipe da entidade, um conjunto de áreas estratégicas representativas dos resultados monitorados até então e orientadoras de novos movimentos. Por meio de um survey, as organizações apoiadas indicaram suas percepções a respeito dos resultados dos projetos dentro das novas áreas, gerando dados que deram à fundação uma visão das partes e do todo, com vistas a encontrar onde estariam as forças da organização. Uma oficina presencial com vinte das organizações apoiadas propiciou aprofundamentos da compreensão sobre os resultados e diálogos que validaram o desenho das áreas estratégicas. O painel final forneceu ao conselho uma visão clara sobre as estratégias de atuação e possibilitou que se avançasse no planejamento estratégico do ciclo seguinte. Embora o sistema de monitoramento institucional em si ainda se encontre em construção, esse produto inicial foi de extrema utilidade para a visão estratégica em nível institucional. Capacidade avaliativa para avaliação das estratégias institucionais Os dois exemplos de práticas e ferramentas descritos anteriormente – Teoria de Mudança e Sistemas de Monitoramento – não efetuam por si mesmos mudanças nem utilizam os resultados para tomar decisões ou melhorar ações e processos. É preciso também promover a capacidade do “pensar avaliativo” dentro da organização. Esse conceito, relativo ao campo de estudos sobre a Capacidade Avaliativa Institucional, foi recentemente definido por Buckley et. al. como um “pensar crítico aplicado Compreendemos que o pensar avaliativo é uma capacidade institucional que vai além do ato de realizar avaliações; trata-se de uma atitude recorrente de reflexão estratégica da equipe, prestando atenção ao desenvolvimento do processo organizacional, seus componentes, estágios e dinâmicas, e buscando enxergar relações entre intervenções, programas, articulações e posicionamentos – complexidades que são uma marca das avaliações em nível estratégico. ao contexto de avaliação, motivado por uma atitude de questionamento e uma crença no valor de evidências, o que envolve: identificar pressupostos, fazer perguntas cuidadosas, buscar compreensão profunda por meio de reflexão e consideração sobre diversas perspectivas e fazendo decisões conscientes em preparo para ação”. Compreendemos que o pensar avaliativo é uma Travessia | Caderno de Experiências 2016 26 Gustavo Valentim Avaliação e desenvolvimento organizacional: fortalecendo estratégias e impactos sociais capacidade institucional que vai além do ato de realizar avaliações; trata-se de uma atitude recorrente de reflexão estratégica da equipe, prestando atenção ao desenvolvimento do processo organizacional, seus componentes, estágios e dinâmicas, e buscando enxergar relações entre intervenções, programas, articulações e posicionamentos – complexidades que são uma marca das avaliações em nível estratégico. O pensar avaliativo é fundamental para conseguir articular avaliação em níveis verticais (programático) e horizontais (transprogramático e estratégico), de maneira a integrar a avaliação de forma contínua no dia a dia da gestão organizacional. Essa capacidade avaliativa institucional, do qual o pensar avaliativo faz parte, é construída por meio de estudos da equipe sobre avaliação, suas teorias, abordagens e técnicas e também pela prática. Os processos participativos de avaliação nos quais os integran- tes da organização contribuem nas diversas etapas são oportunidades muito valiosas para se construir capacidade e facilitar apropriações avaliativas. Para além da equipe, é importante, também, notar outras condições sem as quais as práticas e uso das avaliações não sobrevivem. Necessita-se, por exemplo, assegurar que haja abertura para aprender dentro da organização, com participação, escuta e compromisso das lideranças, além de alocação de tempo e recursos para que sejam instituídos espaços regulares de reflexão e aprendizagem. A viabilidade de sustentar uma cultura avaliativa depende da cultura interna que rege a organização e o contexto externo que constantemente a influencia. De fato, apostar na avaliação como forma de atuar em níveis estratégicos e, ao mesmo tempo, fortalecer a equipe em sua capacidade analítica são, sem dúvida, ações seguras para o desenvolvimento das organizações e o fortalecimento de seus impactos sociais positivos. Esperamos ter trazido neste breve ensaio elementos suficientes à defesa das avaliações de estratégias organizacionais como caminho ao desenvolvimento das instituições e à consequente ampliação dos impactos sociais e socioambientais de suas intervenções individuais e coletivas. Esperamos ter também trazido exemplos úteis de abordagens e práticas com esse perfil, bem como marcado a urgência pela construção de capacidade e pensar avaliativos nas organizações como forma de potencializar reflexões e desenvolvimento a partir de suas próprias equipes. Notas bibliográficas 1 Maior detalhamento sobre esta compreensão de uma organização social pode ser consultado em Silva, A.L.P. Utilizando o planejamento como ferramenta de aprendizagem. São Paulo: Global/Instituto Fonte, 2001. 2 Para maior aprofundamento sobre Teorias de Mudança, veja artigo no Relatório Anual Move 2013-14, <http://conteudo.movesocial.com.br/uploads/9a7b8df5081085a8.pdf>. 3 Outras referencias utilizadas: Armani, D. (Org.) – (2013), Organizações da sociedade civil: protagonismo e sustentabilidade. 1a ed. – Barueri, SP: Instituto C&A. Buckley, J. et. al. (2015), “Defining and teaching evaluative thinking: insights from research on critical thinking”. American Journal of Evaluation 36 (3). Mintzberg, H. et. al. (2000), Safari de estratégia: um roteiro pela selva do planejamento estratégico, Porto Alegre: Bookman. Patton, M.Q., Patrizi, P.A. (2010), “Strategy as the focus for evaluation”. New Directions for Evaluation, 128, 5-28. Silva, R., Brandão, D. (2015), “A potência das avaliações para definir estratégias organizacionais”, Avaliação do investimento social privado: estratégia organizacional, organização Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho, Move, São Paulo: Fundação Santillana. Travessia | Caderno de Experiências 2016 27 Histórias de vida e avaliações de impacto Vanessa Orban Rogério Silva A valiações de impacto são uma demanda cada vez mais comum no campo social, quando há intenção de compreender se as intervenções, como projetos, programas e políticas, estão gerando mudanças significativas. Para além de aferir a entrega de produtos (outputs) o intuito é verificar se houve mudanças efetivas e sustentáveis na vida da população ou grupo beneficiado (long term outcomes). Os modelos de avaliação de impacto tem sido associados a métodos experimentais ou quasi-experimentais1, que utilizam dispositivos estatísticos para comparar os resultados alcançados em diferentes grupos. O uso de métodos experimentais e quasi-experimentais têm suas razões de ser e funcionam em certos contextos e objetos, indiscutivelmente. Contudo, eles nem sempre são viáveis, necessários ou suficientes, tornando-se inadequados em algumas circunstân- cias. As realidades sociais nas quais os projetos e programas ocorrem, bem como as diferentes demandas de compreensão e decisão apresentadas pelos atores torna necessário variar métodos e equilibrar abordagens que sejam capazes de enriquecer compreensões e aprendizagens. Em busca de construir avaliações mais abrangentes em diálogo com os atores, temos associado histórias de vida a estudos de natureza quantitativa. A associação de métodos pode gerar respostas mais precisas e consistentes e melhor iluminar o fenômeno estudado. Nos casos em que se deseja melhor conhecer o contexto social e as expectativas de um certo público-alvo, ou de compreender as marcas de uma intervenção na vida dos participantes, muitas vezes de grande sutileza, o uso de histórias de vida tem demonstrado grande potencial, enriquecendo olhares e favorecendo decisões estratégicas. Este artigo foi escrito com a intenção de demonstrar o potencial de histórias de vidas como técnica de grande valor em estudos de natureza mista. Por que histórias de vida? As histórias de vida são uma “narrativa contada a partir de um ponto de vista carregado de ideologias, culturas, objetivos circunscrita por uma época”2. Toda narrativa implica necessariamente em uma seleção de memórias e um foco definido – a história das ideias, de uma nação ou de um determinado grupo. A História molda formas de pensar e de agir e organiza a maneira como traduzimos para o outro parte daquilo que vivemos e conhecemos. Todos contamos casos sobre fatos variados que nos marcam ao longo da vida. O processo do relato é uma seleção de fatos e memórias, assim como a pesqui- Optar por histórias de vida entre outras técnicas permite conhecer como determinado projeto dialoga e influencia a vida de uma pessoa. Nesse tipo de investigação, interessa saber em que medida os resultados são construídos pelos sujeitos, articulando intervenção, experiências, desejos, potenciais e limites. sa qualitativa e quantitativa também é reflexo de escolhas de dados, indicadores e informações que comporão um quadro analítico. Recontar eventos ou produzir dados permite repensar e reordenar padrões e valores por meio do registro e da difusão de experiências que podem ser diferentes das oficiais. Captar histórias exige rigor metodológico. Optar por histórias de vida, entre outras técnicas, permite conhecer como determinado projeto dialoga e influencia a vida de uma pessoa. Nesse tipo de investigação, interessa saber em que medida os resultados são construídos pelos sujeitos, articulando intervenção, experiências, desejos, potenciais e limites. Entrevistas centradas em reconstruir a trajetória de vida de um sujeito participante em um certo projeto pode trazer respostas importantes para os atores. Travessia | Caderno de Experiências 2016 28 Clesio Sabino Histórias de vida e avaliações de impacto Como construir histórias representativas As histórias com as quais se pretende trabalhar precisam ser representativas e escolhidas com certa intencionalidade. É preciso estar aberto a escutar pessoas por meio das quais seja possível demonstrar o impacto de um dado projeto, programa ou política em sua vida. A principal atividade para captar histórias é a entrevista individual em profundidade, que permite que um pesquisador aproxime-se, escute e compreenda trajetórias, eventos, relações, construções, etc. Mas, entre tantos participantes de um programa, como eleger o sujeito mais adequado para construir uma história de vida? Ainda que qualquer sujeito seja passível de entrevista pela simples defesa de que todos temos uma história, a escolha de informantes-chave nas avaliações tende a recair sobre os sujeitos que representam de modo mais panorâmico as dimensões que se deseja investigar. Dentro de um certo gênero, etnia, faixa etária, inserção comunitária, faixa de renda, participação em um projeto, entre outras variáveis, é importante buscar sujeitos que experimentaram a intervenção, de forma a mirar uma experiência de vida na qual um projeto ou programa tem potencial de resultados. É possível criar situações que ajudem uma narrativa a emergir. Nas histórias construídas de forma coletiva, cada integrante do grupo traz relatos e todos partici- pam da escuta. As rodas de conversa requerem que todos escutem o relato dos outros e escolham um marco importante para a comunidade, tendo como foco o momento comum do grupo e não as narrativas individuais. O ordenamento de uma linha do tempo ajuda a revelar e organizar a trajetória de vida de uma pessoa e descreve as principais referências de sua vida. Numa entrevista individual, ainda que a narrativa tenda a se apresentar de forma mais livre e permitir um saltos temporais na vida do entrevistado, é crucial que o entrevistador esteja atento ao ordenamento cronológico dos eventos, para enxergar marcos, iluminar eventos, preencher lacunas e alcançar constatações. Por isso apostamos que um bom roteiro é capaz de ajudar o entrevistador a conduzir a narrativa, iluminando e aprofundando as questões mais relevantes. De modo geral, algumas questões-chave costumam nortear uma entrevista. Tais perguntas, contudo, só conseguem realizar seu potencial investigativo à medida que inseridas em um fluxo cuidadoso de diálogo, respeitando a intimidade que uma entrevista em profundidade requer. • Quais os principais marcos ou acontecimentos de sua vida? • Por que os considera os mais importantes? • Quais pessoas estão ligadas a estes acontecimentos e por quê? • Quais escolhas você teve que fazer nestes momentos? • Quais circunstâncias e crenças nortearam as escolhas? • Houve momentos de rupturas? Quais? Por que? Em que direção? Travessia | Caderno de Experiências 2016 29 Histórias de vida e avaliações de impacto • Como o “projeto” entrou na sua vida? Quando isto se deu? • Que elementos a participação no “projeto” trouxe para você? • Que importância o “projeto” teve ou adquiriu em sua vida? Por que? Um roteiro de entrevista pode ter diferentes abordagens e as mesmas devem ser combinadas em situações específicas. A abordagem descritiva se configura pelo olhar para os detalhes de um dado momento ou território, de forma a caracterizar um certo contexto histórico ou experiência de vida: como era sua casa, sua rua ou seu bairro naquele momento? Como sua família estava composta? Como era sua escola ou seu trabalho? A abordagem de movimento ajuda a dar continuidade a uma história, iluminando movimentos, mudanças, encadeamentos de eventos, etc. Já a abordagem avaliativa busca provocar momentos de reflexão e avaliação, nas quais se ajuda o sujeito a perceber decisões, a formar juízos sobre os eventos, etc.: o que este evento lhe trouxe? De que maneira você se sentiu com tal descoberta? De que maneira você saiu daquela situação? Ao lado do potencial das histórias de vida, é importante também compreender seus vieses e limitações. Uma história diz respeito à memória de um sujeito, o que implica em alguns desafios: como selecionar fatos tão pontuais de uma vida inteira? Qual a representatividade que determinados acontecimentos têm na trajetória de um indivíduo? O que uma pessoa consegue recordar? Essas são as questões que se apresentam para quem questiona a metodologia, uma vez que diferentes níveis de memória são acessados conforme experiências e momentos da vivência3. Experiência Recentemente realizamos uma avaliação que utilizou histórias de vida para fazer um diagnóstico da situação local e observar quais elementos poderiam colaborar na implantação do novo programa. O estudo apoiou os gestores a melhor compreender o universo social e cultural dos futuros participantes e os elementos essenciais para assegurar diálogo e participação. O respeito, a escuta, a cordialidade e a pessoalidade mostraram-se peças-chave para estabelecer diálogo entre o programa e o público. A avaliação de impacto que estava em curso não dispunha de ferramentas para apreender questões sutis sobre a intervenção, que mostrava-se potente do ponto de vista da geração de renda, mas enfrentava fortes problemas de adesão ao programa. Foram as narrativas que forneceram evidências a respeito dos valores dos grupos locais e que precisaram ser considerados para garantir a permanência dos participantes. Além de instrumento de acompanhamento, as histórias de vida possibilitaram que os próprios beneficiários acessassem a função avaliativa de forma profunda, estimulando o espaço de interlocução entre os atores. Apostamos que as histórias de vida são capazes de garantir um olhar mais abrangente, sensível e me- A avaliação de impacto que estava em curso não dispunha de ferramentas para apreender questões sutis sobre a intervenção, que mostravase potente do ponto de vista da geração de renda, mas enfrentava fortes problemas de adesão ao programa. Foram as narrativas que forneceram evidências a respeito dos valores locais e que precisaram ser considerados para garantir a permanência dos participantes. nos recortado sobre o público-alvo de um projeto, programa ou política. Ao permitirem tais avanços, enriquecem as avaliações de impacto e produzem conhecimento para subsidiar decisões. Notas bibliográficas 1 Para saber mais sobre métodos experimentais e quase-experimentais consulte nota-técnica: http://conteudo.movesocial.com.br/uploads/70b89ef15561a717.pdf 2 Fundação Banco do Brasil. Tecnologia Social da Memória – Guia para comunidades, organizações sociais e instituições organizarem suas histórias. Brasília: Fundação Banco do Brasil, 2005. 3 Plummer, K. “The call of life stories in ethnographic”. Atkinson et al. Handbook of Ethnography. Sage Publications, 2001, pp. 395-406. Travessia | Caderno de Experiências 2016 30 DIRETORES Daniel Brandão ADMINISTRATIVO - FINANCEIRO Janaína Costa Rogério Silva Quem faz a Move ESTAGIÁRIO ASSOCIADOS Rafael Garcia Antonio Ribeiro Bruna Ribeiro Gustavo Valentim Juliana Moraes Madelene Barboza CONSELHO CONSULTIVO Antonio Luiz de Paula e Silva Lucas Pestalozzi Ursula Dias Peres Vanessa Orban Walquiria Tiburcio PESQUISADORES Ana Carolina Vargas Elis Alquezar Agradecemos à Pacto e à Kalo Taxidi pela parceria estratégica que tem nos proporcionado muita aprendizagem. Agradecemos especialmente à Santa Composição, Ask-AR, Mitti Koyama, Notext, Denise Kuperman, Amatraca Design Gráfico, e Volp pelo suporte a nosso trabalho, além de outros vários fornecedores e colaboradores que têm sido essenciais para tornar possível nossas operações. 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