águas para a vida, não para a morte.
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águas para a vida, não para a morte.
ÁGUAS PARA A VIDA, NÃO PARA A MORTE. NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO MOVIMENTO DE ATINGIDOS POR BARRAGENS NO BRASIL Carlos B. Vainer* I. INTRODUÇÃO 1. Estudos de impacto de grandes barragens - destes exigidos pela legislação ambiental brasileira para licenciar grandes empreendimentos ou por agências multilaterais como condição para oferecer seu apoio financeiro – costumam ter um capítulo sobre o “social” ou sobre o chamado “meio ambiente sócio-econômico”. A leitura destes capítulos revela-se experiência extraordinariamente monótona: por mais diferentes que sejam as realidades econômicas, políticas, culturais e sociais das áreas onde as barragens serão implantadas, os estudos se parecem uns com os outros tanto quanto duas gotas das águas que serão represadas. Tal monotonia encontra apoio em uma literatura preocupada antes “em detectar regularidades e generalizar efeitos a partir de estudos feitos em contextos sociais distintos” (Sigaud, 1986) que em entender os processos sociais diferenciados que intervenções vindas de cima engendram em cada caso. Tendo abdicado de questionar ou problematizar a natureza, o sentido e as forças econômicas e políticas que estão à origem dos empreendimentos, invocando um auto-complacente realismo que os toma a priori como inexoráveis e/ou benéficos2, esta “antropologia de barragens” (Sigaud, 1986) contenta-se em produzir sugestões para minimizar ou reparar os impactos – ou, na linguagem da última metodologia em voga, prevenir os riscos (Cernea & McDowell, 2000) – que se abatem sobre as populações. Mas o que parece denunciar o comprometimento ideológico, a falência técnica, e a cegueira operacional dos relatórios (técnicos?) de impacto é que nenhum, absolutamente nenhum, foi, até agora, capaz de prever o surgimento de movimentos de resistência. Ainda hoje, quando os conflitos sociais relacionados a grandes barragens se avolumam, a luta das populações ganha as páginas dos jornais e os movimentos de atingidos comparecem em fóruns internacionais, a impactologia ad hoc dos experts continua sendo incapaz de prever as lutas, a resistência, a organização das populações. Tanto as velhas matrizes de impacto ambiental em que se inspiraram os relatórios de dos anos 80 e 90, quanto as mais recentes avaliações decorrentes do pretensamente inovador “modelo de riscos e reconstrução” de Michael Cernea (Cernea, 1998; Cernea * Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no Workshop “Social Movements in the South”, promovido pelo Center for International Affairs, Harvard University, 16-18/05/2002. 2 “Reassentamentos involuntários têm sido um companheiro de viagem do desenvolvimento através da história e têm sido indelevelmente inscritos na evolução tanto dos países industriais quanto dos países em desenvolvimento” (World Bank/Environment Department, 1994, p. i). “Deslocamentos forçados resultam da necessidade de construir infraestrutura para novas indústrias, irrigação, autoestradas ou geração de energia, ou para o desenvolvimento urbano com hospitais, escolas e aeroportos. Estes projetos são indiscutivelmente necessários. Eles melhoram as vidas de muitas pessoas, criam empregos e melhores serviços” (Cernea & McDowell, 2000, p. 11) & Cristopher, 2000), expert senior em reassentamentos involuntários3 do Banco Mundial, são absolutamente omissos acerca dos movimentos existentes e silenciosos acerca da possibilidade de resistências organizadas. Tais insuficiências somente podem ser explicados pela existência de um espécie de ponto cego no instrumental teórico-conceitual que, por assim dizer, ambientaliza, ou melhor, naturaliza as populações, representando-as, ipso facto, como incapazes de se constituírem em sujeitos aptos a se conceberem enquanto portadores de direitos e interesses, e, em consequência, a se constituírem em atores em condições de operar autonomamente na transformação do ambiente de implantação das barragens em arena de conflito social e político. Verifica-se, assim, “uma curiosa inversão: as populações humanas (o “meio sócio-econômico”) atingidas pelo projeto de engenharia passaram a fazer parte do ambiente” (Castro e Andrade, 1988, p.8). Se todo ambiente, como chamam a atenção estes autores, é “ambiente de um sujeito”, na impactologia oficial, ciência aplicada cujo fundamento e objetivo é a legitimação dos grandes projetos, “o lugar de sujeito do ambiente é deslocado para a obra de engenharia. O reservatório e as barragens são o ambientado” (Castro e Andrade, 1988, p.10). Em consequência, “os setores sociais atingidos pela mega-obra são recuados para um lugar de fundo, de “ambiente, sobre o qual e contra o qual se desenha uma forma: a obra. As populações humanas são assimiladas a uma natureza, e a obra recolhe em si os valores de sujeitos” (Castro e Andrade, 1988, p.10). Naturalizadas, reificadas, destituídas de subjetividade e, consequentemente, impossibilitadas de se constituírem em sujeitos, as populações não podem ser pensadas como agentes sociais coletivos, reivindicantes, politicamente operantes. O silêncio sobre os movimentos existentes e a impossibilidade de prever o surgimento de organizações de resistência4 expressam, assim, o próprio limite de uma antropologia e de uma sociologia práticas, amesquinhadas porque reduzidas à categoria de ciências aplicadas … à consultoria ambiental. O silêncio ideologicamente fundado e tecnicamente produzido não resiste, porém, aos processos históricos, que apontam para a emergência, generalização e fortalecimento dos movimentos de resistência contra a implantação de grandes barragens. No Brasil, sua história já alcança 20 anos. Surgiram ao final dos anos 70 e, deram origem, nos anos 90, a uma organização nacional com crescente ação internacional. 3 O Banco Mundial, o BID e demais agências internacionais, assim como organismos nacionais, utlizam o eufemismo reassentamento involuntário para designar os processos de deslocamento compulsório que, na verdade, constituem o primeiro e principal efeito social da implantação de grandes lagos aritificiais. O reassentamento, como é sabido, nem sempre ocorre, e quando ocorre, tem sido muitas vezes o resultado da pressão dos movimentos sociais para minimizar as perdas resultantes do deslocamento forçado. A luta simbólica que se trava a partir e em torno à nomeação dos processos sociais involucrados na implantação de grandes barragens oferece, por si só, material suficientemente para um trabalho específico, mas que escapa ao escopo deste trabalho. Algumas contribuições para esta análise encontram-se em Castro. E Andrade, 1988; Sigaud, 1986, s.d. e 1988; Vainer, 1996. 4 No limite, a perspectiva que informa os estudos oficiais consegue pensar as resistências como resistências (culturais) à mudança, na tradição de uma sociologia funcionalista do desenvolvimento, muito em voga nos anos 50 e 60, e que, no fundo, acusava as populações dos países desenvolvidos de irracionais, posto que resistentes à racionalidade imanente à acumulação capitalista. O resgate da história deste movimento coloca desafios que ultrapassam de muito as possibilidades deste pequeno trabalho. Em primeiro lugar, porque não dispusemos dos meios e tempo para sistematizar o abundante material empírico necessário para tal empreendimento. Em segundo lugar, porque as informações disponíveis na bibliografia – artigos, relatórios de pesqsuisa, e, sobretudo, dissertações de mestrado e teses de doutorado – constituem, quase sempre, o resultado de estudos de caso, em que se examinam impactos sociais e ambientais e conflitos resultantes da implantação de barragens, particularmente para a geração hidrelétrica. Por outro lado, não se encontra na literatura qualquer trabalho que possa servir de referência para uma abordagem do movimento nacional. Tais carências se compreendem quando se tem em vista que apenas 13 anos nos separam do I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens, reunido em Goiânia, em abril de 1989. Há apenas 11 anos reuniu-se o I Congresso Nacional de Atingidos por Barragens, quando se deliberou constituir o MAB – Movimento (Nacional) de Atingidos por Barragens. Para além dos desafios de ordem documental e operacional, há pelo menos um desafio conceitual e medológico que parece relevante enunciar, mesmo que apenas como advertência para as reservas e precauções com que os leitores deverão tratar este texto. Em poucas palavras, o desafio poderia ser formulado da seguinte maneira: até que ponto é pertinente tratar o(s) movimento(s) de atingidos de barragens como um único movimento? É possível falar-se de uma história, diante de processo marcado por uma infinidade de movimentos surgidos nas mais diversas bacias e vales, nas mais variadas conjunturas e em contextos econômicos, sociais e políticos tão diferentes? Não poderia a escolha da escala nacional obscurecer a multiplicidade de culturas e valores políticos que constituem, em última instância, uma das originalidades deste(s) movimento(s)? Após a crítica aos impactologistas oficiais, sua vocação para desconhecerem os diferentes contextos e o fracasso de sua tentativa de produzir uma espécie de teoria geral dos impactos, não se estaria incorrendo no mesmo equívoco ao buscar produzir uma história do movimento de atingidos? Não se estaria reduzindo a uma única história e a um único conjunto de características movimentos cujas histórias e particularidades apontam antes para o diverso? A solução adequada para o impasse assim criado seria a elaboração de uma narrativa que percorresse, de modo paralelo, simultâneo e, ao mesmo tempo, relacional, as múltiplas trajetórias dos inúmeros movimentos particulares e a trajetória do movimento nacional. As dificuldades para assumir tal proposta não são poucas, tanto mais que uma lista recente produzida pela Executiva Nacional do MAB, por solicitação do autor, alinhou nada menos de 63 barragens nas quais o Movimento Nacional afirma estar atuando ou ter atuado5. Um resgate da(s) história(s) do(s) movimento(s) de atingidos por barragens no Brasil deveria, pois, de alguma maneira, recuperar e articular as trajetórias destes 63 5 Note-se que este número encontra-se aquém do número total de movimentos de resistência, pois há vários (quantos?) que se desenvolvem e desenvolveram à margem do MAB. Pesquisa realizada sobre os projetos de implantação de barragens hidrelétricas no Vale do Ribeira, atingindo áreas dos Estados de São Paulo e Paraná, permitiram tomar conhecimento de uma curiosa situação: do lado paulista se estruturou um movimento – Movimento dos Ameaçados pelas Barragens do Vale do Ribeira (MOAB) – com estreita vinculação com o MAB nacional, inclusive com um seu representante na Executiva Nacional; do lado do Paraná surgiu um movimento, sem qualquer vínculo com o MAB, que, embora mais passageiro e menos orgânico, atuou de forma vigorosa no período de audiências públicas do processo de licenciamento ambiental (Lemos, 1999). movimentos locais e, de maneira combinada, retraçar a história do movimento nacional. Mais que isso: seria necessário, de um lado, capturar os complexos processos através dos quais os movimentos locais e regionais, nem sempre de maneira harmoniosa, caminharam em direção à constituição do MAB nacional; de outro lado, haveria que examinar a forma como os movimentos locais/regionais informam a ação do movimento nacional e vice-versa. Certamente este é um projeto que ultrapassa largamente o escopo do presente trabalho, cuja pretensão, bem mais modesta, é a de fornecer uma visão geral das lutas e organizações dos atingidos por barragens no Brasil. Nesta direção, privilegiou-se a perspectiva nacional, embora tal não configure nenhuma opção preferencial por tal escala. Assim, na próxima sessão, de maneira resumida, são apresentadas informações sobre as origens do movimento nacional, focalizando-se os principais movimentos regionais e a própria criação do MAB. A terceira sessão é consagrada à evolução do MAB nos anos 90 e aos principais problemas políticos enfrentados. A quarta e última sessão enfoca alguns dos desafios a que o MAB está confrontado neste início de década. II. AS ORIGENS. 2.1. Itaipu: o Movimento Justiça e Terra6. Existem algumas referências acerca da existência de manifestações de resistência à construção de barragens nos anos 40 e 50 (Soares, 1998), mas é inquestionável que os sinais mais fortes de movimentos coletivos organizados datam do final dos anos 70. "Em setembro de 1978, o Pastor Kurt Hatje, coordenador interino da CPT <Comissão Pastoral da Terra> e o Pe. Valentim Dall Pozzo, de Santa Helena, distribuem cartas “aos padres e pastores que têm comunidades à margem do rio Paraná, cujos membros terão que sair por causa das águas de Itaipu”. E anexam a esta outra carta para ser entregue aos agricultores convidando-os para participarem de uma reunião no dia 16.10.78, no pátio da Igreja Católica de Santa Helena” (Germani, 1982:24)7 16 de outubro de 1978: convocados pela Comissão Pastoral da Terra, reúnem-se no pátio da Igreja de Santa Helena 1.500 pequenos agricultores cujas terras serão inundadas pela barragem de Itaipu. Eles elaboram um abaixo-assinado, encaminhado ao Presidente General Geisel, em que listam 23 problemas enfrentados pelos agricultores ribeirinhos a serem deslocados pelo lago de Itaipu, entre os quais se destacavam: falta de informação e consulta prévia, impactos ecológicos, situação dramática de cidades e vilas afetadas mas não indenizadas, trágica realidade a que seriam lançados os agricultores paraguaios e, sobretudo, preço irrisório das indenizações oferecidas. Religiosos da Igreja Católica e da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, que atuavam conjuntamente na Comissão Pastoral da Terra, desempenharão, em 6 As referências aqui utilizadas sobre Itaipu e sobre o Movimento Justiça e Terra foram Germani, 1982 e Soares, 2001 7 A Usina Hidrelétrica de Itaipu, maior usina hidrelétrica do mundo, com 12.600 Mw de potência instalada, e pertence à empresa Itaipu Binacional, resultante de um tratado firmado entre o Brasil e o Paraguai. Seu reservatório ocupa aproximadamente 1.350 km2, e sua implantação exigiu o deslocamento de 42.444 pessoas, das quais 38.445 na área rural. várias ocasiões, o papel de mediadores entre os agricultores e as autoridades, seguindo um padrão bastante usual nestes cinzentos tempos de ditadura militar. A CPT e, logo, também, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, passam a pressionar o governo, através de denúncias, inclusive através da imprensa, para que negocie melhores condições de indenização. Germani relata que, paralelamente, e de forma independente da ação da CPT, agricultores do município de Marechal Cândido Rondon contratam os serviços de 3 advogados pra constentar os valores oferecidos pela empresa8. Mobilizamse, igualmente, sindicatos de trabalhadores rurais, na esteira do Sindicato de Trabalhadores Rurais de São Miguel de Itaipu, que buscava defender os direitos à indenização dos colonos assentados no Projeto Integrado de Colonização de Ocoí (PICOcoí). A imprensa local e regional registra, de várias maneiras, as lamentações e frustrações da população local pelos impactos ambientais e, sobretudo, no município de Guaíra, pela perda que representará o desaparecimento dos Saltos de Sete Quedas (Soares, 2001). A crescente mobilização conduz à II Assembléia de Santa Helena, em 7 de abril de 1979. Com a presença de representantes dos sindicatos, federação estadual (FETAEP) e confederação nacional de trabalhadores rurais (CONTAG), CPT, Comissão Pontifícia Justiça e Paz, bispos de várias dioceses paranaenses (inclusive de Curitiba), parlamentares estaduais e federais, mais de 2 mil agricultores reuniram-se no estádio esportivo da cidade. Nesta assembléia se constitui a Comissão de Coordenação e Representação, integrada por representantes dos sindicatos, da CPT e por dois agricultores de cada município atingido. Sem qualquer preocupação arqueológica, talvez seja possível reconhecer nesta Comissão a primeira experiência de organização de atingidos por barragens. As peripécias por que passou este movimento são muito similares àquelas vividas por muitos dos movimentos reivindicatórios de base popular à época: manifestos, abaixo-assinados, forte presença dos mediadores das Igrejas9, reuniões e assembléias que conscientizam número crescente de agricultores de seus direitos e da possibilidade de organizar-se e de lutar. Se durante algum tempo a intransigência da empresa funcionara como eficaz mecanismo de pressão para que os agricultores aceitassem acordos extorsivos, a partir do momento em que se estrutura o movimento, a mesma intransigência passa a provocar o efeito contrário: indignação, ampliação e radicalização da resistência. No dia 11 de julho de 1980, o desespero de 6 mil famílias rurais e mil famílias urbanas, cuja situação continuava sem solução às vésperas do enchimento do lago, leva as lideranças a decidirem sigilosamente pela organização de um ato público. Em 14 de 8 Segundo Germani, este grupo não era muito expressivo e estava sob a liderança de políticos ligados à Aliança Renovadora Nacional – ARENA -, partido dos militares no poder. 9 Depoimento exemplar da perspectiva de muitos dos religiosos progressistas que na segunda metade dos anos 70 e no início dos anos 80 desempenharão papel central na organização de base de movimentos populares em todo o país, e particularmente no campo, é o do Secretário da CPT-Paraná, Pastor Werner Guchs “O nosso interesse não é controlar um movimento dos agricultores, embora os estimulemos. Nosso objetivo é despertá-los para a solução de seus próprios problemas. Apenas no final do processo de conscientização, nós entramos com nossa participação física, que é dar voz às reivindicações por eles apresentadas <…> Não entendemos como alguém que vai em frente, ou que puxa o barco, ou que, como herói, vai lutar em lugar do povo. Nós entendemos que todos devem acompanhar esse trabalho, pois se trata de um trabalho coletivo, um trabalho de equipe. E nós estamos aí para dar ânimo ao agricultor para que ele mesmo faça sua reivindicação, mas de forma pacífica. Estamos preparados para uma caminhada muito longa” (Jornal “Rondon-Hoje, 5/12/78; apud Germani, p. 27). julho, os agricultores cercam o escritório da empresa em Santa Helena, cantam o hino nacional e uma liderança lê o comunicado “Ao povo, ao Governo e à Itaipu”, reinvidicando indenização imediata com reajuste de 100%, reassentamento no Estado do Paraná, indenização das redes elétricas. Durante vários dias os expropriados de Itaipu vão receber a solidariedade de várias entidades, religiosas e leigas, parlamentares, movmentos sociais, com expressiva repercussão na imprensa. Viviam-se os últimos momentos da ditadura militar, avançava a luta por eleições diretas. Nascia o Movimento Justiça e Terra. Nascia a luta organizada dos atingidos por barragens. 2.2. Bacia do Uruguai – a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens10. Itaipu não é importante apenas por ser a maior usina hidrelétrica do mundo, nem porque, por esta razão, se transformou em símbolo da engenharia nacional e da potência do estado, orgulho maior do Setor Elétrico. Itaipu não é importante apenas porque que foi onde, de certa maneira, teve início a luta dos atingidos de barragens no Brasil. Itaipu é importante também porque o desprezo com que foram tratados os atingidos e seus direitos tornaram-se exemplares. Quando, em 1979, correm na região do Alto Rio Uruguai as primeiras notícias de que que serão construídas 25 usinas na bacia, 3 das quais binacionais, atingindo os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, expulsando de 200.000 a 300.000 pessoas, o exemplo dramático dos expropriados de Itaipu será evocado por aqueles que tomam a iniciativa de informar, organizar e mobilizar os agricultores11. A organização e luta de resistência que se iniciam então no Alto Uruguai, de um lado, parecem seguir trajetória similar àquela experimentada em Itaipu: ação de religiosos e militantes da CPT na mobilização, presença dos sindicatos de trabalhadores rurais mais combativos, importância fundamental da informação, organização dos atingidos nas comunidades e municípios. Há, porém, uma grande e decisiva novidade: pela primeira vez as populações ameaçadas de deslocamento começam a se mobilizar e organizar antes mesmo que tenha início a obra12. Em 24 de abril de 1979, 350 agricultores reunidos em Concórdia, Santa Cataria, criam a Comissão Regional de Barragens, integrada por religiosos, sindicalistas e um professor da FAPES. Tratava-se de obter junto à Eletrosul maiores informações sobre o projeto e divulgá-las amplamente, advertindo os atingidos acerca da ameaça que pairava sobre suas vidas. Aos poucos a Comissão Regional de Atingidos por Barragens do Alto Uruguai – CRAB – vai-se dar uma organização que cobrirá o conjunto da área ameaçada, dividindo-se em 5 regiões. Ao longo do tempo, cresce o número de Comissões Locais ou de Linha (Colonial), base de uma estrutura organizacional integrada ainda por comissões municipais e comissões regionais, estas últimas enviando representantes para 10 Além de seu conhecimento pessoal do processo, o autor recorreu aos seguintes trabalhos: Moraes, 1996, Sigaud, 1986; Medeiros, 1989; Grzybowski, 1987; Vainer, 1990. 11 Além do triste exemplo de Itaipu, também é mencionada na região a dramática experiência dos “afogados de Passo Real”, barragem de menor porte construída na região. 12 Neste trabalho inicial de informação e organização, desempenharam papel relevante, além de setores progressistas da Igreja Católica e da IECLB, professores da Fundação Alto Uruguai de Pesquisa e Ensino Superior (FAPES), de Erexim, instituição de ensino superior com atuação regional. Segundo Moraes, foi a “missão de alerta” junto às comunidades a que se lançaram os agentes de pastorais e professores que “deu ao Movimento sua marca diferenciadora: o fato de ter se organizado antes mesmo do anúncio oficial do projeto” (Moraes, 1996:139) uma comissão geral, cuja Comissão Executiva constituirá a direção do movimento. Assembléias gerais que se reúnem a cada 3 anos ou em situações excepcionais vão completar a estrutura do movimento13. As dimensões do projeto, a densidade demográfica, extensão e importância econômica da área a ser inundada acabam inquietando, inclusive, outros segmentos da sociedade regional: prefeitos e cooperativas não apenas se mobilizam como, em alguns casos, tentam assumir a liderança do processo reivindicatório e legitimar-se como representantes da região na interlocução com a a Eletrosul, empresa responsável pelo projeto. Em fevereiro de 1983, em Carlos Gomes, distrito dos mais combativos na luta contra a barragem de Machadinho, 20 mil pessoas participam da Romaria da Terra, cujo tema foi “Águas para vida, não para a morte”, dístico que 15 anos depois se transformará em palavra-de-ordem do movimento internacional contra barragens. Neste mesmo ano, expressando a repercussão social do projeto e da resistência, a Comissão Especial de Barragens, instalada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul recomenda à Eletrosul um redesenho do projeto. O ambiente político, em geral, parece favorável ao avanço das lutas e reivindicações populares. Desde o final da década de 70 acelera-se a crise da ditadura militar: no ocaso do regime, seus planos e ações são crescentemente vistos como ilegítimos; cresce a luta política por eleições diretas. Os movimentos populares em ascenso constituem, simultaneamente, reflexo e motor deste processo. As lutas e organizações no campo desempenham papel relevante. Como observou Medeiros: “No início dos anos 80, a luta pela terra na sua forma recorrente em diversos momentos da história do pais, ou seja, envolvendo posseiros e grileiros, rendeiros, foreiros ou parceiros e proprietários de terra e, mais modernamente, posseiros e beneficiários de grandes licitações de terra feitas durante o regime militar, se intensificou. Mas a ela agregaram-se novos personagens, gerados na expulsão de segingueiros nativos, para transformá-los em pastagens, na construção de barragens para usinas hidrelétricas ou pela exclusão a que milhares de trabalhadors agrícolas foram condenados frente ao rápido avanço da modernização do campo. Foi nesse caldo de cultura que novas formas de luta surgiram e que a demanda por reforma agrária se intensificou” (Medeiros, 1989 – ênfase C.B.V). Neste contexto, o abaixo-assinado “Não às Barragens”, com mais de um milhão de assinaturas recolhidas pela CRAB, é entregue, em 1985, ao Ministro Extraordinário 13 Esta organização é a que predominará na segunda metade dos anos 80. Com a estagnação econômica, que se aprofunda na segunda metade dos anos 80 e início dos 90, desacelera-se a execução do plano de expansão do Setor Elétrico e, em consequência, o plano de construção de barragens na Bacia do Rio Uruguai. Do ponto de vista do movimento, a consequência será uma progressiva desmobilização e desestruturação de muitas das organizações de base, restringindo-se o movimento quase que apenas às barragens de Itá e Machadinho, as duas primeiras usinas do cronograma da Eletrosul. Por outro lado, com a constituição dos primeiros reassentamentos dos deslocados pela barragem de Itá, a representação dos reassentados também se fará presente da CRAB. Houve, ao longo do tempo, várias reestruturações, fundindo ou eliminando regiões. As comissões por comunidade ou linhas, após um largo período de relativa desmobilização e desestruturação das bases, estão sendo substituídas, como unidade organizativa de base, pelos grupos de base, reunindo de 5 a 10 famílias. Mais adiante esta forma de organização voltará ser referida e examinada. de Assuntos Fundiários. Após ter timidamente pedido, a exemplo do movimento Justiça e Terra, “indenizações justas”, a CRAB havia dado prioridade à luta por “terra por terra”, enfatizando a necessidade de reassentar os colonos compulsoriamente deslocados. Agora, era o confronto aberto, a luta contra a construção das barragens: “Terras Sim, Barragens Não” A radicalização do movimento parece ter tido um duplo resultado. De um lado, criava, de fato, obstáculos políticos complexos para a execução do projeto. É bom destacar, deste ponto de vista, que muitas e eficazes foram as iniciativas de “ação direta”: marcos colocados pela empresa eram arrancados, técnicos da Eletrosul ou de suas contratadas em trabalhos de campo eram submetidos a sequestros relâmpagos. Do outro lado, porém, parcela não desprezível dos atingidos, descrentes da possibilidade efetiva de impedir a execução do projeto, tendiam a hesitar diante de forte propaganda oficial que difundia na região estar a CRAB impedindo a negociação entre a empresa e os atingidos. Neste momento não foram poucos os colonos que aceitaram a negociação individual com a empresa14, do que muitos se arrependeriam mais tarde. Esta situação parece ter propiciado as condições para que tanto a Eletrosul quanto a CRAB caminhassem em direção ao acordo de 1987. Do ponto de vista das lideranças da CRAB o acordo significava, de fato, o reconhecimento e aceitação tácita da construção de barragens na bacia do rio Uruguai, pelo menos das barragens de Itá e Machadinho. Do ponto de vista da Eletrosul, e do Setor Elétrico brasileiro, era o reconhecimento da CRAB como representante legítimo dos atingidos e o compromisso com uma série de condições para seguir adiante com o projeto. Dentre estas, as mais importantes eram: fim das negociações individuais e aceitação de que todas as negociações seriam feitas, comunidade por comunidade, com a presença de representantes da CRAB; atrelamento do cronograma das obras ao cronograma de negociação e solução dos problemas sociais; oferta a todos os atingidos, inclusive aos não proprietários, da possibilidade de reassentamento coletivo15. A história da luta após o acordo histórico de 1987 pode ser descrita em poucas palavras: luta pelo cumprimento do acordo. A crise econômica enfrentada pelo país, com seus reflexos no Setor Elétrico, provocaram a suspensão dos movimentos da Eletrosul em direção à realização das demais barragens. Mesmo no caso de Machadinho, que encabeçava o cronograma de obras do Plano 2010, a paralisação é aparentemente total; em Itá, as obras prosseguem lentamente, com vários períodos de interrupção. O Movimento, evidentemente, reflete estas peripécias, concentrando seus esforços na mobilização dos atingidos de Itá pelo cumprimento do acordo de 1987 e na organização dos reassentados. 2.3. Itaparica – O Pólo Sindical do Médio São Francisco. 14 Esta avaliação aplica-se muito mais aos atingidos pela barragem de Itá que aos atingidos pela barragem de Machadinho. Sinteticamente pode-se dizer que, por razões que anda precisam ser melhor analisadas, a resistência e organização foi bastante mais forte em Machadinho que em Itá, favorecendo avanço mais rápido das obras neste segundo empreendimento. Assim, em 1987, quase toda a cidade de nova Itá estava construída, enquanto as obras relativas a Machadinho encontravam-se na estaca zero. Embora originalmente prevista como a primeira obra a ser realizada na bacia, Machadinho foi levada a cabo apenas na segunda metade do anos 90, e segundo um desenho que reduziu em cerca de 50% o número de famílias a serem deslocadas. Acerca das estratégias de negociação coletiva, do movimento, e de negociação individual, dos empreendedores, ver Vainer, 1990 e 1997. No sul do país os relatos acerca dos dramas enfrentados pelos expropriados de Itaipu e os afogados de Porto Real funcionaram como advertência do que poderia vir a ocorrer na bacia do rio Uruguai se os atingidos não se organizassem; no Vale do São Francisco, no Nordeste, papel similar foi desempenhado pela construção, no início dos anos 70, das barragens de Moxotó e, sobretudo, Sobradinho, feitas sem qualquer consideração para os problemas sociais. O caso de Sobradinho16 foi particularmente trágico, pois sua implantação implicou no alagamento de 4.214 km2, na expropriação de 26 000 propriedades e no deslocamento compulsório de cerca de 72 000 pessoas. As obras se iniciaram no auge da ditadura militar, em 1973 e o lago começou a encher em 1977. Prevista inicialmente para regularizar a vazão do São Francisco, um ano após o começo das obras é decidido que deveria igualmente produzir energia. As obras civis foram deflagradas sem que houvesse qualquer plano de reassentamento, e apenas em 1975 a população é abordada para escolher entre as duas alternativas seguintes: receber uma passagem para ir para São Paulo ou reassentamento no Projeto de Serra de Ramalho, em região seca, a 700 km de distância17. Embora seja geralmente reconhecido que em Sobradinho não houve resistência ou movimento organizados dos atingidos, há referências a ações de sindicatos e da CPT na defesa dos agricultores deslocados. A principal forma de resistência, porém, parece ter sido a luta dos deslocados pelo acesso à água, expressa no abandono dos reassentamentos implantados em áreas distantes para ocupar áreas na beira do lago Também significativa foi a luta para ocupar terras de vazante e, em alguns casos, a organização coletiva para conquistar a implantação de sistemas de irrigação (Sigaud, Martins-Costa & Daou, 1987)18. O fato é que mais ou menos na época em que a CHESF fechava as comportas de Sobradinho, iniciavam-se as obras da barragem de Itaparica, inundando uma área de 834 km2 e expulsando 40.000 pessoas. Nos termos de Fulgêncio Silva, liderança da luta em Itaparica e cordelista (poeta popular), assassinado em 199919: “Desde o ano de setenta e seis Que a gente iniciou Nossa organização De todo trabalhador Para não perder as terras Que a gente sempre plantou Isso a gente iniciou Quando se ouviu falar Que essa empresa CHESF 15 O acordo é extenso e detalhado, garantindo aos atingidos o direito de participar dos processos de avaliação das terras e benfeitorias, da escolha das terras para reassentamento, etc. 16 Sobre Sobradinho, as referências aqui utilizadas foram: Duqué, 1984; Sigaud, 1986; Sigaud, MartinsCosta & Daou, 1987; Takfagi, 1994. 17 Aqui a referência é a publicação resultante do 10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens. Terras Sim, Barragens Não. 18 Exemplar, neste caso, “a organização dos camponeses de Itapera para a construção de uma canal de irrigacão que transformou 38 lotes de sequeiro em lotes de borda” <não dependentes exclusivamente da chuva - C.B.V.> (Sigaud, Martins-Costa & Daou, 1987:240). 19 As investigações sobre a morte de Fulgêncio sugerem que foi morto por quadrilhas que fazem o cultivo de maconha na região. Aqui ia começar A construção de uma barragem Pra poder nos afogar” (Fulgêncio Batista; apud 10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens: 17). Apesar dos inspirados versos de Fulgêncio, as informações convergem para indicar que apenas em 1979 lideranças de sindicatos rurais começam a promover reuniões nos municípios. Invocando a trágica situação dos atingidos pela barragem de Sobradinho, muitos deles relocados na caatinga semi-árida, o movimento nascente se concentra nas seguintes reivindicações: terra por terra na margem do lago, água nas casas e nos lotes, indenizações justas das benfeitorias. Em agosto de 1979 ocorre a primeira concentração de trabalhadores rurais, em Petrolândia, Pernambuco, e, neste mesmo ano, sindicatos rurais de vários municípios atingidos constituem uma espécie de coalizão sindical, sob o nome de Pólo Sindical de Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco. Vale a pena destacar o fato de que, contrariamente ao que havia acontecido no sul do país (Itaipu e Bacia do Uruguai), não se constitui aqui uma forma de organização específica dos atingidos, mas uma articulação intersindical para levar adiante sua luta20. A segunda concentração, em janeiro de 1980, reuniu mais de 5.000 pessoas, em Petrolândia. As reuniões, mobilizações e atos públicos se repetem, em alguns casos com intervenção violenta da polícia. Em 1984, os sindicatos, com apoio de técnicos, elaboram um documento - Diretrizes Básicas para o Reassentamento – em que reiteram e detalham antigas reivindicações, introduzindo algumas novas, como, por exemplo: lotes de 25 hectares dos quais 6 irrigados, irrigação por aspersão, administração do projeto pelos trabalhadores, melhor escolha das terras, estradas. Mas, “a CHESF só conversava”, segundo os relatos. A falta de resposta às reivindicações e o atraso do cronograma social em relação ao cronograma das obras civis aumentam a angústia e provocam a ampliação e radicalização do movimento. Reuniões com ministros em Brasília e com os governadores da Bahia, em Salvador, e de Pernambuco, em Recife, não produzem respostas concretas. Em outubro de 1985, 6 mil manifestantes ocupam o canteiro de obras. A CHESF continua rejeitando as principais reivindicações e, em 1986, anuncia o fechamento das comportas para 1987. Em 10 de dezembro de 1986 os atingidos voltam a ocupar o canteiro. É um ato de grande repercussão regional e, mesmo, nacional. A solidariedade de religiosos, entidades sindicais, organizações populares, ONGs e parlamentares é expressiva. As obras são paralisadas até que um acordo seja firmado: terra por terra, 2,5 salários mínimos até o início da produção, participação dos trabalhadores na compra de terras e na administração do reassentamento. Como no caso de Itá e Machadinho, a conquista do acordo não deu por encerrada a luta: “Os trabalhadores rurais venceram uma etapa, mas muitos problemas continuam a surgir e a CHESF não cumpre o que foi acordado. Assim, a 20 A experiência é, no entanto, bastante inovadora, superando as tradicionais fronteiras que separam as organizações sindicais, uma vez que o Pólo Sindical foi constituído não apenas por sindicatos rurais de vários municípios mas também de dois diferentes estados – Pernambuco e Bahia. luta continua, pelo cumprimento do Acordo, que foi uma conquistas dos trabalhadores rurais atingidos pela UHE Itaparica” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens: 19)21. 2.4. Tucuruí. Iniciada em 1975, a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, deu origem a um reservatório de 2.830 Km2, inundando vários povoados e deslocando mais de 5.000 familias. Sem quaisquer informações acerca do projeto, em 1978 as famílias a serem deslocadas começaram a ser cadastradas para fins de indenização pela Eletronorte, empresa responsável pela obra, com a advertência de que qualquer benfeitoria ou plantação feita a partir de então não daria direito a qualquer ressarcimento. Os agricultores eram igualmente informados de que seriam reassentados, com boas moradias e justas indenizações. Em 1981 a empresa dava por concluídas as indenizações e oferecia uma pequena ajuda para aqueles atingidos que optassem por abandonar a área por conta própria. Os poucos reassentados, no Loteamento Rio Moju, enfrentavam uma realidade bem distinta do que havia sido prometido: lotes de 10 alqueires (inferiores ao módulo regional), terras de péssima qualidade, falta de água, necessidade de construírem eles mesmos suas casas. Para agravar a situação, a tranferência havia sido feita no período das chuvas, quando é impossível fazer a derrubada para dar início às roças. Como de hábito, as indenizações pelas culturas permanentes e outras benfeitorias haviam sido irrisórias, seguindo uma tabela que não havia sido objeto de qualquer negociação. “O desespero dos vazanteiros e colonos crescia à medida em que se viam sem ter condições de sair da área que ia ser inundada. Estavam sem terra, sem casa, sem dinheiro para reiniciar a vida em outro local” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens: 10). No final de 1981, constitui-se, sempre com o apoio de sindicatos de trabalhadores rurais, o Movimento dos Expropriados pela Barragem de Tucuruí, que encaminha à ELETRONORTE e outras autoridades governamentais suas denúncias e reivindicações. Em setembro de 1982, 400 pessoas acampam por 3 dias em frente ao escritório da empresa, na cidade de Tucuruí. Suas reivindicações: terra por terra (lotes de 21 alqueires), vila por vila, casa por casa, indenizações justas e ressarcimento dos prejuízos. Em abril de 1983, novo acampamento reúne 2.000 pessoas. A ELETRONORTE aceita abrir negociações e uma Comissão Representativa dos Expropriados de Tucuruí vai a Brasília dialogar com a presidência da empresa. O acampamento é mantido até o retorno da Comissão, com a notícia de que a ELETRONORTE se comprometera a relocar todos em lotes de 100 hectares, pagar indenizações justas e ressarcir os prejuízos pelo tempo em que ficaram proibidos de plantar. 21 O descumprimento dos acordos, em particular no que se refere à criação de condições para a atividade agrícola produtiva, em virtude do atraso nos programas de irrigação, levou a situações de de verdadeira anomia em alguns reassentamentos: desesperança, desagregação familiar, alcoolismo e rusgas permanentes passaram a dominar o quotidiano de trabalhadores reduzidos à desocupação e ociosidade. Apesar deste verdadeiro escândalo, fracassou a tentativa de instaurar um painel junto ao Banco Mundial, que apoio parte do projeto. Como nos outros casos, a luta pelo cumprimento dos acordos se mostra tão árdua quanto a luta por abrir as negociações. As obras civis prosseguem num ritmo, as indenizações e reassentamentos em outro, muito mais lento. As comportas são fechadas em setembro de 1984, quando grande parte dos expropiados, nos municípios de Jacundá e Itupiranga, ainda não haviam recebido seus lotes. Para agravar a situação, grande parte dos reassentados descobrem, com surpresa, que seus lotes estavam em área dos índios Parakanã, cujo território também tinha sido inundado. Nestas condições, diante da iminência de confronto com os índios, muitas famílias abandonam os lotes. Novo ato público encontra forte aparato repressivo bloqueando a estrada que leva à cidade de Tucuruí. Em Belém, capital do estado do Pará, entidades democráticas pressionam o governador a levantar o cerco à cidade e permitir a livre manifestação. E assim, novo acampamento se forma às portas do Escritório do Serviço de Patrimônio Imobiliário da ELETRONORTE22. Novas negociações em Brasília, enquanto mais de 2.500 pessoas encontram-se acampadas em Tucuruí. Os problemas centrais da negociação apontam para a resolução do problema dos Parakanã, indenizações, ajuda financeira para preparar a terra nos novos lotes, demarcação dos lotes, etc. A luta pelo cumprimento do acordo, como nos outros casos relatados, passa a ser o objetivo central do movimento. Mas, neste caso, a realidade torna-se ainda mais dramática em virtude do fato de que 600 famílias já reassentadas têm suas terras tomadas pelo lago: a ELETRONORTE se havia equivocado na demarcação das áreas a serem inundadas! Em outra trágica demonstração de irresponsabilidade, em que a dimensão social da degradação ecológica alcança uma dimensão exemplar, a margem esquerda do reservatório, onde havia sido assentada a maioria dos expropriados, é infestada por uma praga de mosquitos até então desconhecidos na região. Em Tucuruí, diferentemente do ocorrido em outras barragens, também a população a justante da barragem se mobilizou, sobretudo a partir de 1986, quando o barramento do rio provoca a degradação da qualidade da água com repercussões na saúde pública, redução drástica da pesca (importante fonte protéica e atividade comercial na região) e alterações no regime do rio, de que dependem as populações ribeirinhas para a pesca e para a agricultura de vazante. Na mobilização destas populações terão papel de destaque os sindicatos dos municípios a jusante. Em 1989, 5 anos após a inauguração da usina, ocorrida em 24 de novembro de 1984, constituía-se a CAHTU – Comissão dos Atingidos pela Barragem de Tucuruí, reunindo os expropriados de montante e os atingidos de jusante, para levar adiante suas lutas e reivindicações. 2.5. MAB – O Nascimento do Movimento Nacional de Atingidos por Barragens. É em meados dos anos 80, como se viu, que cresce, nas diferentes regiões, a organização e combatividade dos atingidos por barragens. É também período de 22 Que a “questão social” seja tratada pelo Serviço de Patrimônio Imobiliário é apenas uma demonstração do que, em outros trabalhos, designei de estratégia territorial patrimonialista (Vainer, 1990) das empresas do Setor Elétrico. Estratégia territorial porque seu objetivo nuclear é a “limpeza do território”, na perspectiva de força de ocupação; estratégia patrimonialista porque apenas reconhece, neste território, propriedades. A estratégia territorial patrimonialista reduz o espaço social a território, e o território a propriedade fundiária. crescimento dos movimentos rurais de modo geral. Em 1985 o Movimento dos Sem Terra realizou seu primeiro congresso, com 1.500 delegados, representando 20 estados. Em maio, seguindo o exemplo de cortadores de cana da Zona da Mata Pernambucana, cerca de 80.000 trabalhadores volantes, cortadores de cana e apanhadores de laranja, entram em greve no estado de São Paulo, no mesmo momento em que se reúne o IV Congresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, promovido pela Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura. O acirramento das lutas no campo conduz, um pouco por toda parte, a que militantes combativos conquistassem as direções de muitos sindicatos até então sob controle de dirigentes burocratizados ou mesmo comprometidos com o governo ou com os grandes proprietários. No âmbito sindical, cresce a Central Única dos Trabalhadores e seu Deparamento Nacional de Trabalhadores Rurais, que concorre com a CONTAG pela hegemonia no sindicalismo rural. Foi possível observar, nos 3 casos rapidamente relatados, selecionados pela importância que tiveram no nascimento do movimento nacional, a permanente interação entre movimentos de atingidos e sindicatos de trabalhadores rurais. Em alguns casos, como na bacia do rio Uruguai, os sindicatos mais combativos estavam presentes através de seus dirigentes, sendo comum que o presidente de um sindicato fosse, simultaneamente, integrante da comissão municipal ou regional de atingidos. Via de regra, o dinamismo do movimento de atingidos contribui para sacudir um sindicalismo acomodado e favorecer a conquista dos sindicatos por lideranças combativas. Já no caso do Vale do São Francisco, são os próprios sindicatos que assumem, diretamente, a organização e luta dos atingidos. Vistas estas estreitas vinculações, parece explicável que, em 1988, a CRAB procurasse o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da Central Única de Trabalhadores com a proposta de uma articulação nacional dos movimetos de atingidos. Graças a sua presença nacional, o DNTR/CUT ajudou a promover, nos meses de fevereiro e março de 1989, reuniões regionais que prepararam o encontro nacional. Em Altamira, Pará, aconteceu o Primeiro Encontro Regional dos Trabalhadores Atingidos pelo Complexo Hidrelétrico do Xingu, que criou a Comissão Regional dos Atigidos pela Complexo Hidrelétrico do Singu (CRACOHX) e escolheu delegados para o encontro nacional. Em março, realizaram-se o Encontro Estadual sobre Barragens do Estado do Amazonas e, em Rondônia, convocado pela CPT e pela CUT-Rondônia, o Encontro Intermunicipal sobre Barragens. No Nordeste, o Encontro Regional de Atingidos por Barragens reuniu em Igarassu, Pernambuco, além de organizaçòes não governamentais e sindicatos de trabalhadores rurais, representantes das seguintes barragens: Castanhão (Ceará), Xingó (Alagoas e Sergipe), Pão-de-Açúcar (Alagoas e Sergipe), Pedra do Cavalo (Bahia), Sobradinho (Bahia) e Itaparica (Pernambuco e Bahia). No Sudeste, encontraram-se os atingidos por barragens do Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais) e do Vale do Rio Paraíba do Sul (Minas Gerais e Rio de Janeiro). No Sul, a CRAB convidou para sua 4 a Assembléia Geral representantes da Comissão Regional de Atingidos pelas Barragens do Rio Iguaçu (CRABI) e de atingidos pelas barragens de Dona Francisca (Rio Grande do Sul) e Itaipu (Paraná), bem como lideranças de comunidades indígenas Kaigang de Itaí (Rio Grande do Sul) e Chapecozinho (Santa Catarinha). De 19 a 21 de abril de 1989 reuniu-se, em Goiânia, o I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens. Além dos relatos das realidades e experiências de luta em cada região, em cada barragem, o Encontro propiciou a identificação da política energética nacional e, em particular, do Plano 2010 (ELETROBRÁS, 1987), como inimigo comum de todas as populações atingidas e ameaçadas pelas construção de grandes barragens. A pauta de reivindicações da resolução final - Carta de Goiânia expressa o nascimento de um movimento nacional reunindo, de um lado, reivindicações de diferentes grupos sociais que, em diferentes regiões, são atingidos por barragens, e, de outro lado, propostas que buscam transcender as lutas localizadas e específicas para afirmarem uma ação na política nacional, e, mais especificamente, na política energética nacional: “1) elaboração de uma nova política para o setor elétrico com a participação da classe trabalhadora; 2) que sejam imediatamente solucionados os problemas sociais e ambientais gerados pelas hidrelétricas já construídas e que isto seja condição para implantação de novos projetos; 3) cumprimento dos acordos já firmados entre os atingidos e as concessionárias; 4) fim imediato dos subsídios tarifários às indústrias favorecidas pelo setor elétrico. Reforma agrária já, sob o controle dos trabalhadores! Demarcação das terras indígenas! Demarcação das terras das comunidades negras remanescentes de quilombos! Não pagamento da dívida externa” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens:37). Os anais do Encontro permitem uma apreciação dos debates. Além das denúncias da situações dos atingidos e dos efeitos perversos das hidrelétricas, merecem destaque os seguintes pontos: Quem são os atingidos? 23 Neste ponto o debate avançava para romper com a definição dominante no Setor Elétrico, mas também em vários dos movimentos locais, de que atingidos seriam apenas os que fossem afogados. Assim, o movimento nacional, apesar de reconhecer que “historicamente os “afogados” têm sido os que primeiro se mobilizam e, em geral, os que se mantêm à frente da luta <…> atingidos são todos os que sofrem modificações diretas nas suas 23 Que os movimento tenha assumido a categoria descritiva com que são designados pelo Setor Elétrico e pelos estudos de impacto não parece incomodar seus militantes e lideranças. Como tampouco lhes cria problema que esta designação venha de uma forma verbal passiva. Ao contrário, via de regra os militantes enunciam com um certo orgulho o fato de serem atingidos por tal ou qual barragem, quando se apresentam nas reuniões. Para o Setor Elétrico, e para os promotores de grandes projetos em geral, a categoria de “atingido” é perfeitamente compatível com uma perspectiva que vê as populações com incapazes de agir e, portanto, designadas por um qualificativo que as associa à passividiade. O movimento, ao contrário, pretende justamente impedir que o “atingidos” fiquem passivos. O paradoxo poderia ser enunciado da seuinte maneira: o movimento de atingidos tem como objetivo impedir a existência de atingidos e fazer com que os atingidos não o sejam, ou, na pior das hipóteses, o sejam na menor medida possível. Para uma discussão sobre a noção de “atingido”, ver Faillace, 1989. condições de vida” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens:34).24 Estratégias e práticas do movimento Neste tema veio à tona o paradoxo enfrentado por um movimento que luta por uma nova política energética da qual sejam banidas as grandes barragens e, simultaneamente, reivindica melhores indenizações e condições de reassentamento para os atingidos. De uma maneira ou de outra, estava colocado em pauta, igualmente, o lugar da negociação na estratégia do movimento. Houve relativo consenso de que “negociações e acordos sobre indenizações, reassentamentos, etc, remediam um fato consumado, não repondo, nos casos acontecidos até o presente, os custos sociais e ambientais impostos” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens:34) Elemento central das discussões sobre estratégias e práticas do movimento foi a afirmação da organização da base e a necessidade de fazer do movimento de atingidos um amplo movimento de massas, em que ação direta desempenha lugar central. Organização do movimento Foi consensual a necessidade de priorizar a organização de base em cada movimento, tendo-se reconhecido, porém, que há diferentes formas de organizar o movimento: criando organizações próprias – como a CRAB – ou através da articulação de sindicatos – como o Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco. “Os dois tipos de organização respondem a realidades sociais e políticas distintas. As discussões do Encontro Nacional não priorizaram qualquer das formas. Mas apontaram para a necessidade de serem respeitadas as diferentes realidades e indicaram os exemplos da CRAB e do Pólo Sindical como referências” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens:35). Por outro lado, e como era de se esperar, afirmou-se a necessidade da articulação nacional dos movimentos locais/regionais, tendo-se decidido por compor uma Comissão Nacional Provisória de Trabalhadores Atingidos por Barragens, integrada por: um representante da CUT, um das Nações Indígenas e um representante de cada região – Norte, Nordeste/Sudeste e Sul. Esta comissão ficou encarregada de coordenar o movimento e preparar o Encontro Nacional de 1990. O I Congresso Nacional de Atingidos por Barragens, porém, só vai se reunir quase dois anos depois, em março de 1992. É quando vai ser deliberada a constituição do MAB enquanto movimento nacional. III. 24 MAB: EVOLUÇÃO E QUESTÕES POLÍTICAS CENTRAIS Esta definição respondia, de maneira clara, às experiências vindas de Tucuruí, onde se mobilizaram as populações a justante. A CRAB, que já havia enfrentado regionalmente esta discussão, reagia a qualquer ampliação do conceito, temerosa que isto permitisse que grupos ou entidades externas pudessem assumir, em lugar dos “verdadeiros atingidos” a condução do movimento. Nesta seção tratar-se-á, de maneira bastante sintética, alguns dos temas que, ao longo da existência do MAB enquanto movimento nacional, têm estruturado seu debate e constituído elementos nucleares de uma cultura política em permanente construção e transformação. 3.1. Movimento nacional x movimentos regionais e locais A criação de um Movimento Nacional expressava o reconhecimento, explicitado em vários documentos, de que as lutas particulares de movimentos locais ou regionais não são capazes de fundamentar uma perspectiva apta a confrontar o modelo energético e, de forma mais ampla, o modelo de desenvolvimento de que as grandes obras hidrelétricas são apenas um elemento. Indígenas da Amazônia e bisnetos dos imigrantes italianos ou alemães do Sul reconheciam na luta do outro a sua mesma luta, no inimigo do outro o mesmo seu inimigo, e daí retiravam a conclusão de que deveriam, de alguma maneira, estar juntos e agir conjuntamente. Mas a retórica da solidariedade era insuficiente para construir um movimento nacional. Era necessário deslocar recursos, militantes e esforços para as tarefas que este movimento exige, ainda mais num país com as dimensões do Brasil. Estava ainda viva, por outro lado, a rejeição a formas burocráticas de controle centralizado, e o receio dos movimentos locais/regionais de que a criação de um movimento nacional viesse limitar sua autonomia. Esta discussão, de alguma maneira, já estivera presente na primeira reunião nacional, em 1989, como se pode perceber no anais, que destacava “a necessidade de serem respeitadas as diferentes realidades”. Muitas foram as discussões sobre a melhor forma de organizar o movimento nacional. Para sintetizar, pode-se dizer que se optou por um modelo federativo, em que cada movimento local ou regional guardaria absoluta autonomia política, organizacional e financeira. A Coordenação Nacional, com representação igualitária das regiões, cumpriria as tarefas de articulação, e uma pequena secretaria, sediada em São Paulo com uma ou duas pessoas em tempo integral, apoiaria o trabalho da Executiva e da Coordenação nacionais. E assim, ao longo dos anos 90, o MAB se confrontou à questão das relações entre as necessidades políticas e organizacionais do movimento nacional e as necessidades políticas e organizacionais dos movimentos locais e regionais. De um lado, havia consenso de que o fundamento e a razão de existência do MAB são os movimentos locais, as comunidades atingidas em luta. É o que se repete nas reuniões e nos documentos: “não há movimento nacional sem luta nas barrancas e nos vales, sem organização nas comunidades e nas regiões”25. De outro lado, o avanço do movimento, seu crescente reconhecimento nacional e, mesmo, internacional, impõem enfrentar questões como política energética, gestão de recursos hídricos, meio ambiente, entre outras, que transcendem largamente tanto as questões localizadas quanto as tradicionais bandeiras de reforma agrária e soberania nacional. O desafio é tanto maior quanto outros movimentos populares têm acumulado 25 Longe de ser manifestação de um militant particularism (Harvey, 1997) extremado, a ênfase no movimento de base parece refletir a preocupação em evitar a constituição de burocracias cetnralizadoras, desligadas das realidades das comunidades, do movimento e das lutas concretas. Expressa igualmente o receio de que o movimento social possa ser controlado de maneira excessiva por organizações regionais e locais mais estruturadas e com mais recursos. pouco em relação ao tema da energia, do meio ambiente e dos recursos hídricos, que, quase sempre, são objeto de preocupações ou bem nos meios técnicos, ou bem entre ambientalistas. A utilidade de uma Coordenação Nacional foi percebida de maneira diferenciada pelos diferentes movimentos regionais, que investiram mais ou menos em seu fortalecimento. A CRAB, além de ter assumido a liderança da convocação das primeiras articulações nacionais, é a organização regional que tem feito os maiores investimentos na escala nacional26, assumindo, nos últimos anos uma nova designação: MAB-Sul. Pois bem, mesmo aí, surgiram, ao longo dos anos 90, importantes contestações quanto aos recursos – materiais e humanos – consagrados à organização nacional, enquanto o movimento regional padecia de carência de quadros e vivia dificuldades enormes para mobilizar e organizar as bases. Durante os primeiros anos, a organização nacional limitou-se a coordenar pautas reivindicatórias e promover algumas pressões junto ao governo federal. A existência da organização nacional também se mostrou eficaz na relação com os demais movimentos populares, sobretudo na negociação de pautas abrangentes, como na promoção de manifestações nacionais como o Grito do Campo27. A organização de viagens de militantes de uma barragem para estagiarem em outra expressava, de maneira bastante criativa, a preocupação em promover o conhecimento mútuo, bem como a valorização e troca de experiências. Mais recentemente parece estar havendo um esforço para coesionar os movimentos locais/regionais em torno do movimento nacional, com pautas fortemente focalizadas em questões políticas de âmbito nacional e no Projeto Popular para o Brasil resultante da Consulta Popular. É notável, igualmente, o crescente investimento de militantes da Coordenação Nacional nas várias regiões, inclusive tomando a iniciativa de promover a organização local. Assim, progressivamente, ao invés de ser uma simples emanação de movimentos locais, a organização nacional tende a inverter a relação e ser, ela, o núcleo a partir do qual movimentos locais – pelo menos alguns deles - vão sendo organizados. A presença crescente do MAB nacional se faz sentir igualmente no esforço de promover cursos e treinamentos reunindo militantes de base das várias regiões, favorecendo a criação de uma identidade com o movimento nacional – antes que, ou pelo menos ao mesmo tempo que, com os movimentos locais. 3.2. Valores e elementos centrais de uma cultura política em formação O MAB se vê como parte de um movimento popular mais amplo, de âmbito nacional. A defesa dos interesses dos atingidos, assim como a luta contra o modelo energético e ambiental, é concebida como parte de uma luta mais ampla de todo o povo brasileiro contra um modelo de desenvolvimento injusto, que concentra riquezas e terras. Se as vitórias parciais contra este modelo são vistas como fundamentais, 26 Este maior investimento reflete, pelo menos em parte, os maiores recursos de que dispõe a CRAB. Mobilização de âmbito nacional, realizada anualmente, envolvendo quase todas as organizações populares atuantes no campo, em torno de uma pauta nacional de reivindicações encaminhada ao governo, aos partidos e divulgada através de atos públicos. A existência do MAB enquanto organização nacional tem favorecido incluir as reivindicações dos atingidos na pauta do Grito do Campo. 27 igualmente fundamental é que elas resultem da organização pela base, ao mesmo tempo que a fortaleçam. A cultura politica se estrutura sobre uma complexa combinação de elementos herdados do marxismo revolucionário latinoamericano dos anos 60, da teologia da libertação, das lutas democráticas contra a ditadura militar dos anos 70 e 80 e de movimentos ecologistas e libertários pós-marxistas28. Ela é permanemente atualizada no, e confrontada pelo, debate e ação concreta. Se fosse possível sintetizar a cultura política de um movimento tão rico e diferenciado como o MAB, poderíamos dizer que seus valores fundamentais29 são: primazia da organização e da mobilização pela base em relação às organizações centralizadas; democracia pela base, devendo a base definir diretrizes e eleger seus dirigentes e representantes; primazia da ação direta de massas em relação a outras formas de luta e à negociação30; autonomia do movimento em relação ao Estado e aos partidos políticos; primazia do processo de conscientização e constituição de um sujeito político popular coletivo em relação à obtenção de favores ou concessões; identidade com o movimento popular e suas organizações em escala nacional e primazia da unidade do movimento popular sobre as alianças com outras classes. Transcreve-se abaixo texto do capítulo 1 de material de formação recentemente editado pelo MAB e que, sob o ilustrativo título “Quem Somos”, reitera definições aprovadas em sucessivos congressos nacionais do movimento. “O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB – é um movimento popular, de massa, que visa organizar toda a população atingida ou ameaçada para lutarem contra a construção de grandes barragens e pela garantia dos seus direitos, colaborando com isto para a construção de um novo modelo energético. Somos um movimento popular autônomo que surge contrapondo-se ao modelo do Setor Elétrico, visa esclarecer, organizar os atingidos pelas barragens sem fronteiras de Estados ou países, sem distinção de cor, sexo, religião ou opção político partidária. 28 As culturas políticas podem ser bastante diferenciadas de uma organização local/regional para outra, expressando os diferentes pesos que cada uma das vertentes desempenhou em cada situação específica. Ademais, como costuma acontecer em movimentos com ampla mobilização popular, os níveis de elaboração da problemática política é muito variável. 29 Afirmar quais sejam os valores fundamentais (fondamental beliefs) não significa afirmar que sempre, em todos os momentos e lugares, os valores que eles expressam tenham sido homogeneamente aplicados. O que pretendemos afirmar é que estes valores constituem, permanentemente, argumentos que são acionados para validar ou legitimar propostas e posições, pois constituem, por assim dizer, valores por todos compartilhados e inquestionáveis. 30 A negociação é entendida como resultado e parte da luta. A luta e a mobilização da base constituem a única possibilidade de conquistar uma negociação justa. Os integrantes do Movimento são na sua grande maioria pequenos agricultores, trabalhadores rurais sem terra (meeiros, parceiros, arrendatários, diaristas, posseiros …), povos indígenas, populações quilombolas, percadores e mineradores. O MAB articula os interesses dos atingidos, frente as empresas, autoridades, Estado e outras entidades que de alguma forma estejam envolvidos na questão. A luta é incentivada como processo no qual os atingidos vão tomando consciência de sua situação, participando integralmente de sua organização e decidindo com responsabilidade sobre o seu destino coletivo” (MAB, MAB: uma história de lutas, desafios e conquistas:5) 3.3. Movimento camponês, movimento de atingidos, movimento ambiental: identidades e alianças Merece destaque a forma como, na passagem acima citada, aparecem combinadas, de forma elegante, a afirmação de que a base social predominante do movimento é composta de trabalhadores rurais e o compromisso em organizar todos os atingidos. Em algumas barragens, o movimento tem incorporado à luta pequenos comerciantes, profissionais de pequenos povoados e, mesmo, de médios proprietários rurais. Seja como for, a forte identidade com os trabalhadores rurais está presente em toda a história e em todas as manifestações do movimento. Não espanta que, nesta condições, tenham sido privilegiadas, ao longo do tempo, as relações com o sindicalismo rural combativo e com o Movimento dos Sem Terra. A aproximação do MAB com o MST, inclusive no que se refere a concepções e projetos políticos, tem crescido nos últimos; em particular, o MAB participou e participa da Consulta Popular que elaborou o chamado Projeto Popular para o Brasil, articulação de movimentos populares liderada pelo MST. Juntamente com o MST e o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o MAB integra a Via Campesina no Brasil. Nesta articulações, o MAB tem enfrentado problemas para fazer valer seus pontos de vista sobre a questão energética e ambiental. Ainda hoje há vários segmentos do movimento popular brasileiro, e isto é particularmente verdadeiro para o Movimento dos Sem Terra, para os quais a construção de grandes hidrelétricas é vista como uma necessidade imposta pelo anseio de desenvolvimento. Na verdade, poder-se-ia dizer que o MAB desempenha, embora com enormes dificuldades, o ,espinhoso papel de crítico de uma certa ideologia desenvolvimentista que ainda predomina em boa parte do movimento popular brasileiro. O mesmo tipo de dificuldade tem enfrentado o MAB em suas relações com os partidos progressistas, e particularmente com o PT, cujo programa energético é fortemente dominado pela visão desenvolvimentista e pela perspectiva de apoiar a competitividade da indústria nacional no suposto baixo custo da energia hidrelétrica31. 31 É expressivo o número de lideranças do MAB filiadas ao PT, em todas as regiões, Algumas dessas lideranças têm participado de processos eleitorais, e não são raros os casos de sucesso. Há assim, vereadores, prefeitos de pequenas cidades e mesmo deputados cuja militância política se iniciou na luta contra as barragens. Apesar disto, o MAB não tem tido sucesso em seu esforço para participar da Mas se enquanto movimento marcado pela preocupação ambiental o MAB enfrenta dificuldades em suas relações com o movimento popular, nem por isso suas relações com o movimento ambientalista são sempre harmoniosas. Ao contrário, deste lado o MAB se relaciona, muitas vezes, com organizações ambientalistas predominantemente urbanas e de classe média, nem sempre sensíveis e capazes de entender os aspectos sociais involucrados na questão energética e ambiental. 3.4. Relações internacionais. Grosso modo, é possível identificar nas relações internacionais do MAB dois tipos predominantes de objetivos e dinâmica: obtenção de meios e recursos materiais para a manutenção das atividades do movimento; busca de repercussão política e apoio para as lutas, inclusive através de pressões sobre empresas e agências multilateriais engajadas na construção de barragens no Brasil. Embora reconhecendo a estreita relação entre apoio financeiro e relações políticas, parece ser possível estabelecer, para fins analíticos, a classificação acima. Sobre o primeiro tipo de relacão internacional, pode-se afirmar que é quase regra geral entre os movimentos populares o estabelecimento de contatos regulares com organizações não-governamentais dos países centrais para a obtenção de apoio financeiro. Escaparia ao escopo deste trabalho uma discussão acerca do significado e consequências deste tipo de relação, em particular no que se refere aos riscos que poderiam decorrer para a própria autonomia do movimento 32. Para o que interessa a este trabalho, os vários movimentos regionais e locais tradicionalmente buscam recursos através destes mecanismos, cada um a seu jeito e segundo suas relações históricas33. A constituição do MAB nacional, deste ponto de vista, conduziu à reprodução, agora em escala nacional, da mesma modalidade de financiamento e de relacionamento com ONGs estrangeiras. No que se refere às relações predominantemente voltadas para a ação política, também há uma certa tradição de ações autônomas dos movimentos locais/regionais. Assim, por exemplo, a tentativa de obtenção de um painel do Banco Mundial foi levada adiante pelo Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco, através de relações diretas com ONGs e assessorias nacionais e internacionais, sem passar pela Coordenação ou Executiva Nacional. Cresce nesta esfera, porém, ao longo do tempo, o número de iniciativas da parte da Coordenação e da Executiva Nacionais. A mais comum atividade elaboração do programa energético do PT, controlado por acadêmicos e técnicos com fortes vinculações com o Setor Elétrico e claro comprometimento com a opção das grandes hidrelétricas. 32 É notável encontrar nos mais diferentes movimentos populares brasileiros a reprodução mimética de uma retórica que atende às expectativas das ONGs financiadoras. Até que ponto isto pode levar a uma reconfiguração de linguagens e, em consequência, de concepções e lógicas políticas e culturais, eis um tema a ser aprofundado pela pesquisa. 33 Sob este aspecto parece que o MAB-Sul uma vez mais afirma sua particularidade, pois, embora também pratique o levantamento de recursos junto a ONGs estrangeiras, conta com uma forte fonte de recursos próprios, constituída pelos reassentados e por atividades de prestação de serviços que assumiu nos reassentamentos e pelas quais tem sido remunerado pelas empresas. é a participação em eventos internacionais sobre energia, recursos hídricos, meio ambiente e outros, para denunciar o que se passa nas barragens do país. Igualmente importante se tem revelado a relação com ONGs que se especializaram, nos países centrais, em desenvolver ação de lobby junto a agências multilaterais ou a governos nacionais. Dentre as mais relevantes iniciativas propriamente políticas de caráter internacional se poderia citar: filiação à Coordenação Latino-americana de Organizações Camponesas – CLOC; promoção do I Encontro Nacional de Populações Atingidas por Barragens, em Curitiba, março de 1997; a participação no Forum Consultivo da Comissão Mundial de Barragens e no International Committee on Dams, Rivers and Peoples. Em vários casos estas ações têm sido questionadas no interior do movimento, sobretudo quando não parecem resultar em retornos imediatos, seja do ponto de vista da obtenção de recursos, seja do ponto de vista de conquistas para algum movimento regional. Assimilada por alguns setores a uma ação mais própria a ONGs que a movimentos populares comprometidos com a organização e luta de base, as relações internacionais são questionadas por alguns como um desvio de capacidade militante, tempo, atenção política. Uma investigação mais detalhada das múltiplas relações internacionais e de suas ambiguidades e ambivalências ainda está para ser realizada, focalizando tanto os movimentos regionais/locais quanto o movimento nacional34. IV. ALGUMA INDAGAÇÕES À GUISA DE CONCLUSÃO Após quase uma década de relativa estagnação dos grandes projetos hidrelétricos no país, a década que se inicia parece prometer uma retomada do ritmo dos anos 70, investindo nas duas fronteiras hidrelétricas do país: a Amazônia e a bacia do rio Uruguai. É também previsível a multiplicação do que se considera, tendo em vista a potência instalada, pequenos e médios empreendimentos, mas cujos impactos nem sempre são igualmente pequenos e médios. Diferentemente porém dos anos 70, esta nova onda de empreendimentos ocorrerá, e já está ocorrendo, sob a égide de empresas privadas35. As consequências para o tratamento das questões ambientais e sociais parcem ser das mais perversas, colocando em riscos até mesmo as poucas conquistas alcançadas a partir da segunda metade dos anos 8036. Como enfrentará o MAB esta nova realidade? Enraizado sobretudo entre pequenos produtores familitares, o MAB constitui hoje, provavelmente, o movimento popular com mais forte consciência da relevância da questão ambiental e um dos únicos que tem sido capaz de formular esta questão em relação com o padrão de desenvolvimento, articulando estreitamente a forma como se produz e distribui a riqueza, de um lado, e a forma como se apropriam e controlam os recursos ambientais, de outro. Será o MAB capaz de romper o relativo isolamento em que se encontra no movimento popular, contribuindo para uma reconfiguração da questão ambiental que viabilize sua incorporação por setores mais amplos? Estará o 34 A esse respeito, ver: Vieira, 2001; Vainer, 2001. As usinas de Itá e Machadinho, berço do mais forte e estruturado movimento regional, foram concluídas e estão sendo operadas por consórcios privados. 36 A este respeito, ver, por exemplo, Vainer, 1999. 35 MAB em condições de constituir, por assim, dizer, uma ponte entre movimentos populares e ambientalismo progressista? Nos últimos 5 anos, sobretudo a partir da realização do Encontro de Curitiba, o MAB intensificou enormemente suas relações internacionais, tornando-se um movimento conhecido e reconhecido por ONGs de todo o mundo e agências multilaterais. Nem sempre porém, como questionam alguns no interior do próprio movimento, a experiência internacional tem sido transmitida às bases do movimento, permanecendo uma quase monopólio de lideranças que frequentam eventos internacionais e comparecem às negociações com agências multilaterais. Depois de ter enfrentado, e, em certa medida, continuar enfrentando as dificuldades de estabelecer um adequado equilíbrio entre as ações a nível local/regional e as ações a nível nacional, será o MAB capaz de desempenhar um papel ativo na escala global? Poderá o MAB abdicar de uma consistente e sistemática ação nesta escala, quando as decisões de investimento estão cada vez mais encadeadas a financiamentos de agências como o BID, Banco Mundial, IFC e outras? Estará, neste caso, condenado, nesta escala, a ser representado por mediadores ou ONGs distantes de suas bases? Qual o significado e eficácia políticas que, neste sentido, poderiam ter processos deflagrados por iniciativas como a articulação internacional Via Campesina e o Fórum Social Mundial? 20 anos após o nascimento do movimento organizado de atingidos por barragens no Brasil, o MAB está direta e imediatamente desafiado pelos processos de privatização e globalização. Não poderá enfrentar tais desafios isoladamente, nem encontrará os prontos os mecanismos, nacionais e internacionais, que o capacitarão a participar da construção de alternatvas populares. Até que ponto será capaz de encontrar os interlocutores e alianças capazes de compartilharem com ele esta nova aventura? Estes são alguns dos vários desafios políticos a que o MAB está confrontado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Vieira, Flávia Braga – 2001. Do Confronto nos Vales aos Fóruns Globais: um estudo de caso sobre a participação MAB na Comissão Mundial de Barragens. 2001. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Universidade Federal do Rio de Janeiro Castro, Eduardo Viveiros de & Andrade, Lúcia M. M. de; “Hidrelétricas do Xingu: o estado contra as sociedades indígenas”; in Santos, Leinad Ayer O. & Andrade, Lúcia M. M. de; As hidrelétricas do Xingu e os povos indígenas. São Paulo, Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1988. Cernea, Michael (ed.) – 1998. 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