coreia do sul
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coreia do sul
066-081_CoreiaSul LB.indd 66 25-09-2012 18:24:23 É um país a duas velocidades, dividido entre a tradição milenar, que faz questão não só de manter no presente como também de preservar para as gerações vindouras, e a modernidade, sem a qual já não vive. Um país na dianteira tecnológica do mundo, com os pés fincados na Ásia, mas o olhar fixo no Ocidente. NIRVANA COREIA DO SUL PÓS-MODERNO TEXTO E FOTOGRAFIAS DE RAFAEL ESTEFANIA Volta ao Mundo outubro 2012 066-081_CoreiaSul LB.indd 67 67 25-09-2012 18:24:29 A dedicação das jovens à aprendizagem das disciplinas de outros séculos é o lado oposto da Coreia do Sul futurista, viciada na última tecnologia, moderna e consumidora da cultura ocidental. C om a destreza de um barbeiro, o movimento rítmico circular do pincel da professora mistura o pó verde à água quente, criando uma fina capa de espuma na superfície do líquido. O arranjo floral, a delicada toalha de seda que adorna a mesa, os movimentos precisos das mãos, a temperatura exata da água... cada ação é parte de uma coreografia rigorosa, desenhada como instrumento de meditação do budismo zen e transmitida de professores a alunos ao longo de séculos. O resultado desse ritual é um aromático chá Matcha, servido com cerimónia em chávenas de porcelana e recebido pelos presentes com uma respeitosa inclinação de cabeça e as mãos unidas em clássica reverência budista. Por fim, os presentes admiram o viço do chá, a sua fragrância e, finalmente, levam a chávena aos lábios para saboreá-lo em silêncio e com os olhos fechados. 68 066-081_CoreiaSul LB.indd 68 25-09-2012 18:24:34 Como um bonsai retorcido de grandes proporções, a árvore centenária (nas páginas anteriores) empresta maior bucolismo às casas tradicionais da pitoresca aldeia de Yongin. Enquanto observo esse ritual, numa outra parte do templo uma fila de mulheres impecavelmente uniformizadas com hanboks dourados aprendem a cerimónia do chá Panyaro, uma versão menos elaborada do que a ancestral Matcha, de joelhos sobre as suas pequenas mesas e sob o olhar implacável da instrutora. Num quarto ao lado do templo, outras alunas estudam caligrafia através da escrita de poemas e de provérbios budistas com delicados traços sobre papel de arroz. Volta ao Mundo outubro 2012 066-081_CoreiaSul LB.indd 69 Protegida pela sua sombrinha, uma mulher contempla a paisagem serena do parque Tumuli, na fotografia à esquerda; em baixo, podemos ver um homem em traje de festa na aldeia de Gyeongju e as belas cores outonais. A dedicação das jovens à aprendizagem dessas disciplinas de outros séculos é o lado oposto da Coreia do Sul futurista, viciada na última tecnologia, moderna e consumidora voraz da cultura ocidental. Aqui, protegidos pelas milenares paredes do templo, sem telemóveis, tablets ou outras formas de conexão que não a espiritual, os coreanos vêm para se encontrarem a si mesmos e, no interim, com as suas próprias tradições. Como ir A Emirates Arlines (emirates.com/pt) voa para Seul, a partir de Lisboa, desde 686 euros. 69 25-09-2012 18:24:41 ALOJAMENTO COM VISTA AO NIRVANA Com mais de novecentos templos budistas espalhados pelo país, estando cinquenta deles inscritos no programa Temple Stay, os caminhos para a luz são muitos. 066-081_CoreiaSul LB.indd 70 Templo de Beomeosa na região de Busan. Uma estada focada na meditação Seon, que inclui cantos, prostrações, cerimónias de chá e conversas com os monges. Templo de Jogyesa localizado a menos de meia hora de Seul, oferece um programa de meio dia aos visitantes que queiram uma experiência express da vida monástica. Templo de Golgosa templo numa cova e no qual se pratica um intenso programa que combina meditação com o Sunmudo, uma arte marcial zen transmitida de geração a geração. 25-09-2012 18:24:50 Templo de Yonggungsa com vista para o mar. Um dos poucos templos budistas na costa da Coreia. É certamente mais fácil relaxar com o som das ondas em fundo. 066-081_CoreiaSul LB.indd 71 Templo de Myogaksa situado nas montanhas de Naksan, nos arredores de Seul. De lá é possível admirar a grande metrópole sem ter de sofrer com o seu caos. 25-09-2012 18:24:56 066-081_CoreiaSul LB.indd 72 25-09-2012 18:25:01 Ninguém me disse que o caminho para a luz era fácil, mas, após dois dias de regime monástico, a dormir no chão ou a comer frugalmente (...) comprovo o que suspeitava: a minha vida interior é uma lástima. É um contraste extremo entre duas realidades de um mesmo país de dupla personalidade. Esse pensamento passa pela minha cabeça às quatro da manhã, enquanto permaneço sentado sobre os meus joelhos, tentando, em vão, libertar a minha mente com a repetição de 108 prostrações matinais e o duvidoso consolo de que, depois delas, me espera um dia dedicado à meditação e ao trabalho. O mesmo templo onde fui testemunha de aulas magistrais oferece também a possibilidade de experimentar a vida dos monges budistas, já que é possível a hospedagem com eles e acompanhá-los na sua rotina diária. Ninguém me disse que o caminho para a luz era fácil, mas, após dois dias de regime monástico, a dormir no chão, a acordar antes do Sol, a fazer trabalhos comunitários, a comer frugalmente e a submeter o corpo e a mente a uma luta constante contra as suas vontades (o meu corpo, com o seu anseio por um colchão de molas e travesseiros de penas; a minha mente, com a sua facilidade para divagar), abandono o templo com uma sensação mista de satisfação, por ter pelo menos conseguido debruçar-me sobre a janela do meu próprio ser, e com certa inquietação, ao comprovar o que suspeitava: a minha vida interior é uma lástima. Apesar do esforço, a estada em templos budistas é uma forma incrível de entrar na história da religiosidade coreana e em mosteiros ancestrais que, como o Jeondeungsa, o templo mais antigo da Coreia, nos ligam a um passado de mais de 1700 anos. A experiên cia do Temple Stay (estada em templos), iniciada há quase uma década, sem dúvida funciona: os escassos mil estrangeiros que meditaram nos 33 templos em 2002 passaram a setenta mil aspirantes à espiritualização em 2006, vindos do mundo todo para buscar a luz em cinquenta templos. Fora do perímetro dos templos, o passado da Coreia segue vivo em Gyeongju, no Sudeste do país, a quatro horas de distância de Seul. Antiga capital do império Silla, que dirigiu os destinos da Coreia entre os séculos xvii e xix, é o lugar do país onde é conservado o maior e mais importante acervo de vestígios arqueológicos da península coreana. O mausoléu nacional, o templo de Bulguksa, a cova de Seokguram, o povoado tradicional de Yandong e os túmulos de Tumuli Park contribuem para que esta região seja a mais visitada pelos turistas interessados em mergulhar na história do país. Apesar disso, e diante do modesto número de turistas estrangeiros que visitam a Coreia (em comparação com os vizinhos Japão e China), a sensação é a de que este lugar está ainda por descobrir. Tempo de explorar a outra face da moeda e ir para Seul. Nenhuma metáfora é mais apropriada para ilustrar esta viagem ao futuro do que o comboio supersónico KTX que me leva da estação de Dongdaegu a mais de trezentos quilómetros por hora, cortando o ar. O ritual da preparação e da degustação do chá é levado muito a peito e ponto de honra na cultura sul-coreana, tanto que muitas jovens fazem questão de aprendê-lo com todos os preceitos. A meditação não é para todos, mas vários templos na Coreia do Sul proporcionam esta experiência, que vai muito além da simples transcendência, e implica toda uma disciplina e força de vontade quase férreas. Volta ao Mundo outubro 2012 066-081_CoreiaSul LB.indd 73 73 25-09-2012 18:25:07 74 066-081_CoreiaSul LB.indd 74 Volta ao Mundo outubro 2012 25-09-2012 18:25:14 Nenhuma metáfora é mais apropriada para ilustrar esta viagem ao futuro do que o comboio supersónico KTX que me leva da estação de Dongdaegu a mais de trezentos quilómetros por hora, cortando o ar. 066-081_CoreiaSul LB.indd 75 25-09-2012 18:25:15 A fronteira DMZ é mais uma atração turística para os estrangeiros do que um motivo de preocupação para os sul-coreanos. Para a nova geração, a verdadeira ameaça seria uma hipotética reunificação. Não é que Seul não tenha vestígios históricos (os palácios de Gyeongbokgung e Changdeokgung são duas amostras imponentes), mas na atitude coletiva dos seus habitantes o passado parece mais um obstáculo, uma mala pesada a ser arrastada na corrida vertiginosa para a frente. Nem mesmo o passado recente e o inacabado conflito com a vizinha Coreia do Norte, que rachou a península em dois, perturbam os seus habitantes. A fronteira DMZ é mais uma atração turística para os estrangeiros do que um motivo de preocupação para os sul-coreanos. De facto, para muitos da nova geração, a verdadeira ameaça do outro lado seria uma hipotética reunificação que travasse o crescimento e o padrão de vida. Ao passear pelas ruas do bairro de Itawon, nota-se logo que a alma da cidade rendeu-se, faz tempo, à modernidade: endereços da moda estão por todo o lado e fazem do consumo um desporto nacional. 76 066-081_CoreiaSul LB.indd 76 25-09-2012 18:25:19 Manda a tradição local que não se coma nem se beba sozinho. Por isso mesmo, não estranhe se, tal como num filme, for abordado por grupos de jovens bem-dispostos que tratarão de o chamar para a sua mesa. As omnipresentes armações de óculos (na maioria das vezes usadas sem lentes graduadas) são o acessório preferido dos jovens e a marca cool das novas gerações, responsáveis em grande parte pelas mudanças vertiginosas que Seul tem vivido na última década, até tornar-se uma referência de vanguarda made in Asia. Mesmo o Japão, símbolo da modernidade do continente, move-se agora ao ritmo da música pop coreana (chamada de k-pop). Grupos musicais como Volta ao Mundo outubro 2012 066-081_CoreiaSul LB.indd 77 O bairro de Myeongdong, na capital sul-coreana, converteu-se, como as fotografias o comprovam, numa verdadeira babel de néons, só comparada a outras metrópoles como Tóquio ou Hong Kong. Girls Generation e KARA ocupam o topo das listas de vendas e as suas melodias pegajosas são as mais pedidas nos karaokes de Tóquio e Osaka. Coreografias e vídeos sexy que repetem a fórmula do pop americano abalaram o mercado internacional, começaram a dividir a cena com Lady Gaga e chegaram – no caso das coreanas Bigbang, nos prémios europeus da MTV em 2011 – a desbancar a própria «inventora» do género, Britney Spears, da categoria de melhor artista mundial. Tradição e progresso. Esta dicotomia faz hoje parte da génese sul-coreana. Nas páginas seguinte, de cima para baixo: Ssamziegil Shooping Center; estátua de Yi Sunsin no boulevard Sejongro; pagode e anexo moderno junto ao palácio Gyeongbokgung; restaurante em Hongdae. 77 25-09-2012 18:25:26 066-081_CoreiaSul LB.indd 78 25-09-2012 18:25:33 Volta ao Mundo outubro 2012 066-081_CoreiaSul LB.indd 79 79 25-09-2012 18:25:41 066-081_CoreiaSul LB.indd 80 25-09-2012 18:25:47 oda e M tendências são um assunto muito sério na Coreia do Sul. Entre os mais novos, como a jovem retratada no bairro de Insadong (à esquerda), o último grito é usar armações de óculos sem lentes graduadas. Enquanto esperam a chamada para o seu voo, no aeroporto de Seul, as assistentes de bordo, pelo seu aprumo e acessórios coquetes, não passam despercebidas. Margens do rio Han: o que era há alguns anos praticamente um esgoto a céu aberto é hoje um exemplo de regeneração urbana com espaços verdes e cafés. Alentada pela prosperidade de uma economia baseada na tecnologia (a Coreia do Sul está entre as 12 economias mais fortes do planeta) e com uma população jovem permanentemente ligada à rede, Seul passou de uma cidade hermética (custa acreditar que em 1970 era mais pobre do que a sua vizinha do Norte e que, até final dos anos de 1980, os sul-coreanos estavam proibidos de viajar ao exterior) a uma urbe moderna, ávida por modernidade e pelas novas tendências do Ocidente. Passeio pelas margens do rio Han. O que era há alguns anos praticamente um esgoto a céu aberto é hoje um exemplo de regeneração urbana com espaços verdes, cafés e galerias nos arredores. No centro da cidade, arquitetos internacionais como Koolhas (que assina o museu de arte moderna) e Zaha Hadid (o projeto cultural, comercial e de estacionamento de novecentos mil metros quadrados em Dongdaemoun promete ser uma das obras mais vanguardistas da Ásia) encontram um território propício à inovação. Ao caminhar sob uma paisagem de néon no distrito de Myeongdong (traduzido como «distrito luminoso», pela maior concentração de luzes de néon do mundo, juntamente com Hong Kong), surgem grupos de jovens que parecem saídos de uma revista de moda. Bastariam talvez os primeiros acordes de uma canção k-pop para que estes jovens começassem a dançar, em plena rua, as coreografias repetidas até à exaustão nos açucarados vídeos musicais. A moda é coisa séria em Seul, e não são poucos os que vaticinam uma revolução similar à ocorrida no Japão nos anos de 1980, nas mãos de Issey Miyake ou Yohji Yamamoto. Volta ao Mundo outubro 2012 066-081_CoreiaSul LB.indd 81 Enquanto isso, no bairro de Sogyeok-dong, a norte do rio Han, são inauguradas exposições de arte quase diariamente. A cena de galerias abertas com a caraterística agitação dos openings é parte da paisagem deste distrito artístico. Em Hongdae, escolho um pequeno lugar com tentadoras bandejas repletas de tempura. Comer e beber sozinho na Coreia vai contra as leis da boa etiqueta (parece que servir álcool a si mesmo é símbolo de arrogância). Felizmente, dois jovens convidam-me para a sua mesa e dão-me as boas-vindas com uma cerveja, à qual misturam um copo de soju (popular licor destilado, com um gosto entre o sake e a gasolina). Depois de uma agradável conversa em inglês rudimentar, vários pratos de vegetais em tempura, bulgogi (vitela marinada) e, como não, kimchi (couve com paprika e alho, prato essencial da cozinha coreana) acompanhados por cerveja abundante e uma quantidade excessiva de soju, damos a noitada por encerrada quando um dos meus novos amigos cai da cadeira, com a garrafa nas mãos, ao tentar, sem sucesso, servir-se de outra dose. Deduzo que se trata de algo comum, porque poucos comensais levantam as cabeças de seus pratos, apesar do barulho. Ao sair do restaurante, e entre abraços de despedida etílica, o mais sóbrio dos meus amigos coreanos tira do bolso da jaqueta uns óculos de armação preta (ele já usa um par) e faz-me usá-los: «Very cool», diz-me, enquanto eterniza a cena com o seu Samsung Galaxy. Olho a foto, que parece desfocada. Uma perceção que tem mais que ver com o soju do que com a graduação inexistente das lentes. n 81 25-09-2012 18:25:52