Sobre Penas e Corações. Sobre Penas e Corações.
Transcrição
Sobre Penas e Corações. Sobre Penas e Corações.
Sobre Penas e Corações. “Eu sempre determinei as propriedades de um plano pela cor de suas areias. Areias vermelhas são usualmente sinal de mortes rápidas e emotivas; areias amarelas são augúrio de longas e dolorosas torturas; e areias negras, ah... Essas me fazem me sentir em casa.” --Layn --Layn marnkhar, doomguard Sobre as mulheres do mundo... ...muito se sabe. Se sabe de seus requintes e requisições. De suas vontades e valores, de suas maravilhas e manipulações. Muita coisa se sabe sobre as mulheres do mundo. Esta não é uma delas. Desde pequena sua mãe lhe falava das bençãos dos deuses, e dos espíritos que trariam boa fortuna à sua casa, e que os augúrios indicavam Asha encontraria felicidade e esperança onde menos esperasse, e que ela viveria uma boa e longa vida, e que ao final Anubis a conduziria à balança, e os 42 juízes de Maat a abençoariam por ter sido uma boa menina. Seu nome era Asha-Kelshasa, mas seus captores a chamaram Tiyet, "a que se move como o vento". Os corpos de seus pais abandonados entre as cinzas, Tiyet foi levada com o árido vento do deserto, que seguia a caravana de mercadores de escravos. Por muitas regiões eles passaram, oferecendo suas posses humanas para os que podiam comprá-las, e capturando os que não tinham recursos para opôr-se. O deserto era inclemente e o progresso doloroso, mas Tiyet mantinha-se sorrindo, pois sabia que aquilo não poderia ser sua vida; que o Sol lhe traria felicidade e que seu destino seria um bom resultado após as pesadas provações. Em visita a um templo da região maldita, ela foi comprada. A rainha do Faraó precisava de uma nova aia, e Tiyet era uma excelente dançarina, flutuando com a menor brisa e ignorando os machucados que a areia deixava em seus pés. Ali foi ela criada, entre os servos de Apophys -- devorador do Sol, e filho de Set e Nephytis -- e todo dia dançava para sua rainha. E o tempo passou, e a rainha começou a padecer de uma misteriosa doença que sua deusa não conseguia curar, e Tiyet passou de menina a mulher, e então seus requintes afloraram. Khamose, o Faraó daquelas terras, era um homem poderoso -- não só em posses, mas enquanto indivíduo. Seus desejos eram muitos, e imediatamente cumpridos. Seu harém, estabelecido após a morte da ciumenta rainha, era constituído das mais variadas beldades. Peles de alabastro e obsidiana, cabelos cor de fogo ou prateados, olhos como as águas de um oásis ou como o interior de uma tâmara, todo tipo de beleza podia ser encontrada ali. E Khamose viu Tiyet dançar, e a jovem foi uma valiosa aquisição para a coleção. E um dia uma praga se abateu sobre a região, e Khamose foi consultar os oráculos para descobrir o que acontecia. "A Rainha morreu de desgosto por estar sendo traída, Faraó," revelou o oráculo, "e seu coração baterá pela última vez nas mãos de quem o trai." Estupefato, o déspota iniciou uma caçada implacável para descobrir que mulher de seu harém o estaria traindo, e a mais leve suspeita era razão para execução. Naquela época, Tiyet se apaixonou por um jovem sacerdote do templo, e os dois começaram a ter um tórrido romance, ocultos tão bem quanto podiam dos sempre vigilantes olhos do Faraó, até a noite em que Lammira, outra esposa de Khamose e uma sacerdotisa de Apophys, começou a suspeitar da dançarina. Preocupada por sua vida, Tiyet escondeu a adaga do chefe da guarda, gravada com seus símbolos, entre as posses da sacerdotisa, e denunciou seu suposto crime a Khamose. Lammira foi decapitada imediatamente, e o inocente chefe da guarda teve seu membro arrancado e foi enterrado até o pescoço no deserto para ser devorado vivo pelos escorpiões. A compreensão de seu odioso crime penetrou a consciência de Tiyet, e naquela noite ela teve uma visão do inevitável final de sua vida -- no sonho, Anubis a arrastava até a balança do julgamento, e seu coração era pesado contra a pena da verdade. O coração de Tiyet era feio, sujo, e pesado, carregado com a morte dos inocentes. Como punição, Tiyet seria entregue a Amam, o monstro um terço crocodilo, um terço hipopótamo e um terço leão, e sofreria por toda a eternidade. Tiyet acordou suando frio, e percebeu que não tinha um momento sequer a perder. Correndo até o templo de Apophys, ela acordou o seu amante e implorou para que este escondesse seu imundo coração das vistas dos deuses. Por mais que ele implorasse que ela reconsiderasse, Tiyet estava resoluta, e ele acabou por ceder. Os dois foram à sala de mumificação do templo, onde ele arrancou seu coração com uma adaga consagrada e o escondeu em um jarro de pedra, que ocultou dentro de uma serpentina efígie de Apophys. A adaga ficou escondida entre as estantes, e o sacerdote carregou sua amada, já embalsamada e envolta em tiras, até um mausoléu próximo. Lá ele a deitou numa lápide e se colocou a seu lado, ingerindo um rápido veneno de forma a encontrá-la no pós-vida. No entanto, algo saiu errado, e Tiyet acordou. Livrando-se do material que a envolvia, ela viu o amado morto e urrou como uma besta desalmada. Saindo do mausoléu, aquela que foi Tiyet correu para a residência do Faraó, onde o encontrou dormindo. Com um rápido golpe, ela penetrou o peito do marido com as mãos nuas e arrancou seu coração, o engolindo ainda pulsante. A refeição não foi o suficiente para saciar sua miserável fome, entretanto, e a condenada transformou-se em uma imensa coruja e voou para longe, procurando mais alimento. Khamose levantou-se entre as penas que flutuavam pelo ar, e percebendo que não podia mais continuar vivo ou tampouco adentrar o reino dos mortos -- não possuia coração que o permitisse chegar ao julgamento de Maat -- arrastou-se até o último mausoléu da região, onde reuniu aos poucos seus servos abandonados pela vida, seu peito aberto eternamente sangrando. Muito tempo se passou. Os visitantes àquela região abandonada eram atacados pela imensa coruja e tinham seus corações devorados por Tiyet ou cercados e mortos pelos servos de Khamose. Quando seus corações eram arrancados, voltavam como sombras amaldiçoadas, que só conseguiam enxergar os vivos e sentiam fome voraz por sua energia vital; quando sucumbiam perante as múmias, os vermes entravam em sua carne e os faziam levantar-se toda vez que invasores aproximavam-se. Era uma existência torturante para qualquer pobre condenado que ali tentasse passar. E UM DIA CHEGOU O HERÓI. O Herói atravessava a região, levando a Noite do Deserto para curar um valoroso guerreiro. Ele foi atacado pelas sombras voadoras, que venceu com certeiros tiros de arco e poderosos golpes de espada. Os escorpiões de Set o seguiam, mas isso não o impediu de adentrar o Vale de Apophys e, vencendo os monstros ali presentes com fulgurantes raios de energia e afastando as múmias com suas palavras abençoadas, descobrir o que havia se sucedido com a dançarina e o Faraó. O Herói utilizou-se de uma máscara que o permitia ver o passado para descobrir onde estava escondido o coração de Tiyet, e após ser engolido pela gigantesca cobra de pedra que o vigiava, destruiu o monstro golpeando-a pelo lado de dentro. O corpo que era Khamose anunciou que o Herói só poderia chegar ao seu destino depois que Tiyet fosse purgada daquele mundo, e sem hesitar, o valente guerreiro seguiu para a mansão onde ela habitava. Lá ele ouvia seu cântico lamurioso, e chegando ao teto do palacete, encontrou a coruja prateada que castigava a região. Seus raios não surtiam efeito na enorme ave, e suas flechas pareciam atravessá-la sem serem sentidas. A coruja pousou próxima do bravo e transformou-se na forma esquálida que lembrava a mulher que ela havia sido. O Herói podia ouvir a batida de seu próprio coração, alta como se seus tímpanos fossem estourar, e quanto mais a mulher se aproximava, a mão estendida em direção ao peito do guerreiro, mais a batida acelerava. Ele sentiu uma poderosa pressão em seu tórax, como se seu coração fosse pular a qualquer momento na direção da garra que se aproximava, e o mundo pareceu parar pelo que se assemelhava a uma eternidade. A criatura próxima, o Herói abriu o recipiente de pedra e retirou o coração de Tiyet de seu interior. A besta estacou, observando o órgão que ainda pulsava com energia maldita, e de súbito o arrancou das mãos dele, engolindo-o instantaneamente. A mulher que havia sido coruja, que havia sido Tiyet, que havia sido Asha, tremeu por um momento e, com um grito de alívio e prazer, se desfez em penas prateadas, que flutuaram na quente brisa da noite. Do Herói não mais se ouviu -- partiu para seu destino, determinado a cumprir sua missão. Khamose finalmente pôde descansar em paz, sua algoz purgada de seus domínios. E Asha? Que há muito havia perdido seu caminho, e finalmente poderia encarar a balança? Se seus pratos se equilibraram... ... só os Deuses sabem.