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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE – PRÉALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina – PI. GRUPO DE TRABALHO: “Corpos, gêneros e sexualidades: Práticas queer e processos políticos de subjetivações”. GT:13 Titulo: Gênero como Suplemento do Sexo ou Sexo Colonizado pelo Gênero? ambivalência do Papeiro Cinderela AUTOR: Marcelo Henrique Gonçalves de Miranda Instituição: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) email: [email protected] Os estudos sobre as mensagens/representações das produções culturais contribuem bastante para um aprofundamento dos estudos de mídia, gênero e sexualidade, além de possibilitarem reflexões sobre reforços e/ou mudanças acerca das representações sociais. Porém, ao não focarem na ambivalência dos sentidos materializados via mediação, terminam por deixar lacunas relativas à possibilidade de algum tipo de desestabilização por meio do humor, paródia e ironia da inteligibilidade heteronormativa. Vale ressaltar que via deboche, paródia/ironia, riso e escárnio vários programas de humor abordaram ou abordam a questão da homossexualidade masculina, feminina ou ambas. Esses programas de humor têm a possibilidade, exatamente por “não serem levados a sério”, de poder abordar temas ainda “tabus” na sociedade brasileira como a homossexualidade e a transexualidade. Assim, via ironia por significar o contrário do que diz e por meio da paródia que é uma forma “de imitação caracterizada por uma inversão irônica, nem sempre às custas do texto parodiado, [e por ser] (...) repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (HUTCHEON, 1985, p. 17), há possibilidades das categorizações hegemônicas de sexo, gênero e sexualidade serem subvertidas e ou reforçadas, pois tanto a paródia como a ironia são ambivalentes, sendo esta última considerada transideológica permitindo subverter ou reiterar padrões hegemônicos; e a paródia como processo de modelação estrutural, revisão, inversão e transcontextualização. Ou seja, essas características da paródia possibilitam a incorporação ou subversão de elementos da inteligibilidade heteronormativa. Algumas questões surgem a partir desse cenário: essa visibilidade da homossexualidade na mídia garante que estereótipos sejam rompidos? Preconceitos podem ser desestabilizados por meio das condensações de sentidos das produções culturais midiáticas? Categorias hegemônicas sobre a heterossexualidade compulsória podem ser desconstruídas ou reforçadas nas representações culturais da mídia? Há ambivalência, ambiguidade, sentidos múltiplos na mediação entre a produção cultural – programas de humor - e a recepção? A performance do ator transformista Jeison Wallace que interpreta Cinderela no Programa Papeiro da Cinderela pode servir de modelo para exemplificar o pensamento de Judith Butler, uma importante filósofa pósestruturalista que problematiza as bases epistemológicas da Teoria Feminista (FEMENÍAS, 2003) que problematiza a inteligibilidade social heteronormativa. Para Butler, um indivíduo que nasceu com um corpo masculino desejar mudar seu corpo e sua genitália para o sexo feminino aponta a artificialidade da construção social em relação ao sexo, ao gênero e à sexualidade que eram defendidas anteriormente como naturais. Assim, Butler, filósofa pós-estruturalista, é uma das principais autoras que denuncia a existência de pressupostos moralizantes em relação ao sexo/gênero/sexualidade. A autora problematiza a compreensão do sujeito, no que se refere à afirmação – até então fundamental nos Estudos de Gênero – de que o sexo seria biológico e apenas o gênero seria uma criação sóciocultural encima dos corpos sexuais. Butler (1985, 1999, 2003, 2008) também indica como sexo-gênero-sexualidade são concebidos de forma compulsória em uma heteronormatividade que condiciona a inteligibilidade social. Desta maneira, a autora organiza suas proposições problematizando a ordem compulsória do sexo/gênero; indicando que a possibilidade da mudança social a ser realizada via transformações nas estruturas de inteligibilidade acontece por meio da paródia feita pelas drag queens/kings, das/dos transexuais em relação ao sexo, ao gênero e à sexualidade, como no caso de Cinderela do programa Papeiro da Cinderela que será exposta mais adiante. Claudia Costa indica que segundo a discussão de várias teóricas feministas, o encontro entre o Feminismo e o Pós-Estruturalismo é carregado de ambigüidades e contradições, mas também repleto de possibilidades. O reconhecimento de que o sujeito se constrói dentro dos sistemas de significado e de representações culturais, os quais por sua vez encontram-se marcados por relações de poder permitiu duas importantes estratégias teóricas e epistemológicas: por um lado, nos forneceu instrumentos valiosos para desconstruir as categorias tradicionais do indivíduo, inclusive as noções de uma identidade e experiência femininas universais e, por outro lado, nos proporcionou uma maior sensibilidade (forjada pelas exigências da política) para compreender os mecanismos diversificados constitutivos dos diferentes sujeitos no campo social (2006, p. 58). Esse encontro, exemplificado na obra de Butler, dentre outros teóricos, traz questionamentos extremamente excitantes em relação à perspectiva identitária no feminismo que assume – por questões políticas – a identidade de mulheres dentro de sua produção teórica e política. Mesmo colocando mulheres no plural, para abarcar etnia/raça, sexualidade, camada social, geração etc., o feminismo - ou melhor, parte do feminismo continua defendendo um sujeito centrado, racional capaz de projetos emancipatórios, além de verdades transculturais. Tal política do reforço do “eu”, da questão identitária, termina por fortalecer, exatamente, o que tanto o movimento como a teoria feminista tentam combater: as estruturas opressoras nas relações de gênero e sexualidade. Dessa maneira, a separação entre sexo e gênero, proposta por Butler, permite que a própria unidade do sujeito seja potencialmente contestada, visto que a distinção entre elas abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo. Desta maneira, corpos masculinos não deveriam constituir compulsoriamente apenas “homens”, nem corpos femininos deveriam constituir apenas “mulheres”. Esses corpos poderiam assumir outros gêneros como no caso dos “entrelugares” das drag queens e dos corpos “abjetos”/queer – mulheres masculinizadas que escolhem homens homossexuais –, práticas como strapon – casais heterossexuais que invertem papéis sexuais (SAFATLE, 2006). A questão da mudança social no pensamento de Butler é obtida pela desestabilização das construções naturalizadas – sexo/gênero/sexualidade que contrariam a inteligibilidade social, por meio da paródia, como já dito. Esta última, com sua possibilidade de inversão de sentidos, permite que as drags queens/kings mostrem a fragilidade do sistema da heterossexualidade compulsória. Butler expõe que uma genealogia das ontologias do gênero, sendo bem-sucedida, desconstrói a essência do gênero, explicitando a naturalização no “interior das estruturas compulsórias criadas por várias forças que policiam a aparência social do gênero” (2003, p. 59). Butler, entretanto, negligência um importante aspecto da interpretação de qualquer “texto” no ato de sua recepção: os sentidos produzidos na mediação dos programas de humor paródicos dependem do contexto de quem os recebe, ou seja, da comunidade discursiva a que esses indivíduos pertencem, resultando em posturas mais ou menos reflexivas na direção de um projeto político emancipatório. Cláudia Costa (2006) expõe a crítica que Susan Bordo faz à possibilidade da mudança social acontecer via a interpretação de “texto” paródico/irônico. Para Bordo, Butler não leva em conta nem o posicionamento dos receptores dos body-in-drags e, consequentemente, suas várias respostas, nem as possíveis diferenças na recepção de mulher em drag masculina e homem em drag feminina pela sociedade. Assim, a transformação política, para Butler, aconteceria por mudanças na inteligibilidade social a partir da paródia. Isto é, mesmo que os corpos queers1 não tenham intenção alguma de emancipação política, suas paródias corporais problematizam os processos de categorização social naturalizados em relação à masculinidade/feminilidade e heterossexualidade/homossexualidade. Visto que, para a autora, a mudança social não acontece como resultado de projetos políticos emancipatórios criados por sujeitos reflexivos, mas por meio da paródia que desestabiliza a inteligibilidade heteronormativa. Pode-se deduzir, então, que a categoria política paródia de Butler é ahistórica? Ela vai cumprir sua função de desestabilizar a ordem hegemônica heteronormativa independente de quaisquer contextos históricos? A paródia pode ser concebida como uma verdade trans-histórica, premissa criticada pelo paradigma Pós-Estruturalista lugar em que a própria filósofa se encontra? Ou os sentidos condensados dependem de quem os formulam, do local, e da 1 O termo queer tinha um sentido pejorativo de estranho, esquisito, anormal para designar os homossexuais. Posteriormente, o termo ganhou outro significado como sendo subversivo, que escapa à heterossexualidade compulsória (MISKOLCI, 2009). época em que esses indivíduos estão situados, ou seja, os sentidos são contingenciais? Vale ressaltar que o pós-estruturalismo tem ligações com a tradição estruturalista, e seu termo pós necessariamente não significa uma negação, mas sim uma tentativa de ultrapassar os limites de uma presença, essência, substância, de Deus, um sujeito que ainda exista no estruturalismo. Como exemplo dessa presença divina, transcendental, em Lévi-Strauss, “as regras culturais não são alteráveis, senão inalteradas e universais, marcando (...) uma ideia de centro que remetia a ideia de transcendência” (BUTLER, 2006, p. 16). As ideias de Butler a respeito da mudança social por meio da paródia são interessantes, todavia parece que o fato de não problematizar os sentidos múltiplos e ambivalentes como são expostos por Hutcheon (1985), mais adiante, compromete a possibilidade de mudança social defendida pela mesma. Assim, não há garantias que os indivíduos, ao verem e interagirem com os corpos “abjetos” das drag queens, das transexuais, problematizem suas próprias categorias de compreensão da realidade social, desnaturalizando noções de corpo, de gênero e sexualidade. Os sentidos produzidos pelos indivíduos podem, inclusive, fortalecer e reiterar as estruturas compulsórias e heteronormativas existentes que a autora denuncia e quer desconstruir. Dessa maneira, pergunta-se: os sentidos ambivalentes, ambíguos e múltiplos do Papeiro da Cinderela, vice-líder de audiência no seu horário, contando com uma audiência média de 107 mil telespectadores por dia, desestabiliza a inteligibilidade social das estruturas hegemônicas em relação à heteronormatividade e à heterossexualidade compulsória por meio da dimensão crítica que a ironia, com suas arestas, fornece à paródia? A paródia consegue desconstruir a inteligibilidade hegemônica da heterossexualidade independente de quem a receba e em qualquer contexto social e histórico? Diante do exposto, temos por objetivo desta pesquisa investigar os sentidos ambivalentes, ambíguos e múltiplos possibilitados pelo humor, paródia e ironia, na mediação com homossexuais e a relação desses sentidos com a heteronormatividade e a heterossexualidade compulsória a partir de um programa de televisão – o Papeiro da Cinderela. Assim, foca-se nas distintas interpretações dos homossexuais masculinos de camadas populares e médias, constituídos em diferentes comunidades discursivas e seus horizontes de interpretação. Entretanto, a hipótese defendida é que o programa Papeiro da Cinderela não abre processo para subverter as estruturas da inteligibilidade social em relação à heteronormatividade e à heterossexualidade compulsória com a paródia realizada pelas drag queens. Em decorrência dos sentidos ambivalentes, múltiplos e ambíguos, se há alguma subversão, ela só acontece devido à preexistência da comunidade discursiva que fornece o contexto tanto para o emprego como para a atribuição da subversão via paródia/ironia. O Papeiro da Cinderela O nosso campo empírico focou no Programa Papeiro da Cinderela, uma vez que esse programa utiliza do humor, da paródia e da ironia com drags queers o que o faz constituído por sentidos ambivalentes em relação ao sexo, gênero e sexualidade; por ser um programa direcionado às camadas populares, pois Cinderela parodia a “bicha-pintosa” suburbana recifense; e por ter sido alvo de estudos, mencionados abaixo, que colocam Cinderela e ou o Papeiro Cinderela com características que subvertem a estética burguesa e a inteligibilidade heteronormativa. No entanto, esses estudos não focam na condensação de sentidos ambivalentes, múltiplos e ambíguos que o Papeiro provoca em sua recepção. Além de Cinderela e o Papeiro terem uma relação particular com Pernambuco e sua capital. O Papeiro da Cinderela é veiculado desde 2002 pela TV Jornal do Commercio, afiliada do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), de segunda a sexta-feira, às 11:20h. O programa parodia o programa de Luciano Huck Caldeirão do Huck, veiculado, aos sábados, pela Rede Globo de Televisão. O Papeiro da Cinderela também parodia a personagem Louro-José, do Programa Mais Você, da apresentadora Ana Maria Braga, veiculado pela mesma rede de televisão do programa anterior, porém, além de parodiar, utiliza-se de palavras de sentindo duplo, pois o termo frango, em Pernambuco, ganha a conotação pejorativa de veado, bicha, homossexual. Assim como papeiro é outro termo que assume duplo sentido: um denotativo, relacionado a tipo de panela utilizada para fazer papa; o outro, no sentido conotativo significando bunda/anus, fazendo alusão ao coito anal (atividade/passividade). Tendo ao longo desses 10 anos de exibição sua principal personagem midiática Cinderela ou carinhosamente chamada de Cyndi, interpretada por Jeison Wallace, é uma “velha” conhecida da região tendo mais de 20 anos de existência. O ator Jeison Wallace se apresenta travestido incorporando a personagem Cinderela dos Contos de Fadas. A cinderela pernambucana parodia o universo das travestis suburbanas da periferia de Recife. Essa personagem teve seu nascimento no grupo Trupe do Barulho via peça teatral Cinderela, a história que a sua mãe não contou. Peça que fez uma adaptação do conto de fada de Cinderela parodiando o universo gay e periférico recifense. Cinderela é uma “bichinha”, negra, não correspondendo ao padrão de beleza, possuindo cabelos desgrenhados, maquiagem pesada, óculos de lentes bem grossas e grau muito elevado, conhecido popularmente como fundo-de-garrafa, órfã e morando em uma pequena casa do Sistema Habitacional (COHAB), no subúrbio da região metropolitana recifense. A personagem se torna ainda mais paródica por não possuir um comportamento “padrão feminino” instituído socialmente (DOURADO, 2009). Essa obra teatral estreou em 1991, sendo a peça que mais tempo passou em cartaz na cena teatral pernambucana (REIS, 2002). A relação da Trupe do Barulho e da personagem Cinderela com a sociedade é perpassada por momentos harmoniosos e conflituosos, ou seja, uma relação de amor e ódio. Tal relação é consequência da variedade de sentidos que foram e são condensados no pólo da recepção das produções culturais da Trupe e, de maneira especial, do programa Papeiro da Cinderela. Os sentidos ambivalentes, múltiplos e ambíguos materializados na interpretação da paródia e da ironia pertencentes ao universo do sexo/corpo, gênero e homossexualidade são demonstrados por um lado pelo sucesso da peça e do programa televisivo Papeiro da Cinderela, e por outro pela censura, pela ação judicial que os atores e a produção midiática tiveram de enfrentar. No carnaval de 1992 a Trupe faz a cobertura do bloco As Virgens do Bairro Novo. Agremiação carnavalesca que desfila com homens travestidos de mulheres contendo muita irreverência e deboche. A cobertura do desfile foi um sucesso (REIS, 2002a, 2002b), pois as personagens entrelaçavam suas histórias com as das várias “virgens” que desfilavam. No entanto, no ano seguinte, a direção do bloco proibiu, sem maiores explicações, que o grupo fizesse a transmissão do desfile. Essa proibição não estaria motivada por um viés homofóbico? O que motivou essa proibição não seria uma lógica da heterossexualidade compulsória? Para Luís Reis, esse veto pode representar, dentre outras especulações, que o grupo parodia travestis suburbanos destoando do bloco que parodia mulheres (DOURADO, 2009). Vale ressaltar que em 2006, houve uma polêmica, retratada pela assessoria de impressa do Ministério Público de Pernambuco, em que um dos diretores do referido bloco afirma não ser interessante a participação de homossexuais travestidos, pois descaracterizaria o bloco. Atualmente, há o bloco Anárquico Virgens de Verdade, e corre a boca miúda, extra-oficial, pela comunidade gay recifense, que ser virgem de verdade é não poder ser homossexual travestido – drag queen – ou travesti, mas sim, ser heterossexual. Dessa maneira, não há “incentivo” para que homossexuais (gays, travestis etc.) participem desse bloco que retrata uma lógica heteronormativa na sua prática social. Assim, perguntase: a aceitação do universo engraçado, humorístico conseguido com Cinderela desestabilizou, de alguma forma, sentidos hegemônicos sobre a heterossexualidade? Que sentidos são condensados via mediação entre as produções culturais de Cinderela e a sociedade? Ou a condensação desses sentidos depende da imersão dos telespectadores em suas várias comunidades discursas? Vale destacar que há elementos da estética do grotesco, tais como: cômico-burlesco, baixo-cômico, distorção caricatural etc., estão presentes nas características carnavalesca da Comédia Dell’Arte que são materializadas no Papeiro da Cinderela2, assumindo dimensões entre o ridículo e o escatológico 2 Em 2005 o Papeiro da Cinderela passa a ser diário, tendo o perfil de audiência, descrito de acordo com o Jornal do Commercio de 06 de novembro do mesmo ano: 62,38% feminino, sendo “48,66% (BAKHTIN, 1999; KAYSER, 2009; VIEIRA, 2008) e gerando interpretações ambivalentes entre o reforço de estruturas hegemônicas, elitistas, machistas e homofóbicas e a subversão dessas mesmas estruturas. É por esses caminhos que o ator Jeison Wallace, com sua personagem Cinderela, e a Trupe vão conquistando espaço junto ao público pernambucano e nacional, abrindo caminho na indústria cultural, dando visibilidade aos estratos periféricos. No entanto, vale destacar que mais uma vez levando em consideração a ambivalência de sentidos que o Papeiro da Cinderela produz, em dezembro de 2007, a TV Jornal recebe do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) a Ação Civil da vara da Infância e da Juventude do Recife, solicitando sua suspensão. Fazendo menção ao fato do referido programa ser veiculado em horário (11h20) em que a audiência é composta por um número maior de crianças e adolescentes, prejudicando, desse modo, a “boa formação” desses indivíduos. É importante sublinhar que a ação foi elaborada por representação das organizações não governamentais: Auçuba, Centro de Cultura Luiz Freire, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), Instituto Academia de Desenvolvimento Social, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Rede de Resistência Solidária e Organização para desenvolvimento da Comunicação Social (SINOS). Para o MPPE e para as referidas ONGs, o programa reforça a introjeção de preconceitos sociais de toda ordem, violência sexista, estereótipos de homossexuais, representando-os como algo ridículo e a partir desse contexto estimula a homofobia e o desrespeito aos Direitos Humanos. A ação pede a suspensão do programa durante um prazo razoável e indenização pecuniária pelos danos sofridos pela audiência, no valor de R$ 1 milhão (DOURADO, 2009). Enquanto que há setores que reprovam o Papeiro da Cinderela, divididos entre mais conservadores como a diretoria do bloco carnavalesco As Virgens pertencentes às classes A, B e C e 51,33% às classes D e E” (DOURADO, 2009, p. 24). O que pode ser confirmado pelas propagandas dos produtos comercializados dentro do programa, tendo como público alvo o universo das donas-de-casa de camadas populares. Em 2007, o Papeiro passa a ser transmitido pela TV Tambaú/PB e pela TV Alagoas/AL, respectivamente, ambas afiliadas do SBT. Chegando, em momento de pico, a ultrapassar a audiência da Rede Globo, sua principal concorrente. do Bairro Novo que proíbem a cobertura do desfile por Cinderela e seus integrantes de trabalho por considerarem eles como homossexuais, “anormais”, “errados”; outros setores mais progressistas tais como: o Ministério Público e as ONGs - que estão para proteger as “minorias”: pobres, homossexuais, crianças etc. - condensam sentidos que reprovam, “uma homossexualidade estereotipada”, uma violência sexista, uma ridicularização dos homossexuais e da pobreza. Eles rejeitam uma estética do grotesco e privilegiam uma homossexualidade “correta”, “mais limpa”. Talvez mais heteronormativa? Há setores, como parte dos intelectuais, que condensam sentidos mais positivos em relação a Cinderela e ao Papeiro da Cinderela. Estudiosos como Reis (2002 a e b), Vieira (2008) e Doutorado (2009) interpretam as atividades da Cinderela e do Papeiro da Cinderela como algo subversivo dos padrões hegemônicos seja em relação à estética burguesa seja em relação às questões da heteronormatividade e heterossexualidade compulsória. Assim, a paródia e a ironia contidas nessas produções dão margens para ambiguidades, ambivalência e sentidos múltiplos em relação ao sexo, gênero e sexualidade. Dessa forma, os sentidos abertos da paródia, via sua transcontextualização, e da ironia, por meio de sua política transideológica (HUTCHEON, 2000), possibilitam interpretações realizadas pelo MPPE e pelas ONGs que no combate à homofobia criticam e punem o programa Papeiro da Cinderela, ao mesmo tempo em que esse grupo é discriminado por setores da sociedade pernambucana, como no caso da diretoria das Virgens do Bairro Novo, por serem atores-transformistas parodiando o universo gay, travesti, suburbano recifense. Além da condensação de sentidos subversivos interpretados por parte da intelectualidade acadêmica. Humor, paródia, ironia e mediação A complexidade da compreensão do trabalho do humor, da ironia na paródia e da própria paródia e suas polissemias são destacadas por Georges Minois (2003), Henri Bergson, (2007) e Linda Hutcheon (1985, 2000), dentre outros. A natureza e a política transideológicas da ironia atuam possibilitando uma diversidade de posições políticas conservadoras ou subversivas ao abordar as produções sobre a ironia que sempre será vista tanto por uma perspectiva negativa, força conservadora; como por uma positiva, modo de autocrítica, autoconhecimento e auto-reflexão que podem desafiar a hierarquia nas relações sociais de dominação (HUTCHEON, 2000). Para Hutcheon, não há nada de intrinsecamente subversivo na ironia, nem há nenhuma relação necessária entre ela e política radical. A ironia tem sido usada, via sátira ou sarcasmo, burla, para reforçar ao invés de subverter a ordem estabelecida. Todavia, a circunlocução e a aresta da ironia possibilitam que ela seja uma forma possível de oposição, por meio do dito e não dito. Assim, quando alguém está envolvido em um sistema que lhe pareça opressivo pode oferecer alguma resistência ao fazer uso das regras estabelecidas, porém modificando e/ou desconstruindo os sentidos hegemônicos. O foco do estudo de Hutcheon, desta forma, recai na compreensão de como e por que a ironia/paródia é usada e entendida como uma prática ou estratégia discursiva e na análise das conseqüências tanto de sua compreensão quanto de seu malogro, como, também, da sua capacidade de subverter ou reforçar a ordem estabelecida. A ironia acontece na tensão entre o sentido literal e o sentido figurado. Porém, resta saber, afinal, como se dá a interpretação desse “negócio ariscado” chamado ironia. Para Hutcheon (2000) não há garantias de que o receptor decodificará os sentidos irônicos produzidos pelo emissor, uma vez que esse é um processo produtivo, ativo, de atribuição e interpretação que envolve, ele mesmo, um ato intencional de inferência por parte do receptor. Dessa maneira, a ironia/paródia, no que diz respeito às suas dimensões semântica e sintática, não pode ser considerada separadamente dos aspectos sociais, históricos, culturais e políticos de seus contextos de emprego e atribuição na relação entre a recepção e emissão dos sujeitos envolvidos no processo comunicacional. Ou seja, os sentidos condensados são dependentes das comunidades discursivas de quem recebe a ironia e ou paródia. Assim, a interpretação do programa Papeiro da Cinderela em relação às concepções de macho e fêmea, masculinidade e feminilidade, heterossexualidade e homossexualidade são muito mais complexas devido à polissemia do lado da recepção materializadas nas mediações entre codificação e decodificação. A autora expõe que as múltiplas comunidades discursivas a que cada um de nós pertence, de maneira diferente, não podem ser reduzidas a uma única categoria tais como: classe social, gênero, orientação sexual, raça-etnia etc. Essas comunidades envolvem crenças ideológicas socialmente aceitas, suposições sobre o que pode ser dito e não dito, necessário, revelador, essencial etc., tão enraizadas que elas não são tidas como suposições de maneira alguma, mas sim como “verdades”. Esse modo relacional das comunidades discursivas sobrepostas é usualmente referido como “competência” do interpretador. A partir do contexto acima descrito a respeito das comunidades discursivas, esta pesquisa foca na mediação do programa Papeiro da Cinderela. Ela dá ênfase à interpretação polissêmica das mensagens pelos atores sociais que se concentrariam no pólo receptor na sua interação com as produções culturais. Segundo Eagleton (1997), as análises sobre os sentidos produzidos - via mediação - são constituídas por modelos de estudos da fenomenologia e da hermenêutica, sendo os receptores/leitores situados em contextos sócioculturais específico. As “leituras” não são lineares, pois algo que se compreende agora pode sofrer alteração como conseqüência do que vem a seguir, transformando, desta maneira, o nosso entendimento original. Corroborando com a importância do receptor, Stuart Hall (2003) analisa a circulação de sentidos na produção, consumo e reprodução dos produtos culturais. Para esse autor, as produções e recepções das mensagens televisivas não são idênticas, mas há uma interdependência. O discurso da televisão – no caso em questão o programa Papeiro da Cinderela –, que aparenta uma total autonomia e um sistema fechado “tira seus assuntos, agendas, eventos, equipes e imagens da audiência, de outras fontes e formações discursivas dentro do contingente da estrutura sociocultural e política mais ampla da qual a própria televisão faz parte diferenciada” (2003, p. 369). Assim, cada um dos momentos do processo de comunicação está em articulação e pode ser rompido sem, necessariamente, fechar o processo de interpretação. Jesús Martín-Barbero (1997, 2008) também localiza os sujeitos em contextos históricos nas interpretações da recepção, pois as inserções sociais dos leitores da mídia, com suas mestiçagens sócio-culturais, influenciam decisivamente suas interpretações das mensagens. Sua proposta de análise é colocar a recepção no campo da cultura abordando a maneira como a hegemonia trabalha e como ela mobiliza suas resistências. O foco recai, assim, nos modos de apropriação e réplica dos grupos “subalternos” - gays de camadas média e popular - com suas respectivas mestiçagens. Para o autor, a mestiçagem na América Latina é mais do que um fato social de cruzamento de raças. Ela é algo que constitui os indivíduos, temporalidades e espaços, memórias e imaginários, possibilitando ainda, uma crítica à razão dualista iluminista. O telespectador está “engendrado pela competência cultural que vive da memória, pela narrativa gestual, auditiva e pelos imaginários que alimentam os sujeitos sociais [dos diversos grupos] (...)” (Op. cit. p. 303). Portanto, os sentidos emitidos no programa Papeiro da Cinderela serão interpretados/condensados mediante as “mestiçagens” (localização histórica, sócio-cultural, religiosa, econômica, geração, sexualidade, gênero etc.) que constituem comunidades discursivas. Infelizmente, as análises das mediações e seus sentidos ambivalentes, ambíguos e múltiplos no campo de estudo da mídia são escassas. E, essas pesquisas diminuem mais ainda em relação aos programas humorísticos paródicos e com temática das homossexualidades. Desta maneira, esta pesquisa busca, de forma original, abordar temas centrais da sociologia: mídia e sexualidade, suprindo lacunas, nessa produção de conhecimento, entre paródia, ironia, homossexualidade, mediação de sentidos entre a produção e a recepção. A partir desse objetivo selecionamos o programa Papeiro da Cinderela como campo empírico uma vez que este programa faz 10 anos que é veiculado pela TV Jornal do Commercio, afiliada do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Com a finalidade da apreensão dos sentidos ambivalentes, ambíguos e múltiplos, selecionaram-se gays masculinos de camada popular e média. O de ter selecionado gays é decorrente da subjetividade homossexual ser criação da Idade Moderna e conseqüência da inteligibilidade heteronormativa que coloca esses indivíduos como “anormais” complementando e definindo os limites da “normalidade” heterossexual. Sendo assim, esse grupo é marcado fortemente por essa lógica da heterossexualidade compulsória. A seleção por camadas sociais, no caso dos homossexuais de camada popular, diz respeito ao fato do programa ser direcionado para esse grupo, pois Cinderela parodia a travesti da periferia recifense. Sendo o grupo de camada média escolhido como uma forma de controle para apreender mudanças na condensação de sentido em decorrência dessa comunidade discursiva. Bibliografia BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Media e no Renascimento. São Paulo-Brasília: EDUNB-HUCITEC, 1999. BENATTI, Márcia. A Ironia como Estratégia Discursiva da Revista Veja. 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