fazendo as pazes com a diversidade
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fazendo as pazes com a diversidade
FAZENDO AS PAZES COM A DIVERSIDADE VANDANA SHIVA: Enquanto fazendeiros indianos estão adotando satyagraha (compromisso com a verdade) contra o controle global de corporações transnacionais, a Dra. Vandana Shiva examina a violência das monoculturas, tanto agrícolas como ideológicas, e argumenta que a diversidade é uma ferramenta essencial para a mudança não-violenta – e que as questões ecológicas são inseparáveis da "justiça social, paz e democracia" A "Revolução Verde" é um exemplo típico do paradigma do desenvolvimento. Ela destruiu sistemas agrícolas diversificados, adaptados aos diversos ecossistemas do planeta, globalizando a cultura e a economia de uma agricultura industrial. Exterminou milhares de culturas e variedades de cultura, substituindo-as por monoculturas de arroz, trigo e milho em todo o Terceiro Mundo. Substituiu aportes internos por aportes intensivos de capital e químicos, criando dívidas para os fazendeiros e morte para os ecossistemas. A "Revolução Verde" não significou apenas abrir as portas à violência contra a natureza. Por criar uma agricultura gerenciada externamente e controlada globalmente, ela semeou a violência na sociedade. Mudou a estrutura dos relacionamentos sociais e políticos - antes baseados em obrigações mútuas (embora assimétricas) dentro do vilarejo – e agora transformados em relacionamentos de fazendeiros com seus bancos, lojas de venda de sementes e fertilizantes, compradores de alimento, vendedores de máquinas agrícolas e eletricidade. Os fazendeiros, pulverizados e fragmentados, relacionando-se diretamente com o estado e o mercado, foram levados a uma erosão das normas e práticas culturais. Além disso, diante da escassez de aportes internos, gerou-se conflito e competição entre as classes sociais e entre regiões. A centralização do planejamento e alocação que possibilitou a "Revolução Verde" não afetou somente a vida dos indivíduos, mas também a própria concepção que têm do ser. Com o governo servindo de juiz, decidindo todas as questões, qualquer frustração passou a ser uma questão política. Num contexto de comunidades diversificadas aquele controle centralizado gerou conflitos comunitários e regionais. Cada decisão política traduziu-se em termos da política do "nós" e "eles" – "nós" fomos tratados injustamente, enquanto "eles" ganharam privilégios não merecidos. Uma pluralidade positiva tornouse dualidades negativas, competindo umas com as outras, competindo pelos escassos recursos que determinam o poder político e econômico. A diversidade sofreu uma mutação para tornar-se dualidade, uma experiência de exclusão. A intolerância da diversidade tornou-se a nova doença social, tornando as comunidades vulneráveis ao colapso e à violência, à decadência e à destruição. ORAÇÃO: Em 1942 os nazistas destruíram todos os monumentos da Polônia dedicados a heróis e eventos patrióticos locais. Os cidadãos então começaram a visitar esses lugares vazios e oferecer orações. Em 1966, 12 Quakers sentaram-se na galeria do Senado Americano quando a guerra do Vietnam estava sendo preparada. Eles rezaram pela paz até serem presos e levados dali. BADALAR DOS SINOS: Quando os russos invadiram a Tchecoslováquia em 1968, os sinos tocaram como sinal de pesar em todo o país. Na França ocupada pelos nazistas o governo ordenou que todos os sinos das igrejas tocassem para celebrar a vitória dos nazistas. Na igreja de André e Magda Trocme, de onde se liderava os cidadãos que ajudavam os judeus a escapar, a igreja estava trancada e guardada por uma mulher. Ela encontrava-se em pé diante da igreja e quando a polícia veio e perguntou-lhe porque os sinos não estavam tocando como ordenado pelo governo, ela disse: "Estes sinos não são do governo, são de Deus!" JEJUM: Gandhi jejuava com freqüência como parte de sua luta não-violenta. Quando lhe diziam que o jejum era coercitivo, ele dizia: "Sim, como a cruz". Na Itália, quando uma criança morria de desnutrição, Danilo Dolci jejuava para chamar a atenção sobre a miséria generalizada e o desemprego. Recusava alimento até que o governo começasse a fornecer ajuda. Em 1956 ele liderou 1000 pescadores desempregados num jejum de 24 horas na praia. Chegou a jejuar contra a Máfia – num barraco no bairro onde morava um chefão da Máfia; isto deu a muitos a coragem de denunciar e fornecer provas dos crimes praticados pela Máfia. GREVE: Em 1953 houve uma insurreição não-violenta de trabalhadores na Alemanha Oriental. Todas as armas foram apreendidas pelos guardas da fábrica. Os líderes pediram aos trabalhadores que não provocassem o exército russo. Numa das fábricas os trabalhadores foram reunidos antes da chegada do exército. Alguns começaram a xingar e cuspir nas tropas. Os líderes rapidamente instaram os trabalhadores a voltar para os locais de serviço, mas sem trabalhar. Todos seguiram em ordem para seus lugares. SÍMBOLOS: Quando os nazistas ordenaram a todos os judeus da Dinamarca que usassem a estrela amarela de Davi no braço, o rei da Dinamarca andou de bicicleta por toda a cidade de Copenhagen usando uma estrela. Logo a maioria dos dinamarqueses usava uma estrela também, e os nazistas não conseguiam saber quem era judeu e quem cristão. Quando as tropas mexicanas atiraram e mataram muitos estudantes na praça da Capital, cruzes vermelhas foram pintadas pelas moças nos lugares onde os estudantes tinham tombado. Apesar da praça estar cercada por tropas, a população vinha depositar flores sobre as cruzes. Ao saírem dirigiam-se aos soldados e diziam: "Porque apontam armas para nós? Vocês são oprimidos também". CANÇÕES: A música pode ter um grande poder de mobilização da resistência popular. Os alemães que resistiam ao nazismo de Hitler eram fortalecidos por sua canção: "Die Gedanken sind frei" (Os pensamentos são livres). A canção ajudava as pessoas a lembrarem que Hitler não podia controlar suas mentes se elas não permitissem. No movimento pelos direitos civis, "We Shall Overcome" (Nós Venceremos) e "O Freedom" (Ó Liberdade) levaram ânimo às pessoas durante os dias mais difíceis de sua luta. HUMOR: Até o humor pode fortalecer a resistência de um povo. Depois da Segunda Guerra Mundial os russos ocuparam a Áustria. Lá erigiram uma enorme estátua de Stalin, mas o povo queria que os russos fossem embora. Certa noite os estudantes amarraram uma mala à mão da estátua, e todos deram boas risadas. Sob o comunismo os poloneses tinham uma piada a respeito daquela forma de governo: "Qual a diferença entre comunismo e capitalismo? Sob o capitalismo, as pessoas exploram as pessoas. Sob o comunismo é o contrário". NÃO-COOPERAÇÃO: Se as pessoas têm poder que delegam ao estado pela aceitação de suas políticas, então podem retirar este poder recusando-se a cooperar com estas políticas. Não é preciso que isso assuma a forma de um desafio aberto. Pode ser uma obstrução lenta, calculada, deliberada, daquelas leis e políticas ofensivas. Há muitos exemplos de tal nãoobediência generalizada. Muitos dinamarqueses e noruegueses deixaram de cooperar com as ordens nazistas sobre os judeus. Oficiais nazistas que se opunham a Hitler faziam "corpo mole". Escreviam relatórios longos e detalhados para clarificar – e atrasar – as ordens de Hitler. Eles se tornaram ótimos em cometer errinhos bobos até que Goebels queixou-se amargamente de sua "sabotagem silenciosa". Certa vez alguns prisioneiros judeus escaparam e o exército enviou um telegrama pedindo reforços urgentes. A jovem telegrafista arriscou sua vida atrasando o envio do telegrama por quatro horas. Quando os reforços chegaram, a fuga já tinha sido um sucesso. Um historiador do período nazista escreveu: "Hitler, que desprezava a opinião do mundo e não dava ouvidos à razão, podia ser totalmente enfraquecido por uma lenta obstrução". Estes são apenas uns poucos tipos de não-violência ativa. Para aqueles que dizem: "Mas depois que tudo foi tentado, a violência será necessária", a questão é que nem tudo foi tentado ainda. A maioria dos movimentos de mudança social mal começaram a experimentar o verdadeiro poder e flexibilidade da não-violência. Geralmente, recorre-se à não-violência por um ano ou dois, ou cinco, e depois recrudesce a violência durante uma geração. Talvez uma das maiores descobertas do século XX é o verdadeiro poder de movimentos não-violentos em massa; antes deste século a maioria das tentativas de uso da não-violência era de indivíduos ou pequenos grupos. Outros dizem que a não-violência é muito lenta. É verdade que algumas revoluções violentas são muito rápidas, mas algumas são muito lentas. O mesmo vale para as revoluções não-violentas. Alguns ditadores são depostos rapidamente por guerrilhas armadas, mas outros caíram de repente diante de insurreições de estudantes desarmados. Por outro lado, tanto Gandhi quanto Mao levaram 25 anos para completar suas revoluções. Certamente a teoria da não-violência não é tão poderosa quanto a ação violenta. O que estou dizendo é que devemos estar dispostos a dedicar tanta disciplina, tempo e sacrifício à mudança não-violenta quanto dedicamos à mudança violenta. No mínimo, devemos ser tão críticos no exame da violência quanto somos no questionamento da não-violência. A violência foi amplamente testada durante o século XX. O mundo hoje geme sob o peso do poderio militar. Mais da metade dos cientistas do mundo estão empenhados em desenvolver mais métodos, mais assustadores, de destruição em massa. A proliferação de armas nucleares aumenta diariamente a possibilidade de uma catástrofe global. E se gastássemos ao menos 5% dos recursos hoje gastos em violência em esforços de mudança pacífica? Na luta pela libertação da Índia, Gandhi foi pioneiro ao liderar uma nação à independência através da filosofia da não-violência. No Japão, desde o bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, os budistas japoneses têm sido incansáveis no seu testemunho contra a guerra, a favor de um Japão sem armas e uma ordem mundial de cooperação. Em Israel, o Oz Ve' Shalom trabalha para que se reconheça que a paz só será possível se houver justiça tanto para árabes como israelenses. Por toda a América Latina a Comissão de Justiça e Paz trabalha por uma liberdade inclusiva dos dois pilares da justiça e da paz. A brutal ditadura de Marcos nas Filipinas foi derrubada por uma massa de pessoas desarmadas, que simplesmente se recusaram a cooperar com suas imposições, e invadiram as ruas numa revolução popular sem precedentes. Em 1989 e 1990 os governos totalitários do Leste Europeu caíram, não devido a um ataque militar, mas diante do poder desarmado da população. A luta que continua ali e na antiga União Soviética pela democracia são exemplos extraordinários do que Vaclav Havel chamou "o poder dos sem-poder". Estes são apenas alguns exemplos das "experiências com a Verdade" no século XX. Estes exemplos abriram o caminho da não-violência ativa para tratar dos problemas de guerra e opressão que se arrastam há séculos. Muitas vezes são poucos esses movimentos, operando em terreno não mapeado. Mas deles começam a emergir as implicações infinitas do amoroso propósito de Deus para a raça humana. * Shiva é física, ecologista, ativista, editora e autora de muitos livros. Fundou na Índia o movimento Navdanya em prol da conservação da biodiversidade e dos direitos dos agricultores. Dirige a Fundação de Pesquisas pela Ciência, Tecnologia e Políticas de Recursos Naturais. * Este artigo foi extraído do livro "Biopiracy: the plunderer of nature and knowledge" (Biopirataria: saqueadora da natureza e do conhecimento), escrito pela Dra. Vandana Shiva e publicado pela South End Press, EUA, e pela Green Books Ltd. Inglaterra. Dra. Vandana Distribuído com permissão de Season for Nonviolence – M. K. Gandhi & Martin Luther King Jr. [Tradução: Tônia Van Acker – Revisão Técnica: Lia Diskin – Associação Palas Athena]