livro_PatrimonioMusical_ISBN9788565537049
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MARIA ALICE VOLPE (ORG.) PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ SUMÁRIO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Carlos Levi Reitor Antônio Ledo Vice-reitor Debora Foguel Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa CENTRO DE LETRAS E ARTES Flora de Paoli Decana ESCOLA DE MÚSICA André Cardoso Diretor Marcos Nogueira Vice-diretor Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de Graduação Celso Ramalho - Coordenador do Curso de Licenciatura João Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico Cultural Miriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de Extensão Marcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música Maria Alice Volpe - Editora-chefe Normalização: Maria Alice Volpe Projeto gráfico: Gustavo Costa Editoração e tratamento de imagens: Patrícia Perez Capa: Candido Portinari, Carnaval (1960); imagem cedida por João Portinari (Projeto Portinari) Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ Volume 3: Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder Maria Alice Volpe (org.) Conselho Editorial André Cardoso Diósnio Machado Neto Ilza Nogueira Marcos Nogueira Maria Alice Volpe Mary Angela Biason Régis Duprat Copyright © 2012 by Autores Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/UFRJ 500 exemplares Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/UFRJ S612p Patrimônio musical na atualidade: tradição, memória, discurso e poder / Maria Alice Volpe (org.). – Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música, Programa de Pós-graduação em Música, 2013 . 236 p. : il. ; 21cm. -- (Série Simpósio internacional de musicologia da UFRJ ; v.3) Trabalhos originalmente apresentados no III Simpósio Internacional de Músicologia da UFRJ (3. : 2012 : Rio de Janeiro, RJ) ISBN: 978-85-65537-04-9 1. Musicologia – História e crítica. I. Volpe, Maria Alice, org. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Música. Programa de Pós-graduação em Música. III. Série. CDD - 780.01 APRESENTAÇÃO Maria Alice Volpe 9 PREFÁCIO Maria Alice Volpe 11 AGRADECIMENTOS 13 CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO PATRIMONIAL 15 Patrimônio musical e invenção Maria Alice Volpe 17 Composição e poder Paulo Costa Lima 23 Uma validade verdadeiramente funcional Flávia Toni 37 Música e (é) monumento: uma revisão patrimonial Régis Duprat 45 PATRIMÔNIO, TEXTO E INTERPRETAÇÃO 59 A construção da reconstrução Edilson Vicente de Lima 61 A “organização” da cultura: a cópia como verbalização das territorialidades Diósnio Machado Neto 71 Análise da edição de Luiz Heitor Correia de Azevedo da Missa de Defuntos (CPM 184), de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) Carlos Alberto Figueiredo 83 RAMIFICAÇÕES DA MEMÓRIA 97 Danzones and contested tradition: Cuban cultural controversies of the 1880s Robin Moore 99 Music as a vector for activating and transmitting the orisha cult of Naa Buuku among the Yoruba in Benin Madeleine Leclair 107 A dança do fado no Brasil e Portugal oitocentistas Rui Vieira Nery 117 Os anéis da memória: o teatro musical luso-brasileiro do século XVIII e a construção de outro mundo Márcio Páscoa 135 Patrimônio musical no Rio Grande do Sul: as tramas da memória entre acervos e documentos Isabel Porto Nogueira 147 PATRIMÔNIO E CRIAÇÃO CONTEMPORÂNEA 165 O legado do Grupo de Compositores da Bahia: memória e invenção Ilza Nogueira 167 Projeto Jongo em Concerto: inventário de uma experiência de sincretismo cultural Pauxy Gentil-Nunes 183 O acervo de música contemporânea da Unicamp: histórico, desenvolvimento e perspectivas Denise Garcia 193 PATRIMÔNIO E DIVERSIDADE: POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES COMUNITÁRIAS 201 Patrimônio musical e ações comunitárias em contextos urbanos Angela Lühning 203 Proibidão em tempo de pacificação armada Carlos Palombini 215 APRESENTAÇÃO A Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ é composta por coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por objetivo publicar as conferências dos especialistas convidados desenvolvidas em forma de capítulo. Essa política editorial proporciona textos enriquecidos pela interlocução com a comunidade científica em versão expandida e depurada por novo processo de revisão. As temáticas são tratadas de modo intra e interdisciplinar e dividem-se em tópicos que refletem diversos segmentos da área. Cada volume oferece uma visão abrangente do estado atual de conhecimento sobre o assunto. A colaboração de especialistas oriundos de instituições com diversidade geográfica intensifica o diálogo da comunidade nacional e internacional, de modo a favorecer a inserção dos estudos brasileiros na musicologia internacional. A Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ está dedicada aos conferencistas convidados e os Anais aos trabalhos selecionados mediante submissão. O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço do conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da temática escolhida para cada volume. Maria Alice Volpe Editora PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 11 PREFÁCIO O presente volume Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder visa a uma reconceituação do tema em questão, bem como uma ampliação e aprofundamento das questões teóricas e metodológicas da pesquisa musical, buscando maior interseção com as políticas públicas e ações comunitárias relativas aos bens culturais, tangíveis e intangíveis, e as formas de saber, fazer e criar atinentes à música. O tema “patrimônio cultural” ou “patrimônio musical” tem envolvido ações e questões concernentes ao levantamento e a preservação dos bens culturais, a pesquisa, a promoção da diversidade e do valor cultural, a conceituação da distinção entre patrimônio material (tangível) e imaterial (intangível), a construção de identidades, a educação patrimonial, a democratização do acesso ao próprio patrimônio enquanto bem cultural e forma de conhecimento, a inclusão social, as economias criativas e a propriedade intelectual. Ao propiciar um diálogo frutífero entre pesquisadores musicais, compositores, dirigentes de instituições culturais e especialistas de áreas afins, o tema apresentado neste volume busca refletir em que medida a pesquisa e reflexão musicológica, juntamente com a criação musical e as inovações tecnológicas, podem contribuir para as políticas públicas e ações institucionais em atendimento às diversas demandas de construção de conhecimento novo em interseção com a sociedade. Maria Alice Volpe PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 13 AGRADECIMENTOS Aos membros do Conselho Editorial E aos apoios de Capes Faperj Banco do Brasil PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 15 CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO PATRIMONIAL Patrimônio musical e invenção Maria Alice Volpe Universidade Federal do Rio de Janeiro O conceito de patrimônio remete a uma série de conceitos vizinhos como memória, história, tradição e identidade, consubstanciados num conjunto de vivências socioculturais a que se atribui algum valor. A memória, seja individual ou de um grupo, carrega um componente afetivo construído pela própria vivência do que é rememorado. Pressupõe uma contínua renovação da experiência com o ‘ser’ rememorado. A história faz a conjunção da memória vivida com o resgate de vivências anteriores em estado de esquecimento numa operação que é apropriada pelos processos institucionais de reconhecimento de patrimônio cultural. A tradição, compreendida na transmissão de práticas e saberes, pressupõe a anuência de valores socioculturais que a mantem vigente para determinado grupo. A tradição, compreendida como fator de identidade de um grupo, nação ou de um grupo compreendido como parte de um estado-nação, implica em relações de poder em permanente negociação. Na medida em que o reconhecimento de um patrimônio cultural pelo estado se fundamenta nas instâncias sociais da memória e da tradição e sua validação “científica” pelas operações históricas, antropológicas e sociológicas, reconhecemos a grande responsabilidade da comunidade de pesquisadores que se dedicam às diversas modalidades que possam constituir o patrimônio material ou imaterial. A intensificação das politicas públicas relativas ao reconhecimento do patrimônio material e imaterial de diversos países, estimulada pelas ações norteadas pela UNESCO que sanciona mundialmente a relevância de selecionados bens, saberes e práticas como “patrimônios da humanidade”, instaura um contexto institucional onde especialistas e pesquisadores participam cada vez mais da “invenção das tradições”, evocando Hobsbawn não mais na construção de determinado estado-nação cujo denominador comum residiria no “espírito do povo” ou no “caráter nacional”, mas no reconhecimento da diversidade de identidades e de uma realidade multi-cultural, tanto no contexto nacional como no mundo globalizado. A invenção da tradição e a imaginação histórica e antropológica participam, portanto, da permanente negociação das relações de poder entre os diversos grupos e o estado que legitima seus direitos sociais e culturais, bem como seu nível de prioridade nas políticas públicas e do setor privado. A construção de conhecimento sobre o patrimônio musical enfrenta as dificuldades intrínsecas às peculiaridades de seu objeto de estudo, cuja abordagem depara com sua materialidade e imaterialidade, o registro escrito, sonoro, visual e a tradição performática, a memória e o esquecimento de repertórios e práticas musicais, os saberes tradicionais e sua negação por novas práticas. A própria vivência (ou sobrevivência) de repertórios e saberes musicas depende da sua continuada prática nos espaços sociais. Nesse sentido, a atuação de especialistas e pesquisadores tem contribuído para as políticas públicas, desde a memorável geração de folcloristas até a atualidade da etnomusicologia, desde os pioneiros historiadores que empreenderam o “garimpo musical” nos acervos públicos e particulares espalhados pelo país até a atualidade da musicologia. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 19 As tradições musicais também têm sido apropriadas nos processos criativos e colocadas em substancial relação com a composição, alimentando repertórios e estilos. Assim, as tradições musicais e a invenção (musical) se associam na contínua construção do patrimônio musical e seus processos de negociação de poder dos diversos segmentos sociais e grupos culturais. A estreita relação entre as diversas tradições e os processos criativos coloca a questão da “invenção” sob a ótica de todas as nossas subáreas: a musicologia histórica, a etnomusicológica, a sociológica e também a analítico-musical, a composição e as práticas interpretativas. As tradições musicais se colocam aqui como conceito abrangente, inclusivo, pelo qual se reconhecem também as fricções entre os valores socioculturais atribuídos às suas práticas e estéticas. A radicalização do reconhecimento da “diversidade cultural” trouxe para o “centro” as manifestações musicais que estavam localizadas na “periferia” e também colocou os bens culturais outrora hegemônicos no seu respectivo “local na cultura”. Evocando aqui Homi Bhabha, diríamos que atualmente, a “grande música” experiencia tanto quanto as “músicas locais”, o local da cultura como o entre-lugar deslizante, marginal e estranho, que, por resultar do confronto de dois ou mais sistemas culturais que dialogam de modo agonístico, é capaz de desestabilizar essencialismos e de estabelecer uma mediação entre a teoria crítica e prática política. (Homi Bhabha, resenha, 1998) No que tange nossas ações musicológicas, torna-se mister reconhecer que as operações históricas, antropológicas, sociológicas e analítico-musicais estão inseridas no processo de “diferença cultural”, no sentido proposto por Homi Bhabha no artigo “O compromisso com a teoria”: Diferença cultural é o processo de enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo [investido de autoridade], adequado à construção de sistemas de identificação cultural [...] através do qual afirmações da cultura e sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. (Homi Bhabha, [1988, p. 18]1998, p. 63)1 Na medida em que a musicologia participa dos processos de enunciação sobre a cultura, toma partido dos campos de poder que resgatam a memória e trazem a tradição para as instâncias institucionais do patrimônio cultural. Na medida em que a pesquisa musical informa os processos institucionais de reconhecimento do patrimônio musical e cultural, gera novos campos de referência para as políticas públicas e os processos de empoderamento dos diversos grupos culturais, marginalizados ou não, situados no centro ou na periferia, nas hegemonias ou nos “entre-lugares”. Os processos criativos e as práticas de performance intensificam a “invenção da tradição” e a “diferença cultural” ao se apropriar dos saberes musicais e ressignificá-los em novos contextos. A “invenção” se instaura, portanto, no contexto das fricções entre os valores socioculturais das diversas tradições musicais que convivem em espaços multiculturais. No atual contexto das políticas públicas para a cultura e o patrimônio, observa-se uma inversão de discursos nas diversas esferas institucionais, nacionais e internacionais. Conforme ensaio crítico de Elisabeth Travassos (2006), enquanto a UNESCO propõe proclamar as “obras-primas do patrimônio cultural oral e imaterial da humanidade” (p. 1) por seu “excepcional valor artístico, histórico e antropológico” (p. 2), o Brasil “concebe e implementa sua própria política patrimonial”, 1 “Cultural difference is the process of the enunciation of culture as 'knowledgeafe/e', authoritative, adequate to the construction of systems of cultural identification [...] cultural difference is a process of signification through which statements of culture or on culture differentiate, discriminate, and authorize the production of fields of force, reference, applicability, and capacity.” 20 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ainda que, “na condição de estado signatário da Convenção, participe das construções da UNESCO” (p. 3). Travassos observa que os documentos brasileiros não empregam a categoria ‘obra-prima’. Tampouco acentuam o ato de proclamar. Entre nós, a ênfase do discurso está na inscrição em Livros, em registrar por meio da letra o que era falado e vivido sem necessidade da escrita. Assim, graças a essa consagração nos Livros do Patrimônio, seria reduzida a assimetria entre a cultura letrada, oficial, dominante, e as culturas orais, subalternas. (Travassos, 2006, p. 3) Podemos extrapolar que essa redução de assimetrias culturais na política patrimonial brasileira também tem efeito inverso na cultura que desfrutou até então de alguma posição privilegiada. A música de tradição escrita, também chamada “música erudita”, passa a concorrer segundo novos critérios nesse processo de legitimação cultural e patrimonial pelo qual se estabelecem as políticas de fomento à preservação e continuada vivência. O valor histórico e artístico passa a concorrer ou integrar o valor antropológico e social. No Brasil, a inserção da música na política patrimonial sofreu um lapso na legislação específica, conforme destacou nosso estimadíssimo musicólogo Régis Duprat em sua marcante conferência neste Simpósio. Por ocasião da criação do IPHAN, (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1937 [...] a legislação então aprovada não previu a sua aplicação ao patrimônio musical da nação, embora o projeto original de Mário de Andrade sugerisse a valorização da música popular brasileira. Essa foi uma lacuna da legislação inicial do Patrimônio no Brasil. (Duprat, 2012/2013) Naquelas décadas parece ter predominado a mesma política atual de salvaguarda do patrimônio imaterial, que se consubstancia na inscrição etnográfica de saberes, práticas e manifestações culturais ou musicais. Paralelamente ao IPHAN (e sucedendo os registros fonográficos e as transcrições musicais da Missão Rondon, 1917), empreendem-se pesquisas de campo com coleta e registro: as Missões Folclóricas (1938) de Mário de Andrade, com desenhos, gravações, filmes, diários, descrições, relatórios, transcrições musicais, enfim, uma etnografia que almejava alguma metodologia. Na década de 1940, as pesquisas de campo de Luís Heitor Correia de Azevedo também metodologicamente informada. Em seguida, a criação de um organismo oficial, a Comissão Nacional do Folclore, criada em 1947 como célula do Ministério das Relações Exteriores junto à UNESCO. E na década de 1950, no âmbito para-oficial, o período hegemônico do Movimento Folclórico com o Plano Nacional de Pesquisa Folclórica traçado pelo I Congresso Nacional de Folclore (1951) e a Campanha Brasileira de Defesa do Folclore (1958). Nessas décadas, desenha-se o mapa musical do Brasil em conjunção com a definição de suas regiões culturais, segundo critérios étnicos, geográficos e atividades de subsistência (Volpe, [2008]2011). Nesse mesmo período assistiu-se ao desenvolvimento da pesquisa histórico-musical no Brasil, tendo no “Informe Preliminar” (1946) de Francisco Curt Lange um marco para o desenvolvimento das pesquisas arquivísticas, seguido por gerações de musicólogos que atuam no levantamento documental, catalogação, restauração, edição musicológica, execução musical e, eventualmente, na interpretação histórica. (Dispenso-me aqui de arrolar os pesquisadores importantes das décadas subsequentes, assunto já abordado pelo mestre Duprat em sua conferência). A restauração do registro musical institui-se, na visão ontológico-hermenêutica de Régis Duprat, numa ação patrimonial. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 21 Todo ato de restauro integra ou reintegra uma obra ao conjunto monumental a que pertence e se transforma por isso (pelo ato de restaurar) num evento histórico de remonumentalização da obra. (Duprat, 2012/2013) As diversas instâncias de inscrição, seja o registro etnográfico ou a escritura musical, instituemse como processos de enunciação da cultura e sobre a cultura, pelos quais a diferença cultural e a tradução cultural se erigem em invenção. Patrimônio musical e invenção – a imaginação histórica, socioantropológica e musical – constituem um processo hermenêutico que “interpreta a palavra viva e desperta novamente para a vida a palavra enrijecida na escrita” (Gadamer, [1995]2007, p. 73). Referências BHABHA, Homi K. “The commitment to theory”, New Formations, n. 5, p. 5-23, Summer 1988. Disponível em http://www.amielandmelburn.org.uk/collections/newformations/05_05.pdf. Reimpresso em The Post-colonial Studies Reader. London: Routledge, 1995. Trad. M. Ávila, E. L. L. Reis e G. R. Gonçalves. “O compromisso com a teoria”, p. 43-69. In: O local da cultura. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo. Horizonte: Editora da UFMG, 1998. Resenha disponível em http://www.rubedo.psc.br/revista/eufmg/textos/locultu.htm. DUPRAT, Régis. “Música e (é) monumento: uma revisão patrimonial”. Conferência apresentada no III Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, Rio de Janeiro, agosto 2012. Publicado in: VOLPE, Maria Alice (org.). Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder. (Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, vol. 3). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música, Programa de Pós-graduação em Música, 2013. GADAMER, Hans-Georg. “Sobre mestres e aprendizes”. In: Hermenêutica em retrospectiva: a posição da filosofia na sociedade. Petrópolis: Vozes, [1995]2007. HOBSBAWN, Eric J. & RANGER, T. O. The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. TRAVASSOS, Elizabeth. “Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular”. Porto Alegre, 03 de maio de 2006. Texto elaborado para o debate A memória da música popular promovido pelo Projeto Unimúsica 2006 – festa e folguedo. Disponível em http://politicadeacervos. files.wordpress.com/2012/04/elizabeth-travassos-pode-e-valor-das-listas.pdf VOLPE, Maria Alice. “Traços romerianos no mapa musical do Brasil”. Conferência apresentada no Colóquio ‘Música e História no Longo Século XIX: de Caldas Barbosa a Bahiano’, FCRB, 2008. Publicado in: LOPES, Antonio Herculano (org.). Música e história no longo século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011, p. 15-35. 22 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Composição e Poder1 Paulo Costa Lima Universidade Federal da Bahia Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Barthes, Aula (1977) É preciso pensar o futuro planetário a partir da questão do psicopoder que caracteriza as sociedades de controle, e cujos efeitos se tornam maciços e destruidores. No presente, o psicopoder mundializado é uma organização sistemática de captação de atenção... disseminando-se por toda a superfície do planeta através de diversas formas de redes, e levando a uma canalização industrial e constante da atenção que, [paradoxalmente]..., engendra um fenômeno maciço de destruição desta atenção [...] que é um caso particular, e especialmente grave, da destruição da energia libidinal por meio da qual a economia libidinal capitalista se autodestrói. Bernard Stiegler (2010) 1. Como entender os atos composicionais2 em suas relações com os campos de poder? Campos de poder, ou relações de poder, que pré-existem e até mesmo condicionam tais atos — ou então, de outra perspectiva, campos de poder que são acionados pelas próprias escolhas que o compor exige e engendra? 2. O poder é uma experiência difusa, espalha-se ao longo de toda a paleta das nossas vivências: A ‘inocência’ moderna fala do poder como se ele fosse um [...] acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político: acreditamos agora que é também um objeto ideológico [...] que ele se insinua nas instituições, nos ensinos. 3. Para Barthes, em sua célebre Aula, o desafio do intelectual reside em combater todos esses disfarces, já que o poder se insinua em tudo: ...expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece [...] Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem [...] A linguagem é uma legislação [...] Falar não é comunicar, é sujeitar.3 Este texto contou com a leitura e comentários de Guilherme Bertissolo e Paulo Rios Filho. Estou usando a noção de ‘ato composicional’ porque foi a solução encontrada por Stephen Blum ao escrever o verbete ‘composition’ para o GDDM (2001) para falar do processo de criação em escala mundializada — e creio que esse desafio nos acompanha; a relação entre composição e poder, mesmo tratada do ponto de vista de um determinado nicho, aponta nessa direção. 3 ...expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas [...] Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem [...] A linguagem é uma legislação, a língua é seu código [...] Jákobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer [...] Falar, e em maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar. 1 2 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 25 Um idioma se define por aquilo que ele obriga a dizer, não apenas falamos, mas somos falados pela língua. Não apenas inventamos música, somos inventados por ela. Estão na base daquilo que nos constitui como sujeitos e identidades. Na verdade, ultrapassam a própria linguagem, no caminho da pulsão, da vida. 4. Já nos parece possível representar o tema de forma mais ampla, e uma dessas possibilidades seria a pergunta: O que pode uma composição? Essa ampliação não é trivial. Veja-se Deleuze e a noção de afeto. O vermelho numa determinada tela, não é a mancha real, e nem apenas o humor do artista ao pintá-la, ou alguma convenção social —, o vermelho se constitui em um poder ser visto, e não apenas aqui e agora, mas por todo o tempo.4 Poder e tempo estão intimamente ligados. Afetos não seriam ações ou poderes exercidos, mas poderes a exercer.5 O poder, assim pensado, faz parte do tecido da obra, como dimensão do campo de escolhas, atribuindo relevância aos fatos, aos particulares, em oposição às universalidades.6 5. O tema exige uma musicologia contemporânea, múltipla, que consiga transitar livremente entre enfoques estruturais e hermenêuticos — algo que, propriamente, ainda não existe, segue em construção — e que, dessa forma, cativa a imaginação teórica. 6. Se as relações de poder numa obra se fazem presentes a partir do campo de escolhas, no tecido da própria obra, isso significa que estamos tratando simultaneamente da mobilização de valores que isso acarreta. Para Dewey, valor remete à “disciplina inteligente das escolhas humanas”7 — e, ao mesmo tempo, à dimensão crítica necessariamente envolvida. Repito: perguntar pela relação entre composição e poder é aguçar o ouvido na direção do campo de escolhas, tocando diretamente na mobilização de valores. Como entender os valores no âmbito de uma teoria da composição8 — sendo a atribuição de valor um processo tão complexo? 7. Onde estão os valores no ciclo proposto por Laske — idéia, materiais, implementação e obra? Não aparecem nomeados como tal, mas, se insinuam na engrenagem dos níveis, gerando — consistência, derivação, unidade... 8. Para Reynolds (2002, p. 6), “se não houver uma coerente ‘rede de conectividade’ entre o material escolhido e a forma designada, o resultado será necessariamente imperfeito, menor do que poderia ter sido”. O conceito de ‘rede de conectividade’ mapeia a interação entre o fluxo de decisões bottom-up e top-down; e nesse caso, nos permite situar a coerência como valor — “coerente rede de conectividade” — regendo os procedimentos e critérios de escolha. 9. Quem convive com a rítmica afro-baiana sabe da preferência, ou seja, do critério bastante consistente de construir padrões rítmicos com durações de ‘1’ ou ‘2’ tempos. A que valor ou valores remete tal critério e escolhas? 10. Para Hans Keller (1979, p. 219) o excesso de atividade pré-composicional era um entulho típico do século XX , uma verdadeira obsessão pelo que ele denomina de “estruturalização totalizande inaudível”. Com isso ele desenha um valor, a audibilidade, uma espécie de super- 26 critério a reger processos e escolhas.9 11. Em Ernst Widmer (1988) encontramos uma visão de duas leis (assim ele as chama) operantes simultaneamente no processo do compor e no seu ensino, organicidade e inclusividade (ou relativização): A primeira lei tem a ver com o ato criador, que se constitui das seguintes fases: conceber, fazer nascer, deixar brotar, vingar, vicejar e amadurecer — portanto um processo rigorosamente orgânico do qual resulta a forma, e o qual implica em podar, criticar ininterruptamente [...] A segunda lei se baseia na relatividade das coisas, dos pontos de vista [...]10 A lei da organicidade se refere a escolhas e procedimentos, mas também representa um valor. O mesmo pode ser dito da segunda, a inclusividade. Então, nessa espécie de modelo, podemos discernir a vinculação entre escolhas, procedimentos e valores. E mais: na medida em que organicidade e inclusividade são apresentadas em plena interação, o que temos é um outro nível de discurso, uma espécie de narrrativa que organiza o todo.11 12. Os valores se associam aos critérios de escolha, qualificando-os. Remetem a um esforço bastante atual de conectar a visão organicista e estrutural a suas possibilidades hermenêuticas — do poietico ao estético, do poietico ao estésico. E mais: à reflexão sobre os mecanismos de articulação propiciado por discursos e narrativas, capazes de reunir valores, critérios, procedimentos e escolhas num mesmo movimento. 13. É uma situação que encontra paralelo no campo da análise musical através do esforço recente de construção de uma teoria da narrativa musical. Byron Almén (2008), por exemplo, costura uma teoria da narrativa em música, a partir de fontes díspares tais como a teoria do romance de Northrop Frye (1957), a semiologia da música de Eero Tarasti (1994) e a semiologia do mito em James Jakób Liszka (1989). Trabalha com três níveis: identificação de unidades (agential level), identificação das relações dinâmicas entre tais unidades (actantial level) e o mapeamento das tensões entre a imposição e subversão de uma ordem (narrative level), em torno dos arquétipos de romance, tragédia, ironia e comédia. 14. Pois então, foi pensando em possibilidades narrativas capazes de concatenar valores e procedimentos em composição que cheguei ao pequeno e denso ensaio de Martin Jay (2011) sobre o trabalho de luto em relação a uma metáfora bastante especial, a metáfora da revolução. O texto é um exercício de hermenêutica cultural que busca entender a natureza abrangente e envolvente desta metáfora, na medida em que se espalhou do campo da política para quase todos os outros — a ciência, a indústria, tecnologia, artes, moda. E mais ainda, busca entender o luto aparente das duas últimas décadas. 15. A metáfora da revolução tem uma carreira secular e origem na astronomia.12 Data de 1543 o famoso tratado de Copérnico De revolutionibus orbium coelestium, e embora haja registro de utilização do termo já em sua conotação metafórica bem antes disso, a entrada oficial para o vocabulário político teria sido em meados do século XVII, na Inglaterra. Originalmente associado 4 Esse poder, ou qualidade de poder, tem papel antecipatório, na medida em que prepara para o evento que ganhará contorno como estado de coisas (a faca, o precipício, no caso do cinema), modificando-o. Ao mesmo tempo, já é o evento em seu aspecto eterno. “Power-qualities have an anticipatory role, since they prepare for the eent which will be actualized in the state of things and sill modify it (the slash of the knife, the fall over the precipice). But in themselves, or as expressed, they are already the event in its eternal aspect.” Deleuze (1986), Cinema I: The Movement-Image, Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam (trad.), Minneapolis: University of Minnesota Press, p. 40 — apud Claire Colebrook (2006). 5 Para Deleuze os afetos estão para a arte como os conceitos para a filosofia, e as funções para a ciência. 6 A seguir nesta linha daríamos logo à frente com os conceitos de Ritornello e Corpo sem Órgãos, mas não é o trajeto deste texto. Fica o registro. 7 Leio de forma travessa: a indisciplina inteligente das escolhas humanas. Cf. o verbete ‘valor’ em Abbagnano (1982). 8 Pois bem, é essa juntura que exige o olhar de uma musicologia contemporânea, que não aceite simplesmente soluções formalistas convictas — herdeiras das ‘formas moventes’ de Hanslick —, e nem abandone a riqueza do que trazem ao campo da crítica 9 Talvez seja possível interpretar a preocupação com a audibilidade como um vetor que exige transformações no âmbito do paradigma estrutural-organicista, sinalizando sua ressignificação atual. Dessa linha fariam parte a teoria do contorno, mas também a própria música concreta, a música espectral, além de todo o esforço de reconcepção cognitiva da música, que aliás, em seus primeiros anos sempre celebrava Aristoxeno e a primazia do ouvido sobre a especulação pitagoreana. 10 Devemos admitir que não se trata mais de dualismos como ‘ou isto ou aquilo’ [...] e sim da realidade paradoxal do ‘isto e aquilo’. Inclusividade em lugar de exclusividade. 11 Ou seja: valores, critérios, procedimentos e escolhas. 12 Como bem ironizou Stravinsky. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 27 a situações de restauração de uma ordem anterior benigna o termo vai gradualmente migrando para o sentido atual, ou seja, muito mais um futuro utópico do que um passado saudoso, a revolução como o lugar de passagem, o limiar entre épocas, que, aliás, não pode ser revertido — Cf. Jay (2011, p. 37). Embasbacados por eventos cuja violência e imprevisibilidade pareciam impossíveis de compreender, os homens encontraram na metáfora da revolução uma forma útil de expressar seus sentimentos de insignificância relativa diante de poderes que estavam além da possibilidade de controle.13 Portanto: a grandeza das rotações celestes, um sentido de destino que perpassa de forma subjacente a metáfora, e aos poucos, não apenas o evento de ruptura, mas também um processo prolongado de transformação. Foi uma questão de tempo para que a metáfora da revolução se espalhasse do campo do político para os outros. A expressão ‘revolução científica’ encontra lugar no texto de Fontenelle em torno de 1720, enquanto que ‘revolução industrial’ surge por intermédio de Arnold Toynbee em 1884 — e daí para as mudanças marcantes na cultura, na economia e mesmo na moda. Tornase tão “natural” que passa a assumir ares de objeto, ensejando análises comparativas. 16. Como devemos entender e mapear a presença da metáfora da revolução no âmbito do compor? Quem quer que tenha vivido uma formação em composição sabe da presença constante dessa figura — em vários discursos e formatos. Talvez o melhor portal de entrada seja a plasmação da figura do herói, em estreita associação com a construção da idéia de música absoluta, tal como descreve e analisa Daniel Chua (1999, p. 151), tomando a Eroica de Beethoven como caso exemplar: ritual francês em abstração teutônica. A Eroica é um corpo, corpo político, governado por dentro por um regime cuja concisão temática delineia a figura de poder austero a ser vista externamente como forma... Tudo indica que em música, controle estrutural é poder [...] Portanto, como herói, a música já não é uma manifestação da sensibilidade moral, e sim a expressão de uma consciência histórica. A Eroica rejeita as reações do corpo em função de uma ação na história. Domina o tempo levando a forma a crises constantes (Kairos), que o herói precisa resolver para moldar a história a partir das visões utópicas do humanismo secular. De tantas coisas que são colocadas, precisamos sublinhar: a relação entre poder e controle estrutural, o papel do herói como motor de historicidade (consciência histórica e teleologia). 17. O controle estrutural como valor e como estratégia de poder, no âmbito da metáfora da revolução, responde por inúmeros processos que pavimentaram os caminhos da criação nos últimos dois séculos. E também estiveram presentes de forma constante na produção de teoria e de análise. Como se a figura do herói se projetasse até o desejo do analista. Aqui vale registrar uma espécie de contraponto ao controle estrutural que aparece no campo da ‘audibilidade’, e toca em áreas diversas: a música concreta, a música espectral, a teoria do contorno, a corrente cognitivista — lembro o início do boom cognitivo e a justa homenagem a 13 Overwhelmed by events whose violence and unpredictability seemed impossible to comprehend, men found in the metaphor of revolution a useful way to express their feelings of relative insignificance in the face of powers beyond their control. 28 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Aristoxeno,14 e sua colocação estratégica nos dias de hoje, por exemplo, através do foco sobre os esquemas imagéticos derivados do corpo para a conceptualização da música, etc. 18. Quanto à plasmação do herói: sabemos que ele empresta sua figura pública à obra de arte, mas, de forma muito mais sutil e determinante, se impõe como protagonista composicional, no âmbito interno — instância ficcional que passa a agir como se estivesse inventando a própria obra (criação de mundos), como o responsável pela totalidade dinâmica que vai se desenrolando em forma,15 e como pólo de identificação para a figura do compositor-visionário, representante da consciência histórica e da crise de linguagem, inventor de sistemas e ‘estéticas’. Chua analisa em detalhe a violência e imprevisibilidade envolvidas na projeção do herói na 3ª Sinfonia. Deveríamos registrar a violência como um valor no modernismo? 19. Na verdade já podemos delinear uma rede de valores que sustentam a metáfora da revolução no campo de uma modernidade16 que se apóia em rupturas sucessivas: a plasmação do herói como etapa de uma nova subjetividade (campo de reciprocidade e identificação), capaz de responder a uma busca por traços distintivos para as obras17 (já a partir do século XIX18), chegando à culminância da expectativa de um sistema por obra no século XX, e o controle estrutural que projeta como prioridades a concisão (ou economia de meios), a coerência, a unidade e a profundidade. Como narrativa mestra que organiza valores, a metáfora se oferece como matriz de composicionalidade, laço entre teorias e práticas. 20. Antes da modernidade tínhamos a semelhança como eixo organizador do pensamento, “o homem como ‘pequeno mundo’ que espelha o universo e é por ele espelhado” — Cf. Chauí (2011, p. 13): Digo-te que o Céu, pai de todas as coisas geráveis, move-se num movimento contínuo e circular sobre o todo do globo da matéria primeira [...] A Terra é o corpo da matéria primeira, receptáculo de todas as influências de seu macho, que é o Céu. A água é a umidade que a nutre. O Ar é o espírito que a penetra. O Fogo é o calor natural que a tempera e vivifica.19 A engrenagem da cadeia de rupturas que caracteriza a modernidade, e que estabelece canais de diálogo entre arte, ciência e sociedade por um lado, e construção de uma determinada subjetividade por outro, não está presente. 21. Num outro extremo, já na atualidade, as peripécias de desconstrução do paradigma estrutural organicista. Por exemplo, Robert Fink (1999, p. 103) questionando a assertiva de que as obras musicais têm interioridade e profundidade, considerando esse pensamento como a metáfora mais importante da análise musical estruturalista. Desiste do par superfície-estrutura em busca Conferir Diana Deutsch (1988) e no caso das imagens corporais, Saaslaw (1996). Chua enfatiza a violência e a imprevisibilidade envolvidas no processo de projetar a figura do herói beethoveniano, a invenção de uma origem que renega qualquer narrativa gradual de origem e coloca o impacto dos acordes iniciais como primeiro gesto temático. Mais tarde, esses acordes violentos vão construir momentos de clímax e desestabilização da ordem melódica e rítmica; Dynamic unfolding totality — contribuição de Adorno ao tema. 16 Vale lembrar a posição de Fredric Jameson (2005, p. 53), para quem “a modernidade não é um conceito, seja filosófico ou de outra espécie, mas sim uma categoria narrativa”. 17 Aliás, como bem observa Lydia Goehr, o próprio conceito de obra que se estabelece neste período. 18 Cf. Robert Morgan e seu livro sobre a música do século XX. 19 Digo-te que o Céu, pai de todas as coisas geráveis, move-se num movimento contínuo e circular sobre o todo do globo da matéria primeira, ao mover-se e remexer todas as suas partes germina todos os gêneros, espécies e indivíduos do mundo inferior da geração; assim como, movendo-se o macho sobre a fêmea, e movimentando-se nela, procria filhos... A Terra é o corpo da matéria primeira, receptáculo de todas as influências de seu macho, que é o Céu. A água é a umidade que a nutre. O Ar é o espírito que a penetra. O Fogo é o calor natural que a tempera e vivifica. 14 15 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 29 de uma teoria da música pós-hierárquica.20 Portanto, além do encadeamento de valores que já tratamos, há também um encadeamento de metáforas. 22. Por exemplo, as implicações psicanalíticas do discurso de Chua: A música tem gênero. Mas não tem genitais [...] se a ela fosse necessário dar um falo, teria que ser construído como um discurso [...] a música instrumental teve uma sexualidade que lhe foi imposta,21 [...] Ao final do século dezoito sofria uma crise de identidade: não tinha um falo [...] O som precisava de uma voz autoral capaz de impor-lhe significado levando o corpo a seguir esse espírito, de forma a que a música pudesse ser a imagem do homem. A necessidade de impor conceitos sobre a música foi uma assertiva de masculinidade. Ora, o que é o conceito de falo em psicanálise? O falo é o significante que baliza o trajeto do desejo (Nasio, p. 31), e, sendo assim, balizaria os caminhos do compor como formação desejante. Por que a teoria escolhe uma referência ao sexo masculino? Para Nasio a questão central é a primazia que a psicanálise confere à experiência da castração. Entenda-se castração como interdição realizada pelo significante Nome do Pai (uma metáfora). 23. Chua está insinuando, mas é preciso dizer com todas as letras, que a plasmação do herói está inscrita na função fálica, o que torna necessário retomar os dois operadores lacanianos da fórmula de sexuação, do lado masculino, um servindo de limite ao outro: Todo e qualquer (x) está inscrito na função fálica — Existe pelo menos um (x) para o qual essa função não se aplica, ou seja, existe um que não é castrado, Quinet (2012, p. 60): Esse pelo-menos-um fora da função fálica do lado masculino da sexuação é sustentado pela função do Pai, que encontramos na figura do pai da horda primitiva de totem e tabu, que, como Pai gozador, proibia o gozo fálico a todos os seus filhos. Uma vez morto, o pai é substituído pelo totem que o representa, denotando a função simbólica da Lei que delimita um conjunto que é a sua horda, a tribo que se sustenta em seu significante totêmico. [...]22 Se as interpretações oferecidas por Chua (1999) procedem, então temos que o campo do compor — notadamente a partir de Beethoven e da Eroica — trabalharia incansavelmente com a polarização de desejo entre os seus participantes e esse lugar único (original) mobilizador de poder — em pequenos e grandes clãs. O mesmo valendo para a produção teórica, a imposição de conceitos sobre a música. 24. Estamos tratando da relação entre poder e gozo. O poder tal como veiculado por estruturas de canalização do desejo — para usar uma expressão de Susan McClary. Para Barthes, que se manifesta em defesa da teimosia, pela resistência com relação aos discursos tipificados, “o poder se apossa do gozo de escrever como se apossa de todo gozo [...] do mesmo modo que se apodera do produto genético do gozo de amor para dele fazer, em seu proveito, soldados e militantes”. 25. Essa teimosia e resistência diante dos discursos tipificados remete ao próprio jogo de poder diante das figuras simbólicas do Pai. Remete também ao jogo perene de obediência e desobediência que caracteriza a obra de arte do modernismo, na medida em que “o telos modernista na arte Eventos de superfície devem ser conceituados como acontecendo no limite de uma estrutura hierárquica generativa. ... primeiramente de fora como um discurso, que ela eventualmente internalizou como uma nova configuração de masculinidade 22 [...] Portanto, o que temos é que o gozo fálico é limitado, tem uma borda, não é infinito. Esse limite é a castração. 20 21 30 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER reproduz o incansável telos da moda em si”, mas especialmente na medida em que, com Adorno, é possível conceber que há uma inscrição do processo de mercadização dentro da própria obra de arte, só que como resistência, uma substancialidade que não posa ser absorvida pela lógica da mercadoria. — Cf. Jameson, p. 179. A metáfora da revolução seria o ambiente narrativo dessas tensões, o berço da criticidade. 26. Não há em Chua referências diretas a Marx. Mas o herói da consciência histórica tem encontro marcado com o legado marxiano e seus três pilares — o método dialético, a teoria do valor do trabalho, e a perspectiva da revolução. A Causa assume o lugar de Grande Outro, de forma que os agentes da transformação guardam entre si uma relação de horizontalidade, mediada por essa possibilidade de comparação.23 27. Ora, o lugar isolado do gozo do herói, em composição, também pode dar origem a laços de confraternização em torno de uma Causa — e os exemplos se multiplicam. Mais do que isso, essa flutuação entre celebração de Um versus confraternização em torno da Causa assume importância estrutural no campo da formação de compositores, e se infiltra em diversos mecanismos de avaliação da produção composicional. 28. Há de se registrar ainda a autenticidade como valor no campo da composição — com todas as implicações elencadas por Benjamin24 —, e talvez a melhor forma de fazer isso seja relacionando-o com outros dois importantes atributos de poder em nosso campo: a historicidade e a centralidade no mundo. A projeção desses valores acontece pela via do colonialismo (passado e atual) e pela extensão da narrativa heróica às assim chamadas periferias. As energias locais de forças renovadoras buscam fazer frente ao conservadorismo (local) através da adoção das últimas soluções elaboradas nos centros; porém, ao fazer isso, estão, involuntariamente, afirmando o poder de inovação dos centros e a feição copiada das culturas periféricas, reforçando o conservadorismo (global e local). Oprimidos que engolem a imagem do opressor idealizam-na através da tentativa de identificação — é o diagnóstico de Paulo Freire. 29. Na década de 80 critiquei dois estereótipos: o grande introdutor — ou seja, o personagem responsável pela introdução no Brasil ou em qualquer país periférico de alguma nova prática, doutrina ou teoria; e o compositor-penduricalho, que é o recurso a um leque de referências conhecidas da mainstream: um pouco de Webern, um pouco de Penderecki, um pouco de efeitos aleatórios e multimeios... — Lima (1985). Uma constante: a desatenção exercitada com afinco pela literatura musicológica do norte.25 Jacques Attali (2007, p. 11) entende a contribuição marxiana como uma grande síntese, que herda do judaísmo a rejeição da pobreza, do cristianismo o sonho de um futuro libertador, do Renascimento a ambição de pensar o mundo racionalmente, da Prússia a primazia da filosofia, da França a convicção de que a revolução é a condição de emancipação dos povos, da Inglaterra a paixão pela democracia e pelo empirismo. As contribuições de Marcuse e de Gramsci, já no século XX, vão enfatizar a importância transformadora (revolucionária) da formação da sensibilidade, e o papel central da chamada superestrutura nas questões de poder — algo que o capitalismo cultural de nossos dias levou às últimas conseqüências. 24 O esforço de desmontagem crítica da noção de autenticidade vai dar origem a uma outra visão desse valor, legitimando-o não como algo que permanece imutável para refletir sua suposta origem, e sim como algo que registra a passagem do tempo, e a impossibilidade de retorno a alguma situação primal e originária, envolvido dessa forma não apenas com o estado contraditório do mundo presente, mas também com o esforço de antecipação de algo melhor que possa substituí-lo — portanto, um olhar na direção da teoria crítica. 25 Certamente este é um lugar adequado para denunciar mais uma vez a falcatrua de enfoques atrativos e tornados sedutores por uma campanha de mídia internacional — estou me referindo ao livro de Alex Ross, The Rest is Noise: ouvindo o século XX. Ora, o que de mais sagrado construiu o século XX foi justamente a consciência da complexidade cultural planeta afora. E é justamente isso que o autor não consegue ouvir. Em cerca de 500 páginas dedicadas ao tema, ignora largas fatias do mundo, e no caso específico do Brasil, apenas três ou quatro linhas, dedicadas a Villa-Lobos — en passant, tratando de Milhaud — e ainda para sugerir que o nosso herói copiava a rítmica de Stravinsky. Essa musicologia cêntrica apresenta traços característicos do fascismo. O pior é que olhando a literatura mais acadêmica — e aí refiro-me a Richard Taruskin, Elliot Shwartz e Daniel 23 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 31 30. O que seria, portanto, criar — e a pergunta vale tanto para a criação de música como a de textos —, criar no sentido de gerar escolhas de liberdade e de autonomia, a partir da ótica das periferias, na medida em que mesmo a adoção imediata e radical do mais recente gesto de vanguarda, traz em si uma configuração de poder que ameaça a própria intenção criadora?26 27 31. Todos os temas tratados até aqui incidem de forma vigorosa sobre o ensino de composição — a rigor, uma atividade voltada para a preservação de um grande patrimônio imaterial. Vivemos e administramos essa tensão entre a formação de personalidades singulares (talvez um dos maiores heroísmos possíveis em nossos dias) e o envolvimento com Causas desejáveis, do ponto de vista da construção de autonomia e emancipação. Em cada passo, o perigo de alienação e mesmo de desfiguração do compositor, mas também as oportunidades do nosso tempo. Certamente merece atenção diferenciada a incidência de tudo isso sobre a formação da estudante-compositora. Como interpreta esse universo de valorações fálicas? Como se posiciona? Deve perseguir em sua música os sinais reconhecidos pela tradição masculina? Deve se opor? Deve mostrar domínio dos valores celebrados pela tradição do herói para ganhar credibilidade de oposição? Como diferenciar valores que são importantes musicalmente independentemente do valor fálico? Deve ignorar solenemente toda essa paçoca? São questões que mereceriam um mergulho próprio — mas que aqui registro como parte da problemática que ora analisamos. 32. Em seu projeto de doutorado Guilherme Bertissolo — gaúcho aportado na Bahia — quis estudar a relação entre música (composição) e movimento. Aceitou minha sugestão de fazer isso a partir de uma imersão no mundo da capoeira, justamente na escola do filho do Mestre Bimba. E depois de quatro anos de formação como capoeirista se sente capaz de desenhar conceitos de síntese tais como ciclicidade, circularidade, incisividade e surpreendibilidade, que são capazes de ensejar experimentos composicionais que dialogam com as categorias de lá e de cá. Mas ele não está fazendo etnomusicologia — embora haja campo e a presença do Outro. Na verdade, cabe aqui nesse ponto de perspectiva, toda a história da hibridação como horizonte metodológico em composição — ou seja, a administração e fruição de ordens simbólicas divergentes num mesmo tecido de obra. Se Xangô goza com a repetição e uma certa vanguarda goza com a não-repetição, como fazer caminhar esse diálogo? 33. Pois então: todos esses vetores e contextos precisam ser avaliados a partir do desfecho que Martin Jay constrói para o seu ensaio, o luto da metáfora: Godfrey, Robert Morgan — a realidade não é tão distinta assim. A adesão a um cânone construído sabe-se lá por qual ‘racionalidade’ cêntrica, que vai projetar uma memória caolha e excludente, e ainda ser exaltada e copiada pelas periferias. Estou falando da nossa musicologia, mas numa tecla bem distinta também registro uma coluna entusiástica de ninguém menos que Caetano Veloso sobre o livro de Ross. Para os nossos ídolos da música popular talvez seja um grande alívio (em termos de superego) perceber que tudo que se fez no Brasil de vanguarda foi nada desse ponto de vista de New York. Também torna-se necessário citar o artigo contundente de Jamary Oliveira sobre o compositor brasileiro como centro de desatenção. 26 Obviamente, aqui também ecoa a questão — que espécie de construção de memória seria melhor talhada a lidar com toda essa configuração, na medida em que bem sabemos como os arquétipos do campo da composição são projetados no campo da memória? 27 São perguntas de índole tropicalista — mas um tropicalismo atual, mais para Mangabeira Unger que Nina Rodrigues. Se instalam em cada momento de enfrentamento com linguagens e materiais, se instalam nos ensinos e nas instituições, merecem atenção diferenciada em busca de marcas distintivas. E já não aceita as respostas do século XX. Se a possibilidade de construção de autonomia e de atitudes de libertação depende, como advoga de forma brilhante Mangabeira Unger, de uma sintonia com uma massa emergente de pequenos/grandes batalhadores que conseguem sobreviver e até progredir, diante de uma estrutura jurídica e institucional copiada, que não oferece a menor capacidade de invenção de soluções para a nossa realidade e destino — então quais os caminhos do compor? O que dizer, por exemplo, dos traços acadêmico-institucionais também de feição copiada, também garantidores de valoração apoiada em comunidades internacionais? Como compor uma relação de autonomia com relação aos mesmos? 32 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER É como se com a ausência de uma promessa de mudança redentora o ativismo político tenha se tornado uma empreitada cinzenta e pouco inspiradora, envolvendo concessões nada heróicas, vitórias ocas e resultados tímidos.28 Para Jay, o doloroso processo de luto é também uma oportunidade de remetaforização — fazendo referência a Hans Blumenberg —, na medida em que a desmistificação não consegue dissolver a nossa necessidade permanente por novas metáforas. Se, de fato, a metáfora da revolução tem papel constitutivo para o campo do compor, então o que temos a dizer com relação à clara sensação de sua obsolescência? 34. O que dizer da relação entre ‘composição e poder’ num tempo pós ou re-metafórico, como propõe Jay? O que acontece com a ingerência da figura do herói e da consciência histórica no compor? O que dizer da manutenção de um modelo de ensino transferencial de composição (capaz de captar a atenção do estudante-compositor como desejante) numa época onde o herói foi reduzido à celebridade, perdendo a vinculação significante com a Causa? Numa época onde o déficit de atenção se impõe como estrutura de superpoderes mundializados — gerando ausência de atenção para os objetos concretos do entorno do sujeito, deixando-os desinvestidos de atenção e libido — Cf. Bernard Stiegler. Qual o destino da tradicional polarização fálica e sua sombra sobre valores como coerência, profundidade, autenticidade? O que dizer da condição periférica? Todas essas questões exigem novas respostas. 35. Safatle (2007) analisa a atual sociedade de objetos parciais polimorfos, que leva a uma desvinculação geral entre o imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados — ou seja, declínio da função simbólica do Pai29: ...toda determinação se mostrará provisória e inadequada diante de um imperativo superegóico que exige o puro gozo, faz-se necessário que o sistema de mercadorias disponibilize determinações de maneira cada vez mais descartável e de maneira cada vez mais rápida, importando-se cada vez menos com o pretenso conteúdo de tais determinações [...] isto nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada [...] uma sociedade em que os vínculos com os objetos são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar desta fragilidade. Como pano de fundo, a formação de sujeitos, a possibilidade ou impossibilidade dessa formação — conteúdos irrelevantes, objetos frágeis — em nome da reconfiguração incessante que responde a esse gozo polimorfo. Portanto, é preciso discutir composição, insatisfação administrada e fragilidade dos objetos. 36. Joel Birman (2000) admite um mal-estar na própria psicanálise, a dificuldade de lidar com uma época onde sua metáfora fundante, o Nome do Pai, parece perder terreno. Para ele, teria havido ênfase demasiada sobre a linguagem (em Lacan) e isso teria recalcado uma intuição It is as if without the promise of redemptive change, political activism has become a gray and uninspiring enterprise, involving unheroic compromises, hollow victories, and meeger results. Como, em última instância, toda determinação se mostrará provisória e inadequada diante de um imperativo superegóico que exige o puro gozo, faz-se necessário que o sistema de mercadorias disponibilize determinações de maneira cada vez mais descartável e de maneira cada vez mais rápida, importando-se cada vez menos com o pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância, isto nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada [...] Ou seja, estamos diante de uma sociedade em que os vínculos com os objetos são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar desta fragilidade. Até porque, não se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado. 28 29 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 33 fundamental de Freud, “pela qual o sujeito é corpóreo e afetivo, inscrevendo-se na existência pelo viés da ação”. Por tudo isso, a tese psicanalítica sobre a feminilidade, anunciada no final do discurso de Freud, é fundamental para a psicanálise na atualidade. Ela nos diz que a feminilidade está no centro do erotismo do sujeito. Sabe-se, de acordo ainda com Freud, que o sujeito tem horror a isso, justamente porque nesse registro o referencial fálico está ausente e em suspensão. Na feminilidade os enunciados são parciais e fragmentários, distantes da falácia universalista [...] Para o autor o campo é o da sexualidade, da política sexual. O que dizer dessa feminilidade préfálica — que não é a feminilidade feminina? Responde a uma época onde o sujeito deve conviver com o desamparo de um mundo sem universalidade ou totalidade? 37. Para Maffesoli (2005), não importa que termo se utilize — heterogeneização, politeísmo de valores, estrutura hologramática, lógica contraditorial, organização fractal: O que é certo é não ser mais a partir de um indivíduo, forte e autônomo, fundamento do contrato social, da cidadania desejada ou da democracia representativa [...] que se vive a vida em sociedade. Antes de tudo ela é emocional, fusional, gregária [...] o pensamento e a ação são clânicos [...] É esta a grande mudança de paradigma. 38. Voltemos às duas leis propostas por Ernst Widmer (1988): a organicidade e a relativização. A lógica do crescimento orgânico das idéias modulada pela imprevisibilidade das relativizações. Inclusividade ao invés de exclusividade. Embora atento ao múltiplo — desconstrói modelos binários — percebe-se o cuidado em estabelecer a organicidade como base, sobre a qual atua a segunda lei, também descrita como “viradas de mesa”. Impossível virar uma mesa, se não houver mesa. Ao que parece, vivemos uma época onde os termos da equação parecem caminhar para uma inversão, pois com a multiplicidade de objetos, e a fragilidade das permanências, devemos esperar da própria relativização qualquer vestígio de organicidade? Devemos conceber uma base de relativizações (uma mesa) da qual surgiria o vetor da organicidade? 39. Confrontados pelo esforço de remetaforização talvez devêssemos reavaliar todo o percurso e pelo menos admirar — mais uma vez — que, a princípio, não existem valores fixos ou capacidades inerentes ao compor, na medida em que o compor não pode ser reduzido a um objeto, no máximo a um tempo — quando é composição?, Cf. Brün (1986) — e, dessa forma, preparados para repensar a metáfora da revolução como uma função do estado de coisas, sem padrões antecipativos, poderíamos quem sabe proclamar em alto e bom som: “Em princípio, estamos contra todo e qualquer princípio declarado”. 40. Teria sido uma cadência perfeita, caso não estivéssemos lidando justamente com um eclipse do Nome do Pai, e portanto, um eclipse de qualquer princípio declarado. O sentido anárquico e revolucionário desse dístico ameaça dissolver-se quando rareiam os princípios, quando já não demandam qualquer oposição.30 O que significaria remetaforizar Deus, Pai, herói e revolução? Não sendo a narrativa do herói, o compor poderia ser a narrativa da nossa mera existência? Teríamos que riscar a expressão Importante lembrar a observação de Lacan se opondo aos que no auge do fervor libertário proclamavam ‘se Deus não existe, tudo é permitido’, com um raciocínio lógico embora desconcertante ‘se Deus não existe, nada é permitido’, não existe mais a instância permitidora, e nem o permitir. ‘princípio declarado’, e também a palavra ‘contra’. E, assim, o resultado seria algo como: Em princípio, todo e qualquer, estamos.31 Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ALMÉN, Byron. A theory of musical narrative. Bloomington: Indiana University Press, 2008. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007. BIRMAN, Joel. “Erotismo, desamparo e feminilidade: uma leitura psicanalítica sobre a sexualidade”. In: LOYOLA, M. A. (org.). A sexualidade nas ciências humanas. EDUERFJ/ IMS, v.8 n. 1, p. 93-132, 1998. BRÜN, Herbert. When music resists meaning. Arun Chandra (ed.). Middletown: Wesleyan University Press, 2004. 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O ensino de composição musical na Bahia. Salvador: Fazcultura, 1999. 30 34 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Esta formulação talvez possa ser entendida como a realização radical dos desígnios projetados pela formulação original, na medida em que ela própria se constituía em um princípio declarado a ser desconstruído. 31 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 35 MAFFESOLI, Michel. “O narcisismo intelectual”. In: GRELET, Giles (org.). Teoria-rebelião: um ultimato. Rio de Janeiro: Novamente Editora, 2011. QUINET, Antonio. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. REYNOLDS, Roger. Form and method. London: Routledge, 2002. SAFATLE, Vladimir. Por uma crítica da economia libidinal (disponível na internet), 2007. SASLAW, Janna. “Forces, containers, and paths: the role of body-derived image schemas in the conceptualization of music”. Journal of Music Theory, v. 40, n. 2, p. 217-243, 1996. STIEGLER, Bernard. Ce qui fait le vie vaut le coup d’etre vêcue. Paris, Ed. Flamarion, 2010. WIDMER, Ernst. A formação de compositores contemporâneos. Salvador, 5p. (Inédito) 36 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Uma validade verdadeiramente funcional Flávia Camargo Toni1 Instituto de Estudos Brasileiros Universidade de São Paulo Após a primeira grande guerra do século XX (1914-1918) as novas possibilidades apresentadas pela gravação de discos e difusão radiofônica animaram as propostas institucionais para a constituição e preservação de acervos musicais em todo o mundo. Vários destes projetos estavam imersos em ideologias onde a busca de uma identidade nacional era a tônica dos discursos. Se a música indígena esteve na mira das expedições de Theodoro Koch Grunberg e de Edgar Roquette Pinto, só na década de 1920 as músicas tradicionais passaram a ser consideradas para registro e tombamento em projetos particulares e/ou institucionais. Mais uma vez, não se tratava de coincidência o fato de Mário de Andrade ser o articulador e principal mentor dos projetos que culminaram com a fundação da Discoteca Pública de São Paulo, do ante-projeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da organização da Missão de Pesquisas Folclóricas. Entre 1928 e 1938 Mário de Andrade participou do registro mecânico e sonoro de duas coleções de músicas anotadas e/ou gravadas no Norte e no Nordeste do país, dois cancioneiros estabelecidos em bases metodológicas bastante diversas. O primeiro deles resultou do trabalho dele só, durante os meses de dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, contando com a colaboração de amigos jornalistas e escritores para a localização dos grupos de cantadores e manifestações que foram estudadas. Os intelectuais que moravam em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte acompanharam-no em certas ocasiões de reconhecimento de campo e entrevistas preliminares, porém a coleta foi de próprio punho. Retomarei este assunto adiante. A coletânea de 1938, como também se sabe, foi realizada pela Missão de Pesquisas Folclóricas e contou com a participação de Mário de Andrade nas fases de preparo e determinação da metodologia de campo, uma vez que estava comprometido com uma tarefa maior, em volume de trabalho, a Direção do Departamento de Cultura e da Divisão de Expansão Cultural, pois acumulava os dois cargos. As dimensões dos dois cancioneiros diferem bastante porque o mais antigo foi feito por um único indivíduo, num período de aproximadamente dois meses, enquanto o outro resultou do trabalho de uma equipe constituída por quatro pessoas e entre os meses de fevereiro e início de julho de 1938.2 Além disso, se para os próprios registros Mário de Andrade trabalhou apenas com lápis e papel, para o sucesso do trabalho da instituição que dirigia ele pode comprar equipamentos de última geração, sem contar com o preparo técnico-científico da equipe que se pautou, entre outros, no conhecimento de Dina Lévi Strauss, etnóloga que trabalhara no Museé de l´Homme, de Paris. Há outras bases de comparação possíveis entre os dois conjuntos, como as regiões geográficas que foram visitadas para as duas coletas, ou as épocas dos anos em que foram reunidos, mas aqui me Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. O grupo era formado por quatro pessoas: Luís Saia - Chefe da expedição. Era estudante de Engenharia e Arquitetura, recém-formado no Curso de Etnografia e Folclore ministrado por Dina Lévy-Strauss no Departamento de Cultura. Martin Braunwieser - Técnico musical. Era maestro-assistente do Coral Paulistano do Departamento de Cultura. Benedicto Pacheco - Técnico de som. Antônio Ladeira - Auxiliar geral e assistente técnico de gravação. 1 2 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 39 importa destacar uma terceira, qual seja, o próprio musicólogo que está por trás destas pesquisas, suas motivações e escopos. Em termos musicais a formação dele não diferia de parte significativa dos colegas que eram professores do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo ou do Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro. Em outras palavras, e com cuidado para que não soe como uma pergunta ingênua, o que teria contribuído para o perfil dele resultando no interesse pela colheita e preservação da memória da música ágrafa, também?, Se for possível considerar a Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura como um primeiro gesto de tombamento de patrimônio imaterial – e há como comprová-lo – qual teria sido a motivação para o trabalho de 1928? O que motivou o empenho tão custoso em termos financeiros, de ambas? Como se deu tal transferência de incumbências, já que se processava uma passagem da esfera particular para a institucional? E no que diz respeito ao musicólogo, de que forma ele participou dos debates sobre o patrimônio histórico, artístico e imaterial? A questão é tanto mais complexa quando nos debruçamos sobre a questão da música porque como musicólogo e professor particular de piano a linguagem mais próxima na rotina do trabalho era a da música com “copyright”. A noção da arte como patrimônio já estava estabelecida entre os intelectuais modernistas no início da década de 1920, embora o público em geral não participasse das discussões. Muitos provavelmente se surpreenderam se na 6ª feira da Paixão de abril de 1924 entraram na Matriz de Santo Antônio da cidade de Tiradentes(MG) e olharam para o altar: ali estavam Mário de Andrade, Dona Olívia Guedes Penteado, Gofredo da Silva Teles, René Thiollier, Tarsila Amaral, Blaise Cendrars, Oswald de Andrade e seu filho Nonê e solenemente fundaram a Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil. Quando o esboço dos estatutos ficou pronto a música estava presente nos planos de ampará-la porque entre as ações do Comitê de Iniciativa de cada Estado estava previsto que ele deveria “Ocupar-se igualmente da arte popular sob todas as suas formas: pinturas, esculturas, arte da mobília e caseira, música, canções e danças;”. Cendrars, autor do esboço, sugeria ainda que organizassem festas populares, como o carnaval e demais festas religiosas – um modelo dinâmico de proteção, porque pensava na promoção de eventos – e pontuava a arte culinária. Finalizou a seção recomendando “Colecionar tudo o que concerne à Pré-História”. Carlos Augusto Calil, que localizou, traduziu e publicou esse documento, analisou as cartas trocadas entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, conferiu as assinaturas dos que celebraram a primeira versão dos estatutos apresentada na casa de Dona Olívia, já em São Paulo, e concluiu que o autor de Paulicéia Desvairada, embora tivesse celebrado a associação nascida em Minas Gerais, não compareceu à reunião paulistana da “Diretoria” (Calil, 2006, p. 82). Nem o esboço passou para a letra de forma, nem parece que ele tenha ido além da manifestação da “paixão” dos paulistanos, mas chama a atenção, em nosso caso específico, que no Artigo VI dos estatutos, dedicado aos “Meios financeiros”, Blaise Cendrars tenha sugerido a “Venda de discos de gramofone de música brasileira gravada sob os auspícios dos comitês de iniciativa” (Calil, 2006, p. 83). Carlos Augusto Calil também nos auxilia a interpretar este dado curioso, uma vez que em 1924 o mercado fonográfico brasileiro estava se firmando. Os únicos projetos para a gravação das músicas de nossos povos eram aqueles de Theodor Koch Grunberg, cujo acervo foi enviado para Berlim, e o de Roquette Pinto, de cunho institucional, patrimônio do Museu Nacional. Na verdade, Cendrars teria gravado os sons da natureza brasileira porque era “fascinado pelos aparelhos de som: gravadores, gramofones e ditafones, invenções recentes” (Calil, 2006, p. 90). Mas qual a participação do único músico do grupo na Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil, o catedrático de Estética e História da Música do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e professor de piano, Mário de Andrade? Mário de Andrade não nutria grande apreço pela proposta de Cendrars? Se ele não concordava com a forma de abordar a proteção às 40 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER manifestações musicais, o que ele teria sugerido naquele momento? Em 1926, por exemplo, com a eleição de Washington Luís como presidente do Brasil, Oswal de Andrade, outro daqueles que “comungou” ao pé do altar da Matriz de Santo Antônio, preparou o texto para a criação do Departamento de Organização e Defesa do patrimônio Artístico do Brasil. Texto breve, contava com a música apenas no sentido de que o órgão deveria “Divulgar e fixar em livros, revistas e pesquisas as nossas tradições, lendas e riquezas folclóricas” (Calil, 2006, p. 86). Maria Lúcia Bressan Pinheiro que publicou recentemente análise sobre o neocolonial e o modernismo dos anos 1920, afirmou que “a história da preservação do patrimônio cultural no Brasil é ainda um campo aberto às investigações – pelo menos no que diz respeito ao período anterior à criação do Sphan, em 1937” (Pinheiro, 2011, p. 16). No caso da música e no caso específico do Brasil o diagnóstico está correto, mas ao longo do livro a autora avançou e muito sobre o que se conhecia até então sobre Mário de Andrade. No início da década de 1920 o musicólogo já era um entusiasmado com o neocolonial, o crítico que em 1924, referindo-se a São Paulo, exclamou: “Porque não aproveitam as velhas mansões setecentistas, tão nobres! Tão harmoniosas! E sobretudo tão modernas pela simplicidade do traço?” (Pinheiro, 2011, p. 232). Durante a década de 1920 a música brasileira era entendida como pesquisa e ensino na agenda de Mário de Andrade sendo a discussão no plano da estética voltada para a caracterização da nacionalidade, mas tal pesquisa não se dava apenas no plano teórico ou especulativo, ela demandava um trabalho de campo onde o cientista confraternizava com os viajantes e etnólogos que estudaram as músicas dos povos latino-americanos. O que ele pretendia com tais leituras e de que forma ele tecia estes fios de conhecimento com aqueles da pesquisa sobre a música? Um trecho de uma carta dele escrita para Luciano Gallet a 28 de fevereiro de 1928 pode auxiliar a responder. Mário de Andrade perguntou: “Uma coisa: Você vai publicar com letra uma das músicas do Bumba das que eu dei, é? Mande então dizer qual é pra meu governo. Não tem inconveniente nenhum nisso, porém dá-se o seguinte: fui convidado pelo Renato [Almeida] pra colaborar na sessão brasileira pra Exposição de Arte Popular de Praga. Estou com idéias de dar com introdução e comentários breves ‘50 Elementos Melódicos do Brasil’. Esses elementos têm de ser necessariamente inéditos e neles pretendo incluir uma parte intitulada ‘As Melodias do Boi’. Careço pois de saber qual é publicada já, pra, embora a dê, pra não desemparceirar a série, pra indicar em nota que já foi utilizada. E quanto ao Bumba de você, esse de certo não ficará pronto antes da exposição que é este ano mesmo e conseqüente publicação do meu trabalho, não? Se ficar me avise porque então retirarei as melodias. Só que peço pra satisfação da minha vaidade (excusez!) uma notinha avisando que essas melodias foram colhidas por mim e fornecidas por mim pra você. Isso importa muito porque é a parte “ação brasileira” a que consagrei tanto ou tudo da minha vida. E como não prejudica nada você, creio que você não me nega esse favor, feito?”3 O trecho deve ser destacado porque antecede tanto a redação do Ensaio sobre a música brasileira quanto a viagem de coleta musical ao Norte e Nordeste, ambas realizações do segundo semestre de 1928. Ou melhor, aqui temos o germinar de um projeto do musicólogo que apelidou sua pesquisa de “ação brasileira”. Antes do trabalho de campo, no Norte e no Nordeste, a pesquisa era livresca, pautava-se no coletar melodias e analisá-las, como nos primeiros trabalhos publicados na Revista de Antropofagia, o “Romance do Veludo” e o “Lundu do Escravo”, inaugurais (Andrade, 1976). Ele pesquisava com avidez e o trabalho encomendado por Renato Almeida para o Congresso de Praga corroborava os esforços de levantamento de um repertório de relevo para o estudo que 3 Carta de Mário de Andrade para Luciano Gallet, Acervo Luciano Gallet, Biblioteca Alberto Nepomuceno, Universidade Federal do Rio de Janeiro. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 41 estava em marcha. Manuel Bandeira era outro amigo que acompanhava a evolução dos trabalhos porque os dois poetas conversavam bastante sobre música. Caso tenha prestado atenção nas cartas que partiam de São Paulo Bandeira terá acompanhado até mesmo as alterações que se processavam nos projetos. A 31 de março de 1928, por exemplo, ficou sabendo que a monografia agora apelidada de “Elementos melódicos brasileiros”, possuía “80 e tantos documentos” (Andrade, 2001, p. 382); dois meses após, a 2 de junho contava com mais de 100 documentos (Andrade, 2001, p. 390). Mário de Andrade chegou a trocar de tema para a exposição para a qual acabou por enviar o estudo “Influência portuguesa nas rodas infantis do Brasil” (Andrade, 1976, p. 81-94). Em 1928 Mário de Andrade ainda não possuía a base antropológica para fundamentar as discussões sobre folclore, mas era justamente a pesquisa neste campo que validava aquela sobre o nacionalismo estético, como o Ensaio sobre música brasileira, por exemplo. Aliás, o Ensaio emana de uma coleção de 122 melodias que ele conseguiu amealhar de várias maneiras. Às vésperas de escrever este texto que se tornou tão importante para a musicologia brasileira interessa conhecer qual a relação que ele estabelecia com as peças que ele ia colecionando para suas pesquisas e de que forma ele as percebia na dinâmica da criação. Telê Porto Ancona Lopez ampliou substancialmente o conhecimento sobre a formação etnográfica de Mário de Andrade, tanto em sua tese quanto ao anotar, preparar e editar os diários das viagens por ele empreendidas em 1927 e 1928.4 As crônicas que resultam das viagens do Turista Aprendiz desvelam a formação política do autor, mais do que a cultura etnográfica dele, apesar do apelido atribuído à segunda ordem de escritos, ou seja, Diário de viagem etnográfica. A pesquisadora também estudou a biblioteca anotada do intelectual devotado e demonstrou que no correr de 1929 ele teria lido Les fonctions mentales dans les sociétes inférieurs, estudo sobre a mentalidade pré-lógica, de Lévy-Bruhl, leu Euclides da Cunha e Gilberto Freire, bem como La civilisation primitive, de Tylor, na versão francesa. Da mesma maneira sabemos que a leitura de Frazer se deu em francês, Le rameau d’ or, e em função deste último autor Mário também deve ter lido, de Freud, Totem e tabu. Ou seja, nosso musicólogo combinou Frazer, Tylor e Bruhl no que as teorias deles se acomodavam sem conflitos. Entretanto, foi na condição de Diretor do Departamento de Cultura que ele aceitou preparar o ante-projeto do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, SPAN, órgão que teve Rodrigo Mello Franco de Andrade à frente. Consultei duas reproduções diversas dos documentos enviados por Mário de Andrade para o Rio de Janeiro e há diferenças significativas para o caso que me interessa pontuar: a cópia publicada por Martha Rosseti Batista, facsimilar, parece composta por papéis pertencentes a dois arquivos distintos porque o ofício que acompanha o plano, com o timbre da Prefeitura do Município de São Paulo, tem o carimbo do “CPDOC-FGV” enquanto o datiloscrito a seguir, com o carimbo “IPHAN/ARQUIVO” está em folha onde se lê, à esquerda, “M E S – GABINETE DO MINISTRO” (Andrade, 2002, p. 271-287). Desta cópia quero destacar que no ofício que acompanha o documento principal pode-se saber que o convite de Capanema para que o poeta paulista elaborasse o anteprojeto foi verbal. A cópia do anteprojeto publicada por Lélia Coelho Frota, uma transcrição, não deixa saber quais as características dos papéis e, curiosamente, traz uma parte suplementar, com o título “Sugestões”, um texto longo e minucioso orientando acerca do funcionamento dos livros de registros e de tombo, bem como a rotina de alguns dos setores do Serviço, quando aprovado. As informações que aqui importam são aquelas sobre a coleta e tombamento da música. O título “VII”, dedicado a “Filmotecas e Discotecas” demonstra que na Discoteca do Departamento de Cultura de São Paulo planejava-se 4 Em Ramais e caminho (1972) a autora se detém no estudo da formação etnográfica de Mário de Andrade especialmente na primeira parte do livro (p. 75-103), mas foi ela quem preparou, anotou e editou os dois diários que o escritor alimentou durante as viagens de 1927 e 1928 (Andrade, 1976) 42 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER algo semelhante ao que era então recomendado ao SPAN. Mário de Andrade sugeria a aquisição de equipamento de som o melhor possível: “O luxo”, como escreveu ele. E continuava: “Chamam, no caso, de luxo o que é simplesmente buscar perfeição. Não se pretende aqui papéis riquíssimos de Holanda ou algum Velho Japão Imperial para as revistas e as monografias. Mas os processos gráficos de reprodução é que têm de ser da milhor qualidade, mesmo no início com a vinda de técnicos estrangeiros, aconselhavelmente alemães. As fotografias têm de ser da milhor qualidade, e as suas reproduções tipográficas da mais exata minuciosidade alcançada. O mesmo quanto a discos e filmes sonoros. É certo que o organismo completo fica num dinheirão, vários mil contos, que não atingirão no entanto dez mil. Mas essa parte prática é indispensável que seja boa. É preferível não fazer, a fazer medíocre ou mesmo regular. Deve ser muito boa ou ótima. Pode no entanto ser dividida em duas partes, de aquisição uma posterior à outra. A parte que inicialmente tem de ser adquirida e é de necessidade imediata, é o aparelhamento de filmes sonoros, fonografia e fotografia. Mesmo o aparelhamento fotográfico pode ser deixado para mais tarde, embora isto não seja aconselhável. A fonografia como a filmagem sonora fazem parte absoluta do tombamento, pois que são elementos recolhedores. Da mesma forma com que a inscrição num dos livros de tombamento de tal escultura, de tal quadro histórico, dum Debret como dum sambaqui, impede a destruição ou dispersão deles, a fonografia gravando uma canção popular cientificamente ou o filme sonoro gravando tal versão baiana do Bumba-meu-boi, impedem a perda destas criações, que o progresso, o rádio, o cinema estão matando com violenta rapidez” (Andrade, 1981, p. 52-53). Os ventos políticos nos idos de 1937/1938 alteraram com rapidez também o panorama da vida brasileira e de forma acentuada a biografia de Mário de Andrade. Além de perder o cargo junto ao Departamento que dirigia, a proposta por ele elaborada para a criação do SPAN não foi aprovada. Sem outras perspectivas de interesse e não querendo permanecer em São Paulo, mudou-se para o Rio de Janeiro onde lecionou na Universidade do Distrito Federal às vésperas da extinção desta escola. No entanto, o curso que chegou a ministrar deu ensejo a uma aula inaugural que, devido a sua importância, o próprio autor veio a publicar no formato de um ensaio apelidado de “O artista e o artesão”.5 O texto reflete o amadurecimento de um pensar que carreia a vivência do pesquisador de campo, o idealizador de políticas públicas para a cultura e o intelectual que acompanhava o noticiário internacional sobre a guerra em curso. Contemporaneamente ao texto para a aula o professor escreveu uma “quase” crônica que pretendia abordar os mesmos temas com leveza. Em Cuia de Santarém (1939), artigo preparado para o suplemento literário Diretrizes, falar sobre uma cuia surgia como falta de assunto, porque ele sofria de calor e a cuia não servia de abano. O objeto, que um dia passou a ser enfeitado, mesmo provando sua utilidade apenas envernizado, sem desenho algum, até passou a servir menos “porque os bichos atacavam a cuia pelos sulcos sem verniz. Mas nunca que o homem largasse mais daqueles enfeites que faziam a cuia, além de útil, bonita. Agora o Curupira se agradava mais da oferta, não só levava o fumo, como a cuia que o guardava. A virgem preferia logo o moço que fazia cuia mais bonita, o rapaz amoroso, o pajé assustado. Isso buscavam mais cores, mais desenhos para os sulcos, penavam muito pra desenvolver a técnica do enfeite, com que fim! Mas com que fim! Se a cuia até servia menos!… Não servia menos, servia mais, porque a beleza é também exigência social.” Como na aula publicada em livro, Mário de Andrade alertava, assim, sobre os problemas do cultivo do virtuosismo por si só, o domínio da técnica esvaziada de um conteúdo. A seguir o cronista imaginou a situação na qual, retirada de seu contexto original, a cuia tinha outras serventias, como aquela atribuída à cuia que ele levara de Belém – via São Paulo – para a casa de Santa Tereza onde 5 O ensaio O artista e o artesão foi incluído pelo autor no volume O baile das quatro artes (Andrade: 1962). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 43 “os que me buscam sentem mais prazer de estar aqui, e mais espertada a tendência a solidarizar comigo. E nada, nunca mais impedirá que para as gentes do Rio de Janeiro ou de Boston, que já têm recipientes mais lógicos e duráveis, entre uma cuia feia e outra linda, a linda seja a preferida, a conservada, a mais capaz de despertar a comoção, a convicção, a solidariedade.” “Nos museus o sociólogo observará também as cuias sem enfeite e as mal enfeitadas. Daquelas verificará talvez um estádio mais primário de civilização. E das mal enfeitadas denunciará a decadência de uma mentalidade coletiva. Porque arte é coisa social; e se um indivíduo, com as idéias confusas por ignorância ou preguiça de pensar, enfeita mal suas cuias sob pretexto de pressa ou utiltarismo, a sua imperfeição se reflete na coletividade, atua aos poucos sobre ela, a maltrata, a descaminha, a conspurca e sangra. E a coletividade se enfraquece por isso e decai.” A equação foi resolvida, o objeto belo pode também ser útil, ou seja, o bem que resultou de uma conquista coletiva e fortalece o grupo pode servir para a análise dos sociólogos e o prazer dos freqüentadores dos museus do Rio de Janeiro ou de Boston, bem como no seio de quem o produziu. Na música o mesmo pode se dar. Em “O perigo de ser maior”, de 19 de outubro de 1944, um dos últimos textos do rodapé Mundo Musical, publicado na Folha da Manhã, Mário de Andrade não escondia o fato de que ao voltar para São Paulo passara a funcionário da Regional do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional quando escreveu sobre o compositor e amigo Villa Lobos. Era tido e sabido que o músico viajava bastante e em algumas situações oficiais causava, eventualmente, algum constrangimento por não se comportar de forma protocolar. Bailando entre os extremos, o crítico se preocupava porque o músico “não se deixa[va] ficar no oito das discrições e das sabedorias, em vez, [preferia] o oitenta dos espalhafatos, dos espetáculos, das teorizações nascidas em cima da hora.” Assim a sugestão do funcionário público parecia engenhosa ao propor: “Vila Lobos não é objeto de exportação diplomática, e eu o preferia tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O SPHAN já está com esse encargo dificilíssimo e insolúvel de lidar com Ouro Preto, cidade viva e ao mesmo tempo amortecida por um tombamento justo que a tornou monumento nacional imutável. Pois não fazia mal que tombasse Vila Lobos, vivo e Deus queira que por muitos anos, e ao mesmo tempo transformado em intangível monumento nacional. Ora pois, como estou de paciência e positivamente isto não é artigo de crítica, vamos a ver como seria possível tombar Vila Lobos.” No decorrer da crônica Mário de Andrade explicou que ao compositor seriam doadas duas residências, uma de inverno, no RJ, outra de verão, em Goiás, mas nelas ninguém poderia entrar ou sair, à exceção de Vila Lobos e dos funcionários do SPHAN, pessoas que garantiriam regiamente a sobrevivência do músico que também poderia contar com todas as informações necessárias para o trabalho, “todos os instrumentos possíveis e imagináveis deste mundo e do outro, rádios, vitrolas, papagaios e todas as músicas do passado e de hoje, para que ele pudesse compor completamente diferente, como é do gozo dele, depois que se desiludiu das influências de Debussy. E o monumento tombado só teria por obrigação compor, compusesse à vontade” (Coli, 1998, p. 166). Apesar da brincadeira fica evidente a relevância que Mário de Andrade atribuía à obra do compositor que, a exemplo da cuia de Santarém, emergia da coletividade como criação original, identificava uma comunidade e a ela servia e inspirava. Assim, o trabalho de recolhimento e estudo das pequenas peças que estudara no Ensaio sobre música brasileira e que colhera, às centenas, pelo Brasil ou fizera colher, em 1938, permaneceriam como mostruários para o estudo e a contemplação. E eu acrescento hoje: como professora e musicóloga eis como eu acredito poder contribuir na reflexão e até mesmo na preservação do patrimônio musical, ou seja, divulgando acervos, estimulando pesquisas e, acima de tudo, trazendo-o à luz para a recriação e conhecimento. 44 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Referências bibliográficas ANCONA LOPEZ, Telê Porto. Ramais e caminho. SãoPaulo: Livraria Duas Cidades, 1972. ANDRADE, Mário de. 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Estabelecimento de texto, Introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades; SCCT, 1976. ANDRADE, Mário de e BANDEIRA, Manuel. Correspondência. Organização de Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Edusp. 2000. CALIL, Carlos Augusto Machado. Sob o signo do Aleijadinho: Blaise Cendrars precursos do Patrimônio Histórico. In: MORI, Victor Hugo et alli (orgs.). Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2006, p. 79-90. COLI, Jorge. Música Final. São Paulo: Editora da Unicamp, 1998. PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Neocolonial, modernismo e preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Edusp; FAPESP, 2011. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 45 Música e (é) Monumento uma revisão patrimonial Régis Duprat Universidade de São Paulo Academia Brasileira de Música Em sua obra A Arqueologia do Saber (1969), Michel Foucault (1926-1984) definia a função daquela Arqueologia como “a abordagem dos próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como documento... Ela se dirige ao discurso na qualidade de monumento; não busca um ‘outro discurso’ mais oculto. Recusa-se a ser simplesmente ‘alegórica’” (Foucault,1983, p. 159). Há cerca de 60 anos Mikel Dufrenne (Phenomenologie de l’experience esthetique, 1953, v. I, p. 208) já afirmava que “todo objeto estético é um monumento histórico por sua forma, seu sentido; e sua relação com o tempo humano tem a ambiguidade da historicidade”. Gianni Vattimo evoca Dufrenne no capítulo Ornamento-Monumento em O Fim da Modernidade. Para Vattimo, Dufrenne teria elaborado com sua fenomenologia, em 1953, uma noção de poética no sentido teorizado por Heidegger em 1969, qual seja uma noção ornamental e monumental da obra de arte. Ainda segundo Vattimo na conferência pouco conhecida, de Heidegger, A Arte e o Espaço, ele redescobre a espacialidade complementando as posições assumidas em Ser e Tempo, de 1927, onde a temporalidade era a dimensão guia para o problema do Ser. A atenção ao espaço na arte, no segundo Heidegger, não se reduz, continua Vattimo, a metáforas espaciais, mas tem consequências para o discurso estético sobre o monumento-ornamento; uma concepção decorativa da arte, no que destaco e incluo aqui a Música, da qual tem sido tradicionalmente valorizado o fator tempo. A estética heideggeriana oferece, então, uma visão monumental da obra de arte, o periférico e a decoração, segundo o dístico de Hölderlin repetidamente proferido por Heidegger de que “o que funda e o que fica, dizem-no os poetas”, como já destacou recentemente Maria Alice Volpe em uma de suas conferências. Por ocasião da criação do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em 1937, o nível de conhecimento sobre o passado musical brasileiro era circunscrito à obra do padre José Maurício Nunes Garcia, músico da corte do príncipe D. João, cuja obra fora preservada mas não suficientemente estudada ate então, como o fez posteriormente Cleofe Person de Mattos, cujo trabalho, na trilha de Curt Lange, inaugura o desenvolvimento de uma ação sistemática dedicada à identificação, preservação e tratamento classificatório de papéis de música de nosso passado. A legislação então aprovada em 1937 não previu a sua aplicação ao patrimônio musical da nação, embora o projeto original de Mário de Andrade (2002) sugerisse a valorização da música popular brasileira. Essa foi uma lacuna da legislação inicial do Patrimônio no Brasil que vem sendo compensada pelo próprio IPHAN, na atualidade, ao tombar gêneros e práticas musicais como patrimônio imaterial. Nenhuma pesquisa germina nem dá frutos, sem um estímulo sócio-cultural, incluindo-se aí a recepção. Diríamos que elas já nascem sob o crivo desse estímulo. Sem a continuidade desse crivo, seus resultados permanecerão no papel, aguardando futura recuperação... Os textos de Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), “Sobre a Música no Brasil”, na Revista Nitheroy (1836) e em Iris (1848), as ações do Visconde de Taunay, no final do século XIX, pela preservação do acervo de partituras do padre José Maurício Nunes Garcia; e as ações de Alberto Nepomuceno pela difusão PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 47 48 da Missa de Requiem de José Maurício, constituíram os primeiros passos na conscientização da importância da produção musical do período colonial brasileiro. Tais ações inspiraram nossos primeiros historiadores da música no século XX que abordaram a produção musical do passado e sua distribuição geográfica no Brasil. Referimo-nos às primeiras Histórias da Música Brasileira que identificaram pela primeira vez os monumentos da cultura musical do país. Foram pesquisas que germinaram... Citemos dentre os principais Guilherme de Mello (1908), Vicente Cernicchiaro (1926), Renato Almeida (1926/ 1942), Bruno Kiefer (1976), e Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1938a, 1938b, 1941, 1950, 1956). Sobre Luiz Heitor uma tese recente (2011) de Jairo Botelho Cavalcanti, por mim orientada na Universidade de São Paulo, ressalta pesquisas inéditas sobre a imensa e inestimável contribuição do musicólogo brasileiro, não apenas em textos, mas também em sua incansável atuação, na UNESCO, em prol da música brasileira (Cavalcanti, 2011). Citemos também os musicólogos-pesquisadores cujas publicações constituíram a revelação de pesquisas e documentação inovadora de um panorama histórico antes ignorado. Refiro-me principalmente a Francisco Curt Lange (1903-1997), que revelou, em publicação de 1946, a documentação musical do século XVIII, pesquisada em Minas Gerais; a Mozart de Araújo (1904-1988) que publicou a obra pioneira A Modinha e o Lundu no século XVIII (1964); Cleofe Person de Mattos (1918-2002), que editou, catalogou e regeu inúmeras obras do padre José Maurício Nunes Garcia (1763-1830), traçando a sua biografia e organizando o corpus catalogado das suas obras (1970 e 1997). Cito Jaime Diniz (1924-1989), com vasta obra e pesquisas sobre os músicos pernambucanos do passado (1968, 1971 e 1979). Rememoro Gerard Béhague (1937-2005), cujos diversos trabalhos sobre a música no Brasil (1968) e na América Latina (1979) consolidaram uma visão sistêmica dessas tradições musicais, eruditas e populares. Refiro-me também às minhas próprias pesquisas publicadas a partir de 1960, sobre o Recitativo e Ária, da Bahia, 1759 (1971; 2000), sobre São Paulo (1966, 1968, 1975), os manuscritos de Mogi das Cruzes (1984), do Vale do Paraíba; a revelação das obras e da biografia de André da Silva Gomes (1752-1844) e o catálogo de obras (1966/ 1995) e tratado teórico (1998); e o trabalho de catalogação dos manuscritos musicais da Coleção Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto (1991, 1994, 2002). Foi gradual a identificação de manuscritos musicais do passado latino-americano. No México ela remonta ao século XVI, No Brasil, salvo modestos registros de cantos indígenas, do francês Jean de Lery, do século XVI, constituem o conjunto de manuscritos de Mogi das Cruzes, SP, que data da década de 1730, repertório que apresentei em várias publicações, inclusive em congressos internacionais, a partir de 1984. O monumento musical do passado difere substancialmente dos monumentos arquitetônicos e plásticos, cuja vida material se exibe para a contemplação direta dos cidadãos. Em geral os papéis velhos e deteriorados, com notas apagadas de difícil leitura pouco significam para o não iniciado, para o leigo e até mesmo para o músico não especializado. A recuperação e restauração desse material é tarefa muito específica. Após a Segunda Guerra Mundial a historiografia musical brasileira ganhou nova dimensão. Isso ocorreu também na América Espanhola (Ayestarán, 1953; Claro, 1970 e 1974; Roldán, 1985 e 1986; Stevenson, 1970; Garcia, 1985). Revela-se volumosa documentação sobre a atividade musical de vários países latino-americanos com implicações metodológicas que ampliaram a abordagem técnica do material, conferindo valor histórico e artístico à produção musical da nossa História. No Brasil foram estimulantes os métodos e técnicas aplicados na historiografia nacional no campo do patrimônio não musical pelo então recém-criado IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Igualmente a metodologia e as técnicas de pesquisa na História da Música identificaram-se com as da História geral e da Antropologia, que vinham de se implantar nas Universidades do Rio de Janeiro e São Paulo a partir de 1934, sob a égide de especialistas sobre tudo franceses e alemães. No caso do Brasil as fontes manuscritas então inéditas eram oriundas de uma fase histórica em que não se imprimia música. O trabalho se aplicou exclusivamente aos manuscritos cuja localização é dificultada, à primeira vista, por sua dispersão; e cuja reprodução dependia da difusão regional dos manuscritos que, por sua natureza, não apresentam o requisito quantitativo das coisas impressas. Entretanto a atual disponibilidade de partituras e registros fonográficos já vem permitindo abordagens analíticas, mormente quando complementadas por análise similar de obras de compositores hispano-americanos, portugueses, espanhóis e italianos, estes especialmente da escola napolitana que exerceu grande influência, direta ou indiretamente, na formação do estilo e dos processos composicionais da música ibérica e, consequentemente, da América Latina e do Brasil (Duprat, 1964 e 1970). No campo da música popular, a “tropicalização do estilo clássico” nos gêneros da modinha e do lundu é proposta e consistentemente defendida por Edilson de Lima (2010), trabalho precedido por estudo histórico e analítico das Modinhas do Brazil (Lima, 2001). Na interpretação da música latino-americana do período colonial tem sido invocado, por vezes, o pressuposto de que as condições gerais de desenvolvimento cultural do Novo Mundo, em condições colonizadas seriam inevitavelmente periféricas; porém muito pouco tem sido demonstrado em monografias que supere a mera afirmação superficial e subjetiva, até pré-positivista, sobre aquela postura. Somente na medida em que proliferarem os estudos e análises sobre as obras musicais abordando suas técnicas e procedimentos de estilo, escolas e compositores, se superarão as afirmações necessariamente generalizantes e até as abordagens positivistas ingênuas nos níveis de reflexão. E quando falamos de estilo tangenciamos o tema da interpretação da música do período colonial brasileiro. Cabe subordiná-los ao sistema-mundo cultural da época em que floresceram; o que se enquadra na problemática dos estudos de estilo cuja literatura especializada surgiu principalmente desde finais do século XIX, em consequência das descobertas europeias de todo um repertório antigo que desponta em Guillaume de Machaut e se consolida com Dolmetsch, em 1919, e se desenvolve com Bukofzer, Blume, Borrel, Amédée Gastoué, Thurston Dart, Charles Rosen, Charles van den Borren, Oliver Strunk, Marc Pincherle, Albert Lavignac, Paul Landormy e toda uma rica literatura posterior e atual, rica e exuberante. Trata-se, ainda, da interpretação das figuras sub-intelectas de herança barroca; da solução dos ornamentos e dos problemas gerais de estilo: o pré-barroco, o barroco, o néo-clássico e o clássico, até o romantismo, se incluirmos nossa música sacra do século XIX, abrangendo pelo menos quatro séculos. Mas o mistér não se reduz a tais especificidades, pois envolve a consciência dos estudos literários, a literatura sacra e as paixões da alma, os estudos integrados de linguagem e interpretação musical em geral, além do estudo da contribuição das ricas musicologias ibérica, italiana, latino-americana e, seguramente, brasileira. No Brasil, a figura jurídico-eclesiástica do Padroado consolidou a fusão entre Igreja e Estado, sob a hegemonia deste último. Pelo Padroado a Igreja transferia para a administração do Estado os encargos de gerir os assuntos das igrejas, receber o dízimo e realizar os pagamentos necessários às atividades litúrgicas, inclusive as que integravam a música (Duprat, 1968, 1981, 1999a; Volpe, 1997). Talvez a inexistência do salão, do teatro ou da sala de concertos, que em geral surgem apenas em algumas das nossas cidades coloniais, e com mais pujança no decorrer do século XIX, tenha reduzido as possibilidades de surgimento de atividades musicais profanas. Pela circunstância deste texto, cabe retomar alguns dados básicos sobre o conjunto monumental do patrimônio de música religiosa do período colonial brasileiro. O padre José Maurício Nunes PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 49 50 Garcia (1767-1830) é autor do maior conjunto de obras de um só compositor com cerca de 220 peças (Mattos, 1970 e 1997), seguido pelo conjunto de cerca de 150 obras de André da Silva Gomes (1752-1844) mestre-de-capela da Sé de São Paulo entre 1774 e 1823 (Duprat, 1966/ 1995). O terceiro compositor em número de obras identificadas é José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805) com cerca de 45 obras identificadas (Lange, 1946 e Duprat, 1991, 1994, 2002). A estas 400 e tantas obras junte-se a produção de cerca de 200 outros compositores, com cujas obras catalogadas podem ultrapassar-se a soma de mil, constituindo um considerável acervo merecedor de especial proteção patrimonial. Nas obras dos compositores mineiros estão presentes influências classicizantes, ainda que Lobo de Mesquita na primeira fase de sua vida utilize, com propriedade, aliás, o baixo cifrado, característica barroca que abandona gradualmente nos últimos 10 anos de sua vida (1795-1805). Dentre os compositores de Minas Gerais, Marcos Coelho Neto (+1806), é dos mais familiarizados com os princípios do classicismo vienense, do qual Silvio Crespo (1990) destaca “o alto grau de maestria... no manejo da linguagem da sua época... em que ressaltam a espontaneidade melódica, a expressão marcante, unidade e concisão” (p. 69). Crespo reitera, ainda, a textura frasística mais clássica do que barroca (p. 40). Suas melodias e linhas temáticas têm sabor singelo, explorando os solos e duos em terças e sextas paralelas, em formas clássicas de construção. O mesmo podemos afirmar com relação à Antífona Salve Regina, de Lobo de Mesquita, editada por Francisco Curt Lange (1951); composição de estrutura magistralmente equilibrada que dispõe a construção dos conjuntos em “pathos” contrastantes de sonora beleza modinheira e estados eufóricos de ânimo, encontradiços na própria Escola Napolitana, já ricas do seu consagrado repertório cancioneiro. Cabe lembrar aqui “a linguagem mais lírica da produção musical da escola mineira” de que fala Rui Vieira Nery no artigo “Espaço Sagrado na Música Luso-Brasileira do Século XVIII”. Eis que ali se identificam componentes do canto popular modinheiro que só anos depois pasmarão os gostos da corte de Lisboa pela verve incomparável do mulato Domingos Caldas Barbosa, que soube glosar com sabedoria e sensibilidade a vertente popular dos costumes e do gosto com as formas herdadas da música com a atmosfera devota das igrejas. Igualmente o Ofertório Meditabor in mandatis tuis, (“Hei de deleitar-me nos teus mandamentos”), de André da Silva Gomes (edições de Edilson de Lima e de Maria Alice Volpe in Duprat, 1999b); e todo o segmento do Et in terra pax, da grande Missa a 8 vozes e orquestra ou o triunfal Laudamus te dessa mesma Missa. Silva Gomes foi discípulo de José Joaquim dos Santos (1747-1801) na Patriarcal de Lisboa, do qual se dispõe de um manuscrito musical na Biblioteca Alberto Nepomuceno da UFRJ, obra editada recentemente por André Cardoso e publicada na Revista Brasileira de Música (2010). André da Silva Gomes guarda reminiscências barrocas mais acentuadas: baixo cifrado caminhante e abundante; contrastes tutti-solos; harmonia sequencial barroca em parte de sua obra (Duprat et al., 1990) e a presença de inúmeras fugas no conjunto de suas obras, forma ausente nos compositores mineiros. Se nos detivermos na análise de partituras dos demais autores do período colonial, teremos sobejas razões para identificar atitudes musicais da mesma grandeza e imaginação das obras de José Maurício, Lobo de Mesquita ou Silva Gomes que talvez sejam os autores com maior predileção pelas formas monumentais. Missas com solistas, coro e orquestra, em contraste com massa sonora, escolha cuidadosa na variedade da sucessão tonal dos segmentos litúrgicos, variação dos timbres vocais e mudanças de tonalidade; belezas incontestes do conjunto de suas obras hoje conhecidas e a reiterar nossas proposições finais desta minha fala. Voltemo-nos, para os ricos pressupostos ontológicos da música religiosa, que fundam os textos litúrgicos cujo caráter condiciona uma sintaxe específica apenas aparentemente incompatível com os procedimentos do classicismo e do romantismo musical europeu que, aliás, não primaram pela grandiosidade de suas formas religiosas; pelo menos, não parecem ter suplantado a exuberância barroca. A música religiosa de todos os tempos tem se fundado na riqueza semântica e ontológica do seu calendário de textos litúrgicos e de festas específicas em termos de caráter, variantes de conteúdo e abrangência semântica (Stimmung), nas quais se verifica uma variedade exuberante de sequências textuais significativas. Cada frase, no latim ou traduzida nos vernáculos, é carregada de sentido denso e sugestivo que desafia a imaginação e a criatividade do compositor para explorar os recursos musicais disponíveis em seu tempo, parafrasear os textos, tratados com grande liberdade de temas no repertório literário religioso, suscitando vasto campo de exploração para ideias musicais, tanto tópicas, como as expressões de compaixão, quanto para a grande sintaxe dos temas discursivos. Assim, a música religiosa compensa fartamente, em liberdade formal, um suposto conservadorismo implícito nas artes religiosas; a mesma liberdade das esculturas barrocas de um Bernini, no século XVII... (refiro-me especialmente ao Êxtase de Santa Teresa daquele autor). Essa variedade e riqueza de expressão pode oferecer um interesse crescente até para o ouvinte moderno. Riqueza e variedade disponibilizavam aos compositores do nosso período luso-brasileiro, amplas sugestões de simplicidade, clareza e inspiração a transcender o âmbito histórico-estilístico de uma época ou de um compositor para se tornar presentes, mutatis mutandis, em todas as épocas e gêneros da música, inclusive os sistemas tonais-modais e pós-tonais-modais. No Brasil, são exemplos paradigmáticos, as obras religiosas de Henrique Oswald, Heitor Villa-Lobos e as do compositor contemporâneo Luis Antônio de Almeida Prado, que há pouco tempo nos deixou, dentre os que procederam a essa liberdade formal, numa apreciável projeção criadora. No mundo, exortemos, dentre muitos outros, Olivier Maessien e, porque não Stravinsky, com suas obras religiosas e vocais. Desde Bukofzer (1947) compreende-se que o discurso musical barroco é proporcionado fundamentalmente pela harmonia sequencial, pela continuidade modulatória. O classicismo, por sua vez, se estrutura na articulação frasística compartimentando o processo modulatório em seção especificamente dramática; e o faz como se agrupasse as reminiscências de um passado então recente, como procedeu a sinfonia clássica com os segmentos fugados, verdadeiras citações referenciais das fugas barrocas. Outros parâmetros, mais visíveis e compatíveis com as mudanças radicais de natureza histórico-sócio-econômico-culturais introduzem-se no discurso para garantir, na retórica do classicismo, o princípio da varietas, já preocupação essencial da retórica do barroco, que passa a integrar o discurso musical como um todo, então transformado. O estudo das diversas correntes europeias oferece as bases teóricas e estilísticas para compreender o que se produzia no século XVIII brasileiro e latino-americano. Partamos da evidência de um sistema-mundo, a que me referi há pouco, teoria do sociólogo-historiador norte-americano, Immanuel Wallerstein, inspirado nas teorias de Fernand Braudel sobre o século XVI. A par desse sistema-mundo econômico e social constatamos um sistema-mundo sócio-cultural que integrou as culturas europeias em princípios econômicos, filosóficos, científicos, estéticos e culturais comuns. Já em 1970 chamávamos atenção para a importância da escola napolitana e suas influências sobre a música portuguesa e espanhola para aprofundar o conhecimento da música do período colonial brasileiro (Duprat, 1970 e 1983). Recentemente alguns estudos têm reincidido na importância das fontes napolitanas, espanholas e portuguesas para a nossa música do período colonial, muitas vezes negligenciando a bibliografia da nossa área e principalmente a das ciências humanas. Cabe ressaltar também a importância de se cultivar o valor patrimonial da própria pesquisa musicológica realizada anteriormente a todo e qualquer trabalho que se propõe renovar. 243. E reiterar a importância de um compositor nascido em Lisboa e que exerceu atividade musical durante 50 ininterruptos anos PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 51 52 no Brasil; sua obra musical e teórica é depoimento eloquente das características técnicas e estilísticas de toda aquela influência italiana e ibérica. Refiro-me a André da Silva Gomes, mestre-de-capela da Sé de São Paulo, entre 1774 e 1823, um dos agentes no transplante das técnicas composicionais italianas e ibéricas para o Brasil. Refiro-me a dois tratados de teoria musical, contraponto e composição do período colonial escritos no Brasil, de que se tem notícia: o primeiro, ainda inédito, é de Caetano de Melo Jesus, com a Escola de Canto de Órgão, de 1759 (Alegria, 1974 e 1985); o segundo é de André da Silva Gomes, autor de uma importante Arte Explicada de Contraponto que publiquei na íntegra com três discípulos meus (Duprat et al., 1998). É um verdadeiro tratado de composição, escrito provavelmente nos últimos anos do século XVIII e recentemente objeto de tese acadêmica, por nós orientada, e voltada para o estudo do contraponto (Márcio Landi, 1998/ 2006). Extrapolar essa realidade da Bahia e de São Paulo para as demais regiões do Brasil e explicar as técnicas e práticas musicais da época, parece um ato hermenêutico e uma hipótese da mais clara evidência para enriquecer o conhecimento da nossa música mais antiga e para abandonar as atitudes ingênuas que sustentam que aquela música não teria sido senão mera imitação reprodutiva de Portugal e da Europa. Exemplo documental eloquente do que afirmamos pode ser ilustrado pelas convenções da ária “da capo al segno”, do Recitativo e Ária de compositor anônimo da Bahia, 1759 que editei em 1959, apresentado em 1960 pela Orquestra de Câmara de São Paulo, por Olivier Toni de quem é o registro fonográfico de 1965 e cuja partitura publiquei em 1971 (Duprat, 1971) com nova edição (comemorativa Brasil 500 Anos), publicada pela Editora da Universidade de São Paulo em 2000, juntamente com Maria Alice Volpe. Essas convenções da ária da capo, são atribuídas especificamente ao desenvolvimento estilístico associado à escola napolitana; tais convenções, como demonstrou a musicóloga brasileira Maria Alice Volpe na citada publicação (Duprat e Volpe, 2000). Demonstram eloquentemente que na década de 1750 havia na Bahia, um músico que dominava com desembaraço as formas europeias, então mais atuais da época, para se escrever um Recitativo e Ária. Por que um parâmetro tão significativo de atualização não poderia ser generalizado para os demais? Como, portanto, partir de pressupostos preconceituosos relativos a uma suposta desatualização dos nossos músicos latino-americanos? Como negar a eles a pertença a um ofício que já gerava monumentos patrimoniais hoje dignos de tombamento? Diz o texto de Volpe: o Recitativo, de compositor anônimo da Bahia, 1759, “foi musicado em recitativo obbligato, comum na ópera italiana [...] e a Ária “Se o canto enfraquecido” obedece essencialmente a todas as convenções da ária da capo al segno, da escola napolitana da década de 1750, concernentes ao plano formal e tonal, convenções vocais e instrumentação” (Duprat e Volpe, 2000, p. 37). Obviamente, as convenções formais e tonais da ária da capo se disseminaram profusamente e, sozinhas elas não seriam suficientes para associar a ária “Se o canto enfraquecido” especialmente à escola napolitana. Porém, alguns detalhes estilísticos e circunstâncias históricas permitem tal associação. A escrita instrumental da Ária “Se o canto enfraquecido” usa procedimentos que visam, em geral, a uma textura transparente e atende a uma série de procedimentos que podem ser associados à escola napolitana (Duprat e Volpe, 2000, p. 49). A título de reflexão final sobre a música do período colonial brasileiro diríamos que a identidade ibérica com a América Latina tem feito recair sobre nossa produção musical passada, lusa e hispânica, uma discriminação já anteriormente sofrida por Portugal e Espanha a partir do século XVIII. Desde então, a produção intelectual e artística ibérica seria encarada como periférica. Até polifonistas dos séculos XVI e XVII, como Morales, Guerrero, Vitória, Duarte Lobo, e Manuel Cardoso foram relegados, nos padrões de excelência da musicologia ocidental, em favor de Palestrina, Lasso e outros aos quais não arrebatamos, por isso, o seu valor. A musicologia ocidental posterior tem procurado estudar essa discriminação ideológica com pretensões técnico-estéticas. Não se propõe aqui uma inversão que desfavoreça aqueles últimos compositores citados, mas sim um padrão equânime em que, ao estudarmos as músicas ibéricas e ibero-americanas, não o seja com critérios subjetivos discriminatórios dessa natureza. Aí estariam sobejamente justificados os estímulos sócio-culturais e de contexto de que tanto se fala, em Musicologia. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ A Restauração-monumentalização Todo ato de restauro integra ou reintegra uma obra ao conjunto monumental a que pertence e se transforma por isso (pelo ato de restaurar) num evento histórico de remonumentalização da obra. Isto é válido para todo o conjunto das obras musicais pertencentes a todas as obras históricas compostas em todos os tempos, inclusive as compostas no dia de hoje. Assim ocorreu com o restauro da Pietà, de Michelangelo (em 1972) e, no Brasil, fato semelhante com a imagem de Nossa Senhora Aparecida (1978) após os atentados sofridos. Tais restauros se incorporaram ao patrimônio correlato como marcos históricos da remonumentalização e à história daquelas obras de arte, inclusive como restauração da sua monumentalização interrompida, aparentemente ameaçada. O ato da restauração também se erigiu em marco para a história daqueles monumentos e para a disciplina a que pertencem. Da mesma forma se transformam em fatos históricos marcantes na história da Musicologia, as restaurações-edições, ou seja, os atos restauradores das obras antigas recuperadas após identificação e/ou localização dos manuscritos correspondentes que são automaticamente incorporadas à Bibliografia da disciplina. A Bibliografia é instrumento indispensável para garantir a cientificidade das atividades do setor. Não cabe a ninguém que atue com competência na Musicologia, tentar ignorar tal fato, sob pena de caracterizar-se como aprendiz, neófito, novato, principiante, que não pertence ao ramo... De fato, quem desconhece a bibliografia de uma área, não pertence exata e competentemente a tal área, e, portanto, não pode ser levado a sério. No âmbito da edição-restauração de obras do passado colonial, as obras foram restauradas por musicólogos que as editaram. Nos países onde a Musicologia é uma atividade nobre e séria, impera o respeito pela produção musicológica da restauração, sendo vedado ignorar a bibliografia da área e subárea; ou alegar que o trabalho consiste em “uma outra restauração-edição”. O respeito pela produção musicológica não tolera que se veiculem publicações e/ou execuções de partituras editadas sem o nome do editor, ou a sua citação especificada no caso de propostas de alteração de interpretações musicológicas anteriores. Fazê-lo sem a citação e sem argumentação que fundamente as alterações é tido como forma velada de plagiar o trabalho publicado anteriormente. É desrespeitar o trabalho pioneiro e prestigiar o plágio e a venalidade no campo da Musicologia. É tentar consagrar posturas e procedimentos amadorísticos que consistem em apropriação do trabalho da restauração-edição anterior. É plágio. Cabe um debate amplo sobre a questão da propriedade intelectual e o desenvolvimento da pesquisa musicológica no Brasil, considerando-se a reflexão de autores como Sherwood (1992), Seeger (1992), Travassos (1999) e os diversos trabalhos do sociólogo Immanuel Wallerstein, sociólogo cuja crítica destacou como “as estruturas do saber desenvolveram-se historicamente em formas úteis à manutenção do nosso sistema-mundo vigente” (Wallerstein, 2007, p. 94). As realidades bastante diversas do nosso meio cultural têm sido constrangidas pelas condições institucionais. A crítica “especializada”, que reflete as nossas características receptivas, ainda exploram a grandiloquência do verniz exterior irrelevante. Os últimos anos não acompanharam o salto imenso que ocorreu na pesquisa musicológica da música antiga. Esse gap teve profundas consequências no arrefecimento das pesquisas da nossa música mais antiga, da qual pouco se executou devido às 53 dificuldades naturais de concertos vivos. Assim a discografia ganha projeção, pois as obras gravadas, ainda que nem sempre bem executadas, formam um patrimônio relativamente importante para essa música. E foi nesse setor que o patrimônio pôde externar o melhor de sua grandeza e qualidade. Falta-nos tradição de estudos musicológicos consistentes (algumas andorinhas não fazem verão) não na produção, mas na recepção. Foi o que tentei fazer em 50 anos de vida universitária: formar alunos, publicar textos e partituras e gravar discos. O repertório realmente monumental se esgotou e o que vem à luz se minimiza diante da precariedade absoluta de novas obras, dada a já esgotada pesquisa anterior em matéria de obras monumentais. Relembro que obra monumental é uma obra pertencente a um conjunto monumental, cada nova obra renovando o conjunto. As contendas sobre autenticidade e plágio nas pesquisas e a renovação de repertório se minimizam diante da precariedade absoluta da recepção. As formas cínicas de comportamento sobre os direitos de propriedade intelectual resultante das pesquisas acarretam inevitavelmente formas cínicas de resposta também. A carência de pesquisas originais provoca a transgressão dos direitos numa disputa inútil de originalidade das pesquisas, dadas as desprezíveis possibilidades de execução e recepção, que a estrutura sócio-cultural atual oferece. Os resultados, pobres ou ricos, de 200 anos de cuidados e pesquisas que delineamos podem ser expressos na frase: “a quem interessar possa”... Há de convir que é muito pouco mesmo. De modo que as contendas sobre direitos de propriedade tornam-se, segundo o ditado inglês, em “Much ado about nothing” [Muito barulho por nada]... Entretanto, não importam as intenções de impressionar ou predominar. O que importa realmente é a qualidade do legado que se transmite para as futuras gerações; elas o dirão. E repetimos com Hölderlin e Heidegger: O que fica dizem-no os poetas. E que todo músico de verdade tem algo de poeta. Referências bibliográficas ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1926. 2ª ed. corrigida e expandida. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1942. ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo; 1808-1865: uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos. 2 vols. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1967. ANDRADE, Mário de. Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. 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(Duprat, 1991) Se partirmos da constatação de que a notação musical vem se modificando, digamos, desde a idade média até os dias de hoje – às vezes de modo mais sutil, outras de modo mais radical – podemos concluir que notação e transformação são uma constante na história da música ocidental. Evidentemente que este recorte (essa longuíssima duração) tem como centro enfocar a história da música ocidental e seus domínios além e aquém-mar. Neste aspecto, um dos modos de focalizarmos as transformações históricas, está absolutamente ligado com épocas diversas (Idade Média, Renascimento, Barroco, Classicismo, Romantismo etc.) que construíram seus modelos de notação musical, codificando-os de acordo com suas realidades históricas, necessidades de transmissão da música como obra e suas realidades histórico-sociais. De qualquer modo, mesmo a notação mais rebuscada dos dias de hoje, nunca detém todas as possibilidades “interpretativas” que podem conter uma obra musical. Isso, não só porque a notação seja falha em si; mas também porque toda notação, assim como a escrita de uma língua, transmite seus valores também de modo oral, confiando em que alguns sentidos e significados sejam social e culturalmente compartilhados. Nessa perspectiva, o estudo da história da música está absolutamente vinculado aos diversos modelos de notação musical. Em outras palavras, colocar a notação musical no centro de nossas atenções é, indubitavelmente, fazer história da música. E não somente isso, mas também focar nossos estudos nos agentes sociais que a produziram. Nessa perspectiva (a perspectiva histórica) podemos afirmar que o código musical está “inapelavelmente contaminado” pela ação humana. Ou seja, o código musical traz as marcas da história do ser humano que o produziu e carrega consigo parte dessa história, pois sua totalidade (uma história geral) e por consequência, a decodificação total da notação musical e o resgate total da obra passada, jamais poderão ser alcançados. É nesse sentido que não podemos “reviver” a história, já que não podemos trazer o passado aos nossos dias; Pois, ao nos transportarmos para o passado, carregaríamos conosco nossos valores e, seguramente, eles orientariam nossas opções.1 Por outro lado não estou defendendo uma “arbitrariedade” na construção da história. Ao contrário, nosso conhecimento prévio, e também nosso compromisso com o campo epistemológico, metodológico e ideológico, nos proporciona as balizas necessárias para que não nos comportemos de modo desmedido, aproximando, assim, nossas opções objetivas e subjetivas.2 1 2 Aqui, remeto ao entendimento que Gianni Vattimo (1987) faz dos conceitos heideggerianos Verwindung e Überwindung. Seja em um sentido ideológico, comportando lutas a fim de estabelecer um domínio político sobre o campo; seja no PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 63 No nosso entender, e como destacado na epígrafe que encabeça este texto, a “contaminação” do código comporta valores que transcendem ao âmbito estrito da notação musical. Ou seja, o código traz os valores “heterônomos” advindos não só do mundo da música, mas da relação da música com a sociedade em que está inserido. Sobretudo por se tratar de um signo representativo (algo no lugar de algo) sua leitura depende de convenções que foram (e serão) estabelecidas não só dentro dos limites da disciplina, mas podem ser gerados fora dela, dentro de processos transdisciplinares.3 É neste aspecto que podemos afirmar que a notação é assunto do sentido, do discurso, da retórica evocando valores históricos e socioculturais diversos. Deste modo, ainda segundo Duprat a contaminação do código é invocada aqui, com a intenção de destacar o papel da heteronomia, ou seja, do sentido que reside nos valores não musicais dentro da atividade musical propriamente dita. Nesse sentido o fazer musical não seria senão uma imensa prática metalingüística sobre os problemas integrais do Homem. (Duprat, 1991) É evidente que não pretendemos afirmar que a única história possível seria uma abordagem linear e com bases evolucionistas na transformação da notação musical. Mas acreditamos que ao nos defrontarmos com modelos de partituras diversos (notação modal, manuscritos antigos, tablaturas, partituras atuais de música popular etc.) ou manuscrito de várias épocas, teremos seguramente que erigir a notação musical como um parâmetro histórico a ser discutido. Outro aspecto ligado à notação, ou aos diversos tipos de notação, é o quanto podem revelar sobre quem as produziu, orientando nosso olhar para os segmentos ou classes sociais envolvidos nessa produção. Nessa perspectiva, uma abordagem da história da música tendo a notação musical como objeto, sempre tratará de fenômenos complexos em que os múltiplos sujeitos sociais atuaram; mesmo que estes se encontrem nas profundezas dos porões da história e encobertos por grandes fenômenos, muitas vez e de proporções globais e necessitem de uma luz reveladora. E se num primeiro momento essa luz vier de um só ponto, com o passar do tempo, tonar-se-á multidirecional; focalizando não somente diversos eventos, mas orientada por diversos olhares. É nesse sentido que podemos afirmar que a partitura – o suporte material de uma possível imaterialidade – não constitui um objeto em si, mas traz consigo as pistas dos valores históricos das épocas em que foram desenvolvidos, os diversos sentidos acumulados no transcorrer dos tempos e os valores adquiridos no presente. Transcrição como construção Entendemos que a tarefa do editor é assegurar que suas contribuições sejam distintas das opções do compositor. Neste sentido, é fundamental que ele ofereça sinais claros de referência que podem constar tanto no corpo da partitura, quanto em um estudo introdutório efetuado para uma edição crítica. Ajustar, as convenções da música do passado às convenções atuais (notações, resolução dos ornamentos, claves atuais, sinais de dinâmica, expressões textuais etc.) é algo importante, pois orienta aquele que utiliza uma transcrição, sobretudo não especialistas, em suas opções. Oferecer algo o fac símile (como era a notação original), também constitui algo importante, pois possibilita ao executante comparar escritas e convenções expressivas atuais àquelas do passado. Outro ponto importante é localizar as fontes primárias (manuscrito, fac simile e/ou tratados sentido destacado por M. Heidegger no conceito de pré-compreensão ou do “pré-juizo” gadameriano, o ser humano sempre se encontra em um universo significativo prévio (mundo) com o qual se relaciona e não abandona quando interage na sociedade (cf. Eagleton, 1997; Heidegger, 1983; e Gadamer, 1979). 3 Para uma discussão mais aprofundada sobre aspectos ligados a “transtextualidade”, consultar o texto Genette (2006). Apesar do conceito referir-se à literatura, ele pode ampliar nossa compreensão e orientar- nos nossa em futuras pesquisas relacionadas com o universo discursivo musical. 64 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER de época) e as fontes secundárias (publicações de partituras, tratados e livros diversos de história da música) que tenham sido utilizados como fundamento para a realização da edição. E será a partir dessas indicações que os estudiosos no presente poderão melhor entender suas opções para poder construir suas próprias interpretações, ultrapassando a condição de “meros” reprodutores tecnicamente treinados. A distinção entre os termos reprodução (uma copia do original), edição (reprodução pronta para ser executada), transcrição (que implica em alguma alteração do original) e realização (sugestão para baixo contínuo) deve ser uma constante, pois orienta aquele que utiliza uma determinada partitura a saber qual tipo de documento tem em suas mãos. Do mesmo modo a transcrição – qualquer tipo de alteração do original ou qualquer tipo de atualização do código musical e adaptação a instrumentos ou vozes (Dart, 1990) – deve atentar para a diversidade de valores que se ligam a contextos históricos e socioculturais diversos em que foram produzidos. Num certo sentido, um dos objetivos de uma transcrição é preparar a partitura para músicos não especializados, que de certo modo não foram “iniciados” em códigos que, por motivo que não cabe discutir neste texto, deixaram de ser praticados dentro de uma comunidade de executantes. Neste caso, o executante atual, sobretudo aquele mais jovem, deve ser desde cedo iniciado em práticas convencionais diversas não só “diacrônicas” (aquelas que vão se transformando no transcorrer da história) mas também “sincrônicas”, ou seja, as convenções que convivem lado a lado dentro de uma mesma época. Outro objetivo de uma transcrição seria a adaptação de uma obra composta para um instrumento, grupo vocal e instrumental, para outra realidade instrumental e/ou vocal. Nesse aspecto, o musicólogo ou músico que efetua uma transcrição deve se amparar em estudos históricos relacionados à partitura, à época em que foi composta a obra, e em convenções de realização musical. Também deve atentar para a função social a que a obra se destinava, e relacioná-la com os sujeitos sociais que a produziram e suas condições históricas e materiais que, de certo modo, influenciaram em suas opções sonoras. Portanto, as opções em uma transcrição (tais como compasso e unidade de tempo, realização de baixo contínuo, atualização do texto, indicações de ornamentação etc.) devem estar amparadas por um profundo estudo histórico para que o intérprete atual ao utilizá-la possa se enriquecer com informações que orientem sua prática rotineira, que lhe apresentem caminhos que possam orientá-lo em estudos históricos futuros e para que possa empreender suas próprias transcrições. No caso do uso de uma edição Urtext (texto original), estaríamos no sentido inverso de uma transcrição. Ou seja: temos como tarefa apresentar um documento original. Deste modo, além da partitura propriamente dita, ela funcionaria como parâmetros em nossas opções editoriais, oferecendo grandes possibilidades para a ampliação de nossos estudos históricos e, consequentemente, em nossas opções para uma execução ou edição. Porém, o simples uso de um documento antigo não nos transporta para o passado. Em nossa visão, mesmo quando adentramos uma igreja antiga repleta de esculturas e afrescos de épocas passadas; ou quando manuseamos um manuscrito de época remota, não abandonamos “totalmente” nossas narrativas presentes. Pelo contrário, são as nossas narrativas, nossas escritas históricas, nossas pré-compreensões,4 que efetuam a mediação entre o passado e o presente. Nesse sentido, nossa visão se forma tanto a partir das indicações ou pistas “sugeridas” pelo documento, quanto pelo modo como o interrogamos, ou seja, como uma “fusão de horizontes”, no sentido teorizado por Hans-Georg Gadamer em seu livro Verdade de Método. Nesta perspectiva, nossa compreensão do passado “implica a reconquista dos conceitos de um passado histórico de tal modo que esses 4 Cf. nota de rodapé 2. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 65 contenham também nosso próprio conceber” (Gadamer, 1997, p. 488). Assim sendo, não há uma máquina do tempo que nos transporte ao passado para que constatemos como ele foi realizado; e mesmo que houvesse, não apagaríamos da memória nossas conquistas presentes. Neste caso, a Urtext não constitui um documento “factual” do passado; pois os fatos não falam por si só, mas sim a partir de nossas intermediações, de nossas narrativas. E estas (as narrativas) dimensionam os documentos à medida que estes também nos provocam. Portanto, construímos um “discurso” a partir e com o documento, e nossas opções interpretativas (sejam estas códigos gráficos dispostos na pauta ou decodificações no ato da execução) se configuram como possíveis soluções, possíveis leituras, possíveis construções. Análise musical e história Uma análise musical não trata de um modo estático de interpretar determinada obra; tampouco constitui um modo de explicar definitivamente qual o “funcionamento” interno de determinada obra musical (Kerman, 1987, p. 77 e 83). Como exemplo, podemos citar a mutação ocorrida na concepção da sonata: no final do século XVIII, Koch (apud Ratner, 1980) a concebia como uma forma binária, contendo uma primeira seção (A) onde são apresentadas as idéias principais; e uma segunda seção (B), dividida em duas partes: o desenvolvimento e a reexposição. Já durante o século XIX, a sonata, passará a ser dividida em três seções: A, contendo a apresentação dos temas principais; B, entendida como desenvolvimento dos temas principais, e uma terceira seção, A’, consistindo na reexposição dos temas na tonalidade principal com ou sem modificações. Nesse sentido, e em algumas décadas, o modelo analítico da sonata clássico-romântica sofreu modificações substanciais. De qualquer modo, durante o século XIX análises formalistas estavam em voga e como destaca Joseph Kerman (1987), este tipo de atitude visava a destacar quais são os dispositivos teóricos e referenciais que fazem a música “funcionar”; dentro de pressupostos ainda formalistas-organicistas. Modelos retórico-musicais têm sido aplicados, mais frequentemente, em análises da música dos séculos XVI ao início do XIX.5 Neste aspecto a obra musical, mais do que um “organismo vivo” (onde as partes dependem de um sistema referencial musical autônomo, uma “engrenagem” que a faz funcionar, ainda dentro de um entendimento mecanicista), tem sido interpretada como “discurso”. Ou seja, como uma forma de organizar os sons dentro de uma sequência de eventos, semelhante ao discurso falado, de modo a produzir “sentidos” socialmente compartilhados. A noção de discurso, como destacado acima, liga-se também à execução, ou seja, à constituição da “linguagem” em ação, e está integrada na sociedade e nos sujeitos sociais, na produção de modelos ou gêneros discursivos.6 Assim, se a sonata clássico-romântica estava absolutamente imbricada na sociedade dos séculos XVIII e XIX, é porque funcionava como discurso e, nesse sentido, socialmente compartilhada por alguns ou vários segmentos sociais que não só a reconheciam como um gênero vivo, mas nela se reconheciam. O caso da polca é emblemático. Gênero musical ligado às classes altas e médias europeias e deste lado do Atlântico, “descerá” às camadas sociais menos favorecidas.7 E ao ser reelaborada pelas camadas populares urbanas na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro, sofrerá modificações e concorrerá, juntamente com o lundu, para a formação de gêneros como o choro e maxixe. Também a modinha, configurar-se-á como um gênero transversal, atingindo as várias camadas sociais desde 5 Cf. Lucas (2008); McCreless (2008); Bartel (1997); Civra (1991). Segundo Mikhail Bakhtin (2010, p. 261-2), o conceito de gênero discursivo relaciona-se diretamente com “tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros discursivos”. 7 A respeito da história da polca e sua disseminação como um gênero musical que tornou-se em pouco tempo uma coqueluche, consultar: Machado (2007); Kiefer (1979); Tinhorão (1991[1974]). 6 66 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER o seu surgimento na segunda metade do século XVIII e durante o século XIX, ora apresentando facetas mais próximas aos valores aristocráticos e burgueses, ora características das camadas populares, configurando-se como um gênero musical que carrega as marcas dessa diversidade. Já o lundu, que surge nas camadas populares negras e mestiças também na segunda metade do século XVIII, vai dialogar com os valores das classes dominantes (aristocracia e burguesia), adaptando-se ao “gosto” dos agentes sociais onde será dançado e cantado.8 Em nosso entender, toda sociedade comporta uma complexidade de sujeitos sociais e, por consequência, de gêneros discursivos diversos, sejam esses literários ou musicais. Portanto, efetuar uma análise musical é sempre rediscutir (historicamente) como uma obra surgiu, em que época, quem a produziu e efetuada para qual função social. Desta forma, uma análise, mesmo que se proponha a uma descrição formal, é sempre tratar dos sujeitos sociais que a produziram, e, consequentemente, destacar conflitos, interesses, e portanto, lutas! Assim sendo, toda análise se insere em uma dimensão histórica, social e cultural, entendendo esta última como uma relação micro ou macrossocial que compartilha valores muitas vezes conflitantes. E de modo algum, enfatizemos, concebemos esses valores como estáticos. Com o limiar do século XX e a liberação da música de sistemas referenciais de longa duração, como o modalismo e o tonalismo, surgiram outros sistemas de referência problematizando ainda mais análises musicais fundadas na busca de modelos analíticos estáveis. Se por um lado a longuíssima duração do modalismo, e a longa duração do tonalismo deram margem a sistemas analíticos que perduraram por longos anos; a chegada do século XX e a elaboração de sistemas referenciais musicais que, muitas vezes, convivem lado a lado, dificultou a produção desses sistemas (Duprat, 2005). Desta forma, a disciplina Análise Musical deve, em nosso entender, ser pensada não somente como competência técnica, mas como busca para conferir um possível sentido a certas obras musicais, ao lado de outros modelos analíticos ou construções de sentido. Sobre a monumentalidade A partir do modo como vimos discutindo acima, a monumentalidade relacionada a uma obra musical – seja referida a um modelo interpretativo, a um documento (Urtext), a um arranjo considerado ontológico ou a um modelo analítico – só pode existir dentro de um universo discursivo, configurando-se como modelos narrativos, como construções, ou seja, como interpretações. E se algumas interpretações ou manifestações artísticas se “monumentalizaram” e se mantiveram como “tradição”, é porque houve todo um esforço – ideológico, no caso de embates sócio-políticos ou de resistências no caso de manifestações orais de comunidades autóctones ou minorias – a fim de manter aquele modelo ou aquela tradição. E mesmo o conceito de “tradição” (algo que se mantem em uma cadeia interpretativa de longa duração) deve ser problematizado. Segundo a visão de Michel Foucault (2009, p. 3) “as sucessões lineares, que até então tinham sido o objeto de pesquisa, foram substituídas por um jogo de rompimentos em profundidade”. Ou seja, o que conta não é mais uma lógica linear no trato do objeto de pesquisa, mas sim deslindar os traços de sua narrativa, revelando, portanto, seu caráter construtivo. E nesse sentido, todo “monumento” se liga aos agentes e esforços empreendidos por segmentos sociais, discursos institucionais, lutas de resistência, empenhados na manutenção de tradições eleitas dentro dessas lutas a fim de manter sob a luz do sol, ou dos astros, suas conquistas. Desta forma, são os discursos que transformam os documentos em monumentos e onde se constroem as narrativas a partir dos “rastros” deixados pelos homens. 8 Para uma discussão mais ampla sobre a modinha e o lundu, consultar Lima (2010a); Lima (2010b); Machado Neto (2008). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 67 Discurso e dialogicidade Embora a palavra discurso possa carregar significados muito complexos, gostaria de enfatizar um de seus aspectos considerados fundamentais: a dialogicidade. Do ponto de vista linguístico, segundo vários autores,9 a dialogicidade é uma das marcas imprescindíveis do discurso e de sua realidade como evento, ou seja, como discursividade. Todo discurso se constitui em uma atividade produtora de sentido e está intrinsecamente relacionada com possíveis interlocutores e se realiza na enunciação, dentro de contextos imediatos (o ato da enunciação real, a execução) e não imediatos, relacionando-se com a memória individual e coletiva de quem o profere, e seu contexto sociocultural e histórico (Brandão, 2006). Nesse sentido, toda enunciação (o enunciado em performance, no ato da execução) carrega consigo as marcas de quem a profere, suas intenções emocionais e suas opções estilísticas, seus compromissos existenciais e políticos. Também nesse sentido, a execução musical pode ser encarada como discurso (produção de sentidos) e acontece como discursividade: a expressão dessa produção.10 É evidente que para haver discurso, são necessárias algumas características, dentre as quais destacamos: a necessidade do conhecimento das funções linguísticas e extralinguísticas. Os sentidos, por sua vez, estão relacionados, também, com as trocas e compromissos socioculturais. Portanto, discursar é atuar, e nesse sentido, agir “sobre” e “com” os outros. Assim, a dialogicidade não constitui um dos aspectos do discurso, mas um aspecto imprescindível para sua realização. Daí o efeito de “polifonia”. Polifonia não só de várias “vozes” (melodias, no caso da música; ou e versos e frases no caso da literatura); mas dos vários sentidos, já que a sociedade se configura de um modo complexo onde seus múltiplos sujeitos sociais “podem” construir (fruir) seus sentidos e constituir seus múltiplos discursos, portanto, suas múltiplas interpretações. É também dentro dessa ótica que concebemos a produção e execução de um gênero musical: se acontece como discurso, é porque foi produzido no âmbito de interações sociais. E nesse sentido, uma maior ou menor interação entre sujeitos sociais, conflitos internos, exclusões ou inclusões, estão absolutamente relacionados com as escolhas musicais. Mais uma vez citamos a polca após a segunda metade do século XIX. Ela será um gênero transversal entre as camadas “altas” e “baixas” da cadeia econômico-social. E será justamente como as camadas populares absorvem este gênero e como se colocam como agentes expressivos que surgirão o maxixe e o choro (Machado, 2007). E enquanto a polca, juntamente com o tango, serão dignos de frequentar os salões mais abastados; o maxixe, ao contrário, continuará sua senda como gêneros musical, portando discursivo, das classes “populares”. Um aspecto de suma importância relacionado com os gêneros discursivos e, portanto, aos gêneros (discursivos) musicais, é sua pluralidade e heterogeneidade. É o que destaca Mikhail Bakhtin (2010, p. 262): “A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana”. E esta pluralidade liga-se diretamente às possibilidades dialógicas não só dentro de um campo discursivo (a música, em nosso caso); mas da sociedade como um todo, dentro de processos interdisciplinares. Outro aspecto indissociável do discurso é sua característica de “reponsividade”. Como observa Bakhtin, “ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, [o interlocutor] completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo”; mais abaixo destaca que “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva [...]; toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte torna-se falante” (Bakhtin, 2010, p. 271). E para concluir destaca que a “compreensão responsiva” pode ocorrer de maneira 9 Para o aprofundamento dessa discussão, consultar Bakhtin (2010) e Brandão (2004). Cf. Agawu (2009). 10 68 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER “silenciosa” (Bakhtin, 2010, p. 272). E como exemplo, cita os gêneros líricos. Dentro desse contexto, ouvir é, ou deveria ser uma atitude responsiva: seja no âmbito modal, tonal ou atonal; antecipando, projetando, frustrando-se ou confirmando os movimentos sugeridos pela elaboração musical. É importante, neste aspecto, não perder de vista também o jogo perceptivo: como “os sons, as palavras, as linhas são descobertos por aquilo que eles são em si próprios” (Piana, 2001, p. 313), ou seja, como ele, o som, “se move e é justamente por isso que ele atrai, do mesmo modo em que o olho é atraído por aquilo que se move no campo visual” (Piana, 2001, p. 318). E este jogo perceptivo, pode se revelar como “o prazer da estrutura que se manifesta na percepção, que é afinal, o mesmo prazer que sente, por exemplo, vendo os fogos de artifício que agradam, tal como nos agradam, no inverno, as flores desenhadas pelo gelo nas vidraças” (Piana, 2001, p. 325). E isso só pode ocorrer se ouvintes (a recepção) e músicos (compositor e executantes) participarem de um mesmo discurso musical; se compreendem-se como interlocutores dentro de um diálogo, em um “discurso dons sons”. Música, discurso e interpretação Não somente a notação musical traz as marcas da diversidade histórico-sociocultural, mas também soluções diversas de notação e decodificação que convivem lado a lado e que refletem opções estilístico-musicais diversas. Também uma transcrição pode ser resolvida de modo diverso, relacionando as opções com as finalidades a que se destina. Dizendo de outro modo, haverá soluções diferentes quanto à instrumentação, escolha de tonalidade, afinação, só para citar alguns parâmetros, dependendo da realidade a que se destina determinada edição. Também as mudanças que ocorreram ao longo dos séculos na notação musical ocidental, ligam-se às mudanças ocorridas nas sociedades e como almejaram representar em papel suas opções sonoras. Com a análise musical, ou mais precisamente, com as “análises musicais”, não foi diverso: modelos composicionais e gêneros ligaram-se a grupos e classes sociais diversos. Portanto, ao tratarmos de gêneros específicos – como a sonata clássico-romântica, a modinha e o lundu, a valsa, a polca e o maxixe, entre outros – estaremos sempre efetuando uma discussão sobre quem compôs? em que condições? com que finalidade? para qual público? e, evidentemente, estaremos tratando da produção e da recepção; ou de um desses pólos. Desta forma o estudo da história da música, seja partindo de aspectos como a notação, a transcrição e a análise, sempre nos dará a chance de tratar dos sujeitos históricos que participaram de sua construção. Evidentemente que isto depende de no mínimo duas questões: uma, o tratamento de uma determinada sociedade do ponto de vista de sua complexidade sociocultural; outra, relacionar essa complexidade com abordagens que possam dar conta da diversidade dos bens simbólicos produzidos; conservando a consciência de que sempre nos movemos – executantes e musicólogo – dentro de um universo construtivo, portanto, interpretativo. E dentro desse contexto, tocar ou cantar, ler uma partitura, efetuar uma transcrição ou análise musical, constitui uma atitude que se consolida dentro de um “campo complexo do discurso” (Foucault, 2009, p. 26). E já que não abordei nesse texto a questão do patrimônio, permito-me, pelo menos, uma pequena reflexão: os gêneros musicais, bem como a questão do patrimônio (em nosso caso musical) se consubstanciam como “discursos compartilhados”. Estes, por sua vez, só se tornam reais quando estabelecem uma dialogicidade dentro da malha social. Restam-nos, portanto, algumas perguntas: quais são as estratégias de produção, de difusão, de formação desse patrimônio? Como compartilhar a produção de nossos bens simbólicos? Como a sociedade, como um todo, e/ou seus seguimentos serão incluídos nesses “discursos”? Como absorver a riqueza musical advinda da complexidade social?... Será a resposta a essas perguntas que poderá garantir ou não, uma maior aproximação entre sociedade e nosso muitas vezes solitário trabalho. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 69 Referências bibliográficas AGAWU, Kofi. Music as discourse: semiotic adventures in Romantic Music. USA: Oxford University Press, 2009. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BARTEL, Dietrich. Musica poetica: musical-rhetorical figures in german baroque music. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997. BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. São Paulo: Ed. Unicamp, 2004. CIVRA, Ferrucio. Musica poética: introduzione alla retorica musicale. Torino: UTET Libreria, 1991. DART, Thurston. Interpretação da música. São Paulo: Martins Fontes, 1990. DUPRAT, Régis. “Memória e história”. Em Pauta, Porto Alegre, v. 3, p. 3-15, junho 1991. DUPRAT, Régis. “Linguagem musical e criação”. 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Nesse caminho, determinar as pertenças, trânsitos, metáforas e metonímias dos objetos dramáticos torna-se o elemento básico para um diálogo não só com os suportes teóricos de um autor, logo sua capacidade de sentir e dizer, mas, também, “como” e “do que” se constitui a plataforma de observação do corpo social e cultural do qual um sujeito discursa. É um jogo que ao mesmo tempo em que revela a identidade e a realidade a encobre por um jogo subjetivo que metaforiza o sentir pessoal, desfragmentando-o em muitas imagens que nos conforta chamar de tradição. Cria-se aqui o monumento do Patrimônio. Afirmo então o primeiro problema da identidade e da identificação, que é o objetivo do trato do patrimônio, da memória, do apelo à tradição: a linha salvacionista que nos orienta e conduz nas certezas contra algo: o outro! Assim bem coloca Aganbem: Em toda a lamentação o que se lamenta é a linguagem, assim como todo louvor, é antes do mais, louvor do nome. Estes são os extremos que definem o âmbito e a vigência da língua humana, o seu modo de se referir às coisas. Aí, onde a natureza se sente atraiçoada pela significação, começa a lamentação; onde o nome diz perfeitamente a coisa, a linguagem culmina no canto de louvor, na santificação do nome. (Aganbem, 1993, p. 48) O primeiro ponto importante que coloco como discussão é o louvor ao patrimônio. É por ele se sustenta a tarefa de memorar, logo, patrimônio significa criar índices de redenção, de diferenciação. Naturalmente formam-se cânones. Porém, ao mesmo tempo em que esses cânones indicam e localizam quem somos, revelam o complexo das leis específicas que nos fazem acreditar em uma cultura redentora e, assim, manter estável o padrão de reconhecimento mútuo, com todos os legados, inclusive suas reivindicações identitárias. Porém, o cânone não é, em nenhuma hipótese, uma âncora no passado, é mais bem um fundamento das linguagens dominantes. Portanto, por ele se baliza as ferramentas da linguagem possível. Ora, ninguém é infeliz por uma solução que não existe; por um nome que não compreende; por um fenômeno que não faz sentido. Assim, sem o cânone, o corpo teórico fragiliza-se e é impossível, inclusive, estabelecerem-se os parâmetros para projetos de resistência e inovação. Reconhecendo os cânones estabelece-se uma ponte também com a proposição de programas alternativos ou de resistência, assim como no próprio reconhecimento de que nos cânones e nas contra hegemonias há uma posição que sempre revela a localização do narrador, ou seja, não o seu PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 73 local na cultura, mas o próprio local da cultura. Transportando o cânon para as propriedades dos usos e costumes chegamos perto do problema desse texto: o momento em que o copista é também o autor, ou seja, a autoridade do local que se projeta nos valores e condições do objeto tratado. Pelas camadas sedimentares da construção de sentido, forma-se o diálogo da rede comunicacional que, por sua vez, revela os padrões de uso do que faz ou não faz sentido, assim como as condições pelas quais um sujeito de posse de suas pertenças decide uma interferência. Ação que no ponto de vista de quem realiza não cobra pruridos, simplesmente se expressa pela condição do possível do ser-aí. Nessa óptica, pode-se, até mesmo, decidir a epistemologia dos sujeitos diante no uso do patrimônio: são construtores de sentido (por exemplo, no uso da mitologia no Antigo Regime) ou desconstrutores de discursos (o materialismo histórico e a crítica à industrialização dos bens culturais). Em outras palavras, são posturas que consubstanciam um diálogo dinâmico dos documentos como forma de medição com uma lógica de fragmentos que, evidentemente, fixam-se na crença de uma realidade como uma substância; ou observam, por estratégias de subversão deslocadas por tempos de vivência, para revelar os “tempos” psíquicos da formação do próprio material e a forma de dizê-lo. Vejamos a complexidade do uso do patrimônio por um exemplo concreto, o uso do estilo antigo em regiões sem a densidade simbólica das grandes capitais europeias no Antigo Regime. (1) O primeiro problema é o da transferência de realidade: o fato de encontrarmos um patrimônio musical idêntico à tradição religiosa ocidental não é garantia do seu uso nos padrões da própria tradição de origem; (2) Porém, mesmo que constatássemos o uso de um material dentro de um protocolo rígido, ou sua conjugação em coleções que indicam um saber canonizado, não poderíamos garantir que o processo comunicativo realizou-se dentro dos protocolos desejados. Podemos estar diante de uma ação egocêntrica onde o sujeito da comunicação projeta seu sentido no discurso do patrimônio organizado. Assim, enuncio a segunda afirmação desse texto: o patrimônio sempre é um discurso de poder. O problema da cópia é justamente esse. Quando uma alteração é na verdade um erro ou quando ela passa a ser uma adaptação a um gosto, ou uma realidade concreta do local? Esse é um limite muito tênue que deveria forjar muitas das especulações daqueles que asseguram a postura crítica na constituição ou reconstituição dos dizeres que nos garantem uma ligação com uma ideia de passado comum. Assim, um aspecto importante é deslocar o louvor ao patrimônio para o patamar das observações das práticas cujos fragmentos usamos para criar tradição. Por essas descobertas realiza-se o enunciado de Agnes Heller (1985) quando fala da latência do passado. Ele é indeterminado e está lá para reorganizá-lo e criar sentido. Qual sentido? Qualquer sentido, até mesmo o sentido da lamentação. Assim, Heller tratava a história desde o cotidiano, pois seria nesse espaço que se encontraria um escape para a fetichização do tempo como força gravitacional que nos prende ao passado. Assim, ao invés de perguntar o que não está na história, poderíamos perguntar o que não está no cotidiano? É nesse aspecto que podemos até mesmo recolocar o problema da transformação da mensagem; da cópia; da hibridação como fenômeno de realocação; etc. O cotidiano é a fonte desses sentidos transmutados. Logo, qualquer análise que fuja do cotidiano entra no ato da monumentalização que serve apenas para criar zonas de influência e poder, do dizer e da análise do dizer. 74 comunicacionais o posicionamento dos estudos culturais na liquidação de fronteiras. Constituí seus argumentos que os paradigmas desses processos foram forjados em campos diversos: da observação da tradição recolhida “no tempo” à celeridade da era da hipercomunicação (Canclini, 2008, p. xviii). Por esse caminho, Canclini definiu o conceito: “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (ibidem, p.xix). Para Canclini os reagentes sociais são fundamentais, ou melhor, os efeitos sincréticos que estão nas práticas cotidianas, espontâneas, ou como ele define, “discretas”. Argumenta que pela experiência de deslocamento espontâneo, inerente a toda e qualquer movimentação humana, a hibridação ganha sentido: [8] Como a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas? Às vezes isso ocorre de modo não planejado ou é resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional. Mas frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se ‘reconverter’ um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reincidi-los em novas condições de produção e mercado (Canclini, 2008, p. xxii). As práticas discretas Ao discutir a epistemologia dos processos de hibridação, Nestor Canclini (2008) aponta os desenvolvimentos do conceito e define as rotas trilhadas que posicionaram a importância desses estudos no desenvolvimento das ciências humanas e sociais contemporâneas: desde estudos interétnicos e de descolonização à compreensão dos fenômenos globalizadores que condicionaram por processos Porém, nas práticas diárias subjetivam-se processos que estão além do que se pode ver, tocar ou sentir. Há sempre um entreato do imaginário, da expressão indizível da cultura, onde os trânsitos dos processos cognitivos tornam-se absolutamente oblíquos; momentos de intersecção de culturas, de tradições; das condições do pensável onde o sentir homogêneo é apenas uma virtualidade, uma projeção de reconhecimento; mais fantasia do que pertença, ou fragmentos e retalhos de algo vivido como forma de autodefesa diante das dúvidas e angústias de desterros (físicos ou imaginados), deslocamentos ou feudalizações advindas de qualquer opção identitária. Formam-se realidades paralelas que são mais do que práticas, são desejos projetados do que se imagina pertencer em confronto com o que se vive. Porém, o vivido é sempre dinâmico, mutável e adaptável até mesmo aos sonhos de pertencimentos de homogenias; é um alterego de ambivalências. É nesse confronto do vivido com o imaginário de pertenças homogêneas que se esboça a tipologia híbrida, mas também se faz louvor ao patrimônio. Assim, de um sentimento subjetivo, como a saudade da terra natal, às associações étnicas ou as feudalizações que se forjam em identidades distintivas, o passo é curto. O movimento, qualquer que seja, conflui para organizações de caráter múltiplo enquanto formação, mas unívoco em representação. Por eles, se acelera a intersecção da fantasia com a realidade local por reações indetermináveis que se forjam nas polaridades das resistências e acomodações. Formam-se partidos: esportivos, trabalhistas/sindicais, filantrópicos, religiosos, culturais, de gêneros, intelectuais, artísticos etc. Esse associativismo não é mais do que a materialização de crises identitárias. Como afirma Homi Bhabha (1998), a identidade cultural, logo a diferença cultural, emerge justamente nessas crises: “a identidade é reivindicada a partir de uma posição de marginalidade ou em uma tentativa de ganhar o centro” (Bhabha, 1998, p. 247). Por partidos o confronto com a realidade local se materializa potencializado por uma simbologia que tem a função de identificar a alteridade, mesmo quando ambivalentes. Essa simbologia consubstancia uma representação; representação que é qualquer metáfora, pois não recupera o local de origem, nem tampouco assume o local de vivência. Essa “nova” simbologia, ou cadeia de sentidos, realoca o legado passado dando a sensação real de resistência ou adaptação a uma identi- PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 75 dade imaginada no confronto com uma realidade sentida. Esse é o cadafalso que o tempo nos põe, pois o problema encontra-se na ambivalência que está na medida de sua territorialização, ou seja, a pressão pelo discurso abstrato de sua própria prática. Institucionalizada, seja qual for a instituição, o patrimônio transplantado torna-se ele próprio um projeto ideológico na qual trata de realizar a metáfora e metonímia do tempo vivido e da consciência possível. Logo, toda e qualquer afirmação fora desse parâmetro é fantasia do presente. Aqui é onde se encontra o narcísico com o egocentrismo e todas as fragilidades potencializam-se a ponto de dar suporte a uma ironia que funda a sua própria linguagem. Ocorre-me aqui o happening de Willy Correa de Oliveira no seu texto O Multifário Capitam Manoel Dias de Oliveira. O passado como alteridade e a história como dominação Passo nesse ponto a conjugar os pontos até aqui expostos: (1) o patrimônio como metáfora e metonímia de imagens posicionadas pelo tempo, ou melhor, pela ilusão de dominar o tempo; (2) as observações das práticas discretas, o que considera o saber possível, como elemento de redenção do patrimônio no seu diálogo com o tempo presente. Destes pontos passo ao problema do passado como alteridade. Um desejo e fantasia de qualquer pesquisador de fontes primárias é organizar, atribuir e dar certezas. É a natureza desse trabalho e absolutamente justificável dentro de um modelo epistemológico da racionalidade ocidental. É a projeção de uma identidade que deve impor menos pelo seu discurso, mas principalmente pela sua imagem; a própria recepção da Bíblia é a principal prova desse sentido de pensar e dominar. Por essa imagem “distribui-se” um poder e espera-se que seja assimilado. É um modelo de “evangelização” de um Dominum Mundo que pode ser estudado em muitos momentos da história ocidental: da criação da metafísica na Grécia Antiga à ilusão do fenômeno da globalização. Para mim, sempre frisando que ingressar no mundo do possível só é possível fazê-lo através do mundo concreto, percebo que a questão está não no patrimônio em si, mas nas possibilidades de recepção. E o possível está sempre na territorialidade; física e emocional. Em mundos paralelos que ao mesmo tempo em que imagina estar dentro dos protocolos exigidos pela oficialidade dos sentidos impostos, mas que altera seu sentido pela sua natureza. 76 mas como tanta gente acredita nisso. Logo, não mais importa os compositores originais, mas sim a coleção; a sensibilidade estilística de Corbiel e sua autoridade na difusão de o que teria sido um novo modelo litúrgico-musical. Aqui a cópia atuou na construção de um mito. Num outro patamar de problema sobre patrimônio, formação de discurso e zonas de influência e poder, podemos ver a mesma construção de sentidos em séculos mais tarde, quando o mundo da música religiosa modificou-se a partir do Motu Proprio, de Pio X. Uma das principais intenções da encíclica seria reduzir o impacto dos manuscritos, visando impor um modelo musical, uma sonoridade que ao mesmo tempo em que reduzia a inserção de sonoridades consideradas impuras, como a ópera, seria em tese uma catapulta para enraizar na comunidade cristã os modelos cecilianos definidos de Palestrina a Pitoni. O primeiro ponto a ser discutido é que tanto no Motu Proprio como no caso de Perotin, assumindo a veracidade da tese de Friebel, o que está em jogo não é a música, mas o discurso. Porém, vejamos como é frágil a questão da transmissão. O projeto cecilianista impunha somente a utilização de partituras impressas e distribuídas por coleções completas de obras para órgão e corais. Acompanhava isso a fundação de revistas de discussão da música religiosa, como é o caso da revista brasileira Música Sacra, editada por Pedro Szing. No entanto, o que se nota é o domínio da tradição imediatamente agindo dentro de sua prática discreta. Em pouco tempo, obras de autores fundamentais do novo cecilianismo, e que deveriam circular apenas impressas, como as de Oreste Ravanello, espalhavam-se em cópias manuscritas que já traziam adaptações nos gostos locais. Assim, é fácil observar a territorialidade em mudanças de ligaduras, tessituras e até mesmo tropos inseridos nas possibilidades das tópicas estéticas do agende de domínio. A territorialidade como mediação possível Um primeiro exemplo que trago à discussão está na superfície do problema da transmissão do discurso. Poderia usar exemplos contemporâneos como a colagem musical eletrônica, mas faço pelo meu cacoete de professor de História da Música. Trata-se de Perotin, o músico discantor da Catedral de Notre Dame, no século XIII. Os cânones da história da música ocidental tratam Perotin como um dos marcos do conceito moderno de compositor. No ato de vulgarização da tradição musical do ocidente, Perotin seria uma autoridade indiscutível que fundou inclusive um gênero musical, o motete, e desenvolve toda uma técnica de contraponto, ampliando consideravelmente o domínio sobre a sobreposição de vozes. Porém, pesquisas desenvolvidas nos últimos cinco anos, principalmente por Michel Friebel, demonstram que Perotin seria um mito projetado. De posse de uma fundamentação documental considerável, Friebel defende a tese de que Perotin seria na verdade Pierre de Corbeil, arcebispo de Sems. Para o musicólogo, a função de Corbeil não teria sido o de compositor, mas sim o de um difusor de um estilo musical, reunido e distribuído uma coleção de manuscritos musicais, o que seria absolutamente corriqueiro na tradição do saber medieval. Como vemos, formou-se uma identidade que bem exemplifica um dos problemas fundamentais de Marc Bloch ao dizer que o problema do historiador não é saber se Jesus Cristo existiu ou não, O mais irônico é que no mesmo arquivo (Livraria do Convento Franciscano do Valongo – Santos/SP) onde repousa a cópia de uma missa de Oreste Ravanello encontra-se obras de autores excluídos pelo Motu Proprio, ou seja, compositores locais que faziam de uma Ave Maria uma valsa de coreto, como Oscar Ferreira. E qual a justificativa desse imbricamento? A referência do núcleo de pertencimento que outorgava autoridade ao músico local. E mais, o número de copistas que se alternavam no tempo para preservar o registro não só consubstanciava a autoridade local, mas PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Imagem 1: Dois ícones da difusão do movimento cecilianista, no Brasil:as partituras editadas de Oreste Rovanello e a Revista Música Sacra 77 territorializava a música pelo valor da redenção do local, da referência da tradição que negava inclusive qualquer ação do Cecilianismo. Desconsideramos sempre a sedução da mitificação dos símbolos locais impondo a eles as certezas de nossas teorias. Assim, cada cópia tratava de guardar, mas ao mesmo tempo “atualizar”, como se fosse um santo no altar que vez e outra necessitava ser encarnado novamente para luzir sua importância. Imagem 3: Manuscrito de Mogi das Cruzes/SP (Ladainha de Nossa Senhora), primeira metade do séc. XVIII Num primeiro momento, as teses mais ingênuas poderiam supor que a mensuração irregular seria uma forma de “adaptar” o antigo ao moderno, ou seja, supondo que os músicos teriam posto barras de compasso porque já não liam mais a notação proporcional. Ora, essa prática não eliminava o problema da proporcionalidade. As hemíolas continuariam e seria necessário saber distinguir as notas brancas das negras e ainda subdividir os valores longos. O problema se decifra observando estudos sobre notação musical realizados no próprio seio europeu. A equipe de Jean-Yves Bosseur publicou em 2005 alguns estudos sobre a evolução da escrita musical e expôs um problema que pode justamente decifrar o enigma da presença de uma notação que poderia ser considerada arcaica, já avançando o século XVIII. Para os autores de Histoire de la notation, a presença da escrita proporcional revela muitas tradições que não se dissolveriam simplesmente pelos avanços impostos pela mudança opera na notação que privilegiava a opera ou a música instrumental. A primeira afirmação importante a fazer é que a barra de mensura e a transformação do padrão teórico do rítmico já haviam sido disseminadas desde o início do século XVII. Porém, principalmente a música polifônica religiosa continuava preservando a notação proporcional por uma questão de princípio prosódico. A grande questão era a instabilidade do novo sistema em dar naturalidade a uma questão simples: a relação dinâmica entre a divisão ternária e binária, principalmente no pulso conhecido como seisquialtera. Ora, essa colocação altera muitas coisas afirmadas sobre os Papéis de Mogi no Brasil, principalmente sobre as “tradições arcaizantes” fruto de um “quase conhecimento musical”. Considerando a afirmação de Bosseur, estaríamos não diante de um passadismo de um músico que necessitou colocar barras de mensuração para facilitar a leitura, mas sim diante de uma identidade da própria música religiosa polifônica. As barras, nessa interpretação, não eram de mensura, mas sim de apoio prosódico. Aliás, afirma Bosseur que este resquício renascentista foi responsável pelo aparecimento do conceito de hemíola, no decorrer do século XVIII. O problema leva a um questionamento que suspende argumentos que até hoje movimenta muitos estudos. Ora, considerando a teoria como alteridade, podemos supor que o que muitos consideravam “erro” de cópias ou fragilidade conceitual era mais bem a certeza da tradição. O problema remete, inclusive, ao que consideramos natural ao homem dessa época no trato da harmonia e contraponto. É frequente no saber acadêmico brasileiro a tese da tonalização da música antiga praticada no Brasil colonial. É predominante nas transcrições modernas dessa música a opção por uma semitonização que tornam a linguagem um grande compêndio tonal. Cabe então a questão. Se a aplicação da notação rítmica ainda preserva conhecimentos antigos identificados com a tradição do local, como podemos supor que não haveria o mesmo problema em relação ao contraponto e seus conceitos de cláusulas? Assim, é preciso cuidado, até mesmo considerando que muitos autores contemporâneos contestam essa consciência, entre eles Robert Gjerdingen; Joel Lester; Lori Burns; Giorgio Sanguinetti, entre outros. No caso dos Papéis de Mogi, muitas melodias frígias receberam soluções de semitonia subentendida sempre nos padrões do modo maior. O que quero expor é que a falta de um sustenido numa cláusula que forma intervalo de sexta não significa que ele tem de ser sempre maior. Mesmo quando de posse de um documento supostamente original que “sustenizaria” o intervalo não significa que sua ausência seria um erro da cópia local. É preciso buscar padrões analisando as cadências, suas tradições modais, princípios de paralelismos com as cláusulas do cantochão, e os modelos de ensino harmônico através das muitas regras de realização, inclusive considerando a disseminação das práticas dos partimenti. Declaro assim que, respeitando os trabalhos de muitos colegas, que muitas transcrições dessa música são frutos de uma fantasia que lê o passado com as regras e certezas do presente. Porém, como não temos muitas condições de conhecer a fundo a recepção teórica dos músicos de Mogi, PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Imagem 2: Partituras manuscritas de autores de Santos/SP, escritas em épocas de discussão do Motu Proprio de Pio X E o problema da atualização tangencia aqui a música viva, o valor resgatado pela tradição, do reconhecimento que traz para o tempo presente uma identidade. Quantas e quantas obras do passado colonial não sofreram esse impacto. Essa é uma das possibilidades de interpretarmos a notação musical da Ladainha de Nossa Senhora, do códice Papéis de Mogi. A obra aqui citada apresenta inúmeros problemas absolutamente singelos para pensarmos o problema da transmissão da cultura e também do conhecimento e nossa postura como analistas do passado. Primeira questão é mostrar a presença de pelo menos dois copistas nos papéis que chegaram até os dias de hoje. O segundo o padrão de notação apresentado, preservando a escrita renascentista, onde a não utilização regular da barra de mensura está vinculada ao pensamento da notação proporcional. 78 79 aceitamos e assumimos a dúvida como redentora da opção do presente... Mas o problema dos Papéis de Mogi ainda é materialmente tangível. Podemos, inclusive, cruzar quantidades enormes de fontes e chegar à conclusão que os papéis de Mogi são verdadeiras cópias. Isso não haveria de nos assustar e nem diminui o problema histórico. Somente resolve nossa aflição de atribuir autoridade. Aflição que não fazia parte da consciência dos agentes históricos. André da Silva Gomes, por exemplo, reproduz no seu tratado de contraponto um texto, letra por letra, que está no tratado de Manuel Pedroso. Ora, isso diminui o valor do tratado de Silva Gomes? O mesmo ocorre com o Theatro Eclesiástico de Frei Domingos do Rosário. A cópia franciscana mostra uma cópia integral, porém modifica alguns exemplos musicais [19, 20]. Absolutamente comum quando a necessidade impõe a ação, e a ação não tinha a pressão do século XIX e a comercialização das ideias. plantado. Estudando a música litúrgica das nas missões de Chiquitos percebeu que a capela local utilizava os concertos de Corelli nas cerimônias religiosas, porém organizando-os numa sequência absolutamente diferente. Em outras palavras, promoveriam uma quebra da sequencia dos movimentos. O primeiro movimento de um concerto com o segundo de outro... Ora, os mais informados diriam que há uma quebra da unidade afetiva. Ora, é de conhecimento consolidado que a questão da relação entre os afetos de um concerto são os fundamentos da comunicabilidade central da retórica barroca. Assim, a “mistura” dos concertos já induz uma reposição desse problema, ou até mesmo a sua não consideração. Assim, qual seria a relação de significação desses concertos “rearranjados”? Desse ponto nasce outra questão. Qual a própria consciência de uso e o impacto comunicacional da música transplantada? Seria um capital simbólico, ou apenas um adorno que todos deveriam ter para não serem acusados pela autoridade de incivilidade diante da tradição do espetáculo litúrgico? Seu uso era inconsciente de seu valor intrínseco? O mesmo problema pode-se analisar sobre o fenômeno da ópera metastasiana em ambientes coloniais. O que poderia ser a expressão crassa do Antigo Regime tornava-se, em solo brasileiro, um baluarte das ações iluministas ao simplesmente propor uma mudança do espaço crítico, onde os valores de sociabilidade seriam supostamente elevados pelo simples contato com os modelos cultos europeus. Assim, poderíamos supor que algum arauto das Luzes imaginava que imergindo uma sociedade como a paulistana de meados do século na recepção de uma ópera de Metastasio detonaria um processo de mitigação da brutalidade com o qual eram julgados. Imagens 4a e 4b Imagem 6: RELAÇÃO das festas públicas que na cidade de São Paulo fez o ilustríssimo e excelentíssimo senhor dom Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão [...]. IEB, Coleção Yan de Almeida Prado, códice 39. Quero terminar com um problema muito mais profundo da questão do patrimônio material, da transplantação da cultura e o problema do local da cultura. Para tanto usarei um problema exposto no último congresso da International Musicology Society, por Leonardo Waismann. O musicólogo argentino mostrou em recente estudo um problema significativo do trato do patrimônio trans- São essas considerações que ao mesmo tempo em que realoca a discussão sobre o valor patrimonial intensifica seu valor. Ou seja, a disponibilização do saber deve movimentar nossa consciência, buscando não só o uso lúdico do material ou o discurso de valor intrínseco que traz o simples resgate e disponibilidade do material patrimonializado. Essa é uma postura que mantém o discurso colonialista, o colonialismo do saber! A magnitude do objeto histórico está nos usos e costumes latentes que o passado, por alguma questão que esta fora da vontade de qualquer homem, teve como domínio e que hoje pode revelar soluções, discursos, dramas e lutas que nem ao menos tenham tido a consciência em seu tempo. O fundamento dessa situação está na relação direta dos sistemas explicativos com a indecibilidade inerente do ser e a transitoriedade dos padrões culturais que o sustenta. Na tradição das lógicas das disciplinas, as narrativas sobre a condição humana transformam-se em corpos teóricos que definem PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Imagem 5: Diferenças entre cópias, inclusive o exemplo de alguns tons transportados no seu tom original 80 81 fronteiras de análise, mas também, revelavam as ideologias das escolhas teórico-metodológicas e suas formas de representação dessa condição. Por fim, resta inferir que, mesmo com o esforço de várias gerações, a musicologia nacional está defasada em relação às teorias e métodos em uso nos principais núcleos de produção. Ainda persistem discursos reconstrucionistas do passado em virtude de uma abordagem positivista dos “fatos”; persiste, em muitos casos, o mito da história como fundadora de sentido do presente e a crença na descoberta da verdade. O texto musical ainda é isolado de seu contexto à medida que não há uma preocupação de como equacionar as representações simbólicas metaforizadas em música dos corpos sociais. Ainda prevalece a divisão dos gêneros (popular, folclórico, erudito, transcultural, etc.) e sua relação com disciplinas específicas. Esse aspecto liquida a formação de um conhecimento que possibilite entender padrões de sincretismos, mesmo quando presentes na música considerada culta. Ademais, não há uma consideração dos impactos musicais através da verbalização dos espectadores. A experiência da música nos corpos sociais ou mesmo nos indivíduos é tema de estudos somente em áreas afins, como a sociologia ou a história social. No entanto, considerando um diálogo sempre instigante com a linguagem musical, há uma inércia na consideração sempre de como o contexto “está” inserido na música. Referências bibliográficas AGANBEM, Giorgio. A comunidade que vem. Trad. António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993. BOSSEUR, Jean-Yves et all. Histoire de la Notation musicale: De l’époque baroque à nos jours. Paris: Minerve, 2005. CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. 4ª Ed. 4 reimp. São Paulo: EDUSP, 2008. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 1985. MARTINEZ, Jorge. La experiencia del Magister en Artes con mención en Musicología de la Facultad de Artes de la Universidad de Chile: algunas reflexiones en torno a la definición de un campo unitario musicológico. Revista Musical Chilena, v. 53, n. 192, jul. 1999. Disponível em http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0716-27901999019200009&lng=es &nrm=iso&tlng=es. Acessado em 12 de julho de 2012. 82 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Análise da edição de Luiz Heitor Correia de Azevedo da Missa de Defuntos (CPM 184), de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) Carlos Alberto Figueiredo Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) O Catálogo de Publicações de Música Sacra e Religiosa Brasileira – Obras dos séculos XVIII e XIX (CMSRB) trouxe a público um panorama da atividade de publicações da música sacra e religiosa brasileira, tanto no Brasil como no exterior. São cerca de 650 itens até o momento, englobando o período que vai de 1820 até o presente. Tendo sido publicado apenas on-line (www.musicasacrabrasileira.com.br), por enquanto, é uma pesquisa que permanece aberta, na medida em que novos itens vão sendo descobertos ou novas publicações vão sendo lançadas. O CMSRB já teve mais de 20000 consultas, a partir de cerca de 45 países, desde que foi publicado em março de 2010. Em maio de 2011 foi disponibiliza a versão em inglês. Evidentemente, se há publicações, há edições dos textos publicados, ou seja, houve a tentativa empírica ou resultante de reflexão metodológica de estabelecimento desses textos a partir da fonte ou fontes que geraram tais edições, com suas peculiaridades e problemas. Lidar com todas essas publicações significou entrar em contato com as características dessas edições, extremamente variadas como filosofia editorial e aspectos técnicos e metodológicos. A Análise Editorial é uma proposta metodológica cujo objetivo é o aprofundamento das discussões relativas às edições de música. Entre as etapas previstas para avalização estão: 1)se há identificação da(s) fonte(s) utilizada(s) para a edição e se houve descrição dessa(s) fonte(s); 2)como o editor tomou suas decisões editoriais, tanto com relação à intenção de escrita do compositor como de sua intenção sonora, e se e como tais decisões editoriais foram explicitadas; 3)se há modernização do texto original da(s) fonte(s); 4)se há interferências do editor quanto a sinais para execução; 5)se há partes acessórias; se ficam explicitadas a justificativa e a destinação da edição. A Análise Editorial pode ser feita a partir de uma edição isolada ou como comparação de duas ou mais edições. Em ambos os casos, é imprescindível que haja a identificação da(s) fonte(s) utilizada(s), ainda que não explicitada(s) pelo editor. No segundo caso, é também necessário a certeza de que as edições foram baseadas na(s) mesma(s) fonte(s). Este texto tratará da análise editorial da edição da Missa de Defuntos, de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), obra composta em 1809 para a Real Capela, reinstalada no Rio de Janeiro por D. João, Príncipe-Regente de Portugal, recém chegado ao Brasil. Essa edição foi publicada na série Arquivo de Música Brasileira em quatro fascículos trimestrais da Revista Brasileira de Música, em 1934 e 1935, tendo como editor Luiz Heitor Correia de Azevedo (1905-1992). A série de publicações de partituras intitulada Arquivo de Música Brasileira (AMB) surgiu em 1934, juntamente com a criação da Revista Brasileira de Música (RBM), primeiro periódico brasileiro com características musicológicas, publicado trimestralmente pelo então Instituto Nacional PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 85 de Música, hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A série representa um marco na preservação e divulgação do patrimônio musical brasileiro e, em particular, do acervo conservado na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ. Luiz Heitor Correa de Azevedo, primeiro editor da RBM, define os objetivos e as justificativas para o AMB, apresentado sob a forma de suplemento musical, ao declarar que do texto musical será praticada na transcrição dos mesmos. As modificações a serem feitas ficarão adstritas, exclusivamente, ao campo da notação, para modernisal-a, quando for necessário; no caso de um descuido evidente do compositor, ou erro de copia, também me permitirei retifica-los, indicando, porém, ao leitor o local das modificações feitas e as razões que me levaram a adotá-las. ([Azevedo], 1934a, p. 65) veio tornar-se realidade uma aspiração ha longo tempo acariciada pelos que, em nosso meio, se dedicam ao estudo das antiguidades musicais pátrias: a impressão dos mais valiosos documentos musicais existentes na Biblioteca do Instituto Nacional de Musica. ([Azevedo], 1934a, p. 61) Entretanto, é inevitável que Luiz Heitor, em seu processo de recepção gráfica, esteja condicionado por vários fatores estéticos, que acabam guiando seu julgamento sobre as situações existentes nas fontes que geram os textos musicais publicados. Refere-se, por exemplo, com relação ao Tantum ergo, de José Maurício, publicado no segundo número da série, àquele “inexplicável movimento de vozes [...] que provavelmente levaria á reprovação qualquer candidato a exame de contraponto...” ([Azevedo], 1934b:147). Mais adiante, ao justificar sua escolha pela manutenção das tonalidades originais dos instrumentos transpositores na edição da mesma obra, diz ser O AMB, em sua primeira fase, teve curtíssima trajetória, tendo publicado apenas cinco obras, em 1934 e 1935. A série foi iniciada com a publicação do Cântico Religioso, obra curta de Francisco Manoel da Silva (1795-1865). Azevedo justifica: A escolha de um trecho musical de Francisco Manoel para iniciar a serie de documentos que virão á luz no Arquivo de Musica Brasileira, explica-se por si mesma. Publicação oficial do Instituto Nacional de Musica é natural que as suas paginas se abram com uma obra do fundador da nossa primeira escola oficial de musica, o “Conservatorio Imperial”, transformado pela Republica no Instituto de hoje. ([Azevedo], 1934a, p. 62) O AMB e seu editor tinham, porém, curiosos critérios e justificativas para a escolha das obras a serem editadas: O O Salutaris de Francisco Manoel, que hoje publicamos, sob o ponto de vista dos estylo religioso é o mais lamentável possível: uma aria para exhibição vocal, de um melodismo quente, sensual – não destituído de interesse [...]. Mas então, dirá naturalmente o leitor, por que razão publicar semelhante semsaboria musical, prestando um desserviço á memoria de seu autor? ([Azevedo], 1935, p. 221-222) Responde o próprio editor: E esse muito pouco [de obras existentes de Francisco Manoel da Silva] precisa vir á luz, para que os estudiosos possam fazer juízo próprio acerca da personalidade do artista que, menos brilhante como creador, encheu, todavia, metade do século XIX, em sua terra, com sua energia de animador, de chefe consciencioso e dedicado. Convém, igualmente, que se tornem conhecidas as producções desse triste período de degradação da arte religiosa para que, com a divulgação de taes documentos, se vá esclarecendo e formando a nossa historia musical. ([Azevedo], 1935, p. 222) Os critérios editoriais do AMB e seu editor parecem ser muito claros, como podemos ver na declaração de que “[...] sendo este Arquivo, antes de tudo, uma contribuição para os estudos e investigações sobre a nossa historia musical, é natural que se conserve, tanto quanto possível, fiel aos originaes reproduzidos” ([Azevedo], 1934b, p. 149). Em outra oportunidade se expressa o mesmo Luiz Heitor, apontando para o uso de Aparato Crítico disperso: 86 inegável que o efeito visual da partitura, guardando as tonalidades originais dos instrumentos em questão, torna-se mais pitoresco e sugere ao espírito aquela superior pureza dos sons das velhas trompas lisas e dos velhos clarins sem pistons... ([Azevedo], 1934b, p. 149) complementando, em seguida, que o exemplo quotidiano das melhores edições modernas de obras clássicas [...] veio fortificar as minhas razões de preferência pelo sistema que será adotado em todas as partituras de orquestra a serem publicadas no Arquivo de Musica Brasileira. ([Azevedo], 1934b, p. 149ff.) Após a publicação dessas duas obras de pequena envergadura nos dois primeiros números do AMB, estabelece Luiz Heitor como terceiro empreendimento a Missa dos Defuntos, de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), obra composta em 1809. Azevedo apresenta justificativas estéticas para a publicação da obra: Se essa produção [de obras de José Maurício, a partir de 1809], porventura demasiadamente intensa, tende a mechanisar um pouco e emprestar um certo ar formalista e insignificante às suas últimas obras (do que é principalmente responsável a futilidade da corte portugueza, cujos appetites musicaes não iam além das acrobacias vocaes insensatas das partituras de Marcos Portugal, e da sua paupérrima simplicidade estructural) a verdade, porém, é que entre as primeiras obras desse período encontramos as mais bellas e amadurecidas creações do nosso compositor. E disso é prova, na singeleza penetrada de verdadeiro espirito religioso – que constitue o seu mérito principal – e na musicalidade tão fina de suas harmonias, a partitura de 1809. ([Azevedo], 1934c, p. 231ff) Dada a finalidade da publicação do ARQUIVO DE MUSICA BRASILEIRA, que é revelar os originais inéditos dos nossos velhos compositores, em toda a pureza, nenhuma alteração essencial O pouco espaço disponível na RBM obrigou que os seus 523 compassos fossem apresentados em quatro fascículos seguidos, nos meses de setembro e dezembro de 1934 (CMSRB-142/008 e 142/003) e março e junho de 1935 (CMSRB-142/004 e 142/005), situação talvez única na história das edições musicais em nosso país. A fonte utilizada para a edição foi o manuscrito autógrafo da obra, conservado na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ, sob o número atual de registro 000349107, chamada de fonte BAN a partir daqui. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 87 A fonte BAN, com o título Missa dos Defuntos a 4 Vozes de Capella Composta por Joze Mauricio N. G. em 1809 pa. a Real capella, é uma partitura para quatro vozes, Soprano, Contralto, Tenor, Baixo, e Órgão, apresentada em oito folios, escritos no rectus e no verso, gerando dezesseis páginas. Trata-se de um documento de trabalho. A partitura contém as seguintes seções da Missa de Requiem: Introito, Kyrie, Gradual, Offertorio, Sanctus, Hosanna, Benedictus, Agnus Dei e Communio. Luiz Heitor estranha, com razão, a ausência da sequência Dies Irae, seção essencial de qualquer Requiem, tecendo especulações sobre o assunto ([Azevedo], 1935, p. 219-220). Outro ponto que perturba o editor é a estranha relação entre as tonalidades da obra, inicialmente em Ré menor e Fá maior, mas estabilizando em Mi bemol maior e Dó menor, a partir do Offertorio, rompendo, segundo ele, o princípio de unidade tonal ([Azevedo], 1935, p. 220). O incômodo gerado por essas duas peculiaridades é tão grande para Luiz Heitor, que ele confessa que essas singularidades fizeram com que hesitasse um instante, não sabendo bem se devia dar publicidade a uma obra tão mutilada e tão extranhamente alheia ao preconceito da unidade tonal, que era imperioso na época em que o autor a escreveu. ([Azevedo], 1935, p. 219). O Dies Irae é sugerido na partitura logo após o Gradual pela inscrição Sequencia Dies irae. Luiz Heitor especula que o compositor desejou que nesse ponto fosse incluído outro possível Dies Irae seu. Acredito que a solução do problema está na utilização do cantochão correspondente, como é tão comum em obras sacras brasileiras do período. O trabalho do editor pressupõe a tomada de decisões para editar uma obra e uma das primeiras decisões, que vai nortear as demais, está na escolha do tipo de edição que fará. Considerando-se que só existe a fonte BAN para a edição da Missa de Defuntos, possibilidades são abertas e outras descartadas. A primeira possibilidade é a edição Fac-similar,1 ou seja, aquela que apenas reproduz fotograficamente a fonte utilizada. O fato da fonte BAN ser uma partitura e estar em muito bom estado de conservação física contribui muito para esse tipo de edição. A segunda possibilidade é a edição Diplomática, ou seja, aquela que transcreve a fonte utilizada em seus mínimos detalhes notacionais. As várias instâncias de notação arcaica na fonte BAN, as rasuras e o fato da fonte BAN ser uma partitura são um fator positivo para esse tipo tão sofisticado. Certamente, essas duas opções jamais teriam ocorrido para Luiz Heitor, por serem raras naquele momento. As rasuras presentes na fonte BAN não justificariam a edição Genética dessa fonte, já que poucas delas demonstram efetivamente o processo composicional de José Maurício. Nada que uma edição Diplomática não desse conta. A edição Aberta, ou seja, aquela que apresenta simultaneamente várias fontes de tradição, não caberia como hipótese, pelo fato de BAN ser apenas uma fonte e autógrafa. A decisão final mais provável ficaria entre a edição Prática e a Crítica, na verdade Urtext, em se tratando de uma única fonte. A edição Prática não tem qualquer preocupação crítica, servindo apenas como disponibilização de uma obra para execução, normalmente com várias interferências interpretativas por parte do editor: sinais de dinâmica, articulação, etc. As interferências do editor no texto são feitas tacitamente. 1 88 Sobre os tipos de edição, consultar Figueiredo, 2004. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER A edição Crítica tem por objetivo investigar a intenção de escrita do compositor. Nesse tipo de edição, as interferências editoriais devem ser registradas no Aparato Crítico ou, pelo menos, como Integração Editorial. Uma edição pode ter sido feita dentro de uma premissa crítica, mas se não tiver uma dessas duas seções complementares perde o status de crítica. A edição Crítica feita a partir de fonte autógrafa única faz com que o editor tenha que lidar com três tipos de situação textual: os erros cometidos pelo compositor, as correções de erros pelo compositor e as variantes. Erros são lições ou estruturas evidentemente incorretas (Caraci Vela, 1995, p. 11), que podem ser detectadas na medida em que são impossíveis dentro das convenções estilísticas da obra (Grier, 1996, p. 5). Variantes são desvios da lição ou estrutura original, quando conhecidas, ou discrepâncias entre fontes quanto à mesma lição ou estrutura, mas que permanecem dentro das convenções estilísticas da obra. O conhecimento do estilo em que se insere uma obra musical é essencial para a correta avaliação visando o estabelecimento do seu texto. A determinação de uma lição como erro ou a distinção entre erro e variante dependem desse conhecimento. Sendo editar um ato interpretativo, está sempre sujeito aos condicionamentos técnicos e estéticos do editor. Luiz Heitor, por exemplo, deixa bem clara a sua insatisfação com situações que ele julga serem falhas técnicas de José Maurício: Como, em geral, todas as partituras de José Maurício, esta não se acha escoimada de senões e de alguns cochilos bem dificeis de perdoar ao compositor apressado e pouco zeloso da pureza de sua obra. Estive mesmo a pique de desistir da publicação desta Missa, taes as negligencias encontradas logo no Introito, escripto em harmonia clara e singela, onde certos movimentos directos e umas tremendas 5as. e 8as. seguidas ressaltam som excessiva crueza. ([Azevedo], 1934c, p. 230) Não são poucos os autores e editores brasileiros que julgam 5as. e 8as. seguidas, tão comum no repertório colonial, como erros. A consequência prática dessa postura tendenciosa leva às interferências editoriais, tais como as praticadas por Luiz Heitor no texto da Missa dos Defuntos: De nenhum modo, porém, ser-me-ia permittido dar curso à versão original, com aquellas 5as. e 8as. seguidas tão grosseiras [...]. Modifiquei, pois, o texto, de maneira a evital-as, tendo porém o cuidado de reproduzir, no local, a forma original e incorrecta dessas passagens. ([Azevedo], 1934c, p. 230ff.) A sua atitude é crítica de acordo com seus condicionamentos e é crítica também quando decide expor suas interferências, nesse caso, utilizando o recurso de notas de pé de página onde apresenta a situação na fonte (Aparato Crítico disperso). Mas sua atitude crítica não é mantida da mesma forma em outras circunstâncias, como veremos adiante, quando serão observadas suas demais interferências editoriais no texto resultante e a maneira como as descreve, ou não. Descreverei, em seguida, situações pontuais na fonte BAN, apontando as decisões editoriais tomadas por Luiz Heitor, segundo os seguintes itens: lay-out, alturas e durações, ornamentos, baixo-contínuo, texto litúrgico, rasuras, variantes, dinâmicas e articulações. As partes vocais apresentam claves de Dó na 1ª., 3ª. e 4ª. linhas para Soprano, Contralto e Tenor, respectivamente, além da clave de Fá na 4ª. linha para o Basso. A parte de Organo é um baixo cifrado, com poucos momentos de escrita obrigada dobrando vozes. Utiliza, além da clave de Fá na 4ª. linha, a clave de Dó na 4ª. linha, quando em região mais aguda, e a de Sol na 2ª. linha, quando dobrando PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 89 as partes de Soprano e Contralto. Há uma predominância das fórmulas de compasso e 3/8. Apenas o verso do Communio apresenta um 2/4. Chamo a atenção para a modificação da fórmula de compasso no Kyrie, de para C, na edição aqui analisada. A maior parte dos andamentos na fonte BAN está grafada abreviadamente. A edição apresenta todos os andamentos por extenso, sem qualquer modificação em relação à fonte utilizada. Luiz Heitor moderniza as claves vocais e nomeia as partes vocais como Sopranos, Contraltos, Tenores e Baixos. Alturas e durações A fonte BAN apresenta numerosos exemplos de notação arcaica das durações, tais como semibreves e breves sobre barras de compasso e pontos de aumento no compasso seguinte ao da nota afetada. As notas têm o formato moderno, com as cabeças redondas, mas as hastes são sempre à direita, ascendentes ou descendentes. Figura 1a e 1b – exemplos de notação arcaica na fonte BAN. No entanto, a utilização de notação arcaica das durações não exclui a da notação moderna correspondente, até simultaneamente, como podemos ver na figura abaixo, ao compararmos o segundo e o quarto pentagramas: Há ocorrências de erros de notas claros em BAN, tais como omissão de acidentes (Oferttorio, Tenor, c.40 e Organo, c.63) que são mantidos na edição. Há também a introdução de uma nota errada na edição (Gradual, Tenor, c.3, n.2). Qualquer editor sabe que, mesmo com profundas revisões, os erros são inevitáveis. Um erro de nota em 523 compassos é uma boa marca. Chamo a atenção para algumas modificações rítmicas de maior impacto feitas pelo editor. A primeira, feita tacitamente, ocorre no compasso 8, do Kyrie, quando a parte de Órgão é igualada às partes vocais, diferentemente de BAN. Outra modificação é uma provável distração do editor. Ocorre nos compassos 37 e 38 do verso do Offertorio (Hostias), com o esquecimento do desdobramento do talho de colcheia que afeta duas semínimas pontuadas em colcheias, como acontece em outros pontos da edição. Erros de ritmo existentes na fonte BAN são mantidos na edição, tais como uma colcheia seguida de duas pausas de colcheia no compasso 32 do Hostias, na parte de Órgão, num contexto onde nos três compassos anteriores há sempre uma semínima seguida de pausa de colcheia. Há também valores rítmicos contraditórios entre partes homófonas da fonte utilizada (Introito, Basso, c.88; Communio, Soprano, c.12) que são mantidos na edição. Ligaduras de duração são alvo constante de modificação tácita nesta edição, seja por inclusão ou por exclusão. Encontramos, nesse aspecto duas situações opostas, sempre em relação à parte do Organo de BAN. Na primeira, no Gradual, há um desenho que aparece três vezes, sendo que na primeira (c.2-3) sem ligadura e nas duas seguintes (c.6-7 e 18-19) com a ligadura. Luiz Heitor opta por eliminar as ligaduras. Na segunda, no Oferttorio, há um desenho que aparece cinco vezes, sendo que apenas na primeira (c.1-2) há uma ligadura. Luiz Heitor opta por incluir a ligaduras nas demais manifestações do desenho (c.3-4, 7-8, 9-10, 11-12). Há uma ligadura desnecessária (Oferttorio, Tenor, c.68-69) que é mantida no texto da edição e outra que foi omitida no Communio (Contralto, c.32-33). Ornamentos Há utilização de appoggiaturas nas partes vocais da fonte BAN, em sua maioria no formato de colcheia cortada. A exceção ocorre apenas no Communio (c.4 e 8), onde encontramos esses ornamentos como colcheias afetando mínimas. Há uma única ocorrência de trilo, no penúltimo compasso do verso do Offertorio (Hostias). Todas as appoggiaturas são transcritas na edição em seu formato original. Apenas aquelas do Communio são transcritas resolvidas, uma decisão diferente, certamente por ter interpretado que essas appoggiaturas deveriam ser executadas diferentemente das demais, o que é plausível. Baixo-contínuo Figura 2 – utilização simultânea de notação arcaica (Contralto) e notação moderna (Basso). As instâncias de notação arcaica foram modernizadas na edição. 90 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER A fonte BAN é extremamente detalhada na colocação das cifras na parte de Organo. Essas cifras são colocadas abaixo dos pentagramas na maior parte das ocorrências, com raras exceções, como no Introito e no verso do Communio, por razões momentâneas de espaçamento. Chama a atenção o fato de que quase 90% da parte do Organo com suas cifras apresenta tinta mais tênue. É um dado importante para considerações sobre o processo composicional de José Maurício, mas não significa necessariamente um problema textual a ser levado em consideração no processo editorial. Luiz Heitor, ao se propor a realizar a intenção sonora do compositor, apresenta o baixo contínuo realizado, dentro de seus critérios: “a parte de órgão vem anotada em baixo cifrado que, de acordo PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 91 com a norma previamente estabelecida para a publicação destes documentos, realizei com a maior fidelidade e singeleza” ([Azevedo], 1934c:230). A realização é bastante convencional, como um exercício de harmonia. Em função dessa realização, frequentemente a parte do Órgão se apresenta oitavada. É de se lamentar a exclusão das cifras do texto final. A cifragem da parte de Organo é consistente. Chamo a atenção para a curiosa cifra utilizada no compasso 15 do Offertorio, que implica em considerar as appoggiaturas aí existentes como notas reais: Communio, onde há a mesma expressão. Rasuras Um dos aspectos mais interessantes da fonte BAN, sendo autógrafa, é a grande quantidade de rasuras, cerca de 30, reescrituras que podem revelar o compositor no seu processo criativo. A maioria delas significa correções de erros cometidos, mas algumas delas mostram reorientações estéticas do compositor. O conjunto de rasuras mais notável acontece logo nos primeiros compassos da fonte: Figura 5 – rasuras nos compassos iniciais da parte de Organo. Figura 3 – cifragem incluindo as appoggiaturas (Offertorio, c.15). No entanto, no compasso 7, exatamente igual, a cifragem não inclui o 7/5. Luiz Heitor desconsidera a cifra 7/5 em sua realização do baixo cifrado. Texto litúrgico O texto litúrgico é colocado, em sua maior parte, apenas sob a linha do Soprano e do Basso. Eventualmente as partes de Contralto e Tenor apresentam o texto colocado, principalmente quando há independência dessas vozes, num contexto que é predominantemente homófono. O latim é grafado corretamente, mas não apresenta hifenização nem pontuação. A replica (*****) é bastante utilizada, na sua função de repetir o segmento de texto litúrgico anterior. ***** A colocação do texto litúrgico na edição aqui analisada apresenta a hifenização das palavras, mas não é adotada a convenção de se colocar vírgulas quando da repetição de segmentos textuais. Se Luiz Heitor utiliza alguma fonte litúrgica para sua pontuação, não foi possível identificar. Há aspectos curiosos, como a colocação de sinal de exclamação em “luceat eis!” do Introito, mas não no Inicialmente, a ideia do compositor, conforme a primeira unidade redacional transcrita no segundo pentagrama acima, seria fazer o Organo participar do grande uníssono de todas as vozes, representadas no primeiro pentagrama. No terceiro pentagrama, percebemos que a parte de Organo, através de rasuras, na segunda unidade redacional, tornou-se independente das vozes, numa clara reorientação de itinerário estético. Destaco, ainda, a rasura com significado de correção existente no compasso 71 do Introito. Na primeira unidade redacional, o compositor encerra a frase anterior, lançando pausas de mínimas para as três vozes envolvidas, Soprano, Contralto e Tenor e a pausa de semibreve para o Organo, que já estava tacet desde o compasso 64. Entretanto, o tutti seguinte entraria com o acorde de Mi bemol com a sétima maior atacada sem preparação. Percebendo o problema, raspou, numa segunda unidade redacional, a pausa de mínima do Soprano, acrescentando a nota Ré com ligadura para a próxima, lançou uma pausa de mínima no início do compasso, no Organo, e acrescentou a nota Ré abaixo da pausa original de semibreve, colocando a cifra conveniente. É importante observarmos que tudo isso acontece numa mudança de folio, sempre um lugar de turbulência para compositores e copistas, da mesma forma que mudanças de pentagramas. As rasuras presentes em BAN não são uma preocupação para o editor visando uma Edição Crítica PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Figura 4 – replica nos compassos iniciais do Kyrie. 92 Exemplo 1 – transcrição das unidades redacionais presentes na Figura 5. 93 ou Prática. Entretanto, há uma rasura em especial que demanda a atenção. No compasso 2 do Verso do Communio, a segunda nota do Contralto apresenta uma rasura (*), modificando-a de Fá para Mi: * Figura 6 – rasura no c.2 do Contralto, na seção Hostias. Considerando-se que a rasura normalmente significa uma intenção autoral final, a nota Mi deveria ser a nota empregada na edição. Entretanto, Luiz Heitor opta tacitamente pelo Fá, certamente tomando como justificativa o movimento em terças paralelas entre Soprano e Contralto e, mais ainda, pela reprodução do mesmo desenho no compasso 10. Trata-se, pois, de uma rara rasura em que o compositor, ao modificar uma nota, introduz um aparente erro. Variantes O motivo em uníssono no Gradual, apresentado de uma forma no início da seção (c.1-4 e 5-8) e de outra na reexposição (c.17-20 e 21-24) seria uma possibilidade de variante alternativa: Figura 8– variante 2 no Gradual (c.21-24). Dinâmica A fonte BAN apresenta os sinais de dinâmica colocados de forma bastante consistente, com raros casos de omissão ou falta de alinhamento. A dinâmica, entretanto, é o parâmetro mais assistemático na edição de Luiz Heitor. Encontramos situações onde dinâmicas são introduzidas explicitadas por Integração Editorial, ou seja, entre parênteses: Kyrie (c.1); Agnus Dei (c.1); Communio (c.3, 7, 13 e 17). Por outro lado, há numerosos casos de dinâmicas introduzidas tacitamente. São tantos que não os exemplificarei. Há algumas instâncias de substituição de cresc por reguladores crescendo tacitamente: Kyrie (c.2); Gradual (c.29-30); Benedictus (c.5-6 e 14-15). O curioso é que há sinais de cresc que não foram substituídos. Há exclusão de dois p tacitamente: Kyrie (c.15) e Gradual (c.29-30), além de um único caso em que um pp é incluído como intenção de escrita do compositor: Offertorio (Órgão. c.24). Articulações A fonte BAN não apresenta ligaduras de articulação. Há poucos casos de ligaduras de expressão: Offertorio (S, T, B, c.24-27); Benedictus (O, c.1-2 e S, c.11-12), não mantidas na edição. Outros itens A repetição do Hosanna, do Quam olim Abrahae do Offertorio e do Cum sanctis tui do Communio é feita por extenso na edição aqui analisada, apesar de a fonte BAN usar apenas sinais remissivos. Nas poucas vezes em que a fonte BAN utiliza a típica expressão “a 3”, para explicitar textura diversa das demais, o editor substituiu a tal expressão por “Solo” (Introito, c.64 e 80), o que pode levar a interpretações erradas pelos intérpretes. Figura 7 – variante 1 no Gradual (c.1-4). Luiz Heitor mantém essa variante alternativa conforme BAN, com o que concordo, levando-se em consideração a extrema consistência da reprodução variada do motivo na reexposição. 94 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Considerações finais A análise da edição da Missa dos Defuntos feita por Luiz Heitor Correia de Azevedo pode levar à conclusão de que ela seja Crítica. Há instâncias de Aparato Crítico disperso, ao pé das páginas, além da utilização de Integração Editorial em relação a sinais de dinâmica. Entretanto, um exame mais minucioso, comparando a fonte BAN e a edição, revela inúmeras ocorrências de interferências editoriais feitas tacitamente, em notas, ritmos, dinâmicas, articulações e ornamentos. Assim sendo, é inevitável classificar-se essa edição como Prática, contribuindo, ainda, para essa classificação a realização do baixo-cifrado, as interferências em sinais de execução e a realização de appoggiaturas. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 95 Não é de se estranhar essa classificação, já que todas as edições feitas no Brasil até essa época, e mesmo em épocas posteriores, são práticas. Só muito recentemente, a partir da década de 1970, pode-se detectar esparsamente edições com reais características críticas, tendência que cresceu bastante na primeira década de 2000. A publicação da Missa dos Defuntos, de José Maurício Nunes Garcia, apresentada em quatro fascículos na série Arquivo de Música Brasileira da Revista Brasileira de Música, do então Instituto Nacional de Música, é um marco na divulgação do patrimônio musical brasileiro e, em particular, do patrimônio conservado na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ. A série destacou obras produzidas no século XIX, por compositores brasileiros, e, em especial, José Maurício. É de grande riqueza a quantidade de depoimentos de Luiz Heitor sobre suas atitudes editoriais, desde os critérios de escolha das obras e das fontes para suas edições até de seus condicionamentos técnicos e estéticos subjacentes ao seu processo editorial. Tais depoimentos nos permitem uma radiografia das características de suas edições publicadas no Arquivo de Música Brasileira, da fase inicial da Revista Brasileira de Música. Os depoimentos pontuais sobre a edição da Missa de Defuntos são especialmente reveladores. Eva Badura-Skoda (1995, p. 183) aponta para o fato de que “a história das edições parece sugerir que cada geração estabelece sua própria escala de valores e os relativos critérios editoriais”, enfatizando, assim, as perspectivas cultural e histórica envolvidas que funcionam como condicionamentos na preparação de uma edição. Referências bibliográficas [AZEVEDO], Luiz Heitor Correia de. “Archivo de musica brasileira”. Revista Brasileira de Música, I, p. 61-66, março de 1934a. [AZEVEDO], Luiz Heitor Correia de. “Archivo de musica brasileira”. Revista Brasileira de Música, I, p. 147-153, março de 1934b. [AZEVEDO], Luiz Heitor Correia de. “Archivo de musica brasileira”. Revista Brasileira de Música, I, p. 229-232, setembro de 1934c. [AZEVEDO], Luiz Heitor Correia de. “Archivo de musica brasileira”. Revista Brasileira de Música, II, p. 219-223, setembro de 1935. BADURA-SKODA, Eva. “Problemi testuali nei capolavori del XVIII e del XIX secolo”. In: CARACI VELA, Maria (org.). La critica del testo musicale: Metodi e problemi della filologia musicale. Lucca: Libreria Musicale Italiana, p. 181-198, 1995. CARACI VELA, Maria. “Introduzione”. In: CARACI VELA, Maria (org.). La critica del testo musicale: Metodi e problemi della filologia musicale. Lucca: Libreria Musicale Italiana, p. 3-35, 1995. FIGUEIREDO, Carlos Alberto. “Tipos de Edição”. Debates, v. 7, p. 39-55, 2004. GRIER, James. The Critical editing of music. Cambridge: University Press, 1996. 96 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER RAMIFICAÇÕES DA MEMÓRIA Danzones and contested tradition: Cuban cultural controversies of the 1880s Robin Moore The University of Texas at Austin Given that the central themes of this conference involve issues of tradition, discourse, and power, I plan to share with you some research I have been conducting on the danzón.1 This is an understudied form of music from the nineteenth century, though very influential in its day. The danzón intersects with the focus of the conference in various senses. It first developed in Cuba, but is much less popular there now and instead has been adopted by Mexican musicians and dancers as their own. Thus, its history is fragmented and speaks to the frequently capricious nature of musical development within discrete national imaginaries. It emerged out of figure dancing traditions such as the contradance that were widely shared in Latin America for over a century, and its many Afro-Caribbean rhythms correspond to those in other musics of the late nineteenth and early twentieth century such as the tango, maxixe, chôro, and habanera. These commonalities underscore the extent of shared heritage in Latin American regions often discussed as distinct. The music has developed countless variants for strikingly different kinds of ensembles, and for audiences of distinct classes and races. It often straddles boundaries between traditional, popular, and classical music, thus confounding simplistic categorization. Initially it was improvisatory and played by string and wind ensembles surprisingly similar to those of early jazz bands. Musicians of Hispanic heritage are known to have composed and played danzones in the New Orleans area of the 1880s, suggesting dialogue between that city and the Caribbean, and problematizing distinct notions of North American and Latin American heritage. Performers in Guatemala, Costa Rica, the Dominican Republic, Puerto Rico, Colombia, and elsewhere performed the danzón for decades as well. It is one of the first Afro-diasporic musics to be recorded as performed by black and mixed-race performers themselves, beginning in 1905. For all these reasons it deserves further scrutiny. Today, however, I plan to discuss only one aspect of music’s history, namely its early racial associations. The danzón is a site in which notions of race have intersected with the Cuban national imaginary in various ways, producing radically different meanings at particular times. The years of greatest change in this sense corresponded to the final years of revolutionary war against Spain, a conflict associated with the promotion of racist propaganda on the part of Spanish colonial officials. This paper traces the general tendencies of such discourse and suggests that musical performance served as a primary site of ideological struggles over racial meaning. Racism is a phenomenon that bridges the realms of the cultural and social in fascinating ways. It emerges from practices of social stratification, inequality, spatial exclusion, and so on, but is frequently experienced or discussed in relation to cultural practices such as religious worship and other embodied experience, including music and dance. To interpret racialized meaning through music, then, is to study the ways that culture and social structure interact. As Howard Winant notes, 1 A book-length study of the danzón is to be published with Oxford University Press in the fall of 2013, co-written by Alejandro Madrid and Robin Moore, with the title Danzón: Circum-Caribbean Dialogues in Music and Dance. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 101 the connection between culture and structure, at the core of racial formations, “gives racial projects their coherence and unity … racial formation is the articulation of culture and structure, signification and social organization...” (Winant, 2001, p. 101). Music gives voice to racial difference, a fundamental element of human experience, and provides one of the most powerful lenses through which to examine racialized processes on a global scale. Because the danzón is little known today, it’s probably best to take a moment to discuss a few examples in order to underscore the diversity of the repertoire. You are encouraged to consult on-line sources in order to familiarize yourself with prominent performers, groups, and variants of the music mentioned below that have developed over time. Again, the danzón is similar to many other early twentieth-century dance forms from Latin America. It is highly sectional and often features rondo form with a recurrent “A” theme that acts as a sort of refrain. Its style developed by “ragging” or inserting Afro-Caribbean rhythms and other local elements into genres that were originally European. Early danzón repertoire was played by ensembles known as orquestas típicas that consisted of European-derived instruments such as the violin, clarinet, cornet, and trombone, as well as the pailas, a percussion instrument with Middle Eastern and Spanish antecedents that eventually developed into the modern timbales, and the güiro, a gourd scraper. Danzones reflect the influence of military marches, dance suites, and other repertoire of the nineteenth century. Rhythms performed on the timbales involve tapping on the shell of the drums and playing on both dampened and open heads, techniques derived from Afro-Caribbean hand percussion. Finally, danzones incorporate a sense of clave: the constant repetition of a two-measure rhythmic cell that serves as a structural basis for each composition, characteristic of much West African and Afro-diasporic music. Danzones thus demonstrate a fundamental hybridity and core elements, yet in practice their manifestations are diverse in the extreme. A few examples will suffice to underscore the wide variety of danzón styles from different periods. The first is “La Patti negra” recorded in 1906 by the Orquesta Valenzuela, one of the earliest recordings still available, and one that includes improvisation or variation on multiple instruments simultaneously in a manner similar to New Orleans jazz;2 next, “Angoa,” an example of Arcaño’s charanga francesa-style danzón, the variant most popular in Cuba after about 1920;3 and finally “Recordando a Veracruz” from the Mexican danzonera ensemble of Alejandro Cardona and Acerina in the 1950s, with extended sax and horn section, influenced by big-band jazz ensembles, the mambo orchestra of Perez Prado, and others.4 But to return to the central theme of this presentation and understand the racialized associations of the danzón, we must consider its initial mass popularization in the 1880s, a time of social and political unrest. The Cuban revolution has been described as “unique in the history of the Atlantic world” to the extent that insurgent forces consisted of a racially diverse fighting force and included black and mixed-race soldiers at virtually all levels of command. It is amazing that this should have happened during an era of evolutionist thought and the rhetorical division of the world into superior and inferior races. Cuban and other Latin American academic literature of the late nineteenth and early twentieth centuries is replete with derogatory descriptions of blacks as less than human, of course, and frequently suggest that their musical abilities were one of their only redeeming characteristics (Helg, 1990, p. 48). Such literature makes clear that the Cuban revolutionary leadership faced tremendous obstacles in defining a broadly acceptable role for blacks and mulattos as future citizens. Fears of slave uprisings among the white Cuban population ensured the fidelity of Cuba to Spain’s 2 3 4 102 This piece is available on the CD The Cuban Danzón. Before There Was Jazz (Arhoolie Folklyric 7032, 1999). See Arcaño y sus Maravillas. Grandes Orquestas Cubanas (Areíto CD 0034, 1992). Los mejores danzones. Alejandro Cardona & Acerina (Viva CD 544380, 2007). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER army for many years, and were only tentatively overcome in 1868. At that time, a few white planters famously freed their slaves and asked them to join the independence movement voluntarily. During the earliest years of rebellion, the overwhelmingly Hispanic fighting force rarely gave weapons to Cubans of color, but instead put them to work digging trenches, cooking, and cleaning (Ferrer, 1999, p. 32). Later periods saw the increasing participation of black and mixed-race soldiers. Many came from rural areas and humble origins, or directly from the slave population. The growing number of armed rebels of color made white revolutionaries decidedly uneasy, and beginning in the mid-1870s many began to defect. They often cited a “lack of morality” in the ranks, referring to the tendency of many new recruits to bring women into camp with them, drink, use informal modes of address, or to play stigmatized forms of Afro-Cuban music such as rumba. Spanish authorities for their part exacerbated racial divisions by spreading rumors that black military commanders had declared themselves “black emperors,” kept white women as slave concubines, and planned a secret war on the white Cuban population. The result of such effective manipulation of racial fear, in combination with other factors, was total capitulation of the white leadership by 1878. This is the highly charged context in which Afro-Cuban musicians first began performing the danzón in white societies on the Western side of the island. The west remained firmly in Spanish hands, and social life there continued unabated after 1878 (Ximeno y Cruz, 1983, p. 202). But revolutionary machinations in the east and associated racial fears strongly influenced discourse about the new music. This fear was exacerbated by the onset of a gradual process of abolition at the time that many opposed. It is not inconsequential that music and dance served as the focus of attention in this controversy. Many historians emphasize the importance of dance to nineteenth-century Cuban society and note that dance had long functioned as a common site of interracial contact. Music and dance thus created points of strain within a colonial society that justified slavery through the de-humanizing of black subjects and that emphasized the importance of strict divisions between the races. Critics denounced any contexts for racial mixing in the 1880s such as the new phenomenon of “fiestas de arroz y frijoles” that included both white and black couples dancing the danzón (Castillo Faílde, 1964, p. 75; Lane, 2005, p. 167), as well as the loose morality of the so-called academias de baile where they were frequently heard (Leal, 1982, p. 269). Yet danzones appealed strongly to a growing segment of the population, especially the youth, making it clear that conservative condemnation did not represent the opinions of everyone. Jill Lane (2005, p. 177) describes white danzón performance of the period as “a form of erotic choreographic blackface,” allowing Hispanic Cubans to present themselves publicly in a new way that felt sexy and transgressive. At the same time, of course, the music constituted a form of local expression and served to distinguish Cubans from Spaniards at a time of insurgency when such distinctions were increasingly important. The closed-couple choreography associated with the danzón generated controversy as well. Some detractors denounced the genre as involving too close an embrace, or allowing for the expression of “unbridled passion” (Castillo Faílde, 1964, p. 140). Public dancing of the era implicitly referenced many important social trends including the erosion of hard class lines and changing views toward the expression of public sexuality. But in the Cuban context, commentators linked much perceived indecency to African heritage, suggesting that danzón choreography represented an evolutionary step backwards. The music also raised concerns. Some singled out percussive patterns on the timbales as proving the degenerate African origins of the music or likened danzón percussion to that of savage African drummers. All these commentators sought to distance the sound of danzones from Hispanic heritage, and instead emphasized elements perceived as foreign. A surprising number of articles denouncing the danzón in the 1880s make reference to notions of white women’s honor, purity, and virginity, suggesting that these characteristics were threatened PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 103 by dance events. Aline Helg (1995, p. 18) has documented pervasive sexual themes in racist discourse of the period including that of the black beast who constantly threatens to rape white women; the lustful black and mixed-race seductresses who threatens white families and values; and the chaste white woman. White women appear invariably in press of the period as virtuous, and men as well, common victims of a black onslaught. Much of the ever-present discussion of wantonness, vulgarity, indecency, etc. associated with dance seems to have been code for black influence, whether strictly choreographic or musical or involving the physical presence of black performers. The obsession of Cuban society with white women’s sexual and racial purity suggests a perceived need to keep society divided along racial lines. Constant references to black or mixed-race individuals either as hypersexual beings or as a social danger in dance settings represent a logical counterpart to discourses of white purity and honor. Of course, concern over racial purity has a long history throughout Latin America. But Cuban law extended such beliefs into the legal code by criminalizing mixed-race marriages through 1881. Discursive Transformation of the Danzón in Cuba Various factors combined to gradually dispel reduce racial fears among white Cubans following the Guerra Chiquita. The relatively peaceful transition from slavery to abolition in 1886 made claims about an impending slave uprising ring hollow. And new waves of government-subsidized white immigration to Cuba from Spain resulted in the Hispanic population increasing to 68% of the overall demographic by 1887 (Ferrer, 1999, p. 96). Danzones may not have been warmly embraced by conservatives in this context, but the music’s popularity did not necessarily suggest that an impending race war lay in the island’s future. Perhaps even more important to the mass acceptance of the danzón was the crafting of a new discourse of raceless patriotism on the part of insurrectionists such as José Martí, Juan Gualberto Gómez, Rafael Serra, and others. They recognized that early independence efforts had failed primarily because the Spanish had been able to capitalize on racial divisions. In response, they began to discuss the history of the war in new ways, foregrounding black-white cooperation and suggesting that any differences between the races had been resolved through shared experiences on the battlefield. Revolutionary ideologues began to craft a new image of the black citizen as well: valiant but also obedient and unthreatening (Ferrer 1999, p. 119, 121), respectful of existing racial hierarchies, and without any independent social or political agenda. The new politics of racial silence ultimately proved successful in guiding white and black revolutionaries toward victory in the 1890s against Spain, and strongly influenced attitudes toward the danzón thereafter. Patriots increasingly described the danzón as emblematic of the nation, and as either as an exclusively white style of music or as transcending race. By the time Spanish troops departed in 1898, danzones had become so representative of Cuba that they accompanied the lowering of the Spanish flag over the Morro castle (Iglesias Utset, 2011, p. 136). Playing a danzón during the occupation served as an important means of expressing cubanía at a time when flying the Cuban flag had been outlawed by the U.S. military (Iglesias Utset, 2011, p. 1, 4). In the years after 1902, the danzón extended its raceless and non-controversial associations. Poets published décimas extolling its praises and white women from elite families played piano reductions of formerly controversial danzón hits from the 1880s in their drawing rooms. Conservative activists fought to preserve the danzón’s popularity among younger audiences as of the 1910s in the face of son and jazz music. For their part, middle-class leaders of color took credit for the music and suggested that the danzón demonstrated the extent of cultural advancement achieved by the black and mixed-race population, transitioning from hand drumming and other “barbaric practices” to the more “refined” expression of the ballroom. 104 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER The dominant racial discourses of early twentieth-century Cuba intersect in various ways with those surrounding the danzón. As might be expected, notions of evolutionism and black inferiority remained widespread. Yet politicians also invoked earlier rhetoric disseminated by revolutionary leaders to suggest that racial problems had been solved. They denounced as racist anyone criticizing the existing social order and placed the blame for any lack of black social mobility on the black community itself. Yet even former black combatants and prominent military leaders found themselves shut out of positions in government and denied entry to many private businesses, restaurants, parks, and hotels. Such treatment clashed with their expectations as veterans and generated considerable unrest. Attempts within the black community to mobilize politically resulted in new waves of racial fear mongering in the press. A violent government crackdown on black agitators in 1912 led to the slaughter of thousands of Afro-Cubans in 1912. This image depicts the heads of two political activists who lead that uprising and died in the ensuing clash with the national army. Racial tensions of this sort manifested themselves culturally in various ways. Though they accepted the creolized danzón, local authorities continued to criminalize drumming genres heavily influenced by African heritage; in some cases, the persecution (especially of religious repertoire) lasted well into the 1950s and 1960s. Most dances and social venues remained segregated in the early twentieth century, as well as parades involving revolutionary soldiers. Recreational societies created by the black community often bore names such as La Armonía, La Unión, La Concordia, or La Fraternidad, reflecting both aspirations for harmonious integration into Cuban society and a desire to avoid further bloodshed. In this context, the black community chose to think of the danzón as a sophisticated form of expression that tangibly demonstrated the union of African and European heritage. Of course, Afro-Cuban musical elements in the danzón tended to be heavily constrained, and the overwhelmingly black performers who popularized it trained on European instruments, wrote compositions based on European harmonic conventions, and often played as hired help for white audiences. Rather than challenging the social order, danzón as social practice thus perpetuated many existing conventions. White danzón enthusiasts for their part tended increasingly to overlook or downplay the music’s Afro-Cuban origins, in the same way many chose to disregard black contributions to the war effort or the denial of full citizenship to the black community. The ambiguity of the danzón in cultural terms and its susceptibility to multiple readings along racial lines contributed greatly to its acceptance through the early decades of the new Republic. Conclusion The term “black music” defies essentialist definition. It refers to constructs emerging from dialectic processes, typically between Afro-diasporic groups in the Americas and dominant social orders that define themselves in opposition to blackness. Black music may contain particular rhythms, structures, or performative features associated with Afro-diasporic groups, yet these elements do not constitute defining characteristics of the repertoire. Rather, black music at any given time (indeed, virtually any inherited cultural form) incorporates influences from various sources that are creatively combined and re-encoded with local meanings. In the Caribbean and Latin American context such reconfigurations are especially complex, frequently encompassing elements from indigenous, Afro-descendant, Western European, North American, and other sources. Black musical forms are best conceived as a constantly shifting sonic/semiotic ground of at least potentially divergent claims and ascriptions. One useful focus of analysis in such a context is how common-sense notions of “white” and “black” expression shift through time, who contests them, and whose interests or projects they support. Racialized controversies over the danzón in the Cuban press emerged during one of the tensest PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 105 106 periods of the revolution. Two large-scale insurgencies, the Ten Years War and the Guerra Chiquita, had just ended inconclusively owing to divisions among Cuban troops. Spanish propaganda managed to convince a majority of the white literate population that the arming of free blacks and former slaves would lead to all-out war against them, miscegenation, and barbarism. As one of the primary sites of racial interaction of the day, ballroom dance music became a focal point for the expression of white anxieties about blackness. Spanish-owned newspapers characterized white interest in the danzón as a form of rampant vice that threatened the entire colonial project much in the same way that armed revolutionaries themselves did. By the 1890s, the revolutionary leadership began an aggressive ideological campaign to counter Spanish propaganda and re-forge alliances between white and mixed-race forces. This involved reformulating Cuban identity as something that transcended African or European ancestry, and by downplaying or choosing to ignore existing racial conflict. The danzón, as the preeminent dance music of the day, was central to this ideological shift. In a new era of ostensibly “raceless” revolution,” dance music that fused elements of African and European heritage served as an ideal symbol of the nation. Equally as important, its incorporation of African-influenced elements were limited and could be conveniently overlooked by those who preferred to do so, and there were many. In this way, the danzón referenced liberal consensus of the period that suggested blacks should be part of the nation, but also subservient, deferential, silent, and grateful for their emancipation. Within the space of only about 15 years, the racial invective surrounding danzones was replaced by universal praise for the genre. To the popular classes and to black performers after 1900 the danzón represented the triumph of the local, the vindication of mixed-race heritage, and promised greater racial inclusion in a newly independent Cuba. To elites, danzones had the advantage of referencing inclusion and simultaneously suggesting that racial differences had been reconciled. The music reigned supreme in the first decades of the twentieth century, a period that perpetuated a myth of racial harmony and yet whose leaders quickly moved to suppress with violence any political agency within the black community itself. Mainstream critics asserted the predominantly white/European character of the danzón in order to deny the significance of racial difference, avoid uncomfortable discussions of ongoing racial inequality and discrimination, and/or downplay the contributions of Afro-diasporic groups to the nation. Only the vogue of more overtly African-influenced styles of music later in the 1920s and 1930s would initiate discussion once again about the cultural and social contributions of black Cubans to the nation. The claiming of the danzón as white Cuban heritage in the 1910s, or since the 1950s as Mexican mestizo heritage, may strike some as uninformed or historically inaccurate. But of course all forms of tradition are consciously constructed to an extent and speak to the needs of social groups in the present. Ultimately, the origin of cultural forms is largely irrelevant to their experience as tradition. The notion of tradition has progressed slowly from Enlightenment-era views that characterized it as a national essence, to those of early anthropologists who described it as the unproblematic handing down of acquired human knowledge, to more recent scholarship that characterizes it as an active selection and shaping of practices in the present toward particular ends. The danzón until recently might have been characterized as a form of residual tradition in Raymond Williams’ sense, a dance music of the past existing on the margins of contemporary society and giving voice to nostalgic recollections of the past. More recently, through the organizing and activism of musicians, dancers, state agencies, and others, it has become en emergent practice once again, associated with new values, processes, and relationships, and altered substantially in response to the demands of new social contexts. References CASTILLO FAÍLDE, Osvaldo. Miguel Faílde Pérez: creador del danzón. Havana: Editora del Consejo Nacional de Cultura, 1964. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ FERRER, Ada. Insurgent Cuba. Race, Nation, and Revolution, 1868-1898. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 1999. HELG, Aline. “Race in Argentina and Cuba, 1880-1930: Theory, Policies, and Popular Reaction.” In The Idea of Race in Latin America, 1870-1940, ed. Richard Graham. Austin, TX: The University of Texas Press, 1990. HELG, Aline. Our Rightful Share. The Afro-Cuban Struggle for Equality, 1886-1912. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 1995. IGLESIAS UTSET, Marial. A Cultural History of Cuba during the U.S. Occupation, 1898-1902, transl. by Russ Davidson. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2011. LANE, Jill. Blackface Cuba, 1840-1895. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005. LEAL, Rine. La selva oscura, vol. 2, De los bufos a la neocolonial. Havana: Editorial Arte y Literatura, 1982. WINANT, Howard. “White Racial Projects.” In: RASMUSSEN, Brander et. al. (eds.). The Making and Unmaking of Whiteness. Durham, NC: Duke University Press, 2001. XIMENO Y CRUZ, Dolores María de. Memorias de Lola María. Havana: Letras Cubanas, 1983 [1928]. 107 Music as a vector for activating and transmitting the orisha cult of Naa Buuku among the Yoruba in Benin Madeleine Leclair Musée du quai Branly, Paris Centre de recherche en ethnomusicologie, Université de Paris Ouest - La Défense, Nanterre It is a great pleasure and honour for me to take part in the Third International Symposium of Musicology on a theme that is central to my research in ethnomusicology among the Yoruba in Benin and to my work as curator of the ethnomusicology collections at the Musée du Quai Branly : that is, the study, preservation and transmission of musical heritage. My paper is divided into three main sections : first, a broad presentation of data related to the transmission of musical practices of a Yoruba subgroup from the west centre of Benin; then, comments on the preservation of the musical repertory of worshippers of the deity, Naa Buuku; and lastly, issues concerning the treatment of musical heritage in museums. I will briefly (1) describe the main features of the musical system of a repertory which both generates “mysteries” and has remained intact over a period of more than sixty years, (2) then I will consider the conditions for the persistence and transmission of this music at local level. These conditions are directly related to the purpose of this repertory, which is to activate the efficacious principles of a ritual. Then I want to think about the heuristic value of the undertaking to preserve this repertory, with a view to commenting on the processes of patrimonialization, at national level, which would logically lead to the enhancement of this heritage in western public institutions, such as the Musée du Quai Branly. 1- The music of the Itsha in Benin My ethnomusicological research is on the music of the Itsha and the Ife, two closely related Yoruba subgroups living in central Benin and Togo, that is, on the western fringe of the Yoruba cultural area in sub-Saharan Africa. They are groups with “an oral tradition”, that is, (1) they use no visual or mnemonic support (writing or any other form of graphic representation), and (2) they transmit their culture from one generation to the next by speech, and here within a centralised system of knowledge transmission. Tens of deities are venerated in some thirty Itsha and Ife villages, most by only a part of the village population, and some are known through almost the entire territory. Among them are Sampona (or Sakpata), Shango, Ogu, and Naa Buuku. The trigger for my research into the Itsha and Ife musical traditions was the discovery of musical recordings made by Gilbert Rouget in a village called Pira in 1958. Gilbert Rouget himself brought this music to my notice, putting at my disposal his old recordings, photographs and field notes taken during a week he spent in Pira in November 1958. I am deeply grateful to him for entrusting his field data to me. In addition, I drew on a corpus of photographs taken by Pierre Verger in Benin before 1950. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 109 The recordings A comparison of the sound recordings made by Gilbert Rouget in 1958 and more recent recordings that I made in Pira between 1996 and 2011 shows that in the course of about sixty years, for seven separate musical repertories, the transmission process has led to several types of continuity. Gilbert Rouget recorded seven different musical repertories in Pira in 1958: * Tuntula and oto: games, music for ‘entertainment’ * Girls’ working chant (pounding the earth) * The adu lute * Waya: a repertory of “philosophic chants,” played by members of a brotherhood. * Girls’ moonlight chants * Chants for followers of the Naa Buuku cult The theoretical framework generally accepted in anthropology for knowledge transmission in an oral society is to regard orality as a dynamic, progressive process stringing changes together over a given period. Let us see what has become of the seven repertories recorded by Gilbert Rouget in 1958, sixty years later. * The tuntula and oto, unless I am mistaken, are no longer played at Pira. The instruments still exist and are played in other places in Benin, so, strictly speaking, this repertory has not been abandoned. * The working chants are no longer sung, probably because house building techniques have changed. The chants accompanied a specific group activity (pounding the earth floor), so there is no point in performing them out of that context. * The adu lute is no longer played, or at least much less often. I saw it only once between 1996 and 2011. I have no functional arguments to explain why this repertory might have been abandoned, particularly since it is hard to know how often it was played in 1958. * Waya still exists, but the music has changed and tends to be replaced by another form played on the musical bow jenjele. * The girls’ chants: here, too, the villagers’ lifestyle seems to have changed over the years and now favours other activities in the evening. These chants are still sung, but only on request. The girls can still sing them if asked to. * The repertory of chants sung by worshippers of Naa Buuku, unlike the other repertories, has stayed the same. This repertory now forms a corpus of about 245 pieces, representing 150 different chants, which I recorded over the entire territory between 1996 and 2011. In 1958, Gilbert Rouget recorded 24 different chants at Pira. Recordings of 17 of them were made again, in Pira or in other villages, sixty years later. To show how this repertory has persisted, I would like you to hear the same piece recorded in Pira in 1958 and then by me in the 2000s. Note on the musical system used in this repertory: As part of my research, I prepared a description of the musical system used here, titled “Short Treatise on Itsha Vocal Music.” The treatise has 38 headings in three chapters which cover: 1) data on forms; 2) the qualities the singers look for (the canonical rules for a successful performance); 3) rules for polyphonic vocal music. As a musical system, the worshippers’ repertory is the most demanding, in that it is highly codified. The formal structure of the chants, that is, the distribution of the lines in the verses, always 110 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER alternates a female solo voice and a chorus. The verse sung by the chorus is polyphonic, divided into three distinct parts which are sung in parallel or oblique motion, but also sometimes in contrary motion. When they are sung as part of a ritual (“for real”), the beginning and end of the chants is signalled by a drummer, who plays an essential role in the ritual because he controls the dance, the tempo and the beginning and end of the chant. This repertory is distinguished from other musical compositions by a number of compositional features that are exceptional in music in this region, in particular for the polyphonic vocal music and the descending pitch To illustrate this feature, I want you to listen to a chant recorded during a ritual, so with drum accompaniment. The chant lasts seven minutes: I will let you listen to the beginning, and then the end, so you can hear the long descending pitch, perceptible not just in the musical scale but in the overall structure of the chant. The words of the chants: The formal structure of the texts of these chants is built on the sequence and repetition of a number of clauses, which do not follow a narrative logic and which the majority of the worshippers do not understand. I questioned some of the devotees in the process of translating these texts and it soon became clear that, if ordinary people (the uninitiated) were ignorant of their meaning, the devotees themselves were far from understanding everything. Nor did they understand the meaning of the rituals. Supposing the profane to be ignorant and the initiated to be knowledgeable is a reflex that distorts the reality of this particular situation. One of the most remarkable features of this repertory is its extraordinary stability over a period of at least sixty years, whereas there are several reasons for thinking it could have disappeared or changed radically. Major geopolitical events occurred in Benin during those sixty years. Dahomey’s accession to independence in 1960, but more importantly the change in the political regime after 1972, which triggered a veritable witch hunt, and the destruction of orisha shrines, in the hope of undermining the political influence of the traditional structures, did not hasten the eradication of this repertory. Dahomey become the Republic of Benin in 1975. Obviously this comparison could be based only on music recorded during a very brief period (one week), so the data are not complete enough to permit definitive conclusions to be drawn about the transmission of Itsha musical repertories. It is a widespread belief in ethnomusicology that ritual music is much less likely to be abandoned or radically transformed because it is linked to knowledge and cultural values that are a fundamental part of group identity. But there is a difference between a musical practice that allows a degree of modification and a near ‘frozen’ repertory. My hypothesis is that the worshippers’ repertory, more specifically than all the others, is not only a fundamental aspect of Itsha identity, but the main vector in the activation and transmission of the Naa Buuku cult. I shall briefly present the sequence of ideas and arguments that support this hypothesis, since they provide the frame of reference for a discussion of the stakes involved in the preservation of musical heritage in museums and similar institutions. I shall summarise the logic at work here, and then put forward several theories about the institutional future of such a repertory, which, as we perceive it, seems to be “frozen.” That will bring me, in the last part of this paper, to propose a change in perspective, that is, to deal with cases, not PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 111 112 examples. Instead of considering that this musical repertory is an example of an established category of pieces of music in decline because they do not change, we ought to start from the practice, as an instituting factor, and study not the already established categories but rather the way categories are established on the basis of an analysis of practices. The chants sung by the worshippers are also danced, but here I shall confine myself to the acoustic part of this repertory. A theoretical model for the analysis of ritual has been developed in recent years (particularly by Michael Houseman and Carlo Severi), which sees ritual as an experience based on the formalisation and enactment of specific relationships. In the light of these theories, I shall now look at the repertory of the chants sung by the devotees, starting from the hypothesis that the performance of this repertory is in itself a ritual act. This repertory is sung by people who have been initiated into the Naa Buuku cult. Therefore by a specific, relatively homogeneous community of people who have gone through the unusual experience of a long rite of passage from the ordinary existence of the average person to a richer state of being, from an intellectual and spiritual point of view. The repertory is therefore closely linked to a highly codified symbolic institution, that of an initiation society, which has the exceptional power to transform ordinary people into extraordinary beings. For the uninitiated, these chants are the most immediately perceptible aspect of the Naa Buuku cult. They are often danced in public so the uninitiated have many opportunities to hear and see them. Neither the initiated nor the profane grasp the full meaning of the words they sing, and the manner in which they are sung is quite out of the ordinary. I met one of the initiated women who was particularly active in the liturgical activities, and very skilled in leading the rituals; she was very precise and conscientious in the performance of the various rituals, corrected the novices, and often took a central part in the singing, but she was often unable to explain the meaning of the chants and actions in which she quite authoritatively led the novices. And she was no exception. Generally speaking, it would be fair to say that although none of the devotees is completely ignorant of the ritual, none is really expert either. They are probably all somewhere on a rather vague continuum mingling technical mastery of the music and knowledge of the rituals. When the devotee I spoke to could not explain the meaning of a ritual act or musical practice, she invariably called on the authority of the elders and ancestors. She said she made a particular movement because the elders had taught her to do it like that. So while they chant, the worshippers perform actions as taught by their elders, the exact meaning of which (in terms of intentionality in communication) remains obscure. Consequently, to make sense of their actions, they have to postulate the existence of another source of intelligibility and efficacy. They do what their elders tell them to do; their elders in turn comply with the instructions of the senior devotees who do what the ancestors have always done. The elders’ authority is therefore derived from that of the ancestors: for the ritual, the younger women follow the lead of the older women, who are supposed to be the depositaries of the ancestors’ knowledge. The words and the polyphonic form of the chants are therefore not used as a communication tool accurately transmitting a message. The devotees are deliberately induced to take part in sequences of actions, on the ground that the other devotees – in particular the elders and, through them, the ancestors – unlike them, know what it all means. They do not really know what they are doing, but they are persuaded that the elders know. The value of their own acts therefore comes from the secret knowledge the elders are believed to have. The words of the chants do not tell stories. They string together a series of statements, some of which are esoteric, others rather less so. Their semantic content is low, and yet the words have been sung for over sixty years. Exactly what is meant when they sing “We bite the wives of death” is less important that the fact of singing exactly those words in exactly that way. Otherwise, the most obvious feature of this music is that it is the devotees’ main mode of expression. They never talk of their experience, their initiation and what happens during a ritual, what they know or what sort of relationship they have with their chosen deity, Naa Buuku. Their way of speaking is singing this repertory of chants. In my view, we need to focus on the act of language, or more exactly the time of the performance, which structures the way the chant is sung. As a result, the mind is not occupied by the appreciation of new material: the performance of the chant can be seen as a set time during which rather enigmatic statements are made in such a way that the parts can be perceived and conceived as the interconnected aspects of a whole. In this ritual, these connections are the norm: this repertory is full of mysterious, esoteric episodes and secrets that are hinted at but not revealed. Because the musical composition of this repertory is exceptional, this manner of discourse becomes easily recognisable as distinct from all other sorts of music in everyday life. It appears to be crucial not to vary the perceptible part of this repertory, because that might jeopardise the very purpose of the chants, which are sung to establish special relationships. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Comments on “freezing” These chants seem to have been frozen for the last sixty years, as if there were no place for creation in this ritual musical practice. According to Michael Houseman’s theory of ritual sense, the value of this repertory does not lie in the interpretation of the apparition of new things, new musical phenomena or new modes of diffusion, but rather in what is represented by this temporal persistence of a sonorous presence, as René Passeron would say in Répétitions et création. To try to grasp what singing their chants means to the devotees, I postulate that their performance aims to “freeze” time. This repertory is the eternal return of the same sensory reality, associated with a network of meaningful relationships. This “immobility” also shows that, for the initiated, the important thing is the performance itself, the “doing,” not the musical “product.” The fact of repeating the same invariable words in the same way suggests that this repertory is a symbol of continuity, a real guarantee of their faithfulness to the cult. 2-Musical heritage today I have insisted on the fixed nature of this repertory to emphasise the fact that this sensory immobility is not a factor in the loss of these chants. On the contrary, their very fixedness has preserved them because it permits relationships to be renewed. Under cover of an apparently changeless repertory, the cultural codes are updated. The codes in question are those of a local institution (the cult), which is based on the structuring role of secrecy. So what is the future of this repertory if it is transformed into national heritage, which will logically lead to the enhancement of a given tradition at an international level within western public institutions such as the Musée du quai Branly? The MQB is a museum about society, (a museum of non western art and civilisations), placed under the high patronage of UNESCO, but it could be a matter of any other museum about society. This museum (MQB) and the United Nations Educational Scientific and Cultural Organization (UNESCO) signed a partnership agreement designed to further knowledge of intangible heritage and the Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural 113 Heritage adopted by the General Conference of UNESCO in 2003. Under this partnership, the MQB makes available to the public and the scientific community a selection of: * nomination files received from States Parties (those who signed the Convention), in electronic format, to be registered on the List of Intangible Cultural Heritage in Need of Urgent Safeguarding or the Representative List, or selected by the intergovernmental committee for the safeguarding of the intangible cultural heritage. * written documents, photos and audiovisual material provided by the States Parties. A selection of these files is posted on the museum’s website. That is the process by which national heritage becomes international. Safeguarding If a form of musical expression is still living and rooted in the everyday life of certain groups of people, does it need to be protected by state or international political and cultural measures? Is there not a risk of upsetting a delicate balance and thereby contributing to the loss of that repertory? Another fundamental question: what must be safeguarded and how can it be done? With its corollary: does it matter if a musical repertory undergoes profound changes? In my opinion, the answer is: it all depends. Yes, but also, sometimes, no. I think we should consider changing our point of view on this question, which necessarily entails making some changes to the patrimonialization process, that is, the way things are transformed into heritage. The Convention sets great store by the “communities”: the idea is to raise their awareness that a particular repertory is a form of heritage and must be taken care of. One of Unesco’s aims here is to make communities conscious of the need to safeguard their heritage. Text of the Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage 2003 (extracts) I. General provisions Article 1 – Purposes of the Convention The purposes of this Convention are: (a) to safeguard the intangible cultural heritage; (b) to ensure respect for the intangible cultural heritage of the communities, groups and individuals concerned; (c) to raise awareness at the local, national and international levels of the importance of the intangible cultural heritage, and of ensuring mutual appreciation thereof; (d) to provide for international cooperation and assistance. Article 2 – Definitions For the purposes of this Convention, 1. The “intangible cultural heritage” means the practices, representations, expressions, knowledge, skills – as well as the instruments, objects, artefacts and cultural spaces associated therewith – that communities, groups and, in some cases, individuals recognize as part of their cultural heritage. 114 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER The UNESCO Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage is, as its name suggests, governed by “conventions,” in other words, by the need to reach a consensus among the States who recognise this text. This makes it sometimes difficult to construe, for States and “communities” alike. Because if there is a need to raise the communities’ awareness of their cultural heritage, they cannot be expected, at the same time, to recognise what their heritage is. These difficulties perhaps explain the great disparity between the number of nomination files submitted for registration on the Representative List and those submitted for the List of Intangible Cultural Heritage in need of Urgent Safeguarding, although substantial funds are available for urgent safeguarding. Difficulties in construing the texts of the Convention are compounded by the difficulties a State faces in implementing the procedures for urgent safeguard. My intention here is not to criticise the terms of the Convention, which remains a major step forward in the enhancement of intangible cultural heritage, but rather to change the way we envisage safeguarding oral musical traditions. Heritage and transmission One general remark: the notion of “heritage” has many meanings and is sometimes used as an incantation, as if it were a magic formula. It corresponds to globalising western concepts and is not easy to define. Unless I am mistaken, the terms “heritage” and “tradition” seem to be interchangeable in the UNESCO convention, or at least they are not defined as such. I have no doubt that the two terms are almost interchangeable in the minds of museum goers. But in fact, the idea of heritage seems more relevant in the field of cultural policy than in anthropology. The words ‘heritage’ (from Old French heritage, from heriter ‘inherit,’ from Late Latin hereditare, and ‘patrimony’ (from Old French patrimoine ‘heritage, patrimony’ (12c.) and directly from Latin patrimonium ‘a paternal estate, inheritance from a father,’) both refer to property that can be inherited from the father. The words are therefore related to matters of inheritance, that is, property rights that can be claimed by the heirs. Both terms refer to rights and property passed on in the inheritance process. The word ‘tradition’ (from Old French tradicion (late 13c.), from Latin traditionem (nom. traditio) ‘delivery, surrender, a handing down.’) has to do with giving, handing over, handing down. Modern usage emphasises the idea of transmission and practices ensuring transmission. Transmission within the local cult group is done in the way I referred to above. But what about transmission from this local institution to international institutions? The “dialogue between cultures” Many researchers have observed that the groups we call “communities,” which have these traditions, intangible or otherwise, appropriate the discourse of the States and, therefore, the concept of heritage, because it is one of the keys to the relationship with the institutions implementing the patrimonialization process. But so far no study has been made of the way these “communities” visualise, through this relationship, what is being done for them. We have nothing on the reactions of an oral society to the recording of its own music on media which do not belong to it. The patrimonialization process therefore has to do with self awareness, both as a group and as individuals within that group. It has to do with “dialogue”, another notion that is prominent in the letters of intent produced by cultural PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 115 116 institutions, as it is for example at the MQB, whose slogan is “Where cultures meet in dialogue” and with the involvement of the “communities” in promoting cultural diversity. Itsha devotees are, in a way, “preservation agents.” They are familiar with a complex institution which has built the tools of its own transmission into the way it functions. One apparently particularly efficacious tool, paradoxical as it may seem, is the interactive use of the mechanisms of secrecy, which automatically creates a special relationship between those who know and share the secrets and those who are excluded from them. The anthropological approach that I have proposed emphasises the fact that, for this music, the important thing is not the acoustic trace itself, but the structure of the practice of these chants, i.e. the process of performance, because that is where the special relationships are forged: between the initiated (who repeat what they have been taught, because the elders necessarily understand why they do it like that) and between the initiated and the profane (the devotees show everyone that they have secrets, and therefore special knowledge, and have thereby acquired wealth that is not given to everybody). How can we transmit to complete outsiders what is relevant for the musicians during their performance? How can we transmit “other people’s noise,” to take the argument of the exhibition Noise at the Ethnography Museum in Neuchâtel Switzerland, in 2011? How can we go from local heritage to “world” heritage? As Antoine Hennion has pointed out, the culture of one group of people cannot be reduced to not being the culture of the other groups. We must first identify what is pertinent in a cultural practice, and find ways to transmit that to others, who do not have in mind all the data that enable a specialist quickly to spot what its “essence” is. It is a real challenge. One possible approach is to take shared things as a lever, emotions for example, art or creativity, or, as here, the mechanisms of secrecy. - What can be taken as a lever for there to be “communication” or dialogue between people who belong to western society and the devotees of a cult? - The performance of the devotees’ chants is an elementary mode of the intention to communicate. And it communicates the general principles of relationships. - The words of the chants are not meant to convey particular teachings. The singers do not understand them, and the uninitiated do not fully understand them either. Theoretically, therefore, it is no problem if this western audience does not understand them! Unless the western audience thinks they must understand the words. - In fact, the whole problem stems from the fact that the intentions have been misunderstood. The western audience does not understand what the singers’ intentions are when they do what they do. So they keep trying to understand what they mean. And they end up bewildered because there are too many possible explanations. Should the attempt to bring this sort of music to a wide audience therefore be abandoned? Would it be different if we were dealing with a repertory of music for festive events? Because what seems particularly delicate in this repertory is that does not project emotions or feelings to the outside, but is related to personal experience or turned inwards on the performers. It is a repertory related to emotions and affects which the performers keep hidden inside them and do not show. The public performance of these chants shows that there is something hidden, without revealing what it is. That is probably the key to staging a museum display of the music of the Naa Buuku devotees: the idea would be to create an area of exploratory perception, using sound and image technology, seeking to be representative rather than exhaustive, in order to manifest or even effectively reactivate the emotions and various mechanisms of secrecy: expectation, curiosity, presentiment. 3-Conclusion This repertory does not fit easily into the categories listed by the Convention, either for the Representative List or the List of Intangible Cultural Heritage in need of Urgent Safeguarding. On the contrary, the practices described seem to go in the opposite direction to what appears in the Convention, which is haunted by the fear of loss due to actions which are thought to freeze these practices, turning them into museum objects, even if the very process of classifying and registering them has a freezing effect. Perhaps it should be emphasised that this repertory is not one example of heritage, among many others, which has survived or should be put classified as endangered, but rather a case, and that changes everything. That means we consider that this repertory is a case of self-preservation, and that we can put off to a later date the fact of having to decide whether or not the cases of surviving or self-preserving repertories that we encounter in the course of our research present similarities, or a sort of family likeness, from which generalizations could be made and a set of figures established. This would lead to analysing the results of the patrimonialization process on musical repertories figuring on the List of Intangible Cultural Heritage in need of Safeguarding, and comparing the results, as well as the action taken. In parallel, it would lead to studying cases of surviving repertories, with a view to comparing the conditions of their transmission and preservation. In other words, paying as much attention to instances of endangered heritage and to the measures envisaged and/ or implemented to safeguard them, as to the conditions in which certain other repertories persist, taking seriously what people say about their own practices, without considering them in advance to be irresponsible and unaware of owning “heritage” of unsuspected value. This research work is in line with the Convention’s recommendations, which are a sort of toolkit that can be used in an operation to safeguard some repertory or other. The first thing a State must do is draw up a list of the repertories that the “communities” wish to safeguard, having first raised their awareness of the notion of “heritage” as I have defined it. In the huge enterprise undertaken by national and international institutions to draw up a list of musical heritage that is representative or in need of safeguarding, an inventory must first be made of the main features of this heritage. This work of presenting a performance in the form of written texts, with audio recordings and films, is used to prepare nomination files. And this summary permits comparison between nominations. It also allows us to review the past and so assess the nominations. These files (summaries) are a tool for ranking and evaluating the degrees of urgency in safeguard operations, and a first step toward worldwide diffusion. To conclude, it seems to me that there are various types of safeguard operations, which are hard to identify before work has been done on what is to be preserved. The results of what has already been attempted should be collected and efforts made to pick out similarities between the various cases. Links must be established between the measures taken to further knowledge of creative processes, not in the domain of traditional music, which is a category, but in musical traditions. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 117 A dança do fado no Brasil e Portugal oitocentistas Rui Vieira Nery Universidade Nova de Lisboa Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos de Música e Dança A José Ramos Tinhorão, pioneiro obstinado de tantos caminhos A dança no Fado afro-brasileiro A totalidade das referências testemunhais à prática do Fado no Brasil das primeiras décadas do século XIX, antes e depois da independência daquele país, descreve-o, como se sabe, como uma dança originária das comunidades afro-brasileiras mas entretanto apropriada igualmente pelas classes médias urbanas da sociedade colonial. Várias dessas descrições referem ainda que se trata de uma dança cantada, sendo a melodia entoada, umas vezes pelo próprio violista, outras por todos os intervenientes. O primeiro relato desta prática, embora publicado apenas em 1827, encontra-se no diário do capitão francês Louis-Charles Desaulses de Freycinet, que em 1818 aporta a várias cidades brasileiras, como parte da sua viagem de circum-navegação ao serviço da Coroa francesa: As danças que se executam nos salões são em geral as francesas e as inglesas. Noutros lugares preferem-se com bastante frequência as danças lascivas nacionais, que são muito variadas e se aproximam muito das dos negros de África. Há cinco ou seis que são muito características: o lundum é a mais indecente; vêm depois o caranguejo e os fados, que são em número de cinco – estas são dançadas por quatro, seis, oito ou mesmo dezasseis pessoas; por vezes são entremeadas de melodias cantadas muito livres; há nelas figuras de vários géneros, todas elas muito voluptuosas. Mas em geral estas danças têm mais lugar no campo do que na cidade. Além disso, as raparigas raramente hesitam em participar nelas, e quando se dança em pares é a mulher que vem convidar o cavalheiro. (Freycinet, 1827, I, p. 212)1 Em 1822, o geógrafo italiano Adriano Balbi, que nunca esteve ele próprio no Brasil mas que recebeu de observadores locais, para a preparação do seu Essai statistique sur le royaume de Portugal et d’Algarve, relatórios detalhados da vida cultural no período final da sociedade colonial luso-brasileira, inclui nesta obra a seguinte afirmação genérica: O chiú, a chula, o fado e volta no meio são as danças populares mais comuns e mais notáveis do Brasil (Balbi, 1822, II, p. ccxxviii).2 1 “Ce sont ordinairement les danses françaises et anglaises que l’on exécute dans les salons. Ailleurs on préfère bien souvent les danses lascives nationales, qui sont fort variées et se rapprochent beaucoup de celles des nègres d’Afrique. Cinq ou six sont très-caractéristiques; le landum est la plus indécente; viennent ensuite le caranguejo et los fados, au nombre de cinq: celles-ci se dansent à quatre, six, huit, et jusqu’à seize personnes; quelquefois elles sont entremêlées de chants très-libres; il y a des figures de plusieures sortes, toutes très-voluptueuses. Mais en général ces danses ont plutôt lieu à la campagne qu’à la ville. Au reste, les jeunes filles répugnent rarement à y prendre part; et quand on doit danser à deux, c’est la femme qui vient inviter le cavalier”. 2 “Le chioo, la chula, le fado et la volta no meio sont les danses populaires les plus communes et les plus remarquables du Brésil”. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 119 O oficial alemão Carl Schlichthorst, que serviu no exército imperial brasileiro entre 1825 e 1826, corrobora com mais pormenores estas descrições: Infelizmente, também no Rio de Janeiro a Dança francesa está a começar a suplantar a nacional. Não conheço nada de mais insípido do que estes entrechats e ailes de pigeon constantemente repetidos, que lembram uma marioneta a mexer os braços e as pernas como se alguém lhe estivesse a puxar os cordéis. Quanta expressividade não há, pelo contrário, não só no Fandango como também no Fado, essa dança de negros tão imoral e no entanto tão encantadora, e quando é necessário dançar uma Gavotte prefiro vê-la dançada por brasileiros ou espanhóis do que pelo mais célebre Mestre de Bailado parisiense. Até à própria Valsa alemã estes povos sabem retirar-lhe a sua cansativa monotonia; também nesta dança, tal como ela é executada no Brasil, se exprime a ideia do amor primeiro negado mas depois concedido. (Schlichthorst, 1829, p. 153).3 A dança favorita dos pretos chama-se Fado. Consiste num movimento que faz ondular suavemente e tremer o corpo, e que exprime os sentimentos mais voluptuosos da pessoa de uma maneira tão natural como indecente. As posições desta dança são tão fascinantes que não é raro vê-la ser dançada por bailarinos europeus, com sonoro aplauso, no Teatro de São Pedro de Alcântara [do Rio de Janeiro]. (Schlichthorst, 1829, p. 185)4 Um outro viajante alemão, o bávaro Johann-Friedrich von Weech, que circulou pela América do Sul entre 1823 e 1827, acrescenta ainda: As danças nacionais são executadas apenas por pares isolados; em vez de castanholas dão estalos com os dedos de ambas as mãos, com tanta habilidade que ao longe se pensa estar a ouvir o som das castanholas. Simultaneamente, há muitos que executam o fado, uma dança imitada dos africanos na qual os dançarinos cantam; consiste em afastarem e aproximarem os corpos, o que na Europa seria considerado indecoroso. Ambos os sexos dançam excelentemente, com elegância e com uma energia que faz com que os assistentes involuntariamente participem da sua alegria; tem-se dificuldade em reconhecer nas beldades de olhos cintilantes e de uma ligeireza inimitável em todos os seus movimentos as mesmas que às vezes se viu no dia anterior na casa delas, abatidas sobre o sofá e a dormitarem, demasiado indolentes para falarem ou para abrirem completamente os olhos. (Weech, 1831, II, p. 23-24)5 3 “Leider fängt auch in Rio de Janeiro der französiche Tanz an, den nationalen zu verdrängen. Ich kenne nichts Abgeschmackteres, als diese ewig wiederholten Entrechats und Ailes de pigeon, die an einen Gliedermann erinneren, der Arme und Beine bewegt, so wie man den Faden zieht. Wie viel Ausdruck liegt dagegen nicht im Fandango oder auch nur im Faddo, diesem unsittlichen und doch so reizenden Negertanze, und wenn eine Gavotte getantzt werden soll, so stehe ich sie lieber von Brasiliern oder Spaniern tanzen, als von dem berühmtsten Parisier Ballettmeister. Selbst dem deutschen Walzer wissen dieser Völker seine ermüdende Einförmigkeit zu nehmen, auch in diesem Tanz, so wie er in Brasilien ausgeführt wird, spricht sich die Idee der versagenden und gewährenden Liebe aus”. 4 “Der Lieblingstanz der Schwarzen, man nennt ihn Faddo, besteht aus einer sanftwiegenden, zitternden Bewegung des Körpers und drückt die sinnlichsten Empfindungen des Menschen auf eine eben so natürliche als unanständigeWeise aus. Die Stellungen dieses Tanzes sind so reizend, dab man sie nicht selten von den Europäischen Tänzern auf dem Theater San Pedro de Alcantara nachgemacht und mit dem rauschendsten Beifall aufgenommen sieht”. 5 “Die National-Tänze werden nur von einzelnen Paaren ausgeführt; statt der Castagnetten schnalzen sie mit den Fingern beider Hände mit so groben Fertigkeit, da man in der Ferne der Ton der Castagnetten zu hören glaubt. Von mehreren zugleich wird der Faddo, ein der Afrikanern nachgeahmter Tanz aufgeführt, wozu die Tanzenden singen; er besteht in Verdrehungen und Annäherung des Körpers, welche man in Europa äuberst unanstandig finden würde. Beide Geschlechter tanzen vortrefflich, mit Anmuth und einem Feuer, welches den Zuseher unwillkührlich zum Theilnehmer ihrer Freude macht; man hat Mühe, die tanzende Schöne, mit blitzenden Augen une einer unnachhnlichen Lebthaftigkeit in allen ihren Bewegungen, wieder zu erkennen, die man vielleicht Tages vorher in ihrem Hause, nachlässig und Schlaf auf dem Sopha ruhend, zu träge zu sprechen und die Augen ganz zu öffnen, gesehen hatte.“ 120 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Tal como os viajantes estrangeiros do início do século XIX também há, como seria de esperar, autores lusófonos do mesmo período, tanto portugueses como brasileiros, que se referem à dança do Fado no Brasil. É o caso do poeta Felisberto Inácio Januário Cordeiro, conhecido pelo nome arcádico de Falmeno, que na edição de 1827 das suas Poesias de um Lisbonense, publicadas no Rio de Janeiro, inclui os seguintes versos: Em espaçoso terreiro Gentes vi bailar mui bem Mimoso Fado e também Engraçado Tacorá Nas belas noites de lua Quando é lindo o Paquetá. […] Sem largar das mãos a lira, Pelo prazer transportado, Celebro os bailes do Fado, Tacorá, carangueijinho... Nestas chulices de Amor Paquetá é mui bonsinho. (Moita, 1936, p. 58-59) Já em 1854-55 o romancista brasileiro Manuel António de Almeida, nas suas Memórias de um Sargento de Milícias, baseadas nos relatos que lhe havia feito um velho militar reformado que vivera no Rio a partir de 1817, menciona, a propósito de uma festa de batizado realizada num salão doméstico do Rio: […] os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar [=Portugal], cantavam ao desafio, segundo os seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos da terra [=Rio de Janeiro], dançavam o fado […] (Almeida, 1941, p. 26) Daí a pouco começou o fado. Todos sabem o que é o fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito. O fado tem diversas formas, cada qual mais original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum tempo, fazendo passos os mais dificultosos, tomando as mais airosas posições, acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois pouco a pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe diante algumas negaças e viravoltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que enfim acompanha-se de novo. Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado. Outras vezes um homem e uma mulher dançam juntos; seguindo com a maior certeza o compasso da música, ora acompanham-se a passos lentos, ora apressados, depois repelem-se, depois juntam-se; o homem às vezes busca a mulher com passos ligeiros, enquanto ela, fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços, recua vagarosamente, outras vezes é ela quem procura o homem, que recua por seu turno, até que enfim acompanham-se de novo” Há também a roda em que dançam muitas pessoas, interrompendo certos compassos com palmas e com um sapateado às vezes estrondoso e prolongado, às vezes mais brando e mais breve, porém sempre igual e a um só tempo. Além destas há ainda outras formas de que não falamos. A música é diferente para cada uma, porém PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 121 sempre tocada em viola. Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga às vezes de pensamento verdadeiramente poético. Quando o fado começa custa a acabar; termina sempre pela madrugada, quando não leva de enfiada dias e noites seguidas e inteiras. (Almeida, 1941, p. 52-53) Por sua vez, em 1834, num poema inglês de autor anónimo alusivo à vida no Rio de Janeiro no fim do período colonial e no Primeiro Império, encontramos uma curiosa estrofe que dá conta da forma como este Fado dançado (que uma nota final do texto define como “uma dança voluptuosa dos africanos” [Fulminense 1834,78]), depois de uma fase de apropriação pela música de salão das elites e até da Corte portuguesa durante o período de residência desta no Rio, teria entretanto sido relegado por estas ao contexto popular, nomeadamente ao circuito marginal da prostituição urbana: Escravos dos seus senhores e escravos de todos os sentidos A sua dança de roda festiva ainda hoje pode ser vista. Vós, que vos ofendeis com a sóbria valsa, Nunca vistes, julgo eu, dançar o Fado! Embora em tempos admirado pela Rainha da Lusitânia Quando a sua corte régia chegou da Europa, Há muito tempo que os seus labirintos foram abandonados Pelo seu sexo, excepto por aquelas cuja fama manchada É proclamada pelo seu comportamento dissipado e pelo seu traje servil. (Almeida, 1941, p. 12)6 Refira-se, de passagem, por analogia, uma outra fonte ligeiramente anterior, ainda de 1826, que reforça não só a associação comum do género pela opinião pública ao universo da prostituição, nesta sua fase, como o seu enraizamento brasileiro: o facto revelador de o geógrafo italiano Adriano Balbi incluir numa sua obra menos conhecida do que o Essai statistique, a Introduction à l’Atlas ethnographique du globe, de 1826, na secção intitulada “Substantivos em uso no Brasil e desconhecidos em Portugal”, o substantivo “fadista” (a par com “fandinga”) – na acepção de “mulher do fado”, ou seja, do “mau destino” – como sinónimo de “fille publique”, isto é, de prostituta (Balbi, 1826, I, p. 173-74).7 Esta persistência do Fado dançado no Brasil ao longo do século XIX, embora já excluído dos salões e inserido exclusivamente nas práticas expressivas populares, será atestada por numerosos testemunhos da época. Quando, por exemplo, em 1852, o viajante inglês Charles Mansfield refere ter assistido, numa roça do interior da província do Rio de Janeiro, a uma dança de mulatos que considera “uma espécie de versão refinada das danças dos negros […] tão delicada como as de um salão de baile inglês” (Mansfield, 1856, p. 82),8 sem no entanto discriminar expressamente a qual dela se refere, um académico do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, António Deodoro de Pascual, indignado com essa associação da Cultura brasileira às práticas culturais “de usança entre as classes menos cultas do povo brasileiro”, em que ele próprio vê apenas “arremedos mímicos das paixões dominantes do caracter primitivo”, contesta-a em termos tão veementemente racistas como elucidativos na especificação que nos oferece: 6 “Slaves to their lords, and slaves to every sense, / Their festive dance to circle still is seen. /Ye, who at sober waltzing take offence, / Have never seen the fado danced, I ween! / Though once admired by Lusitania’s Queen, / When first the royal court from Europe came, / Long have its mazes abandon’d been / By all her sex, save those whose tarnish’d fame / Their dissipated mien and slavish garb proclaim.” 7 « Noms en usage au Brésil et inconnus au Portugal ». 8 “[…] a sort of refinement on the Negroe dances […] quite as sensible as those of an English ball-room”. 122 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Alviçaras para os batuquistas, dançadores de fado e lunduns da roça brasileira! Deveis saber que, para o modo de ver de um inglez requintadamente civilizado, como era Mansfield, o vosso fado, lundum e batuque são danças tão airosas e sympathicas como as de uma salão de baile na Inglaterra. Tem proposições este bom Inglez que de facetas passão a ser graçolas. […] Não há viajante nem historiador que nos não descreva os bailes dos indianos da America e dos negros como a expressão mais apurada da voluptuosidade, podendo-se facilmente conhecer nos seus movimentos a paixão que a dança quer expressar. […] Segundo o que vejo, se Mansfeld tivesse ficado entre os irmãos pretos – como elle chama os negros – por alguns mezes, teria imitado a Catão o censor, tomando lições de fado, batuque e lundum, para introduzir este refinamento das danças dos pretos nos salões de baile da Grãa-Bretanha. (Pascual, 1862, p. 139 e 141) Todas estas descrições abordam sobretudo as conotações morais da dança do Fado e sublinham em particular a sua natureza sensual, face à qual hesitam entre a condenação moralista e uma irresistível sedução. Se sistematizarmos os qualificativos empregues pelos vários autores, para Freycinet, ela seria “lasciva”, “indecente” (ainda que menos do que o Lundum) e “voluptuosa”; para Schlichthorst, “imoral” e – mais uma vez – indecente” e “voluptuosa”, ainda que também “expressiva”, “encantadora”, “natural”, “doce” e “fascinante”; para Weech, “indecorosa” aos olhos europeus, mas apesar disso notável pela “elegância”, pela “energia” e pela “alegria”; para Falmeno, “chula” mas “mimosa”; para Almeida, de novo “voluptuosa” e ao mesmo tempo “variada”, “apurada”, “original”, “dificultosa”, “airosa” e “ligeira”; para o autor de O Fulminense “escrava de todos os sentidos” e “festiva”. Quanto à coreografia, propriamente dita, as várias descrições podem sintetizar-se em várias alternativas que são complementares entre si: – uma dança de pares em que o homem e a mulher ora se aproximam ora se afastam, numa sugestão de um ritual de sedução, umas vezes por iniciativa de um, outras vezes do outro; – uma dança de roda em que um ou uma solista vai desafiando alternadamente, para um movimento semelhante, um ou outro dos parceiros ou parceiras; – uma dança de roda coletiva, sem formação de pares individualizados. Quanto aos passos e gestos que integram estas várias possibilidades, os autores identificam os seguintes: – o estalar dos dedos com os braços ao alto, simulando o som das castanholas; – o “ondular suave” e o “tremer” do corpo, possivelmente pelo rodar dos quadris; – a aproximação e afastamento alternados dos dois parceiros, parecendo a descrição “dançam juntos” sugerir que os corpos se tocam; – o sapateado “estrondoso e prolongado”; – ocasionalmente, o bater de palmas a compasso. Não subsiste nenhuma representação iconográfica explícita da dança no Fado no contexto brasileiro, mas estas descrições parecem corresponder de forma muito próxima à imagem do casal de dançarinos negros retratado na célebre gravura intitulada “Negroes begging for the festival of N. S. d’Atalaya”, que é reproduzida pelo autor anónimo identificado apenas pela sigla A.P.D.G. nos seus Sketches of Portuguese Life, de 1826, ambos frente a frente, de joelhos fletidos, quase a tocarem-se, e ela de braços erguidos a estalar os dedos (APDG, 1826, p. 285). É, de resto, como veremos, uma PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 123 imagem muito semelhante, na postura corporal e nos movimentos sugeridos, às que encontraremos já em Portugal, atribuídas expressamente ao Fado, na segunda metade do século XIX.9 – o acompanhamento do Fado pela “banza” (designação metafórica habitual na época para associar a guitarra portuguesa entretanto relegada para o uso popular, de uma forma pejorativa, a um instrumento de cordas africano, e portanto “primitivo”); – a simultaneidade do canto e da dança; – o “rebolar” das dançarinas, “como pretas”, sugerindo o “ondular suavemente” dos quadris referido nas descrições sobre o Fado afro-brasileiro. Figura 1: Dança de terreiro de negros na gravura “Begging for The Festival of N. S. d’Atalaya”, in A.P.D.G., Sketches of Portuguese Life (Londres: Geoffrey B. Whittaker, 1826) A dança no Fado português oitocentista César das Neves e Gualdino Campos, na nota explicativa que acompanha no seu Cancioneiro a transcrição do Fado da Severa (nº 454), afirmam: Este fado, que data dos meiados do presente seculo, é o typo primordial dos fados populares lamentosos, mais para ser ouvido como romance do que para ser dançado, pois lhe falta o rhytmo e o movimento caracteristicos. (Neves e Campos, 1893-98, III, p. 127) A conclusão desta observação é inequívoca: na década de 1890 coincidiam ainda na prática do Fado uma execução exclusivamente musical, correspondente aos fados “lamentosos”, e uma execução simultaneamente cantada e dançada, própria dos fados com “rhytmo e movimento caracteristicos”. As fontes portuguesas que apontam para esta associação simultânea do Fado ao canto e à dança remontam logo praticamente aos primeiros testemunhos da prática do género em Portugal. Já em 1833 o autor anónimo dos Queixumes das pequenas à vista da próxima mudança, que se identifica apenas como um “um ratão já de cabelos brancos” descreve assim em verso as canções que ouvia então executar numa “casa do fado” – ou seja, num bordel – onde, nas suas palavras, ia pecar “com as fadistas”: [...] Que ao som da Banza sebenta O Bóte-laré cantando E o Ai-lé qu’estaré qu’és tu Como pretas rebolando, [...] (Moita, 1936, p. 275-280) Esta pequena quadra é muito esclarecedora, a vários níveis, confirmando: – a associação deste primeiro Fado lisboeta ao circuito das tabernas e da prostituição; 9 124 A este respeito veja-se a documentação compilada em Moita (1936); Carvalho (1946); e Tinhorão (1988, 1994 e 1999). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Figura 2: O Lundum numa Tasca da Madragoa. Litografia de Palhares, 1865. Uma prostituta branca e um marujo negro dançam o Lundum numa taberna de Lisboa. Em 1864, uma das mais prestigiadas revistas europeias, a Revue des deux mondes, num artigo sobre Portugal em que se descreve de passagem a vida quotidiana dos estudantes da Universidade de Coimbra, é também ela clara no sublinhar desta ligação do canto à dança no Fado: Coimbra é para todos a recordação das loucuras de ontem, é a cidade em que se passou o belo tempo da juventude. Quantas gerações tiveram as suas paixões nas ruas da Sofia e do Visconde da Luz! Será preciso mais do que poder apresentar-se como “bacharel formado”, como quem diz doutor, ter passado alguns anos na pátria do Fado, essa dança tão querida ao estudante, essa dança para a qual cada um compôs as suas coplas mais alegres? (“Portugal” 1864, p. 209)10 Igualmente Teófilo Braga, em 1867, na sua História da Poesia Popular, observa esta mesma realidade, introduzindo o conceito importante do “bater o Fado”: O rhytmo do canto é notado com o bater do pé e com desenvoltos requebros, a dança e a poesia auxiliam-se no que se chama bater o fado. (Braga, 1867b, p. 90) À luz desta explicação compreende-se melhor esta noção de “bater o Fado” que surge repetidamente nos versos de Fado da época, designadamente naqueles que o mesmo Braga publica, ainda “Coïmbre est pour tous le souvenir des folies d’hier, c’est la ville où s’est passé le beau temps de la jeunesse. Combien de générations ont pris leurs ébats dans les rues da Sofie et du Vizconde da Luz! pouvoir se dire bacharel formado, comme qui dirait docteur, après avoir passé quelques années dans la patrie du fado, cette danse si chère á l’étudaint, cette danse pour laquelle chacun a composé ses plus joyeux couplets, en faut-il davantage?”. 10 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 125 nesse ano de 1867, na secção de “Fados e canções de rua” do seu Cancioneiro Popular: Se o padre santo soubesse O gosto que o fado tem, Viera de Roma aqui Bater o fado também. (Fadistas) Até o próprio Sam Pedro Á porta do céo sentado, Ao ver entrar a Severa Bateu e cantou o Fado. [Fado da Severa] (Braga, 1867a, p. 140-141) Já em 1903, Pinto de Carvalho acrescentará, entre os poemas de Fado que compila na sua História do Fado, outros versos de teor semelhante e sensivelmente da mesma época, cuja autoria atribui à própria Maria Severa: A Chicória do Sarmento, Que bate o fado tão bem, Quando “toureia” o Sedvem Chora de contentamento. P’ra mim o supremo gozo É bater o fado liró, E ver combater c’um boi só O Conde de Vimioso. (Carvalho, 1903, p. 80) Mas mais importante ainda é o facto de o mesmo Pinto de Carvalho explicar seguidamente, nessa sua obra fundamental para a história do Fado, esta dupla vertente performativa do género, acrescentando alguns detalhes reveladores: O fado tem duas espécies de dança: bater o fado e a dança do fado propriamente dita. Bater o fado é uma dança ou meneio particular em que entram duas pessoas ou três: uma que apara (ou duas, às vezes) e que deve estar quieta e o mais firme possível, e a outra que bate, dando regularmente as pancadas com a parte inferior das coxas nas coxas das pernas do que apara, e meneando-se com requebros obscenos. (Carvalho, 1903, p. 276) Esta explicação vem explicar de forma mais sistemática algumas referências à dança na prática do Fado que encontramos na Literatura romântica portuguesa anterior e que não têm sido até hoje devidamente valorizadas nesta perspetiva. Uma delas provém do romance Honra ou Loucura, de Arnaldo Gama, publicado em 1858 mas cuja ação se passa no meio da boémia universitária de Coimbra no final da década de 1840. Numa das cenas do romance, um grupo de estudantes embriagados, encabeçado pelo fadista “Faísca”, irrompe com grande algazarra numa casa particular, convencido de que está a entrar no bordel que outrora funcionara naquela mesma morada. O “Faísca” convida os colegas a juntarem-se-lhe num fado, em que, segundo as suas próprias palavras, simultaneamente 126 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER “canta, toca e dança”: – Á pandega, ao fado; deite-se-lhes o soalho abaixo, despedacem-se os tacoens, haja gaudio! – Uhi! Uhi! Abaixo o orador. – Abaixo o massador! – Fóra o pulha! – Eu vou afinar a banza – continuou elle – depois bater até mais não poder. Olé, quem canta? – Eu. – Eu. – Eu – Eu. – Todos – disse o da viola afinando – todos, vá de pandega; rompa o côro. Senhor Joaquim D’Oliveira Mattos &c. &c. E este amphiguri obceno foi entoado em côro ao som da bandurra, por entre um alarido infernal. No meio porém da vozearia, o rapazelho calou de repente a musica, atirou um salto para o meio da casa, e gritou, levantando a viola: – Aqui, ao fado; vá, bata-se de rijo, vá o mundo abaixo. E bateram de rijo; o soalho oscilava debaixo de quarenta ou cincoenta tacoens, cada qual mais apostado a dar em terra com toda aquella machina carunchosa. De repente ouviu-se a voz estentoriana de João de Mendonça. – E o sapateiro? – gritou elle. – O sapateiro… o sapateiro!... – replicou o da bandurra – E que importa! Que é um sapateiro a par do fado? Vá, de rijo, rapazes, eu cá faço tres officios; toco, canto, e danso. – Valeu. Abaixo o satapateiro! – gritou João de Mendonça, batendo a bom bater no soalho com aquelles dois pés musculosos, armados de tacoens, cravejados de pinos de ferro, de cinco reis cada um. Seguiu-se um arruído infernal; voltas e vira-voltas, repiques de tacoens, saltos, emfim, mil diabruras faziam tremer a casa. Por cima de tudo ouvia-se a voz esganiçada do rapazelho, que berrava a bom berrar:Torradinhas com manteiga, Torradas não quero mais, Eu sei falar inglez, I say, goddam your eyes. (Gama, 1858, p. 33-34) Esta descrição da “alegria diabólica e a audácia petulantes” com que os estudantes “volteavam n’aquella dansa infernal” – para continuar a citar Arnaldo Gama – oferece-nos um conjunto de informações preciosas sobre o “bater o Fado”, que, sintomaticamente, retoma muitos dos parâmetros já referidos pelos autores que nos tinham descrito o Fado afro-brasileiro: – o acompanhamento instrumental por um único instrumento (aparentemente uma viola, ainda que o uso pelo autor de várias designações como metáforas literárias livres – “banza”, “bandurra” – torne difícil uma identificação taxativa); – o canto pelo próprio instrumentista, acompanhado por vezes – porventura no refrão, que PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 127 em alguns fados do Cancioneiro de César das Neves vimos já parecer estar associado a quadras iniciadas pelo verso “Torradinhas com manteiga” – por todos os intervenientes em coro; – a simultaneidade do canto e da dança, na execução de um fado claramente semelhante a muitos dos que são reproduzidos no referido Cancioneiro sem aí terem qualquer menção expressa a essa componente dançada; – a dança em grupo, só por homens; – o sapateado coletivo; – a inclusão de saltos, “voltas e vira-voltas” na coreografia. Este elemento do salto como parte dos movimentos característicos desta dança do Fado aparece-nos igualmente referido numa das poesias publicadas por José Inácio de Araújo numa sua coletânea de versos de 1862. Depois de num outro soneto anterior, alusivo às danças executadas pelos lisboetas no Passeio Público, ter considerado que, dentro destas, o Can-Can “é coisa boa, pois do fado e da polka é lindo excerto” (Araújo, 1862, p. 38), o autor, no soneto humorístico “A uma pulga”, dirige–se ao parasita em termos metafóricos, como se ambos estivessem a dançar o Fado, avançando um contra o outro para “baterem” e “apararem”, como na explicação de Pinto de Carvalho: Se te querem punir do arrojo insano Tu safas-te a pular como um fadista: Vieste contra mim – fui-te na pista Até que te filei […]. (Carvalho, 1903, p. 43) Na mais antiga das peças de Teatro Musical lisboeta dedicadas à temática do Fado, O Ditoso Fado, do dramaturgo Manuel Roussado, estreada em 1869, o personagem principal, o advogado Dr. Saraiva, vive o dilema terrível de tentar esconder à noiva a sua paixão pelo Fado, que considera indigna de um homem da sua posição social respeitável mas a que não consegue resistir. Segundo a sua própria confissão: Em ouvindo um fadista a explicar-se no instrumento (faz gesto de quem toca guitarra) não está mais na minha mão, começo a sentir cócegas na garganta e nos calcanhares. (Roussado, 1872, p. 7) Segundo as didascálias da peça, ao ouvir ao longe uma guitarra Saraiva tem de lutar para conseguir “vencer os calcanhares que pucham para as escovinhas, sapatiadinho do fado”, e quando, para sua grande surpresa, acaba por se deparar com a sua noiva, Violante, a cantar também ela o Fado, “os pés principiam a ir para o sapatiadinho” (Roussado, 1872, p. 12-13). Importa sublinhar aqui o uso do termo sugestivo “escovinhas” como sinónimo explícito do sapateado característico do Fado, porque o veremos, mais abaixo, ser utilizado também por Rafael Bordalo Pinheiro no mesmo sentido, o que parece atestar o seu uso idiomático no jargão interno do género até pelo menos ao final do século XIX.11 Na peça com que o escritor Gustavo Soromenho procura, dois anos mais tarde, responder ao sucesso da de Roussado, Triste Fado!, o criado Paulino revela à sua amada Maurícia como levou o patrão, o Sr. Matos, com uma amante aos retiros do Quintalinho, do Papagaio, dos Pacatos, ao Colete Encarnado, do José dos Caracóis e do Perna de Pau e o viu em todos eles tocar guitarra: Maurícia Que me dizes; pois o sr. Mattos toca guitarra?! O mesmo termo - “escovinha” - é ainda hoje utilizado por alguns Ranchos Folclóricos para designarem um dos passos do Corridinho (Cf. “Corridinho”, Castelo-Branco, 2010). 11 128 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Paulino Se toca! Aquillo parece um pianinho! Assim que elle começa a tocar o Rigoroso, não há pés que possam estar quietos! [Soromenho, c. 1890, p. 6) Em 1879, por sua vez, no seu romance Eusébio Macário, subintitulado “História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais” e cronologicamente localizado, por conseguinte, na década de 1840, é Camilo Castelo Branco quem nos fornece abundantes referências da mesma natureza sobre a componente coreográfica do Fado. José Macário, o “Fístula”, filho do personagem central do romance, “cantava fados com grande azedume mefistofélico” e às vezes […] tocava-lhe um fado que punha tremuras involuntárias nas nádegas do pai; ao mesmo tempo a Custódia [= irmã de José], lá dentro na cozinha, sacudida pelos bordões gementes da viola, fazia saracotes de quadris, batendo o pé à frente na atitude marafona de quem apara nos rijos fados batidos […] (Branco, 1879, p. 6-7) [...] a mãe palpitava-lhe nos ilhais quando, de repente, largava a mão do almofariz e começava a sapatear fados, e a berrar desentoado palavras do conde de Vimioso a Severa: […] A Custódia, que estava em cima a engomar as saias e a cismar no manicórdio, largava tudo, punha as mãos nas ancas, bamboava-se, e expedia da garganta muito afinada para canções garotas a trova que ouvira ao Cosme, estudante de Coimbra, filho do brasileiro da Casa Grande. […] E zás-trás, palmadas rijas, um rebater trémulo de calcanhares no sobrado, e uma casquinada explosiva, uma doidice. (Branco, 1879, p. 34-35) Já de 1884 é o conto Manuel Mocico, de Trindade Coelho, cujo manuscrito original está datado de 17 de Abril desse ano mas que só viria a ser editado em 1947, onde o protagonista é descrito nos seguintes termos: Em assuntos de patuscada é ele que dá as leis. Não se faz nenhuma sem previamente avisar o Mocico. É ele que sabe onde há o melhor vinho, a carne mais tenra, os leitões de cinco semanas. Tem dedo para aqueles fadinhos, como ele lhe chama, porque no fim canta sempre o fado e dança-o a carácter, com uns requebros que só ele sabe e uns tics de sensualidade que fazem dele a melhor das caricaturas. Põe no sapatear toda a perícia de um dançarino de profissão e nas notas todas a melancolia de uma balada ou a garridice brejeira de uma opereta. (Ramos, 1947, p. 253) São, de facto, múltiplas as fontes literárias oitocentistas que referem esta associação estreita do canto à dança na prática performativa de pelo menos uma parte significativa do repertório do Fado e que deixam claro que essa componente dançada em nada afecta a expressividade do canto. Se passarmos da Literatura à iconografia da época, por sua vez, são várias as representações da prática do Fado que mostram igualmente de forma incontornável a presença da dança no contexto do género. Uma das mais reveladoras é uma célebre caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro intitulada “O Fado da Política”, surgida no António Maria de 5 de Abril de 1883, em que se mostra um ambiente de taberna em que vários políticos destacados do rotativismo monárquico final, como Fontes Pereira de Melo, Mariano de Carvalho e Anselmo José Brancaamp, aparecem em posição de dança, de guitarra na mão, com os braços no ar, os dedos a estalar e os joelhos flectidos, procurando fazer cair com uma pernada de coxa contra coxa a figura do Zé Povinho, tudo isto com a legenda: Toda a gente bate o fado, PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 129 Todos fazem “escovinhas”, Mas é sempre o Zé, coitado, Quem apanha as “pancadinhas” [...]. (Sousa 2000, p. 8) O mesmo Bordalo é, por outro lado, o autor de um desenho que mais tarde utilizará, sob o título O Fado, como motivo decorativo central para uma peça de cerâmica da sua fábrica, integrada numa série dedicada a várias danças. Nela se vê um casal a dançar, com o homem de mãos no colete, a sapatear em posição estática, pronto para receber o embate da mulher, que se aproxima dele, já avançando a barriga. Todas estas evidências não excluem, por certo, que muito do Fado português oitocentista se destinasse a uma interpretação puramente musical, “para ser ouvido como romance”, nas palavras de César das Neves e Gualdino Campos, que acima citámos, e que é objeto de numerosas descrições literárias e representações em gravuras da época. Teófilo Braga define-a em 1867, na sua História da Poesia Popular Portuguesa: O Fado, como a xacara moderna, em que a acção senão tira da vida heroica, é uma narração detalhada e plangente dos sucessos vulgares, que entretecem o existir das classes mais baixas da sociedade […] seguindo fielmente uma longa narrativa, entremeada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade com uma forma dolorosa, observação profunda na descripção dos feitos, graça despretensiosa, com uma monotonia de metro e de canto, que infunde pesar, principalmente na mudez ou no ruído da noite, quando os sons sáem confusos do fundo das espeluncas, ou misturados com o riso dos lupanares. (Braga, 1867b, p. 89-90) Figura 3: Rafael Bordalo Pinheiro, “O Fado da Política”, in O António Maria (Lisboa, 5 de Abril de 1883). Os líderes políticos do Rotativismo monárquico tentam seduzir o Zé Povinho com o Fado. Uma imagem similar nos aparece na capa ilustrada da edição em partitura do fado Se Fores Meiguinho, com letra de Campos Monteiro e música de Alberto Pimenta, que não traz data de publicação mas de que um arquivista da Biblioteca Nacional registou a entrada naquela instituição, por depósito legal, a 7 de Novembro de 1900. O desenho original é de um dos mais conhecidos rivais de Bordalo Pinheiro, M. Pinto, o famoso caricaturista político do jornal Charivari, que aqui representa o rei D. Carlos a tocar guitarra enquanto José Luciano de Castro, seu Primeiro-Ministro entre 1897 e 1900, dança diante dele o Fado, mais uma vez na habitual posição dos braços elevados a darem estalos como castanholas e dos joelhos a dobrarem para baterem no parceiro. Mas mesmo em relação a esse Fado, contudo, Braga acrescenta que, da parte do fadista, “o rhtytmo do canto é notado com o bater do pé e com desenvoltos requebros” o que porventura se poderia considerar, aliás, como a raiz remota de algum movimento corporal cadenciado que ainda hoje se pode encontrar na performance de alguns fadistas tradicionais, como era, por exemplo, o caso de Alfredo Marceneiro. Do que não há margem para dúvida, porém, face ao manancial de informação documental nesse sentido que hoje já conhecemos, é de que a par com esse Fado exclusivamente musical, com maior ou menor componente de movimento corporal implícita, houve sempre, ao longo de todo o século XIX, uma tradição de dança do Fado associada ao canto, de que encontramos manifestações até aos alvores do século XX. É uma tradição que, afinal, se entronca numa longa linhagem de danças cantadas ibéricas, como a Folia, de que temos múltiplos exemplos desde o século XV e que se cultivavam, ora de forma exclusivamente instrumental, ora com a participação do canto. A estas foram-se juntando a partir logo do século XVI numerosas danças que podiam ter igualmente componente vocal, surgidas na América colonial, por fusão entre as matrizes ibéricas originais e as influências ameríndias e africanas, a começar, no caso espanhol, pela Sarabanda e continuando, por exemplo, pelo século XVIII afora, no que respeita ao império português, com a Fofa e mais tarde com o Lundum, todas elas vindas das colónicas para as metrópoles peninsulares e aqui aclimatadas e reprocessadas ao gosto do público e dos músicos locais. Tampouco pode negar-se que as características coreográficas fundamentais desse “bater o Fado”, tal como acabamos de as listar a partir das descrições da época, são afinal as mesmas que nos dão a conhecer as fontes relativas ao Fado afro-brasileira das primeiras décadas do século XIX, confirmando , também neste aspecto, uma linha de continuidade que só a cegueira de um preconceito eurocêntrico primário pode pretender continuar a ignorar. Figura 4: M. Pinto, gravura para Alberto Pimenta, Fado Se Fores Meiguinho. D. Carlos, Rei de Portugal, toca guitarra e dança o Fado com o seu Primeiro-Ministro. 130 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 131 Referências bibliográficas ALMADA, D. José d’. Ambições de um eleitor. Lisboa: Escriptorio do Theatro Moderno, 1857. ALMEIDA, Manuel António de. Memórias de um Sargento de Milícias. São Paulo: Livraria Martins, 1941. 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Estas estratégias, levadas a cabo em parte pelo estímulo da governação do Antigo Regime, mas ainda pela intelectualidade setecentista, tinham objetivo político implícito, com forte apelo à construção de uma hierarquia social e de um modelo civilizatório compatível com a visão de mundo que viria a se desprender do modelo industrialista globalizante e homologador do Norte europeu e americano. O expediente sócio-comunicativo do teatro-musical praticado no ambiente luso-brasileiro, das cidades litorâneas às fronteiras mais avançadas, constituiria tradição que rompeu os limites da era colonial e continuou a ser aplicado ao longo do século XIX, num aparente diacronismo com forças e tendências internas e externas. Tratam-se de títulos, gêneros, agentes e práticas, que enriquecem o panorama cultural para além do entendimento estabelecido e ampliam o horizonte da música e das suas relações num momento chave para o desenlace da modernidade. Existe hoje uma urgência do tempo presente, encapsulado entre um futuro que não construímos e um passado que desconhecemos. A problemática do futuro conclui-se da nossa mudez subalterna perante aqueles a quem nos perfilhamos. É o norte geográfico com seu eloquente discurso de sucesso, em que tudo está excessivamente industrializado e se traduz em números. Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França, são os principais países que encantam o olhar brasileiro. Aquele que não passou por aí é visto como menos músico no sul geográfico, ou seja, o mediterrâneo europeu, já uma zona de fronteira ou na melhor das hipóteses uma semi-periferia, e na América Latina, esta já de muito considerada a periferia. Mais que isso, o músico sente-se por motivos diversos, menos músico, porque mesmo que volte ao seu ambiente periférico de origem, no caso o Brasil, terá, no argumento de muitos, piores oportunidades de trabalho. O capitalismo industrialista proporcionou às artes a institucionalização de uma aparelhagem homologadora: para ser artista (compositor, intérprete etc) é necessário seguir um caminho que passa pelo conservatório certo, pelo palco certo, ser recenseado pelos críticos certos dos periódicos certos, circular enfim pelos meios propícios, construindo relações que assim o corroborem. Nenhum destes está no sul geográfico. E só eles, os certos, autorizam a fazer arte, a “verdadeira” arte. Só eles dizem quem é compositor, quem é intérprete e quais são as obras que devem ser escutadas. Por conseguinte, só eles reconhecem quem tem patrimônio e o que é patrimônio. Ao resto cabe o limbo oficial da história, disputando em magras PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 137 138 linhas de algum capítulo com maior desejo de cobertura panorâmica nas escassas páginas que os livros de história da música lhes dedicam. Assim, não só o presente, mas o passado também está emudecido. O patrimônio do Brasil, sul geográfico, continua padecendo do esquecimento, da falta de uso, da ausência de memória. A tal ponto que, passadas quase duas décadas de quando Curt Lange desvelou o patrimônio musical mineiro, Renzo Massarani ainda a considerava “mito empolgante e não demonstrado” (JB, Rio, 22.11.1964), duvidando de sua existência, exigindo entretanto que qualquer das obras encontradas pelo alemão devia ser entregue às autoridades nacionais (idem). Ou seja, sempre existira entre nós, mas entre nós nunca consideramos que tivesse existido; a partir do momento que passara a existir para o outro, então qualquer destas era boa o suficiente para ser nossa. Ainda assim, mesmo quando a coleção Curt Lange passou a ser abrigada e disponibilizada pelo Poder Público no Museu da Inconfidência em Ouro Preto nos anos 70, os músicos brasileiros especialistas no repertório em instrumentos de época demoraram-se até finais do século XX para dedicar-lhe um disco, não obstante já houvesse intérpretes nacionais do segmento da chamada Música Antiga a viver na Europa, formando-se nesta especialidade desde aquela época até os dias presentes. Atualmente, sem poder ignorar a enorme quantidade de partituras descobertas, intérpretes especializados ou não, aceitam-no, mas com reservas que variam em grau de depreciação: consideram o repertório de categoria inferior ao congênere europeu, ainda que diante dos meios de comunicação não ousem afirmá-lo, dissimulando sua opinião em frases politicamente corretas. Mas se nem o positivismo pragmático serve para convencer, que dirá das inúmeras evidências documentais das práticas musicais brasileiras a que não corresponde, infelizmente, a descoberta de uma folha de música sequer. Parece que é precisamente aí que começa a história que não se conta. O mais desconcertante é que, diante da incerteza do futuro e da descrença sobre o passado, cabe perguntar como se chegou aqui e em que ponto desta triste história tal coletividade se distanciou de si mesma e emudeceu sua voz. A resposta vai anacronicamente aparecendo à medida que desvelamos o nosso próprio repertório musical. Não porque ele ao surgir nos alegra, porque na verdade nos desconcerta, mas porque nele estão as evidências incontornáveis de nossa voz. Fato que vai se tornando conhecido no meio musicológico é o do acervo de Vila Viçosa conter número vultoso de obras musicais teatrais em língua portuguesa. A origem do espólio é a aquisição do Teatro de Manuel Luiz pelo Príncipe Regente Dom João, para servir de Teatro Régio, quando do estabelecimento da Família Real Portuguesa no Rio de Janeiro. A identificação de mãos brasileiras em muitos manuscritos confirma que o repertório foi amplamente manipulado, desde antes da abertura do Teatro de Manuel Luiz, em 1775 até o início do século XIX. (Cranmer, 2008) Os casos mais longevos parecem ser das duas óperas sobre texto de Antonio José da Silva, o Judeu (1705-1739), intituladas Variedades de Proteu e Guerras do Alecrim e Mangerona, que no acervo alentejano figura somente como Alecrim e Mangerona, nome pelo qual também se popularizou nos registros de ambos os lados do Atlântico, virando séculos. A primeira pode ter sido copiada a partir da década de 1760 e a segunda um decênio mais tarde. Ao lado delas, no mesmo repositório constam diversos títulos, alguns completos, mas a maioria em estado fragmentário, uns mais outros menos possíveis de fechar conjunto coerente. Os modelos são mais ou menos os mesmos. Um primeiro grupo compõe-se de traduções em português de títulos cômicos de Paisiello e Cimarosa, dentre outros de sua geração. São obras integralmente musicadas, em cujas partes podem ser lidas algumas atribuições de cantores, com destaque para o baixo João dos Reis [Pereira] ou a soprano Sra. Lapinha [Maria Joaquina da Lapa], para mencionar apenas dois bem conhecidos artistas do Teatro de Manuel Luiz. Há um segundo núcleo bem extenso e muito incompleto, de títulos em português, compostos mormente de árias, raros recitativos, a que podem corresponder publicações teatrais em folhetos. Neste caso, título e assunto coincidem, mas o texto de um não figura no outro e a suposição é de que se complementem num tipo de espetáculo em que linguagem falada substitui recitativos secos e a inserção de árias e eventuais recitativos acompanhados seja ao menos em parte um aproveitamento da música de outros autores. Nestes casos um texto próximo da composição de origem vem se adaptar à obra teatral em questão. Até o presente momento, já foram identificadas contrafactas de Gluck, Guglielmi e Di Majo (respectivamente em A Mulher Amoroza, VVGprática117.30; Alecrim e Mangerona, VVGprática7; e em partes de trompa alusivas a Belisário, VVGprática117.20). Outra possibilidade que ali se vê era a de transformar a opera seria já decaída de moda, em um híbrido que, a exemplo do que acontecia no dramma giocoso, via a inserção de personagens cômicos, de perfil popular, se articulando com o enredo principal, facilitando-lhe a compreensão para públicos de extrato mais amplo. Esse modelo, pelo que se depreende das dezenas de folhetos subsistentes, justificou-se sobretudo pelos arranjos de libretos metastasianos feitos em toda a Europa a partir de meados de setecentos para poder acomodar mudanças de gosto. Embora Metastasio não gostasse das cenas de conjunto, foi com certa resignação que assistiu a esta estratégia para manter ativos os seus textos na pena dos compositores do século XVIII tardio, sem que se saiba qual opinião teria da inserção de graciosos à maneira luso-brasileira. Chamadas comumente de comédias, tais obras ganhavam este nome por adaptar-se ao gosto português, conforme diziam as carátulas dos textos publicados, mas sobretudo por se adaptar ao gosto dos portugueses de ambos os hemisférios, trazendo o assunto dos meios elevados para a compreensão mais difusa e dando-lhe por vezes possibilidades diversas de interpretação. No acervo alentejano ainda se observam exemplares no todo ou parcialmente de um grupo de obras em menor dimensão, como serenatas e pastorais laudatórias, ao lado de cantatas e odes, que também prosperaram no tempo de Dona Maria I, garantindo um tom mais intimista ao espetáculo de Corte e institucionalizando a estrutura celebratória das datas cívicas em ambiente profano (papel que no ambiente religioso cabia ao Te Deum, geralmente de caráter majestático), que se espalhou pelo Brasil. Aqui se vê algo que bem se acompanha nas fontes literárias. No último quartel do século XVIII o repertório italiano já não era maioria em Lisboa e o repertório em português dominava teatros e tablados no Brasil, como aliás parece ter sido ao longo de toda a segunda metade de setecentos. Até mesmo dramas e tragédias estavam enxertados de música (e texto), acompanhados de entremezes, enriquecidos de bailados. Neste ponto, destaca-se mais uma vez a presença da obra de Antonio José da Silva, que ao invés de soar datada, era na verdade modelar para os artistas de finais de setecentos. O testemunho de Manuel Joaquim de Meneses, em 1850, sobre a ópera na virada dos séculos XVIII para XIX não deixa dúvidas de que o repertório do Judeu constituía-se numa tradição a ser seguida àquele tempo. Citando o primeiro repertório do Teatro de Manuel Luiz, Meneses menciona Italiana em Londres e Piedade de Amor, exemplares constantes em Vila Viçosa, e sustenta: “Além das peças líricas propriamente ditas, todos sabem que as antigas comédias eram intercaladas de árias e duetos tais como as de Antonio José. Labirintos de Creta, Variedades de Proteo, Precipícios de Faetonte, Alecrim e Mangerona, Encantos de Circe, etc” (Budasz, 2008, apêndice 8, p. 248-249) Esta última, se não for de Alexandre Antonio de Lima, deve na verdade ser engano de Meneses, que pretendia dizer os Encantos de Medeia. Não pode deixar de ser notada a ênfase sobre o autor do texto e a ausência de menção ao autor PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 139 da música. Uma das provas que parece corroborar o testemunho de Meneses encontra-se na cópia de Demetrio de David Perez (1711-1778), que está no acervo de Vila Viçosa (VVGprática85). Trata-se de um conjunto de partes cavas, copiadas por mãos brasileiras, pelo que basta comparar a escrita de claves, hastes de notas e texto de árias. A música desta ópera, feita sobre texto italiano de Metastasio (com inserções a cargo do compositor) estreou-se no ambiente cortesão do Teatro de Salvaterra em 1766 (BA 45-V-2/4). Mas no acervo alentejano aparece em tradução portuguesa e com um conjunto instrumental que deveria servir aos graciosos que lhe teriam sido inseridos (cujas partes vocais estão ausentes), sendo que dos nomes, destaca-se um Sacatrapo, mesma alcunha do gracioso de Os Encantos de Medeia (1735) de Antonio José da Silva. Alguns pontos da obra do Judeu podem ter contribuído para sua permanência. Após um predomínio do teatro espanhol que chegou até as portas da terceira década do século XVIII em Portugal, fato que também se viu no Brasil, o ciclo das oito óperas conhecidas de Antonio José, desenvolvidas no espaço de meia década, estabeleceu o repertório português no palco lusitano, afastando a baforadas largas o congênere castelhano. A afluência ao Teatro do Bairro Alto e depois ao da Mouraria, assim como as rapidamente subsequentes publicações destes textos nos anos de sua estreia ou, em edição completa não mais que cinco anos depois da morte do autor, somam-se a algumas características da narrativa. Nelas se encontram críticas diversas à sociedade do tempo, suas mentalidades e costumes, com fartos exemplos enumerados pela historiografia até os dias atuais. Mas há também uma forte carga de lusofonia culta, que se quis transmitir, sugerindo assim a intenção em estabelecer a própria linha de historicidade e construção de uma cultura nacional, baseada na língua e valores que ela comunica. Surge como evidência disto nas obras de Antonio José da Silva, as múltiplas citações a Camões, ícone atual da lusofonia, mas que chegaria a ser rejeitado por parte da intelectualidade peninsular. Parece ter sido a obra do quinhentista o primeiro ponto de certa veia nativista, conservando relação de causa e efeito entre fatores motivadores e aspectos de recepção, na dinâmica artística do Século das Luzes. A obra de Antonio José da Silva, recheada de tais valores, foi bem recebida por espectadores e pela crônica culta do tempo (Machado, 1741, p. 303). Filho de um advogado bastante conceituado, inclusive como poeta (Machado, 1759, p. 41), Antonio José da Silva parece ter compartilhado com o pai João Mendes da Silva a formação clássica, incluindo sua passagem pela Universidade de Coimbra. Dentre as várias referências diretas a Camões, como a conhecida glosa ao soneto Alma minha gentil que te partiste, estão inúmeras citações ao longo das óperas, seja de forma satírica ou elogiosa, ou através de passagens líricas amorosas ou heróicas. Em Guerras do Alecrim e Mangerona acumulam-se inúmeros trechos. Num deles, mais explícito, Dona Clóris relata ao falso médico, que é o gracioso Semicúpio, os sintomas de sua doença e de sua irmã: Proteo Se acaso te esqueceres Das lágrimas que choro A fé com que te adoro Lembrar-te saberá Cirene Não cabe na memória Teu louco desvario Pois do teu pranto o rio Do Averno só será Proteo Ah, lembra-te de mim Que terno te adorei Cirene Ah, esquece-te de mim Que tua não serei Proteu Mal poderei esquecer-me Cirene Mal poderei lembrar-me Ambos De tão violento ardor Proteo Porque tanta impiedade Cirene, infiel porque? Cirene Porque faltar não devo Da esposa à sacra fé Ambos Oh, falte o meu alento Mas não o meu amor Mas se o amor é fogo, é já aqui também monstro barroco. Em O Labirinto de Creta, Dédalo assim o proclama: “Deste nefando amor nasceu um monstro de duas espécies, pois era meio A dialética que move o tema encontra uma métrica de aproximação dos versos até que os amantes compartilhem lentamente o ritmo do discurso e por fim a mesma frase. Como é feito para a música, o trecho prevê que cantem juntos esta e ainda mais outra vez, por causa do formato musical para aí escolhido. O caráter heróico aparece nas citações do Averno e nas figuras da “sacra fé”, do “louco desvario”, potencialidades que as redundâncias barrocas típicas da escrita de Antonio José da Silva sabem elevar, evidenciando aí mais um elemento culto, a tradição da retórica gongórica, portanto peninsular, de que o brasileiro mostrou-se destacado representante. Mas dentre tais valores clássicos surgem também modelos mais antigos, igualmente fundamentados, que lastreiam a cultura lusófona. Antonio José da Silva ofereceu na sua obra PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Padecemos umas ânsias no coração, umas melancolias n’alma, uma inquietação nos sentidos, uma travessura nas potências, e finalmente, Senhor Doutor, é tal este mal, que se sente, sem sentir, que dói sem doer, que abrasa sem queimar, que alegra entristecendo, que entristece alegrando. (Silva, 1958, p. 250) 140 homem e meio touro, por cuja causa o chamaram Minotauro” (Idem, p.24). E é ao melhor estilo «entre a pena e a espada» que o conflito de amor entre Cirene e Proteu ganha uma ária a dois em As Variedades de Proteu, em que unidos pelo sentimento ela pede que ele se esqueça e ele que ela se lembre, do amor de ambos. 141 142 dramática sete versões de temas clássicos, ambientados em atmosfera da Antiguidade Clássica. São todas elas obras de cunho mitológico-literário, com discussões morais, propícias ao debate setecentista sobre a formação da sociedade, sem abrir mão da caracterização do ambiente pastoral, de forte atmosfera naturalista, aludindo a uma espécie de tecido social primevo, não totalmente fictício, na medida em que são localizáveis geograficamente, induzindo a uma raiz mediterrânica sócio-cultural. Parte disso evoca a tradição greco-latina ensinada nas escolas superiores portuguesas, mas em parte também evoca o orientalismo e a discussão de alteridade nele implícita, comum na obra de Camões. Aspectos árcades e parnasianos - na medida em que há uma idealização de mundo primeiro, conjugado com uma interpretação retórica, ganha enorme poder de atração na obra do Judeu, acrescentando aos personagens tradicionais as novidades constituídas pelos personagens graciosos. Eles têm nomes jocosos, relacionam-se aos personagens sérios como seus criados ou vassalos, assistindo-os, mas de certa forma também imitando-os. Com eles vem a adoção dos termos e construções do coloquial vernacular em uso no tempo. Aliás, a primeira evidência disto são os nomes dos graciosos: Semicúpio, que significa banho de assento; Chirinola, que quer dizer trapalhada, confusão; Chichisbeu, que é um galanteador inoportuno; Saramago que é nome de erva; Sacatrapo, que é um serviçal enrolão, etc. Com eles vêm os termos e diálogos chistosos durante as tramoias das peças. Expressões como desacidenta-te, desmorre-te, ensaramagar-se, marasmódica, salamanqueando, dentre muitas outras, tanto revelam um sabor popular, quanto uma inventiva literária. Assim, uma das estratégias mais eficazes de Antonio José foi justamente a interveniência destes graciosos e sua fala no contexto culto e venial dos personagens mitológicos e históricos, típicos da tragédia, dando a tais obras um sabor local. Ficava lançado um contraste que não só evidenciava uma linguagem corrente versus uma linguagem culta, como traduzia ao popular os costumes burgueses que geralmente emulavam a nobreza. Evidenciavam-se também os modos de ser e agir de classes diferentes, como a sociedade luso-brasileira do tempo. O brasileiro aí entenda-se como o mestiço, ou o negro imigrado, que deduz-se de alguns dos graciosos desde Antonio José da Silva, e vai ecoar século afora, como nos graciosos da versão portuguesa de Didone Abbandonata de Metastasio, que resultam no conjunto musical da Dido Desamparada que um dia pertenceu a Curt Lange. As citações ao Brasil andam aqui e ali, mais evidentes em casos como o de Fagundes, criada de Lancerote em Guerras do Alecrim e Mangerona, queixosa do marido que passara-se aos trópicos, ou menos notadas, como nos trejeitos de alguns criados. Seu envolvimento na trama objetiva transformar o destino trágico do patrão em um desfecho mais justo e feliz. Para isso são eles quem elaboram as tramóias, situações de erro e confusão que caracterizam a farsa. A farsa, como também passou a ser chamado o subgênero deste tipo de teatro, baseia-se nas reviravoltas de tais confusões, tem expedientes de riso, com as tentativas de amantes audaciosos em se encontrar escondidamente, de embuçados e travestidos, que não revelando a identidade, tentam afastar rivais ou se aproximar de suas amadas. É também expediente dos criados, da gente comum, em geral. A tentativa de mudança de destino dos personagens sérios e a elaboração das tramóias, expõe a opinião, por vezes sarcástica, do autor, que de maneira mordaz, revela um rígido mundo de convenções sociais, sustentado não raramente com sofrimento e hipocrisia. Em tais peças são retratadas desventuras de casamento por conveniência. O casamento sempre acontece, ao final, mas de maneira feliz, em que esteve envolvido sempre um par de graciosos, pelo menos. Guerras do Alecrim e Mangerona é a única destas peças que está ambientada diretamente no cotidiano do autor. Trata das pessoas comuns do tempo e não no mitológico passado e sua atmosfera lírico-literária. É também a que contém maior número de casamentos felizes, e de graciosos. Para Semicúpio, em Guerras do Alecrim e Mangerona, assim como para Caranguejo, em As Variedades de Proteu, há música sobrevivente no formato de rondó (Oráculo de amor, para o primeiro, e Quando vires o duro cutelo e Tomara fazer-me em mil pedacinhos, para o segundo), ou de minueto (Si in medicinis, para Semicúpio; Toda a minha alma, para Proteu). O autor da música em tais casos é Antonio Teixeira (1707-1774), com formação em Roma, à custa de uma bolsa concedida por Dom João V, e que para além do emprego no Seminário da Patriarcal, recai a atribuição da música de ao menos sete das óperas do Judeu. O rondó tornava-se comum nas óperas italianas de tema bufo ou cômico dos anos de 1730 e caracterizava o aspecto popular, assim como o minueto e as demais danças do tempo que porventura serviriam de modelo (Não posso ó Sevadi... para Semicúpio, que é uma giga ou canário). A substituição da ária da capo pelo formato rondó, ou árias em estrutura de dança, também se tornariam algo comum em fins do século XVIII e início do XIX, na obra de alguns portugueses como Antonio Leal Moreira (1758-1819), sugerindo que as escolhas musicais de Teixeira também repercutiram por bastante tempo. A ideia seria, portanto, destacar os mundos e interpretações diferentes que os personagens têm das convenções do cotidiano, de acordo com sua posição social. Por vezes, como é o caso de Caranguejo, existe a imitação, que também caracteriza a farsa. Ela toma figura na similaridade de situação do gracioso com o personagem sério. Enquanto Proteu assume formatos diferentes e apropriados, para estar perto de Cirene, Caranguejo, que pretende Maresia, tenta disfarçar-se de modo risível e até erótico. Tais alusões, que podem, ao menos em parte, ter sido consideradas de mau gosto na época, também expõem a dualidade platônica das classes sociais. Enquanto Proteu se disfarça em relógio para fazer sala a Cirene e, contar-lhe o tempo, velando sua presença (a ária em forma de minueto Toda minha alma), Caranguejo se disfarça de cadeira de braços, para obter contato físico com Maresia, no fito de seduzi-la. A já citada crônica oitocentista de Meneses menciona que na geração seguinte do Teatro de Manuel Luiz, novas peças foram surgindo, mas sempre traduzidas, ressalva. O expediente não se perdeu com a chegada do tempo imperial. O que se percebe de múltiplos testemunhos e documentos é que fizeram tradição. Os manuscritos existentes hoje em Pirenópolis, Goiás, apontam neste sentido, pois possuem diversos títulos dentre os quais traduções de Metastasio e óperas do Judeu. Assim como no conjunto de Vila Viçosa, já se vê um processo que lentamente passou a substituir a música, certamente adaptando-a ao gosto do tempo e às possibilidades dos intérpretes. Em As Variedades de Proteu, no acervo alentejano já se percebe que três árias haviam caído de uso e em seu lugar um trio com os personagens cuja música foi subtraída, ganhou espaço na ponta de um dos atos, revelando processo conhecido de adaptação entre os anos de 1760 e 1770. O trio em questão conserva a métrica e a retórica, típicas do Judeu, e a música em nada destoa do restante do conjunto, podendo ambos terem pertencido aos autores originais. Também se nota a ausência de cópia do ritornelo do único quarteto da peça, constatando que tal cópia manuscrita já pertencia ao tempo em que a ária da capo perdia espaço. Nas Guerras do Alecrim e Mangerona as intervenções do tempo são maiores. Além da ausência de árias originais, estão inseridas árias e arietas de nova inspiração estrutural, remontando às últimas décadas do século, sobre a invenção de texto novo. Nestes casos, o que se considera novo é o que está em desacordo com a maior parte do conjunto coerente. Os espécimes de Pirenópolis devem ter se originado no Rio de Janeiro, de onde veio o padre José Joaquim Pereira da Veiga, que saído da capital carioca por volta de 1800 demorou-se a atingir a velha Meia Ponte em 1817(Moura, 1992, p. 478). Chegado aí constituiu grupo artístico para o desempenho do material musical que trouxe consigo e a substituição eventual de partes ou as glosas para tais obras, foram praticadas até meados do século XIX (Idem), quando ainda se registram cópias. A música nestes casos é díspare. Um conjunto, que deve remeter a Aspacia na Síria, contém ainda PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 143 144 música setecentista, assim como parte de Encantos de Medeia ali preservada. Talvez mais uma ou outra ária em Variedades de Proteu e Anfitrião. Mas na maioria destes casos e na integralidade das Guerras do Alecrim e Mangerona, a substituição de música revela um empobrecimento relativamente grotesco, pois estão aí pequenas canções, de estrutura melódica e harmônica demasiadamente fracas, talvez motivadas pela precariedade de intérprete. Talvez fossem estas as «modinhas», que Teófilo Braga, já no século XIX, supôs que constituíssem o repertório do Judeu, do qual tinha em má conta (Braga, 1871, p. 152-153), ao que Galante de Sousa lhe contestaria (1960, v. 1, p. 127), mais por arroubos patrióticos, que ecoam diferenças de um passado colonial, do que propriamente por conhecimento de causa, pois este teatrólogo brasileiro não cita em momento algum as descobertas de Luís de Freitas Branco em Vila Viçosa, divulgadas publicamente nos anos 40, nem a repercussão que disso se fez naquela que era então a última edição das obras completas de Antonio José da Silva, aos cuidados de José Pereira Tavares, em 1957. A queda da qualidade musical nas contrafactas verificadas no repertório do Judeu em fontes brasileiras pode ser talvez um dos últimos momentos de um repertório que se não queria perder e que sobrevivia quase 150 anos. O uso que ainda hoje se faz desta música, copiada por volta de 1846 e possivelmente mais tarde, tem atualmente uma dimensão identitária muito localizada, com um certo sabor folclórico. A ruptura que as guerras constitucionais provocaram em Portugal da segunda para a terceira década de oitocentos tem muitos pontos de relação com o movimento da independência do Brasil. Ressaltam-se as consequencias para este viés pretendido aqui. Em Portugal, o liberalismo que influenciaria um processo de reforma resultante na monarquia constitucionalista, e portanto na chance de estratos médios tomarem parte em algumas decisões políticas, ao passo que garantiam alguns direitos, se deu através da adesão à mentalidade industrialista norte-europeia, para quem a menor interferência do estado significava a expansão de um sistema sócio-econômico ainda hoje vigente e de pesada dominação global. O Brasil, motivado com a perspectiva de se autogovernar, deflagra enfim o seu movimento independentista e como modo de o consolidar, após 1822, vê parte de sua intelectualidade trabalhar ideologicamente para rejeitar o passado cultural europeu, diga-se o português e aquele que por ele foi trazido (ecos ibéricos e italianos), para forjar novo caminho, agora sob a influência de novas lideranças políticas e culturais (Inglaterra, França, Estados Unidos), a despeito do discurso de autonomia que circulou pelo país. Mesmo a ópera italiana, ou à italiana, que retornava a partir de 1844 no Rio de Janeiro, e depois disso no restante do país, era a dos homologados pela platéia francesa (Donizetti, Verdi, etc), fenômeno ainda mais fortemente assistido em Portugal. Coube às pequenas vilas do interior das províncias, que na primeira metade do século XIX cresceram e inauguraram teatros, manter alguns dos vínculos com o passado através do repertório que se vê de exemplo no caso de Pirenópolis, mas extensivo a outros lugares. O surgimento de novas pesquisas neste sentido, sobre a expressão teatral e musical das cidades brasileiras do século XIX, e especialmente fora das capitais e do litoral, pode vir a contribuir para uma visão mais nítida do país. O movimento de grande parte do século XVIII, de inspiração iluminista, em reformar a sociedade, em alguns casos reconstruí-la, recomeçá-la (como se vê no movimento expansionista do Império Português em direção ao interior do Brasil, especialmente à Amazônia) porque de certo modo a emancipa, viu no espaço luso-brasileiro o teatro musical ser instrumento de formação individual e coletivo, uma vez que dos registros sobreviventes o que mais se vê é o repertório em língua portuguesa. Este perderia espaço no século seguinte, não acabando de todo e até mesmo sendo revigorado por novas iniciativas, mas evidenciando movimento contrário no campo do teatro musical, onde a ópera permaneceria o mais fiel possível ao original. Rousseau, que em seus diversos escritos críticos, incluindo aqueles sobre música, já criticava agudamente as sociedades do norte da Europa, por considerá-las submetidas a convenções tão rígidas e nada naturais, que corrompiam o homem no seu caminho para o objetivo maior, a felicidade. Na verdade, tais escritos filosóficos, que fizeram apologia à simplicidade de viver dos povos mediterrânicos e tinham-nos por novos modelos de sociedade, ecoavam um movimento bem representado pela obra de Antoine Watteau (1684-1721), que destaca a música e a dança no ambiente campesino, numa situação de folgar, festejar, comungar com a natureza. Esta relação com o natural e a natureza no âmbito do século XVIII, eficazmente explicada por Mário Vieira de Carvalho (1999) como uma referência tanto para aceitação quanto para a negação de uma mentalidade, mas ainda de um modo de vida, parece ser uma das fissuras que se abriram entre os mundos que compartilham o ocidente contemporâneo; de um lado a existência contemplativa e de fruição espiritual e telúrica, do sul geográfico e cultural, a partir do mundo mediterrânico e suas colônias, se opõe a uma postura em que o ser economicamente produtivo, no entendimento da economia de massas do norte geográfico e cultural industrializado, é o único que faz sentido, que é acreditada e respeitada socialmente. Como a indústria e a comunicação de massas formam opinião, conceito e promovem um tipo de existência emancipada, em que o preço é a homologação global e não universal, haverá inevitáveis perdas de identidade e cultura. O conflito que continua latente no Brasil atual, assim como na semi-periferia a que ficou submetida a Europa meridional, parece ter sido profetizada pelo não menos recorrente Antonio José da Silva, percebendo que haveria no futuro o inevitável desejo de retorno e reencontro com a historicidade que lastreia uma parte hoje subalternizada e emudecida a que pertencemos, cabendo somente a nós uma tomada de posição consciente no processo que parece longe de acabar. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Coro de vozes: Aqui estão as luzes! Faetonte: Não há mais remédio que apagar as luzes. Ismene: Que fazes? Faetonte: Fugir de ti, para buscar-te outra vez. (vai-se) (Precipício de Faetonte, 1738, Parte I, Cena III) Bibliografia BARATA, José Oliveira. História do Teatro em Portugal, séc.XVIII: Antonio José da Silva, O Judeu, no palco joanino. Algés, Difel, 1998. BRAGA, Teophilo. História do Theatro Portuguez: a baixa comédia e a ópera, seculo XVIII. Lisboa: Imprensa Portugueza, 1871. BUDASZ, Rogério. Teatro e Música na América Portuguesa. Curitiba: Deartes UFPR, 2008. CARVALHO, Mário Vieira de. Razão e sentimento na comunicação musical-estudo sobre a dialética do Iluminismo. Lisboa: Relógio d’água, 1999 CRANMER, David. Os manuscritos de música teatral no paço ducal de Vila Viçosa: a ligação brasileira. Vila Viçosa, Callipole, nº17, p. 101-118, 2009 145 GALANTE DE SOUSA, José. O Teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1960. JB – Jorna do Brasil, Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1964. LEZA, José Máximo. “El teatro musical y la musica en el teatro”. In: HUERTA CALVO, Javier; DOMENECH RICO, Fernando; PERAL VEJA, Emilio (eds.). História del Teatro Español: del siglo XVIII a la época atual. Tomo II. Madrid, Gredos, p. 1687-1713, 2003. MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. 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(Joan Fontcuberta, El beso de Judas: fotografia y verdad) Este texto trata do Patrimônio Musical no Rio Grande do Sul, procurando observá-lo como uma memória plural e multifacetada construída a partir dos acervos existentes e os enfoques de pesquisa que vem sendo desenvolvidos em estudos acadêmicos. Considerando os elementos patrimoniais como diretamente relacionados à construção das memórias individuais e coletivas, pretendemos traçar reflexões ao redor do que ao longo do tempo foi considerado como elemento de estudo histórico em música e oferecer elementos para o questionamento das possibilidades de estudo dos documentos de acervos institucionais. As imbricações entre patrimônio e memória se processam de forma dual, considerando que é sobre o duplo que se deposita a memória: o hoje construído a partir do ontem, a preservação em contraponto com o esquecimento, o revisitar da memória e a transformação de seus vestígios a partir do recontar. Dessa forma, o olhar aqui apresentado sobre acervos, imagens e documentos constitui uma proposição sobre as construções e transformações pelas quais passam o patrimônio musical e suas considerações no tecer das redes de memória. À pesquisa sobre o patrimônio musical no Rio Grande do Sul tem sido fortemente centrada nas atividades desenvolvidas em especial no âmbito das universidades federais do estado, através dos cursos da área de artes, música, ciências humanas e sociais aplicadas. No entanto, é possível verificar algumas tendências, como uma centralização das temáticas de pesquisa nas cidades de Porto Alegre e Pelotas, estendendo-se ainda à Rio Grande, o que pode talvez creditar-se à uma efetiva ausência de arquivos constituídos sobre música no estado. Os trabalhos de pesquisa em musicologia e etnomusicologia versando sobre a temática da música no Rio Grande do Sul vem sendo desenvolvidos tendo como base e alicerce principalmente o Grupo de Estudos Musicais (UFRGS), coordenado por Maria Elizabeth Lucas, e o Grupo de Pesquisa em Musicologia (UFPel), coordenado pela autora. Ao final deste artigo, listaremos alguns trabalhos de pesquisa que tem se dedicado ao tema do patrimônio musical do Rio Grande do Sul. No que se refere à questão da ausência de arquivos constituídos sobre a vida musical no Rio Grande do Sul, se observa que, de forma, geral, estes se encontram centralizados nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, fazendo com que o trabalho da reflexão sobre os acervos esteja diretamente ligado ao anterior trabalho de constituí-los e organizá-los. Ainda assim, os acervos existentes nestes estados estão notadamente centrados na produção de música de concerto, produção de compositores, música religiosa e acervos de bandas. No entanto, observa-se uma tendência para a não conservação e preservação dos acervos de escolas de música, salas de concerto e teatros. Com isto, uma extensa documentação sobre ensino PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 149 150 de instrumentos e canto, performance musical e elementos cotidianos da prática de concertos ficam isolados da pesquisa em musicologia histórica tradicional. Como extensão desta situação dos acervos, pode-se observar também na historiografia panorâmica tradicional brasileira uma tendência de estudos focada em compositores e gêneros musicais principalmente da música de concerto. As possibilidades de estudo que se abrem a partir de acervos institucionais de escolas de música é a discussão que se coloca neste artigo. Tendo em vista que existe um desinteresse com a conservação e preservação dos acervos das escolas de música e das salas de concerto, o resultado é um silenciamento destes como lugares de memória, privando os estudos musicológicos de possibilidades de estudo sobre documentos que tratam dos aspectos pedagógicos e cotidianos sobre o fazer musical. Desta forma, este artigo pretende lançar um olhar para o patrimônio musical do Rio Grande do Sul através do acervo do Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas, observando suas categorias documentais, de que forma foram constituídos e sua contribuição para o traçado das redes de memória sobre o fazer musical no estado e no Brasil. Um breve olhar sobre a trajetória do fazer musical no estado merece ser traçado, como forma de compreender algumas determinantes das escolhas dos lugares de memória e suas conseqüentes considerações patrimoniais. Sobre o fazer musical no estado, Lucas (1980) relata que no começo do século XIX ao final dos anos 1870 a música inexistia como atividade independente, estava associada à religião ou ao teatro e era uma profissão ligada às camadas inferiores da população. Embora seja possível pensar que a musica também tenha existido em outros âmbitos, a reflexão que Lucas oferece esta centrada nos aspectos do desenvolvimento profissional da atividade musical. Entre 1880 e 1890, com a criação de sociedades de concerto nas cidades, verifica-se uma expansão do amadorismo, enquanto os profissionais da fase anterior vão sendo substituídos por estrangeiros. Do final do séc. XIX ao início do séc. XX, a música sofre uma reavaliação como profissão a partir do contato com padrões importados, passando a ser exercida pela classe dominante ou setores médios e incorporando, das etapas antecedentes, aspectos do amadorismo que possam distanciá-la de qualquer associação com o trabalho das camadas sociais inferiores (Lucas, 1980, p. 151). Sobre a prática musical no Rio Grande do Sul durante a Primeira República, Souza e Nogueira (2005) destacam a organização de concertos em teatros e por sociedades dedicadas à este fim, a presença de orquestras subvencionadas, dos coros e estudantinas vinculadas a estas orquestras e aos clubes sociais, centrando sua análise principalmente na cidade de Pelotas. Ao lado destes, a música era também costumeira nos saraus de literatos, músicos e pintores, além dos saraus familiares, onde se verificava uma aceitação da prática musical desde que esta estivesse claramente definida como diletante e não profissional. Sobre esta questão, identifica-se uma forte ênfase na música como parte importante da formação das mulheres das altas classes sociais, desde que estas se ativessem ao espaço doméstico e com fins de qualificação de seus dotes e formações pessoais. Desta forma, o tocar piano e cantar, saber bordar, cozinhar, falar francês e manter uma boa conversação eram dotes bem vistos para as moças casadoiras das boas famílias sulinas. Ainda que a música tenha sido considerada tradicionalmente como parte de uma formação onde a mulher é vista como destinada ao casamento, nuances de um processo de empoderamento podem ser observadas. Elementos como a influência das mulheres nos processos políticos a partir de sua liderança nos salões sociais, nos cabarés ou nas instituições musicais nos trazem novos olhares e focos de pesquisa para a visão positivista da música na educação feminina. Desta forma, se entrelaçam espaços públicos e privados, fazendo com que, mesmo dentro de uma participação supostamente restrita ao âmbito familiar, os papéis que vinham sendo determinados como femininos se apresentem como ampliados e revisitados. Está claro que as análises realizadas até o momento não consideram ainda de forma satisfatória todo o contingente de escravas, imigrantes e mulheres de baixa renda do sul do Brasil neste momento, posto que até o momento este foco de pesquisas encontra-se por explorar. Trabalhos futuros deverão encarregar-se de aprofundar os levantamentos sobre as práticas musicais nas comunidades e agrupações de origem africana e de grupos imigrantes e diaspóricos, nas músicas de fronteiras e nas diversas considerações sobre a música praticada por mulheres nestes diferentes contextos. No que se refere às diferentes considerações sobre a prática musical considerada amadorística e seu contraste com a prática profissional, faz-se interessante citar o caso da cantora pelotense Zola Amaro (1890-1944), primeira sul americana a cantar no Teatro Scala de Milão: PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Zola Amaro, primeira cantora lírica brasileira a obter sucesso internacional, iniciou sua carreira a partir do final da década de 1910. Sua trajetória artística foi marcada pelos personagens título “Norma” e “Aída”, com os quais ela se apresentou nos mais renomados teatros líricos do mundo. Procedente de uma tradicional família pelotense; casou-se aos 15 anos de idade, com José Amaro da Silveira, e teve três filhos antes de iniciar sua carreira de cantora lírica. Em 1918, Zola Amaro mudouse para Buenos Aires com o marido e os filhos, e ali conheceu Enrico Caruso, que a incentiva à abraçar a carreira artística. No ano de 1920, realizou sua primeira aparição como cantora lírica nos palcos pelotenses, já consagrada e aclamada, tanto na Europa, quanto no Rio de Janeiro e em São Paulo. No entanto, mesmo sendo uma cantora lirica de solida carreira internacional, Zola Amaro enfrentou forte preconceito por parte da sociedade pelotense, que via em sua carreira profissional um forte demérito pessoal e social. (Nogueira e Michelon, 2011, p. 259) O estudo da trajetória de Zola desenvolvido por Lima e Campos (1998) a partir de publicações em periódicos, aponta que, ainda que reconhecida internacionalmente, a cantora foi mal vista por seus conterrâneos por ter se tornado “mulher de teatro”. A grande valorização da prática musical na educação feminina resultou na existência de professores particulares para as moças das famílias das classes sociais mais elevadas, e pode ter contribuído para os ideais de civilidade que resultaram no processo de institucionalização do ensino musical no Rio Grande do Sul. Paradoxalmente, estas mesmas instituições de ensino musical dedicaram-se também à promoção de concertos com artistas nacionais e internacionais, trazendo uma nova valorização da música como atividade profissional em relação à consideração da prática amadorística da Primeira República. O interesse das mulheres em relação ao aprendizado de um instrumento musical verifica-se também no Instituto Livre de Bellas Artes de Porto Alegre, criado em 1908. Se no período da Primeira República, os moldes positivistas adotados no Rio Grande do Sul demonstram grande consideração para com a educação musical, estes, no entanto, consideram que o estado não deve assumir a responsabilidade pela criação de escolas especializadas de música. Leal Rodrigues observa que “no sistema de Comte a música participa do processo de formação do cidadão, oferecendo as ferramentas básicas para a aquisição das habilidades intelectuais necessárias para o exercício da plena cidadania e liberdade professada pela filosofia positivista” (Leal Rodrigues, 2000, p. 64). No então, pela Constituição Estadual gaúcha, que acolheu os preceitos positivistas, existia uma “impossibilidade de criar estruturas de ensino para a formação superior de professores e profissionais especializados em diversas áreas fundamentais para uma sociedade, inclusive a música” (Leal Rodrigues, 2000, p. 77). A consolidação do projeto de institucionalização do ensino musical na capital do estado se dará então através de iniciativas particulares apoiadas pelo estado, culminando, entre outros, com a criação do Instituto Livre de Bellas Artes, com seu Conservatório de Música. A inauguração do Conservatório realizou-se em 05 de julho de 1909, e em 27 de dezembro do mesmo ano registra-se a promoção de sua primeira audição pública, com a presença de todos os alunos da escola. 151 Sobre a vinculação da prática musical com a educação feminina, os relatórios de Olinto de Oliveira de 1908 e 1912 sobre os alunos do Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes, cujos trechos estão citados por Corte Real, referem que: a predominância do sexo feminino é considerável, não só na seção de música, como sucede em todo o mundo, mas também na de desenho. Uma das razões deste fato é certamente serem as belas-artes, principalmente entre nós, consideradas antes como prenda do que como profissão ou objeto de alta cultura, de sorte que os rapazes, quase sempre cursando colégios ou já empregados desde cedo para o aprendizado de suas futuras profissões, não encontram o tempo necessário para esses estudos, considerados de simples ornamento. Há ainda a notar que, dos matriculados, muitos tem abandonado os cursos no fim de certo tempo. Ora, dentre esses, a proporção do sexo masculino é relativamente elevada, o que ainda confirma o que acabei de dizer. (Oliveira apud Corte Real, 1984, p. 245-246) A partir de Guilherme Fontainha, diretor do Conservatório de Música de Porto Alegre e de José Corsi, diretor do Instituto Musical da mesma cidade, articula-se um projeto de “interiorização da cultura artística”, que pretendia a criação de um movimento cultural autônomo no Rio Grande do Sul, através do “estabelecimento de uma rede de centros culturais que permitisse a circulação permanente de artistas nacionais e internacionais, além de também promover a educação musical da juventude” (Caldas, 1992). O projeto pretendia a fundação de escolas de música e centros de cultura artística que se encarregassem da promoção de concertos nas cidades e congregou músicos, políticos e intelectuais simpatizantes dos ideais positivistas de progresso e modernização profissional e educacional. Guilherme Fontainha (1887-1970) foi professor e pianista, realizando inicialmente estudos na sua cidade natal, Juiz de Fora. Esteve na Europa para uma temporada de estudos entre Alemanha e França, especializando-se com os melhores professores de piano em atuação no momento. Regressando ao Brasil, fixou-se diretamente em Porto Alegre em 1916, exercendo as funções de professor de piano, diretor do Conservatório de Música de Porto Alegre, além de fundar a Sociedade de Cultura Artística da cidade. Em 1925, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde foi professor de piano do Instituto Nacional de Música e posteriormente também diretor, no período da reforma do ensino, em 1931 (Enciclopédia Brasileira de Musica, 1977:286). Guilherme Fontainha chega a Porto Alegre em 1916, a convite de Olinto de Oliveira, para atuar como professor de piano e diretor do Conservatório de Musica de Porto Alegre, e nesta cidade permanece ate 1924. Neste período, casa-se com uma gaúcha da cidade de Bagé, cujo nome de solteira era Zilah Garrastazu Pederneiras. José Corsi, bandolinista, chegou ao Rio Grande do Sul como integrante de um conjunto instrumental húngaro, e aqui se fixou, fundando, em 1913, uma escola de música chamada Instituto Musical de Porto Alegre. Foi idealizador, ao lado de Guilherme Fontainha, do Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul; foi também presidente do Centro Musical Porto-Alegrense, e inspetor e organizador da Banda Municipal de Porto Alegre. O projeto elaborado por Fontainha e Corsi surpreende por seu idealismo, por sua abrangência e pelas estratégias de ação envolvidas. Na bibliografia sobre música no Rio Grande do Sul, encontramos referências a este projeto em Corte Real (1984), Pedro Caldas (1992), Claudia Leal (2000), Isabel Nogueira (2003, 2005) e Maria Elizabeth Lucas (2005); segundo levantamento realizado até o momento. Caldas refere que o projeto original de Fontainha e Corsi incluía dezessete cidades, entre elas Santana do Livramento, Bagé, Cachoeira do Sul e Caxias do Sul. A Enciclopédia da Música Brasileira adverte que no plano original de Fontainha e Corsi estavam incluídas nove cidades do Rio Grande do Sul, entre elas, além das já citadas, inclui Pelotas e Rio Grande. O jornal O Tempo, da cidade de Rio Grande, menciona ainda as cidades de Itaqui, Alegrete, Montenegro, 152 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER São Leopoldo, Santa Cruz e Jaguarão, como divulgado em 7 de Janeiro de 1922. Tendo em vista a extensão do estado do Rio Grande do Sul e as dificuldades de locomoção dentro do estado neste período, onde as distâncias deveriam ser percorridas por barco ou de trem, surpreende pensar na magnitude do projeto de Fontainha e Corsi, e no imenso trabalho que foi coordenar estes diversos conservatórios e centros de cultura artística. Observamos ainda que Guilherme Fontainha vem para o Rio Grande do Sul logo após uma temporada de estudos na Alemanha e na França, além de ter realizado concertos em Berlim, Turim e Lisboa. Possivelmente, a concepção do projeto que Fontainha coloca em prática no Rio Grande do Sul teve influência das experiências compartilhadas com grandes pedagogos, como Vianna da Motta e Motte-Lacroix. Observando que Motte-Lacroix era professor da Schola Cantorum, fundada em 1894 como uma alternativa para a linha de estudos adotada no Conservatório de Paris, torna-se pertinente pensar que o projeto de Fontainha pode apresentar vinculações com as concepções de ensino musical desta instituição. Cabe recordar ainda que Fontainha convidou Antonio Leal de Sá Pereira, também discípulo de Motte-Lacroix, para ser diretor de um dos primeiros conservatórios fundados dentro deste projeto, o Conservatório de Pelotas. Considerando a importância destas duas personalidades para a escola pianística no país, isto significa dizer que o Rio Grande do Sul abrigava, neste momento, os dois mais importantes pedagogos do piano do Brasil. Observa-se também que suas obras de pedagogia do piano são as mais significativas da primeira metade do século XX e se mantém ainda como obras de referência na área. Analisando as notícias publicadas em jornais de Porto Alegre, Goldberg e Nogueira (2011) observam que o projeto de interiorização da cultura artística foi alavancado a partir do Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul (1921), e a partir deste foram estabelecidas as tratativas e relações de cooperação com as cidades envolvidas no projeto. Uma vez que o Conservatório de Música de Pelotas foi fundado em 1918, podemos concluir que se trata de uma iniciativa piloto, anterior à implementação do projeto como tal. Em abril de 1918, Andino Abreu foi enviado à Pelotas especialmente por Guilherme Fontainha para realizar um recital e estabelecer contatos com membros da sociedade local, com o intuito de sensibilizá-los para colaborar com o projeto de estabelecimento de um conservatório de música na cidade. Uma vez que Andino Abreu já era um cantor de certo reconhecimento, Fontainha contava com seu auxílio para fazer com que o Conservatório de Música de Pelotas fosse o precursor do projeto de interiorização da cultura artística no Rio Grande do Sul (Caldas, 1992, p.17). O Conservatório de Musica de Pelotas foi inaugurado em setembro de 1918, tendo a Andino Abreu como primeiro professor de canto e Sá Pereira como primeiro professor de piano. Em dezembro do mesmo ano ocorreu o primeiro recital de alunas da escola, no Theatro Sete de Abril, apontando para a hipótese de que estas moças que procuraram a escola já possuíam alguma formação musical prévia, possivelmente através de professores particulares. Figura 1. Conservatório de Música de Pelotas, em fotografia do Almanaque de Pelotas, de 1922. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 153 Andino Abreu (1884-1961), barítono de formação autodidata nascido em Cachoeira do Sul (RS), teve importante formação humanística como seminarista. Foi cantor de sólida experiência nos palcos, desenvolvendo repertório marcadamente centrado na música brasileira e na canção de câmara contemporânea. Em sua trajetória, priorizou obras em primeira audição e obras de compositores novos e contemporâneos. Foi o primeiro intérprete de Camargo Guarnieri, com quem realizou tournées de concerto, e realizou a primeira gravação mundial das canções de Villa Lobos, em Paris, com a esposa do compositor ao piano (1928). Estreou obras do compositor português Ruy Coelho, com quem manteve relações de amizade. Em 1934, radicou-se em Porto Alegre e tornou-se amigo de Armando Câmara e Armando Albuquerque. A proximidade entre Andino e Armando Albuquerque converge com o momento em que este último passa a dedicar-se à composição de canções. Chaves e Nunes observam que em setembro de 1940, a partir da composição da canção Clic-clic (Comadre rã), “a canção para voz e piano, gênero nunca antes explorado por Albuquerque, assume posição central e quase exclusiva em seu repertório, reorientando seu percurso composicional” (Chaves; Nunes, 2003, p.67). Andino fez-se intérprete das canções de Armando Albuquerque e Helena Abreu lembra que o compositor ia diretamente à casa do cantor para mostrar as canções tão logo as terminava. Esta constante troca de ideias sobre música entre Armando e Andino deixa perceber a existência de uma importante relação entre eles, ideia esta corroborada por Maria Abreu, quando menciona que “assim [Andino] completou, nos termos de sua própria existência, um papel relevante, desempenhado em relação a três grandes compositores brasileiros: Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Armando Albuquerque.” (Abreu, s/d). O acervo pessoal de Andino Abreu foi doado para o Conservatório de Musica por sua filha, Helena Abreu Pacheco, em 2007, e fazem parte dele partituras, fotografias, críticas e programas de concerto da vida artística do cantor. Além do acervo, Helena doou também o manuscrito “A Arte do Canto”, elaborado por Andino nos anos 1940, quando este já encontrava-se radicado na cidade de Porto Alegre. Um estudo preliminar sobre o manuscrito foi publicado por Nogueira e Silveira em 2011, e a publicação comentada do manuscrito encontra-se em andamento. Figura 2. Antonio Leal de Sá Pereira com Villa Lobos em Paris. 154 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Antonio Leal de Sá Pereira (1888-1966) foi compositor, pianista e pedagogo brasileiro, cuja formação deu-se em um período de dezessete anos de estudos realizados entre França, Suíça e Alemanha (1900-1917), permaneceu na cidade de Pelotas de 1918 à 1923 como diretor artístico e professor de piano do Conservatório de Música desta cidade. Além de diretor do Conservatório de Música de Pelotas, Sá Pereira exerceu também a função de diretor do Centro de Cultura Artística de Pelotas no período 1921-1923, instituição que foi responsável pela vinda à cidade de grandes nomes da música do Brasil e da Europa como Ignaz Friedmann, Wilhelm Backhaus, Vianna da Motta, Luba d’Alexandrowska e Michael von Zadora. Este centro atuou em conjunto com o Centro de Cultura Artística de Porto Alegre e a proposta era que estes tivessem uma atuação conjunta com os conservatórios destas cidades para proporcionar vivência artística e estética aos alunos da escola e à comunidade em geral. A sala de concertos utilizada para realização dos recitais era inclusive no espaço do Conservatório de Música. Ao ser convidado por Fontainha para retornar da Europa diretamente para exercer a função de diretor do Conservatório de Música de Pelotas, Sá Pereira encontra-se com um Brasil muito distante do tipicamente conhecido. As concepções positivistas presentes na política do Rio Grande do Sul apresentam uma situação bastante específica no que se refere à música, e a atuação de Sá Pereira contribui para uma mudança de repertório aliada à concepção da música como alternativa profissional para as mulheres. Ao estudar detidamente os programas de recitais de alunas do Conservatório de Música de Pelotas neste período em que Sá Pereira esteve na cidade, destaca-se a presença de compositores brasileiros, modernos e contemporâneos para a época. Diferente do repertório dos pianistas profissionais, marcado por compositores europeus do século XIX, com uma grande recorrência do polonês Fréderic Chopin, observa-se no repertório das alunas da escola a interpretação de Claude Debussy e Heitor Villa Lobos, ainda antes do advento da Semana de arte Moderna de 1922. Percebe-se ainda o cuidado de Sá Pereira na confecção dos programas de recital das alunas, fazendo-os informativos e destacando as obras interpretadas em primeira audição na cidade de Pelotas. A atuação de Sá Pereira vai além do espaço do Conservatório de Música, congrega a cidade ao organizar um coro misto de mil vozes que cantou diante do edifício da Prefeitura da cidade em comemoração ao Centenário da Independência do Brasil. Para este evento, diversas notícias foram publicadas nos periódicos da cidade, informando horários de ensaio por naipe, manifestando a motivação e importância do evento e ainda publicando a partitura completa do arranjo para quatro vozes do Hino Nacional Brasileiro feito por Sá Pereira. Uma vez que este nunca foi publicado, o registro periodístico é o único testemunho deste arranjo inédito. Destacando ainda os registros periodísticos sobre a atuação de Sá Pereira na cidade de Pelotas, encontramos uma série de artigos publicados em seu período como diretor do Conservatório de Música. O material, publicado apenas nos periódicos da cidade de Pelotas no período 1918-1923 e nunca republicado, engloba crônicas musicais, críticas de concertos, reflexões sobre música e sobre gestão da cultura. Temáticas como a valorização da música brasileira, do canto em português, da importância da música na formação humanística e do papel do poder publico na promoção de concertos estão presentes nestes artigos, que foram detidamente analisados em publicação da autora no ano de 2005, segundo bibliografia ao final deste artigo. Tendo em vista que em 1923, na cidade de São Paulo, Sá Pereira funda e dirige, juntamente com Mário de Andrade, a Revista Ariel de Cultura Musical, que, segundo Wisnik (1983, p.101-104), insere-se dentro do grupo de revistas que são produto direto do movimento modernista; entendemos que possivelmente suas reflexões no período prévio à publicação de Ariel possa apresentar elementos consoantes àqueles defendidos pela Semana de Arte Moderna de 1922. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 155 Corroborando para esta hipótese, Lucas (2005) ressalta: a experiência dos conservatórios de Pelotas e Porto Alegre tomada como laboratório para testagem da modernidade no terreno da pedagogia musical dentro dos cânones da música erudita ocidental é de suma importância para municiar a reflexividade histórica sobre esse período de institucionalização do ensino profissional da música no Brasil e seus desdobramentos posteriores. (Lucas, 2005) Ao analisar a produção escrita de Sá Pereira no período 1918-1923 e observar suas concepções sobre repertório e prática musical, a hipótese trazida por Lucas da possível “testagem da modernidade no terreno da pedagogia musical” se apresenta de forma bastante clara. Nos dez artigos produzidos por Sá Pereira para os jornais da cidade de Pelotas, encontramos temas como a defesa da canção de câmara, da música moderna e da música brasileira, e também a importância da atividade dos Centros de Cultura Artística na seleção de repertório de qualidade para os concertos. Entendemos que estes artigos, coletados nos jornais da época e devidamente analisados, sugerem que muitos dos temas destacados na Semana de Arte Moderna de 1922 e na Revista Ariel estão presentes nos artigos produzidos por Sá Pereira no período 1918-1923 na cidade de Pelotas. O Conservatório de Música de Pelotas, fundado como instituição particular, foi municipalizado em 1937 e fez parte da fundação da Universidade Federal de Pelotas como unidade particular agregada de ensino superior.Em 1984, foi incorporado à universidade como unidade acadêmica e em 2011 passou a fazer parte do Centro de Artes da mesma instituição. 156 Observando as características do acervo, notamos que as categorias documentais são descontínuas de acordo com a época, apontando para um critério variável segundo o responsável pelo trabalho de guarda em cada momento. Se de alguns períodos específicos se conservaram livros de matrículas e de outra época livros de assinaturas de artistas, cumpre notar que os livros de programas de concerto e as fotografias de intérpretes apresentam-se como documentação contínua em todos os períodos que abrange o acervo histórico. Destaca-se ao nosso olhar, então, a importância que a instituição conferia aos concertos promovidos pelo Conservatório de Música de Pelotas, conforme corroborado pelas galerias de fotografias de intérpretes que permanecem nas paredes da escola. Nos deteremos então nestas duas categorias documentais, apresentando as reflexões que vem sendo desenvolvidas nos trabalhos de pesquisa sobre o tema. Da memória e história do Conservatório de Musica de Pelotas: Centro de Documentação Musical (2001) A partir da fundação do Conservatório de Música da UFPel vem sendo reunida uma documentação que retrata as atividades desenvolvidas por esta instituição ao longo de sua trajetória, ao redor do ensino musical e da promoção de concertos: documentação administrativa, documentos sobre professores e alunos, arquivos de programas de concerto de alunos, professores e artistas convidados, coleção de recortes de jornal sobre a escola, fotografias, partituras, acervos pessoais. Desde 1918 estes documentos vêm sendo conservados por diversos funcionários, alunos e professores que se interessaram em salvaguardar a memória institucional, com escolhas múltiplas e em certo aspecto fragmentárias, mas que resultaram em um acervo importante e singular dentro da recorrente perspectiva do esquecimento das memórias institucionais de escolas de música no país. Em 2001 foi criado o Centro de Documentação Musical do Conservatório de Música da UFPel, a partir de duas ordens de registros: testemunhos originais e reproduções ou cópias de documentos. Os testemunhos originais são compostos por documentos já pertencentes à instituição (partituras musicais, livros de assinaturas, livros de autógrafos, livros de programas de concertos, hemeroteca, fotografias preto-e-branco e coloridas, atas de reuniões do Conservatório de Música, cartas, livros de matrículas, quadros de formatura e mobiliário antigo), e documentos que foram incorporados posteriormente, como resultado da política institucional de gestão de memória. Esta incorporação de novos testemunhos ao acervo documental manifesta-se de duas formas: de um lado, o estímulo à doação de importantes acervos e coleções – como o anteriormente relatado exemplo da doação do acervo do barítono e primeiro professor de canto da escola, Andino Abreu; de outro lado, a produção de registros orais da memória da instituição, obtidos por meio do desenvolvimento de um programa de História oral. A incorporação de cópias de documentos resulta, fundamentalmente, do projeto de pesquisa realizado juntos aos periódicos antigos, conservados na Biblioteca Pública Pelotense, além de outras fontes documentais, como os almanaques e outras revistas. Os concertos: processos, redes e vestígios de uma prática O estudo dos programas de concerto e das fotografias na pesquisa em musicologia histórica aponta para a importância desta documentação como vestígios documentais da trajetória dos intérpretes e das concepções historicamente relacionadas com repertório e prática da performance. Compreendendo o repertório como forma de representação e como primeira escolha estética do artista, o estudo dos programas de concerto aponta para tendências relevantes ao longo da história sobre formas de atuação do artista na sociedade e suas concepções sobre o fazer musical. Na análise dos programas de concerto, após a sistematização do repertório, as obras interpretadas são analisadas segundo o período de composição, o gênero e a vinculação estética. Os projetos de pesquisa realizados desde 2001 incluem o estudo de programas de concerto interpretados por alunos de piano e de canto, bem como por pianistas e por cantores nas cidades de Pelotas e Porto Alegre no período de 1918 a 1974. Elementos como a recorrência e circularidade de compositores e obras, a duração do concerto, os elementos informativos incluídos sobre a música, informações sobre a série de concertos e quem a promove, o planejamento e concepção gráfica, a presença ou não de fotografias do interprete constituem elementos significativos para análise. Segundo Cerqueira, Nogueira et alli (2008, p. 9) “este estudo constitui hoje uma vertente importante da pesquisa musicológica, uma vez que se trata de uma fonte primária que não foi, até o momento, suficientemente documentada e analisada em nível local, regional ou nacional, apesar de sua relevância para a pesquisa”. Realizar o estudo de programas de concerto de alunos e de concertistas, aliado ao levantamento de críticas e notícias publicadas nos jornais da cidade de Pelotas, significa compreender que o repertório escolhido por um artista ou por um professor para seus alunos reflete também a forma como as obras musicais foram recebidas por um determinado público em seu momento histórico. Analisar as relações de recepção, através dos programas de concertos praticados no Conservatório de Música de Pelotas, significa oferecer ferramentas para a reflexão sobre as práticas musicais no Rio Grande do Sul, no âmbito educacional e artístico. Ao mesmo tempo, a análise dos programas de concerto presentes no acervo do Conservatório de Musica da UFPel, além de ser uma importante fonte documental sobre a prática musical, chama a atenção para a necessidade de descentralização do estudo dos movimentos musicais, trabalhando com as periferias e fronteiras em suas práticas e mediações. Costumeiramente, o modelo de historiografia panorâmica brasileira concebe as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo como pólos emanadores das tendências musicais que serão idealmente acolhidas em todo o país. No entanto, as apropriações, particularidades e ressignificaçoes do fazer musical em cada lugar são múltiplas e singulares. No que se refere aos processos que envolveram as tournées de concertistas estrangeiros no sul do Brasil, foi possível observar, através do cotejamento das fontes, que algumas práticas se mostraram recorrentes. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 157 Estudando os programas de concerto, os álbuns de assinaturas do Grêmio dos alunos do Conservatório de Música, as fotografias de músicos e as notícias e críticas publicadas na Revista Illustração Pelotense e jornal Opinião Pública da cidade de Pelotas da década de 1920, procedimentos sobre a realização de concertos são repetidas, a saber. Antes do concerto, o músico enviava à instituição promotora seu curriculum e fotografia, que era publicado nos jornais da cidade ao lado da republicação de excertos de criticas de concertos escritos sobre o intérprete em outros periódicos. Logo, havia a chegada do músico à cidade, alguns dias antes do concerto, e a permanência até o dia do espetáculo, do qual o programa de recital constituía um importante testemunho documental. Este programa poderia incluir também a fotografia do artista e seu curriculum, além de excertos de críticas. Não raramente o interprete autografava este programa, a pedido de algum aluno ou professor da escola, ou mesmo do público, e este programa faria parte de um acervo pessoal ou institucional, transformando-se ele mesmo em portador e desencadeador de outras e distintas memórias. Além das assinaturas nos programas, haviam os livros de assinaturas, como o do Grêmio dos alunos do Conservatório de Música, que solicitava que os artistas deixassem um registro de sua passagem pela cidade através de breves palavras, sua assinatura ou uma mensagem pessoal. Estes livros de assinaturas se conservam no centro de Documentação Musical da escola, perfazendo relatos entremeados de desenhos, fotografias, pequenas pautas com temas musicais. Retalhos de memória costurados a diversas mãos. Pessoas da comunidade da cidade de Pelotas, e possivelmente de outras cidades, possuíam o mesmo hábito de manter estes álbuns de assinaturas de músicos, que hoje fazem parte de acervos pessoais dos quais talvez tomemos conhecimento algum dia. Logo após o concerto, costumava-se publicar nas revistas ilustradas ou nos periódicos da cidade uma crítica sobre o evento, por algum professor do Conservatório ou crítico em atividade na cidade. Nos jornais existem registros também da publicação de poesias dedicadas ao músico, algumas recitadas em sua homenagem a partir da plateia, durante o evento. Uma vez que as distâncias dos anos 1920 não permitiam uma locomoção relativamente rápida, os artistas que vinham à cidade permaneciam por três ou quatro dias além daqueles do concerto. Desta forma, uma rede de sociabilidade era tecida ao redor destes, com eventos de portes e dimensões variadas sendo organizados. Existem notícias nos livros de assinaturas, nos jornais e mesmo em alguns relatos orais sobre reuniões em cafés, jantares e saraus particulares organizados ao redor dos músicos que vinham à cidade, com níveis variados de sociabilidade. Após o evento, a troca de cartas, partituras e novos convites entre músicos, professores e alunos era prática costumeira, conformando uma rede de relações que iam muito além do mero reconhecimento do concerto como um evento cultural. Dessa forma, o concerto, enquanto marco da trajetória do intérprete e de suas escolhas de representação, encontra como vestígios documentais e memoriais as notícias e críticas de periódicos, o programa de concerto e as imagens fotográficas. Das imagens, buscando sua interpretação como elemento memorial e suas relações com os programas e as notícias, nos ocuparemos a seguir. 158 Imagens de intérpretes: representação e subjetividade O envio das fotografias de intérpretes para divulgação dos concertos cumpria uma função dupla, funcionava como cartão de visitas do músico e como elemento memorial, reunindo a imagem com alguma dedicatória ou declaração, nesta ou no verso da fotografia. A fotografia em formato cartão de visitas era recorrente no começo do século XX, como recordação de eventos familiares e compunham costumeiramente os acervos pessoais. Poses em estúdio do batizado ou primeira comunhão de crianças, recordação das festas de quinze anos e noivas em seus vestidos brancos, casais retratados em poses circunspectas possivelmente indicando sua respeitabilidade social, são exemplos deste tipo de fotografia. No entanto, as fotografias de músicos apresentam representações distintas dos casos mencionados, com algumas particularidades que se repetem dentro da categoria. Diferente das fotografias pessoais, a imagem do artista não é produzida com o objetivo de ser conservada dentro do ambiente da própria casa ou ser recordada apenas pelo círculo relacional do músico. Ela á produzida para circular, viajar, para ser divulgada. A imagem antecede o artista em sua chegada aos lugares e se mantém após sua partida. A partir desta perspectiva, as escolhas dos elementos que compõe a imagem são estudadas, cuidadas e confluem para o conjunto imagético que corrobora para a intencionalidade do conjunto artístico. Existe uma construção de imagem do ser artista, diferente da pessoa cotidiana, uma construção do personagem do intérprete, que quer mostrar-se como artista e posa como tal para que assim o reconheçam. As fotografias de intérpretes possuem a mesma essência do que os cartões de visita, tem a intenção do perpetuar-se, do ser lembrado, do plasmar uma figura como a que se quer ver representado, independente do tempo que esta imagem irá durar na vida cotidiana do artista e do público. É comum encontrarmos exemplos de artistas que continuam utilizando uma fotografia antiga, que não corresponde à figura da sua realidade atual, no entanto algo nesta imagem parece representar mais a contento o personagem artístico que deseja associado à seu nome. Mais importante do que a representação do real, esta fotografia atende à construção do personagem idealizado e da memória que o artista deseja que seja evocada. No entanto, como recontar estas narrativas construídas? Como rastrear os vestígios destas representações e interpretá-los a fim de compreender os sentidos atribuídos e percebidos por meio da imagem? Para isto, as ferramentas da história oral, através das histórias de vida de músicos, o estudo dos programas de concerto em seus aspectos gráficos e escolhas de repertório, as notícias sobre os concertos e as críticas posteriores a este, o local e a forma como estão guardadas as fotografias. Lançar mão destes elementos, ao lado da análise dos documentos de arquivo, torna-se fundamental para que se possam reconstruir estas narrativas dadas através das imagens, e é essencial para construir a análise iconológico-interpretativa das imagens. Sobre o acervo de fotografias do Centro de Documentação Musical do Conservatório de música da UFPel, a diversidade de tipologias engloba fotografias de grupo em locais externos e dentro da escola, fotografias de alunos, professores e artistas, fotografias de estúdio, com cuidados de luz e sombra, mostrando o artista sozinho ou com seu instrumento com o predomínio do formato de três quartos do corpo e enquadramento em perfil. O estudo iconográfico-iconológico das fotografias vem sendo realizado por Nogueira, Cerqueira e Michelon em diversos projetos e artigos, marcadamente nas fotografias individuais de artistas que estiveram realizando concertos na cidade de Pelotas entre 1918 e 1940. A leitura das imagens pretende identificar as características recorrentes e desviantes do conjunto documental, observando as regularidades nas imagens selecionadas e a lógica que motivou a coleção. Sobre as regularidades, os elementos analisados tem sido situação (retrato ou performance), gênero (masculino ou feminino), presença ou não do instrumento, lateralidade do retrato (rosto em posição frontal, voltada para esquerda ou voltado para a direita), direcionalidade do olhar, expressão do rosto e presença de outros elementos na imagem. Logo, o trabalho busca determinar o estabelecimento de particularidades. Torna-se interessante ainda observar a localização espacial do conjunto documental, se pertencente ao acervo ou a galerias colocadas nas paredes da escola. Observando escolas de música, teatros e salas de concerto a recorrência de placas e retratos nas paredes impressiona. Como um contraponto com a centralidade dos compositores nos compêndios da historiografia panorâmica da música, estes locais constituem um local de consagração da performance. Conforme a recorrência de compositores do século XIX nos programas de concerto, as galerias de fotografias de intérpretes PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 159 nestes locais configuram a performance como ideal heróico, ainda mais se recordarmos a figura de desbravadores que caracterizou os pianistas que vieram à America Latina em tournées de concertos no final do século XIX e começos do século XX. As fotografias enquadradas nas paredes, de autoria de fotógrafos dos locais de origem dos concertistas, constitui um conjunto heterogêneo em sua origem, mas com regularidades importantes no que tange à composição da figura do interprete como vinculado à uma realidade superior, distante do cotidiano dos mortais. Elementos da nascente indústria cinematográfica permeiam este universo, marcando com aura de estrela hollywoodiana as cantoras e pianistas da musica de concerto (Cerqueira e Oliveira, 2005). Em seu artigo “The domestic gesantkunstwerk, or the Record sleeves and repcetion”, Nicholas Cook traça uma breve análise sobre as capas de disco como elementos importantes para a definição do produto musical. A partir de uma análise destas capas, traça considerações sobre as escolhas fotográficas e os elementos gráficos das mesmas como investidos de sentido, considerando-os definidores da forma como se dá a recepção do produto final. Traçando um breve panorama do que poderá ser uma futura história das capas de disco, Cook refere como seus antecedentes as capas de partituras de música popular e semi-popular do começo do século XX, culminando nos dias de glória das capas de LPs e finalmente um decaimento até a miniaturizada arte das capas de CD (COOK, 1998, p.139). Cook analisa fotografias de intérpretes e regentes nas capas de LPs e CDs de música de concerto, observando a ênfase em suas faces, mãos e expressividade, chamando a atenção para o fato de que estes se tornam o foco do investimento do mercado, em detrimento da obra ou do compositor que está sendo interpretado. Poderia dizer, então, que antecedentes das capas de LPs e CDs poderiam ser as fotografias de intérpretes, que as enviavam como arautos sígnicos das tournées de virtuoses pelo Brasil e America do Sul. Se os LPs e CDs combinam a imagem do intérprete diretamente à música que está sendo interpretada, as fotografias que os intérpretes enviavam para a divulgação dos seus concertos antecediam a experiência musical, criando expectativas e desejos sobre o artista que logo viria à cidade. Ao mesmo tempo, estas mesmas fotografias, quando utilizadas nas capas dos Alguns indícios inconclusos, mas em processo Ao refletir sobre o patrimônio musical no Rio Grande do Sul, buscamos centrar nosso olhar sobre os programas de concerto e fotografias como documentos para a pesquisa em musicologia, a partir dos acervos pessoais e institucionais sobre a vida musical e a prática de concertos. A importância da reflexão sobre estes acervos institucionais aponta para as referências memoriais que documentam o cotidiano da prática musical em seus aspectos mais abrangentes, incluindo as representações que permeiam o ensino musical, a performance e a composição no âmbito das instituições musicais. Documentação considerada menos valiosa do ponto de vista da historiografia musical tradicional, as fotografias e os programas de concerto tornam-se, aqui, o elemento central da análise, buscando, através das considerações sobre repertório e dos sentidos da imagem os entrecruzamentos e tramas por onde se tecem as representações dos músicos sobre si mesmos e sobre a matéria musical. Dessa forma, registra-se a importância da compreensão dos documentos dos acervos institucionais como pertencentes a uma teia complexa, onde se estabelecem jogos de poder a partir das decisões e conceitos sobre música e interpretação, conformando subjetividades e traçando relações de sociabilidade de forma ampla. Ao considerar o acervo do Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas, não se está apenas resgatando uma memória da cidade na perspectiva de uma história regional, mas antes refletindo sobre maneiras de abordagem de categorias documentais. Mesmo que as fotografias dos intérpretes que integram o acervo tenham sido realizadas por fotógrafos de diversas partes do mundo, e apenas esta diversidade de origem seja suficiente para considerar a coleção como representativa de uma visão disseminada dos interpretes sobre si mesmos no período estudado; a questão não se esgota aqui. Ainda assim, a reflexão que pretendemos mais abrangente trata das instituições de PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ Figura 3. Maria Carreras, pianista. 160 programas de concerto, combinavam-se com a música escutada e a visão da performance em tempo real, conferindo uma amplitude de possibilidades à leitura do signo. Se em relação às fotografias das capas dos CDs, Cook observa que se cria ao mesmo tempo um movimento de proximidade e distanciamento entre intérprete e ouvinte, o mesmo pode-se dizer sobre as fotografias. A combinação estudada entre luz e pose nas fotografias feitas em estúdio, onde se buscava enfatizar a aura de estrela, de intelectualidade ou de entrega total à música, provoca o desejo ao mesmo tempo em que deixa clara a condição de ser inacessível. Assim, sobressai-se um conceito de desejo combinado com distanciamento permeando a esfera da música de concerto, o que, combinado com a predominância do repertório do séculos XVIII e XIX presentes nos programas de concerto dos artistas estudados, configura elementos importantes para a análise deste objeto. Ainda, há que referir que a grande importância que se pode atribuir à imagem plasmada na fotografia no começo do século XX é característica deste momento, apenas. As fotografias, em formato de carte de visite, eram a forma de apresentação dos artistas, e, ao mesmo tempo, de recordação. A posterior possibilidade da ampla circulação de gravações, através dos CDs e MP3, e ainda posteriormente sua associação com imagens em movimento, através dos vídeos postados no Youtube, trazem sem dúvida uma reconfiguração para os estudos da imagem estática das fotografias e sua significação. No entanto, em que pese a grande modificação nos processos de circulação de artistas e promoção de seus concertos, a carga dramática da imagem estática da fotografia, em especial do retrato de músicos, merece ainda ser considerada de forma particular. Consideramos então que, no estudo das imagens de intérpretes, a representação de músicos através da fotografia envolve um ethos construído. Na composição de sua fórmula performativa dramática, o sentido buscado é o distanciamento, a formulação do desejo. Mostrar e esconder, dar e negar. Aproximar o público da imagem do objeto artístico e ao mesmo desenhar as fronteiras entre este e o mundo real e cotidiano. 161 ensino musical, dos teatros e salas de concerto como lugares de memória para a prática musical, guardiões de um patrimônio musical que é parte importante da rede de formação de sentido onde se entrecruzam saberes, práticas e representações. 162 Indicações para leitura ou notas sobre acervos musicais e pesquisa em música no Rio Grande do Sul Sobre acervos e arquivos que tenham informações sobre música de forma direta ou tangencial, podemos citar o Museu de Comunicação Social Hypólito José da Costa, Museu da PUC/RS, Museu de São Leopoldo e Acervo Roberto Eggers, Discoteca Pública Natho Henn. Ainda, existem acervos importantes que guardam a história e trajetória de bandas e agrupações musicais, como a Banda Rossini da cidade de Rio Grande, que já foram temas de estudos específicos no âmbito da pós graduação. Alguns acervos de teatros, salas de concerto e escolas de música tem recebido atenção e um trabalho de sistematização, ainda que não integral, de seu material. Exemplos disto são o Memorial do Theatro Sete de Abril (Pelotas), o Arquivo Histórico do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre) e o Centro de Documentação Musical da Universidade Federal de Pelotas, que abriga a memória do Conservatório de Música de Pelotas e sua posterior incorporação à esta universidade. Faz-se necessário ainda referir os acervos de revistas e periódicos das bibliotecas das cidades de Pelotas e Rio Grande, que abrigam coleções importantes que vem sendo utilizadas para pesquisa sobre temas diversos, incluindo música e todos seus possíveis desdobramentos. Os trabalhos escritos sobre a música no Rio Grande do Sul, ainda que bastante raros até o começo dos anos 1980, são hoje relativamente mais freqüentes e costumam centrar-se nos século XIX e XX. Na bibliografia panorâmica sobre música brasileira observa-se uma ausência de referências sobre a música no Rio Grande do Sul, possivelmente por uma concepção, não explícita, embora perfeitamente identificada e recorrente; de abordar a música do Rio de Janeiro e São Paulo como se ali houvessem sido geradas as tendências musicais que se disseminaram para o restante do país. Nestas considerações, exceção seja feita à produção musical de Minas Gerais e Bahia. Nas raras vezes em que esta historiografia panorâmica incluía notas sobre o Rio Grande do Sul, estas eram feitas sob a forma de referências biográficas de um ou outro compositor em específico. Alguns trabalhos fundantes de uma reflexão sobre a prática musical no Rio Grande do Sul são escritos por intelectuais, compositores e músicos gaúchos, e dentre estes precursores destacamos Athos Damasceno, Antonio Corte Real, Enio Freitas e Castro e Paulo Guedes, principalmente. Athos Damasceno é autor de um livro ainda hoje de referência para quem deseja aproximar-se da história da música no estado no século XIX, especialmente na cidade de Porto Alegre: “Palco, salão e picadeiro”. É também autor, juntamente com Guilhermino César, Paulo Antonio Moritz e Herbert Caro de outra obra fundamental, “O Teatro São Pedro na vida cultural do Rio Grande do Sul”, em que pese os problemas de ambas as obras no que se refere à referência das fontes primárias. Apresentando extensa quantidade de dados, a obra apresenta informações sobre as temporadas artísticas do teatro, e está dividida em capítulos que versam sobre o teatro e as sociedades dramáticas da cidade, o teatro declamado no século XX, ópera, opereta, dança, concertos e recitais. Mesmo sem uma dedicação específica à música do Rio Grande do Sul, cabe referir também o trabalho do musicólogo Bruno Kiefer, nascido na Alemanha, e que desenvolveu todo seu trabalho no Rio Grande do Sul. Ainda que não verse diretamente sobre a música neste estado, cabe referir seu trabalho sobre história, compositores e gêneros da música brasileira, deixando ver o planejamento de uma obra de fôlego que, no entanto, ficou incompleta. Obra também de referência e constantemente citada, ainda que escrita em 1980, é o artigo da musicóloga Maria Elizabeth Lucas, posto que apresenta uma visão do conjunto da produção musi- cal, propondo um entendimento sistemático dos processos sob o enfoque das classes sociais e sua relação com a cultura musical. Posteriormente à este trabalho, a pesquisadora tem se dedicado à musicologia e etnomusicologia, com ênfase na antropologia da música e da performance. Sobre a obra e trajetória do compositor Armando Albuquerque, que foi professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dedicou-se o compositor e pianista Celso Loureiro Chaves, que realizou ainda gravações destas obras, também referenciais importantes. No âmbito da música popular do Rio Grande do Sul, destacamos os trabalhos de Hardy Vedana, pesquisador que vem dedicando-se longamente ao tema em seus diversos aspectos; e o exaustivo trabalho realizado por Arthur de Faria e publicado pela CEEE, onde analisa a produção musical urbana do RS, centrado especialmente em Porto Alegre, em todo o século XX. Ao observamos os trabalhos existentes sobre o tema, percebemos, à exemplo da já citada tendência no âmbito brasileiro, uma centralidade de estudos na cidade de Porto Alegre e arredores. Uma possível concepção que percebe a capital do estado como disseminadora das práticas e conceitos musicais, agravada pela ausência de acervos musicais constituídos que forneçam elementos para pesquisa em outras cidades além de Porto Alegre talvez possa subsidiar a compreensão do problema. Cumpre observar também que as universidades, criadas ou não a partir dos antigos conservatórios existentes no estado, vêm sistematizando e incentivando de forma contundente a pesquisa acadêmica sobre música no Rio Grande do Sul. Os cursos de pós-graduação desempenham um papel importante neste processo, a partir, principalmente do Curso de Pós Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, criado em 1987. Congregando pesquisadores em música do Rio Grande do Sul e de outros estados brasileiros, incentivou sistematicamente a produção de novos trabalhos sobre os vários aspectos da música em nosso estado, através das dissertações, teses e das publicações científicas que mantém. Dentre as dissertações de mestrado que tratam da música no período em questão, referimos o trabalho de Cláudia Leal Rodrigues, que apresenta um estudo sobre o processo de institucionalização do ensino musical no Rio Grande do Sul no final do século XIX e início do século XX. Também sobre o Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul temos o trabalho de Círio Simon, destacando as transformações pelas quais passou a instituição. Destacamos também os trabalhos de Fabiane Luckow sobre as chanteuses e cabarés em Porto Alegre no início do século XX e de Luana Zambiazzi dos Santos, sobre a Casa A Eléctrica e as primeiras gravações fonográficas no sul do Brasil. No entanto, cumpre notar que o interesse acadêmico sobre os temas da música não é objeto de estudo apenas dos cursos de música. A interface com outras áreas de conhecimento intensifica-se ano após ano, tornando-se imprescindível para a localização das pesquisas sobre música no Rio Grande do Sul a busca por trabalhos acadêmicos nas áreas de literatura, história, antropologia, sociologia, entre outras. Neste âmbito, fazemos referência aos trabalhos de Julia Rosa Simões, sobre o Instituto Musical Porto Alegre, de Márcio de Souza sobre Otávio Dutra e o choro no Rio Grande do Sul, e de Lucas Panitz, que trata do espaço geográfico de uma música popular platina. A partir da década de 1990, os livros publicados têm tratado de temas mais pontuais, abandonando, de certa forma, a concepção de uma história panorâmica da música no Rio Grande do Sul. Alguns dos principais livros publicados sobre o tema são Batuque jêje-ijexá em Porto Alegre: a música no culto aos orixás, de Reginaldo Gil Braga; Saberes musicais em uma bateria de escola de samba, de Luciana Prass; e Yvy Poty, Yva’? - Flores e Frutos da Terra, de Marilia Stein. Sobre a música na cidade de Pelotas, citamos os livros El pianismo en la ciudad de Pelotas, História Iconográfica do Conservatório de Música de Pelotas e Música, memória e sociedade ao Sul, de Isabel Porto Nogueira, e O Teatro Sete de Abril, de Klécio Santos. Citamos ainda os trabalhos de pesquisa desenvolvidos por Flávio Silva, sobre a música em Cachoeira do Sul, e por Guilherme Goldberg, sobre a música PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 163 na cidade de Rio Grande e sobre o Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul. Ambos autores vêm se dedicando a temáticas de pesquisa diversas, e dentre elas estão a música no Rio Grande do Sul. Esta produção tem sido apresentada em congressos e seu resultado em artigos e capítulos de livros. Observa-se que a produção recente possui um caráter diferente da antiga historiografia panorâmica, apresentando temáticas mais pontuais de investigação e colocando em diálogo enfoques e fontes de pesquisa. Ainda que o trabalho de musicólogos e etnomusicólogos possa ressentir-se da relativa ausência de acervos constituídos sobre música no Rio Grande do Sul, é inegável que esta produção constitui um olhar memorial e patrimonializante sobre a trajetória e prática musical no estado. RECKZIEGEL, Ana Luíza Setti (org. volumes) História Geral do Rio Grande do Sul Vol.3, Tomo 2. Passo Fundo: Méritos, 2007. NOGUEIRA, Isabel Porto; SILVEIRA, Jonas Klug. Reflexões interdisciplinares a partir de “A Arte do Canto”, manuscrito inédito do barítono gaúcho Andino Abreu. Opus, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 9-38, jun. 2011. Referências bibliográficas ABREU, Maria. O cantor Andino Abreu. Apostila datilografada, 8 páginas, s/d. CALDAS, Pedro Henrique. História do Conservatório de Música de Pelotas. Pelotas: Semeador, 1992. CHAVES, Celso Loureiro; NUNES, Leonardo de Assis. Armando Albuquerque e os poetas. Per musi, Belo Horizonte, v. 8, p. 66-73, 2003. COOK, Nicholas. “The Domestic Gesamtkunstwerk, or record sleeves and reception”. In: THOMAS, Wyndham (ed.) Composition, performance, reception: studies in the creative process in music. Aldershot: Ashgate, p. 105-117, 1998. CORTE REAL, Antônio. Subsídios para a História da Música no Rio Grande do Sul. 2ed. Porto Alegre: Movimento, 1984. LEAL RODRIGUES, Claudia Maria. Institucionalizando o ofício de ensinar: um estudo histórico sobre a educação musical em Porto Alegre (1877-1918). Dissertação (Mestrado em Música). Porto Alegre UFRGS, 2000. LUCAS, Maria Elizabeth. “Classe dominante e cultura musical no RS: do amadorismo à profissionalização”. In: GONZAGA, Sergius; DACANAL, José Hildebrando (orgs.). RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, 1980. LUCAS, Maria Elizabeth. “História e patrimônio de uma instituição musical: um projeto modernista no sul do Brasil?”. In: NOGUEIRA, Isabel Porto (org.). História Iconográfica do Conservatório de Música de Pelotas. Porto Alegre: Pallotti, 2005. NOGUEIRA, Isabel Porto. El pianismo en la ciudad de Pelotas. Pelotas: Ed. da UFPel, 2003. NOGUEIRA, Isabel Porto (org.). História Iconográfica do Conservatório de Música de Pelotas. Porto Alegre: Pallotti, 2005. NOGUEIRA, Isabel Porto (org.). Música, memória e sociedade ao sul: retrospectiva do Grupo de Pesquisa em Musicologia da UFPel (2001-2011). Pelotas: Editora da UFPel 2011. NOGUEIRA, Isabel Porto; SOUZA, Márcio. “Aspectos da música no Rio Grande do Sul durante a Primeira República (1889-1930)”. In: GOLIN, Tau; BOEIRA, Nelson (coord. geral); AXT, Gunter; 164 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 165 PATRIMÔNIO E CRIAÇÃO CONTEMPORÂNEA O legado do Grupo de Compositores da Bahia: memória e invenção Ilza Nogueira Universidade Federal da Paraíba Academia Brasileira de Música Alguns pesquisadores, musicólogos e compositores, vêm se debruçando sobre a construção da história da composição musical na Bahia, de forma sistemática ou assistemática, em perspectiva analítica, crítica ou descritiva, com contribuições pontuais ou sequenciais.1 A eles me associo, pois venho desenvolvendo um projeto de pesquisa há 12 anos, que pretende ser uma espécie de “museu virtual” da criação musical desenvolvida na Universidade Federal da Bahia a partir do ano 1966, isto é, da fundação do Grupo de Compositores da Bahia. “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na UFBA” abriga, principalmente, três séries de publicações eletrônicas: 1) Edições críticas de partituras com comentários analíticos;2 2) Edições críticas de textos teóricos, didáticos, etc., acompanhados de comentários críticos;3 3) “Catálogos-web”.4 Outros subsídios à pesquisa – como projetos educativos, entrevistas, remissão a documentários e literatura online –, além de dados biográficos dos compositores com listas de obras e uma galeria de fotos também são coletados no site do projeto. Entendo que o legado do Grupo, assunto desta exposição, não se constitui propriamente do conjunto das obras musicais, mas de uma identidade que nelas se desdobra ao nível do ideário e de procedimentos composicionais. De natureza técnica e ideológica, portanto, esse legado se fundamenta em dois polos: tradição e inovação, ou “memória e invenção”, como diz o título do livro de Paulo Costa Lima,5 onde, entre crônicas e ensaios diversos, o autor tece uma importante reflexão sobre a identidade cultural da Bahia e seus reflexos na música baiana. Para provocar o assunto propriamente dito, vou evocar Walter Smetak: “O Brasil é a terra das impossibilidades possíveis, onde futuramente se materializará uma nova ordem e lógica [...]” (Smetak, 1985, p. 7). Concordo com a constatação paradoxal, mas não com a profecia. Não me parece que ordem ou lógica sejam conceitos que se apliquem ao modo de ser brasileiro, e especialmente ao jeito de ser baiano. Não creio que Smetak não entendesse a cultura brasileira, e especialmente a da Bahia; mas percebo na sua frase resquícios da memória centro-europeia, especialmente suíça. Na Bahia, várias ordens e diferentes lógicas convivem, dialogam, se entendem. Numa sociedade múltipla de matrizes étnicas e culturais, distintas identidades se se entrelaçam e desenlaçam. 1 Os professores da Escola de Música da UFBA Manoel Veiga, Paulo Costa Lima e Pablo Sotuyo Blanco desenvolvem uma trajetória de pesquisas convergentes ao tema “Patrimônio Musical da Bahia”. 2 Esta série leva o nome do projeto. Atualmente, inclui os compositores Alda Oliveira, Ernst Widmer, Fernando Cerqueira, Jamary Oliveira, Lindembergue Cardoso, Milton Gomes, Rinaldo Rossi e Ruy Brasileiro. 3 Atualmente, a série “Marcos Teóricos da Composição Contemporânea na UFBA” inclui textos de Ernst Widmer, Lindembergue Cardoso, e a “Declaração de Princípios do Grupo de Compositores da Bahia” com depoimentos de integrantes do Grupo sobre o significado daquele documento no contexto de sua época. 4 Atualmente, a série inclui os catálogos de Ernst Widmer, Lindembergue Cardoso e Fernando Cerqueira Até 2014 serão lançados os catálogos de Agnaldo Ribeiro e Jamary Oliveira. 5 Lima, 2005. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 169 O objetivo deste trabalho é expor e demonstrar como a cultura plural da Bahia singularizou a produção musical desenvolvida pela UFBA a partir da criação do Grupo de Compositores. Para tanto, referir-me-ei aos personagens que instauraram o movimento, ao contexto sócio-histórico, à ideologia e, finalmente, à identidade musical, aos níveis do ideário e modus faciendi. Para demonstrar como essa identidade sobrevive na obra de compositores baianos que se consideram herdeiros do movimento, abordarei aspectos ideológicos e estruturais em obras de Paulo Costa Lima e Wellington Gomes. Os fundadores do movimento A figura 1 é uma das primeiras documentações fotográficas do grupo. Embora não apresente toda a formação original, ela representa a sua “intelligentsia”.6 Integravam-se no movimento praticamente três gerações de diferentes procedências,7 entre europeus e brasileiros nordestinos de distintas sub-regiões litorâneas e sertanejas. cações de Ives e Bruckner revertem-se num final “apotelíptico”, quando orquestra e afoxé deixam o recinto pela platéia entoando “Filhos de Ghandi” de Gilberto Gil, a quem a música é dedicada. O modelo da babélica peça de Ives, projetado 80 anos adiante e submetido a uma releitura tropical – carnavalizado, portanto – reverte a problematização de uma impossibilidade dialógica ao nível dos discursos para uma solução de democratização cultural que seria imponderável acima dos 40º de latitude norte. A possível resposta de Widmer, portanto, responde pela sua identidade musical brasileira e principalmente baiana. Tinha razão Smetak... Baiano por convicção, suíço por acidente, ele integrou o movimento como “membro honorífico”. Sua postura ética se distinguia sobremaneira no Grupo: enquanto todos se afirmavam como “compositores”, ele se definia como “descompositor”.8 Na Universidade da Bahia, onde chegou em 1957, destacou-se como inventor de instrumentos experimentais, para execução individual e coletiva, de diversas categorias – sopros, percussão, cordas percutidas e friccionadas, além de “plásticas sonoras”.9 Feitos de materiais não nobres (como tubos de PVC, cabaças e mangueiras plásticas), e avessos a possibilidades de desenvolvimento técnico, esses instrumentos refletem uma concepção mística e expressam um simbolismo exotérico, refletindo a íntima relação do autor com a antroposofia (Fig. 2). Figura 1: J. Oliveira, M. Gomes, E. Widmer, L. Cardoso, F. Cerqueira, N. Kokron, R. Rossi Ernst Widmer foi um baiano que nasceu no país errado: a Suíça. Em sua Música “De Cantro em Canto II”, subtitulada “Possível resposta à ‘Pergunta não respondida’ de Charles Ives” (1988), o compsitor propõe o amálgama impensável entre a orquestra tradicional e um grupo de afoxé. Evo- 170 Figura 2: W. Smetak, “Choris”10 Na oficina de Smetak, o Grupo experienciava a microtonalidade, a pesquisa de timbres e a improvisação coletiva; sonhos de um universo imponderável em Livramento de Nossa Senhora, Ruy Barbosa, São Gonçalo dos Campos, Irará, ou mesmo em Recife nos anos 1940 e 1950, onde cresceram Lindemberque Cardoso, Jamary Oliveira, Tom Zé, Fernando Cerqueira e Rinaldo Ros- 6 Uso o termo na acepção que ele teve na Alemanha em meados do Século XIX, quando Intelligentz designava um grupo que se distinguia na sociedade por sua educação e atitudes progressistas (seg. Richard E. Pipes em seu livro The Russian Intelligentsia de 1961). 7 Walter Smetak (Zurique, 1913 - Salvador, 1984), Milton Gomes (Salvador-BA, 1916 - 1974), Ernst Widmer (Aarau, 1927 - 1990), Nikolau Kokron (Budapest, 1936 - Brasília, 1972), Tom Zé (Irará, 1936), Lindembergue Cardoso (Livramento de Nossa Senhora-BA, 1939 - Salvador, 1989), Fernando Cerqueira (Ilhéus-BA, 1941), Jamary Oliveira (Saúde, BA, 1944), Carmem Mettig (Salvador, 1941), Rinaldo Rossi (Recife, 1945 - Salvador, 1984), Carlos Rodrigues de Carvalho (Capela do Alto Alegre de Riachão do Jacuípe, 1951). “Eu sou um descompositor contemporâneo”: este é o título do catálogo da exposição das plásticas sonoras de Smetak na Galeria São Paulo (30.1 a 6.3.1989). A frase também inicia o texto de Smetak que abre o catálogo. 9 A interface desses instrumentos com as artes plásticas levou Smetak a expor na “I Bienal Nacional de Artes Plásticas” (conhecida por “Bienal da Bahia” e realizada em Dezembro de 1966, no Convento do Carmo, em Salvador), tendo na ocasião recebido o “Prêmio de pesquisa” Norberto Odebrecht. 10 A denominação desses instrumentos vem de “choro” e “riso”. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 8 171 si. Essa era a juventude promissora do movimento, em cuja memória ainda ressoavem as bandas filarmônicas, os cânticos de romarias e o repertório de Luiz Gonzaga. A constituição do Grupo era paradoxal: professando diversas “crenças” culturais, eles se uniam no ideal de comunhão com a música contemporânea. Que destino tomaria aquela heteroglóssia, constituída de referenciais estéticos tão distintos: o universo modal sertanejo, o mundo rítmico-tímbrico afro-baiano, as concepções estruturalizantes de procedência centro-europeia, e ainda o sonho de um “descompositor” antroposofista com a fusão sonora do Oriente com o Ocidente? Poderia esse destino ser a “nova ordem e lógica” profetizada para a “terra das impossibilidades possíveis”? Se por “nova ordem” pudermos compreender antiordem e por nova lógica, o delírio dos discursos supralógicos, a intuição de Smetak foi certamente alimentada pelo Grupo. Mas o desafio da lógica e da ordem não seriam suficientes para garantir ao Grupo uma “voz” própria. Desde Bakhtin11 entendemos o conceito de “voz” – a forma pela qual nos expressamos – como a interação de múltiplas perspectivas: individuais, sociais, históricas, e até mesmo meteorológicas. Discursos são marcados pela vivência cultural e pelo tempo histórico. No caso do Grupo, cruzavam-se vários percursos sócio-histórico-culturais, desafiando a possibilidade do diálogo, de aberturas nas fronteiras entre o idioleto e o socioleto. A “voz” do Grupo, não era uma preocupação deles. Ou melhor, não era o desejo do movimento. No entanto, a trajetória sócio-histórica delineia inevitabilidades em seu percurso. Minha pesquisa teve como principal objetivo a definição dos traços de um “socioleto musical básico”, que reconheço subjacente aos vários idioletos de compositores que integraram o Grupo ou se dizem “herdeiros” dos princípios ideológicos do movimento. Se o Grupo não operou por essa “voz social”, e ela se delineava como uma impossibilidade pela sua “constituição paradoxal”, Smetak tinha razão. A possibilidade dessa identidade musical, que reconheço como o “legado” do movimento, eu atribuo ao “estalo” de Widmer, ao conceber um ensino de composição para o Grupo fundamentado em duas “leis” básicas: organicidade e relativização. A meu ver o professor de composição deve interferir o menos possível e propiciar o mais possível. Nada de regras, apenas abrir horizontes, fazer conhecer obras contemporâneas de todas as correntes e aplicar exercícios técnicos individualizados a fim de aguçar o metier. Mas fundamentalmente partindo de, e respeitando duas leis básicas: - a lei da organicidade - a lei da relativização (Widmer, 1988, p. 1-2) O contexto sócio-histórico Não se poderia compreender a identidade musical do Grupo sem conhecer o contexto sócio-histórico de sua época e espaço geográfico. Sobre esse assunto, já me debrucei minuciosamente em – “A criação musical em diálogo com o contexto político-cultural: o caso do Grupo de compositores da Bahia”, um artigo publicado recentemente pela Revista Brasileira de Música.12 Vou me ater aqui, portanto, a pontuar os fatos indispensáveis. Em 1966, os “Seminários de Música” da Universidade Federal da Bahia constituíam uma escola “adolescente”. Fora fundada em 1954, por H. J. Koellreutter, no início dos anos dourados da Universidade: a “Era Edgard Santos”.13 Quando deixou definitivamente a Bahia em 1962, Koellreutter Os Seminários oferecerão um ensino artístico baseado [...] num programa moderno e eficiente que respeite no aluno os seus dons naturais, desenvolva sua personalidade e o conduza à procura de estilo e expressão próprios, em substituição do ensino acadêmico, baseado em fórmulas e regras que matam a força criadora e reduzem a arte a um processo. (Koellreutter apud Bastianelli, 2003, p. 5) Entretanto, durante o período em que Koellreutter administrou a escola e ministrou o ensino de composição, a prática composicional era essencialmente voltada à vanguarda de caráter científico e universal, estando completamente descomprometida com as vivências musicais locais. Em 1963, quando Widmer assumiu o ensino de composição, ele já havia escrito seu Divertimento III para grupo de câmera, cujo ponto de partida é uma canção tradicional (Coco peneruê). Desde então, seu interesse pelas tradições locais estimulou os alunos a moldarem sua vivência musical em seus trabalhos de composição. Em abril de 1966, Rinaldo Rossi organizou um concerto comemorativo da Semana Santa. Estudantes de composição e o professor Widmer compuseram sete pequenos oratórios.15 O sucesso inesperado incentivou os jovens compositores a reunirem-se semanalmente, para discutir sobre música, educação e seus trabalhos de composição. Surgiu, então, informalmente, o “Grupo de Compositores da Bahia”, cuja motivação fundamental se encontrava no diálogo: dos compositores entre si; do Grupo com seus intérpretes; entre o Grupo e o público. A partir de 1967, O Grupo iniciou uma tradição de apresentações anuais de jovens compositores abrigando concursos de composição, festivais e cursos de música nova. Salvador despontou no cenário brasileiro da música contemporânea. O reconhecimento nacional dos compositores ocorreu com os festivais da Guanabara.16 Imediatamente, iniciou-se um reconhecimento internacional na Europa, com performances, exposições de partituras e publicações.17 No entanto, esse cenário promissor não sustentou o movimento. Que motivos teriam levado o Grupo a se desarticular progressivamente em meados dos anos 1970? Voprosy literatury i estetiki, 1975. Revista Brasileira de Música, vol. 24, n. 2, Jul./Dez.2011, p. 351-380. 13 Conhece-se como “Era Edgard Santos” o período de 15 anos (1946-1961) em que a Universidade da Bahia (UBa), sob o comando do Reitor Edgard Rego dos Santos, foi incentivadora e sustentadora de uma série de movimentos renovadores no campo das artes (principalmente da música e das artes cênicas), da literatura e das humanidades, bem como esteve na vanguarda de empreendimentos que buscavam redirecionar os rumos políticos e econômicos da Bahia. 14 Suíços: a família Benda (Lola, violinista; Dora, violista; e Sebastian, pianista), Ernst Widmer (compositor), Pierre Klose (pianista), Ula Hunziker (flautista) e Walter Smetak (violoncelista); Italianos: Antonio Ardinghi (violinista) e Piero Bastianelli (violoncelista); Húngaros: Edith Perényi (violista), George Kiszely (violinista), e Nikolau Kokron (trompista). Alemães: Armin Guthman (flautista), Georg Meerwein e Gerald Severin (oboístas), Georg Zeretzke e Walter Endress, (clarinetistas), Adam Firnekaes (fagotista), Horst Schwebel (trompetista), Volker Wille (trompista), Ursula Schleicher (harpista), Lothar Gebhardt (violinista), Johann Georg Scheuermann (violista), Günter Goldman e Peter Jakobs (contrabaixistas) e Johannes Hoemberg (regente). 15 Elegia de F. Cerqueira, Exortação Agônica de M. Gomes, Pilatus de N. Kokron, Nu de J. Oliveira, Impropérios de A. J. Santana Martins, Do Diálogo e Morte do Agoniado de R. Rossi e Diálogo do Anjo com as três Mulheres de E. Widmer. 16 I Festival de Música da Guanabara (âmbito nacional) – maio de 1969: 3.º Prêmio: L. Cardoso, Procissão das Carpideiras; 4.º Prêmio: F. Cerqueira, Heterofonia do Tempo; 5.º Prêmio: M. Gomes, Primevos e Postrídio. II Festival de Música da Guanabara (âmbito americano) – maio de 1970, categoria sinfônica: 1.º Prêmio: A. Widmer, Sinopse; 3.º Prêmio: L. Cardoso, Espectros; Prêmio do Público: F. Cerqueira, Decantação. 17 Em 1970, F. Cerqueira participa da Tribuna Internacional de Compositores da UNESCO em Paris com Contração Op. 5. Em 1971, L. Cardoso participa da próxima edição da Tribuna com Espectros e da VII Bienal de Paris com Quinteto. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 11 12 172 havia atraído para a escola nada menos que 26 professores europeus.14 Naquela escola, um misto de expressões e sotaques provenientes dos idiomas alemão, italiano, francês, húngaro, suíço e português formavam um verdadeiro território translinguístico, partilhado entre estudantes vindos de todas as regiões do Brasil. O espírito definido por Koellreutter para a nova escola deslumbrou Ernst Widmer, quando da sua chegada à Universidade da Bahia em 1956: 173 Não podemos deixar de lembrar que a estrutura política do Brasil conspirava negativamente em relação ao desenvolvimento cultural, conduzindo intelectuais e artistas a migrações. A partir de 1969, o Grupo começou a desfalcar-se de alguns membros fundadores, atraídos principalmente para Brasília, quando a nova universidade,18 esvaziada dos seus melhores professores pelo regime militar, tentava reestruturar-se. Fernando Cerqueira foi um dos absorvidos pela UnB durante os primeiros anos 1970. Há dois anos atrás ele nos deu um depoimento sobre as razões que o levaram a deixar Salvador por Brasília em 1970, e a retornar para Salvador em 1975. A essência desse depoimento é a seguinte: As razões e motivações da minha ida foram tanto de ordem profissional quanto ideológica e artística: não podia desprezar a oferta de um bom emprego em condições vantajosas [...]; a efervescência e a modernidade das ideias na UnB, que levavam a um pensamento mais experimental, com pesquisas metodológicas e reflexão antropológica sobre o papel da arte e do artista, considerando a música de modo integrado na sua percepção estética e na relação epistemológica com as demais expressões artísticas. [...] Brasília, no entanto, perdia para a Bahia naquilo que musicalmente termina sendo o essencial: a criatividade espontânea e a vivência musical com uma diversidade que acolhe toda a riqueza cultural e humana que aqui sobrevive e que predetermina o que entendemos como a musicalidade baiana. [...] Cheguei em Salvador em agosto de 1975. Quanto ao sentido do Grupo, comparando com o movimento a partir de 1966, não conseguimos, na prática, retomar debates e trabalhos como antes. [...]. Todos nós estávamos atarefados com sérios compromissos pessoais e profissionais, que não deixavam mais espaço para brincadeiras musicais. (Cerqueira, 2010). Essa reflexão de Cerqueira abre alas para as considerações sobre a ideologia do movimento. Ideologia Não se pode refletir sobre a ideologia do Grupo sem nos referimos à sua “Declaração de Princípios”: um panfleto caricato que deveria acompanhar o programa de um concerto do Grupo (Anexo I). A metáfora implícita e o teor anárquico explícito não passaram despercebidos ao patrocinador do evento – o Instituto Goethe. Confiscado antes do concerto, o texto ficou desconhecido na época. Em seu “Artigo único” – “Estamos contra todo e qualquer princípio declarado” – o Grupo se posiciona de forma tanto paradoxal quanto ambígua. Contra que tipo de princípios se declarava o Grupo? Estéticos? Políticos? Seria o texto uma reação vanguardista ao convencional? Teriam os compositores o desejo único de ironizar (assim censurando) a censura imposta aos espetáculos artísticos? Vinte anos mais tarde, Widmer se referiu ao “Artigo Único”, considerando-o antes sob um aspecto estético-ideológico do que sócio-político: O lema do Grupo de Compositores da Bahia [...] – ‘principalmente estamos contra todo e qualquer princípio declarado’ – representa um esforço consciente de uma postura não-dogmática valorizando a diversidade idiossincrática; de evitar tolhimento oriundo de técnicas e estilos já sistematizados. Nesse sentido, o movimento do Grupo é anti-escola, descondicionador e paradoxal. [Ele] permitiume [...] vislumbrar que o dual está virando trial, o dilema, trilema, o temido choque de estilos, ecletismo. Ecletismo como ‘estilo’ de uma época sincrética! (Widmer, 1985, p. 69-70). A propósito das considerações de Widmer, Fernando Cerqueira faz a seguinte reflexão: 18 174 A Fundação Universidade de Brasília (FUB) começou a funcionar em abril de 1962. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Sobre o nosso ‘ecletismo’, começo a achar necessário que seja mais discutido e redefinido, para não ser caracterizado como um ‘estilo’, mas como uma permanente atitude de abertura para estilos (inclusive não ecléticos) que a obra-ideia pedir [...]. (Cerqueira, 2000) Considerando as reflexões de Widmer e de Cerqueira, Jamary Oliveira adverte: “A falta, a mistura, o contraste de estilos, a “permanente atitude de abertura” (como afirma Fernando), etc., não deixam de apontar para um estilo.” (Oliveira, 2012). Permeabilidade e inclusividade: assim podemos resumir esse circuito dialógico que não se refere a outra coisa senão a ideologia e identidade. Identidade musical A atitude de permanente abertura foi individualmente interpretada na produção do Grupo; isto é, podemos distinguir os traços “fisionômicos” das suas músicas. Entretanto, pode-se reconhecer uma certa comunalidade subjacente nessa diversidade fisionômica, que se define ao nível do ideário e de princípios de estruturação. Ideário e princípios estruturais dos quais são herdeiros compositores da Bahia de gerações subsequentes, como Paulo Costa Lima (Salvador, 1954) e Wellington Gomes (Feira de Santana, 1960). Ideário No que diz respeito à poiesis, tudo o que se pode observar converge para uma concepção musical referencial direcionada à representação do encontro e desencontro das matrizes culturais presentes na complexa teia social baiana: as manifestações folclóricas (como capoeira, roda de samba, maculelê, reisado, etc.), a MPB em sua evolução (de Caymmi ao pop rock, passando pela Tropicália, Novos Baianos, Olodum e Axé), o misticismo (sincretizando o candombe e o catolicismo) e as festas populares, tudo isso regido pelo contexto político e econômico do Brasil nos anos 1960 a 1990 (em que pesam os 21 anos de ditadura militar e o difícil enquadramento do sonho democrático a partir de 1986). O “ecletismo” que se reconhece na produção do Grupo, ao nível do ideário, define-se na representação do encontro das heranças culturais e das escutas do mundo contemporâneo; das fricções entre o universo modal da matriz sertaneja, o mundo rítmico-tímbrico da matriz afrobaiana, a cultura popular, o organicismo schoenberguiano e as concepções vanguardistas. Reflete-se na obra do Grupo o sincretismo que define a cultura baiana como um todo, comandando técnicas de fusão ou hibridação de apropriações culturais díspares, e submetendo as referências a ressignificações, ao universo peirciano dos ícones, índices e símbolos. Se podemos identificar um tema abrangente para o trabalho composicional do Grupo, esse tema é a Bahia, múltipla, eclética, multicor. Modus faciendi Apesar de se autodenominarem, propositadamente, sem o nome da Universidade, a obra do Grupo de Compositores da Bahia não nega a gênese institucional: é filha do ensino desenvolvido por Widmer e da pesquisa experimental realizada por Smetak naquela instituição, onde pesavam a estruturação musical (nas salas de aula) e a improvisação (no laboratório de Smetak). Outra vez, no binômio Widmer – Smetak evidencia-se o paradoxo, a complementaridade dos opostos, refletida na produção do grupo em dois princípios interativos: um, construtivista, fundamentalmente orgânico, narrativo, buscando a coerência nos processos de releitura, de reinvenção; e outro desconstrutivista, problematizando as rupturas, os discursos não lineares, a estética do estranhamento. Variação e Momentform, trabalho motívico e indeterminação, são referenciais na identidade musical do Grupo, PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 175 muitas vezes convivendo numa mesma obra. Referências Demonstração Observaremos dois exemplos da “segunda geração” dos compositores da UFBA, aqui representada por Paulo Costa Lima (“Op. 42”, 1995) e Wellington Gomes (“Abertura Baiana”, 1994). Nas duas peças selecionadas, observa-se um procedimento composicional essencialmente referencial e intertextual. Em “Opus 42” (Anexo II), a instrumentação – flauta e violão – já é uma referência explícita ao gênero brasileiro que o compositor reinventa: o chorinho. Outras referências materializam-se num procedimento de interfertilização entre a Badinerie da Suite Orquestral n.º 2 de J. S. Bach e o toque do “Opanijé” (xxx.xxxx.xxx.x.xx.).19 À regularidade da subdivisão de 16 pulsos em 4 x 4 contrapõe-se a assimetria da articulação em 4 + 4 + 3 + 2 + 3, característica da louvação a Omolu. O resgate do caráter dialógico e improvisativo do choro propõe-se como espaço de possibilidade de uma interlocução criativa e conciliativa entre dois universos paradoxais, sincretizados num produto híbrido: algo entre um Bach usando um filá de palha da costa e um Omolu com uma longa peruca de cachos. Autêntico procedimento de carnavalização, típico da identidade cultural brasileira, e muito especialmente na Bahia, onde o espírito da poesia satírica de Gregório de Mattos20 ainda vive. A “Abertura Baiana” é descrita pelo compositor como “um conjunto de fragmentos de canções de diferentes tendências da música baiana, distribuídos numa espécie de rapsódia.” A peça evolui numa sequência de seções tematizadas com citações do cancioneiro popular baiano e passagens transitivas, onde o compositor elabora texturas complexas de caráter tipicamente pós-tonal. A composição flui, portanto, entre os universos do arranjo e da criação original, numa estética que evoca o artesanato do patchwork. No trecho anexo (v. Anexo III), uma seção transitiva conduz à citação de uma canção popular muito representativa da Bahia: “É d’Oxum”, 21 do compositor Gerônimo (comp. 83-98, fl. e cl.). Mestiçagem cultural, miscigenação estética, dialogismo entre tradições, apropriação, recontextualização e transformação: marcas identitárias do discurso musical desenvolvido pelo Grupo de Compositores da Bahia, traduzidas em diferentes concepções compositivas. No exemplo de Paulo Lima, observamos a fusão dos elementos apropriados, cuja identidade comprometeu-se no produto derivado. O deslocamento dos significados originais das apropriações aponta para um comportamento compositivo de cunho ético, típico dos procedimentos de carnavalização. No caso de Wellington Gomes, permanecendo perceptível a ambiguidade proveniente da diferença de identidades entre o intertexto e seu novo contexto, revela-se um procedimento de hibridização. Com função tropológica, os micro-textos apropriados configuram uma intertextualidade narrativa, de caráter essencialmente estético. Entre o discurso paródico de Paulo Lima e o estilizado de Welligton Gomes, 22 inserem-se varias instancias estilísticas de referencialidade e representatividade na música do Grupo baiano. Que este texto seja um bom “pre-texto” para futuras investigações no campo das interfaces entre ideología e estética. BASTIANELLI, Piero. A Universidade e a Música: uma memória 1954 - 2003. 2 vols., Salvador: Editora Contexto, 2003. CERQUEIRA, Fernando. Comentário escrito em diálogo pela internet com a autora, 16/7/2000. CERQUEIRA, Fernando. Depoimento escrito concedido ao Projeto “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na UFBA” em 15/5/2010. LIMA, Paulo Costa. Memória e Invenção: Navegação de palavras em crônicas e ensaios sobre música & adjacências. Salvador: EDUFBA, 2005. OLIVEIRA, Jamary. Comentário escrito em 16/1/2012, em diálogo pela internet com a autora. SMETAK, Walter. “O Alquimista de Sons”. Entrevista concedida a Renato de Moraes. (Veja, Rio de Janeiro, 5.5.1985). In: FRAGA, Myriam et al. SMETAK, Retorno ao Futuro. Salvador: Publicação da Associação dos Amigos de Smetak, 1985. WIDMER, Ernst. “Travos e Favos”. Art 13, Revista da escola de Música da UFBA. Salvador: Editora Universitária, p. 63-71, 1985. WIDMER, Ernst. A Formação dos Compositores Contemporâneos... E seu Papel na Educação Musical. Documento não publicado, 1988, 5 p. datilografadas. Opanijé, Apanijé ou Apanijéu: toque de saudação ao orixá Obaluaiê (Omolu) no candomblé originário da nação Jeje Gregório de Matos Guerra (Salvador, 1636 – Recife, 1695) 21 “Nessa cidade todo mundo é d'Oxum / Homem, menino, menina, mulher / Toda gente irradia magia / Presente na água doce / Presente na água salgada / E toda cidade brilha.” 22 A respeito de estilos intertextuais (paródico, parafrásico, estilizado), remeto o leitor ao meu texto “A Estética Intertextual na Música Contemporânea: considerações estilísticas”, publicado em Brasiliana, Revista da ABM (n.º 13, Jan./ 2003, p. 2-12). 19 20 176 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 177 ANEXO I 178 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANEXO II PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 179 ANEXO III Trecho da Abertura Baiana de W. Gomes 180 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 181 182 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 183 Projeto Jongo em Concerto: inventário de uma experiência de sincretismo cultural Pauxy Gentil-Nunes Universidade Federal do Rio de Janeiro O Projeto “Jongo em Concerto” foi proposto por Filipe de Matos Rocha, aluno de composição da Escola de Música da UFRJ, e contemplado dentro do Edital de Apoio à Criação Artística, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro – SEC/RJ, em 2011. Dentre as várias questões que o projeto levanta, uma das mais instigantes é o sincretismo cultural entre a tradição do Jongo da Serrinha e a música de concerto, indicado pelo falecido Mestre Darcy do Jongo, e levado a cabo pelo proponente. Como orientador do projeto, o presente autor pôde acompanhar as etapas do percurso do aluno, e interagir com os diversos agentes envolvidos. Neste artigo, são tecidas algumas considerações a respeito do tema do sincretismo cultural na atualidade. No final de 2010, a Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro lançou o Edital de Apoio à Pesquisa e Criação Artística, com o objetivo de “fornecer apoio financeiro a projetos que contribuam para o desenvolvimento das atividades culturais e artísticas nas áreas de Artes Visuais, Artes Cênicas e Música” (SEC, 2011). Iniciativa inédita de estímulo à criação, voltada basicamente a discentes, pela exigência da indicação de orientador. Filipe de Matos Rocha, aluno do bacharelado em Composição da UFRJ, teve o seu projeto “Suite Jongo da Serrinha: linguagem e estruturação musical aplicada à orquestra de câmara” aprovado dentro da categoria Composição para orquestra de câmara de música contemporânea. O tema do projeto é a aproximação entre a música de concerto e o Jongo da Serrinha – expressão cultural da comunidade do Morro da Serrinha, em Madureira, Rio de Janeiro. A escolha do tema foi do proponente, a partir de pesquisa no Museu do Folclore. O presente autor foi indicado como orientador. O projeto de Filipe encerrava grandes desafios. O aluno não tinha, naquele momento, experiência prévia como compositor de música de concerto (a peça resultante do projeto seria sua primeira peça deste gênero) e sofria, como aluno, de pequenas lacunas de conhecimento técnico, tanto em composição quanto em instrumentação e orquestração, por estar em início de curso. Por outro lado, Filipe já era um músico profissional formado e talentoso - regente, pianista, professor - além de ter grande capacidade de trabalho, organização e muita motivação. O maior desafio do projeto, no entanto, era sua natureza sincrética, com todo o peso da discussão clássica sobre aculturação e dialogias entre a música de concerto (europeia, italiana) e as músicas brasileiras. Grosseiramente falando, a já gasta discussão sobre música ‘erudita’ e ‘popular’, cujos preconceitos e mitos - verificação feita durante o processo da pesquisa - infelizmente ainda não foram totalmente superados. A abordagem do problema procurou evitar dicotomias simplórias e focar na relação entre agentes urbanos (Canclini, 1998, capítulo 7). A maior parte do interesse de professores e alunos de composição na Academia se volta para outros campos, não menos afeitos a estes problemas. O fetichismo despertado pelo alinhamento obsessivo às últimas linhas de criação européias, quase sempre proclamadas “universais”, rivaliza-se com facilidade às mais xenofóbicas vertentes do tradicional nacionalismo romântico, linha já muito PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 185 criticada justamente pela cooptação compulsória e pelo tribalismo de seus defensores. O Jongo da Serrinha, manifestação essencialmente carioca, tem, por outro lado, espaço artístico relativamente restrito nas Academias da cidade, principalmente na Música. A maior parte dos trabalhos publicados sobre o Jongo é de pesquisadores de outros campos (História, Sociologia, Antropologia, Dança – ver Travassos, 2007, p. 130). Mesma observação pode ser feita em relação ao mercado, que privilegia o samba como representante musical exemplar das comunidades (o funk carioca, felizmente, ganha espaço em ambientes alternativos). A proposta de Filipe foi saudada, assim, como uma feliz surpresa, pela qual valia a pena enfrentar o risco do erro. Em sua trajetória, o projeto agregou o objetivo da realização do sonho de Mestre Darcy, registrado de forma ostensiva em vídeo e entrevistas: o de levar o Jongo para o Theatro Municipal. O resultado artístico do projeto foi o espetáculo Jongo em Concerto. O enfrentamento sincero e aberto das questões levou à criação de uma nova rede de relações pessoais, transformadora e extrapoladora do próprio projeto. Resgate e salvaguarda do Jongo do Sudeste O Jongo do Sudeste foi registrado como patrimônio cultural imaterial em 17 de dezembro de 2005 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. A data marca a culminação de uma série de ações relativas à salvaguarda do Jongo - manifestação que esteve, algumas vezes, em risco de extinção (o relato vivo da luta pelo resgate do Jongo pode ser lido em Monteiro e Sacramento, 2011). Um caminho árduo, construído pelas comunidades jongueiras, com o auxílio institucional de pesquisadores e ativistas (destacado aqui o trabalho de pesquisa sobre o Jongo da professora Elizabeth Travassos, da UNIRIO, que deu margem a inúmeros e importantes desdobramentos acadêmicos e institucionais – Travassos, 2007). 186 Jongo/Caxambu, sediado na Universidade Federal Fluminense – UFF, com o apoio institucional do IPHAN. O Pontão congrega no momento 16 comunidades jongueiras do Sudeste e promove encontros regulares das lideranças das comunidades jongueiras, para trocas de saberes e experiências entre os diversos atores interessados na manifestação - além dos próprios jongueiros, os estudantes, pesquisadores, técnicos e consultores (Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu 2012). Ação coletiva, cuja contribuição para o projeto ‘Jongo em Concerto’ foi facilitada pela generosa e presente colaboração da equipe de coordenação (Elaine Monteiro, coordenadora geral; Mônica Sacramento e Paulo Rogério da Silva, este último líder da comunidade de Miracema). Atualmente, o Grupo Cultural Jongo da Serrinha mantém atividades de ensino, divulgação e criação de rodas e espetáculos de Jongo, dentro e fora da comunidade (ONG Jongo da Serrinha 2013). Frequentado pela comunidade da Serrinha e por visitantes, o Jongo da Serrinha tornou-se referência não só para as demais comunidades jongueiras, como para toda a cultura da cidade. Neste cenário, foram de extrema importância para o projeto Jongo em Concerto as colaborações de Luiza Marmello, cantora e jongueira; Lazir Sinval, respeitada compositora, cantora e jongueira; Deli Monteiro, sobrinha de Mestre Darcy, cantora; Tia Maria do Jongo, monumento vivo da história do Jongo, figura carismática e cativante; Hamilton de Souza (Fofão), brilhante compositor de samba e jongo, e excelente instrumentista e cantor; e Anderson Vilmar, mestre e virtuose percussionista. Além disto, também foi importante o apoio de Adriana da Penha, produtora do grupo e Dionne Boy, coordenadora da ONG que mantém a sede e as atividades. De extrema importância também foi a ajuda de Adriano Furtado, brilhante violonista e arranjador, bacharel em violão pelo CBM e mestrando pela UFRJ, e que ao mesmo tempo participa como violonista de 7 cordas dos grupos Jongo da Serrinha e Razões Africanas; e de Rodrigo Braga, colaborador de Mestre Darcy no Grupo Caixa Preta, onde era (e ainda é) pianista e arranjador. Uma das figuras mais proeminentes da história do Jongo é a de Darcy Monteiro, conhecido como Mestre Darcy do Jongo. Pertencente à linhagem de jongueiros do Morro da Serrinha, Mestre Darcy foi músico profissional e atuou muito além dos limites do terreiro de Jongo. Foi responsável pela introdução dos agogôs na bateria da Escola de Samba Império Serrano e também colaborou profissionalmente com artistas de gêneros diversos, como Ataulfo Alves, Dizzy Gillespie, Severino Araújo, Paulo Moura e Milton Nascimento (Luna, 2013). Preocupado com a possível extinção do jongo, Mestre Darcy fundou o Grupo Jongo da Serrinha, e propôs uma revolução de costumes dentro da comunidade jongueira, introduzindo instrumentos harmônicos e melódicos (a instrumentação do jongo até então era composta apenas dos três tambores tradicionais – candongueiro, caxambu e tambu), levando o jongo para o palco italiano e iniciando aulas de música e dança para crianças da comunidade. Em certo momento, Darcy foi acusado de violar irreversivelmente a tradição, recebendo críticas, principalmente (é importante registrar) de fontes externas às comunidades jongueiras. A figura de Darcy é reverenciada tanto entre jongueiros urbanos quanto nas comunidades rurais, mais tradicionais. O projeto de Mestre Darcy foi extremamente importante para a salvaguarda do Jongo. A consciência da importância da empreitada leva Mestre Darcy a denominar a divulgação do Jongo como um movimento de ‘resistência cultural’ (Simonard 2005b). A estratégia de sensibilização e agregação dos ‘universitários’ (como ele os denominava) ao movimento proporcionou ao Jongo a penetração da cultura na classe média, detentora naquele momento de recursos de institucionalização e preservação (Simonard, 2005, p. 32-45). Uma das consequências da patrimonialização do Jongo foi a criação do Pontão de Cultura do Hibridismo e sincretismo jongueiro A classificação geográfica e econômica dos gêneros musicais urbanos tornou-se cada vez mais problemática com o crescimento das cidades e a facilitação da circulação de informações e indivíduos (Canclini, 1998, capítulo 7). O compartilhamento de espaços públicos específicos, comuns aos cariocas (bares, centros culturais, shows, terreiros, praia) promove o encontro de artistas e sua interação, muitas vezes imprevisível. Neste caminho, o fascínio de Mestre Darcy pela música de concerto representou contrapartida a incursões na direção oposta. Villa-Lobos, por exemplo, em uma de suas mais conhecidas obras, Choros nº 10 – Rasga o Coração (1929), para coro misto e orquestra, inclui em sua orquestração dois instrumentos típicos do Jongo – o caxambu e a puita (espécie de cuíca de grandes proporções usada nos jongos rurais). Os instrumentos, membranofones de difícil acesso nos centros urbanos, muitas vezes são substituídos por outros mais comuns nas execuções do Choros (atabaques ou congas, por exemplo – ver D’Anunciação, 2008, v. 5, p. 79-80). Na Serrinha, a necessidade de mobilidade também gerou a produção de tambores próprios, que servem bem à sonoridade mais urbana e colorida almejada por Mestre Darcy (Travassos, 2007, p. 147). Mais uma vez, isto não é considerado problema pelas comunidades rurais, mais estáticas geograficamente e que por isto tem mais facilidade para usar os troncos escavados, que constituem a base do instrumento original. Outro compositor de concerto que faz referência mais direta ao Jongo é o folclorista Luciano Gallet. Seu relato etnográfico sobre roda de Jongo foi marcante, por se constituir no primeiro registro escrito sobre a manifestação em sua forma rural. Gallet também compôs a obra ‘Suite sobre Temas Negros Brasileiros’, para quarteto de madeiras com piano, cujo último movimento é chamado de ‘Jongo’ (Gallet, 1929). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 187 O compositor de choro João Pernambuco também é autor de ‘Interrogando’, para violão, chamada de jongo, cuja primeira gravação se deu em 1930 (Pernambuco, 1978). Em 1954, César Guerra-Peixe faz a inclusão do Jongo como segundo movimento de sua Suite nº 3, para piano (Guerra-Peixe, 1958 – ver Silva, 2013a). Em 1955, faz o mesmo na Suite Sinfônica nº 3 (Guerra-Peixe, 1955 – Silva, 2013a), que foi composta a partir de coleta folclórica durante sua estada em São Paulo (período de 1953 a 1961 – ver Silva, 2013b), realizada com seu amigo folclorista Rossini Tavares de Lima. Rossini, posteriormente, publicou resenha sobre a obra (Lima, 1957). No terreno da música brasileira instrumental, o violonista e compositor Paulo Belinatti tem como uma de suas composições mais divulgadas o ‘Jongo’, para violão solo, pela qual ganhou o primeiro prêmio de composição para violão no 8th Carrefour Mondial de la Guitare, na Martinica, em 1998. A peça viria a ser gravada pelo violonista John Williams em 1996 (Belinatti, 2013). Das obras citadas acima, curiosamente, é a única que apresenta assumidamente a base métrica binária composta, característica do Jongo do Sudeste no presente.1 A aproximação do Jongo com a música eletrônica e eletroacústica também foi realizada no Projeto ‘Estúdio de Criação’, iniciativa do Grupo Cultural Jongo da Serrinha com o apoio de músicos ligados à eletrônica (Ricardo Cotrim, Pedro Tie) e congregando compositores e coletivos externos e internos à comunidade (João Hermeto, Vania Dantas Leite, Wladimir Gasper, Kassin, Duplexx e Digitaldubs, entre outros – Cotrim, 2011). Por fim, registra-se também a hibridização do Jongo com a música de concerto propiciada pela composição ‘Vapor da Paraíba’, de Mestre Darcy. Em sua seção central, é apresentada a citação literal da ‘Ave Maria’ de Gounod, indicando implicitamente o desejo declarado de Mestre Darcy de promover a aproximação. Projeto Jongo em Concerto As atividades do Projeto Jongo em Concerto dividiram-se em três fases: pesquisa, composição e realização. A fase de pesquisa durou oito meses, superpondo-se às subsequentes, e consistiu em imersão na cultura do Jongo. O primeiro passo foi o levantamento de fontes bibliográficas, fonográficas e videográficas. Proponente e orientador dedicaram tempo extenso à absorção de grande quantidade de informações. Neste período, o auxílio do Pontão de Cultura foi crucial, pela oferta de referências não só sobre o Jongo da Serrinha, mas também sobre Jongos de outras comunidades. Como segundo foco, o contato direto com os músicos da Serrinha e o acompanhamento dos ensaios dos Grupos Jongo da Serrinha e Razões Africanas (ambos originários da comunidade da Serrinha) e dos shows no espaço cultural do bloco carnavalesco Cordão do Bola Preta, na Lapa. Outra frente foi a realização de aulas de canto, percussão e harmonia, na sede da ONG Jongo da Serrinha, na própria comunidade, com os professores Lazir Sinval, Luiza Marmello, Hamilton Fofão e Anderson Vilmar. As aulas também incluíram supervisão de alguns materiais produzidos por Filipe. Os encontros continuaram por todas as fases subsequentes e o acompanhamento do trabalho dos jongueiros subsiste até o momento. A fase de criação durou seis meses. O foco inicial de Filipe foi a construção de plano pré-composicional, visando as exigências tanto da SEC (minutagem, instrumentação) quanto da proposta criativa (forma, estrutura dos motivos). A intenção de Filipe, construída no contato com os músicos e depois da visita que fez ao Quilombo São José, em Valença, por ocasião do 13 de maio de 2011, foi a modelagem da forma da peça de acordo com a estrutura do próprio ritual do Jongo rural. Esta 1 A discrepância de notação da base rítmica do Jongo em diferentes décadas é importante e merece olhar mais cuidadoso em eventuais trabalhos posteriores. 188 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER estrutura ficou espelhada na relação entre os quatro movimentos da peça e na distribuição interna dos gestos em cada movimento, de acordo com o caráter de cada um (ver também Alcantara 2008): I - Visaria: Louvação a Deus e Saudação – onde é pedida a licença para a entrada na roda e feita a saudação responsorial – solista e tutti. II - Gurumenta: Demanda – onde é apresentado o primeiro duelo, protagonizado pelo trompete e pelo violoncelo. A demanda é um jogo interpretativo, onde metáforas são lançadas para serem decifradas, sob o risco de cair em encante. O violoncelo, no caso deste movimento, sucumbe ao jogo do trompete. III - Gurumenta: Gurumenta – gurumenta significa confronto. Neste caso, coloca-se em evidência o confronto interno à própria estrutura métrica do Jongo – a tensão entre o binário simples e o binário composto, representados respectivamente pelo samba e pelo jongo. Os ritmos se alternam e no fim se superpõem. O jongo sai vitorioso. IV - Visaria: Cotidiano e Despedida – encerramento da roda, com homenagem a Mestre Darcy, que é apresentado em vídeo sincronizado com a orquestra. A despedida é feita com a reminiscência dos temas apresentados em todos os movimentos. Filipe levantou o repertório de jongos da Serrinha, transcrevendo seis das mais importantes canções do repertório, incluindo na transcrição a melodia, harmonia e arranjo: 1. Bendito (Darcy Monteiro) 2. Vou pra Serra (Jair Jongueiro) 3. Pra que lavar roupa/Mamãe foi pro jongo (Tradicional) 4. Saracura (Pedro Monteiro e Darcy Monteiro) 5. É de Lorena (Lazir Sinval) 6. Vapor da Paraíba (Vovó Teresa) A riqueza material das peças ficou patente no trabalho árduo de captar nuances harmônicas e vozes. A principal função das transcrições não foi de registro ou de representação. A notação foi usada apenas como ferramenta para análise de algumas relações internas específicas, para condução do processo de composição – basicamente, as texturas rítmicas e melódicas, material gestual básico. Cabe registrar, no entanto, a característica de transcrições anteriores em trabalhos de pesquisadores importantes. A interpretação da tensão métrica entre melodia e tambores característica do Jongo toma como base a métrica binária simples na melodia, com eventuais divisões ternárias nos tambores (o jogo de concordância e discordância métrica é muito importante na rítmica do Jongo). Por outro lado, no contato com os músicos jongueiros, e com o uso de computadores como mediação para facilitar a análise, foi corroborada a conclusão contrária – a base rítmica do jongo é binária composta nos tambores e a melodia apresenta inflexões binárias simples, estas sim, eventuais e representáveis por quiálteras de dois e quatro (concepção, aliás, sustentada isoladamente por D’Anunciação (2008), e pelo próprio Mestre Darcy, segundo seu principal colaborador e arranjador Rodrigo Braga, detentor de manuscritos da mão do próprio Mestre). A análise particional das texturas rítmicas e melódicas (Gentil-Nunes, 2009) levou à constatação do uso de estruturas recorrentes, que caracterizam a prática musical jongueira. A textura rítmica mais importante é a responsorial, ou seja, a alternância entre solo e massa. Ela decorre do caráter ritualístico e sagrado do Jongo, onde o canto do solista alterna com o da assembleia. A textura melódica apresenta alternância também entre articulações dentro de uma mesma linha e arpejos. Este padrão assemelha-se ao da textura rítmica. Acontece, porém, em ritmo mais rápido e alternado (ocorre no nível do tempo, enquanto a alternância da textura rítmica ocorre no nível da PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 189 frase ou do período). Os arpejos são organizados sempre a partir de tricordes perfeitos, de forma que mesmo sem acompanhamento de instrumentos harmônicos, é possível perceber a progressão latente dos acordes. O canto do Jongo é auto-harmonizado. Ambas as texturas foram aproveitadas por Filipe, dentro da proposta da análise particional, para conduzir o seu trabalho de criação. O plano pré-composicional foi construído privilegiando-se o gesto responsorial, com solos instrumentais em contraposição a massas orquestrais. As melodias foram estruturadas também com base no comportamento particional das melodias jongueiras – particionamento [1 > 4 > 1 > 4, etc.] ou [14]. A partir da análise linear, Filipe escolheu trabalhar com escalas onde o tricorde perfeito é predominante – a escala octatônica (escala que contém o maior número de ocorrências de tricordes perfeitos), e alguns modos naturais implicados nas melodias do Jongo (dórico, jônico, frígio). A notação dos tambores seguiu a diretriz de D’Anunciação (2008, p. 80), apoiada também pelo trabalho posterior de Rodolfo Oliveira (2000) aluno de D’Anunciação orientado pela pesquisadora Elizabeth Travassos. A confecção das partes de percussão teve a supervisão de jongueiros da Serrinha, visando refletir as diversas e sutis articulações que compõem a tímbrica dos tambores. Além de oferecer referência mais precisa acerca da execução dos padrões rítmicos explicitados pela notação, Filipe também promoveu o encontro dos percussionistas que fizeram a estreia da peça (André Silvestre , Cláudio Roberto Bonfim e Rafael Alves, todos alunos da Escola de Música da UFRJ) com os percussionistas da Serrinha, principalmente Anderson Vilmar, para supervisão e troca de informações. Dois dos percussionistas chamados já conheciam os toques previamente, por experiência profissional e não tiveram grandes dificuldades na execução dos ritmos. As questões mais trabalhadas foram a posição específica da fôrma das mãos, para obtenção de maior projeção sonora, e a inflexão dos toques, visando maior precisão e definição rítmica. A fase de realização, que durou um mês, incluiu os ensaios e a própria apresentação. A montagem da peça foi fluida, sem grandes problemas de execução. A superposição da articulação rítmica precisa dos tambores com os gestos mais flexíveis dos instrumentos da orquestra exigiu esforço por parte dos músicos e do regente em relação à sincronização métrica. A receptividade dos músicos da orquestra foi muito calorosa. Muitos já tinham ouvido falar ou mesmo já conheciam a música do Jongo, e expressaram entusiasmo pela iniciativa. A peça foi estreada no dia 12 de dezembro de 2011, com a Orquestra Sinfônica da UFRJ sob a regência do maestro Ernani Aguiar. O concerto foi divulgado como homenagem ao Mestre Darcy do Jongo (Machado 2011 - no dia 21 de dezembro de 2011, completavam-se 10 anos de seu falecimento). O repertório do concerto foi montado pelo diretor da orquestra, prof. André Cardoso, com peças referentes à cultura negra – Abertura em Ré, de Pe. José Maurício Nunes Garcia; Suite Brasileira, de Francisco Mignone e a Suite Jongo da Serrinha. O evento contou com a presença de membros da comunidade da Serrinha, inclusive de Tia Maria do Jongo, a qual foi homenageada em cerimônia de abertura. 190 ções e caminhos do Jongo Urbano, e Filipe teve a oportunidade de falar sobre o Projeto Jongo em Concerto e de mostrar trechos de sua obra. O contato do orientador do projeto (presente autor) gerou também uma série de peças com temática musical e referencial relativas ao Jongo, usando técnicas aditivas derivadas das improvisações do tambu. Uma delas (Marimba, para o Abstrai Ensemble2 – Gentil-Nunes 2012b) também foi incluída em projeto da SEC e foi executada em 3 de agosto de 2012. A peça inclui texto em banto ‘Zwelenu o Dimi Dyetu’ do poeta angolano Kiba Mwenyu (2005) e a citação de ponto ‘Senhor da Pedreira’ recolhido no Quilombo São José, de autoria desconhecida. Outras peças escritas com esta temática foram Trio (Gentil-Nunes 2011) e Kiela (Gentil-Nunes 2012a), estreadas respectivamente pelo Abstrai Ensemble e pelo Trio Manjerona.3 No dia 18 de novembro de 2012, a Suite Jongo da Serrinha foi finalmente executada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro durante o Festival Villa-Lobos, com a Orquestra Sinfônica da UFRJ sob a regência do maestro Roberto Duarte, contando mais uma vez com a presença de membros do Jongo da Serrinha, e de Tia Maria (TV Globo 2013). Referências ALCÂNTARA, Renato de. A tradição narrativa do Jongo. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. BELINATTI, Paulo. Biography. 2013. Disponível em http://www.bellinati.com/bio/bio.html CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2.ed. 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Em 18 de agosto de 2012, Filipe participou como convidado e palestrante no evento Bendito Louvado Seja Mestre Darcy do Jongo, promovido pela Companhia de Aruanda – grupo de jovens da Serrinha e de outras comunidades que divulgam a cultura do Jongo (Companhia de Aruanda, 2013), no SESC Madureira. A mesa “Velhas Guardas e Novas Gerações” discutiu as transforma- 2 O Abstrai Ensemble é formado por músicos cariocas e dedica-se à produção e divulgação de música contemporânea brasileira e internacional. Em 2011 e 2012, foi dirigido por Pedro Bittencourt e Paulo Dantas. 3 O Trio Manjerona é composto pelos músicos Thiago Tavares (clarineta), Léo Souza (percussão) e Larissa Coutrim (contrabaixo). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 191 GENTIL-NUNES, Pauxy. Análise particional: uma mediação entre composição musical e a teoria das partições. Tese (Doutorado em Música). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2009 GENTIL-NUNES, Pauxy. Trio. Saxofones soprano e alto, guitarra elétrica e percussão múltipla. Partitura e partes. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, 2011. GENTIL-NUNES, Pauxy. Kiela. Clarone, marimba e contrabaixo. Partitura e partes. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, 2012a. GENTIL-NUNES, Pauxy. Marimba. Soprano, flauta, clarineta, saxofone tenor, violão, duas percussões múltiplas, eletrônica, violoncelo, contrabaixo, piano). Partitura e partes. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, 2012b. GUERRA-PEIXE, Cesar. Suite sinfônica n. 1: paulista. Cateretê, Jongo, Recomenda das Almas, Tambu. Orquestra. Partitura. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1955. GUERRA-PEIXE, Cesar. Suite no. 3 (paulista). Cateretê, Jongo, Canto-de-Trabalho, Tambu. Piano. Partitura. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1958. IPHAN. Jongo, patrimônio imaterial brasileiro. Rio de Janeiro: IPHAN, 2005. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=517 LIMA, Rossini Tavares de. “A Suíte Sinfônica nº 1 (Paulista) e o ponteado”. A Gazeta. São Paulo, 07/11/1957. LUNA, Paulo. Darcy do Jongo. In ALBIN, Ricardo. Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Cultural Cravo Albin, 2013. Disponível em http://www.dicionariompb.com.br/darcy-do-jongo/dados-artisticos MONTEIRO, Elaine e SACRAMENTO, Mônica. Plano de salvaguarda do Jongo no Sudeste. Niterói: UFF / Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, 2011. Disponível em http://www.pontaojongo.uff.br/sites/default/files/upload/plano_de_salvaguarda_versao_final.pdf MACHIADO, Natália. UFRJ faz homenagem ao mestre Darcy do Jongo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. 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A constituição desse convênio foi uma iniciativa do Prof. Dr. José Augusto Mannis, que foi Coordenador do CDMC/Brasil por 16 anos. De acordo com o convênio, a sede francesa tinha o compromisso de mandar ao CDMC/Brasil partituras adquiridas pela Associação Francesa de Ação Artística, documentos sonoros postos à disposição pela Radio France e documentação gráfica e informática. À Unicamp caberia a responsabilidade dos recursos humanos, da infraestrutura, garantir o acesso público aos materiais, promover seminários, conferências, exposições, concertos e outras atividades visando a difusão pública de obras representativas do repertório contemporâneo dos dois países. Nos anos 90 as atividades do Centro se concentraram muito no papel de difusor da cultura musical contemporânea, na promoção do Festival Música Nova em Campinas, nos programas semanais de rádio “Projeto Brasil-França” em convênio com a Rádio Cultura FM de São Paulo (1990-1997) e na Rádio USP a partir de 1998, na organização de turnês de artistas franceses e europeus no Brasil (o grupo La Fabrique em 1993, Fatima Miranda em 1993, Daniel Kienzy em 1994, François Bayle e Daniel Teruggi em 1997). Entre os anos 1989 e 1998 o CDMC realizou 300 programas de rádio, 87 concertos, 71 master-classes e conferências. Outra ação de grande importância promovida pelo CDMC/Brasil foi a criação pioneira de uma base de dados sobre a música no Brasil, o Guia Musicom (apoio Vitae) em duas edições (1996 e 1998), no qual pela primeira vez foi feito um levantamento amplo de músicos, instituições, orquestras e grupos musicais em atuação no Brasil. Juntamente com a implantação desse banco de dados foi criada a Revista CDMC, de início impressa e depois transformada no FWD CDMC, documento digital encaminhado em lista de e-mail que divulga eventos, concursos, concertos para todo Brasil. O Guia Musicom em versão digital foi publicado também em 1998. Ainda nos anos 90 o CDMC/Brasil teve ações internacionais importantes, representando o Brasil no Conselho Internacional de Música da Unesco na 43ª e 44ª Tribuna Internacional de compositores, na VIII Trimalca – Tribunal Musical para América Latina e Caribe e filiando-se à Associação Internacional dos Centros de Informação Musical – IAMIC. Em termos nacionais, nos anos 90 o CDMC/Brasil firmou dois convênios de cooperação institucional: com a Equipe de Música da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo no projeto de informatização do Anuário de Música do Século XX e com o Núcleo de Música Contemporânea da Universidade Estadual de Londrina, na forma de apoio e envio de material documental impresso e em áudio. O CDMC/Brasil deu também apoio a eventos brasileiros e internacionais, assim como PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 195 apoio a brasileiros que foram realizar estudos musicais na França. No final dos anos 90 o CDMC/Brasil inicia projeto de constituição do acervo de música contemporânea brasileira realizando as primeiras captações de partituras por meio de doações dos próprios compositores. Data também deste período o estabelecimento de parceria com a UFMG e USP para desenvolvimento de método de catalogação unificado em sistema MARC para documentação musical. Na década de 2000 a 2009, o CDMC, realizou três grandes projetos através do apoio de importantes editais: com apoio da Vitae, Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social CDMC/Brasil iniciou o projeto “Atualização, catalogação e disponibilização do acervo de música brasileira do CDMC”; Com apoio da ADAI – Apoio ao Desenvolvimento de Arquivos Ibero-americanos do Ministério de Cultura da Espanha o CDMC iniciou o projeto “restauração preventiva, arquivamento e catalogação de documentos musicais e consolidação do arquivo de música contemporânea brasileira do CDMC”; e com o apoio da Petrobrás realizou o projeto “Acervo de Música Contemporânea Brasileira do CDMC”, no qual foi finalizada a catalogação do acervo do CDMC e digitalização parcial do acervo brasileiro. Apenas nessa década é que o Centro foi institucionalizado pela universidade, a partir de 2003. De 2006 a 2009 o CDMC esteve sob a direção da Profa. Dra. Lenita Waldige Mendes Nogueira. Em 2009 uma antiga proposta da Unicamp de união dos centros de artes resultou na proposta de fusão do CDMC e do NIDIC – Núcleo de Difusão Cultural da Unicamp, implantando então em 2010 o CIDDIC – Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural da Unicamp que coordena o acervo da CDMC (Coordenadoria de Documentação de Música Contemporânea), a Orquestra Sinfônica da Unicamp, o Coral Zíper na Boca da Unicamp e a Escola Livre de Música. Durante o biênio 2010 e 2011 o novo centro foi redesenhado e implantado. Aprovado no início de 2012 o seu relatório de implantação, o CIDDIC está em fase de reinstitucionalização. Uma das características singulares do CDMC é que ele não esteve vinculado a grupo de bibliotecas e arquivos da Unicamp. Desde 1998, quando se deu a implantação da Coordenadoria dos Centros e Núcleos de Pesquisa, ligada diretamente à Reitoria da Unicamp, o CDMC foi considerado um centro de pesquisa interdisciplinar. As ações pioneiras do CDMC, sua representatividade no âmbito nacional e internacional, no entanto, não tiveram o amparo de uma infraestrutura de sustentação na Unicamp e tampouco eram reconhecidas no âmbito interno da universidade por não se tratar estritamente de pesquisa acadêmica. Mesmo assim o CDMC/Brasil teve uma parceria acadêmica importante com o Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Unicamp, sendo acervo base de pesquisa de vários mestrados, doutorados, assim como pesquisas de Iniciação Científica vinculadas ao mesmo. A questão da infraestrutura é também assinalada em todos os documentos do centro. Durante o período de 1997 a 2005 todos os relatórios e pareceres exarados apontaram para falta de funcionários, carência e obsolescência dos equipamentos. Mesmo no período de certificação do órgão em 2003, foi solicitada especialmente pela Direção do Centro uma vaga para bibliotecário para o Centro, o que foi denegado pela Administração Central da Unicamp no período. Todo o trabalho de catalogação do acervo no sistema MARC, com apoio externo (Vitae, Adai e Petrobrás), foi realizado por estagiários vinculados diretamente aos projetos. Apenas na implantação do CIDDIC em 2010 a necessidade de uma vaga de bibliotecário foi reconhecida pela Administração Central da Unicamp e em 2011 o acervo de música contemporânea passou a ter uma bibliotecária. 2. Evolução do acervo (de acordo com os relatórios) De acordo com os relatórios e pareceres de 1994, 1997, 2001 e inventário realizado em 2010 a 196 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER evolução do acervo documental do CDMC se deu com os seguintes registros: DOCUMENTO 1994 1997 Partituras 534 2.500 CDs 103 600 Fitas K-7 147 1.900 Fitas DAT 100 Livros Discos vinil folhetos e outros não tem registro não tem registro materiais de divulgação 2001 4.300 700 400 80 410 300 400 2010 6.406 1.238 1.496 101 158 272 não tem registro Tabela 1. Evolução do acervo classificada em tipos de documentos Segundo a tabela acima há certas discrepâncias e decréscimos de alguns tipos de documentos. Consta no relatório de 1997 o número de 1.900 fitas cassete, enquanto que nos pareceres de 2001 há o registro de apenas 400. De 2001 para 2010 o formato Cassete já não está mais vigente, portanto é pouco provável que o acervo de fitas tenha crescido nesse período, de 400 para 1.496. Mais provável que nos pareceres de 2001 tenha havido um erro de digitação e que o número de fitas apontado no relatório de 97 tenha sido apenas uma estimativa. Os itens com decréscimo de acervo (fitas DAT, livros e discos de vinil) se devem provavelmente ao fato de terem sido registrados como pertencentes ao acervo, documentos privados de seu Coordenador depositados no CDMC. Após uma sindicância interna da Unicamp, verificou-se quais documentos pertenciam de fato ao acervo, quais eram pertencentes ao ex-coordenador, sindicância finalizada em abril de 2010. 3. Composição: coleções e classificações Até o momento o acervo de partituras está dividido em duas macro-coleções: a coleção internacional, constituída das partituras encaminhadas à Unicamp pelo CDMC-França, estimadas em 4.765 documentos de 1.137 compositores europeus, em sua maioria franceses ou publicados na França. Essa coleção internacional não se subdivide. A outra coleção é a de partituras de música brasileira, registradas em 1641 documentos de 165 compositores. Dessa macro-coleção temos classificadas as seguintes coleções: - coleção Almeida Prado, com 359 documentos doados pelo compositor antes de sua aposentadoria como professor da Unicamp; - coleção Dinorá de Carvalho com 257 documentos catalogados, não significando aqui 257 partituras completas, mas tratando-se de manuscritos, trechos, folhas soltas de rascunhos manuscritos. Esses manuscritos de Dinorá de Carvalho têm um longo e confuso histórico, tendo sido passado ao CIDDIC pela Biblioteca do Instituto de Artes – atualmente, graças a um recente projeto de iniciação científica, foram reclassificados e recatalogados, restaurados, armazenados separadamente e em melhor estado de conservação; - coleção Estércio Marques da Cunha com 129 documentos - coleção Aldo e Edino Krieger com 28 documentos - coleção Najla Jabor com 33 documentos - coleção Kilza Setti com 26 documentos - coleção Emilio Terraza com 40 documentos PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 197 As demais partituras de outros compositores estão classificadas como Coleção Brasileira, indistintamente. Observamos também que foi doado ao CDMC o acervo de partituras da pianista argentina Beatriz Balzi, graças ao qual o CIDDIC conta com um pequeno acervo de música contemporânea latino-americana. Esse acervo está catalogado nas duas grandes coleções a coleção internacional e a coleção brasileira, mesmo que essa coleção se mantenha armazenada conjuntamente. Como produto de parceria em pesquisa, o acervo conta também com um banco de partituras de música brasileira para coro infantil. O acervo em áudio tem uma classificação interna do Centro, mas não foi desenvolvida uma catalogação desse acervo no Sistema de Bibliotecas da Unicamp. O acervo de fitas cassete está interditado de utilização por estar no limite de tempo de durabilidade. Trata-se na maior parte de gravação de obras e palestras de compositores feita pela Radio France e programas de rádio do projeto Brasil-França. O catálogo do acervo é interno ao Centro. Os livros estão catalogados no Sistema de Bibliotecas da Unicamp, compõem obras sobre música contemporânea. 4. Armazenamento e conservação O acervo de partituras é composto de partituras em tamanhos A4, A3, A2. A maior parte do acervo de partituras do Centro estão armazenados em pastas suspensas de armários deslizantes. Uma parte das partituras de maior porte estão armazenadas em mapotecas e outra parte em estantes horizontais. As coleções Beatriz Balzi e coro infantil estão armazenadas em pastas horizontais. Parte da coleção de música brasileira está também armazenada horizontalmente em armários fechados, pelo risco de se deformarem nas pastas suspensas. O CIDDIC conta, através do apoio da ADAI citado acima, com um departamento de conservação e pequeno restauro com uma funcionária responsável pelo armazenamento, limpeza, conservação e restauro do acervo. 5. Catalogação de partitura musical da Unicamp A catalogação do acervo de partituras do CDMC foi realizada através de projetos com apoio da VITAE e Petrobrás. Para isso o CDMC desenvolveu um formato de catalogação que inclui, além do nome do autor e da obra, a instrumentação, número de performers, data de composição, descrição do documento (partitura, publicada, manuscrito, cópia de manuscrito, grade e partes) assim como suas dimensões, data e local de nascimento do autor, dedicatória e data, evento e local de estreia. Atualmente está sendo desenvolvida uma nova classificação do acervo do CIDDIC que muda radicalmente o princípio da divisão em coleções. Desta forma todo o acervo será reclassificado e recatalogado. Da mesma forma será feita a atualização do catálogo do Sistema de Bibliotecas da Unicamp. 198 longo de 2011, homenageando 12 compositores consagrados – Mário Ficarelli, Eduardo Escalante, Ricardo Tacuchian, Maria Helena Rosa Fernandes, Osvaldo Lacerda, Ernst Mahle, Edmundo Villani-Cortes, Raul do Valle, Willy Corrêa de Oliveira, Gilberto Mendes, Aylton Escobar e José Antônio de Almeida Prado – nos quais várias estreias mundiais foram realizadas, da mesma forma que foram recuperadas obras de compositores brasileiros que tinham sido esquecidas do repertório. As partituras executadas eram parte do acervo, foram doadas pelos compositores ou foram adquiridas (Academia Brasileira de Música) para a realização do projeto. A partir dessa iniciativa e do conhecimento local do acervo os compositores estão se dispondo a fazer doações de suas obras para o CIDDIC. O CIDDIC está também adquirindo partituras da Academia Brasileira de Música com verba destinada às bibliotecas para compra de livros. Projetos de pesquisa de pós-graduação do Instituto de Artes, vinculados também ao CIDDIC, preveem também doação de acervo digital de partituras. As duas coleções que exemplificam essas ações são a doação de cópia de manuscritos de obra completa do compositor Eduardo Escalante e doação de obra em formato digital do compositor Luis Carlos Czeko. 7. Pesquisa A pesquisa no CDMC esteve sempre atrelada à parceria com o Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes e orientações de Iniciação Científica. A Unicamp, privilegiando a atividade de pesquisa, instituiu em 2005 uma carreira específica de pesquisador em três níveis. Com a abertura de mais cinco vagas na Universidade no ano de 2012, o CIDDIC, até então sem ter nenhuma vaga de pesquisador, pleiteou e teve a aprovação de uma nova vaga de pesquisador, devendo realizar processo seletivo público para essa vaga em 2013. As perspectivas do CIDDIC é de conseguir 4 vagas de pesquisadores, uma para cada parte do Centro, oficializar o vínculo de pesquisa de docentes junto ao Centro e ampliar o quadro de orientações vinculadas por parte dos docentes. Além disso o CIDDIC recebe também pesquisadores voluntários com bolsas de pós-doutorado. 8. Disponibilização na Biblioteca Digital da Unicamp O acervo de música brasileira teve excertos de partituras digitalizados, que devem ser disponibilizados na Biblioteca Digital da Unicamp, de acordo com a autorização de seus autores. 6. Desenvolvimento do acervo e sua composição dentro do CIDDIC Dentro da composição do CIDDIC, a CDMC está vinculada também com a performance musical e o empenho que o Centro dá à divulgação da música contemporânea, especialmente a música contemporânea brasileira, resulta em uma difusão de obras que estão no acervo, ao mesmo tempo em que os projetos musicais da Orquestra Sinfônica da Unicamp estão acrescentando continuamente novos documentos musicais à CDMC – tanto as partituras quanto, registros em áudio e vídeo. Desta forma foi realizado o projeto “Panorama da Música Brasileira” com concertos mensais ao 9. Perspectivas – necessidades e desafios Durante sua implantação nos anos 90 o CDMC teve grande visibilidade nacional e internacional pelos eventos de divulgação musical organizados e sua participação nas organizações internacionais, assim como pelo pioneirismo de criar o MUSICOM e o FWD-CDMC na democratização da informação sobre o mundo musical. No entanto, as regras estritas de consulta ao acervo, a falta de atendimento especializado ao público e a falta de bibliotecário, fez com que o acervo tivesse uma visitação restrita ao longo de muitos anos. O primeiro empenho com o novo centro na área da divulgação foi atrelar a produção musical da Orquestra Sinfônica da Unicamp à difusão da música brasileira do século XX – indiretamente desenvolver o acervo com novas obras e por outro lado, os concertos gravados pela Rádio TV Unicamp tornam-se documentos de vídeo e áudio do acervo, disponibilizados on-line e permitindo ao estudante e pesquisador um acesso privilegiado às obras. Com a entrada completa do catálogo do acervo no Sistema de Bibliotecas, a disponibilização do catálogo atualizado, a disponibilização digital dos excertos de partituras da coleção de música PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 199 brasileira e a conjugação da disponibilização dos vídeos das músicas do acervo, acreditamos que o CIDDIC vêm corroborar com as melhores condições atuais do acervo, que dispõe agora de funções e departamentos especializados (bibliotecária e funcionária responsável pelo laboratório de conservação preventiva e restauração do acervo). Desde 2010 instauramos um programa de incentivo ao usuário, com facilitação de consulta pública in loco e instalação de terminal de consulta na área do usuário, adotamos as regras da Unicamp no que concerne a cópias de documentos e direitos autorais e ampliamos o atendimento à distância. Em 2011 CIDDIC participou do Programa de Intercâmbio Docente AUGM (Associação das Universidades do Grupo Montevideo) com a vinda da Profa. Dra. Mariela Nedialkova da Universidade de Mendonza para pesquisa com o acervo do CDMC para levantamento de repertório latino-americano para violino. Nesse ano três pesquisas de mestrado foram desenvolvidas junto ao acervo do CDMC e nos anos de 2010 e 2011 foram realizadas consultas locais e à distância por pesquisadores das seguintes universidades: Universidade Federal da Paraíba, Universidade Estadual Paulista, The Oklahoma University, Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal de São Carlos, Arizona State University e USP – Ribeirão Preto. Pleiteamos junto à Reitoria da Unicamp a construção de um novo prédio para acomodar o Centro e dar ao acervo melhores condições de acomodação e conservação (projeto encaminhado pela Reitoria à FINEP). Há ainda um longo caminho para o reconhecimento do valor dos acervos, a importância da preservação do patrimônio musical, acesso à música, à informação musical e à pesquisa, ao que o CIDDIC com o acervo do CDMC espera poder contribuir de forma efetiva. Referências UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Reitoria. Convênio UEC/Centre de Documentation de la Musique Contemporaine (CDMC) para estabelecer programa intercâmbio franco-brasileiro para instalação filial brasileira do CDMC. Processo P-03838-88. Campinas, 1988. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Centro de Documentação de Música Contemporânea. Projeto - Acervo de Música Contemporânea Brasileira – Programa Petrobrás Cultural 2004. Processo – P-22280-2004. Campinas, 2004. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Coordenadoria de Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa. Regimento Interno – Centro de Documentação de Música Contemporânea – CDMC. Processo P-07050-2003. Campinas, 2003. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural. Relatório de implantação 2010-2011. Campinas, 2011. 200 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO E DIVERSIDADE: POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES COMUNITÁRIAS Patrimônio musical e ações comunitárias em contextos urbanos Angela Lühning Universidade Federal da Bahia As reflexões deste texto são resultado de algumas experiências com questões de tradições musicais e patrimônio em contextos urbanos, na cidade de Salvador, Bahia. Elas se baseiam em mais de 20 anos de convivência e pesquisa com expressões de patrimônio musical e visual afro-brasileiro em suportes gravados, fotografados, documentais e mnemônicos que envolveram, como interlocutores e protagonistas, pessoas de várias faixas etárias, incluindo também professores da educação básica. Refiro-me de forma mais específica às pesquisas sobre documentações de repertórios musicais afro-religiosos (de Camargo Guarnieri, Melville Herskovits e Pierre Verger), documentações visuais da capoeira (Pierre Verger), trajetórias de repertórios de música popular e histórias de vida de músicos idosos em Salvador, além da história local de um bairro popular em Salvador. Mas, ao mesmo tempo, minhas reflexões expressam também um crescente questionamento e até uma insatisfação com alguns dos resultados alcançados a partir das experiências vividas, incluindo certa autocrítica. Patrimônio: qual e de quem? Para posicionar melhor as minhas reflexões, gostaria de colocar algumas definições de cunho mais geral, levando a alguns questionamentos decorrentes, antes de tratar na segunda parte de exemplos específicos do contexto cultural e musical. Parto do conceito de patrimônio comumente encontrado que remete a termos como: bens de valor histórico, artístico e social de interesse coletivo e a representatividade destes bens para certos grupos de pessoas. Este conceito está tanto relacionado com a questão de memória coletiva de grupos culturais, bem como à memória pessoal dos participantes destes contextos culturais como expoentes1. Dispomos de uma larga base de materiais em relação ao tema: definições dadas pelo IPHAN e UNESCO, delimitando o patrimônio material e imaterial, estudos de casos específicos, além de inúmeros trabalhos acadêmicos que trazem reflexões sobre políticas públicas relativas ao patrimônio e avaliam seus resultados, inclusive apresentando questões de educação patrimonial.2 Ao mesmo tempo a história brasileira está repleta de definições de cultura, patrimônio e história que expressam juízo de valor em relação a aspectos de cultura que seriam, supostamente, memoráveis ou não.3 Assim se privilegia nas definições de patrimônio facilmente certas tradições ou contextos, o que gera vários problemas como veremos ainda. Mas, adiantando o ponto central de meu questionamento: ao observar com mais atenção patrimônios constituídos e preservados por ações de salvaguarda pelo poder público nos últimos anos, estas parecem expressar uma diferença enorme entre a concepção e a aplicação, ou melhor, entre 1 As diferenças entre memória individual e memória coletiva já foram abordadas nos textos clássicos de Halbwachs (1990) e Connerton (1990), entre outros autores. 2 Verificar fontes de educação patrimonial citadas ao final do texto a partir de links de internet. 3 Menciono aqui a título de exemplo as controvérsias sobre o uso dos termos folclore/ cultura que se mantém até hoje na sociedade brasileira, chamando partes da cultura de folclore (Lühning e Rosa, 2010). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 205 os seus postulados de representatividade de um bem ou grupo envolvido e seu real alcance e sua efetiva inserção entre as pessoas. Às vezes estas ações parecem dirigir-se a públicos não tão amplos ou representativos ou de fato conscientes da importância do patrimônio em questão. Portanto, lanço a pergunta quais as reais conotações que os termos patrimônio, história, memória e identidade têm para pessoas em contextos populares de cidades grandes, mesmo quando se referem a segmentos supostamente específicos como grupos religiosos ou tradições musicais? É preciso explicar por que ressalto o lócus de “cidades grandes”: as recentes campanhas de patrimônio cultural/ musical no Brasil envolveram em grande parte comunidades rurais ou de pequenas cidades, pensando em especial nos projetos sobre o samba de roda, o jongo, comunidades indígenas entre outros. Mas, por outro lado, há pouca presença de ações envolvendo as tradições de contextos urbanos, mesmo que neles também existam tradições musicais/ culturais diversas. Pergunto: esta presença reduzida das tradições culturais urbanas nas ações patrimoniais do poder público se explicaria apenas pela complexidade das relações sociais existentes nas cidades de grande porte ou teria outros possíveis motivos? Poderíamos perguntar quem ou qual instância de fato elege ou define, o que é um patrimônio, qual seria um bem cultural merecedor de uma ação de destaque ou quais seriam as formas mais adequadas de documentação/ preservação deste bem? Aliás, o que seriam ações de preservação, documentação ou conservação de forma mais concreta? A discussão destas questões não envolve somente os suportes da memória patrimonial e suas representações, mas também os protagonistas destas tradições com suas relações internas nos grupos que amparam e cultivam estas tradições. Pois, mesmo no caso de uma tradição/ conhecimento/ patrimônio de um grupo específico com a respectiva representação coletiva, este patrimônio pode ser particular do grupo, sem que haja interesse em compartilhá-lo por ele ser protegido por questões de segredo ou conhecimentos esotéricos. Quer dizer, podem existir interesses conflitantes em relação à acessibilidade patrimonial de uma tradição, a depender de quem se interessa por ela. Parece-me que o conceito de patrimônio parte mais do ponto de vista de quem “olha” e o define, do que quem supostamente usufrui dele e o vive no dia-a-dia. Quer dizer, não são necessariamente aquelas pessoas envolvidas na vivência de uma tradição que buscam o seu reconhecimento como patrimônio, mas outras instâncias, atendendo a interesses de um contexto político cultural mais amplo. Este pode envolver argumentos muito complexos, inclusive até alheias às comunidades que vivem a tradição. Com outras palavras: os conceitos lançados sobre questões de patrimônio em geral são definidos a partir de contextos intelectuais, alheios às vivencias em si, e parece que, de antemão, existem possíveis conflitos de interesse na definição daquilo que seria patrimônio, identidade ou memória. Assim, chamam atenção compreensões bem diferenciadas e até difusas que as pessoas de diversos segmentos sociais e étnicos têm de noções de sua história e identidade, incluindo o conceito patrimônio. Também é necessário observar com muito cuidado os conteúdos, mecanismos e formas de constituição da memória patrimonial: o Ocidente usa para este fim há muito tempo a escrita, documentos, objetos e monumentos, em relação aos quais foram criados verdadeiros cultos de veneração que influenciam a percepção de cultura, história e conhecimento, vinculado também ao conceito europeu de museu. Este conceito de materialização acaba influenciando hoje até contextos da tradição oral no Brasil: menciono aqui, por exemplo, os vários museus em terreiros de candomblé ou outros contextos culturais. Só em Salvador há no mínimo 3 deles, replicando a ideia do Museu estático.4 E mesmo quando se trata de exemplos de patrimônio imaterial, como saberes 4 206 transmitidos oralmente ou modos de fazer, em geral, eles acabam sendo vinculados à noção de lugares de representação e espaços físicos como casas de cultura e museus, ou atrelados a pessoas físicas como os mestres da cultura.5 Facilmente esquecemos que em outras culturas podem existir noções diferentes de memória, história e manutenção de informações que fazem uso de outros suportes ou processos mnemônicos. Lembremos as complexas questões de representação imagética e verbal entre os ianomâmi no Norte do Brasil (Roraima e Amazonas na fronteira com Venezuela) que não permitem que se toque no nome de uma pessoa falecida ou se use a sua representação imagética, mesmo que ela seja introduzida pelos contextos ocidentais. Isso certamente se aplica também à documentação da voz ou de música, da qual não sei até que ponto está presente na relação da sociedade ocidental com os ianomami.6 Já os índios Makuxi da Raposa Serra do Sol, no mesmo estado, desenvolveram complexas estruturas referenciais para definir a extensão do seu território, desconhecendo a ideia de cercas e divisórias artificiais, mas tendo como base marcos naturais como rios, cumes de montanhas e simbólicos, referentes a espaços mitológicos (ver Santilli, 2001). O problema da “materialização” patrimonial também está presente na etnomusicologia, pois a documentação sonora através da gravação é uma das questões centrais na área da música que se tornou inicialmente também um fetiche para a etnomusicologia. Construímos uma verdadeira veneração pelas gravações sonoras, achando que esta forma de representação do som seria uma efetiva contribuição para a permanência de culturas e tradições, um mito que está sendo desconstruído aos poucos. De fato, parece que questões de preservação e documentação nem sempre vão de mãos dadas com a execução, vivência e a real força da prática cultural. Pois, enquanto muitos consideram gravações históricas (ou não) parte importante do patrimônio cultural de comunidades específicas, da cultura nacional ou do patrimônio científico de comunidades intelectuais, estas podem ser percebidas de forma muito diferente pelos protagonistas, responsáveis pela existência do som, ou então os seus descendentes. História e comunidades populares Volto ao meu recorte inicial com a pergunta como as comunidades populares urbanas se percebem dentro de uma noção de história e qual papel que os conceitos história e as respectivas representações visuais, documentais ou sonoras têm para elas mesmas. Apesar de sua extrema importância, acredito que essa pergunta em geral é pouco presente nas reflexões dos gestores e das instâncias responsáveis pelas ações e políticas públicas na esfera de patrimônio e nem tampouco nas dos pesquisadores. Para a grande maioria de brasileiros, incluindo especialmente aqueles das classes populares, a história aprendida pelos meios oficiais e formais, em geral, foi e ainda continua sendo a história de outros, estranhos, de outros continentes ou então de outras classes sociais e Menciono, entre outros, os museus nas casas religiosas pelo seu nome corrente em Salvador: o Afonjá, o Gantois e o Pilão de Prata. 5 Nos últimos anos tem se discutido muito o papel dos chamados mestres da cultura, como forma de reconhecimento de saberes presentes nas comunidades espalhadas pelo Brasil afora, em geral ligados ao contexto da transmissão oral. Mas parece que os mestres da cultura estão sendo vistos quase como representantes de conhecimentos, digamos, monumentais e não processuais, impedindo assim que se entenda de forma clara o processo dinâmico da história e cultura. Assim repete-se o problema apontado antes: constrói-se história personificada, sejam-nos pessoas de classes mais altas ou mais baixas. Dificilmente se constrói estruturas de compartilhamento destes saberes que realmente conseguem contribuir para a circulação e o reconhecimento efetivo destes saberes. Algumas expressões e tradições envolvem hábitos e modos de fazer, o que deixa estes saberes mais próximos à realidade das pessoas, outros são bem mais abstratos, como o próprio conceito de patrimônio, envolvendo noções de história bem complexas. Desconfio de que quanto mais abstrato, mais difícil será para trabalhar. Assim, a chamada educação patrimonial poderia ser uma forma de trabalhar conteúdos da história e cultura local, o que só funcionará se for feita a partir de noções concretas das realidades das pessoas (ver nota 17). 6 Agradeço pelas informações sobre esta questão a Ricardo Pamfílio de Souza a partir de sua atuação no curso de formação de professores indígenas ianomami, desenvolvido no âmbito da CPPY em 2008/2009. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 207 regiões do próprio país, supostamente importantes para todos. Mas há de convir que este quadro apenas reitera a situação de contínua imposição do recorte de certos contextos históricos e seus valores culturais subjacentes pelos representantes de uma minoria e da sua percepção de mundo. A maior parte das pessoas destas comunidades urbanas nunca teve o direito e nem a chance de se entender como parte de processos históricos mais amplos, de perceber a trajetória de suas famílias, como sujeitos ligados a tradições ou locais específicos, mesmo que tenha tido avanços importantes nos últimos anos. Muitas vezes estas pessoas são vistos como aqueles “sem história” que não tiveram oportunidade de aprender a enxergar e valorizar a sua própria história. Assim chegamos a uma pergunta chave que me parece fundamental: como será que alguém que não teve a chance de se perceber como sujeito dentro de um processo histórico vai dialogar de forma ativa e consciente com a noção de história ou até de patrimônio. Mais ainda, quais seriam as percepções e relações, lembrando que se trata de um conceito em geral apoiado em objetos e aspectos temporais baseados apenas em cronologias, além de incluir questões muito abstratas, sem muita relação prática com suas vidas? Pensemos no caso de uma criança afro-brasileira de uma grande capital brasileira como Salvador, residente em um bairro chamado pelos moradores dos locais vizinhos como bairro popular ou favela, um termo que ela pode adotar ou tentar evitar, mas que, a princípio, designa o que para ela é o seu habitat cotidiano. Aonde ela poderia encontrar uma noção de história e orgulho patrimonial nos arredores de sua vida ou nos livros escolares (ou não) que chegam a sua mão? O que diz a palavra história aprendida na escola para ela, uma palavra provavelmente sem nexo com aquilo que ela vive e sem representar a sua realidade ou criar vínculos com a sua identidade? Observei que para muitas crianças criadas nestes contextos, como, por exemplo, no bairro onde resido, que se enquadra nesta descrição, a noção de história e estória se (con)fundem e para as crianças são indiferentes. Pois, tudo que se fala sobre história aconteceu em lugares, tempos e realidades tão distantes que se assemelha mais com o mundo dos contos de fada (ou de assombração, como queira) do que com a sua vida que é marcada por outras necessidades e anseios. Portanto, na sua percepção, o conceito história não diz respeito a ela, o que faz ela se perceber a si mesma como sujeito com uma trajetória de vida a qual não se aplica a ideia de história. É um fato que só há muito pouco tempo existe no Brasil a inclusão da história africana e afro-brasileira e de trajetórias de sujeitos afro-brasileiros nos livros escolares. E se pensarmos nas culturas indígenas, observamos um período ainda menor. Trata-se de um período de cerca de 10 anos, os mesmos 10 anos nos quais se discute sempre mais o conceito patrimônio com uma amplitude maior, incluindo as sucessivas diferenciações como os aspectos imateriais e materiais ou direitos coletivos. Mas a história de grupos específicos, em geral transmitidos oralmente, como a de quilombolas e grupos indígenas, e movimentos culturais de grupos específicos nas cidades, em geral, apenas tornaram-se objeto de eventuais trabalhos acadêmicos e alguns filmes de cineastas documentaristas sem grande circulação.7 É importante ressaltar que falo aqui não como etnomusicologa, historiadora ou pesquisadora em algum sentido mais restrito, mas como observadora dos contextos de construção identitária e de noções de pertencimento em contextos comunitários em um bairro popular em Salvador, onde atuo como educadora e moro há quase 25 anos. Confesso que este local sempre mais me ensina a entender as profundas diferenças nas percepções de vida existentes e as exclusões sociais que são vividas a cada dia nestas realidades que tem diretamente a ver com o nosso tema: patrimônio. Afirmo que só se pode construir uma noção de história a partir de algo que faz sentido e mexe com a realidade das próprias pessoas (pensando em analogia às ideias de Paulo Freire). Isso se torna 208 algo cada vez mais claro, quando vejo a crescente inexistência de vínculos dos próprios moradores com as tradições do local de sua moradia. Assim eles replicam, em geral, o discurso de desvalorização e negação vigente: ninguém “dá nada” pelos moradores destes bairros, suas histórias e expressões culturais e eles, em geral, também não se dão o valor que poderiam se dar. Este vácuo facilmente está sendo preenchido por novas construções daquilo que seria conhecimento, cultura e saber, inclusive aceitando e inserindo facilmente “mitos modernos” em relação aos contextos onde vivem. Pois, na ausência do interesse de estudiosos e de informações decorrentes mais aprofundadas sobre história, patrimônio e cultura nos bairros populares, “na terra dos cegos, quem tem olho, vira rei”. Portanto, quem apresenta alguma versão de história interessante, ganha, e assim se cria rapidamente pseudo-histórias que encerram discussões mais sérias. Assim, é possível alguém lançar uma hipótese sobre a origem de certo local ou a trajetória de um gênero musical que, por ausência de outras fontes ou hipóteses, torna-se logo “oficial”, e acaba sendo multiplicada como tal. 8 Isso significa que, para que conceitos e ações patrimoniais realmente envolvam e atinjam pessoas em contextos populares urbanos, e assim o hiato entre as percepções e identificações apontado acima possa ser fechado, é necessário, que estas pessoas possam construir noções mais claras de suas histórias, sejam-nas pessoais, grupais ou locais. Seria importante levantar como suas histórias de vida estão se entrelaçando com a história de locais e contextos nos quais eles vivem. Aliás, devemos perguntar quais são as trajetórias históricas e musicais de bairros populares e aglomerações urbanas mais recentes, já que vários gêneros musicais destes contextos fizeram sucesso midiático em grande escala?9 Trata-se de assuntos que tem interessado ainda pouco os historiadores ou os editores de livros escolares, algo que somente será possível com uma mudança de paradigma em várias esferas, o que constitui um processo amplo, necessariamente ligado à ressignificação de valores e conhecimentos que passa pela educação.10 Finalizando esta parte, parece impossível falar sobre patrimônio cultural em contextos urbanos, sem levar em conta as várias realidades e reconhecer a existência de profundas diferenças entre grupos sociais e étnicos no tocante a sua relação com o passado, a história e o papel que eles representam nas suas vidas hoje, influenciadas por questões de ordem política e diferenças ideológicas, mas também expressando a preocupação com ações afirmativas e a necessidade da criação de processos de empoderamento. Experiências com o patrimônio musical e histórico em comunidades Boa parte destas reflexões surgiu após a experiência recente com uma gravação histórica, evocando muitas dúvidas ainda não respondidas por completo. Há quase 55 anos o fotografo e pesquisador Pierre Verger realizou uma gravação com os integrantes de um tradicional terreiro de candomblé em Salvador, a Casa de Oxumarê. A gravação de 1958, feita fora do contexto ritual,11 com base em uma longa relação de amizade com os participantes, constitui um exemplo importante para a documentação das tradições musicais do ponto de vista dos pesquisadores na área da cultura 7 Menciono aqui os emocionantes filmes documentários: Xicão Xucuru, de Nilton Pereira (1999, 20min.) e Os Arturos (com a direção de Thereza Jessouroun), (2003, 60 min.). 8 Para não ser incoerente com a linha de argumentação adotada, não considero indicado citar exemplos para essas fontes questionáveis. Mas havendo interesse, buscando em sites de órgãos da prefeitura de Salvador ou grupos sociais diversos, encontram-se informações com teor turístico/folclórico sem fontes. 9 Ver sobre esta questão a presença e a inserção do pagode baiano na mídia local, regional e até nacional. 10 Como exemplo ainda isolado cito duas publicações dos historiadores baianos Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga. Tratase de material didático e para didático, dirigido a alunos e professores (2006 e 2009). 11 A gravação apresenta o repertório completo do xirê, a primeira parte da festa pública de candomblé, e foi pensada por Verger como contribuição para redimensionar o conceito de música no Brasil que na época não entendia os repertórios das tradições afro-brasileiras, religiosas ou não, como compatíveis com este termo, designando-os apenas como folclore, sem entender sua complexidade e importância histórica. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 209 210 afro-brasileira e da etnomusicologia. Ela envolvia também a pessoa de Martin Gonçalves, então diretor da recém-criada Escola de Teatro da UFBa e, nos passos subsequentes, a participação da compositora e pianista paulista Eunice Catunda, ambos muito amigos de Verger. Eunice Catunda já tinha estabelecido profundas aproximações ao candomblé, incluindo também a casa em questão. A gravação guardada na Fundação Pierre Verger foi recuperada e virou ponto central do projeto apresentado ao Edital da Petrobrás pela Casa em 2006. Na época a Fundação entendeu que não deveria realizar uma proposta de edição e publicação deste material sem a efetiva participação da casa, ressaltando a importância desta assumir o papel de protagonista e proponente oficial, sempre em parceria com a Fundação, detentora da gravação em si, e que elaborou a proposta do projeto. Os objetivos do projeto inscrito, em comum acordo entre as partes, foram os de traçar a historia da casa a partir do enredo da gravação, a relação entre Verger e a casa e seus representantes, além de incluir as histórias de vida dos participantes da gravação que ainda estavam vivos à época da proposta encaminhada, além da apresentação e contextualização da gravação em si. O projeto foi realizado seguindo a proposta aprovada, sempre em estreita relação de parceria entre a Fundação e a casa, seu líder religioso e vários representantes, embora fosse sempre um grupo muito pequeno que realmente demonstrasse interesse pela questão do projeto. Resumindo a longa história: a pesquisa sobre questões históricos e contextuais foi finalizada, o repertório musical apreciado e discutido pela casa e, finalmente, o texto final aprovado pela liderança máxima da Casa, co-autor do livro. Só depois disso, no início de 2011, quando o livro estava em fase de impressão, surgiram opiniões diferentes que colocaram em xeque todo trabalho feito até então. A casa começou a definir novos representantes e a partir daí foi remodelado todo o trabalho feito, pois se desejava realçar outros aspectos na publicação, que, segundo os novos representantes, ainda não estariam contemplados. Desta forma o livro (Lühning/ Mata, 2010) ganhou um novo perfil, ressaltando a história da casa, destacando sua antiguidade e importância no cenário religioso em Salvador, especialmente em comparação com outras casas situadas na mesma região geográfica. Assim, a gravação, incluída em dois CD´s, -razão inicial para a realização do projeto-, ficou quase como elemento secundário e com isso também as trajetórias dos participantes da gravação e as demais questões contextuais citadas. As dificuldades na negociação deste processo, que incluiu várias etapas complexas, serviram para novas reflexões sobre o real papel desta gravação sonora como patrimônio. Resultante de uma prática musical de meio século atrás, de um lado ela poderia ser vista a partir de um valor intrínseco de sua existência, qualidade e representatividade ou servir para abordar questões de tradição musical, transformações da língua iorubá, técnica instrumental dos músicos participantes, além da inserção de suas histórias de vida. Pelo outro, também poderia constituir um ponto de partida para novas ações, envolvendo a casa e a Fundação e fortalecendo suas relações com a sociedade. Mas o resultado final do processo colaborativo, construído e desenvolvido entre as partes, mostrou que, apesar de todo cuidado no processo de parceria, ao final, as expectativas dos dois lados envolvidos se tornaram diferentes uma da outra. É importante ressaltar que no caso abordado, trata-se de uma comunidade religiosa situada em uma das áreas de Salvador vista como mais tradicional e conhecida pela presença de seculares casas de religião afro-brasileira, a região da Avenida Vasco da Gama. Estas se encontram hoje no meio de numerosas comunidades populares nos dois lados da atual avenida, que desde a sua construção inicial conta com mais que 140 anos. Mas, apesar de muitas tentativas de diálogo empreendidas, inclusive a publicação do livro em questão (e de outros materiais criados por outras casas), por questões ideológicas/ religiosas, as trajetórias destas várias casas alcançam raramente um público maior, a não ser aquele das próprias casas de candomblé e suas redes de participantes. A sociedade envolvente pouco se interessa pela questão, também porque nas comunidades circunvizinhas a maior parte das pessoas, em geral afro-descendentes, hoje aderiu às religiões evangélicas (tradicionais e neo-pentecostais), adotando uma postura de negação completa da cultura afro-brasileira, quando não entra em confronto aberto. As semelhanças da complexa situação relativa ao recorte definitivo da história da casa e às dificuldades da inserção de sua memória no contexto cultural das pessoas ao seu redor permitem construir uma ponte, no sentido metafórico, para o outro lado da referida avenida onde se situa a outra instituição envolvida no projeto da gravação, a Fundação Pierre Verger. Os vários questionamentos que esta experiência trouxe, reforçaram outros, anteriores, que já tinham surgido ao tratar de aspectos históricos e culturais, presentes na realidade dos moradores do bairro ao redor da Fundação, o Engenho Velho de Brotas. Este bairro possui uma longa trajetória histórica, embora quase desconhecida em Salvador e também ausente na discussão cotidiana dos moradores, incluindo aqui as escolas. Percebi durante os vários anos de observação e pesquisa sobre tradições musicais e memórias sonoras no bairro que as informações sobre a história e o patrimônio cultural eram muito fragmentadas, senão inexistentes, mesmo entre os professores dos 4 colégios estaduais e das 4 escolas municipais.12 Perguntei-me, quais a possíveis razões para esta situação e tentei realizar ações compartilhadas para aprofundar o tema e propor novas formas de abordá-lo. A primeira trata da experiência relativa à criação de uma trilha de visitação pelo bairro, dirigida aos próprios moradores para interagirem com alguns dos aspectos culturais/ históricos do local. Para acompanhar a trilha, com duração de cerca duas horas, foi elaborada uma brochura com trechos de fontes históricas dos últimos 200 anos que mencionam locais do bairro e sua vida cultural, dirigida aos professores das escolas do bairro.13 Após uma das caminhadas com mais de 20 professoras das escolas municipais, foi realizada uma oficina de formação, discutindo os materiais inseridos na cartilha, conforme acordo prévio com as direções das respectivas escolas. Mas, surpreendentemente, várias professoras participaram apenas de um dos dois turnos da atividade, alegando falta de comunicação da parte da direção da escola e incompatibilidade com a sua carga horária, entre outros motivos, assim desculpando a sua indisponibilidade. É importante ressaltar que poucas destas professoras residem no bairro, e a maior parte delas aparentemente estava pouco disposta a buscar entender melhor o local onde elas trabalham e onde residem seus alunos. Já a visitação realizada com paroquianos ao comemorar os 110 anos da construção da igreja católica no bairro, teve uma acolhida diferente, provavelmente por tratar-se somente de moradores, inclusive muitos deles nascidos no bairro. Assim foi possível completar algumas das informações sobre a história já existentes com as suas narrativas. Não continuamos com as visitações devido a uma fase de muita violência no bairro decorrente de problemas ligados ao tráfico de drogas, o que, por sua vez, impulsionou a criação de um conselho comunitário, para pensar o bairro a partir de uma perspectiva nova, buscando caminhos pautados em educação, cultura, identidade cultural e patrimônio.14 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ O bairro abriga p.ex. uma construção histórica de mais de 200 anos, habitada por dois anos pela família do poeta abolicionista Castro Alves, cujo pai, médico, tinha planos iniciais de ali residir por muito tempo, mas devido à morte repentina da esposa, a família se mudou e a casa virou alguns anos mais tarde o segundo hospital psiquiátrico do país (o primeiro é o Hospital Dom Pedro II, na Praia Vermelha no Rio). O hospital finalmente foi batizado com o nome do conhecido médico negro Juliano Moreira, que por um tempo foi médico deste hospital. Além disso, existem muitas fontes escritas que falam da presença de tradições religiosas e culturais afro-brasileiras, muito presentes até o final do séc. XX, além de relatos orais sobre o tempo do “hospício”, como dizem os moradores mais velhos, sobre festas e a vida do bairro. 13 O material foi uma primeira coleção de trechos de fontes histórica para os professores. 14 O conselho conta com representantes das instituições do bairro como escolas, igrejas, associações de moradores, comerciantes, órgãos culturais e outros. Um dos desafios será acompanhar os preparativos para a Copa 2014, a ser realizada no 12 211 A segunda experiência se refere à elaboração de um pequeno livro sobre a trajetória da capoeira em Salvador, com base em fotos de Pierre Verger, dirigido ao público infantil. Este livro incluiu cerca de um quarto do total das 200 fotografias, que tinham sido identificadas e posteriormente trabalhadas com o grupo de capoeira do Espaço Cultural Pierre Verger, composto por crianças e adolescentes. O objetivo era incluir a sua percepção da capoeira, o que se transformou em comentários sobre as fotos, em desenhos e letras de ladainhas. Para garantir o diálogo com o publico alvo da publicação, crianças e adolescentes, aplicou-se no texto uma linguagem bem acessível para este público. O livro foi entregue a escolas do bairro, à Biblioteca Central do Estado, às secretarias municipal e estadual de educação, além de grupos de capoeira para distribuição e inserção em atividades. Porém, não houve nenhum retorno sobre a efetiva distribuição por esses órgãos, nem tampouco sobre a inserção ou aplicação do material pelos professores ou então a efetiva aprovação pelos beneficiados, os jovens leitores, nem aqueles que eram estudantes das escolas do bairro. Estes exemplos mostram que mesmo quando existem ações e materiais com uma visão de história mais próxima aos seus contextos de origem, não é garantida a sua inserção e aprovação: precisa ainda de outros elementos nesta equação complexa para avançar na construção de novas propostas em relação a patrimônio e história. Os materiais precisam ser socializados e “abraçados” pelas várias instâncias, incluindo os órgãos competentes, comunidades e professores.15 Além disso, parece que ainda existe uma barreira muito forte em relação ao uso de materiais que, de alguma forma incentivam a leitura crítica e a reflexão, no nosso caso relativo a informações sobre a formação, ocupação e o funcionamento interno da comunidade no local, tanto no séc. XIX quanto no séc.XX., buscando a resignificação positiva deste habitat, hoje muitas vezes estigmatizado. Isso passa por uma análise das complexas relações sociais e raciais, bem como de aspectos de natureza econômica e política, o que requer preparo e disposição dos envolvidos na condução destas leituras e discussões subsequentes. Confesso que ao realizar as ações, ainda não conhecia o conceito de educação patrimonial, mas ao preparar este texto, percebi que as ações realizadas no bairro se enquadram perfeitamente nessas propostas de ação16. Acredito que o conceito de educação patrimonial traz uma dimensão interdisciplinar importante tanto para a etnomusicologia, quanto para áreas afins. Ele nos mostra, como apontei no caso da gravação histórica, que temos de rever alguns conceitos e procedimentos vistos como inerentes à área, buscando novas possibilidades de compreensão da dimensão histórica dada pelas pessoas e criar outras formas de representação, o que é novo para todos nós. Em busca de caminhos para uma futura conclusão O quadro até agora apresentado realça o compromisso que cabe aos envolvidos com pesquisa de forma geral em empenhar-se em processos colaborativos e educativos, criar e/ou fazer circular e disponibilizar possíveis materiais relativos ao patrimônio material ou imaterial que permitam às pessoas desenvolver relações mais diretas com a sua história. Só a partir disso é possível construir novas propostas ou fazer retificações que colocam os olhares em questões ainda não abordadas como aconteceu no caso da gravação histórica feita por Pierre Verger na Casa de Oxumarê. Parece-me que só desta forma o hiato entre as percepções de patrimônio, memória e história por parte dos vários segmentos, formadores de políticas voltadas para o patrimônio, órgãos vários, pesquisadores e as pessoas participantes das tradições, habitualmente excluídas do processo de construção de história, poderá ser diminuído. Mas também parece que da parte de muitos ainda estádio situado ao lado do bairro, ao certo causando interferências. 15 Ironia à parte: a Secretaria Municipal de Educação está situada no próprio bairro, no mesmo solar, antigamente pertencente ao pai do poeta Castro Alves, porém sem diálogo com a comunidade ao redor. 16 Ver sobre a questão as publicações de Evelina Grunberg, a partir dos sites citados na bibliografia. 212 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER não há uma real compreensão das tantas possíveis percepções de história/ patrimônio e identidade cultural ou religiosa. Acredito que uma mudança só pode ocorrer quando as pessoas das comunidades populares, envolvidas nestes processos, terão a possibilidade de se entender como sujeitos históricos nas suas trajetórias com uma colaboração efetiva neste processo, o que requer possibilidades de ações neste sentido desde a idade escolar.17 Nós estamos muito acostumados de ver a etnomusicologia em diálogo com a antropologia, além de existir uma discussão histórica com a musicologia em relação às delimitações disciplinares e diferenças, existentes ou não. Parece que a inserção da questão do patrimônio a partir do ângulo da educação patrimonial, sempre com uma visão crítica como a colocada durante esse texto, oferece novas possibilidades de diálogo. Isso também traz uma responsabilidade enorme para continuar pensando em ações socialmente relevantes a partir do compromisso de ocupar-se com as questões que realçam o direito à presença da história com significado na vida de todos, colaborando com os mais diversos processos e formatos para alcançar este objetivo. Apesar de muitas dúvidas, é certo que não devem se aplicar parâmetros acadêmicos para realizar isso. Gostaria de finalizar com as seguintes observações: como foi discutido no decorrer deste texto a partir de minha experiência no bairro do Engenho Velho de Brotas, torna-se impossível separar aspectos musicais de outros, patrimoniais ou históricos, ou, simplesmente, questões sociais, políticas e ideológicas envolvidas nas complexas relações entre grupos sociais. Na ótica e lógica das comunidades urbanas, o conceito patrimônio (seja ele material ou imaterial) certamente possui uma dimensão mais ampla, por vezes até difusa, e, assim, bem diferente daquela que os profissionais da área sempre trazem na ponta da língua, ao discutir questões patrimoniais. Certamente esta outra dimensão é profundamente influenciada por expectativas e necessidades próprias que em geral ainda não foram compreendidas, ou talvez nem percebidas, por gestores, produtores e pesquisadores. Portanto, não é de se estranhar que muitos dos projetos da área patrimonial não alcancem todos os seus objetivos, não atraiam o número de público planejado, por existirem profundas diferenças nas concepções e compreensões entre quem elabora, executa e quem vivencia o que é tema ou objeto destes projetos. Não adiantam ações que pensam em formação de plateias, inserir pessoas nos circuitos de apresentações culturais ou na divulgação de livros, se não forem baseadas no real interesse em entender culturas locais, não para serem mostradas, mas para trabalhar noções voltadas para o patrimônio em comunidades e especialmente comunidades urbanas, em geral mais dispersas, menos coesas e menos inseridas em projetos desta natureza. Este processo deve passar por espaços escolares e não escolares de ensino e fazer parte da formação de professores, o que requer também que os pesquisadores acadêmicos que produzem novas informações e conhecimentos sobre questões patrimoniais e históricas devem disponibilizá-los em formatos menos acadêmicos, pois pela minha experiência com professores da rede publico no Engenho Velho ficou explícito que, por vários motivos, há pouca motivação para empenharem-se na construção de novos saberes significativos para os seus alunos, se não houver uma mudança de paradigma na condução da formação de professores também. Assim, cabe a todos nós esta difícil e desafiante tarefa de dialogar melhor com todos aqueles segmentos da sociedade brasileira ainda pouco representados pelas ações patrimoniais para começar a construir uma noção de história mais rica, diversificada e justa, e finalmente compreender 17 Acredito que educação patrimonial seja diferente de educação ambiental, por exemplo: a segunda mexe com hábitos e a primeira mais com conceitos. Hábitos se constroem, ficam até arraigados, mas podem ser mudados, já conceitos envolvem abstração, algo muito demorado a ser construído. É só lembrar o tempo que crianças precisam para entender qual a diferença entre os conceitos cidade, estado, país e continente, ou o significado de certas dimensões de tempo como mês, ano, década e século ou entender, então, a dimensão do conceito cronológico na sociedade ocidental, tão presente. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 213 o patrimônio em toda a sua amplitude como algo heterogêneo e até contraditório, longe de ser consensual, permitindo e necessitando da existência de várias óticas. QUINALHA, Renan Honório. “Lugares de memória”. In: Dicionário de Direitos Humanos. Disponível em http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-config_pdf.php?page=Lugares%20de%20 mem%C3%B3ria http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php http://www.iphan.gov.br Referências ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história da cultura afro-brasileira. São Paulo, Editora: Moderna, 2009. ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/ Fundação Palmares, 2006. CONNERTON, Paul. How societies remember. Nova York: Cambridge University Press, 1990. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. 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Os anos 1930 fizeram do samba um ícone da integração nacional, oferecendo ao preto e ao pobre compensação simbólica pela espoliação material. Nos anos 1970 alguns encontraram no soul e no funk norte-americanos antídoto contra a ideologia da integração subalterna.2 A partir dos anos 1990 uma associação de comerciantes do varejo de substâncias ilícitas, o Comando Vermelho Rogério Lemgruber,3 ofereceu à contra-ideologia o espaço de sua radicalidade musical. Funk Durante a Segunda Grande Guerra surge nos Estados Unidos uma forma de música negra4 dançante para pequenas formações vocal-instrumentais combinando elementos do blues e do swing jazz: o rhythm and blues.5 A exacerbação de traços da música gospel no rhythm and blues começa a definir um gênero novo nos anos 1950, a música soul,6 cuja trajetória se associará às lutas pelos direitos civis dos afro norte-americanos. Duas vertentes se delineiam nos anos 1960: o soul telúrico do sul,7 representado pela gravadora Stax8 e artistas como Otis Redding e Wilson Pickett, e o soul sofisticado do norte, representado pela Motown e grupos como The Supremes e The Temptations. O assassinato de Martin Luther King em 1968 coincide com o início de transformações musicais que se afirmarão na década seguinte: a vertente sulista toma o rumo do funk com James Brown; o estilo afluente do norte cede lugar ao soul da Filadélfia, e este à música disco.9 O rap (rhythm and 1* Este trabalho é um desenvolvimento da comunicação “O Som à Prova de Bala”, apresentada no IV Seminário Música Ciência Tecnologia, na USP, em 4 de julho de 2012, e também dos verbetes “Funk Carioca and Música Soul” e “Funk proibido”, escritos respectivamente para a Encyclopedia of Popular Music of the World (Londres, Continuum, 2013, no prelo), e para o livro de Leonardo Avritzer, Newton Bignotto, Fernando Filgueiras, Juarez Guimarães e Heloísa Starling, Dimensões políticas da Justiça (Rio de Janeiro, Record, 2012, no prelo). Ele foi realizado como parte do programa de uma residência no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG em projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. 2 Ver “A (re)invenção da negritude: black is beautiful”, no livro de Giacomini, p. 189–256; ver também “Black Soul: A Threat to the National Project”, no livro de Hanchard, p. 111–119; ver ainda os artigos de McCann e Alberto. 3 Sobre o Comando, Comando Vermelho, ou Comando Vermelho Rogério Lemgruber (CV, CVRL ou RL), ver os livros de Lima, Cypriano e Barcellos, bem como o artigo de Penglase. 4 Sobre a música afro norte-americana, ver as entradas pertinentes na coletânea de Burnim e Maultsby. 5 Sobre o rhythm and blues, ver o livro de George. 6 Para uma síntese do soul, ver o verbete de Brackett no New Grove. 7 Sobre o soul do sul, ver o livro de Guralnick. 8 Sobre a Stax, ver o livro de Bowman. 9 Sobre o soul da Filadélfia e a disco, ver os livros de Lawrence e Shapiro. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 217 poetry),10 expressão musical da cultura hip-hop do Bronx, começa a tomar forma no início dos anos 1970 através de uma combinação de breaks de funk, procedimentos do dub jamaicano e técnicas de discotecagem desenvolvidas a partir da experiência dos DJs11 da disco. O primeiro gênero de música eletrônica dançante, a house music,12 surge em Chicago na primeira metade dos anos 1980 como uma mutação da disco. O hip-hop se espalhará pelas periferias do mundo para tornar-se uma espécie de língua franca, intrinsecamente dialetal. A house se propagará pelo Reino Unido através de eventos como o Segundo Verão do Amor, as free parties e as raves, dando origem a subgêneros como a acid house,13 o techno14 e o trance.15 Na primeira metade dos anos 1970, Mister Funky Santos (Oséas Moura dos Santos) e Dom Filó (Asfilófio de Oliveira Filho)16 montam, respectivamente no Catumbi e no Andaraí, bailes movidos a soul e funk norte-americanos. À medida que, nos Estados Unidos, o funk cede espaço ao hip-hop como expressão musical negra nos anos 1980, no Brasil os bailes black dão lugar aos bailes funk, nos quais a música funk norte-americana cede espaço ao hip-hop e ao freestyle. Apropriação e ressignificação A apropriação17 e a ressignificação por artistas brasileiros da música afro-americana dos Estados Unidos é tão antiga quanto a própria indústria fonográfica. “Laughing Song”,18 de George W. Johnson,19 o título mais vendido dos anos 1890, apareceu em cilindro no Brasil como “A gargalhada”, por Eduardo das Neves, em 1902.20 Gravada em disco como “Gargalhada” por Neves em 1906,21 ela figurou no catálogo da Casa Edison como um lundu por aproximadamente um quarto de século. Mas enquanto Johnson, escravo de nascimento, ridiculariza um negro de acordo com estereótipos racistas, o crioulo22 Eduardo das Neves ridiculariza o puxa-saquismo,23 que ele apresenta como um traço dominante das classes favorecidas. No processo, a coon song de Johnson transformou-se num lundu. Acontece o oposto com um cakewalk de Kerry Mills cujas gravações mais antigas remontam à segunda metade dos anos 1890. “At a Georgia Camp Meeting”24 recebeu diferentes versões no Brasil,25 entre elas a canção “O mulato de arrelia” (Victor 98.720, 1907). O cakewalk tem origem na paródia por escravos da empáfia dos senhores brancos. Mas “O mulato de arrelia” coloca em cena um cantor de etnia desconhecida para personificar a bravata de um negro rústico na capital europeizada Sobre o rap, ver o livro de Rose. Para uma história dos diversos gêneros na perspectiva do DJ, ver o livro de Brewster e Broughton. Sobre a house, ver os livros de Bidder e Kempster. 13 Sobre a acid house, ver o livro de Collin. 14 Sobre o techno, ver o livro de Sicko. 15 Sobre os diversos subgêneros da house, ver o livro de Reynolds. 16 Filó é um dos informantes anônimos da etnografia histórica de Giacomini; para um relato na primeira pessoa, ver a entrevista de Oliveira Filho. 17 O termo “apropriação” foi proposto por Béhague. 18 Cilindro não numerado, provavelmente New Jersey, 1894–1898, transferência digital em Lost Sounds: Blacks and the Birth of the Recording Industry, 1891–1922, Archeophone, ARCH 1005, EUA, 2005. 19 Sobre Johnson, ver o livro de Brooks, p. 13–71. 20 Cilindro A-492, perdido, Casa Edison, catálogo de 1902 reproduzido em CD no livro de Franceschi. 21 Para detalhes sobre “Gargalhada”, ver “Fonograma 108.077”, do autor. 22 Como ele próprio se denomina no poema autobiográfico “O creoulo”, de 1900. 23 Vagalume assumiu a autoria da letra em 1933 (Guimarães, p. 68). 24 O Projeto de Digitalização e Preservação de Cilindros da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, guarda sete versões norteamericanas, cinco das quais podem ser ouvidas no site http://cylinders.library.ucsb.edu; para uma gravação em disco, ver Victor 31 5, 1904, transferência digital em Stomp and Swerve: American Music Gets Hot, EUA, Archeophone, ARCH 1003, 2003. 25 Sou grato a Ingeborg Harer, da Universität für Musik und darstellende Kunst Graz, por identificar o cakewalk de Mills a partir da gravação do pianista Artur Camilo para a Casa Edison (Odeon 40.210) e transmitir a descoberta ao autor em mensagem de 16 de abril de 2008. 10 11 12 218 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER do país. No processo, um cakewalk transformou-se na contrapartida brasileira de uma coon song. A ressignificação decorre de uma propriedade fundamental da fonografia: o que soou alhures, outrora, ressoa aqui, agora, e adquire sentidos inerentemente distintos. No final dos anos 1960, a Primavera de Praga, o Maio de 68, e o movimento pelos Direitos Civis sacudiram a Europa e os Estados Unidos. No Brasil, as Forças Armadas fecharam o Congresso e deram ao presidente de fato poderes legislativos e judiciários.26 Funk carioca De acordo com uma historiografia27 dominada pelas narrativas concordes do antropólogo Hermano Vianna e do DJ Marlboro, a música funk carioca surge em 1989 com o lançamento do LP Dj Marlboro apresenta funk Brasil (Polydor 839 917-1), suprindo os bailes com o primeiro gênero brasileiro de música eletrônica dançante, uma criação nacional cuja matriz é uma variedade de hip-hop conhecida como Miami bass. Ainda que em suas expressões informais ela possa assumir as características de uma improvisação vocal, num jogo de chamadas e respostas entre os participantes, que se acompanham com uma base rítmica coletiva de palmas, ruídos e interjeições vocais,28 grande parte dos primeiros raps e melôs da música funk carioca consiste numa declamação rimada executada por um ou dois MCs sobre uma base em vinil — frequentemente a faixa “808 Volt Mix”, do DJ Battery Brain (Techno Hop Records, 1988) — manipulada ao vivo por um ou dois DJs: “Rap do Salgueiro”, dos MCs Claudinho e Buchecha; “Rap da Felicidade”, com os MCs Cidinho e Doca; “Rap do Silva”, do MC Bob Rum. Em 1998 o DJ Luciano de Bangu utilizou a bateria eletrônica Roland R-8 para criar a base Tamborzão, que passou a dominar o gênero. À medida que a música se desenvolve e se populariza, aparecem designações como “funk de raiz” para os fundadores; “funk consciente” para a crítica social; “putaria” para a sexualidade onírica; “melody” para as situações sentimentais; “montagem” para a manipulação de samples;29 “proibidão” para a doutrina. Funk proibido Espécie de James Brown brasileiro, Gerson King Combo surge na confluência dos bailes black com a onda de popularidade que o soul e o funk norte-americanos desfrutam entre os artistas nacionais na década de 1970. Em 1980 ele grava, com letra de Paulo Coelho, o compacto simples “Melô do Mão Branca” (Sinter 2171 603), interpretando um policial ao telefone: “Ratatá! Papá! Zim! Catchipum! são sons que você tem que acostumar, essa é a música que toca a orquestra do Mão Branca, botando os bandidos pra dançar”.30 Em 1989 o MC Guto prenuncia o subgênero proibido com a “Melô do bicho”: “só falo o que eu penso, goste quem gostar, otário de bobeira tem mais é que dançar”. Em 1995 os MCs Júnior e Leonardo popularizam um cardápio de metralhadoras, pistolas, granadas e fuzis, entrecortado pelos para-papa-papa-pa-papa-papas de Cidinho e Doca no “Rap das Armas”. Júnior e Leonardo, da Rocinha, Cidinho e Doca, da Cidade de Deus, e William e Duda, do Borel, são intimados a depor. Em 30 de setembro de 2005, dois dias antes da estreia do documentário Sobre o atrito entre os movimentos contrários de repressão no Brasil e liberação no mundo, ver “A roda de Aquarius”, no livro de Gaspari, p. 211–235. Sobre a historiografia, ver, do autor, “Funk Carioca and Música Soul” e “Notes on the Historiography of Música Soul and Funk Carioca”. 28 Como no repente na Quadra do Coroado, na Cidade de Deus, que se pode ver no início do documentário de Denise Garcia, Sou feia mas tô na moda (2005). 29 A obsessão com a voz humana fragmentada e repetida está presente no início de três vertentes musicais caracterizadas pelo uso de samples: a música concreta, em Paris, com o “Estudo patético”, de Pierre Schaeffer, em 1948; a house, em Chicago, com “Farley, Farley”, de Farley Jackmaster Funk, em 1985; o funk carioca, no Rio, com “Jack Matador”, dos DJs da Pipo’s, em 1994. 30 Este proto-proibidão cujo protagonista é um policial e seu grupo de extermínio ilustra uma apropriação brasileira do gênero afro norte-americano nove anos antes do surgimento da música funk carioca. 26 27 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 219 Sou feia mas tô na moda, o jornal O Dia estampa em primeira página: “Ofensiva contra os gritos de guerra do crime”. Abaixo, as fotografias dos MCs Frank, Sapão, Catra, Tan, Cula (da dupla Tan e Cula), Sabrina, Cidinho, Doca (da dupla citada), Duda do Borel (da dupla William e Duda), Menor do Chapa, Colibri e Menor da Provi; e a manchete: “Polícia indicia 12 que cantam funk do mal”. A historiografia do samba carioca realça figuras de miscigenação: a senzala e a casa-grande, o lundu e a modinha, o asfalto e o morro, a sala de visitas e a sala de jantar. A história da música funk carioca reitera tropos de exclusão. O espaço compartilhado dos Bailes da Pesada é delimitado por paisagens sonoras alternadas: rock progressivo para a Zona Sul escutar, soul e funk norte-americanos para a Zona Norte dançar. Roberto Carlos requisita o Canecão em 1970 ou 197331 e os bailes prosseguem no Catumbi e no Andaraí.32 Entre 1972 e 1975 as Noites do Shaft, no Renascença Clube, rejeitam a mística da integração (Giacomini). Lena Frias nomeia e revela o movimento black soul no Jornal do Brasil em 1976. No ano seguinte Gilberto Freyre e Júlio Medaglia reagem no Diário de Pernambuco e na Folha de S. Paulo: “Atenção, brasileiros” (15 de maio de 1977) e “‘Black Rio’ assusta maestro Júlio Medaglia” (10 de junho de 1977). Em 1992 os arrastões da orla do Rio associam o funkeiro à violência e ao crime (Herschmann e Yúdice). Oito anos depois os bailes passam a ser regidos por legislação específica. Legislação Em 4 de novembro de 1999 a Resolução 182/1999 da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro institui, por iniciativa do deputado Alberto Brizola (PFL), Comissão Parlamentar de Inquérito “com a finalidade de investigar os ‘Bailes Funk’, com indícios de violência, drogas e desvio de comportamento do público infanto-juvenil” (art. 1o). A CPI do Funk resulta na Lei 3410/2000, promulgada em 30 de maio do ano 2000, responsabilizando pelos bailes os presidentes, diretores e gerentes dos locais onde são realizados (art. 1o); obrigando-os a instalar detectores de metais na portaria (art. 2o); exigindo a presença de policiais militares durante todo o evento (art. 3o); requerendo permissão escrita da polícia (art. 4o); autorizando a interdição de locais onde se realizem atos de violência incentivada, erotismo e pornografia (art. 5o); proibindo a execução de músicas e procedimentos de apologia ao crime (art. 6o); impondo à autoridade policial a fiscalização da venda de bebidas alcoólicas para menores (art. 7o). No dia primeiro de maio de 2004 a Lei 4264/2003, do deputado Alessandro Calazans (PV), declara o baile funk uma atividade cultural de caráter popular (art. 1o); determina que o exercício dessa atividade fique sob a responsabilidade e a organização de empresas de produção cultural, de produtores culturais autônomos ou de entidades e associações da sociedade civil (art. 2o); responsabiliza os organizadores pela adequação do local às normas estabelecidas pela legislação (art. 3o); incumbe os organizadores e as entidades contratantes de garantir a segurança interna do evento (art. 4o). Em 19 de junho de 2008 a Lei 5265, do deputado Álvaro Lins (PMDB), revoga a Lei 3410 e estabelece normas mais restritivas, extensivas às raves. A permissão escrita deve ser solicitada com antecedência mínima de trinta dias mediante a apresentação de oito documentos (art. 3o), entre os quais: comprovante de tratamento acústico, se o evento for realizado em ambiente fechado; anotação, expedida pela autoridade municipal, de responsabilidade técnica das instalações de infraestrutura; contrato da empresa autorizada pela Polícia Federal a se responsabilizar pela segurança interna; A literatura situa este episódio no início dos anos 1970 sem precisar a data. Roberto Carlos apresentou-se no Canecão em setembro de 1970 e em novembro 1973 (Araújo, 235–245, e Sanches, 132 e 174). 32 Oliveira (q.v.) refuta o papel dos Bailes da Pesada enquanto mito de fundação: os bailes black não começaram com Big Boy, não nasceram no Canecão, e não se espalharam na periferia expulsos de Botafogo. comprovante de instalação de detectores de metal, câmeras e dispositivos de gravação de imagens; comprovante de previsão de atendimento médico de emergência; os nihil obstat da Delegacia Policial, do Batalhão da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e do Juizado de Menores. A duração do evento não pode ultrapassar doze horas (art. 4o), o local deve dispor de um banheiro masculino e um feminino para cada grupo de cinquenta participantes (art. 5o), e a gravação das imagens deve permanecer à disposição da autoridade policial por seis meses (art. 6o). O descumprimento dessas determinações sujeita o infrator (art. 8o): à suspensão do evento; à interdição do local; a multa no valor de cinco mil Unidades Fiscais de Referência. Em 22 de setembro de 2009 a Lei 5544, dos deputados Marcelo Freixo (PSOL) e Paulo Melo (PMDB), revoga a Lei 5265. Na mesma data entra em vigor a Lei 5543, de Marcelo Freixo e Wagner Montes (PDT). Fica definido que o funk é um movimento cultural e musical de caráter popular (art. 1o). Compete ao poder público assegurar a esse movimento a realização de suas manifestações, sem regras diferentes das que regem outras da mesma natureza (art. 2o). Os assuntos relativos ao funk devem ser tratados, prioritariamente, pelos órgãos do Estado relacionados à cultura (art. 3o). Fica proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito social, racial, cultural ou administrativo contra o movimento (art. 4o). Os artistas do funk são agentes da cultura popular e, como tal, devem ter seus direitos respeitados (art. 5o). Em parágrafo único, o artigo primeiro exclui das rubricas “cultural”, “musical” e “popular” os “conteúdos que façam apologia ao crime”. Política Entre 3 e 31 de outubro de 2010 o segundo turno das eleições presidenciais acirra o enfrentamento entre, de um lado, uma coligação de centro-esquerda cujos trunfos são a popularidade de um presidente em exercício e o entusiasmo de uma nova militância na rede mundial, e de outro, uma coalizão de direita impulsionada pela grande mídia. Na manhã de 8 de novembro quatro pessoas ateiam fogo a dois automóveis na autoestrada Grajaú-Jacarepaguá, dando início a uma onda de ataques incendiários a veículos supostamente promovida pelo Comando Vermelho. Esses ataques servem de pretexto à invasão, nos dias 25 e 28 de novembro respectivamente, da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, redutos do CV, colocando em cena o Exército, a Marinha, a Aeronáutica e as Polícias Civil, Militar, e Federal. Polícia Entre os dias 14 e 16 de dezembro, os MCs Frank, Max, Tikão, Dido e Smith são detidos através de uma ordem de prisão temporária decretada pelo Juiz de Direito da Vigésima Oitava Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro. Ao meio-dia de 15 de dezembro, Ana Paula Araújo fala dos estúdios da Rede Globo no RJTV: “Começamos o RJ de hoje com uma reportagem exclusiva33 que traz essas imagens aqui cedidas pela Polícia”. O baile ocorreu “lá no conjunto de favelas do Alemão depois da ocupação”. Frank e Tikão “foram presos hoje de manhã dentro de uma operação da Polícia de combate a funkeiros que fazem apologia ao crime”. Na externa, Eduardo Tchau informa incorretamente: “os MCs Frank e Tikão cantam um funk sobre o chefe da facção criminosa que dominava o Alemão, Fabiano Atanazio, conhecido como o FB”. Carabina em punho, a chefe da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática da Polícia Civil intima Frank com a voz firme e a dicção nítida da atriz estreante: “Abre a porta, é a polícia, se não a gente vai arrombar.” A Globo entra para oferecer a centenas de milhares de espectadores no 31 220 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Os itálicos sublinham os tons da indignação moral de uma emissora cujas técnicas de locução se forjaram na construção da ditadura: os acusados estão sendo julgados, não pela lei, que, respeitada, não teria permitido sua prisão, mas pela afetação moral da infratora propriamente dita. 33 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 221 almoço um MC em cuecas, atônito — sua primeira filha, Yasmin, nascera no dia anterior. A câmera fixa o torso nu de Frank, desce pelo ventre, passa pela virilha, contorna os quadris, desce pelas nádegas e, na altura da coxa, toma o rumo da esquerda, acelerando em direção à superfície horizontal do balcão para focar em close os cordões de ouro meticulosamente dispostos em composição geométrica com o maço de cigarros, o isqueiro, o relógio, o anel, as chaves e a pulseira: evidência tácita de enriquecimento ilícito. “Vai lá no morro falar pros bandidos que não pode cantar”, justifica-se Tikão. “A gente canta nossas músicas e nunca foi obrigado por ninguém”, esclarece Frank. O repórter sentencia: “Os dois tentaram se defender, mas entram em contradição”. Justiça O plantão jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro rejeita o habeas corpus em 18 de dezembro. No dia 20 os advogados dos MCs recorrem da decisão para o Superior Tribunal de Justiça. De acordo com a “Ordem de habeas corpus com pedido de liminar impetrada em favor de MCs — Liberdade de Expressão”,34 a ordem de prisão criminaliza uma manifestação musical cujo direito é garantido pelo artigo 5o da Constituição Federal de 1988: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (inc. IV) e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (inc. IX). Sob a égide da Constituição, a prisão antes do pronunciamento de sentença penal condenatória irrecorrível é medida de caráter excepcional, somente admitida na forma e nas hipóteses previstas em lei. Entre as espécies de prisão provisória encontra-se a prisão temporária, regulada pela Lei 7.960/1989. Ela cabe quando houver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado em algum dos crimes descritos no rol taxativo do artigo 1o, inciso III, da Lei 7.960. O inquérito policial versa sobre os delitos de incitação ao crime (art. 286 do Código Penal), apologia ao crime ou ao criminoso (art. 287, CP), indução, instigação ou auxílio ao uso indevido de droga (art. 33, § 2o, da Lei 11.343/2006), e associação para o tráfico de drogas (art. 35 da Lei 11.343/2006). Nenhum deles consta do artigo 1o, inciso II, da Lei 7.960. O decreto carece portanto de amparo legal. Tanto o artigo 5o, inciso XXXIX, da Constituição quanto o artigo 1o do Código Penal determinam que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. E nos termos do artigo 5o, inciso LXV, da Constituição, “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. Não bastasse, a prisão temporária foi decretada pelo prazo de trinta dias, quando o máximo admitido pelo artigo 2o da Lei 7.960 é o de cinco, “prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.” A prisão temporária pelo prazo de trinta dias só é admissível quando a investigação versar sobre crimes classificados como hediondos, previstos taxativamente nos incisos do artigo 1o da Lei 8.072/1990; ou sobre a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o terrorismo, previstos no artigo 2o da Lei 8.072. Os crimes citados no decreto prisional não constam do rol da Lei 8.072, não permitindo portanto a aplicação do prazo de trinta dias, estabelecido no artigo 2o, parágrafo 4o, da Lei 8.072. Dentre os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, encontra-se a exigência, para a decretação de prisão, de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, ressalvados os casos de flagrante delito e de crimes militares (art. 5o, inc. LXI). E o artigo 93, inciso IX, da Constituição dispõe: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. A prisão sendo a mais gravosa das formas Esta seção sumariza a parte final da ordem de habeas corpus com pedido de liminar assinada por Thiago Andrade, Fernando Augusto Fernandes, Anderson Bezerra Lopes, Renan Macedo, Renato Silvestre Marinho, Nilson Paiva e Ricardo Sidi em 10 de dezembro de 2010, gentilmente cedido ao autor por Fernando Augusto Fernandes; ref. STJ, HC 192.802–RJ (2010/02268955), rel. Min. Laurita Vaz. 34 222 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER de intervenção do Estado na vida do indivíduo, tanto mais fundamentada deve ser a decisão que a decrete. Por isso a Lei 7.960, que disciplina a prisão temporária, reitera a necessidade de fundamentação: “O despacho que decretar a prisão temporária deverá ser fundamentado” (art. 2o, § 2o). E cabe ao artigo 1o arrolar os requisitos necessários à decretação da prisão, que consequentemente devem constar de sua fundamentação: a prisão temporária deve ser imprescindível para as investigações do inquérito policial (inc. I); o indicado não deve ter residência fixa ou ser capaz de fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade (inc. II); são necessárias fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do mesmo num rol taxativo de crimes (inc. III), entre os quais, como se viu, não consta nenhum dos crimes citados no inquérito. O entendimento unívoco da Doutrina e da Jurisprudência, quando mais não seja em razão do princípio da presunção de inocência estabelecido no artigo 5o, inciso LVII, da Constituição (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), é que somente caberá a prisão temporária quando, aos requisitos do inciso I ou II, se somar o do inciso III. A Vara Criminal decretou a prisão temporária com base nos incisos I e III, mas não demonstrou nem comprovou o periculum libertatis (inc. I), inexistente; tampouco foi demonstrada concretamente a autoria ou participação de qualquer dos indiciados nos crimes listados no inciso III, dos quais, é útil repetir, eles sequer são acusados. A Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal é contrária ao acolhimento de habeas corpus impetrado contra indeferimento de liminar em igual medida. Todavia, a jurisprudência do STF e do STJ admite a chamada impetração sucessiva diante dos casos de flagrante constrangimento ilegal ou ameaça de constrangimento. Demonstrando erros crassos na decisão que indeferiu o habeas corpus, e qualificando-a de “teratológica” e “desprovida de fundamentação idônea”, os advogados justificam sua passagem à instância superior. No dia 23 de dezembro, o Ministro Ari Pargendler ampara-se na jurisprudência do STJ, para a qual “o delito de associação para o tráfico de entorpecentes é crime autônomo, não sendo equiparado a crime hediondo”, para deferir a liminar, relaxando a prisão temporária dos acusados e determinando que se solicitem informações, com vista ao Ministério Público Federal. Frank, Max, Tikão, Dido e Smith receberam seus alvarás de soltura no dia 24 de dezembro. Crueza “Temos preguiça e não questionamos.” As palavras de Pushkin continuam válidas. Estamos assistindo ao surgimento de uma arte nova. Ela está-se desenvolvendo a passos largos, desligando-se da influência das artes precedentes e começando a influenciá-las. Ela cria normas próprias, leis próprias, para depois rejeitá-las, confiante. Torna-se assim um instrumento poderoso de propaganda e educação, um fato social cotidiano e onipresente. Nisso, deixa todas as outras para trás. Os estudos de música no entanto parecem continuar de todo alheios a seu desenvolvimento. O colecionador de discos de cera de carnaúba e outros objetos raros só se interessa pela época de ouro. Para que preocupar-se com o surgimento e a autodeterminação da música eletrônica quando é tão simples contentar-se com hipóteses imaginosas sobre a origem do samba ou a natureza sincrética da modinha e do lundu? Tanto mais escassos os traços preservados, tanto mais instigante a reconstrução do desenvolvimento das formas estéticas. O estudioso considera a história da música eletrônica dançante uma banalidade; praticamente, uma vivissecção, quando sua especialidade é sair à cata de antiguidades. Porém é óbvio que a busca pelo legado recente do funk carioca há de tornar-se em breve tarefa de arqueólogo. A primeira década do proibidão já constitui uma “era de fragmentos”. Dos anteriores a 1995, por exemplo, não resta muito, além do “Rap da armas”, afirmam os especialistas. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 223 Mas o proibidão é uma arte autônoma? Onde andará seu herói específico? Que tipo de material essa arte transforma? Artistas como Mr. Catra, o MC Leonardo, o MC Smith, o MC Orelha e o DJ Marlboro afirmam corretamente que o material do proibidão são as coisas reais. E os criadores da sonoridade proibida entenderam perfeitamente que, no proibidão, até mesmo o homem é “só um detalhe, uma parte da matéria do mundo”. O fragmento acima não é verdadeiramente uma citação. As palavras em itálico substituem termos equivalentes do artigo “Decadência do cinema?”, publicado em 1933. Roman Jakobson mostra ali como o cinema se confronta com concepções cristalizadas de arte, incapazes de compreendê-lo, e acaba por transformá-las. A substituição implica o parentesco entre o cinema e a música eletrônica no papel de artes da reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1936), ou linguagens das coisas (Schaeffer, 1942). O proibidão é um subgênero de funk carioca. O funk carioca deriva do Miami Bass. O Miami Bass é uma variedade de hip-hop. O hip-hop é um dos primeiros gêneros de música eletrônica dançante, e o funk carioca, o primeiro gênero brasileiro. Partindo do geral, a música eletrônica dançante, para chegar ao particular, o proibidão, a paráfrase mostra que a incompreensão com a qual o subgênero se defronta decorre também da inadequação da teoria da música ao entendimento de sua linguagem. Arte essencialmente vocal, o proibidão depende da persona de um artista “fiel”, “responsa”, “truta”, “cria”.35 “Não somos fora da lei porque a lei quem faz é nós”, afirma o MC Orelha em “Na faixa de Gaza é assim”.36 A lei da voz, no proibidão, quem faz é o MC, apoiado por um DJ que, na descoberta das possibilidades do instrumentário, descobre a própria música.37 É a contribuição do proibidão para uma musicografia fixada na afirmação da superioridade do sussurro afinado de João Gilberto sobre a potência abaritonada de Francisco Alves. Há períodos na história da arte e na história da cultura, afirma Jakobson, nos quais a crueza intencional desempenha um papel dinâmico, positivo. O rhythm and blues, no pós-guerra, e o southern soul, no início dos anos 1960, ilustram esse dinamismo. O foco de Jakobson é a transformação da linguagem do filme pela introdução da película sonora. Se, para muitos, o cinema entra em declínio, para Jakobson, ele passa a desenvolver outro tipo de narrativa. De forma análoga, o que acontece com o proibidão quando suas vozes se calam pela coação ilegal da mídia e do Estado? Terror As invasões da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão pelas Forças Armadas e as Polícias Federal, Civil e Militar nos dias 25 e 28 de novembro de 2010 culminaram, na tarde de domingo, 28 de novembro, no hasteamento da bandeira nacional no alto do teleférico inacabado do Complexo do Alemão, marcando a retomada pelo Estado de um território que, do Estado, só conheceu o terror. Nem o chefe do comércio de substâncias ilícitas na Vila Cruzeiro, Fabiano Atanazio da Silva, nem o do Complexo, Luciano Martiniano da Silva, foram capturados,38 mas os MCs Frank, Max, Tikão, Dido e Smith tiveram ordem de prisão decretada e foram presos ou se entregaram em meados de dezembro. Enquanto os cinco continuavam ilegalmente detidos, o presidente da república selava Eu que assisti à ocupação do Morro do Alemão pela televisão me emocionei. Imagino você, governador Sérgio Cabral, o que sentiu quando viu, pela primeira vez, o povo assistindo à polícia entrar como amiga. O povo viu as Forças Armadas servindo ao brasileiro. Não para atacar ou bater no povo, mas para defendê-lo dos verdadeiros bandidos do país. Um dado concreto é o seguinte: o Complexo do Alemão não é mais bicho-papão. (Abdala) O presidente que propugnara, no início do primeiro mandato, “subir numa cobertura, numa das grandes capitais desse país, e pegar um verdadeiro culpado pelo narcotráfico” (Silva), ao final do segundo vai encontrar “os verdadeiros bandidos do país” no Alemão, seu partido implicado numa sucessão de escândalos e investigações. O mais popular dos presidentes do Brasil não enxerga o povo: senta-se diante da televisão e imagina o governador a fazer o mesmo. Foi pela televisão que “o povo viu as Forças Armadas servindo ao brasileiro”.39 Dado concreto: as operações incluíram, cometidas pelo Estado, violações de domicílio, saques, extorsões, assassinatos, tortura, ocultamento de cadáveres e todo o tipo de infrações à Constituição, à Lei, aos direitos fundamentais, humanos, individuais.40 O presidente enxerga “o pobre sendo tratado com dignidade e com respeito” (EFE Brasil). E preconiza: “agora tem que vim cultura” (Record). Mas ele ignora a cultura urbana, desconhece a revolta e a raiva da juventude suburbana (Santos e Arellano): “O meu povo quer casa, emprego, comida, e vocês só me mandam o PAC?” — perguntara o MC Mag.41 O presidente manda no freestyle: “o Complexo do Alemão já não é mais bicho-papão, o Complexo do Alemão é na verdade um cenário de estação para que o povo possa viver com mais satisfação” (Globo, 2010). No dia primeiro de janeiro de 2011, no Congresso, a presidente eleita prestou o compromisso de “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Uma vez empossada, afirmou seu compromisso supremo de proteger os mais frágeis; sua ação decidida de preservar o país da concorrência desleal e do fluxo indiscriminado de capitais especulativos; seu compromisso inegociável com a garantia plena das liberdades individuais; seu amor natural pela mais plena democracia e pela defesa intransigente dos direitos humanos. O estado do Rio de Janeiro mostrou o quanto é importante, na solução dos conflitos, a ação coordenada das forças de segurança dos três níveis de governo, incluindo — quando necessário — a participação decisiva das Forças Armadas. Nascido e criado na favela, e fiel aos valores da ética que se formula em sua vida e em seu canto. Sobre o prestígio popular do grande delinquente enquanto ameaça ao Estado pela fundação de um novo direito, ver o ensaio de Benjamin (1920–1921). 37 Sobre a descoberta da música a partir do instrumentário, ver Pierre Schaeffer, “Faire de la musique”, Traité des objets musicaux, p. 39–99. 38 Para Roberta Trindade, “Caveirão pode ter sido usado em fuga de chefões do CV”. Fabiano Atanazio da Silva responde: “Tá maluco? Saí de lá com meu fuzil no pescoço” (setembro de 2011). Em 28 de julho de 1988, às vésperas de ser promulgada a nova Constituição, Luiz Carlos Prestes denunciava “o preceito mais reacionário, ou ditatorial da nova Constituição, a qual, na prática, pode a qualquer momento ser anulada ou rasgada constitucionalmente!...” Ele se referia ao artigo 142, que destina as Forças Armadas “à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O uso das Forças Armadas nas operações de invasão e ocupação dos Complexos da Penha e do Alemão foi criticado pelo sociólogo Michel Misse e outros especialistas (Fellet). José Arbex Jr. denunciou-o em termos contundentes na revista Caros Amigos. Nilo Batista fez o mesmo no jornal Fazendo Media. 40 Denunciados pela Agência de Notícias das Favelas, pela Anistia Internacional, pela Justiça Global, pelo jornal A Nova Democracia, pelo Observatório das Favelas, pela Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, bem como por vítimas, testemunhas, parentes, repórteres e cidadãos em documentos demasiado numerosos para ser listados aqui. 41 “Manifesto”, letra, música e produção do MC Mag, cantada por Mag e Smith, circulava desde junho de 2010, mas ganhou clip novo no Natal em homenagem aos MCs: uma colagem de filmagens aéreas de um céu cinzento na Zona Sul, cenas do cotidiano das favelas, o MC Smith saindo da viatura algemado rumo à delegacia, alusões à corrupção política e empresarial, e a fuga daquele “magote de favelados armados” (Batista, 2011a) na mira da Globo e no alvo da polícia. Ver http://youtu.be/ qVqxSF3R9K8. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 35 36 224 sua aliança com o governador do estado, a quem se dirigia, diante do prefeito do município, ao testar o teleférico do Alemão na terça-feira, 21 de dezembro: 39 225 O êxito desta experiência deve nos estimular a unir as forças de segurança no combate sem tréguas ao crime organizado, que sofistica a cada dia seu poder de fogo e suas técnicas de aliciamento de jovens. (Rousseff)42 (Voz feminina de meia-idade, falado) Eles querem defender a comunidade dessa entrada violenta da polícia. O show de posse contou com apresentações de Elba Ramalho, Fernanda Takai, Gaby Amarantos, Mart’nália e Zélia Duncan, mas nem Deise Tigrona nem Tati Quebra-Barraco nem Sabrina da Provi foram convidadas. Tampouco o foram os MCs da Penha e do Borel, federalmente reconhecidos entre os verdadeiros bandidos do país, partícipes de técnicas cada dia mais sofisticadas de aliciamento de jovens para o crime. Em contrapartida, a secretária de Estado norte-americana foi recebida com deferência constrangedora (Globo, 2011) — prenúncio de políticas de segurança pública e de cultura.43 Essa coisa de UPP Os bailes funk nos complexos da Penha e do Alemão dependeram para sua realização de acordos entre lideranças do CV e policiais militares mediante o pagamento da taxa conhecida como arrego.44 Esses acordos nem sempre foram cavalheirescos. Na reivindicação do incremento de seus proventos, a polícia cercou a quadra da Chatuba na madrugada do dia 27 de setembro de 2009, o baile lotado, disparando a esmo.45 Após as invasões instaurou-se por tempo indeterminado o estado de sítio ou de defesa não declarado (Batista & Granja). Ficaram proibidos os bailes, as festividades familiares, sujeitas ao vaticínio militar. Privadas dos palcos que as consagraram, as melhores vozes se viram coagidas a abrir mão de seus direitos constitucionais na salvaguarda da própria integridade física. O MC Smith, que já havia transformado “Vida bandida” em “Vida sofrida” (Palombini, 2011a), trocou o DJ por instrumentistas, a batida do funk, pela MPB, e aproximou-se do rock para regravar o sucesso de Cazuza “Vida louca vida” (Neto e O Dia). O MC Orelha, que já havia transformado “Na faixa de Gaza é assim” em “Para de marra”, trocou o DJ por instrumentistas, a batida do funk, pelo rock, e protestou: “isto aqui é mais um trabalho cultural, funk é cultura” (Orelha e Loucos). As invasões e a ocupação da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão tinham como objetivo declarado a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora,46 projeto de segurança pública com supressão de garantias constitucionais — as chamadas cláusulas pétreas — sob a tutela da autoridade policial.47 A primeira UPP foi inaugurada no Morro Dona Marta em 28 de novembro de 2008. Um pouco antes de instalar-se a décima primeira, em 15 de setembro de 2010, no Morro do Salgueiro, o MC Tovi cantava, produção do DJ Diogo de Niterói, “Não entra aqui a UPP”. (Voz feminina de meia-idade, falado) Essa nova geração, essa juventude, eles, eles têm o espírito suicida, eles não querem saber se eles vão morrer, se vão matar... (Voz masculina juvenil, falado) ...não tinha medo... Para uma crítica ácida, ver o Editorial d’A Nova Democracia, fevereiro de 2011. Sobre as expectativas do governo norte-americano em relação à política brasileira em meio ao segundo mandato Luiz Inácio Lula da Silva, ver Seelke & Meyer. 44 De acordo com a história oral, os bailes da Penha rendiam ao batalhão de vinte a vinte e cinco mil reais por fim de semana. 45 O fotógrafo Vincent Rosenblatt (q.v.) registrou o resultado da operação. 46 Para outras motivações, ver Batista (2011b). 47 Sobre a violência da polícia carioca, ver Human Rights Watch; sobre a conivência do executivo federal, ver Freixo. 42 43 226 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER (MC Tovi, cantado) Todas as favelas, sempre tivemos lazer, Quem mora aqui sabe, entende o que eu vou dizer. Tudo dando certo, mas eu tô esperto, Não quero essa coisa de UPP. Dentro das favelas morador vive legal, Com muita humildade, mas temos potencial. Estamos unidos, canta aí comigo, O baile tá cheio e tá legal. Eu tô revoltado com Sérgio Cabral, Sem o baile aqui não vai ficar legal. Mas pr’aqui ficar tranquilo Eu já sei o que eu vou fazer. O jeito é não entrar aqui a UPP, O jeito é não entrar aqui a UPP. Se você quer saber o que vai acontecer, Primeiro vocês entra, depois vou te dizer. Eu disse ô, acabou o caô! Utilizando na introdução falada tímpanos, explosões, ruídos de multidão distante, passos agitados nas proximidades, o fechamento rápido do microfone sobre a voz juvenil, e fazendo acompanhar o canto tranquilo do MC Tovi por rajadas de metralhadora, o DJ Diogo anuncia a luta armada. Em dezembro de 2010 o MC Dido do Borel homenageava, com voz rasgada, letra interjetiva e uma densa cortina de tiros, a oitava e a décima UPPs, instaladas em 7 de junho e 28 de julho de 2010 nos Morros do Borel e do Andaraí. Responsa é responsa, o bonde é fiel: UPP filha da puta — caralho! Caralho! caralho! caralho! —, Sai, sai, sai do Borel! Ôi, vacilô tu vai cair: UPP filha da puta — Ó! ó! —, Sai, sai do Andaraí! PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 227 Dido teve ordem de prisão temporária decretada por 30 dias (quando o máximo são 5) sob acusação de delitos que não admitem prisão temporária, sem qualquer evidência concreta dos crimes. Em abril de 2011, na inimputabilidade de seus 13 anos de idade, o MC Vitinho do Jacaré ofegava em São Gonçalo e Santa Cruz: do sistema, porque são eles que trazem as drogas e as armas, o empresário financia e a polícia facilita e ficam os políticos roubando bilhões, matando muita gente só com uma caneta, depois quer mandar quem trás as drogas e as armas para o partido vir aqui na comunidade e matar inocente. O pobre não dá lucro para a boca de fumo, quem compra todas drogas são as classes médias e os ricos. — “Irmão, pode piar em qualquer favela olhando na bola dos olhos, mostrar que esse modo de agir é retrólogo, a revolução verbal é aterrorizadora, junta teus pedaços e vem pra arena. O nosso irmão do PCC falou que o inimigo está de terno e gravata. É em nome da paz e a favor de todas as favelas, que é a hora da união, da revolução. Definitivamente, sem união não dá, então vamos todos juntos.” O crime é o crime, bandido é bandido, Na guerra chapa-quente isso é profissão perigo. Nosso bonde é guerrilheiro comandando as favelas, Nós gosta da paz, nós nunca fugimo da guerra. Seu polícia, seu peidão, vocês tudo caga no pau, Pode vim mandar exército, até a Força Nacional. Seus otário vacilão, vocês tudo perde a linha, Querendo comprar morador com caminhão de sardinha.48 Nós marola quando pode, só de Red Bull com uísque, Pode até pacificar, mas a volta vai ser triste. Aqui é só menor treinado que te mira e não te erra, Pro ataque de caveirão, não, de tanque de guerra. Não vamo entregar assim, desentoca o arsenal, É bala no viado do Sérgio Cabral. Tomaram o nosso quartel general que era o Complexo do Alemão, É bala na piranha da Dilma sapatão. RL é a relíquia, escute o que eu vô te dizer, Sou MC Vitinho, eu sou CV até morrer. Pixote mandou avisar, mandou dizer, Quero ver, quero ver instalar a UPP. “A gravação foi o produto de uma cultura que havia aprendido a enlatar e a embalsamar, a preservar os corpos dos mortos de modo que pudessem continuar a desempenhar uma função social após a vida,” afirma Jonathan Sterne. A conclamação “a revolução verbal é aterrorizadora, junta seus pedaços e vem pra arena” tomou corpo numa proliferação de mixagens de fragmentos vocais heterogêneos. Se o MC Max não podia cantar “A Penha é o Poder” na Penha, se o MC Dido não podia cantar “UPP filha da puta, sai do Borel” no Borel, suas vozes, como as de dezenas de relíquias do proibidão, estavam disponíveis em centenas de gravações que, picotadas e remixadas, deram origem, em dezembro de 2010, às montagens do CD Unidos contra a UPP, do DJ Rodrigo, deixando de lado as facções rivais para atacar a polícia, os políticos e a UPP. Elenco fabuloso Se, na base rítmica, os anos 1990 foram da Volt Mix, e os anos 2000, do Tamborzão, os anos 2010 provavelmente sejam os da Human Beatbox. Agregado de características de ritmo, tessitura e timbre, essa figura se delineia, por exemplo, nos breaks do MC Mascote do Vidigal, ainda no tempo da Volt Mix.49 A música hip-hop surgiu no Bronx nova-iorquino dos anos 1970 pela repetição contínua de breaks de funk a servir de base para improvisos vocais. Ao realimentar-se de uma figura dos anos 1990 recuperada por Mr Catra, o funk carioca reafirma sua raízes transnacionais, retornando, em estágio adiantado de seu desenvolvimento, tanto à própria gênese da matriz nova-iorquina quanto à espontaneidade do improviso popular nativo, no momento em que, coagida pelo terror de Estado, sua voz se infiltra na base e se mecaniza. Dois dias antes da invasão da Vila Cruzeiro, Roberta Trindade divulgara em seu blog o comunicado “Atenção !!!”, atribuído à cúpula do CV. Foi decretada pela união dos partidos CV, ADA e TCP todos os partidos que tenha respeito e lealdade, força, humildade e amor no coração e muita dignidade a favor de todas as comunidades, por favor se unam a nós. Foi decretado pela união dos partidos, que quando tiver repressão da polícia em qualquer favela fazendo covardia e derramando o sangue, todas a comunidades pegarão seus fuzis e atiraram em prédios, em carros importados e no que tem de mais rico e próximo a sua favela, saqueando empresas, lojas e mercados ! Foi decretado pela união dos partidos, que cada morador inocente pobre que a polícia matar, morrerá duas pessoas ricas. Foi decretado pela união dos partidos, que cada integrante do partido que a polícia matar morrerá dois policiais e seus familiares, pela união das comunidades que se cansou de covardia dos policiais e 48 228 Sobre o episódio das sardinhas, ver, por exemplo, Vieira. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Transcrição de Pedro Durães a partir da produção de “Elenco fabuloso”, do MC Alexandre, pelo DJ Byano Em julho de 2009 o MC Smith dedicara “Vida bandida” ao patrono da Vila Cruzeiro em seu aniversário natalício (Palombini, 2011a). “Vida bandida” representa a carreira e o destino de Fabiano Atanazio da Silva em modo épico, detalhando as peripécias para delinear a trajetória da ascensão no crime. Smith interpretou-a para o Cabral no Andaraí, para o Macarrão no Antares, para o Paizão no DVD da Furacão 2000. Dois anos depois, o bandido já não quer seu nome no rap: “não, tá maluco, vou ficar pixadão aí, eu vou acabar rodando” (Lopes & Palombini). “Elenco fabuloso”, do 49 Para um exemplo mais recente, ver o repente já citado, no início do documentário de Denise Garcia. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE - SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 229 MC Alexandre, é uma espécie de proibidão genérico, que se presta à celebração de todo e qualquer grupo competitivo. O MC Alexandre gravou-o para um número incontável de chefes de diferentes facções e seus bondes, de DJs e suas equipes, e até para o Flamengo e seu time. Em maio de 2011, o DJ Byano realizou a produção mais bem sucedida. (Falado) E aê, DJ Byano! Tá tudo monitorado, tem que respeitar, é o Chatubão Digital, é o elenco fabuloso! (Cantado) É o bonde do Chatubão, tá tudo monitorado, Deixa eles vim, tá tudo palmeado. É calibre avançado, tá sempre pegando fogo, DJ Byano e seu elenco fabuloso. A cada dia o nosso poder aumenta, E a nossa fama se expandiu por todo o mundo. A mídia não se cansa em divulgar Que o DJ Byano só faz baile de luxo. Hipóteses conclusivas Maiores esclarecimentos acerca do processo através do qual se efetua “o sequestro do direito pelas transnacionais” (Santos & Arellano) devem emergir de análises: (a) da tramitação na Alerj dos projetos de leis e CPI relativas aos bailes; (b) do processo de cassação do deputado Álvaro Lins; (c) da retórica de criminalização de MCs pela rede Globo de televisão; (d) de documentos vazados pelo site Wikileaks, como o “Congressional Research Service Report RL33456” (Seelke & Meyer) e, sobretudo, os memorandos do Cônsul Geral dos Estados Unidos no Rio; e (e) da constitucionalidade da legislação da Alerj referente aos bailes e da forma como as Forças Armadas foram requisitadas a cumprir função de Forças de Segurança nas favelas do Rio. Referências Nós anda de Hornet por toda comunidade, As novinhas jogam na cara com vontade, Cheio de ouro e o bolso cheio de grana, Portando Oakley, Lacoste, Dolce & Gabbana. ABDALA, Vitor. “Para Lula, Complexo do Alemão não é mais ‘bixo-papão’”. Agência Brasil. Brasília: Empresa Brasil de Comunicação, 21 de dezembro de 2010. Disponível em http://agenciabrasil. ebc.com.br/noticia/2010-12-21/para-lula-complexo-do-alemao-nao-e-mais-%E2%80%9Cbicho-papao%E2%80%9D. E quando a chapa esquenta nós tá sempre preparado, Nosso poder de fogo é de calibre avançado. E o Byano montou um elenco fabuloso Pra defender a nossa mina de ouro. ALBERTO, Paulina L. “When Rio Was Black: Soul Music, National Culture, and the Politics of Racial Comparison in 1970s Brazil”. Hispanic American Historical Review, v. 89, n. 1, p. 3–39, 2009. A praxe no proibidão é a produção mais simples possível: o MC apresenta o rap a palo seco, pede ao DJ que solte a base, e repete o canto, com o acompanhamento.50 O DJ Byano insere a voz do MC Alexandre numa trama de planos múltiplos, pontualmente transformados por diferentes tipos de reverberação; uma textura original, na qual as congas introduzem pequenas variações, adensando-a imperceptivelmente. Todo o campo das alturas se transforma num instrumento propulsivo. Detonações estilizadas demarcam as seções, em tempo e número imprevisíveis. Bandido é bandido Enquanto isso, mais ou menos distantes da mira da pacificação armada, os bailes de favela prosseguem nas Zonas Norte e Oeste, na Baixada Fluminense, em São Gonçalo, em Niterói, sujeitos aos ataques de uma polícia de elite criminosa e impune com a cumplicidade da mídia e do Estado. Na madrugada de terça-feira, 8 de maio de 2012, a tropa de elite destruiu a bala o equipamento de uma equipe no baile do Arará, em Benfica. Na madrugada de domingo, 13 de maio de 2012, a 50 “Dez Mandamentos da favela”, dos MCs Cidinho e Doca; “Na Faixa de Gaza é Assim”, do MC Orelha, na produção do próprio MC; “Vida bandida”, com o MC Smith, ao vivo na Chatuba, com o DJ Byano; “Veio o toque da cadeia”, do MC Gil do Andaraí, ao vivo na Nova Holanda etc. 230 tropa de elite usou toucas ninja para incinerar todo o equipamento da equipe Expresso 54 no baile da Pedreira, em Costa Barros, além de fraturar duas vértebras e quebrar dois ossos da bacia do empresário, hospitalizado em estado grave (Heringer e Expresso 54). Na madrugada de sábado, 26 de maio de 2012, policiais militares incineraram parte do equipamento de uma equipe e roubaram o restante no baile do Barrinho, em Belford Roxo. Na véspera, países do Conselho de Direitos Humanos da ONU haviam pedido que o Brasil acabasse com as execuções extrajudiciais e julgasse os culpados, extinguindo a Polícia Militar (Agência EFE). 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