18 Pensando Direito relatorio - Pensando o Direito
Transcrição
18 Pensando Direito relatorio - Pensando o Direito
Série Pensando o Direito Nº 18/2009 – versão integral Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica Convocação 01/2008 Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas DIREITO GV Coordenação Acadêmica Marta Rodriguez de Assis Machado Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – 4º andar, sala 434 CEP: 70064-900 – Brasília – DF www.mj.gov.br/sal e-mail: [email protected] CARTA DE APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) tem por objetivo institucional a preservação da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais. Anualmente são produzidos mais de 500 pareceres sobre os mais diversos temas jurídicos, que instruem a elaboração de novos textos normativos, a posição do governo no Congresso, bem como a sanção ou veto presidencial. Em função da abrangência e complexidade dos temas analisados, a SAL formalizou, em maio de 2007, um acordo de colaboração técnico-internacional (BRA/07/004) com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que resultou na estruturação do Projeto Pensando o Direito. Em princípio os objetivos do Projeto Pensando o Direito eram a qualificação técnico-jurídica do trabalho desenvolvido pela SAL na análise e elaboração de propostas legislativas e a aproximação e o fortalecimento do diálogo da Secretaria com a academia, mediante o estabelecimento de canais perenes de comunicação e colaboração mútua com inúmeras instituições de ensino públicas e privadas para a realização de pesquisas em diversas áreas temáticas. Todavia, o que inicialmente representou um esforço institucional para qualificar o trabalho da Secretaria, acabou se tornando um instrumento de modificação da visão sobre o papel da academia no processo democrático brasileiro. Tradicionalmente, a pesquisa jurídica no Brasil dedica-se ao estudo do direito positivo, declinando da análise do processo legislativo. Os artigos, pesquisas e livros publicados na área do direito costumam olhar para a lei como algo pronto, dado, desconsiderando o seu processo de formação. Essa cultura demonstra uma falta de reconhecimento do Parlamento como instância legítima para o debate jurídico e transfere para o momento no qual a norma é analisada pelo Judiciário todo o debate público sobre a formação legislativa. Desse modo, além de promover a execução de pesquisas nos mais variados temas, o principal papel hoje do Projeto Pensando o Direito é incentivar a academia a olhar para o processo legislativo, considerá-lo um objeto de estudo importante, de modo a produzir conhecimento que possa ser usado para influenciar as decisões do Congresso, democratizando por conseqüência o debate feito no parlamento brasileiro. Este caderno integra o conjunto de publicações da Série Projeto Pensando o Direito e apresenta a versão na íntegra da pesquisa denominada Responsabilização por ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas – uma contribuição para o debate público brasileiro, conduzida pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (DIREITO GV). Dessa forma, a SAL cumpre seu dever de compartilhar com a sociedade brasileira os resultados das pesquisas produzidas pelas instituições parceiras do Projeto Pensando o Direito. Pedro Vieira Abramovay Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 2 CARTA DE APRESENTAÇÃO DA PESQUISA A responsabilidade penal das pessoas jurídicas é um tema que tem adquirido grande relevância nos planos nacional e internacional, tanto do ponto de vista das políticas públicas para prevenção e repressão de ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas, quanto do ponto de vista do debate jurídico-dogmático. O pano de fundo dessa discussão se caracteriza, de um lado, pelo aumento das demandas por regulação e tratamento de problemas ligados à criminalidade econômica, à corrupção, à lavagem de dinheiro, à lesão ao meio ambiente, etc. e, de outro, pelo papel central das organizações empresariais nessas práticas, agravado pelo fato de que são enfrentados hoje obstáculos significativos à atuação do sistema penal, talhado para imputar responsabilidade individual, na persecução e punição de tais ilícitos. É nesse contexto que surgem propostas de ampliar e tornar mais efetivas a responsabilidade penal de pessoas jurídicas. No Brasil, a previsão normativa desse instituto foi introduzida pela Constituição Federal de 1988 e regulamentada dez anos depois pela Lei n. 9.605/98. É atualmente aplicável somente a casos envolvendo crimes contra o meio ambiente. Entretanto, tramitam hoje no Congresso Nacional muitas propostas de reforma legislativa que têm como propósito ampliar a aplicação desse instituto, a fim de incidir em outras condutas praticadas no âmbito de empresas. Não obstante a adoção do instituto há mais de dez anos em um campo importante de aplicação do Direito penal e a iminência de sua ampliação, diagnosticamos que a aplicação do instituto é incipiente e a jurisprudência sobre o tema é pouco sólida. Além disso, falta de reflexão no debate brasileiro não somente sobre a própria experiência pregressa na aplicação do instituto, como também sobre questões relevantes que dizem respeito a formas alternativas de configuração do sistema de responsabilidade coletiva, de modo a torná-lo mais eficiente. A partir das distintas frentes de pesquisa empreendidas, buscou-se, em primeiro lugar, traçar um diagnóstico da aplicação e do debate teórico e legislativo acerca do instituto no Brasil, para, diante disso, suscitar questões que nos pareceram negligenciadas. Chamamos a atenção para as distintas possibilidades de conformação de um modelo de responsabilidade penal coletiva, que podem apresentar diferenças significativas em função dos critérios de imputação adotados e do tipo de sanção. Buscamos também identificar algumas questões que devem ser enfrentadas na construção de um modelo de responsabilização penal de pessoas jurídicas, pois têm impacto direto na sua boa institucionalização e aplicação– como, por exemplo, as possibilidades de redefinição das categorias dogmáticas da parte geral; a adequação do regime processual penal; a necessidade de soluções regulatórias para os casos de transformações e uniões de pessoas jurídicas, tão comuns no cenário empresarial. Por fim, indicamos que um estudo profícuo sobre a responsabilidade da pessoa jurídica deve necessariamente partir do pressuposto de que a responsabilidade penal é uma entre tantas outras possibilidades de desenho institucional de responsabilização e, portanto, apenas é possível considerá-la como um mecanismo satisfatório se as suas Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 3 vantagens e desvantagens em relação a outras esferas do Direito forem cuidadosamente ponderadas. Dessa forma, embora este não tenha sido o escopo do estudo, estruturado a partir da responsabilidade penal da pessoa jurídica, trouxemos alguns elementos que permitem iniciar uma reflexão sobre essa questão. A nosso ver, o estreitamento do debate brasileiro sobre o tema vem atrapalhando a imaginação institucional. A principal contribuição deste estudo é apontar as lacunas de discussão e regulação e chamar a atenção para a urgência de se incluí-las na agenda de pesquisas e discussões futuras. Identificar e apontar os obstáculos epistemológicos presentes na discussão pública sobre o tema nos pareceu de extrema relevância tanto para o aprofundamento das reflexões no campo teórico, como para orientar o trabalho do formulador de políticas públicas. São Paulo, novembro de 2009. Marta Rodriguez de Assis Machado Coordenadora Acadêmica Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 4 PROJETO PENSANDO O DIREITO Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas DIREITO GV Responsabilização por ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas – uma contribuição para o debate público brasileiro Marta Rodriguez de Assis Machado, Flavia Portella Püschel, Deborah Kirschbaum, Davi Tangerino, Juliana Bonacorsi de Palma, Yuri Corrêa da Luz, Carolina Cutrupi Ferreira, Beatriz Camargo, Pedro Schaffa e Rogério Lauria Marçal Tucci Colaboradores: Marta Cristina Cury Saad Gimenes, Mariana T. Tosi, Mariana de Gouvêa Guarda Colaboradores internacionais: Giovanni Fiandaca, Lucia Parlato, Paola Maggio, Alessandro Tesauro, Dario Porrovecchio, Helena Soleto Muñoz, Pilar Otero, Manuel Artidoro Abanto Vásquez, Pablo Galain Palermo, Mário Ferreira Monte, Flávia Noversa Loureiro, Pedro Miguel Freitas. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 5 INTRODUÇÃO O presente artigo é a síntese de um extenso estudo sobre a Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas, desenvolvido no âmbito do projeto Pensando o Direito. Diante da impossibilidade de reproduzir neste espaço limitado a íntegra dos resultados dessa pesquisa, nosso objetivo neste texto é apresentar seus pontos mais significativos, com base em um critério central: a utilidade da exposição tanto para uma compreensão introdutória do tema, quanto para fornecer subsídios teóricos e práticos aos formuladores de políticas públicas. Diante disso, detalhes acerca do debate dogmático, do cenário internacional em que se formulam suas discussões, entre outros pontos, serão aqui apenas tangenciados. O núcleo de nossas atenções será composto pelas discussões que possibilitem um contato mais geral com o objeto de nossa pesquisa, de forma a introduzir o leitor neste que é um dos temas mais relevantes do debate jurídico da atualidade. É importante advertir que, no estágio atual da pesquisa, não é possível avançar para além da discussão do potencial dos diferentes modelos regulatórios para lidar com o problema dos ilícitos praticados no âmbito das coletividades, pois a conveniência da sua aplicação, bem como o desenho do modelo mais adequado depende das características concretas dos ilícitos que se pretenda regular, não sendo, a nosso ver, possível posicionar-se em abstrato em favor de um modelo geral. De qualquer modo, nosso trabalho preocupa-se em levantar os pontos que devem ser considerados em decisões concretas que envolvam o tema. O artigo foi estruturado da seguinte forma: na primeira parte, trataremos do contexto pressuposto nos discursos sobre a introdução e a aplicação da responsabilidade penal de pessoas jurídicas, isto é, do conjunto de fenômenos que incitaram a reflexão sobre a formulação deste instituto. Neste ponto, procuramos expor como o protagonismo crescente das organizações empresariais em práticas ilícitas vem sendo considerado um obstáculo significativo à atuação do sistema jurídico na prevenção e punição de tais infrações. Indicaremos como o Direito Penal, por partir tradicionalmente de uma estrutura de imputação individual, vem enfrentando sérias dificuldades para atribuir responsabilidades pelas infrações Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 6 cometidas no âmbito de entes coletivos, infrações estas inseridas em um quadro de alta diferenciação funcional e de complexa divisão social do trabalho, onde a localização do autor e a individualização das condutas danosas é uma tarefa muito difícil. Também reconstruiremos o atual estado deste contexto regulatório no Brasil, apontando que tanto nosso modelo individual de imputação quanto nosso atual modelo de responsabilidade coletiva parecem sofrer de um déficit de aplicação, fato este verificável a partir de análises empíricas. Na segunda parte, abordaremos algumas das questões que nos parecem fundamentais ao aperfeiçoamento deste instituto e que vêm sendo negligenciadas pelo debate brasileiro sobre o tema, tanto no âmbito acadêmico, como nas discussões de política pública acerca da formulação de modelos normativos que possam dar conta do problema em tela. Indicaremos alguns pontos que merecem ser mais bem discutidos, se pretendemos criar leis melhores e aplicá-las de forma mais coerente, proporcionando maior segurança jurídica. Por questões de espaço, limitar-nos-emos à exposição dos seguintes pontos fundamentais: apresentaremos a possibilidade de conformação de diferentes modelos de responsabilização, quer dizer, apresentaremos estratégias distintas de imputação de pessoas jurídicas fundadas em critérios distintos. Em seguida, levantaremos também uma série de questões ligadas às diversas sanções que podem decorrer de sua responsabilização e a algumas das dificuldades específicas referentes à regulação desse instituto: estratégias para lidar com os fenômenos societários de transformação de pessoas jurídicas e grupos de empresas, bem como as dificuldades processuais penais específicas que surgem da colocação da pessoa jurídica no pólo passivo da relação processual penal. Por fim, serão ponderadas as vantagens e as desvantagens de um modelo de responsabilização penal das pessoas jurídicas, frente às alternativas de responsabilidade administrativa e civil. Isso porque nos parece equivocado pressupor que a responsabilidade penal seja a mais adequada para tratar das infrações cometidas no âmbito dos entes coletivos, sem considerar as possibilidades de regulação da questão por meio de outras esferas do Direito. Tendo isto em vista, exporemos brevemente os resultados de um estudo empírico qualitativo, cujo objetivo foi o de investigar a suposta superioridade dissuasória da sanção penal frente às demais sanções jurídicas e, em seguida, apresentaremos as linhas gerais de um estudo Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 7 comparativo das regras de imputação próprias à esfera civil, à esfera administrativa e à esfera penal. É evidente que a comparação entre as três esferas do Direito é um tema extremamente complexo, que envolveria um estudo mais detido do funcionamento das instituições, bem como uma análise particularizada em função dos objetos regulados. No presente estudo, nos limitamos a indicar algumas questões gerais, bem como os temas que mereceriam ser melhor investigados, para embasar um juízo adequado e consistente acerca da melhor forma de tratar os novos desafios trazidos pelo aumento do papel das pessoas jurídicas na prática de ilícitos na sociedade do presente. Pois bem. I. DIAGNÓSTICO E QUESTÕES DE POLÍTICA CRIMINAL A responsabilidade penal das pessoas jurídicas é um tema que tem adquirido grande relevância nos planos nacional e internacional, tanto do ponto de vista das políticas públicas para prevenção e repressão, quanto do ponto de vista do debate jurídico-dogmático. O pano de fundo dessa discussão se caracteriza, de um lado, pelo aumento das demandas por regulação e tratamento de problemas ligados à criminalidade econômica, à corrupção, à lavagem de dinheiro, à lesão ao meio ambiente, etc. e, de outro, pelo papel central das organizações empresariais nessas práticas, agravado pelo fato de que são enfrentados hoje obstáculos significativos à atuação do sistema penal na persecução e punição de tais ilícitos. Neste contexto, em que a organização humana na forma de entidades empresariais adquiriu grande importância nas sociedades pós-industriais, a criminologia e o Direito penal vêm se debruçando, cada vez mais, sobre estes tipos de organizações, tomadas como “centros suscetíveis de gerar ou favorecer a prática de fatos penalmente ilícitos” (COSTA, 1992, p. 537-559; COSTA, 1976, p. 42). A propósito dessa relação, é notável o fato de que boa parte das respostas que vêm sendo articuladas pelos sistemas jurídicos a fim de regular atividades empresariais ou regular condutas em novas áreas problemáticas tem o Direito penal como elemento relevante e em muitos casos na linha de frente. Nas palavras emblemáticas de Zúñiga Rodriguez: se estima que la criminalidad económica ligada al mundo financiero y a la gran banca recicla sumas de dinero superiores al billón de euros por año, esto es, mas que el producto nacional bruto (PNB) de um tercio de la humanidad. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 8 Sostener que las personas jurídicas no pueden ser sujetos directos de imputación penal significa realmente dejar fuera del alcance de sanciones graves a los sujetos económicos o políticos importantes de nuestra era (ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2004, p. 265). Se esse não nos parece um argumento suficiente para defender a necessidade de penalizar a pessoa jurídica, ele chama a atenção para o fato de que simplesmente afastar tal possibilidade com base nas dificuldades dogmáticas ou processuais de estruturação do instituto mostra-se uma solução tão arbitrária quanto a anterior. Ou seja, tais cifras, a dimensão do problema, bem como a importância de tais atores nas sociedades contemporâneas não definem a questão, mas chamam a atenção para a relevância do tema. Mais ainda, colocam na pauta das políticas penais a necessidade de se travar um debate aprofundado e qualificado sobre as estratégias político-legislativas e possivelmente político-criminais para lidar com a questão. A questão fundamental daquilo que se entende por política criminal pode ser definida nos seguintes termos: quais são os objetivos perseguidos com a responsabilização de pessoas jurídicas, que devem ser distintos da responsabilidade individual? Cabe em seguida perguntar se a esfera do Direito Penal poderia contribuir para a regulação das infrações cometidas no âmbito de entes coletivos, tendo como pano de fundo um leque de possibilidades de regulação. Dito isto, ao se optar pela responsabilização via Direito Penal, cumpre questionar: como esse sistema deve se estruturar para atingir seus objetivos e finalidades? (EHRHARDT, 1994, p. 159) Para subsidiar a reflexão acerca da primeira pergunta, parece-nos importante apontar as principais críticas direcionadas a sistemas baseados em responsabilidade individual, isto é, nos quais tal forma de responsabilização coletiva não é admitida. A partir disto, será possível expor quais são as lacunas que a admissão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas pretende suprir e quais os objetivos que se visa a atingir. I.1. Insuficiências preventivas da responsabilidade individual: o problema da individualização de condutas no âmbito da empresa De forma genérica, agrupa-se a criminalidade envolvendo a empresa em três grandes espécies: a criminalidade que se desenvolve à margem da empresa, a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 9 criminalidade que se desenvolve dentro da empresa contra a própria empresa, e, finalmente, a criminalidade que se projeta a partir da empresa. (SCHÜNEMANN, 1988, p. 529-531). Essa última modalidade de atuação, que encontra na empresa o centro de imputação penal, vem ganhando relevância no panorama criminológico atual, graças à “capacidade da estrutura das empresas para dar cobertura a novas formas de delinqüência” (GARCIA ARÁN, 1999, p. 325). De fato, as ações tomadas no âmbito de um ente coletivo são, muitas vezes, de difícil averiguação para aqueles que não participam dele. Além disso, é fácil imaginar os problemas da imputação penal individual quando se fala em situações de grupo, especialmente no âmbito de instituições complexas, altamente diferenciadas e hierarquicamente organizadas em torno do princípio da divisão do trabalho. Em tal estrutura organizacional, um resultado lesivo ao bem jurídico geralmente é provocado pela ação conjunta de muitos sujeitos, de diversas posições hierárquicas e com um grau diferenciado de informação, sendo muito difícil identificar todos os participantes da ação e delimitar a contribuição de cada um para o evento. Tal dificuldade de verificação de condutas individuais encontra explicação fundamental na própria estrutura tradicional de imputação historicamente consolidada em nosso Direito Penal. Esta estrutura, que tem como paradigma o caso clássico do homicídio doloso individual, pressupõe que um único autor disponha fundamentalmente de três capacidades: capacidade de realização de uma ação, capacidade de compreensão da ilicitude do ato e capacidade de decisão. De fato, muitas das infrações pertencentes à criminalidade quotidiana podem ser facilmente processadas nestes termos. O problema surge, no entanto, quando este modelo tradicional e individual de imputação (em que estas três capacidades estão concentradas em uma única pessoa) precisa dar conta de fenômenos complexos, ocorridos no âmbito de organizações hierárquica e funcionalmente estruturadas, ou seja, em que decisão, ação e conhecimento se pulverizam . Em outras palavras, nestes ambientes, estas capacidades não estão, necessariamente, condensadas em uma única pessoa. De forma esquemática, costuma-se apontar a distribuição dessas capacidades nos diferentes setores da organização coletiva. Assim, em uma empresa, é freqüente que a ação seja executada por setores inferiores da estrutura empresarial, que, normalmente, não dispõem nem de uma alta compreensão da eventual ilicitude de seus atos, nem da capacidade de decidir se eles serão ou não levados a cabo e que, muitas vezes, nem sequer se dão conta das conseqüências de sua Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 10 atuação. Os chamados setores intermediários da organização, por sua vez, costumam dispor de uma capacidade relativa de compreensão da eventual ilicitude dos atos realizados nas baixas instâncias, mas não detêm nem o poder de decidir se o ato deve ou não ser realizado, nem a competência para sua execução. Finalmente, os setores superiores da empresa (diretoria ou management), apesar de disporem da capacidade de decidir ou não pela execução do ato, não participam diretamente deste e, em alguns casos, nem sequer conseguem reconhecer a eventual ilicitude de todos os atos praticados no âmbito da complexa rede de relações por eles liderada (SCHÜNEMANN, 1994, p. 272). Neste cenário, uma estrutura individual de imputação tem dificuldade de operar de modo eficaz, na medida em que não é capaz de encontrar os três componentes fundamentais a responsabilização – ação, decisão e conhecimento – em um único indivíduo. Dada a relativa obscuridade na divisão de funções, na distribuição de competências e nos fluxos de informação que determinam os comandos a serem executados torna-se extremamente complicado determinar quais são os atores envolvidos em uma eventual infração cometida no âmbito da organização (SCHÜNEMANN, 1982, p. 42-43). Na medida em que o ato punível aparece freqüentemente como resultado de uma soma de atos parciais e fragmentários – que, avaliados individualmente, costumam apresentar-se atípicos -, verifica-se, na prática, uma cisão dos elementos do tipo penal. Essas condições delineiam as dificuldades de determinação normativa de competências e de responsabilidades dentro da estrutura da empresa, o que vem representando um verdadeiro obstáculo à imputação jurídico-penal no âmbito da criminalidade praticada por intermédio da pessoa jurídica, tanto em razão do cenário que identificamos acima, de desconfiguração da conduta típica, como em razão das dificuldades de prova do ato ilícito e suas circunstâncias (COSTA, 1992). É possível, diante disso, continuar pensando em termos de imputação de responsabilidade individual, resolvendo tais problemas por via da flexibilização de alguns critérios de imputação (por exemplo, por meio do conceito de autoria mediata ou pela ampliação dos delitos omissivos). Soluções que mantém a imputação em bases individuais vêm recebendo, entretanto, uma série de críticas. De um lado, sob a perspectiva da crítica à ampliação excessiva da responsabilidade individual e à sobrecarga do indivíduo (GÜNTHER, (2000, p. 503). De outro lado, sob o ponto de vista da eficácia preventiva. Nesse registro, costuma-se argumentar, em primeiro lugar, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 11 o fato de que pessoas físicas suportam a função punitiva (via encarceramento ou outra medida de privação de liberdade), mas geralmente não dispõem de capacidade financeira para responder pelo dano causado por suas condutas. Em segundo lugar, pessoas físicas poderiam negociar junto a outros agentes da empresa mecanismos que a compensem por sua exposição ao risco por prática de crimes e que funcionem, portanto, como um seguro privado que beneficia o agente potencial ligado à pessoa jurídica, desde que lhe seja possível obter da empresa quantia suficiente que compense o risco de ser investigado e condenado. Diante de tais críticas à responsabilidade individual, vem crescendo em importância propostas que buscam adotar padrões de responsabilização coletiva, da própria pessoa jurídica. Em oposição ao modelo individual, a responsabilização da pessoa jurídica guardaria algumas vantagens, pois faria com que o ente coletivo internalizasse os custos do ilícito, o que poderia ser desejável do ponto de vista da prevenção. Além disso, muitos autores consideram que a pessoa jurídica estaria mais bem posicionada do que o Estado ou as vítimas para evitar que o crime seja cometido ou para identificar os indivíduos responsáveis por sua prática. Bernd Schünemann, um dos autores que defende a responsabilidade penal de pessoas jurídicas, assevera, na esteira do que já havia sido apontada por Ulrich Beck e sintetizando a defesa político-criminal da responsabilização coletiva, que insistir em uma estrutura individual de imputação para tratar da responsabilidade por infrações realizadas no âmbito de pessoas jurídicas nos levaria a um estado de “irresponsabilidade organizada” (organisierte Unverantwortlichkeit) (SCHÜNEMANN, 1979, p. 30 e seguintes). Uma análise criminológica do fundamento da responsabilidade penal de pessoas jurídicas não estava no escopo da nossa pesquisa, por isso nos limitamos a indicar o estado do debate acerca desse tema, que subjaz à discussão sobre a adoção do instituto em estudo. De qualquer forma, acreditamos seja importante mencionar que, ao lado de tais posições que apontam a necessidade preventiva da responsabilização penal de pessoas jurídicas, justamente nos Estados Unidos, onde tal instituto tem sido aplicado há mais de cem anos, é que surgem as críticas mais contundentes, feitas sobre um histórico de experiências acumuladas. Essas críticas partem, sobretudo, de alguns estudiosos associados à Análise Econômica do Direito. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 12 A postura crítica de tais estudiosos não está associada à questão teórica da intenção para a prática de ilícito. Diversamente disto, os teóricos da Criminal Law and Economics citados nesta pesquisa fundamentam suas propostas com base na questão da efetividade do uso do aparato de responsabilização penal e na eficiência da sanção penal. A produção científica da Criminal Law and Economics que estuda o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica preocupa-se em examinar em que medida sua aplicação satisfaz os pressupostos indicados para a responsabilização pela via penal.1 Uma vez presentes tais pressupostos, a ordem seguinte de questionamentos dá-se em torno de avaliar se o nível de punição imposto pela sanção é adequado ou não a padrões ótimos. O resultado provável da punição excessiva é a diminuição na quantidade de produtos e serviços oferecidos à sociedade, com a conseqüente elevação de preços e incapacidade de atender a uma parcela da demanda existente. Enquanto os primeiros trabalhos elaborados por autores da Law and Economics preocupavam-se em avaliar se as sanções penais impostas às pessoas jurídicas eram adequadas ao nível ótimo de sanção (ARLEN 1994; ULEN, 1996; ARLEN e KRAAKMAN, 1997; ARLEN, ALEXANDER e COHEN, 1999), surgiram também estudos visando a questionar se os próprios pressupostos para que a pessoa jurídica seja responsabilizada pela via penal ainda se encontram presentes na atualidade (FISCHEL e SYKES, 1996; KHANNA, 1996; KHANNA, 2000). Estudos mais recentes recomendam que a responsabilidade penal por ilícitos tipicamente praticados no âmbito da atividade empresarial incida apenas sobre os gestores ou empregados da empresa. (KHANNA, 2003; BROWN, 2004). 1 Em linhas gerais, a justificação para que uma conduta deva ser reputada como ilícito penal pela Law and Economics constrói-se sobre os seguintes pressupostos, que devem estar presentes de modo cumulativo na maior parte dos casos: (i) a conduta praticada é acompanhada de intenção de produzir benefícios para o agente, obtidos mediante a imposição de danos à sociedade. O elemento intencional associado ao aspecto da imposição de danos apenas à sociedade justifica que a conduta seja proibida; (ii) o dano concreto ou potencial (caso dos crimes de perigo) resultante da conduta não é passível de reparação seja pela incomensurabilidade da natureza do dano (como o crime contra a vida), seja pela dificuldade de identificar o conjunto de vítimas afetadas pela conduta e, portanto titulares do direito de reparação; (iii) a probabilidade de identificação e/ou captura do agente é maior que zero; (iv) a probabilidade de que as vítimas não ajuizarão uma ação judicial contra o agente é maior que zero seja pela dificuldade de se organizarem, como também pela dificuldade de reunírem provas contra o agente. É importante notar que no sistema jurídico dos EUA, tanto as sanções penais quanto as civis podem assumir a função punitiva. Esta caracteriza a figura dos punitive damages impostas por via das ações judiciais de natureza civil. No sistema jurídico brasileiro, a responsabilidade civil punitiva, desenvolvida pela jurisprudência, limita-se à responsabilidade por danos morais, sendo possível afirmar-se ainda hoje que a punição é função desempenhada primordiamente pela sanção penal, (ULEN, 1996). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 13 Khanna formula sua crítica à responsabilidade penal da pessoa jurídica nos EUA com base nos seguintes argumentos: (i) a responsabilização penal da pessoa jurídica tem sua origem associada a uma época em que apenas o sistema penal provia aparato processual para tutelar interesses coletivos ou públicos, de outra forma não tuteláveis pelos instrumentos da processualística civil da época; (ii) esta justificativa histórica não deve mais persistir atualmente, já que os instrumentos civis de responsabilização e as instituições incumbidas de sua utilização aperfeiçoaram-se a tal ponto que se tornaram menos custosas à sociedade do que a alternativa penal (KHANNA, 2003). Em comparação à sistemática da responsabilização no âmbito civil, por um lado o processo penal impõe requisitos mais estritos para caracterizar a responsabilização. Por outro, conta com instrumentos mais rigorosos para a produção de provas e impõe sanções mais severas. Khanna considera a imputação de responsabilidade penal a pessoas jurídicas como algo que só se justificava numa época em que era preciso combinar os únicos instrumentos existentes para preservação de interesses coletivos ou públicos com a necessidade de responsabilizar a pessoa jurídica. Os instrumentos então existentes eram justamente institutos de direito penal. (KHANNA, 2000). Segundo observa Khanna, a maior parte dos casos que inspiraram a imputação de responsabilidade penal a pessoas jurídicas nos EUA do final do século XIX e primeira metade do século XX estava associada a danos causados à coletividade. Considerando a então ausência de instrumentos processuais civis aptos a resguardar interesses definíveis apenas coletivamente ou em caráter difuso, Khanna entende que o recurso à imputação de responsabilidade penal em tais casos justificava-se em função da “lacuna” institucional observada. Conforme o autor, desde o século XVI até o início do século XX, era por recurso ao procedimento penal que o Estado provia tutela de interesses jurídicos coletivos ou públicos. Instrumentos processuais civis para a defesa de tais interesses somente seriam criados a partir da segunda metade do século XX, quando já se encontrava solidificada a doutrina desenvolvida para imputar responsabilidade penal às pessoas jurídicas. Considerando que a pessoa jurídica não pode ser “posta na cadeia” e que as sanções a que se submete são de caráter pecuniário ou restritivas de direitos, críticos da responsabilização penal da pessoa jurídica identificam no suposto dano provocado pela sanção penal à reputação da pessoa jurídica o único elemento que justificaria a imputação da responsabilidade no âmbito penal. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 14 Fisse e Braithwaite, estudiosos do tema na Austrália, não são associados à Law and Economics mas, em alguma medida, ao pensamento pragmático. Esses autores estão entre os que apóiam a necessidade de sanção penal como dano à reputação das pessoas jurídicas. Mas é justamente este aspecto um dos mais fortemente questionados por Khanna, tanto em termos de propósito como de eficácia, isto é: (a) é desejável que a sanção aplicável à pessoa jurídica se dê em forma de perda reputacional? (b) será que a sanção penal é intrinsecamente mais danosa à reputação do que a sanção civil? Os críticos têm adotado posturas bastante céticas com relação a estas duas questões. Fisse e Braithwaite concordam com a idéia de que a responsabilização deve se dar sobre o ente ou indivíduo melhor posicionado para suportar seus efeitos. Neste ponto, seu pragmatismo está em propor que os entes coletivos devam suportar a responsabilidade pelos atos praticados no âmbito das atividades desempenhadas pela empresa como maneira de induzirem internamente a observância às normas jurídicas. Contudo, diferentemente dos teóricos da Law and Economics em seus estudos recentes, Fisse e Braithwaite argumentam em favor da responsabilização da pessoa jurídica pela via penal. O interessante é que admitem que o caráter da necessidade de retributividade (ou “vingança”, ou reprovação pública) presente na sanção penal é o que justifica a responsabilização da pessoa jurídica por tal via. Assim como pessoas naturais devem receber reprovação pública por determinados atos por elas cometidos, argumentam que também devem recebê-la as pessoas jurídicas nos âmbitos das quais sejam praticados ilícitos penais. (FISSE e BRAITHWAITE, 1988, p. 502) Fisse e Braithwaite acreditam que a sanção penal aplicada à pessoa jurídica incentivaria seus dirigentes a tomar medidas para evitar a prática de ilícitos penais no âmbito da pessoa jurídica, a fim de proteger sua reputação2. Em termos de propostas concretas de sanções penais imponíveis às pessoas jurídicas, Fisse e Braithwaite sugerem a determinação judicial de publicidade desabonadora à prática, serviços comunitários, medidas que obriguem as pessoas jurídicas a implementarem programas 2 Nas palavras destes autores: [...] in organisations where individuals are stung very little by collective deterrents, deterrence can still work if those in power are paid good salaries on the understanding that they will do what is necessary to preserve the reputation of the organisation or to protect it from whatever other kind of collective adversity is threatened. (FISSE e BRAITHWAITE, 1988, p. 490) Em tradução livre: “[...] em organizações onde indivíduos são pouco atingidos por medidas intimidativas impostas à coletividade, a intimidação pode ainda funcionar se aqueles em poder são bem remunerados sob a premissa de que farão o que for necessário para preservar a reputação da organização ou protegê-la de qualquer outra ameaça à coletividade”. Esta idéia, em última análise, revela que os autores associam uma função utilitarista à função retributiva da sanção penal. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 15 internos de observância às normas jurídicas, além de as submeter a auditorias internas para verificar o cumprimento de tais programas.(FISSE e BRAITHWAITE, 1988, p. 490) Jennifer Arlen, associada à Law and Economics, argumenta que a responsabilização penal da pessoa jurídica pode surtir mais efeitos perversos do que benéficos à sociedade. Considerando as visões como as expressas por Fisse e Brathwaite, ela pondera que a responsabilidade penal da pessoa jurídica pode gerar efeitos que reciprocamente se anulam, tornando a regra ineficiente. (ARLEN, 1994) Segundo argumenta Arlen, num regime de responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes cometidos por seus agentes (strict vicarious criminal liability), o aumento em custos incorridos pelas empresas para a prevenção à prática de crimes por seus agentes reduz o número de crimes cometidos e, portanto, reduz a expectativa de imputação de responsabilidade penal à empresa. Por outro lado, a elevação da probabilidade de detectar crimes resultante da adoção de tais medidas acaba aumentando a expectativa de imputação de responsabilidade penal à empresa pelos crimes que forem praticados. (ARLEN, 1994) Para a Arlen, a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes cometidos por seus agentes poderia em princípio mostrar-se eficiente se as multas fixas fossem abandonadas em favor de multas com valores que pudessem variar de acordo com o grau de rigor observado pela própria empresa na observância e no conteúdo de um programa de compliance interno. A crítica que opõe a tal idéia é que sua implementação seria demasiadamente custosa, por demandar análise caso a caso para verificar exatamente o quão satisfatórias foram as medidas adotadas pela empresa considerada e a quanto isto deve corresponder em termos de multa. (ARLEN, 1994) A pretensão quanto à possibilidade de fazer com que as pessoas jurídicas implementem programas de compliance traria os seguintes problemas: (i) o primeiro é a factibilidade de se elaborar um programa de compliance que contemple a priori e com o grau de completude adequado quais as medidas para inibir a probabilidade de prática de crimes; (ii) assumindo que o plano seja bom, o segundo problema é verificar em que medida ele foi de fato implementado ou acabou ficando mais “no papel” e (iii) talvez o problema mais difícil, que é transferir ao magistrado a decisão a respeito de determinar se o programa de compliance adotado pela empresa era ou não era bom o suficiente. A adoção da proposta pode então mostrar-se inócua seja pelo risco de que os magistrados Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 16 sistematicamente ignorem programas de compliance eventualmente adotados sob assunção de que a prática do crime atesta que já não eram bons ou o oposto, que corresponderia aos magistrados deixar de responsabilizar as pessoas jurídicas diante da sua própria incapacidade de avaliar os planos de compliance. Para completar o quadro de críticas ao instituto pela ótica dos incentivos, é relevante considerar o argumento cultural quanto ao impacto da sanção penal. Esse argumento é utilizado por Darryl Brown, para quem a responsabilização penal da pessoa jurídica nos Estados Unidos tem raiz em fator eminentemente cultural, que é a pressão populista presente naquele país para a criminalização de condutas tidas como imorais. (BROWN, 2004). Também de acordo com Brown, a solução mais promissora para a responsabilização por crimes cometidos no âmbito de pessoas jurídicas encontra-se na combinação entre a via civil e a penal. Contudo, ele defende que a penal deve ser utilizada exclusivamente para pessoas naturais. Brown ilustra seu ponto com o caso Merrill Lynch ocorrido em 2003, que assessorou a Enron na concretização de operações de fraude financeira. O caso foi abordado com um pacote de medidas que compreenderam a cooperação da instituição financeira com promotores de justiça para o indiciamento de alguns dos funcionários da empresa, a implementação pela Merrill Lynch de um programa de prevenção interno contra a prática ou auxílio à prática de crimes corporativos, o pagamento de U$80 milhões à Securities Exchange Commission (a comissão de valores mobiliários nos Estados Unidos) e ainda o pagamento a uma empresa de auditoria encarregada de fiscalizar o cumprimento das medidas pela Merrill Lynch pelo período de 18 meses. O autor ainda menciona estudos recentes que apontam que, quando se trata de ilícitos financeiros, ações ajuizadas por particulares nos Estados Unidos têm-se mostrado mais efetivas do que ações de iniciativa pública. Isto se deve em parte às limitações orçamentárias do Estado. Além disso, muitas vezes as partes privadas são capazes de reunir provas de modo mais eficaz do que os investigadores públicos. A conclusão a que Brown chega é que a responsabilização civil de pessoas jurídicas é melhor do que a penal quando os objetivos são prevenção, reparação do dano e alguma forma de incapacitação para exercício de atividades. A única função melhor desempenhada pelo ramo penal é a retributiva, isto é, a da expressão da condenação pública a certas condutas. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 17 Enfim, como pudemos sumariar aqui, há uma série de variáveis a serem consideradas quando se trata de pensar uma política pública de responsabilização da empresa, debate que merece ser fortalecido no Brasil, para além da questão da adoção ou não do instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas. É possível levantar a hipótese de que, em nosso país, fenômenos ligados à prática de ilícitos no âmbito de pessoas jurídicas se beneficiem da inexistência de um desenho adequado que regule a atribuição de responsabilidades. Um sistema de imputação de responsabilidade por meio do direito administrativo encontra-se mais bem estruturado apenas em alguns setores de regulação (como, por exemplo, a concorrência e o mercado de capitais, e mesmo assim, com vários problemas). O Direito Civil, por sua vez, tem em sua linha de frente a função indenizatória e não se discutem de forma clara as possibilidades de ser esse ramo do direito estruturado para desempenhar também funções punitivas3. No campo do direito penal, por sua vez, temos, de um lado, um sistema fundamentalmente baseado na imputação individual, que padece das dificuldades que elencamos acima relativas à individualização de responsabilidades no âmbito da empresa. De outro lado, a introdução em nosso ordenamento do instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas para os casos de crimes ambientais também vem tendo aplicação insatisfatória (como mostram os resultados da pesquisa empírica, expostos abaixo), além de sofrer grande resistência na doutrina nacional. O modelo de responsabilidade penal brasileiro está construído com base em um sistema de culpa própria e de imputação individualizada consagrado na Parte Geral do nosso Código Penal. Assim, o administrador ou funcionário da pessoa jurídica responderá criminalmente apenas em razão de sua ação ou omissão (quando a omissão for imputável) em condutas ilícitas e na medida da sua culpabilidade. Isto é, como regra central, imputa-se responsabilidade àquele que com sua ação ou omissão deu causa ao resultado, na medida de sua culpabilidade (CP, arts. 13 e 29). No âmbito do processo penal esta regra se desdobra na necessidade de que as condutas sejam bem descritas e particularizadas já no momento da dedução de acusação (CPP, art. 41) e, evidentemente, que a condenação seja expressão da verificação da culpa individual do acusado, recebendo este também uma pena determinada a partir de circunstâncias judiciais individualizadoras (CP, art. 59). 3 Como mencionado acima, a responsabilidade civil punitiva no Brasil é resultado de construção jurisprudencial, está limitada aos casos de danos morais e é ainda bastante polêmica. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 18 Como vimos, neste tipo de sistema, fundado na responsabilidade individual, as regras de imputação enfrentam obstáculos para serem aplicadas no âmbito da empresa. Estudo empírico desenvolvido recentemente em acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores (STF e STJ) julgados entre 2005 e 2007, sobre o tema da responsabilidade de administradores de empresas4 mostra que a maioria das decisões em matéria penal versa sobre o trancamento de ações penais, tendo predominância as decisões que determinam o encerramento da ação penal com base em falta de prova para autoria ou ausência de individualização da conduta. Ou seja, ainda que esse levantamento tenha um objeto restrito, traz forte indicação de que temos nos Tribunais brasileiros um diagnóstico semelhante ao que apresentamos acima: um déficit de responsabilização decorrente do sistema de imputação individual. A discussão brasileira acerca da imputação de responsabilidade a pessoas jurídicas coloca-se nesse contexto. Esse instituto foi introduzido em nossa ordem jurídica para os casos de crimes ambientais e a ampliação de sua abrangência, especialmente aos crimes empresariais, vem sendo discutida por meio de uma série de projetos de lei ora em tramitação5. A Constituição Federal de 1988 trouxe, em dois de seus artigos, disposições relativas à responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos. O art. 173, 4 A pesquisa “Responsabilidade dos administradores de sociedades empresariais na jurisprudência do STJ e STF”, coordenada por Marta Machado e Viviane Muller Prado foi desenvolvida com o apoio da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, com o objetivo de verificar a concretização do regime jurídico de responsabilização civil e penal de administradores de sociedades empresariais a partir da análise quantitativa e qualitativa da jurisprudência dos Tribunais Superiores do Brasil – Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). O levantamento jurisprudencial foi realizado com base nos instrumentos de busca disponibilizados nos sites dos Tribunais e seus respectivos bancos de dados, por meio de palavras-chave que fossem capazes de abranger as decisões acerca da responsabilidade dos administradores de empresa, a saber: “responsabilidade e administrado$”, “responsabilidade e gerent$”, “responsabilidade e direto$”, “responsabilidade e conselheir$”, “responsabilidade e gesto$”, “denúncia e administrado$”, “denúncia e gerent$”, “denúncia e direto$”, “denúncia e conselheir$” e “denúncia e gerent$”. O levantamento teve como limite temporal 01.01.05 a 01.04.07. Após a exclusão manual de decisões que não se aplicavam à pesquisa, foram analisados 276 acórdãos, sendo 270 casos julgados pelo STJ e 6 julgados pelo STF. No que diz respeito à matéria, 224 acórdãos versam sobre matéria não penal e 52 acórdãos são de matéria penal. Para informações mais detalhadas, cf. MACHADO, M.; MÜLLER, V.; GANZAROLLI, M.; MARQUES, L. 2009 5 Nota de rodapé: Atualmente tramitam no Congresso Nacional quatro projetos principais que efetivamente estabelecem a responsabilidade penal da pessoa jurídicas: (i) Projeto de Lei do Senado n.º 4.842/1998 (“Dispõe sobre o acesso a recursos genéticos e seus produtos derivados e dá outras providências”); (ii) Projeto de Lei da Câmara n.º 27/1999 (“Acrescenta artigo à Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, instituindo a responsabilidade penal de pessoas jurídicas cujos funcionários realizem práticas de racismo”); (iii) Projeto de Lei da Câmara n.º 1.197/2003 (“Estabelece as áreas ocupadas por dunas e falésias como espaços territoriais especialmente protegidos e dá outras providências”); (iv) Projeto de Lei da Câmara n.º 1.142/2007 (“Tipifica o crime de corrupção das pessoas jurídicas em face da Administração Pública”). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 19 §5° determina que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular” (grifos nossos). O art. 225, § 3°, por sua vez, dispõe que “as condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Para regulamentar estes dispositivos, surge em 1998 a Lei nº. 9.605 (mais conhecida como Lei dos Crimes Ambientais), que passa a prever, em nível infraconstitucional, a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em seu art. 3º, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi estabelecida da seguinte forma: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou no benefício da sua entidade. Parágrafo único: a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato”. Nestes termos, a responsabilidade de entes coletivos é atualmente aplicável, portanto, somente a casos envolvendo crimes contra o meio-ambiente. Entretanto a aplicação do instituto no âmbito dos crimes ambientais vem enfrentando uma série de obstáculos, como fica evidente a partir de análises empíricas sobre a aplicação do modelo de responsabilização da Lei de Crimes Ambientais em nossos tribunais, que realizamos no âmbito desta pesquisa e cujos resultados expomos no item abaixo. Vem enfrentando também uma série de obstáculos por parte da doutrina nacional, que se mostra, de um lado, bastante resistente à adoção do instituto e, de outro, tem empreendido poucos esforços no sentido de pensar, com criatividade institucional, qual a melhor forma de lidar com o problema social concreto da responsabilização por atos praticados no âmbito de pessoas coletivas. Esse cenário de aparente estagnação pode estar contribuindo, a nosso ver, para os déficits de responsabilização por tais atos (tanto quando se trata de aplicação de responsabilidade individual, como no caso da imputação de responsabilidade coletiva nos crimes ambientais). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 20 As dificuldades de regulação enfrentadas por um modelo individualista de imputação não precisam ser, necessariamente, superadas por um modelo de responsabilidade coletiva. Além disso, ainda que se opte por este modelo de responsabilidade coletiva, há distintas formas de articulação dos critérios de imputação, capazes de produzir resultados muito diversos. Como veremos logo abaixo, o modelo de responsabilidade coletiva tal como adotado e aplicado no Brasil vem produzindo resultados insatisfatórios. Dessa forma, não se trata apenas decidir a favor ou contra a adoção do instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas, sendo imprescindível ponderar acerca das vantagens e desvantagens de cada modelo. Da mesma forma, uma discussão acerca do tipo de intervenção mais apropriado aos objetivos pretendidos e que, ao mesmo tempo, não gere prejuízos à economia do país dependerá de uma discussão mais profunda sobre as modalidades de sanção que podem ser colocadas à disposição do juiz. Por fim, entendemos que a opção pela adoção de responsabilidade penal de pessoas jurídicas deve se dar sob o pano de fundo das possibilidades de que a intervenção seja articulada a partir de outras esferas do direito, como o direito penal e o direito administrativo, apresentando cada uma delas vantagens e desvantagens. São esses elementos que a nosso ver devem passar a fazer parte das reflexões e discussões sobre o tema no debate público brasileiro e que buscamos apontar com a presente pesquisa. I. 2. Pesquisa empírica de jurisprudência: aplicação da responsabilidade penal de pessoas jurídicas em crimes ambientais no Brasil A fim de levantar informações acerca da aplicação do instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas por nossos tribunais, empreendemos um estudo sistemático de julgados em casos envolvendo imputação de crimes ambientais a pessoas jurídicas nos Tribunais Superiores e nos Tribunais Regionais Federais da Primeira, Segunda, Quarta e Quinta Região. Este estudo compreendeu a análise de 48 Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 21 decisões entre os anos de 2001 e 20086. Embora a Lei dos Crimes Ambientais seja do ano de 1998, as primeiras decisões encontradas datam o ano de 2001. Com isso, pudemos colher dados relevantes acerca de como o Judiciário vem entendendo as regras e requisitos para responsabilização de pessoas jurídicas, o tipo de resultado que esses casos vêm alcançando e os principais problemas enfrentados em sua aplicação. Desta análise, diversos pontos chamam a atenção. Em primeiro lugar, percebe-se que há uma grande discrepância no número de casos envolvendo ações propostas contra as pessoas jurídicas, a depender do Tribunal em que se faz a busca7. Embora a pesquisa não atinja dados de primeira instância, isso pode significar que ainda estamos diante de um instituto de aplicação muito heterogênea e não-pacificada. Em segundo lugar, o levantamento resultou em poucos recursos – 48 no total – um possível indício de que o oferecimento de denúncias em face de pessoas jurídicas seja pequeno, sem prejuízo de se levantar também a hipótese de que muitos processos tenham sido extintos nas instâncias inferiores por questões de natureza processual. Os recursos encaminhados para análise dos Tribunais são, em grande maioria, recursos em sentido estrito, Habeas Corpus e mandado de segurança, sendo muito pequeno o número de apelações criminais (apenas 4 dos 48 casos). Verifica-se a predominância de recursos interpostos antes da sentença de primeiro grau, com pedidos de recebimento da denúncia e de trancamento da ação penal que somam quase 80% do total. O momento da decisão de recebimento da denúncia pelo juiz ainda é o mais controvertido, com mais da metade dos recursos sendo provenientes desta decisão. Nos casos envolvendo trancamento ou prosseguimento da ação, decisões que determinaram a continuidade da persecução penal foram maioria (21 casos de prosseguimento contra 13 de trancamento). É interessante notar que, embora a própria legitimidade e o cabimento deste modelo de imputação ainda seja objeto de polêmica, nas decisões analisadas a aceitação 6 O levantamento jurisprudencial foi realizado com base nos acórdãos disponíveis no banco de jurisprudência online dos cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), entre 01 e 07 de março de 2008. Foram selecionadas todas as ementas que resultaram da busca pela expressão “responsabilidade penal da pessoa jurídica” e as variações necessárias em razão dos diferentes sistemas de busca de cada Tribunal ou aquelas que poderiam resultar em maior número de resultados. Utilizou-se somente este termo (e, quando necessário, suas variações), uma vez que é a expressão mais ampla e a que possibilita um número maior de retornos. Todas as decisões repetidas ou que não tinham direta relação com a responsabilidade penal da pessoa jurídica foram descartadas, consolidando, deste modo, um universo total de 48 decisões. 7 Enquanto há um grande número de ocorrências nos TRF1 e TRF4, nenhuma decisão foi encontrada no TRF3. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 22 do instituto é pacífica. Nos Tribunais, o que se exige, entretanto, é a imputação conjunta do co-réu pessoa. Um dos dados mais significativo desta pesquisa empírica refere-se justamente a esta questão, a qual apareceu em número elevado de julgados e de recursos que questionavam especificamente a legitimidade da pessoa jurídica para figurar sozinha no pólo passivo da ação penal. Nesses casos, o entendimento predominante nos Tribunais foi no sentido de que é necessária a imputação do co-réu pessoa física para que se possa processar criminalmente a pessoa jurídica. Do universo de casos analisados, 75% das justificativas para trancamento das ações versavam sobre a inexistência de co-réu pessoa física e falta de provas da conduta individual concreta, assim como 40% das fundamentações para o não-recebimento da denúncia cuidam da falta de imputação de crime à pessoa física que agiu concretamente. Estes dados nos permitem afirmar que, no que tange ao modelo de responsabilidade penal da pessoa jurídica que temos atualmente, os Tribunais estão sendo chamados basicamente para resolver questões “primárias” quanto ao tema, como a constitucionalidade desta forma de responsabilização penal e a necessidade ou não da co-existência de réu pessoa física no pólo passivo, análises feitas ainda no início do procedimento penal. Apenas um número bastante reduzido de julgados chega a ser analisado em seu mérito. Na medida em que a maioria dos julgados analisados indica a necessidade de fazer a individualização da pessoa física para figurar como co-réu, colocamo-nos novamente diante da extrema dificuldade de individualizar condutas e de provar a autoria em âmbitos altamente diferenciados e funcionalmente estruturados. Ou seja, o modelo de responsabilidade da pessoa jurídica, tal qual aplicado hoje em nosso país, pouco consegue enfrentar e superar as dificuldades derivadas de um modelo de imputação estritamente individual. I.3. Resistências da dogmática penal tradicional ao instituto da RPPJ O dado empírico acima relatado sugere que um debate teórico e dogmático sobre o tema da responsabilização de pessoas jurídicas é necessário para que se possam considerar os limites e as possibilidades abertas por este instituto. De fato, a responsabilidade penal de entes coletivos é um dos temas mais polêmicos Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 23 tratados atualmente pela dogmática de Direito Penal. Isso porque, se, por um lado, as demandas político-criminais são bastante fortes no sentido da introdução de uma regulação penal das atividades das pessoas jurídicas, por outro, este instituto coloca em xeque conceitos tradicionais da teoria do delito, tais como (e especialmente) os conceitos de ação e de culpa. A convivência entre tal instituto e a compreensão tradicional desses conceitos pode estar gerando curto-circuitos em sua aplicação. Uma questão central, portanto, consiste em refletir sobre a possibilidade de compatibilizar as categorias da dogmática penal com este novo modelo de responsabilização. Neste ponto, identificam-se, de um lado, posições contrárias à introdução do instituto no direito penal, em razão da sua incompatibilidade com os conceitos dogmáticos de ação e de culpa e, de outro, tentativas de reformular tais categorias, para que possam ser aplicadas não apenas às pessoas naturais, mas também às pessoas coletivas. Não é de se desconsiderar que as posições dogmáticas do primeiro tipo têm influenciado decisões de política-criminal contrárias à introdução do instituto em diversos ordenamentos jurídicos e tem também relevância no debate brasileiro. Além disso, nos casos em que o legislador decidiu pela introdução do instituto, elas podem ainda impactar no momento de sua aplicação – o que se pode observar no caso brasileiro. Em nossa pesquisa, procuramos mostrar que a resistência ao instituto está ligada à influência dos conceitos dogmáticos desenvolvidos pela escola finalista8 de Direito Penal. No que concerne à ação, esta escola a define ontologicamente, como uma “alteração do mundo exterior, condicionada pela vontade de um ser consciente e direcionada a um determinado fim” (WELZEL, 1969, p. 33). Por sua vez, no que tange à noção de culpa, define-se esta a partir de critérios 8 A Escola Finalista, desenvolvida fundamentalmente por Hans Welzel, pode ser considerada a principal escola de Direito Penal no século XX. Para tal escola, que encontra grande aceitação até os dias de hoje, trata-se de perceber que a regulação jurídica da vida em sociedade está determinada por categorias a priori, isto é, que determinadas estruturas humanas definem necessariamente a forma pela qual uma conduta poderá ser juridicamente avaliada e regulada. Assim, exemplarmente, Hans Welzel vai afirmar que o conceito jurídico-penal de Ação não pode prescindir do fato de que todo agir humano é um agir orientado finalisticamente, ou seja, um comportamento dotado de sentido e de uma orientação final. Quando se transpõe esta premissa para a análise da possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas, torna-se necessário, segundo os finalistas, “perceber que os modos de organização e o processo de atividades reais das pessoas jurídicas constituem para a regulação jurídica dados previamente estabelecidos (...), no sentido de que os elementos estruturais de tal realidade previamente dada traçam, por si só, limites à possibilidade de sua valoração e, portanto, ao estabelecimento de possíveis conseqüências jurídicas”. GRACIA MARTÍN, 1996, p. 38. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 24 psicológicos, afirmando-se que a atribuição de culpa consiste em “uma objeção levantada a uma pessoa que voluntariamente decidiu-se por um comportamento ilícito, apesar de ter o dever de se comportar conforme o Direito” (GRACIA MARTIN, 1995, p. 66). Esta forma de compreender os elementos estruturantes do conceito de delito tem grande impacto sobre a reflexão acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Segundo essa formulação de ação, apenas os membros de uma coletividade seriam capazes de, finalisticamente, dar origem a um nexo causal e, assim, criar alterações no mundo exterior capazes de violar bens jurídicos relevantes (GRACIA MARTÍN, 1996, p. 40-41). 9 A conduta (ação ou omissão), pedra angular da teoria do crime, seria produto exclusivo do homem e a capacidade de ação exigiria a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual (BITTENCOURT, 2000, p. 199). A partir desta perspectiva, portanto, costuma-se negar às pessoas jurídicas capacidade de ação em sentido penal e, conseqüentemente, possibilidade de estas serem penalmente responsabilizadas (JESCHECK, 1988, p. 204) (ROXIN, 1992, p. 154) (MUÑOZ CONDE, 1989, p. 276). Do mesmo modo, com relação ao conceito de culpa, a doutrina tradicional toma as pessoas jurídicas como entes sem capacidade de culpa. Apoiada nos dogmas “societas delinquere non potest” (HUNGRIA/FRAGOSO, 1978, p. 628631)10 e “nulla poena sine culpa”, afirma-se que o conceito penal de culpa não pode ser aplicado a entes diferentes das pessoas em sentido natural (EHRHARDT, 1994, p. 45). Isso porque, tradicionalmente, a noção de culpa pressupõe a existência de um ente com capacidade de livre auto-determinação moral (freie und sittliche Selbstbestimmung), capacidade esta que apenas seres humanos poderiam ter (GRACIA MARTIN, 1995, p. 66). Esta forma de encarar a dogmática leva, portanto, à negação da 9 Segundo Gracia Martín, “às pessoas jurídicas faltam a consciência e a vontade em sentido psicológico, e com isso a capacidade de autodeterminação”. Mais ainda, afirma que, “no caso das pessoas jurídicas, sujeito de imputação e sujeito da ação não coincidem, pois elas só podem atuar através de seus órgãos e representantes, isto é, de pessoas físicas (sujeitos da ação) (...) O elemento portador da possibilidade de responsabilização penal é sempre e apenas o exercício da vontade, bem como o seu processo de formação”. 10 Já a assertiva de Nelson Hungria e Heleno Fragoso expressavam este entendimento tradicional. Neste sentido, a emblemática assertiva de Hungria-Fragoso de que “no direito brasileiro, o princípio ‘societas delinquere non potest’ é regra absoluta”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 25 responsabilidade penal da pessoa jurídica, na medida em que esta não seria capaz de agir e muito menos de agir com culpa. É preciso pontuar, entretanto, que esta posição reflete apenas uma entre tantas outras formas de construir os conceitos da dogmática penal. Ao lado desta visão tradicional, que tem base nos princípios das ciências naturais e elementos ditos ontológicos, outras posições teóricas são possíveis e sustentáveis – a exemplo daquelas que não vinculam intrinsecamente a responsabilização de uma pessoa por um ato à existência de um nexo causal ou à comprovação da orientação psicológica de uma ação humana e mostram-se, portanto, compatíveis com o instituto. Neste contexto, no campo da dogmática penal (especialmente alemã) os pressupostos ontológicos da teoria finalista vêm sendo fortemente questionados em favor da compreensão do delito como um constructo humano que apenas se dá em sociedade11. Nesta linha, uma concepção normativa (e não mais ontológica) das categorias da teoria do delito tráz consigo uma nova forma de considerar as questões envolvendo a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Tal normatização dos conceitos pressupõe, por exemplo, que o conceito de “pessoa” não é ontológico, isto é, não está vinculado necessariamente aos aspectos naturais do ser humano. Pelo contrário, normativamente considerada, a pessoa é vista como portadora de direitos e deveres, o que tornaria impossível avaliar tal status sem considerar o contexto social no qual ele se insere. Nestes termos, a ação é avaliada não como comportamento puramente 11 "Em sua maioria, as tentativas de reformulação dos conceitos da teoria do delito procedem a uma funcionalização e desmaterialização de categorias como ação e culpa. Por funcionalização e desmaterialização entende-se, em linhas gerais, o processo pelo qual estas categorias deixam de ser tomadas como categorias regidas por leis naturais (por exemplo: causa-efeito) e psíquicas (por exemplo: dolo), para então serem tomadas normativamente por sua função e significado sociais. Esta visão – também chamada de “funcionalismo radical” – foi desenvolvida pelo penalista Günther Jakobs, que é tomado como base para todos que, no debate sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica, pretendem re-descrever a compreensão do que se entende por “pessoa”. Nestes termos, o autor chegou a afirmar em seu Tratado: “Não se pode aceitar a idéia de que a definição de Sujeito com que trabalha a dogmática penal pressuponha sempre ingredientes extraídos das pessoas naturais (como corpo e psique), mas nunca extraídos das pessoas jurídicas (como constituição e membros). Pelo contrário, também estes podem ser definidos como um Sistema imputável”. Cf. JAKOBS, 1993, p. 149." Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 26 naturalístico, mas sim como um complexo dotado de significado social. 12 Por este motivo, torna-se também aceitável a idéia de que uma pessoa jurídica pode agir propriamente, bastando para isso que as diversas ações individuais executadas por seus membros possam ser avaliadas como uma ação complexa em seu significado global. Ou seja, ainda que fruto de diversas vontades humanas, o Direito poderia considerá-la como vontade própria do ente coletivo, ao ater-se ao seu sentido social e comunicativo. A perspectiva normativa do conceito de culpa também não estaria presa à fundamentação da imputação penal de um ente à consciência que este teria de estar agindo ilicitamente. A noção normativa de culpa exige para a imputação que a pessoa jurídica seja dotada da capacidade de organizar seus comportamentos de acordo com o Direito. Se uma pessoa tem a possibilidade de organizar seus comportamentos de acordo com a medida das regras de convivência social e, por sua vez, não o faz, então a ela pode ser atribuída uma reprovação de culpabilidade. E o fato de que, normalmente, as pessoas jurídicas possuem a capacidade de organizar licitamente suas atividades conforme padrões de licitude permitiria, de acordo com esta visão, imputar responsabilidade àquelas que agem de modo desviante. Estas novas teorias, que buscam concepções de ação e de culpa que possam ser vistas a partir de uma perspectiva social e não apenas ontológica, constituem a base para se afirmar, no interior da dogmática jurídica, que também as pessoas jurídicas podem ser penalmente responsabilizáveis. É no âmbito dessa linha de pensamento que se situam as tentativas mais bem sucedidas de adaptar o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica aos conceitos da teoria do delito 13. É de se notar, contudo, que esse esforço dogmático está praticamente ausente na doutrina nacional. Um retrato do debate doutrinário brasileiro acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas mostra que ele vem se ocupando de um conjunto restrito de 12 Tentativas de formulação de um conceito de ação próprio às pessoas jurídicas podem ser verificadas, guardadas as diferenças pontuais entre cada proposta, em EHRHARDT, 1994, p. 239; HIRSCH, 1995, p. 289; TIEDEMANN, 1998, p. 1172; HEINE, 1996, p. 211. 13 Exemplos destas tentativas podem ser vistos em ALVARADO, 2007; GOMÉZ-JARA DÍEZ, 2005; LAMPE, 1994. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 27 questões,14 É ainda forte no debate brasileiro a discussão acerca da constitucionalidade do instituto. Neste campo, os argumentos existentes discutem, i) se, em um primeiro nível, as previsões dos arts. 173, §5° e 225, § 3°, CF seriam compatíveis com os demais princípios consolidados na constituição, e ii) se, em um segundo nível, as previsões da Lei de Crimes Ambientais seriam, por sua vez, eivadas de inconstitucionalidade e, portanto, deveriam ser tidas como inválidas. Neste ponto, parte da doutrina chega mesmo a afirmar que, tanto de uma analise literal quanto de uma análise sistemática destes dispositivos legais, a Constituição não poderia ter recepcionado a responsabilidade penal da pessoa jurídica (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p.4045. No mesmo sentido, ver SANTOS, 2006, p. 428; PRADO, 1992, p. 32-33).15 Sob a perspectiva da dogmática penal propriamente dita, o debate está centrado na compatibilidade da responsabilidade penal das pessoas jurídicas com os elementos estruturantes do conceito de delito, tais como o conceito de ação e de culpabilidade Nesse sentido, é bastante forte na doutrina nacional a posição que parte do conceito tradicional de ação e compreende a pessoa jurídica como incapaz de desenvolver uma atividade dirigida pela vontade livre para consecução de um determinado fim (PIERANGELLI, 2004, p. 430; SANTOS, 2006, p. 432; PRADO, 2001, p. 105-106; MIRABETE, 1987, p. 106; CONSTANTINO, 1999, p. 1). Logo, ainda que se admitisse a formação de uma vontade coletiva no seio da pessoa jurídica, o dolo que dirigiu a realização do ilícito continuaria se referindo, no limite, aos aparelhos psíquicos das pessoas físicas que a compõem. No que diz respeito à culpabilidade, a maioria dos penalistas brasileiros entende que a pessoa jurídica não é passível de agir com culpa, pois não seria imputável (incapaz de culpabilidade) e pelo fato de que a consciência de ilicitude do injusto só poderia ser verificada nas pessoas físicas (PRADO, 2001, p. 106; SANTOS, 2006, p. 440; ROBALDO, 1998, p. 1; BITENCOURT, 1999, p. 62). Por estes motivos aqui apresentados bastante sinteticamente, a doutrina nacional majoritária 14 A íntegra do relatório apresenta, de forma pormenorizada, o contexto de discussões doutrinárias e o posicionamento de defensores e críticos das teorias aqui expostas. 15 Em posição contrária, cita-se FREITAS, 1999, p. 213; SHECAIRA, 2003, p. 136-137; CABETTE, 2003, p. 65-66; ROTHENBURG, 1998, p. 63. Para mais detalhes, ver relatório final desta pesquisa. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 28 costuma negar a possibilidade de estruturar dogmaticamente a responsabilidade penal da pessoal jurídica.16 Por fim, verificamos que o debate no campo da política criminal é ainda muito incipiente no Brasil, o que se percebe, por exemplo, pelo grande déficit de pesquisas empíricas sobre o tema até o presente momento. Assim, as duas principais questões político-criminais – as dos fins a serem perseguidos pelo sistema penal e a dos meios necessários para tanto – encontram-se, no Brasil, pouco delimitadas, sendo mesmo possível verificar que, muitas vezes, as finalidades da regulação penal são discutidas sem que se faça referência a quais seriam os meios e modelos mais adequados de sua formulação. Este quadro parece apontar para a necessidade de que o debate brasileiro acerca da formulação de uma política de responsabilização também leve em consideração questões de diversas ordens, que atualmente vêm sendo negligenciadas. . II. QUESTÕES A SEREM CONSIDERADAS NA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULAÇÃO DE ILÍCITOS PRATICADOS NO ÂMBITO DE PESSOAS JURÍDICAS OU OUTRAS COLETIVIDADES Como vimos, o debate doutrinário brasileiro, ao se debruçar sobre o tema da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, centrou-se, fundamentalmente, na questão da constitucionalidade deste instituto e sua compatibilidade com as categorias de ação e de culpabilidade, estruturantes do conceito de delito. Neste sentido, dedicou-se pouco à discussão prospectiva sobre a melhor forma de lidar com o problema de atos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e as distintas possibilidades de responsabilização. Pesquisas empíricas (tanto sobre o problema a ser regulado quanto sobre as atuais respostas estatais de que dispomos), análises de política criminal e questões relativas ao aperfeiçoamento do modelo de regulação são, desse modo, exceções em nosso debate. Por este motivo, a preocupação desta pesquisa foi a de suscitar questões que nos pareciam negligenciadas, além de chamar a atenção para o fato de que há distintas possibilidades de conformação de um modelo de responsabilidade coletiva. Eles podem 16 Exceções são os posicionamentos de SHECAIRA, 2003, p. 110; ROTHENBURG, 1998, p. 62 e ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 93-94. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 29 assumir arranjos a partir de distintas áreas do Direito, de distintos critérios de imputação e de variações também em relação ao tipo de sanção aplicada. Além disso, buscamos também identificar algumas questões que devem ser enfrentadas uma vez se decida pela responsabilização penal de pessoas jurídicas, pois têm impacto direto na aplicação do instituto - como a adequação do regime processual penal e as soluções regulatórias para os casos de transformações e uniões de pessoas jurídicas, tão comuns no cenário empresarial. Parece-nos que a ausência dessas questões do debate público colabora para o déficit de regulação acima mencionado, bem como para as insuficiências de muitos dos projetos de lei que se encontram ora em tramitação. Neste artigo, tratamos sinteticamente de algumas destas questões: os possíveis modelos de responsabilidade penal de entes coletivos (II.1); a discussão sobre as possíveis sanções jurídicas a serem atribuídas após a decisão pela responsabilização (II.2); dificuldades específicas a serem enfrentadas na responsabilidade penal de pessoas jurídicas (II.3); e, por fim, a responsabilidade administrativa e civil como alternativas possíveis à responsabilidade penal (II.4)17. II.1. Modelos de determinação de responsabilidade Uma vez que se decida estabelecer responsabilidade de entes coletivos no âmbito penal, apresenta-se a questão de como atribuir tal responsabilidade. Quando devemos entender um determinado acontecimento como ato de certa coletividade? E como deverá ser apurada a reprovação de tal conduta? A questão fundamental que se apresenta é determinar em que circunstâncias o ato de um ou vários indivíduos, ou mesmo certo acontecimento não passível de ser atribuído à ação de nenhum indivíduo, devem ser considerados como ação de uma pessoa jurídica ou de uma coletividade não personalizada. Relacionada a essa questão, há a necessidade de se determinar como se 17 A íntegra do relatório discute essas questões com mais detalhe e profundidade, além de trazer informações sobre a conformação desse instituto na Alemanha, Espanha, Portugal e Estados Unidos, bem como o estágio da discussão no âmbito da União Européia, ampliando o leque de informações acerca da possibilidade de conformação de diferentes concepções de modelos regulatórios para a questão. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 30 devem apurar os elementos que irão embasar a culpabilidade em relação aos atos das pessoas jurídicas e demais coletividades. A pergunta sobre quando devemos entender um acontecimento como ato de certa coletividade pode ser respondida basicamente de três modos: (i) com uma teoria de responsabilidade pelo fato de outrem; (ii) com recurso à teoria orgânica da pessoa jurídica; (iii) ou com emprego de critérios independentes da ação de quaisquer indivíduos. Relacionados ao modelo de ação, temos os modelos de avaliação da culpabilidade da coletividade: esta pode depender da culpabilidade individual ou utilizar critério de culpabilidade específico para coletividades. Em princípio, todos os modelos de ação das coletividades podem ser conjugados com qualquer um dos modelos de apuração de culpabilidade. No entanto, da forma como vêm sendo debatidos, os modelos de ação individual apresentam-se conjugados a formas de apuração de culpabilidade igualmente individuais. O modelo brasileiro atual, previsto na lei ambiental, seria uma conjugação do modelo de responsabilidade pelo fato de outrem com um modelo de culpabilidade individual, se levada em conta a tendência de interpretação que apuramos em levantamento jurisprudencial. Como vimos, os tribunais têm sido avessos à aceitação da denúncia sempre que a pessoa física tida como responsável não é citada como co-ré, ao lado da pessoa jurídica. Desta forma, todas as vezes em que é impossível a identificação da pessoa física, a ação penal é trancada. Este exemplo parece deixar claro que a regulação de infrações penais com base na responsabilidade por fato de outrem se mostra, por um lado, limitada, já que dependente da identificação de uma pessoa física relacionada diretamente com a prática do ilícito, e, por outro, ampla demais, já que a imputação da empresa ocorre de modo quase automático (HEINE, 2006, p. 33). Tendo em vista que um dos problemas centrais da regulação da criminalidade praticada no âmbito de organizações complexas é justamente a dificuldade de apuração de responsabilidade individual – devido à fragmentação de condutas, de decisões e de informações decorrentes da própria divisão do trabalho Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 31 – modelos de ação própria da coletividade, que não dependam da identificação de ação individual, e de culpabilidade também própria e específica das coletividades tendem a fornecer respostas mais adequadas do que os modelos de ação e culpabilidade individuais. i) Modelo da responsabilidade pelo fato de outrem (responsabilidade vicária) A primeira forma básica de aferição de responsabilidade dos entes coletivos se espelha na teoria da responsabilidade por fato de outrem desenvolvida no Direito civil. No direito brasileiro, o art. 932 do CC a prevê em várias hipóteses: responsabilidade dos pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia, responsabilidade do tutor e do curador por seus pupilos e curatelados nas mesmas condições, responsabilidade do empregador ou comitente por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, entre outras hipóteses. Nesses casos, a responsabilidade civil de uma pessoa (do patrão, por exemplo) decorre da prática de um ato ilícito por parte de outra pessoa (seu empregado, no caso). O autor direto do ilícito (empregado) não fica isento de responsabilidade, mas a ela se acrescenta a responsabilidade de outra pessoa (patrão). Transportada para o âmbito do Direito Penal, a teoria da responsabilidade vicária parte da idéia de que o dono do negócio (Geschäftsherr) é sempre responsável pelos crimes que seus subordinados cometerem no exercício de sua atividade, na medida em que o ato ilícito não teria ocorrido se houvesse a devida cautela quando da escolha e fiscalização das atividades dos mesmos (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 542-543)18. Com isso, esse modelo 18 No direito civil brasileiro atual, a discussão acerca da culpa do patrão está superada, diante da previsão expressa de que sua responsabilidade é objetiva (CC art. 933). No entanto, antes da aceitação pacífica da responsabilidade objetiva no direito civil, partidários da responsabilidade por culpa entendiam que o fundamento da chamada responsabilidade por fato de outrem era, em última análise, uma culpa própria do patrão, a qual consistia na seleção ou na vigilância inadequadas dos subordinados (culpa in eligendo e culpa in vigilando, respectivamente) (AGUIAR DIAS 1983, 571). Na vigência do CC de 1916, o qual não trazia norma expressa quanto à responsabilidade sem culpa do empregador ou comitente, esta era Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 32 representa uma forma de responsabilização por fato de outrem, bem como se constitui em uma responsabilidade objetiva, já que não investiga a existência de uma real parcela de culpa do ente coletivo relativamente ao delito cometido. Em termos esquemáticos, pode-se dizer que, segundo este modelo, para que a empresa possa ser responsabilizada por atos de seus empregados, seria necessário observar fundamentalmente três requisitos. Em primeiro lugar, deve-se verificar, logicamente, que houve um crime cometido por um empregado da empresa. Em segundo lugar, a ação deve ocorrer no exercício de sua função, sendo que uma ação fora deste quadro não poderia ser tomada como sendo de responsabilidade do ente coletivo. Finalmente, deve haver o propósito de agir em favor da empresa, sendo irrelevante a existência do propósito de favorecimento de si próprio ou de terceiros, bem como a questão sobre se tal favorecimento de fato ocorreu (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 547 – 548). Desenhada desta forma, a responsabilidade penal do ente coletivo torna-se absolutamente dependente da responsabilidade penal da pessoa física que cometeu o ato, de modo que ele vem a responder penalmente mesmo que o subordinado não tenha permissão para agir ou ainda tenha contrariado uma proibição expressa nesse sentido, excusando-se, em contrapartida, quando a pessoa física não se fizer punível (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 542-543). Trata-se de modelo que leva em consideração, tanto para a atribuição da conduta à pessoa jurídica, quanto para apuração de culpabilidade apenas o indivíduo (conjugação de um modelo de ação individual, com um modelo de culpabilidade individual). A rigor, seria possível imaginar um modelo de responsabilidade por fato de terceiro que exigisse uma apuração de culpa própria da pessoa jurídica, mas isso tornaria a imputação de responsabilidade a pessoas jurídicas ainda mais difícil do que já é com o modelo de culpa individual, ao exigir a conjugação de imputação criminal ao indivíduo e apuração adicional de culpabilidade própria da pessoa jurídica. presumida, na forma de culpa in eligendo, conforme a Súmula 341 do STF (Cf. a respeito, CAVALIERI FILHO 2008, 38) e ainda hoje há autores que vêem na responsabilidade por fato de terceiro uma responsabilidade por fato próprio, neste caso, por uma omissão (CAVALIERI FILHO 2008, 25). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 33 ii) Modelo de imputação penal baseado na teoria orgânica (ou da identificação) O segundo modelo para atribuição de determinada conduta à coletividade parte de uma visão em certa medida antropomórfica dos entes coletivos. A teoria da identificação (ou alter-ego doctrine) entende que os órgãos diretivos da empresa constituiriam uma espécie de “alter-ego” da mesma, representando nessa medida o seu “cérebro”. Com isso, a ação e a culpa da empresa seriam identificados com o agir e a culpabilidade do indivíduo que possui um poder de direção em seu âmbito (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 549550). Sendo assim, querendo-se aplicar esta teoria, é importante verificar como o Direito Civil brasileiro considera a capacidade de agir das pessoas jurídicas no que se refere à prática de atos lícitos, especialmente negócios jurídicos, uma vez que é tal capacidade que se considera para a imputação penal neste modelo. Do ponto de vista do direito civil, o que está em questão é o modo como a pessoa jurídica forma e exterioriza sua vontade (MULLER PRADO, 2007, p. 154). A formação e exteriorização da vontade da pessoa jurídica se dão por meio de seus órgãos, conforme o que estabeleçam os atos constitutivos da pessoa jurídica em questão (contrato social ou estatuto) (MULLER PRADO, 2007, p. 157). Segundo este modelo, os órgãos sociais assim constituídos tornam presente a pessoa jurídica. Com isso se quer dizer que os órgãos não são representantes da pessoa jurídica, mas – por uma ficção – são a própria pessoa jurídica. Desse modo, as pessoas físicas que, em conjunto ou isoladamente, constituem órgão social, ao agir, vinculam a própria pessoa jurídica (MULLER PRADO, 2007, p. 159). Na medida em que a capacidade negocial é vista como critério para considerar determinado ilícito como um ato da pessoa jurídica para efeitos penais, estaríamos diante de uma maior limitação dos atos imputáveis às pessoas jurídicas; afinal, o ente coletivo responderia apenas por atos praticados por um determinado e restrito grupo de indivíduos. No entanto, tal limitação é mais frágil do que parece. Isso porque, para efeitos do Direito privado, os órgãos de formação e expressão de vontade constituídos por meio do contrato ou estatuto da pessoa jurídica não esgotam, na realidade, as possibilidades de manifestação de vontade Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 34 juridicamente vinculante. Em primeiro lugar, existe a possibilidade de delegação de certas atribuições, o que pode ser feito informalmente, de modo que para estabelecer as competências no interior de uma dada pessoa jurídica não basta consultar seus documentos constitutivos. Os balconistas de uma loja, por exemplo, são simples empregados, mas a eles é delegado o poder de celebrar negócios jurídicos (compra e venda dos produtos da loja) em nome do patrão. Tal delegação do poder de vincular juridicamente a pessoa jurídica na maior parte dos casos é necessária para permitir o próprio exercício de suas atividades: não seria razoável supor que o sócioadministrador, por exemplo, fosse participar pessoalmente de todos os negócios jurídicos celebrados por uma pessoa jurídica no exercício de uma complexa atividade econômica. Por fim, o Direito privado prevê a possibilidade de vinculação da pessoa jurídica em certos casos nos quais não houve adequada formação e/ou exteriorização da vontade da pessoa jurídica, com o objetivo de proteger terceiros, com base na teoria da aparência. Por basear-se na capacidade negocial, portanto, diferentemente do modelo anteriormente mencionado, no modelo baseado na teoria da identificação não é a ação de qualquer empregado no âmbito do ente coletivo que pode vinculá-lo penalmente. Todavia, isso não significa que esteja fechada a via de responsabilização do ente coletivo por ato de simples empregados. Tal ocorre ainda a partir da idéia de que aos órgãos diretivos da empresa incumbe o dever de impedir que aqueles cometam crimes, o que pode gerar, conforme se verifique no caso em questão, a sua responsabilidade penal através das figuras da autoria mediata ou da omissão (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 556). iii. Modelo de atuação própria da coletividade Os dois modelos de determinação de responsabilidade apresentados acima, por serem fundados na atuação individual, trazem consigo uma série de dificuldades. Segundo Günther Heine, tais modelos teriam utilidade somente no âmbito de empresas de pequeno porte, pois que se mostrariam insuficientes quando Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 35 se tem em consideração a complexidade atual da organização empresarial, que não permite a identificação da pessoa física responsável, nem dos representantes hierarquicamente superiores responsáveis pelo crime (HEINE, 2001, p. 58). Mais ainda, seria possível identificar um efeito colateral de ampliação da responsabilidade das pessoas físicas no Direito penal (já que quanto maior a extensão da responsabilidade do indivíduo, maior a dos entes coletivos), bem como uma equiparação da responsabilidade individual com a coletiva e uma dificuldade em se controlar toda a coletividade por meio do controle da ação de um indivíduo isoladamente (HEINE, 2001, p. 59). Retomando o paralelo com o direito civil, é interessante notar que a responsabilidade por fato de outrem do art. 932, III do CC perdeu quase todo seu campo de aplicação, por ter sido substituída por mecanismos de responsabilidade própria do empregador ou comitente (CAVALIERI FILHO 2008, 192). No direito civil, o ilícito próprio funda-se na idéia do risco da atividade, segundo a qual os efeitos indesejáveis de determinada atividade se atribuem àquele que criou o risco, o controla e dele tira proveito (CAVALIERI FILHO 2008, p. 191; sobre o desenvolvimento da teoria do risco e suas justificativas no direito civil, cf. PÜSCHEL, 2005, p. 95-100). Um exemplo desse tipo de modelo no direito civil é a responsabilidade do fornecedor, estabelecida pelo CDC. Nesse caso, a lei nem sequer menciona o empregado, serviçal ou preposto (CDC, arts. 12, 14, 18 e 20). O critério para imposição de responsabilidade ao fornecedor é a ocorrência de dano causado por produto ou serviço seu, viciado ou defeituoso, colocado no mercado. No mesmo sentido, pode-se mencionar o art. 927, parágrafo único do CC, o qual estabelece uma responsabilidade direta para quem exerce atividade que implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. No direito civil, a passagem da responsabilidade por fato de outrem para uma responsabilidade própria se deu de modo vinculado ao abandono do requisito da culpa. No entanto, não nos parece que esse fato exprima uma relação necessária. É possível imaginar o estabelecimento de uma responsabilidade própria de alguém que exerça certa atividade – no sentido de uma responsabilidade por atos eventualmente praticados por Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 36 outras pessoas, como empregados, comitentes, etc., mas que não dependa da apuração de responsabilidade dessas pessoas – baseada na culpa (também própria). É o que fazem, no campo do direito penal, as teorias que enxergam uma forma própria de culpa dos entes coletivos em um defeito de organização do próprio ente coletivo (Organisationsverschulden ou ainda reactive corporate fault), segundo o qual a responsabilidade da empresa se baseia na criação de uma atmosfera que possibilita ou exige a prática de crimes em seu seio (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 560). Uma primeira perspectiva a ser mencionada no sentido de um modelo de imputação baseado na responsabilidade subjetiva da própria empresa encontra-se na proposta de Klaus Tiedemann, que buscou reformular o tradicional princípio da culpabilidade, adaptando-o às relações internas das pessoas jurídicas e fundamentando sua responsabilidade com base em categorias sociais e jurídicas. Neste sentido, este autor afirma que seria possível formular, para os casos de delitos cometidos por entes coletivos, um conceito de culpabilidade diverso do usado em casos de delitos cometidos por pessoas naturais: se nestes a noção de culpabilidade está fundamentalmente vinculada a uma “reprovação ética frente ao agir individual contra a norma” (TIEDEMANN, 1988, p. 1172) noção deveria ser orientada por “categorias sociais e jurídicas”. 20 19 , naqueles tal Tratar-se-ia de fundamentar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas na “culpabilidade por defeito de organização”. A pessoa jurídica seria responsável pelos fatos realizados por seus membros sempre que ela e seus órgãos não tenham tomado as medidas de cuidado ou vigilância necessárias à garantia de uma atividade não-delitiva (TIEDEMANN, 1988, p. 1172).21 No âmbito da pessoa jurídica (como uma empresa, por exemplo), todo delito ou infração administrativa dos seus órgãos 19 Tiedemann fala de um “agir pessoal moralmente defeituoso” (“ persönliche sittliche Fehlleistung”). 20 “einer an sozialen und rechtlichen Kategorien ausgerichteten Schuldbegriff”. Cf. (TIEDEMANN, 1988, p. 1172). Neste texto, Tiedemann ainda não deixa claro o que entende por essa expressão. Posteriormente, no entanto, o autor a clarifica um pouco mais, afirmando que se trata de estender e interpretar o conceito de culpabilidade “no sentido de uma responsabilidade social”. Cf. TIEDEMANN, 1993, p. 233. 21 Neste mesmo sentido, Schroth afirma que a culpabilidade da pessoa jurídica não deve ser vista como sendo puramente vinculada ao órgão autor do delito; pelo contrário, ela deve ser tomada como culpabilidade funcional (funktionale Organschuld), isto é, como fruto da imputação de um comportamento culposo do órgão à pessoa jurídica que ele representa. Tratar-se-ia de uma culpa por defeitos de organização do ente coletivo. Cf. SCHROTH, 1993, p. 203-204. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 37 representantes surgiria como um erro do próprio ente coletivo, a não ser que se esteja frente a um caso de “excesso de representação”. 22 Nestes termos, o ato individual deveria ser tomado como ato próprio do ente coletivo, na medida em que este tenha se omitido em tomar medidas de prevenção necessárias ao desenvolvimento lícito de suas atividades. A responsabilização não se dá por conta do fato individual, cometido pela pessoa natural, mas sim por conta da falta de cuidado do ente coletivo, que em um momento anterior poderia ter evitado a ocorrência do delito (TIEDEMANN, 1988, p. 1173). A aferição de culpabilidade referente ao ato praticado pela pessoa natural seria, assim, irrelevante na medida em que a responsabilidade pelo ato se baseia num comportamento reprovável anteriormente ocorrido (TIEDEMANN, 1988, p. 1173). Assim, seria a violação, por omissão, de um dever de vigilância (Aufsichtspflichtverletzung)23 que fundamentaria a culpabilidade do ente coletivo, com base em um defeito de organização a ele imputável. Postos nestes termos, o modelo de Tiedemann foi uma das primeiras tentativas profícuas de desenvolvimento e re-elaboração da categoria de culpabilidade, para aplicá-la às pessoas jurídicas. Ainda que muitos de seus critérios tenham sido posteriormente criticados (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 156-159), fato é que muitos autores 24 seguiram Tiedemann no intento de buscar novas formulações de categorias dogmáticas e pensar critérios de imputação próprios para a pessoa jurídica. Mencione-se, a título de exemplo, o modelo de culpabilidade pelo injusto de sistema (Systemsunrecht) desenvolvido por Ernst-Joachim Lampe (LAMPE, 1994), considerado uma das tentativas mais aprofundadas e conseqüentes de superar os pressupostos individualistas da dogmática penal tradicional (BACIGALUPO, 22 Com este termo se designa todo ato ou conjunto de atos que, embora tomado dentro do âmbito da pessoa jurídica, constitua abuso funcional por parte da pessoa natural que dela faz parte. Neste caso, logicamente, a pessoa jurídica não deveria arcar com a responsabilidade pelo delito cometido, pois a ela não pode ser imputado um dever de evitar comportamentos que excedam as funções internamente distribuídas para persecução de sua atividade. Apontamentos críticos sobre os limites estabelecidos pela idéia de “excesso de representação” podem ser encontrados em SCHÜNEMANN, 1994, p. 284-285. 23 Tiedemann engloba neste conceito “deveres e medidas de cuidado, de controle e de organização, exigíveis na estruturação de uma pessoa jurídica que pretende exercer sua atividade licitamente”. 24 É o caso, por exemplo, daqueles propostos por GÓMES JARA DÍEZ, 2006; SCHROTH, 1993; e EHRHARDT, 1994. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 38 1998, p. 192 ss.). Para ele, boa parte da criminalidade empresarial teria, ademais de uma dimensão individual, uma dimensão sistêmica. Injustos de dimensão sistêmica seriam todos aqueles comportamentos que lesionam bens jurídicos com base em certa filosofia da empresa25 ou devido a uma organização deficiente (LAMPE, 1994, p. 709). Diante deste quadro, a responsabilidade penal individual seria adequada apenas quando o ilícito encontra expressão no comportamento lesivo de um de seus membros. Já a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por sua vez, encontraria seu objeto ideal nos casos em que a própria estrutura do ente coletivo favorece seus membros no cometimento de delitos. 26 Para tanto, existiriam quatro causas fundamentais que constituiriam um injusto de sistema de responsabilidade da empresa: a) o potencial perigo criado pela empresa para realizar uma dada prestação; b) a estrutura deficitária de sua organização (defiziente Organisationsstruktur), que neutralizaria erroneamente a periculosidade deste potencial; c) uma filosofia empresarial “criminosa”, que ofereceria aos membros da organização a tentação de levar a cabo ações delitivas; d) a erosão de responsabilidade interna à empresa, nos casos em que esta não possui regras claras e eficientes de responsabilização de seus membros em caso de desvios funcionais (LAMPE, 1994, p. 709). Modelos desse tipo fundamentam a capacidade de produção de injusto não mais em termos de capacidade de ação, mas em termos de capacidade de organização. Eles têm vantagens em relação ao modelo de responsabilidade por fato de outrem, pois evitam uma responsabilização objetiva do ente coletivo, que deixa de ser responsabilizável em casos em que sua estrutura é absolutamente idônea e não favorece qualquer comportamento ilícito. Além disso, têm um potencial preventivo interessante, pois descentralizam o controle e a gestão de riscos e estimulam a adoção de culturas empresariais que não contribuam para a prática de ilícitos. 25 Por “filosofia da empresa“ entende Lampe a totalidade da orientação e da concepção de valores que direcionam a empresa, principalmente em relação a sua posição em seu contexto social, econômico e ecológico. Cf. LAMPE, 1994, p. 708. 26 Exemplos disso seriam casos em que a organização da empresa não se preocupa com a criação de normas de internas de controle, ou mesmo quando não desenvolve regras de responsabilização individual por atos de seus empregados. Nestes casos, quando surge uma lesão de bem-jurídico praticada com base nesta organização deficiente da empresa, produz-se um injusto sistêmico, cuja responsabilidade deve ser arcada pelo ente coletivo, e não pelos seus membros. Neste sentido: LAMPE, 1994, p. 727 e seguintes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 39 É preciso mencionar também, o surgimento, nesse contexto, de um dabate inovador no campo da dogmática penal acerca do papel de dos programas de compliance27 na prevenção da criminalidade econômica e sua consideração pela dogmática penal como uma forma de se aferir elementos da organização ou da cultura da empresa. 28 A concretização dessa proteção seria realizada por procedimentos desenvolvidos em cada programa, determinados de acordo com a atividade e o tamanho da empresa em questão. Por exemplo, procedimentos para a descoberta de irregularidades instaurados a partir de “denúncias anônimas” por parte dos empregados, bem como diferentes formas de controle interno e externo. Nesse ponto vale ainda mencionar a existência de mecanismos sancionatórios ou medidas disciplinares no interior das empresas como modo de efetivar o cumprimento das regras estabelecidas (SIEBER, 2008, p. 456). Os programas de compliance constituiriam em si importantes vias de prevenção de crimes no âmbito das empresas e uma forma de estimular sua adoção seria justamente considerar medidas adotadas nesse sentido na indicação da culpa da pessoa jurídica. Esses programas representariam a “mentalidade” da empresa e forneceriam indícios sobre os seus esforços em criar uma cultura corporativa que não dê margens a condutas criminosas. Logo, mostram-se especialmente relevantes quando se parte de um modelo de responsabilidade originária da empresa. Modelos desse tipo, ao levarem em consideração para a configuração do delito não apenas a conduta da pessoa física, mas também a própria forma de organização da empresa, inclinada ou não a um comportamento lícito, oferecem vantagens em termos preventivos, já que se desvia de uma responsabilização objetiva, levando em conta também os aspectos específicos de cada empresa. Os modelos de responsabilidade 27 Com a denominação “programas de compliance” tem-se em mente o conjunto amplo de mecanismos aplicados no seio das empresas, especialmente nos países de tradição anglo-saxã (PAMPEL, 2007, p. 1636), que visem o estabelecimento de seus objetivos e a reafirmação de seus valores, assim como a concretização dos mesmos, no âmbito da condução de suas atividades. Abarca uma infinidade de mecanismos aplicados pelas empresas que são conhecidos por denominações diversas (tais como business ethics e corporate governance) e têm em comum o fato de definirem determinados objetivos e procedimentos da direção empresarial que dizem respeito fundamentalmente à prevenção de crimes no seio das empresas, tais como corrupção, lavagem de dinheiro, etc., o que conduz à proteção de diversos valores (que variam conforme a empresa e resultam em uma enorme diferença de conteúdo de um programa para outro), numa extensão que chega a ser inclusive maior que a inscrita no âmbito de proteção das normas penais (SIEBER, 2008, p. 451, 454-455). 28 É preciso notar que na tradição americana de aplicação do instituto esse elemento já era considerado – consta, por exemplo, do Sentencing Guidelines. A novidade é sua incorporação às construções dogmáticas, especialmente por autores alemães. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 40 derivada, por sua vez, não geram estímulo algum para que a empresa aperfeiçoe sua estrutura organizacional e crie mecanismos internos de controle de riscos. Em outras palavras: sendo a adoção de cultura corporativa ética vantajosa para as empresas, já que consideradas na apuração de sua possível responsabilidade criminal, o seu incremento será estimulado, o que poderia gerar um efeito preventivo global superior à aplicação do direito penal em quaisquer situações indistintamente. Entretanto, se à primeira vista modelos desse tipo pareçam fazer mais sentido para lidar com a responsabilidade no âmbito da empresa, não se deve desconsiderar os desafios e dificuldades que ele enseja, como aqueles apontados por Arlen, a que nos referimos na parte I deste texto (ARLEN, 1994). II.2. Tipos de sanções impostas a pessoas jurídicas A discussão em torno das formas de sanções aplicadas e aplicáveis aos entes coletivos foi, durante muitos anos, limitada29 e passou a ganhar mais consistência apenas recentemente, sendo contudo bastante incipiente no Brasil. E isso porque, no âmbito dos países de tradição romano-germânica, a polêmica sobre a aceitação mesma da responsabilidade penal da pessoa jurídica consumiu de modo majoritário os esforços teóricos – seja no plano da política criminal, seja no campo da dogmática penal. O fato de ser impensável a aplicação de pena de prisão para um ente coletivo possibilita imaginar novos instrumentos para que Direito penal atinja seus objetivos. Neste sentido, as legislações de países que adotaram o instituto elencam possibilidades que vão desde as sanções pecuniárias, mais tradicionais, a formas de curatela, vigilância, imposição de programas de compliance etc.. Mas ainda há um longo caminho a se percorrer, tanto no que diz respeito aos efeitos alcançados com as distintas possibilidades (vantagens e desvantagens, impacto econômico e social e fins a serem perseguidos), como no que se refere aos parâmetros e critérios para 29 A exceção a esse quadro é a regulamentação do tema nos EUA, que, por adotar o instituto há muito mais tempo, desenvolveu o U.S. Sentencing Guidelines Manual, que impõe, em âmbito federal, uma série de critérios a serem observados na determinação e quantificação da pena à pessoa jurídica. As principais sanções que podem ser impostas são multa, reparação dos danos causados às vítimas e probation. Expomos mais detalhadamente esse sistema no Anexo 8 do relatório de pesquisa. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 41 aplicação e dosimetria das sanções. Trata-se, certamente, de um campo totalmente novo aos operadores do Direito penal, na medida em que o novo ator é movido por outros estímulos, enfeixa outros interesses sociais e a consideração de todos eles muitas vezes requererá o olhar mais especializado do aplicador da lei. Chamamos atenção para a necessidade de aprofundar a discussão sobre os tipos de sanção, sob pena de que as estratégias de responsabilização que vêm sendo adotadas possam acarretar efeitos indesejáveis. No âmbito deste texto indicaremos, de modo não exaustivo, algumas das sanções que vêm sendo utilizadas para tratar deste tipo de criminalidade e teceremos breves comentários críticos a seu respeito. a) Sanções pecuniárias Essa é a forma mais tradicional de sanção pensada para pessoas jurídicas, por se pressupor que ela neutralizaria a busca de lucro, base da maioria dos crimes praticados no âmbito de entes coletivos. Seu potencial preventivo dependeria do fato de a sanção patrimonial imposta superar a vantagem derivada de uma violação à lei, para que a sanção então torne o cometimento do ilícito uma prática nãocompensadora.30 Se a imposição de sanção se dirigisse apenas ao indivíduo que agiu no âmbito do ente coletivo, este efeito sobre o cálculo custo-benefício do cometimento do ilícito não se verificaria. A sanção pecuniária imposta exclusivamente sobre pessoas naturais é ineficaz na medida em que tais pessoas raramente têm patrimônio pessoal suficiente para arcar seja com a multa, seja com a reparação do dano, ao passo que a pessoa jurídica não chega a ser afetada. Um ente coletivo que não precisa levar em conta a imposição de sanções contra si mesmo não teria interesse algum em motivar seus membros a permanecer dentro da legalidade quando da prática de suas atividades. (EHRHARDT, 1994, p. 165166). Supõe-se, ainda, que a imposição deste tipo de sanção endereçada à própria pessoa jurídica agiria sobre todos aqueles que dela fazem parte: cada empregado passaria a levar em conta o fato de que uma imposição de uma forte multa, com base no cometimento de um ato ilícito praticado no âmbito da organização, poderia em última instância colocar em risco a própria existência da organização e com 30 Tal argumento pode ser encontrado fundamentalmente na chamada Análise Econômica do Direito, de matriz norte-americana. Especificamente sobre as relações entre cometimento de ilícitos penais e a análise custo benefício feita pelas empresas, ver POSNER, 1986, p. 205 e seguintes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 42 isso os postos de trabalho por ela oferecidos. Deste modo, seria incentivado um ambiente de vigilância mútua, em que o indivíduo desenvolveria um interesse maior em desencorajar seus companheiros de trabalho a cometerem práticas ilícitas, o que resultaria em um sensível ganho no campo da prevenção destas infrações. A mera imposição de multa, entretanto, pode trazer consigo dois principais problemas. Em primeiro lugar, aponta-se que ela pode resultar numa “pecuniarização” das condutas, o que seria socialmente indesejável. Se, por um lado, fazer com que o indivíduo opere o cálculo custo-benefício quando da decisão sobre praticar o delito pode trazer ganhos preventivos (a idéia de que a infração pode “não compensar”), por outro, este mesmo cálculo pode conduzir a uma conclusão perversa: a de que o risco derivado da decisão pelo cometimento do delito pode, em muitos casos, não ser relevante. Este risco de “pecuniarização” da reprovação penal, no sentido de que esta se torna refém do cálculo custo-benefício e, portanto, apenas passa a ser preventiva quando o custo for muito alto, acabaria, na prática, por permitir um marco de comportamentos onde o crime, efetivamente, “compensa”. Tendo em vista estas falhas, muitos autores afirmam que apenas a imposição de sanções pecuniárias não pode constituir um mecanismo apropriado de combate à criminalidade coletiva. Outro problema da imposição de multas decorre dos casos em que elas são excessivamente altas. Ao se abordar o problema de crimes praticados por pessoa jurídica da esfera privada, não devemos ignorar uma questão preliminar, que deve ser levantada: no caso concreto, trata-se de uma empresa constituída por meio de pessoas jurídicas com histórico de desempenho de operações lícitas, ou de uma empresa “de fachada”? Essa informação é extremamente importante, pois, se ambos os casos se manifestam na realidade, é preciso considerar qual o impacto desejado da sanção, tendo em perspectiva os efeitos que podem surtir sobre cada um dos casos. Afinal, a sanção deve ser pensada de modo que o impacto desejado seja obtido sem prejuízo à preservação de demais interesses juridicamente relevantes, como a manutenção da capacidade produtiva da empresa e de seus reflexos positivos para a sociedade (supondo que a capacidade produtiva não seja dependente de benefícios gerados por atos ilícitos). Apenas em se tratando de empresa puramente “de fachada”, esta questão pode ser desprezada, já que não Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 43 sobrariam atividades lícitas a serem preservadas. No caso de pessoas jurídicas que desempenham atividade lícita, custeada e remunerada de forma independente do resultado auferido com a prática do ato ilícito, os efeitos da sanção devem se limitar ao escopo do impacto desejado, e só a tal escopo. Seria indesejável que as sanções produzissem efeitos negativos sobre o desempenho das atividades lícitas, hipótese em que a sanção ultrapassaria seu fim e geraria efeitos negativos de difícil mensuração para a sociedade como um todo. Em suma, é necessário perceber que a aplicação de uma multa excessivamente alta pode inviabilizar a atividade lícita do agente e, conseqüentemente, prejudicar outros interesses. b) Extinção ou interdição temporária da empresa Uma forma de sanção pensada em termos repressivos consiste no próprio fechamento da empresa (DANNECKER, 2001, p. 290; SCHÜNEMANN, 1994, p. 290). Este seria o caso extremo em que a pessoa jurídica se mostra incapaz de lidar com seus próprios defeitos organizativos, bem como de reformálos (HEINE, 1995, p. 302-303). Também aqui é fundamental a distinção entre empresas marcadas por uma “filosofia criminógena” e empresas no âmbito de cujas atividades ocorre prática eventual de ilícitos penais. 31 31 O Projeto de Lei n. 1.142/07, hoje tramitando no Congresso, parece ter isso em mente, pois distingue entre pessoas jurídicas cuja atividade exclusiva ou predominante está associada a atos de corrupção da Administração Pública e pessoas jurídicas que desempenham atividades lícitas, mas que praticam atos de corrupção em caráter eventual. Quanto às primeiras, supõe-se tratar de casos em que os agentes da empresa são praticantes contumazes de crimes associados à atividade da empresa. São casos em que geralmente as atividades lícitas eventualmente desenvolvidas não chegam a garantir superávit. Nelas, a atividade ilícita responde pela produção de superávit, daí a contumácia. Quanto às segundas, supõe-se que a atividade lícita é desenvolvida e custeada e remunerada de forma independente do resultado auferido com a prática do ato ilícito, sendo que o superávit geral deve independer da prática do ilícito. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 44 A aplicação de tal sanção parece especialmente grave e danosa a empresas que desempenham atividade lícita que garante sua viabilidade econômicofinanceira independentemente da prática dos ilícitos. É indesejável que as sanções produzam efeitos negativos sobre o desempenho das atividades lícitas, hipótese em que a sanção ultrapassaria seu fim e geraria efeitos negativos de difícil mensuração para a sociedade como um todo. Sanções como a extinção ou interdição temporária podem produzir efeitos danosos à sociedade como um todo. Além de implicar o afastamento de um ente produtivo da economia do país, com prejuízo para a comunidade de trabalhadores, consumidores e credores, as sanções podem ainda impedir que a pessoa jurídica produza receita necessária para reparar o próprio dano derivado do crime. O fechamento da empresa poderia atingir a liberdade de profissão e de exercício de atividade econômica e, portanto, apenas pode ser aceita sob a observância de rígidos pressupostos (DANNECKER, 2001, p. 125). Ainda, não se podem esquecer os possíveis efeitos colaterais que eventualmente podem derivar da imposição desta medida drástica32. Tendo em vista estas dificuldades, afirma-se que esta forma de sanção apenas deve ter lugar quando nenhuma outra puder alcançar o mesmo efeito retributivo e preventivo (DANNECKER, 2001, p. 125). Contudo, os próprios critérios para se determinar quando se trata de uma empresa criada exclusivamente com intuitos ilícitos são algo que merece atenção especial, sob pena de total ou parcial inefetividade regulatória. 33 Não faria sentido procurar formular normas supostamente capazes de definir a priori quais entidades 32 Como exemplo pode ser citado o complexo de insolvências que derivariam do fechamento de uma empresa. A questão inevitável seria: quem pagaria pelos débitos e contratos firmados, agora que a empresa não mais existe e, portanto, não possui mais um fluxo ativo de caixa? Mais ainda, também a demissão em massa decorrente de tal medida deve ser considerada com especial atenção. 33 A exemplo do que ocorre no art. 4º, § 2º do Projeto de Lei n. 1.142/07, a distinção entre os dois tipos de pessoa jurídica pode ser formulada de modo questionável, por diversos motivos. Por exemplo, o referido dispositivo condiciona a aplicação da sanção à verificação de que “os fundadores da pessoa jurídica (...) tenham tido a intenção (...) de por meio dela, praticar os crimes previstos na lei ou quando a prática reiterada de tais crimes demonstre que a pessoa jurídica está a ser utilizada para esse efeito, quer pelos seus membros, quer por quem exerça a respectiva administração.” Do modo como feita esta redação, a sanção de extinção não poderia ser aplicada em nenhuma das hipóteses a seguir: (a) caso os fundadores não tenham tido a intenção de praticar os crimes previstos na lei por meio da pessoa jurídica (mas, por hipótese, os gestores ou sócios adquirentes das participações dos fundadores tenham tido tal intenção); (b) caso não seja possível provar a intenção dos fundadores; (c) caso o ato de corrupção não tenha sido objeto de prática reiterada. Assim, supondo que a extinção empresa seja desejável em alguns casos, é possível que os critérios de distinção entre as finalidades da empresa possam complicar a aplicação deste tipo de sanção. Afinal, não é fácil comprovar a intenção dos fundadores da pessoa jurídica quanto a um propósito de constituir ou utilizar-se da pessoa jurídica para praticar atos de corrupção. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 45 são “exclusiva ou predominantemente” dedicadas à prática de ilícitos e quais o são apenas secundariamente. Para cada empresa considerada, seria necessário visualizar qual é o percentual de receita associado a cada tipo de atividade desempenhada, lícita ou ilícita. Mas qualquer regra que pretendesse fixar algum critério para mensurar isto seria arbitrária e imprecisa. Para evitar este problema, o modo mais confiável para se aferir se há algo que justifique a continuidade da empresa por meio de determinada pessoa jurídica seria impor sanções que tornassem proibitivo o custo do cometimento do ilícito penal, sem extinção da pessoa jurídica, o que faz com que a empresa prove por si própria se é capaz de continuar no mercado desempenhando apenas atividades lícitas. Viabilidade econômico-financeira é um problema que interessa aos sócios, credores e empregados das empresas e deve ser abordado pelo direito falimentar, não pelo direito penal. Se a empresa que sofre a sanção penal é economicamente inviável sem o cometimento de ilícitos penais, ela deverá sair do mercado como qualquer outra empresa economicamente inviável. Não é desejável que a sociedade arque com custos adicionais dirigidos a pessoas jurídicas agentes de ilícitos penais, destinados a monitorar se tais entidades são ou não viáveis, ausentes as práticas de ilícitos penais. c) Proibição de contratar com o Poder Público Uma modalidade interessante de restrições de direitos é a proibição de contratar com o Poder Público. Essa modalidade é largamente praticada no Brasil, e atinge não apenas as empresas que tipicamente participam de licitações públicas e celebram contratos administrativos com o Poder Público, mas qualquer empresa que pleiteia crédito oferecido por bancos estatais ou por bancos privados que repassam recursos estatais. Com prazo determinado, geralmente correspondente a dois anos, essa sanção é capaz de atingir um dos principais interesses da pessoa jurídica, o patrimonial, sem, contudo, incorrer nas questões problemáticas suscitadas no caso da pena de multa. Apesar do caráter patrimonial da sanção, não é possível quantificar com exatidão os prejuízos causados pela sua aplicação. Conseqüência disso é o fato de que o cálculo custo/benefício no cometimento do crime não seria tão simples e direto como no caso da multa. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 46 d) Publicação da sentença condenatória A publicização da condenação judicial sofrida pela pessoa jurídica é uma modalidade de sanção que vem sendo utilizada em face de pessoas jurídicas condenadas34. Trata-se de uma previsão em princípio interessante, pois altera a lógica do paradigma punitivo vigente, reforçando a publicidade da imputação de responsabilidade como uma resposta em si relevante do sistema jurídico para a sociedade. Principalmente sobre as empresas cujas ações são negociadas em bolsas de valores35, esta medida parece ser dotada de forte efeito especial-preventivo, desencorajando-as de cometerem delitos no âmbito de sua atividade (DANNECKER, 2001, p. 127). Assim, transferem-se para o mercado as decisões sobre eventuais conseqüências negativas da imputação de responsabilidade, impondo também à empresa condenada a demonstração da cessação das práticas ilícitas, de sua confiabilidade, solidez, etc.. e) Sanções de fundamento preventivo Ao lado das medidas direcionadas estritamente à repressão dos delitos cometidos no âmbito das pessoas jurídicas, são pensadas também formas de sanção cujo objetivo é tentar garantir diretamente – e não como possível efeito da via repressiva – que, no futuro, nenhuma violação seja cometida (DANNECKER, 2001, p. 124; HEINE, 1995, p. 304; EHRHARDT, 1994, p. 168). Inicialmente, o cumprimento de certas instruções pode ser imposto à pessoa jurídica, organizando setores de seu funcionamento, de modo a evitar que novos delitos venham a ser cometidos em seu âmbito de atividade. Esta medida pode vir acompanhada de proibições específicas para exercer determinada prática, quando esta está claramente contaminada por um defeito organizativo que incentiva o cometimento de infrações (SCHÜNEMANN, 2008, p. 441). Também se propõe a imposição de criação de Compliance-Programs, com o objetivo de fomentar na 34 Prevista, por exemplo, no Título 7 do Código Penal francês. Cf. SCHÜNEMANN, 2008, p. 441. 35 Isso porque a boa reputação de uma empresa é essencial para a sua valorização no mercado de bolsas. Um exemplo claro e atual pode ser visto no caso Siemens, onde o escândalo sobre corrupção interna abalou a reputação da empresa e causou uma forte queda nos valores de suas ações. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 47 cultura interna à pessoa jurídica um ambiente de ética coletiva e de respeito pela legalidade de sua atividade (HEINE, 1995, p. 304). 36 O objetivo principal deste conjunto de medidas seria “combater e superar as fontes delituosas presentes na estruturação de uma determinada pessoa jurídica”. 37 Há ainda quem proponha como sanção a submissão da pessoa jurídica a regimes temporários de intervenção ou curatela (EHRHARDT, 1994, p. 128; SCHÜNEMANN, 2008, p. 446-447), exercida por um órgão estatal ou por uma agremiação especializada. Tal curatela, primeiramente, teria como vantagem frente ao simples fechamento da empresa o fato de que, por meio dela, estariam garantidos os empregos exercidos na organização, as atividades por ela exercidas, bem como as prestações referentes aos contratos por ela firmados (SCHÜNEMANN, 1979, p. 129 e seguintes). Esta forma de intervenção temporária teria como objetivo precípuo superar as falhas e os defeitos de organização e de gestão que, eventualmente, podem ter levado a pessoa jurídica a se tornar um ambiente propício à prática delituosa (SCHUNEMANN, 2004, p. 446). A expectativa dos autores que sustentam a proposta é a de que problemas políticocriminais que a simples imposição de uma multa não pode superar encontrariam, então, um tratamento apropriado (SCHÜNEMANN, 2008, p. 446). Além disso, sustentam que tal forma de sanção seria dotada não apenas de uma, mas sim de duas diferentes modalidades de efeitos preventivos: por um lado, o efeito especialpreventivo, que faz com que a pessoa jurídica em questão seja de tal forma reestruturada que se torne mais difícil de ocorrerem delitos em seu âmbito; por outro lado, ainda, tal curatela poderia ser publicizada 38 e assim ter o efeito de dissuadir outras empresas, por temerem que sua reputação seja afetada (prevenção geral). Com vistas a influenciar a regularidade da atividade da pessoa jurídica que já cometeu práticas delitivas, propõe-se a realização de auditorias e a submissão de seus produtos a testes específicos de qualidade, principalmente nos casos de 36 Esta tendência seria verificável, por exemplo, nos Estados Unidos. Analisamos com maior atenção a importância dos Programas de Compliance no relatório final desta pesquisa. 37 Para tanto, cita-se a possibilidade intervenção de especialistas, cujo aconselhamento e cujas diretrizes podem, por um lado, identificar na estrutura da organização falhas e dificuldades internas de comunicação e informação. EHRHADT, 1994, p. 129 e 169. 38 Uma sugestão citada por Schünemann consiste na marcação, com a inscrição “sob curatela”, dos produtos da empresa sancionada, o que deveria, por si, atingir fortemente a imagem do ente coletivo frente a seus consumidores. Cf. SCHÜNEMANN, 2008, p. 447. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 48 pessoas jurídicas responsabilizadas por produção ou comercialização de produtos defeituosos (DANNECKER, 2001, p. 128). A sanção de intervenção (ou submissão a regime de curatela estatal), no entanto, apresenta uma série de problemas, que devem ser considerados, sob pena de resultar contraproducente. Como se sabe, a intervenção estatal no domínio de empresas privadas ocorre apenas em situações bastante excepcionais: o Banco Central do Brasil pode intervir em instituições financeiras em casos de alto risco de liquidez e solvência da instituição. Do mesmo modo, pode a SUSEP intervir em seguradoras no Brasil, sob condições análogas. Tal intervenção tem sua justificativa numa circunstância que é absolutamente peculiar à natureza da atividade das empresas a ela sujeitas, que é o risco sistêmico ocasionado por sua insolvência e o fato de já seu funcionamento regular estar sujeito à regulação e permanente fiscalização das entidades competentes para a eventual intervenção. Além disso, os agentes do Banco Central e da SUSEP em tese encontram-se suficientemente familiarizados com o objeto exercido pelas instituições nas quais venham a atuar como interventores, o que os habilita para o desempenho de tal função. Tradicionalmente, a intervenção só ocorre realmente em situações préfalimentares. Note-se que nenhuma das circunstâncias que justificam a intervenção de agentes estatais em instituições reguladas aplica-se ou pode ser estendida ao caso de ilícito cometido no âmbito de empresas. Há razões para se questionar propostas desse tipo: (i) a sociedade como um todo arcaria com os custos da intervenção numa empresa, apenas pelo fato de que esta cometeu ilícitos associados ao desempenho de sua atividade; (ii) nem sempre se pode atender à expectativa de que um interventor estatal possa ter expertise para compreender com a profundidade necessária quais são os fatores que garantem que a atividade das empresas de todos e quaisquer ramos e portes sejam economicamente viáveis, expurgada a prática de ilícitos; (iii) a intervenção não afasta o risco de “captura”, que é o alinhamento do interventor ao agente do ilícito; (iv) a atividade do interventor é dificilmente monitorável; (v) atividade empresarial econômica lida fundamentalmente com riscos que os sócios, em última instância, estão dispostos a assumir; portanto, seria problemático que qualquer decisão de gestão possa ser influenciada por um agente externo, rompendo com a relação agente-principal entre sócios e gestores; e (vi) é Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 49 provável que a exposição de organizações a agentes externos encontre resistências internas (por parte do corpo funcional) consideráveis, o que faria com que fosse grande a chance de a intervenção ser inócua ou ocasionar o fenômeno de captura, já mencionado. Diante de tudo isso, fica claro que o problema da escolha do instrumento apto a lidar com os ilícitos praticados no âmbito das pessoas jurídicas não está encerrado. Se a pessoa jurídica deve ser responsabilizada, não está claro de que modo e por quais sanções. Como discutido, há uma série de possíveis sanções teoricamente imponíveis às pessoas jurídicas que muito provavelmente imporiam à sociedade um custo social superior ao potencial benefício. Incluem-se aí aquelas sanções que implicarem intervenção estatal na pessoa jurídica, suspensão ou extinção de suas atividades e multas excessivamente elevadas. Entre as várias modalidades de sanções expostas, as que parecem apresentar maior potencial de ganhos sociais dizem respeito à adoção de regras de compliance e publicização da condenação judicial. Como se pode perceber, estas modalidades de sanção, quando pensadas para serem impostas diretamente às pessoas jurídicas, fazem com que a esfera penal e outras esferas de regulação (como a administrativa e a civil) se aproximem consideravelmente. Por isso, a discussão acerca das sanções impostas às pessoas jurídicas não vincula o modelo de responsabilização à esfera penal. Dessa forma, a discussão sobre as sanções aqui esboçada deve se dar sob o pano de fundo das alternativas regulatórias a esse sistema (i.e. as responsabilidades administrativa e civil). II.3. Tranformação e união de pessoas jurídicas O fato de as pessoas jurídicas não terem uma base biológica como as pessoas físicas faz com que tenham certas peculiaridades, as quais precisam ser consideradas quando da regulação de sua responsabilidade, seja ela penal, administrativa ou civil. Diferentemente dos indivíduos (pessoas físicas) as pessoas jurídicas podem transformar-se, passando por modificações do seu contrato social ou estatuto, bem como Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 50 cindir-se, fundir-se, incorporar ou ser incorporadas por outras. Trata-se de situações em que a identidade da pessoa jurídica original é afetada. Nos casos de responsabilidade civil, tendo em vista que a sanção consiste em um débito (o qual é em princípio transferível), a possibilidade de adaptação da responsabilidade às transformações da pessoa jurídica é relativamente simples do ponto de vista jurídico-dogmático. Já no âmbito da responsabilidade penal, no entanto, o princípio de que a pena não deve ultrapassar a pessoa do condenado – talhado para lidar com indivíduos – tende a constituir um obstáculo jurídico-dogmático para tratar com as pessoas jurídicas nessas situações. Diante disso, existe o risco de que a aplicação da lei penal à pessoa jurídica seja elidida – inclusive por ma fé – diante do desaparecimento da pessoa jurídica no âmbito da qual se praticou o ato delituoso ou da sua transformação em pessoa diversa – o que ocorre em casos de incorporação, fusão, cisão e transformação de tipo societário. A ocorrência de um desses fenômenos, tão comuns na prática empresarial, impõe sérias dificuldades para a aplicação do regime de responsabilização por atos praticados no cenário anterior. Devem, a nosso ver, ser levados em consideração quando da formulação da regulamentação sobre responsabilização, sob pena de torná-lo inefetivo. Além das possibilidades de transformação da pessoa jurídica, é preciso levar em conta ainda que pessoas jurídicas podem unir-se por vários meios para criar organizações mais complexas, não personificadas. Também essa situação é relevante do ponto de vista da imputação penal. Em primeiro lugar, trata-se de fenômenos associativos que, sem configurar pessoa jurídica autônoma, constituem organizações relevantes do ponto de vista da política criminal, tanto por constituir ambiente no qual, justamente, tendem a surgir as situações para as quais o direito penal tradicional – focado na responsabilidade individual – se mostra inadequado, como também por constituir uma possível forma de evasão da incidência da responsabilidade penal por parte das pessoas jurídicas. Especialmente se o foco da regulação penal forem os aspectos viciados das organizações, a eficácia da intervenção penal pode depender de sua aplicação ao conjunto de pessoas jurídicas que atuam unidas. Além disso, tendo em vista que as pessoas jurídicas podem ser criadas livremente e que o poder de controle de uma pessoa jurídica pode em realidade ser detido por outra pessoa jurídica, existe a possibilidade de utilização de pessoas jurídicas controladas como meio de praticar ilícitos em favor da sociedade controladora. Existe Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 51 mesmo a possibilidade de criação de pessoas jurídicas controladas especificamente para esse fim. Diante disso, é necessário que a lei penal leve em conta os fenômenos associativos não personificados (grupos societários e consórcios) na regulação dos ilícitos das pessoas jurídicas. II.4. Algumas questões processuais penais relativas à figuração da pessoa jurídica no pólo passivo de ações penais A despeito da regulamentação constitucional, ao editar Lei de Crimes Ambientais o legislador infraconstitucional deixou de estabelecer mecanismos e procedimentos adequados para a aplicação da responsabilização penal da pessoa jurídica.39 Alguns dos problemas decorrentes dessa lacuna legislativa foram identificados na análise das decisões judiciais dos Tribunais Regionais Federais e Superior Tribunal de Justiça. Como vimos, parte dos casos que chegam aos Tribunais envolve justamente questionamentos sobre a aplicabilidade das regras processuais tradicionais e pouquíssimos logram chegar à análise de mérito. Tal dado indica a urgência de uma reflexão também no campo processual penal, sob pena de tornarem inócuos todos os esforços de se construir um sistema de responsabilização adequado e eficiente. Embora a aplicação do instituto possa se dar imediatamente a partir das regras processuais penais vigentes, complementadas subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, considerando o permissivo do artigo 3º do Código de Processo Penal, uma série de questões ficam ainda em aberto, as quais passaremos a mencionar apenas exemplificativamente. Os problemas relativos à ação penal em face da pessoa jurídica começam já na citação, na definição de quem deve receber em seu nome o mandado de citação, estendendo-se à falta de previsão na legislação penal sobre a representação da pessoa jurídica durante a persecução penal. Em ambos os casos, é possível encontrar soluções 39 No que diz respeito à matéria processual, a regulamentação trazida pela Lei n.º 9.605/98 resume-se a três artigos, quais sejam: art. 26 – Trata-se da ação penal, dispondo que sempre será pública incondicionada, em relação às infrações elencadas no próprio texto; art. 27 – Aborda a aplicação da Lei n.º 9.099/95, sempre que os crimes ambientais sejam de menor potencial ofensivo, relativamente à conciliação cível e à transação penal; art. 28- disciplina a incidência do art. 89 da Lei n.º 9.099/95, em se tratando de crimes de menor potencial ofensivo. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 52 utilizando regras processuais gerais já existentes40, mas mesmo assim há questões que ficam sem definição. Por exemplo, a evasão do representante legal da empresa após a realização da citação implica revelia também da pessoa jurídica? Quando o representante legal da pessoa jurídica for denunciado como co-réu, a confusão entre o réu pessoa física e o réu pessoa jurídica não acarretaria conflito de interesses ou cerceamento de defesa de ambos?41 Outra questão problemática a ser considerada é a vinculação de diversos instrumentos processuais e prazos à pena restritiva de liberdade. A fixação de alguns benefícios - como a suspensão condicional do processo, a transação penal e a suspensão condicional da pena - e a determinação de prazos prescricionais são exemplos de institutos processuais penais cujas regras de aplicação dependem necessariamente da pena de prisão cominada em lei, fixada em número de anos. O fato de a pena das pessoas jurídicas não poder ser fixada temporalmente gera uma lacuna legislativa e, conseqüentemente, incertezas com relação à aplicação de tais institutos. As medidas cautelares que visam à proteção da persecução penal e a garantia do fim útil do processo têm como parâmetro a pessoa física. Caberia, portanto, refletir sobre a conveniência de se regular a aplicação de medidas cautelares também às pessoas jurídicas, em casos em que haja necessidade de se evitar que esta atue de forma a impedir ou dificultar a investigação ou a futura execução da pena, que cometa novos ilícitos ou prejudique terceiros. Um leque de possibilidades se abre na discussão sobre restrições cautelares. Podemos mencionar, a título de exemplo, possíveis medidas ligadas à proibição temporária de atuar em local específico ou comercializar determinado produto, de realizar alterações no contrato social, de liquidar o patrimônio ou alienar bens de produção durante o processo, de participar de licitações ou ainda a suspensão temporária dos contratos com o poder público. Com relação às medidas assecuratórias existentes na legislação processual penal brasileira com o objetivo de garantir o ressarcimento da vítima, a execução da pena e/ou o perdimento dos objetos e frutos do crime - o seqüestro, o arresto e a hipoteca legal 40 ESTELITTA (2008, p. 225) faz referência ao art. 37 do CPP, que lista as pessoas legitimadas para exercer a ação penal em nome da pessoa jurídica, e que estaria em harmonia com o art. 12 do CPC, fonte subsidiária no procedimento penal. GRINOVER (2004, p. 09), com relação à representação afirma que não haveria grandes problemas, uma vez que é possível importar a regulamentação do artigo 12, incisos VI e VIII, CPC. 41 ESTELITTA (2008, p. 229) indica a possibilidade de ser interessante à pessoa jurídica demonstrar que o representante-acusado agiu de forma contrária à determinação do órgão colegiado. No entanto, caso o co-réu pessoa física seja chamado como representante da pessoa jurídica durante o interrogatório, haveria uma diminuição na capacidade defensiva da pessoa jurídica diante do claro conflito de interesses. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 53 não há a princípio problemas processuais em sua aplicação à pessoa jurídica que figurar no pólo passivo. Questão que possivelmente surge nesses casos refere-se à possibilidade de o juiz criminal desconsiderar a personalidade jurídica e decretar uma dessas medidas contra bens de sócios, representantes e administradores da pessoa jurídica quando houver indícios de desvios ou fraudes, hipóteses trazidas pelo art. 4º da Lei n.º 9.605/98. De acordo com a legislação vigente isso não seria possível, dada a ausência de previsão legal para tanto. Com relação à execução da pena imposta à pessoa jurídica, uma vez que não existe norma penal que a regule especificamente, deverá ser aplicada a Lei de Execuções Penais (Lei n.º 7.210/1984), que trata da execução das penas para pessoas físicas. Entretanto, as peculiaridades da pessoa jurídica podem fazer com que as regras de execução atual se tornem inócuas. Para mencionar algumas das questões em aberto: i) após o trânsito em julgado da condenação, nada impede que a pessoa jurídica condenada seja liquidada – de forma fraudulenta ou não – e as pessoas físicas por ela responsáveis criem nova pessoa jurídica para atuar no mesmo ramo que a anterior; ao mesmo tempo, como obrigar o empresário a manter em funcionamento uma empresa somente para que fosse possível executar uma pena? ii) o quantum da pena, principalmente nas penas de multa e restritivas de direito que envolvam pecúnia, deveria ser calculado de forma apurada, de modo que não inviabilize a continuidade da pessoa jurídica, caso contrário seus efeitos em longo prazo seriam semelhantes à suspensão definitiva das atividades. Nestes casos, seria possível ao juiz da execução redefinir valores para as penas quando a condição financeira da empresa fosse alterada para pior? iii) como proceder em caso de falência ou recuperação judicial da pessoa jurídica condenada? Qual a preferência da execução da pena sobre os outros credores? Quem representaria o poder público na assembléia de credores? Por fim, mencione-se que no levantamento jurisprudencial realizado no âmbito dos TRFs e STJ foi possível perceber o entendimento majoritário dos juízes defendendo a imputação necessária de co-réu pessoa física em qualquer procedimento penal com pessoa jurídica no pólo passivo. No entanto, a adoção deste entendimento levanta uma série de questionamentos. Por exemplo: i) devem ser denunciados, como co-réu pessoa física, os representantes legais ou diretores que atuavam no momento do cometimento Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 54 do crime42 ou aqueles que exercem a função no momento da denúncia? Caso a opção seja pelo segundo grupo, como continuaria o processo caso houvesse substituição do controle ou do corpo diretivo da pessoa jurídica durante a persecução penal? ii) extinta a punibilidade da pessoa física, também deve ser extinta a da pessoa jurídica? Se, por exemplo, ocorre a morte do co-réu pessoa física durante o processo, o processo contra a pessoa jurídica deve continuar ou deve este ser extinto? iii) citada a pessoa física por edital e esta não comparecendo nem constituindo advogado, também deve ser suspenso o processo contra a pessoa jurídica ou o processo pode ser cindido? iv) caso o co-réu pessoa física aceite a proposta de transação ou suspensão condicional do processo, o que deve ser feito com o processo contra a pessoa jurídica, uma vez que nenhum dos dois institutos resulta em assunção de culpa pelo aceitante? A aceitação de um destes institutos pelo co-réu pessoa física geraria a ilegitimidade passiva da pessoa jurídica? v) se a pessoa jurídica for condenada e houver o trânsito em julgado da decisão, caso o coréu seja absolvido em sede de apelação ou tenha extinta sua punibilidade, deverá ser revista de ofício a pena contra a pessoa jurídica? Diante destes problemas, sugere-se, caso a escolha legislativa seja pela imputação necessária de co-réu, esclarecer quem deve atuar como co-réu necessário e os limites desta relação de obrigatoriedade. Estes são exemplos dos problemas que podem surgir no processamento de ações penais em face de pessoas jurídicas. Um aprofundamento da discussão acerca da criação de regras processuais penais específicas nos parece imprescindível para oferecer segurança jurídica e garantir efetividade na aplicação do instituto. II.5. Alternativas à responsabilidade penal Embora este trabalho esteja estruturado em torno da responsabilidade penal de pessoas jurídicas, não se deve extrair a conclusão de que acreditamos ser a responsabilidade penal a única ou melhor forma de lidar com os mais recentes fenômenos de infrações cometidas no âmbito das pessoas jurídicas. 42 E ao considerar que o crime seja continuado, seria necessário que todos os representantes legais que tenham exercido esta função durante o período do cometimento do crime sejam denunciados juntamente com a pessoa jurídica? Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 55 Ao contrário, é importante ponderar que, muito embora o debate público esteja centrado na responsabilização penal, a necessidade de criação de uma política pública de responsabilização de pessoas jurídicas não pressupõe que isso deva ser feito por meio do sistema de direito criminal. A doutrina dominante costuma pensar a responsabilidade em cada um dos ramos como algo absolutamente independente, isto é, como fenômenos naturalmente distintos (PIRES, 1998, p. 12). Com isso, o que se verifica usualmente é uma compartimentalização da reflexão jurídica, que se torna isolada em cada uma das áreas jurídico-dogmáticas já existentes. Entretanto, para poder superar tal problema e abrir espaço para a criatividade na reflexão sobre a regulação de ilícitos praticados no âmbito de coletividades, acreditamos ser importante afastar a idéia de que existam diferenças ontológicas entre os ilícitos de cada uma das esferas. Isso não significa obscurecer as especificidades de cada área, mas apenas evidenciar que aquilo que muda de caso para caso são as regras de imputação, isto é, os critérios para se estabelecer quando determinado fato deverá – e quando não deverá – ser atribuído a alguém como resultado de ação ou omissão sua. Com relação a isso, não só se diferenciam, por exemplo, as responsabilidades penal e civil, mas também os vários casos de responsabilidade dentro de cada um desses ramos: a responsabilização civil de um particular obedece a critérios diversos da responsabilização civil de um fornecedor de produtos ou serviços, por exemplo. Tendo isso em mente, acreditamos que um estudo profícuo sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica deve necessariamente partir do pressuposto de que esta é uma entre tantas outras possibilidades de desenho institucional de responsabilização e, portanto, apenas é possível considerá-la como um mecanismo satisfatório se as suas vantagens e desvantagens em relação a outras esferas do Direito forem cuidadosamente ponderadas. Para que este juízo seja feito de forma consistente, dois passos fundamentais foram tomados em nossa pesquisa. Em primeiro lugar, realizamos pesquisa empírica que buscou averiguar o potencial dissuasório das sanções aplicadas por distintos ramos do nosso ordenamento. Os resultados a que chegamos, ainda que com limites para generalizações, nos permite fazer algumas inferências sobre o comportamento dos agentes econômicos diante da possibilidade de incidência de mecanismos sancionatórios de diferentes tipos. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 56 Em seguida, traçamos um quadro geral comparativo entre as regras de imputação de cada uma das esferas do Direito que poderiam regular este tipo de situação, de forma a verificar, com base em seus diferentes procedimentos e requisitos internos de responsabilização, quais são os pontos fundamentais a serem observados pelos formuladores de políticas públicas quando da escolha do melhor desenho regulatório para os problemas em questão. É preciso alertar o leitor que, por não se tratar do escopo desta pesquisa, limitamo-nos a indicar as linhas mais gerais que caracterizam as distinções entre o direito civil e o administrativo em relação ao penal, sendo certo, contudo, que um estudo aprofundado sobre a relação entre esses sistemas no Direito brasileiro, embora fundamental quando se trata de discutir distintas estratégias de regulação, é um empreendimento jurídico-dogmático que está ainda por fazer. II.5.i. Pesquisa empírica: o potencial dissuasório das sanções atualmente vigentes no ordenamento jurídico brasileiro Buscamos verificar nesse estudo empírico se a ameaça da sanção penal, tal como percebida pelo agente potencial, é mais intensa do que sanções não penais que se impõem sobre condutas substancialmente semelhantes à que recebe a sanção penal. Ao enfocarmos as escolhas do agente potencial, propomos uma reflexão em linha com a teoria de incentivos utilizada pela Law and Economics. Não foi objetivo do estudo oferecer um modelo concreto e passível de juízo de eficiência a respeito de qual deva ser a norma mais adequada para solucionar o problema dos ilícitos praticados no âmbito da atividade das pessoas jurídicas. Não obstante, acreditamos que os dados colhidos referentes às preferências do agente potencial são úteis para avaliarmos a eficácia da aplicação das normas penais em vigor, assim como para pensarmos as possíveis conseqüências associadas a determinados modelos de responsabilização. Dado que à pessoa jurídica não é passível a aplicação da pena privativa de liberdade, e considerando que sanções dirigidas à suspensão das atividades das pessoas jurídicas podem gerar custos sociais indesejáveis, as seguintes questões devem ser enfrentadas: (i) é conveniente que a sanção aplicável à pessoa jurídica se dê como perda reputacional? (ii) a sanção penal implica perda reputacional superior àquela imposta pela sanção civil?; (iii) será que as próprias pessoas jurídicas prefeririam um sistema Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 57 que as responsabilizasse penalmente por ilícitos praticados no seu âmbito no lugar da responsabilização penal de pessoas naturais? O experimento empírico que passaremos a expor nos permitiu ao menos nos aproximar de alguns aspectos que estas questões encerram. A situação-problema utilizada é a seguinte. Considerando empresas que, por quaisquer razões, tenham optado por deixar de pagar credores num determinado período de tempo, sendo que: (i) o conjunto de credores é composto por particulares e pelo INSS (credor da contribuição devida quanto à parcela do empregado); (ii) o inadimplemento ao INSS é caracterizado como apropriação indébita, sujeita à sanção penal; (iii) a empresa deve fazer escolha por prioridade em relação a quais de seus credores serão pagos e quais não serão pagos; (iv) um dos credores não-pagos é o INSS, pela contribuição devida quanto à parcela do empregado; pergunta-se: qual é o regime de prioridades usualmente feito por empresas em tais condições? Se constatarmos que os agentes usualmente preferem pagar outros credores a pagar o INSS, então em princípio podemos concluir que a sanção penal aplicável ao agente condenado por apropriação indébita tem baixo potencial de dissuasão em relação a outras sanções. A pesquisa foi desenvolvida mediante coleta de dados quantitativos e dados qualitativos: (i) quantitativo: informações referentes ao período de 1988 e 2008 extraídas de processos judiciais relativos a 50 (cinqüenta) empresas acusadas de apropriação indébita por não-recolhimento do pagamento de INSS-empregado, e que no mesmo período foram acionadas por outros credores; (ii) qualitativo: entrevistas com 10 (dez) advogados de três especialidades diversas que trabalham em escritórios de advocacia de primeira linha em São Paulo, com um membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e com um Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Considerando a limitação de representatividade da amostra, não podemos generalizar os perfis de priorização observados para o universo de empresas brasileiras que passam pelo mesmo dilema objeto do estudo. A pesquisa realizada não permite inferir se uma eventual imposição de sanção penal a pessoas jurídicas implicaria custo maior ou menor à sua reputação do que aquele decorrente de sanções de outras naturezas que podem recair sobre a pessoa jurídica. Não obstante, os dados obtidos pela pesquisa permitem inferências e oferecem algumas hipóteses que merecem ser exploradas em futuras pesquisas. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 58 A partir da pesquisa quantitativa, constatamos que a esmagadora maioria das empresas prefere situar seja o INSS-empregado, seja o Fisco, no topo das preferências negativas (último lugar de pagamento). O topo das preferências positivas para pagamento do Grupo Outros Credores-Particulares aparece em qualquer cenário. Ou seja, a maioria das empresas da amostra opta por preservar ao máximo seus credores particulares e por preterir o Fisco e o INSS, quanto à contribuição pelo empregado. Um ponto relevante é a hipótese de inversão de prioridades, que parece plausível tendo-se em vista que, em algum momento, a grande maioria das empresas da amostra aparentemente quita o INSS-empregado, mas acaba sofrendo ações de execução, cobrança ou possessórias por parte do Grupo Outros Credores-Particulares após o período de quitação do INSS. Então a pergunta é: por que a empresa inadimplente acaba quitando? Uma hipótese plausível é a ocorrência de pagamento para suspender a pretensão punitiva ou para extinguir a punibilidade pelo crime de apropriação indébita, possibilidades oferecidas pela legislação aplicável. Os empresários esperariam até a última oportunidade possível para pagarem o INSS-empregado e então evitar a responsibilização penal. A parte qualitativa oferece uma leitura interessante para os dados quantitativos. Até onde pudemos constatar por meio das entrevistas, prevalece opinião no sentido de que gestores e funcionários de empresas não teriam motivos para se opor à responsabilização penal da pessoa jurídica. Os que manifestam essa visão sugerem que as sanções penais às pessoas naturais são por estas percebidas como produtoras de danos à sua reputação em grau maior do que o de outras sanções a pessoas naturais ou sanções a pessoas jurídicas. Para as empresas que enfrentam o dilema colocado no estudo, auto-confiança e custo reputacional do gestor podem exercer impacto relevante. Se o custo reputacional associado à apropriação indébita for alto para o gestor da empresa (independentemente de condenação), então é mais provável que o gestor tenha como topo de suas prioridades positivas manter a empresa adimplente com o INSS. O que se pode afirmar é que, para a amostra considerada, esse custo reputacional é muito baixo. Prevalece a auto-confiança do gestor em sua capacidade de gerir o fluxo de caixa da empresa e pagar o INSS apenas no momento da ameaça crível, que é o da incidência de responsabilidade penal, o que acarretaria a extinção (ou suspensão) da punibilidade penal. Se a ameaça de sanção penal à pessoa natural não chega a inibir os gestores de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 59 empresas, não haveria razão para depositar altas expectativas quanto ao potencial intimidatório da aplicação de sanção penal a pessoas jurídicas. Dentre o leque de sanções aplicáveis em caso de prática de ilícito no âmbito da pessoa jurídica, é importante considerar múltiplas alternativas de sanções à própria pessoa jurídica. Mas tais sanções dificilmente substituem o poder intimidatório da sanção penal de reclusão para o gestor da empresa. Esta parece constituir a ameaça crível que engaja uma decisão da gestão da empresa. Faria mais sentido considerar um pacote de sanções à pessoa natural e à pessoa jurídica, sendo que as primeiras, pelas informações que colhemos a partir dos dados qualitativos, parecem a princípio mais promissoras em termos de desempenho da função intimidatória. As segundas não necessariamente devem ser sanções penais, salvo se lhes for atribuída função retributiva ou por algum imperativo prático em termos de reunião de provas a respeito do cometimento do ilícito. A análise não estaria, porém, completa sem que algumas nuances fossem apresentadas. As entrevistas revelam que o que os entrevistados identificam com “ter problema na esfera penal” não é necessariamente a pena privativa de liberdade, porém todo o constrangimento de ter que tomar contato com o sistema de justiça criminal, “ter ficha”, perder a primariedade etc.. Isso é algo importante a ser destacado, especialmente levando em conta que a pessoa jurídica não pode ser alvo de pena privativa de liberdade. Assim, em que pese a sanção penal realmente desempenhar um papel importante na tomada de decisão, não se pode afirmar que apenas aquela privativa de liberdade teria esse efeito. Em sendo a apropriação indébita delito passível de ter sua pena substituída por restritiva de direitos (vide artigos 44 e seguintes do Código penal), pode-se afirmar que os empresários temem a sanção penal ainda que saibam que a chance de serem efetivamente presos é remota. O cruzamento do que seja “problema no penal” com as sanções concretamente impostas nos permitem concluir que há um temor de uma resposta do sistema de justiça criminal com traços infamantes (perder a primariedade, ter ficha, comparecer a Delegacia de Polícia), sem que isso implique forçosamente em prisão. Ou seja, ao que parece, há um elemento simbólico ou reputacional sendo considerado no momento em que se considera a atuação da esfera penal. Um estudo que pretenda ponderar as vantagens e desvantagens da responsabilidade penal da pessoa jurídica deve, portanto, levar em conta este tipo de dado empírico. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 60 II.5.ii. Alternativas à responsabilidade penal: responsabilidade a administrativa As tentativas tradicionais de justificar a escolha pela intervenção da esfera administrativa ou penal para lidar com certa constelação de casos estiveram ligadas à busca de uma diferença constitutiva ou “de natureza” entre ilícitos administrativos e penais. Tais esforços estão ainda presentes no debate dogmático e têm, contudo, cada vez mais dificuldade em explicar a conformação do que atualmente vem sendo regulado por cada uma dessas áreas. Isso porque, em primeiro lugar, não justificam o fato de, na maior parte dos casos, a mesma conduta sofrer regulação de ambos os campos. Além disso, algumas distinções não resistem ao progressivo movimento do Direito penal de se aproximar do que antes era tido como o escopo e o modus operandi do Direito administrativo: intervir antes do dano, proibir condutas que não geram resultados, a fim de gerir riscos em determinado setor de regulação. (e.g. crimes de perigo abstrato ou incriminações que visam evitar condutas que apenas cumulativamente poderiam tornarse arriscadas)43. Neste momento em que diferenças ontológicas apresentam-se insustentáveis e distinções com base em funções pré-atribuídas a cada esfera também apresentam zonas de obscuridade, preferimos não insistir em tentar traçar distinções normativas entre ambas as áreas. Trabalhamos com as distinções de funcionamento que ainda se podem identificar como características de uma ou outra área. Ainda assim, é preciso considerar que a forma de funcionar, bem como os instrumentos que estão à disposição de cada esfera para intervir em um determinado conflito são também características que podem ser alteradas no âmbito de uma rediscussão de definição de políticas públicas. Além disso, um estudo aprofundado comparando o funcionamento dos sistemas penal e administrativo dependeria de uma análise específica em relação a cada área de regulação. Isso porque, embora haja uma lei federal conferindo alguma unidade aos processos administrativos federais (Lei n.º 9.784/99), há uma difusão de regimes jurídicos sobre a responsabilização administrativa, que se acentua na esfera regulamentar, por meio do exercício do poder normativo de agências reguladoras. Assim, tendo em vista que o presente estudo não está vinculado à regulação de um campo ou um conflito específico, nem tinha como escopo se aprofundar nesta 43 Silvia Sánchez chegou a denominar esse movimento de “administrativização do direito penal”. Cf. SILVA-SÁNCHEZ, 2006, p. 131-136. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 61 comparação, limitamo-nos a apontar elementos gerais e que nos parecem importantes de serem considerados para subsidiar a reflexão sobre as vantagens e desvantagens de regulamentar este tema por meio do direito administrativo somente, por meio do Direito penal ou por ambos simultaneamente. Com relação à forma de funcionamento de cada um desses ramos, podemos destacar algumas distinções em termos de procedimento aplicável; garantias; autoridade competente; instrumentos de produção de prova e medidas cautelares; critérios de imputação; sanções e seu potencial simbólico na comunicação social. No que diz respeito ao tipo de sanção aplicada, a distinção tradicionalmente feita entre as duas áreas tem por base a pena de privação de liberdade, que, de acordo com a forma tradicional de definir o Direito penal, o caracterizaria. Entretanto, no caso de pessoas jurídicas, estamos em um campo em que não há qualquer distinção entre os tipos de sanções que podem ser aplicadas pela esfera administrativa e pela esfera penal. Tendo em vista a impossibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade a pessoas jurídicas, os instrumentos sancionatórios que ambas as esferas têm disponíveis são, como vimos, rigorosamente os mesmos – penas de multa, restrição de direitos, limitação de atividades, submissão a controles especiais etc. Argumenta-se, nesse ponto, que haveria uma distinção em termos de força simbólica entre cada uma delas, mais especificamente que a eficácia preventiva da sanção administrativa seria “sem dúvida menor” (SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 364). Esse parece ser um ponto relevante de distinção. Como indicamos acima na apresentação do estudo empírico realizado sobre o potencial dissuasório de sanções, a idéia de evitar qualquer envolvimento com a esfera penal, independentemente da privação de liberdade é algo mencionado por diversos dos atores entrevistados. Entretanto, não nos parece que esse deva ser considerado como um dado fixo. Ou seja, não nos parece correto afirmar, a priori, a falta de impacto simbólico das sanções administrativas. Na medida em que o significado das manifestações das instituições formais encarregadas de aplicar o Direito, bem como o das sanções por elas determinadas, passam por um processo social de atribuição de sentido, não nos parece possível desde logo desprezar a possibilidade de as decisões proferidas pela Administração Pública alcançarem impacto simbólico-preventivo. Como exemplos desse fenômeno, podemos mencionar o respeito e o efeito simbólico que têm atualmente os pronunciamentos de dois órgãos da esfera administrativa: a CVM e o CADE. O que queremos com isso dizer é que o potencial simbólico é contingente e depende de uma Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 62 série de circunstâncias sociais, podendo, portanto, ser construído também quando se tem em mãos a possibilidade de responsabilização administrativa. Assim, é possível relativizar esse fator ou pelo menos pensá-lo como contingente. Com relação às diferenças que freqüentemente são traçadas em termos de requisitos e critérios de imputação, temos que o Direito penal, em seu modelo tradicional, estaria vinculado à imputação de culpa individual, enquanto o Direito administrativo teria mais flexibilidade de levar em consideração outros critérios para imputar. Segundo ADÁN NIETO, por meio deste ramo, tratar-se-ia de chegar à responsabilidade não por meio da culpabilidade, mas por meio da capacidade de suportar a sanção. Aproximar-se-ia, de acordo com esse autor, mais da responsabilidade civil do que da penal (NIETO MARTÍN, 2008). Por este motivo, na esfera administrativa não se enfrenta, a princípio, qualquer dificuldade em imputar responsabilidade a pessoas jurídicas. Entretanto, ainda que os limites impostos pelos conceitos tradicionais da dogmática penal estruturados a partir da reprovação imposta ao indivíduo tenham um forte peso no debate dogmático e efetivamente venha influenciando decisões políticolegislativas, não nos parece possível naturalizá-los como se fossem definitórios da forma de funcionar do direito penal. Desse modo, não excluiriam a priori a possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica por meio dessa esfera, a partir da articulação de outros critérios de imputação. Com efeito, vimos que o debate contemporâneo em sede de dogmática penal vem se distanciando das definições ontológicas dos conceitos e, a partir de pressupostos normativos, abrindo espaço para uma discussão mais ampla sobre os critérios de imputação. Além disso, como apontamos, há esforços consistentes voltados à criação de modelos de responsabilidade para pessoas jurídicas, não se justificando, desse modo, que a definição dos critérios de imputação amarre o modelo de imputação a uma esfera específica de atuação do Direito. Se as distinções entre as sanções e seus efeitos e critérios de imputação mostram-se mais relativizáveis, devem ainda ser consideradas questões relativas à institucionalização da forma de intervenção de cada uma das esferas. É nesse campo que se colocam alguns pontos que nos parecem ter um impacto considerável na conformação do modelo de responsabilização: como cada uma das esferas é capaz de lidar, de um lado, com a especialização requerida da autoridade judicante para atuar em determinados problemas e, de outro, com o equilíbrio entre garantias e eficiência. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 63 Uma das vantagens normalmente atribuída à esfera administrativa diz respeito à especialização dos agentes. Principalmente no campo da criminalidade econômica, a matéria tratada requer alta capacitação técnica dos funcionários responsáveis pelo seu processamento. Em relação à responsabilização de entes coletivos, uma série de questões específicas vem à tona, não apenas ligadas à matéria em questão (concorrência, tributação, mercado financeiro etc.), mas também relacionada à própria realidade da empresa. A imputação de responsabilidade a pessoas jurídicas pode envolver a cognição de questões ligadas, por exemplo, a um possível déficit organizativo da empresa, à compreensão de sua estrutura e de seus mecanismos de controle de ilícitos e, mais importante, à necessidade de dosar a medida da sanção e ao mesmo tempo alcançar um equilíbrio entre dano causado, potencial dissuasório, mas também a manutenção da sua viabilidade econômica. Ou seja, as especificidades do ator envolvido são tantas e de tal maneira decisivas para que o processo de responsabilização não só seja bem sucedido, mas também não agrave ainda mais os custos sociais do problema, que se pode considerar que estamos diante da necessidade de uma outra forma de especialização. A possibilidade de conformação de instituições especializadas é uma das características do Direito administrativo, o que não significa necessariamente que essa questão deva ser tratada nessa esfera. O ponto que, a nosso ver deve ser considerado, é que, ainda que se decida pela regulação da questão pela via do sistema penal, ter-se-ia que pensar sobre formas de colocar à disposição do juiz penal não só treinamento adequado, mas também auxílio técnico para melhor se aproximar da questão (por exemplo, perícias especializadas em avaliações econômicas, auditorias etc.). No que diz respeito à comparação propriamente dita entre os procedimentos, mostra-se central considerar os instrumentos que estão à disposição para investigar e produzir provas e os fatores que influenciam na celeridade e eficiência do procedimento, sempre em relação às garantias processuais presentes em cada um deles. Ao modelo de Direito Administrativo Sancionador costuma-se associar, além da vantagem da especialização, a da celeridade, com sacrifício de algumas garantias; ao Direito penal, a vantagem de maior rigidez em termos de garantias, com sacrifício da celeridade. O Direito penal, contudo, disporia de instrumentos processuais mais incisivos para a obtenção de provas, como a interceptação das comunicações telefônicas e as escutas ambientais. É de se considerar, entretanto, que o processo administrativo é também dotado de instrumentos de investigação e instrução, que se ampliam consideravelmente, sob a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 64 exigência apenas de que seja observada a necessidade de reserva de jurisdição. Quer dizer, medidas com impactos significativos na intimidade dos investigados são admitidas atualmente na esfera administrativa, desde que se efetive mediante ordem judicial, independentemente de ser o caso abrangido também pela lei penal44. Em alguns casos, contudo, esses mecanismos podem ser considerados insuficientes ou menos eficazes, como acontece nos casos em que as investigaçoes dependem de interceptação telefônica ou escutas ambientais, instrumentos exclusivos do sistema penal, segundo nosso ordenamento jurídico. Em contrapartida, o procedimento seria, a princípio, menos exigente no que diz respeito às garantias individuais e admitiria, portanto, mecanismos que não se admitem no processo penal. Esses instrumentos variam em relação às previsões de cada setor de regulação, mas a título de ilustração, citamos a possibilidade de requisitar informações e documentos aos investigados sob pena de multa; realizar inspeções e celebrar acordo de leniência. Evidente que o processo administrativo também tem previsões de forma e de garantias processuais, como o contraditório e a ampla defesa, constitucionalmente assegurados (CF, art.5º, LV). Além disso, previstos no art. 2º da Lei n.º 9.784/99, os princípios que regem o procedimento administrativo são: legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório e segurança jurídica. Entretanto, trata-se de um instrumento a princípio dotado de maior flexibilidade que o procedimento penal, principalmente porque, ao lado desses princípios que citamos acima, rege-se também pelos princípios do interesse público e da eficiência. 44 Segundo o STF, em jurisprudência que se desenvolveu a partir do tema dos poderes de investigação das CPIs, algumas matérias estão compreendidas pela reserva de jurisdição, quais sejam: inviabilidade domiciliar (art. 5, inc. XI), interceptação das comunicações telefônicas (art. 5, inc. XII) e decretação de prisão (art. 5, inc. LXI). Em comum, a redação dos respectivos preceitos constitucionais indicaria que apenas o juiz detém competência para restringir tais direitos. Em recente manifestação acerca dos limites ao exercício do poder de fiscalização pelo Banco Central, a maioria do STF entendeu pela impossibilidade de haver quebra do sigilo bancário dos correntistas pela atuação fiscalizatória do BACEN (RE 461.366-2). Com relação à busca e apreensão, o STF suspendeu liminarmente o art. 19, inc. XV, da LGT que conferia à Anatel competência para realizar busca e apreensão de bens (ADI 1.668). Segundo o Min. Marco Aurélio (relator), "se de um lado à Agência cabe a fiscalização da prestação dos serviços, de outro não se pode compreender, nela, a realização de busca e apreensão de bens de terceiros. A legitimidade diz respeito à provocação mediante o processo próprio, buscando-se alcançar, no âmbito do Judiciário, a ordem para que ocorra o ato de constrição, que é o de apreensão de bens. O dispositivo acaba por criar, no campo da administração, figura que, em face das repercussões pertinentes, há de ser sopesada por órgão independente e, portanto, pelo Estado-juiz". Dessa forma, essas medidas são cabíveis no âmbito do processo administrativo, desde que previamente autorizadas pelo Judiciário. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 65 Essa distinção em termos de garantias vem sendo questionada recentemente. De um lado, temos posições como a de Silva Sánchez, que compreende a exigência de garantias mais rígidas como contrapartida à gravidade da pena de prisão. Ou seja, a rigidez das garantias formais do processo penal não corresponderia a uma inspiração ontológica do sistema, tendo-se firmado, na verdade, apenas como um contrapeso ao extraordinário rigor das sanções impostas (cf. SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 167-171). Nesse raciocínio, vislumbra-se a possibilidade de que haja alguma relativização de garantias – inclusive no âmbito do processo penal - desde que as sanções previstas para os ilícitos não incluíssem a privação da liberdade . Apontando também para uma relativização da distinção entre as áreas em termos de garantias processuais, está a discussão em torno da caracterização do ius puniendi geral estatal, do que decorreria a extensão das garantias do Direito penal ao âmbito administrativo. Essa tese, hoje em dia bastante forte na doutrina, considera que a prerrogativa sancionatória constitui, ao lado do poder punitivo exercido pelo Judiciário, o poder geral do Estado de reprimir condutas contrárias ao ordenamento jurídico, qualquer que seja a esfera de responsabilização. Como conseqüência, haveria um regime jurídico comum para disciplinar a responsabilização penal e administrativa, devendo-se transplantar as regras do direito penal para o direito administrativo. Essa tese desconsidera a autonomia do direito administrativo sancionador e sua conformação própria, construída à luz da Constituição Federal e das normas legais e infra-legais que conformam o processamento específico da potestade punitiva da administração. O que nos parece importante considerar são as conseqüências de se transportar todas as garantias da esfera penal para a administrativa para a discussão sobre a construção do regime de responsabilização de pessoas jurídicas. Isso provavelmente impactaria a regulação via Direito Administrativo, pois este ramo do direito perderia em celeridade e em flexibilidade sem, no entanto, ter incrementadas as suas possibilidades de buscar evidências e produzir provas. Trata-se de um debate ainda em aberto, que não se sedimentou em nossos Tribunais, mas que a nosso ver é um dado que deve ser levado em consideração na estruturação do modelo de responsabilização e na escolha da área a intervir, uma vez que elimina aquilo que seria, em alguns casos, uma das vantagens de utilização do Direito administrativo. O dado relativo à celeridade do procedimento administrativo deve ser analisado conjuntamente também com a possibilidade de as decisões administrativas serem Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 66 revistas pelo Judiciário. Afinal, a Constituição Federal garante a inafastabilidade do acesso ao Judiciário, sempre que algum cidadão tiver lesado seu direito. Isso significa, a princípio, que o Judiciário poderia revisar as decisões administrativas em alguma medida. Um dos principais debates que se colocam hoje na agenda teórica do Direito Administrativo corresponde justamente aos limites do controle judicial dos atos administrativos. Não há uma posição fechada a esse respeito nem na doutrina, nem na jurisprudência brasileiras. Pode-se localizar uma certa tendência na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que todo e qualquer ato administrativo pode ter sua legalidade apreciada pelo Judiciário, não se podendo, porém, adentrar seu mérito . Na prática, porém, a pretexto de se aferir a legalidade (sobretudo a constitucionalidade material), envereda-se muitas vezes no campo do conteúdo da decisão administrativa. De qualquer modo, a revisão dos casos pelo Judiciário tem tido impacto no que diz respeito à demora da execução das sanções aplicadas pela esfera administrativa. Por fim, outra constelação de questões a serem consideradas ao se cogitar da criação de um modelo de intervenção é a possibilidade de intervenção dupla, ou seja, um modelo segundo o qual se impute responsabilidade pelo mesmo fato por via de ambas as esferas. Surgem aí questões relacionadas ao bis in idem e à conveniência de se conduzir dois processos dispendiosos, para ao final se chegar a sanções semelhantes. Outro tema importante é o da utilização da prova emprestada. Provas emprestadas são aquelas que não foram produzidas no mesmo processo em que estão sendo utilizadas. Badaró (2008, p. 201) afirma categoricamente que provas produzidas em processos administrativos não podem ser trasladadas para processos penais, pois a prova emprestada, para ser utilizada em um segundo processo, deve ter sido produzida perante o juiz natural. Assim, para que o judiciário possa avaliar questões de mérito decididas em procedimentos administrativos ou utilizar elementos ali constantes, seria necessária nova realização da mesma prova produzida durante a instrução em âmbito administrativo, o que eliminaria por completo a utilidade da primeira produção da prova. O Supremo Tribunal Federal, em decisões sobre o tema45, fixou o entendimento de que é inadmissível que a decisão de pronúncia se dê apenas com base em prova 45 Neste sentido, ver STF, HC 67.707, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 14.8.1992; STF, RMS 25485/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. 14.3.2006; STF, HC 89468/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. 15.5.2007; STF, HC 91973/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 4.3.2008. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 67 emprestada. Com efeito, as decisões recentes tendem a aceitar a prova produzida fora do processo penal, desde que observado o contraditório no procedimento administrativo disciplinar. O inverso também é verdadeiro na Suprema Corte: provas produzidas no processo penal podem ser emprestadas a procedimentos administrativos, inclusive com base no princípio da proporcionalidade46 . Todos esses problemas estariam presentes também caso se chegasse a uma conformação da responsabilização por ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas em que, pelo mesmo fato, a punição dos indivíduos se desse pela via penal e a da pessoa jurídica pela via administrativa. II.5.iii. Alternativas à responsabilidade penal: responsabilidade civil Em primeiro lugar, é importante notar que não é necessário instituir regra especial para existência de responsabilidade civil por ilícitos praticados por pessoas jurídicas. As normas gerais de responsabilidade civil aplicam-se a quaisquer ilícitos civis e a quaisquer pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas. A necessidade de regulação especial existe na medida em que se queira estabelecer regime jurídico diferenciado da regulação geral do direito brasileiro, especificamente os regimes dos arts. 186 e 927 (responsabilidade por ato ilícito próprio) CC e do art. 932, III CC (responsabilidade do empregador por ato ilícito praticado por empregado ou preposto). Pode haver interesse na criação de regulação especial por várias razões. Em primeiro lugar, para o estabelecimento de responsabilidade objetiva, uma vez que a responsabilidade prevista pelo art. 186 CC é subjetiva. Em segundo lugar, para o estabelecimento de responsabilidade própria da pessoa jurídica ou coletividade uma vez que a responsabilidade por fato de outrem do art. 932, III do CC – embora seja objetiva para o empregador – depende da imputação de responsabilidade subjetiva ao empregado ou preposto. Esta última característica da responsabilidade por fato de outrem pode representar um obstáculo especialmente importante à sanção de ilícitos praticados no 46 Neste sentido, ver STF, Inq. 2575 QO, Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, j. 25.6.2008 e STF, Inq. 2424 QO/RJ, Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 25.4.2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 68 âmbito de organizações complexas, pois, justamente a complexidade dessas coletividades tende a dificultar a identificação dos agentes e condutas individuais. Por outro lado, a noção de preposição é bastante ampla para abarcar não apenas as pessoas vinculadas por relação de emprego propriamente dita, mas quaisquer relações em que haja subordinação. Além disso, em nossa tradição reconhece-se a possibilidade de responsabilização até mesmo por quem não seja realmente empregado ou preposto, com base na teoria da aparência. Em terceiro lugar, o estabelecimento de regulação especial é necessário caso se queira permitir a responsabilização de entes não personificados. Além disso, a regulação especial é necessária caso se queira atribuir à responsabilidade civil uma função punitiva, pois seria preciso permitir o cálculo da sanção com base em critérios voltados à dissuasão – a exemplo do que já acontece com a jurisprudência sobre o cálculo de danos morais. Regulação especial seria especialmente necessária para o estabelecimento de responsabilidade punitiva em relação a danos materiais e em casos de violação de direitos sem produção de danos de nenhum tipo. Uma solução desse tipo contrariaria a tradição brasileira de compreensão do instituto da responsabilidade civil e de suas funções, mas não nos parece haver impossibilidade de adoção dessa solução do ponto de vista constitucional ou legal. A opção pela adoção de um sistema de responsabilidade civil punitiva levantaria, no entanto, certas questões importantes. A primeira diz respeito à sua cumulação com a responsabilização penal e/ou administrativa, uma vez que a atribuição de uma função punitiva central à responsabilidade civil faz com que seus objetivos passem a ser semelhantes aos das outras formas de responsabilização. Entendemos que, em princípio, havendo responsabilidade penal e/ou administrativa para certo ilícito, a criação de responsabilidade civil punitiva seria supérflua e exagerada, pois resultaria em dupla ou tripla sanção punitiva pelo mesmo ato. Além disso, é preciso notar, uma vez que a responsabilidade civil seja punitiva, torna-se problemática a sua previsão na forma objetiva, já que a punição tem por escopo reprimir condutas reprováveis. A reprovabilidade da conduta está ligada à culpa por parte de quem a pratica, ao passo em que o estabelecimento de responsabilidade objetiva está ligado à tradição da responsabilidade civil como instrumento de reparação Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 69 e distribuição de danos, focado no prejuízo da vítima e não na conduta do autor do ilícito. Por outro lado, não haveria obstáculos à criação de uma noção de culpa específica para os entes coletivos, isto é, que não dependa de se estabelecer a culpa de algum indivíduo. Além disso, para evitar a objeção do enriquecimento sem causa da vítima, no caso da previsão de responsabilidade civil punitiva seria conveniente prever uma destinação diferenciada para a parcela paga pelo responsável a título de punição. Uma possível solução seria criar um fundo, a exemplo da Lei de Ação Civil Pública. Por fim, tendo em vista que os objetivos perseguidos pelas sanções punitivas são essencialmente públicos e não se relacionam diretamente com os prejuízos sofridos pela vítima do ilícito, seria conveniente prever alterações processuais, especialmente para permitir legitimidade ativa mais ampla para a sua propositura, a exemplo da Lei de Ação Civil Pública. A grande vantagem do estabelecimento de responsabilidade civil em relação à responsabilidade penal nos parece ser a possibilidade de evitar todos os problemas decorrentes da aplicação da estrutura penal – pensada para o indivíduo – a pessoas jurídicas e outras coletividades. Do ponto de vista da responsabilidade civil, a responsabilização de pessoas jurídicas e mesmo de coletividades não personificadas não representa problema. Além disso, evita-se a expansão da criminalização de condutas. A desvantagem principal em relação ao direito penal consiste na perda do caráter simbólico que tem a condenação criminal. No entanto, é possível pensar que certos modelos mistos, como a conjugação de responsabilidade civil punitiva para pessoas jurídicas e outras coletividades, com a manutenção de responsabilidade criminal para os indivíduos minimize tal perda. Além disso, do ponto de vista processual, o direito penal admite a interceptação de comunicações telefônicas e escutas ambientais, o que não é possível no processo civil. Com relação à responsabilidade por infração administrativa, a principal diferença diz respeito ao fato de que a responsabilidade civil é imputada por meio de processo judicial, ao passo que a responsabilidade administrativa se imputa por meio de processo administrativo. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 70 Sendo assim, a previsão da reparação como sanção administrativa apresenta os riscos decorrentes da possibilidade de revisão judicial das decisões administrativas, bem como a limitação decorrente do fato de não eliminar a necessidade de execução judicial. Tais aspectos são especialmente relevantes se considerarmos que no atual cenário teórico há duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no controle dos atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do ato administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV da CF, e aqueles que buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do Judiciário às decisões administrativas, de modo que não há clareza acerca dos critérios para controle judicial dos atos administrativos. Lembre-se, ademais, que, no que tange ao controle judicial dos atos sancionatórios, verifica-se grande judicialização das sanções aplicadas pelas autoridades administrativas, o que suscita reflexões sobre o esvaziamento da autoridade da Administração Pública. III. CONCLUSÕES A discussão em torno das formas de responsabilização de pessoas jurídicas é contemporaneamente um dos temas mais relevantes quando se discutem sobretudo políticas públicas de controle e repressão de condutas ilícitas com impacto nas relações econômicas e financeiras e nos chamados bens coletivos ou difusos, tais como meio ambiente e saúde dos consumidores. Com efeito, há um consenso nos mais variados campos de discussão de que os mecanismos de imputação individual apresentam um déficit significativo de prevenção no que diz respeito aos delitos praticados no âmbito das organizações. Uma das respostas a cenários como esse, que caracterizam o que os teóricos contemporâneos chamam de “irresponsabilidade organizada”, estaria na adoção de formas de responsabilização da pessoa jurídica. Mas essa decisão é apenas o início do debate acerca dos distintos modelos de institucionalização de sistemas de responsabilidade coletiva e de suas conexões com o sistema de responsabilização individual. Mostrar o amplo leque de possibilidades nesse sentido foi um dos objetivos do presente trabalho. Desse modo, esta pesquisa buscou ampliar o espectro de questões implicadas no debate, que, a nosso ver, revelou-se excessivamente limitado no Brasil, onde a questão está, há anos, singelamente colocada em termos de aceitação Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 71 ou não da responsabilidade de pessoas jurídicas no Direito penal, sua compatibilidade ou não com o princípio da individualização da culpa e as categorias da teoria do delito, restando ainda pouco exploradas, além das questões político-criminais, outras variáveis que, a nosso ver, são fundamentais para a configuração de um modelo eficiente de responsabilização de condutas praticadas no âmbito de pessoas coletivas. Este trabalho é, portanto, uma primeira tentativa de indicar os problemas de ordem normativa a serem considerados na decisão sobre o tipo de regulação a ser adotado. Assim, a abordagem ao problema sobre qual norma jurídica deve sancionar e prevenir ilícitos praticados no âmbito das pessoas jurídicas precisa ser capaz de lidar explicitamente com as relações e o equilíbrio entre a carga de responsabilização do indivíduo e da organização; a função que deve desempenhar a sanção; seus impactos individuais e sociais; o tipo de sanção mais adequado à fenomenologia do problema a que se pretende responder; e ainda qual a área do direito – civil, penal ou administrativo - seria mais apta a oferecer a resposta adequada, e por meio de quais instrumentos. Estas questões, apesar de inter-relacionadas, não devem ser confundidas: se estivermos convencidos de que a responsabilização e o sancionamento do indivíduo (pessoa natural) é suficiente para dissuadir e remediar os danos causados a partir dos ilícitos praticados no âmbito da pessoa jurídica, devemos então concluir que a responsabilização desta não é uma boa política. Nessa decisão, devemos refletir também sobre uma série de questões que está no âmbito das conseqüências e custos da responsabilização coletiva (possível prejuízo a funcionários, sócios ou acionistas que estavam alheios à decisão de praticar o ilícito, bem como impactos na continuidade das atividades da empresa sancionada etc.). No que diz respeito a esse dilema – responsabilidade individual ou coletiva – há uma série de argumentos no sentido de que, como fórmula para gerir o problema global de crimes praticados no âmbito de pessoas jurídicas, a responsabilidade individual em muitos casos é inefetiva. Dentre as razões que conduzem a essa conclusão, mencione-se, em primeiro lugar, o fato de que pessoas físicas suportam a função punitiva (via encarceramento ou outra medida de privação de liberdade), mas geralmente não dispõem de capacidade financeira para responder pelo dano causado por suas condutas. Em segundo lugar, pessoas físicas Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 72 poderão negociar junto a outros agentes da empresa mecanismos que a compensem por sua exposição ao risco por prática de crimes e que funcionem, portanto, como um seguro privado que beneficia o agente potencial ligado à pessoa jurídica, desde que lhe seja possível obter da empresa quantia suficiente que compense o risco de ser investigado e condenado. A responsabilização da pessoa jurídica, por outro lado, faz com que esta internalize os custos do ilícito, o que pode ser desejável do ponto de vista da prevenção. Além disso, muitos autores consideram que a pessoa jurídica estaria mais bem posicionada do que o Estado ou as vítimas para evitar que o crime seja cometido ou para identificar os indivíduos responsáveis por sua prática. Por fim, não é de se desprezar o fato concreto de que, considerando a dinâmica fragmentária e coletiva das atividades empresariais e dos processos decisórios das pessoas jurídicas, a observância do princípio da individualização das condutas criminais dificulta a persecução e punição de perpetradores de ilícitos, quando tais atos são cometidos por meio de pessoas jurídicas. Ainda que se conclua haver motivos que justifiquem a responsabilização da pessoa jurídica, e considerando o conjunto de instituições incumbidas da aplicação do direito no Brasil, resta indagar que sanções deveriam ser empregadas, bem como qual sistema se mostra mais apto para oferecer um marco regulatório sobre a responsabilização da pessoa jurídica. Essas questões aparecem muitas vezes misturadas no debate público de especialistas, embora se refiram a distintas decisões político-jurídicas. Somente se concluirmos que a responsabilização penal da pessoa jurídica é desejável é que deveremos então nos preocupar com o tipo de regime jurídico a agasalhar tal decisão e, ainda, com a questão de reconciliar o instituto com o princípio geral da individualização das condutas em direito penal e as categorias da teoria do delito. Ao estudar o debate no âmbito da doutrina brasileira, mostramos que, embora tenhamos introduzido tal instituto no ordenamento jurídico desde 1998, um esforço sistemático de reinterpretar e re-significar as categorias penais não foi empreendido e isso vem tendo impacto na aplicação do instituto pelos tribunais. É preciso aqui fazer notar ainda a pouca tradição no Brasil em pensar a atividade legislativa e a produção teórica a partir de dados da realidade. Isso se reflete na escassa oferta de dados e na dificuldade mesma de acessá-los. Um ponto importante a ser ressaltado, resultado de nossa experiência em campo ao longo Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 73 desta pesquisa, é a falta de dados públicos a respeito da realidade das empresas e a insuficiência dos bancos de dados existentes, que trazem as informações de modo totalmente fragmentado, não permitem a realização de cruzamentos entre informações (por exemplo, informações constantes em varas cíveis e penais) e, fundamentalmente, estão construídos para a realização de consultas processuais para advogados e não para a realização de pesquisa. Apesar de tais dificuldades, realizamos no âmbito desta pesquisa, na forma de estudos de casos e entrevistas qualitativas, levantamento de elementos empíricos que foram importantes para iluminar a nossa reflexão sobre o caráter preventivo da sanção penal e suas relações com o momento de decisão empresarial. O tema da demonstração empírica da sanção é de difícil aferição, como tantas vezes já apontado pela criminologia e pela própria discussão no campo da teoria da pena. Além disso, o estudo que realizamos neste trabalho é limitado e trabalha com um universo pequeno de empresas e atores. Entretanto, ainda que de modo aproximativo, os dados empíricos permitiram que extraíssemos elementos relevantes para a discussão. Da análise da amostra de 50 empresas e das entrevistas com advogados, a inferência mais autorizada é a de que o potencial intimidatório da sanção penal só é intenso ou é mais intenso do que o de sanções de outras naturezas, se considerarmos tratar-se de sanção penal que recaia sobre a pessoa natural e cuja aplicação seja crível. Neste ponto, independentemente de outros fatores que justificam sanções penais à pessoa jurídica, o estudo empírico permite inferir que eventual sanção penal sobre pessoa jurídica não parece ter potencial de exercer a função de prevenção geral negativa de modo privilegiado em relação a outras sanções. No que diz respeito às possibilidades de articular a regulação por meio da esfera penal, administrativa ou civil, este trabalho buscou levantar alguns dos pontos favoráveis e problemáticos de cada uma delas. Uma comparação aprofundada entre a atuação das esferas não foi o foco desta pesquisa e demandaria estudos específicos para cada campo de regulação. De todo modo, as indicações trazidas apontam, em primeiro lugar, para a necessidade de superar a compartimentalização da discussão nos ramos do direito e circular entre direito penal, civil e administrativo, a fim de discutir a melhor forma de regulamentar o problema e seus melhores instrumentos, sem amarrar previamente as soluções a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 74 limites e construções dogmáticas prévios. A partir desse pressuposto, uma solução de política criminal não necessariamente precisa seguir trabalhando com as divisões tradicionais de áreas. Por exemplo, a partir dos elementos que levantamos, pode-se concluir que a punição seja desejável, mas por algum motivo, não deva ser feita pelo aparato penal (ramo tradicionalmente vinculado a essa função), e sim pelo aparato civil e/ ou administrativo, ou mesmo por formas novas, que combinem essas tradições. Esse tipo de análise apenas pode ser feito quando a reflexão não se limita a um único campo do direito e quando o horizonte da pesquisa seja a definição da melhor forma de regulação. A construção da regulação deve olhar em primeiro lugar para o problema e não escolher de antemão a esfera à qual o encaminhará. De um ponto de vista geral e pressupondo não haver distinções de caráter ontológico entre ilícitos penais, administrativos e civis, indicamos algumas das variáveis que nos parecem devam ser levadas em conta na comparação entre as esferas. Nesse sentido, as questões que nos pareceram mais relevantes foram aquelas relativas à forma de funcionamento dessas esferas. Se considerarmos que a pessoa jurídica não está sujeita à privação de liberdade, não há qualquer distinção em termos de possibilidade de pena aplicável entre as sanções disponíveis na esfera penal e administrativa. Embora muitos autores considerem ainda um efeito simbólico superior da sanção penal, esse dado nos parece contingente. É possível identificar sanções de caráter administrativo, que, pelo seu rigor, têm também impacto simbólico relevante. Além disso, em alguns âmbitos especializados, como por exemplo o do mercado de capitais ou o da proteção da concorrência, a sanção administrativa vem adquirindo cada vez mais potencial preventivo. Ou seja, podemos considerar que o potencial simbólico diferenciado atribuído às sanções penais em relação às administrativas não é um dado a priori ou estático e deve ser avaliado levando-se em consideração o funcionamento das instituições em sociedades concretas em um dado momento, o ramo de atividade em questão, bem como a atuação e a reputação do órgão administrativo. Além disso, é preciso considerar que o significado e o impacto simbólico das comunicações e sanções de um determinado órgão (jurisdicional ou administrativo) é algo que pode ser trabalhado e construído no âmbito do funcionamento das instituições públicas e de sua cultura organizacional. As distinções mais relevantes entre as esferas administrativa e penal Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 75 referem-se principalmente às características do procedimento e mais especificamente ao potencial que cada uma das esferas tem de investigar casos e obter elementos instrutórios. Alguns instrumentos importantes (como escutas telefônicas e ambientais) são atualmente restritos ao Direito penal e, dependendo da constelação de casos que se tenha em mãos e o modus operandi mais freqüente das condutas implicadas, tais instrumentos são fundamentais à administração na elucidação dos casos. O Direito administrativo, por sua vez, também tem instrumentos para investigar casos – por exemplo, a recém regulamentada busca e apreensão, o acordo de leniência no âmbito do CADE, as inspeções e a possibilidade de sancionar aqueles que não contribuem com a investigação. Tratase, assim, de avaliar se tais instrumentos seriam suficientes para lidar com determinado tipo de conduta ilícita ou se os métodos de atuação do penal se fazem cruciais. Possivelmente esta seja uma decisão que pode variar de acordo com o tipo de conduta e realidade que se queira regular. Na ponderação desse equilíbrio, não é possível deixar de considerar que parte da doutrina vem defendendo, como expusemos, a transposição ao Direito administrativo das mesmas garantias presentes no processo penal, o que certamente teria impacto nas vantagens apresentadas por aquele ramo, já que possivelmente perderia em celeridade e em flexibilidade e, ao mesmo tempo, não teria incrementadas suas possibilidades de buscar evidências e produzir provas (que é maior no processo penal). Além disso, é necessário considerar em que medida as decisões administrativas vêm sendo revistas pelo Poder Judiciário, o que certamente teria impacto no quesito celeridade para se resolver o problema social em questão e influiria na decisão de regular via Direito administrativo. A realização de pesquisa empírica sobre o comportamento e o índice de revisão judicial das decisões administrativas em relação a cada área regulada, bem como o tempo pelo qual a revisão judicial se prolonga até que seja possível chegar à execução da sanção administrativa seria, nesse sentido, fundamental para a tomada de decisão. Por fim, e para indicar uma questão que deve ser incluída em agendas de pesquisas futuras, é preciso indicar que na ponderação implicada na escolha entre as áreas, outra forma de observar o comportamento das diferentes esferas do direito é considerar o espaço que cada uma delas deixa para a auto-regulação, o que, sob determinados aspectos e em algumas áreas, pode ser importante. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 76 Dado que o instituto que organizou toda a reflexão foi a responsabilização penal de pessoas jurídicas, buscamos indicar que há ainda uma série de questões a serem consideradas e decisões a serem tomadas quando se trata se definir o modelo de responsabilidade penal e os critérios de responsabilização. Podemos a princípio identificar duas grandes clivagens entre os modelos de responsabilização penal adotado: os de responsabilidade derivada da responsabilidade individual e os que tentam inferir uma culpa própria da pessoa jurídica. Dentro do modelo de responsabilidade derivada há uma série de fatores que podem ser determinantes no desenho do sistema de responsabilização, como por exemplo, a definição de quem pode agir em nome da pessoa jurídica, ou melhor, quem, com sua ação ilícita, é capaz de irradiar responsabilidade à pessoa jurídica. É interessante notar como uma decisão sobre um aspecto aparentemente pontual tem um impacto significativo na determinação da carga de responsabilidade que a pessoa jurídica deverá suportar: ela pode ser muito grande e eventualmente indesejada, se se decidir que a pessoa jurídica será responsabilizada por ato de qualquer funcionário, mas ela pode ser demasiadamente reduzida (e de difícil aplicação na prática) se se decidir que a pessoa jurídica apenas será responsabilizada quando houver a ação de um administrador formalmente constituído. Ficaria de fora, neste último caso, por exemplo, as condutas daqueles que representam o administrador, agem a seu mando ou ocupam posições de administração ou representação de fato. Tendo em vista que um dos problemas centrais da regulação da criminalidade praticada no âmbito de organizações complexas é justamente a dificuldade de apuração de responsabilidade individual – devido à fragmentação de condutas, de decisões e de informações decorrentes da própria divisão do trabalho – modelos que partam da ação própria da coletividade, que não dependam da identificação de ação individual e de culpabilidade também própria e específica das coletividades tendem a fornecer respostas mais adequadas do que os modelos de ação e culpabilidade individuais. Além disso, modelos de responsabilidade derivada vêm atualmente sendo considerados insuficientes por uma série de outras razões, dentre elas, o fato de não estimularem que as organizações adotem medidas para melhorar sua estrutura Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 77 organizacional, seus sistemas internos de vigilância e suas regras de compliance. A discussão mais atual, diante disso, aponta para vantagens dos modelos que buscam aferir a responsabilidade da organização a partir de critérios que dizem respeito à própria pessoa jurídica. O modelo de responsabilização adotado é especialmente relevante para a discussão brasileira, pois, conforme apuramos em levantamento jurisprudencial, os tribunais têm sido avessos à aceitação da denúncia sempre que a pessoa física tida como responsável não é citada como co-réu, ao lado da pessoa jurídica. Apontam, assim, para uma interpretação do modelo brasileiro atual - previsto na lei ambiental - como um modelo de responsabilidade pelo fato de outrem com culpabilidade individual. Diante desses resultados, é fácil enxergar um paradoxo. A idéia de responsabilizar as pessoas jurídicas teria por escopo eliminar a necessidade de demonstração de culpa ou culpas individuais, com ou sem dolo. A adoção desse modelo remete novamente a essa dificuldade. Não obstante, observamos que não se empreendeu até hoje no Brasil qualquer esforço no sentido de avaliar o desempenho do modelo de responsabilização penal da pessoa jurídica adotado e sua eficácia em eliminar os obstáculos criados pelo princípio da responsabilidade individual. A operacionalização do regime de responsabilização requer sejam levadas em consideração, além da definição de seus limites, questões ligadas ao funcionamento do instituto e sua harmonização com o sistema penal em vigência. Indicamos em nosso trabalho uma série de problemas resultantes de lacunas de regulamentação, especialmente de ordem processual penal. A falta de definição dessas questões nos ajuda a compreender o significativo número de recursos ou ações impugnativas, encontrados em nosso levantamento jurisprudencial, que se referem a pedidos de extinção, trancamento ou recebimento das ações penais em fases muito iniciais do procedimento e a baixa ocorrência de casos em que os Tribunais chegaram a analisar o mérito da imputação de responsabilidade à pessoa jurídica. Além dos problemas que se manifestaram em nossas cortes, indicamos, também, a necessidade de se criarem previsões específicas e regras de adaptação do sistema penal às peculiaridades do instituto, tais como a criação de parâmetros para o cálculo prescricional, aplicação de benefícios, realização de atos processuais, critérios para determinação das sanções, formas de sua execução etc. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 78 A simples adoção do instituto sem que se proceda a adequações e regulamentações desse tipo pode acabar minando completamente a eficácia de sua aplicação. Com isso, todas as considerações que possivelmente tenham sido feitas acerca da necessidade da responsabilidade coletiva e do potencial simbólico e preventivo da sanção penal terão sido infrutíferas. Por fim, mostramos que a discussão sobre a configuração do modelo de responsabilização penal de pessoas coletivas, se for esta a via eleita, ainda assim não deve restringir-se à esfera penal e deve necessariamente ser travada em consórcio com outras áreas do Direito. Alguns fenômenos societários como a transformação de pessoas jurídica e a organização em grupos empresariais trazem conseqüências importantes para a responsabilização da organização e são raramente tratados pelos penalistas. Um desenho de regulação eficaz não poderia deixar de considerar tais hipóteses, sob risco de criar uma disciplina jurídica inadequada à realidade a ser regulada. As pessoas jurídicas e outras coletividades têm características muito distintas dos indivíduos, as quais, se não levadas em consideração, podem resultar em normas inócuas – pela possibilidade que as coletividades têm de contorná-las – ou com efeitos sociais negativos, no que se refere ao desenvolvimento da atividade econômica. É preciso, por exemplo, regular a responsabilidade nos casos de transformações das pessoas jurídicas – fusões, cisões e incorporações – bem como os casos de atuação conjunta de pessoas jurídicas que formam coletividades mais complexas, mas não personalizadas, como os grupos societários. Vale notar que nem a legislação vigente, nem os projetos de leis analisados levam em consideração adequadamente as questões societárias e tampouco os problemas de adaptação do instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica à dinâmica já consolidada do sistema penal. Isso quer dizer que, mesmo no que diz respeito à discussão de questões de ordem pragmática, há uma lacuna importante no debate brasileiro, que, no limite, tende a perpetuar um sistema de responsabilização pouco aplicado. Outro ponto importante a ser destacado é a necessidade de discussão sobre os tipos e as medidas de sanções adequadas ao fim social que se pretende atingir. Há um equilíbrio delicado a ser obtido na escolha da forma de sanção à pessoa jurídica e sua dosimetria. Se, de um lado, pretende-se que o agente repare o dano, cesse a prática e que, de alguma forma, sejam obtidos efeitos de prevenção Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 79 especial e geral; de outro, a sanção deve ser pensada de modo que o impacto desejado seja obtido sem prejuízo aos demais interesses juridicamente relevantes, como a manutenção da capacidade produtiva da empresa e de seus reflexos positivos para a sociedade (supondo que a capacidade produtiva não seja dependente de benefícios gerados por atos ilícitos). Ou seja, em não se tratando de casos de empresa puramente “de fachada”, esta questão não pode ser desprezada, já que há também um interesse público relevante na observância do princípio da preservação da empresa. Entretanto, apesar da falta de estudos e discussões sobre o tema, o fato de se tratar de um instituto completamente novo, em que necessariamente alternativas à pena de privação ou restrição de liberdade deveriam ser pensadas, encontramos nos projetos de leis analisados (ainda que em alguns casos a previsão devesse ser aperfeiçoada) algumas previsões de sanções interessantes, como a sanção de publicidade da sentença condenatória às expensas do condenado ou sanções que abrem mão da finalidade retributiva ou repressiva e passam a trabalhar com a idéia de prevenção direta. Pareceu-nos especialmente promissor aprofundar a discussão acerca desse tipo de sanção que consideramos como medidas de prevenção direta, pois buscam influenciar diretamente a conduta futura da empresa, sem a mediação da inflição de um mal (como a determinação de adoção mecanismos de controle, submissão a auditoria externa e adoção de regras de compliance, etc.). O sucesso de tais medidas, contudo, parece depender de sua boa articulação, haja vista que também impõem desafios de implementação. De qualquer modo, vale chamar a atenção, em primeiro lugar, para a necessidade de se travar um debate mais aprofundado, primeiro, sobre os fins que se pretende alcançar com as sanções aplicadas a pessoas jurídicas e as alternativas de institucionalização que se colocam atualmente à disposição do legislador. Em segundo lugar, é preciso considerar também que a concretização da decisão de aplicação da pena pelo juiz passa a enfrentar, no caso de pessoas jurídicas, novas dificuldades e exige conhecimentos especializados que permitam compreender, por exemplo, a dinâmica da atividade empresarial e a saúde econômica da empresa. É preciso pensar em formas de incorporar tais questões e tais conhecimentos ao processo penal tradicional e aos atores que não necessariamente os dominam e, no geral, não estão habituados a lidar com esse tipo de realidade ou manejar todas as variáveis nela envolvidas. Tais questões estão longe de ser supérfluas e Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 80 negligenciá-las pode colocar a perder todos os esforços de construção de um sistema adequado de responsabilização. Ademais, um sistema cego a essas preocupações, que se coloque simplesmente a serviço de fins retributivos, poderá inviabilizar ou mesmo afastar um ente produtivo da economia do país, com prejuízo para a comunidade de trabalhadores, consumidores e credores e conseqüentes perdas de bem-estar social. Em suma, a presente pesquisa foi capaz de mostrar que, não obstante o Brasil tenha adotado a responsabilidade penal de pessoas jurídicas há mais de dez anos em um campo importante de aplicação do Direito penal (o direito penal ambiental) e existam em tramitação propostas legislativas para ampliação do âmbito de aplicação do instituto no Congresso Nacional, a jurisprudência sobre o tema é pouco sólida e - o que é ainda mais preocupante - falta reflexão não somente sobre a própria experiência pregressa na aplicação do instituto, como também sobre questões relevantes que dizem respeito a formas alternativas de configuração do sistema de responsabilidade coletiva, de modo a torná-lo mais eficiente. Este texto cumpre a função, que diante deste cenário nos parece de extrema relevância, de apontar as lacunas de discussão e regulação e chamar a atenção para a urgência de se incluí-las na agenda de pesquisas e discussões. Além disso, mostramos que o conjunto complexo de fatores e variáveis envolvidos no desenho da política pública de responsabilização de condutas praticadas no âmbito de pessoas jurídicas e sua boa institucionalização demanda um olhar transversal e interdisciplinar. A nosso ver, o estreitamento do debate nos termos em que descrevemos vem atrapalhando a imaginação institucional. É justamente na eliminação de obstáculos cognitivos muitas vezes impostos pelo próprio campo teórico ao debate público e aos formuladores de políticas públicas que está a principal contribuição deste estudo. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 81 BIBLIOGRAFIA AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil, vol. II. Rio de Janeiro, Forense, 1983. ALVARADO, Yesid Reyes. “Die Verbandshaftung“. In: Festschrift für Günther Jakobs. Berlim, Karl Heymanns Verlag, 2007. ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. “Societas delinquere potest: revisão da legislação comparada e estado atual da doutrina”. In: GOMES, Luiz Flávio (coordenador). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias e Direito Penal. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 1999. BECK, Ulrich. Gegengifte : die organisierte Unverantwortlichkeit. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988. BITERNCOURT, Cézar Roberto. “Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica”. In: GOMES, Luiz Flávio (coordenador). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias e Direito Penal. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 1999. BORGHI, Hélio. Teoria da aparência no direito brasileiro, São Paulo, LEJUS, 1999. BACIGALUPO, Silvina. La Responsabilidade Penal de las Personas Jurídicas. Barcelona, Bosch Editorial, 1998. CABETTE, Eduardo Luis Santos. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: Estudo crítico. Curitiba. Juará Editora. 2003. CASI, Fermín Javier Echarri. Sanciones a personas jurídicas en el proceso penal: las consequencias accesorias. Cizur Menor, Editorial Aranzadi, 2003. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil, 8ª. ed., São Paulo, Atlas, 2008. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 82 CONSTANTINO, Carlos Ernani. O Art. 3° da lei 9.605/98 cria intolerável bis in idem. In: Boletim INCCRIM n. 74 Janeiro / 1999. São Paulo. COSTA, José de Faria. “A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos (ou uma reflexão sobre a alteridade das pessoas coletivas, à luz do direito penal)”. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, n.º 4, p. 537-559, out.dez. 1992. _____________________. “Breves reflexões sobre o Decreto-Lei n.º 201-B/75 e o direito penal econômico”. In: Revista de Direito e Economia, Coimbra, n.º 2, p. 42, 1976. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. 2ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense Universitária. 1991. DANNECKER, Gerhard. „Zur Notwendigkeit der Einführung kriminalrechtlicher Sanktionen gegen Verbände – Überlegungen zu den Anforderungen und zur Ausgestaltung eines Verbandesstrafrechts“. Goltdammer’s Archiv für Strafrecht 2001. EHRHARDT, Anne. Unternehmensdelinquenz und Unternehmensstrafe – Sanktionen gegen juristische Personen nach deutschem und US-amerikanischem Recht. Berlim, Duncker und Humblot, 1994. ESTELLITA, Heloisa. “Aspectos processuais penais da responsabilidade penal da pessoa jurídica prevista na lei n. 9.605/98 à luz do devido processo legal”. In: Crimes econômicos e processo penal, 2008, Série GVlaw, São Paulo, Saraiva, p. 205-239 FREITAS, Vladimir Passos de. O crime ambiental e a pessoa jurídica. Cidadania e Justiça. Ano 3, N. 6. Rio de Janeiro, 1999 GARCÍA ARAN, Mercedes. “Algunas Consideraciones sobre La responsabilidad penal de lãs personas jurídicas”. In: MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. I Congreso Hispano-Italiano de Derecho Penal Econômico. Coruña, 1998, p. 45-56. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 83 GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. La culpabilidad penal de la empresa. Madrid, Marcial Pons, 2005. GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. “El modelo constructivista de autorresponsabilidad penal empresarial”. In: GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos (Org.). Modelos de Autorresponsabilidad Penal Empresarial. Propuestas globales contemporâneas. Navarra, Thomson Aranzadi, 2006. GRACIA MARTIN, Luis. “La cuestión de la responsabilidad penal de las propias personas jurídicas”.In: Responsabilidad Penal de las Empresas y sus Órganos y Responsabilidad por el Producto. Barcelona, J. Bosch, 1996. _______________________. “La responsabilidad penal del directivo, organo y representante de la empresa en el derecho español. Estúdio especifico de los problemas dogmáticos y político criminales que plantea el delito cometido a partir de una ‘actuación en lugar de outro”. In: Hacia un Derecho Penal Econômico Europeo. Jornadas en honor del Profesor Klaus Tiedemann, 1995, 81-124. GRINOVER, Ada Pellegrini. Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: Revista de Direito Ambiental. Ano 9. Julho- Setembro de 2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. GÜNTHER, Klaus.„Von der Rechts- zur Pflichtverletzung. Ein ‘Paradigmawechsel’ im Strafrecht?“. In: Institut für Kriminalwissenschaften Frankfurt a.M. (Org.), Vom unmöglichen Zustand des Strafrechts. Frankfurt am Main, Peter Lang Verlag, 1995. _______________________. De la vulneración de un Derecho a la infracción de un deber. ¿Un ‘cambio de paradigma’ en el Derecho Penal? La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Editorial Comares, 2000. p. 503 HEINE, Günther. Die Strafrechtliche Verantwortlichkeit von Unternehmen – Von individuellen Fehlverhalten zu kollektiven Fehlentwicklung, insbesondere bei Großrisiken. Baden-Baden, Nomos Verlag, 1995. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 84 _____________. „Die strafrechtliche Verantwortlichkeit von Unternehmen: internationale Entwicklung - nationale Konsequenzen“. In: Österreichische Juristenzeitung 1996. ________________. “La responsabilidad penal de las empresas: evolución y consecuencias nacionales”. In: POZO, José Hurtado et alli (org.). La responsabilidad criminal de las personas jurídicas: uma perspectiva comparada. Valencia: Tirant lo blanch, 2001. _______________. “Modelos de responsabilidad jurídico-penal originaria de La empresa”. In: GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos (Org.). Modelos de Autorresponsabilidad Penal Empresarial. Propuestas globales contemporâneas. Navarra, Thomson Aranzadi, 2006. HIRSCH, Hans Joachim. „Strafrechtliche Verantwortlichkeit von Unternehmen“. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 107/1995. HUNGRIA, Nelson. “Ilícito Administrativo e ilícito penal”. In: Revista de Direito Administrativo, 1945, v.1. Rio de Janeiro, Forense, 15-21 HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal – Vol. 1. Rio de Janeiro, Forense, 1978. JAKOBS, Günther. Günther. Strafrecht – Allgemeiner Teil. Berlim, Walter de Gruyter, 1993. REMNITZER, Mordechai; GHANAYIM, Khalid. “Die Strafbarkeit von Unternehmen”. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 113, 2001. LAMPE, Ernst-Joachim. „Systemunrecht und Unrechtssysteme“. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 106/1994. MACHADO, Marta; MÜLLER, Viviane, et all. Responsabilidade dos administradores de sociedades empresariais na jurisprudência do STJ e STF, cadernos Direito GV, 2009 (prelo). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 85 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. Uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo, IBCCrim - Ed. Método. 2005. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. São Paulo, Atlas, 1987. MULLER PRADO, Viviane. “Pessoa jurídica: separação patrimonial e estrutura organizacional”. In: Flavia Portella Püschel (org.). Organização das relações privadas, São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 151-163. MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoría General del Delito. 2ª Edição. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989. NIETO MARTIN, Adan. “La responsabilidad penal de las personas jurídicas: esquema de un modelo de responsabilidad penal”. In: Nueva doctrina penal, Nº. 1, 2008. PALMA, Juliana de. “Processo regulatório sancionatório e consensualidade: análise dos acordos substitutivos no âmbito da ANATEL”. III Congresso Iberoamericano de Regulação Econômica. Associação Ibero-americana de Estudos da Regulação – ASIER, 2008. PAMPEL, Gunnar. “Die Bedeutung von Compliance-Programmen in Kartellordnungswidrigkeitenrecht”. In: Betriebs-Berater, Heft 31, 2007. PALIERO, Carlo Enrico. “La sanzione ammnistrativa come moderno strumento di lotta alla criminalità económica”. In: Rivista Trimestrale Di Diritti Penale Dell'Economia. Casa Editrice Dott. Antonio Milani - CEDAM, 1994. PIERANGELLI, José Henrique. “Responsabilidade penal das pessoas jurídicas e a nova lei ambiental”. In: Revista do Instituto de pesquisas e estudos. N. 39. janeiro a abril de 2004. PIRES, Álvaro. “Aspects, traces et parcours de la rationalité pénale moderne”. In: DEBUYSTD, CHRISTIAN et al. Histoire des savoirs sur le crime et la peine. Paris: De Boeck Université, 1998, p. 3-51. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 86 POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. Boston, Wolters Kluwer Law & Business, 1986. PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Ambiental - Problemas Fundamentais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992. __________________. “Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: fundamentos e implicações”. In: PRADO, Luiz Régis (coordenador). Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2001. PÜSCHEL, Flavia Portella. “Funções e princípios justificadores da responsabilidade civil e o art. 927, § único do Código Civil”. In: Revista Direito GV 1 (2005), p. 91-107. ROBALDO, José Carlos de Oliveira. O direito penal na contramão da história. In: Boletim IBCCRIM n. 68 – Julho 1998. São Paulo. ROTHENBURG, Walter Claudius. A responsabilidade criminal da pessoa jurídica na nova lei de infrações ambientais. In: Revista de Direito Ambiental. Ano 3. Janeiro-Marco de 1998. n. 9. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. ROXIN, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil I. Munique, C.H. Beck, 1992. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba, ICPC, 2006. SCHROTH, Hans-Jürgen. Unternehmen als Normenadressaten und Sanktionssubjekte. Gießen, Brühlscher Verlag, 1993. SCHÜNEMANN, Bernd. Unternehmenskriminalität und Strafrecht – eine Untersuchung der Verantwortlichkeit der Unternehmen und ihrer Führungskräfte nach gelstendem und geplantem Straf- und Ordnungswidrigkeitenrefcht. Munique, Carl Heymanns, 1979. _____________________. „Strafrechtsdogmatische und kriminalpolitische Grundfragen der Unternehmenskriminalität“. In: Zeitschrift für Wirtschaft-, Steuer- und Strafrecht (Wistra), 1982/2 Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 87 _____________________. “Cuestiones Básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa”. In: Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madrid, tomo XLI, fasc. 1, p 529-58, enero/abril, 1988. _____________________. “Die Strafbarkeit der juristischen Personen aus deutscher und europäischer Sicht“. In: Bausteine des europäischen Wirtschaftsstrafrechts: Madrid-Symposium für Klaus Tiedemann. Berlim, Carl Heymanns Verlag, 1994. _____________________. „Strafrechtliche Sanktionen gegen Wirtschaftsunternehmen?“. In: Strafrecht und Wirtschaftsstrafrecht: Dogmatik, Rechtsvergleich, Rechtstatsachen. Festschrift für Klaus Tiedemann zum 70 Geburtstag. Munique, Karl Heymanns Verlag, 2008. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. De acordo com a Lei 9605/98. 2ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2003. SIEBER, Ulrich. “Compliance-Programme im Unternehmensstrafrecht”. In. SIEBER, Ulrich et alli (org.). Festschrift für Klaus Tiedemann zum 70. Geburtstag. Köln/ München, 2008. SILVA-SÁNCHEZ, Jesus Maria. La expansión del Derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2ª Edição. Montevideo-Buenos Aires, Ed. BF, 2006. TIEDEMANN, Klaus. „Die ‚Bebußung‘ von Unternehemen nach dem 2. Gesetz zur Bekämpfung der Wirtschaftskriminalität“. In: Neue Juristische Wochenschrift, Heft 19, 1988. WELZEL, Hans. Das deutsche Strafrecht. 11ª Edição. Berlim, Walter de Gruyter, 1969. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 88 ANEXO 1 – PESQUISA EMPÍRICA 1. PARTE QUANTITATIVA A decisão pela responsabilização penal da pessoa jurídica parte de várias assunções discutidas neste trabalho. Uma delas é que a sanção penal é mais grave que sanções de outras naturezas. É o objeto desta assunção que pretendemos questionar na pesquisa empírica conduzida. Buscamos verificar no presente estudo se a ameaça da sanção penal, tal como percebida pelo agente potencial, é mais intensa do que sanções não penais que se impõem sobre condutas substancialmente semelhantes à que recebe a sanção penal. Para os fins desta pesquisa empírica, é irrelevante o aspecto retributivo associado à sanção penal. Isto não significa que os autores deste trabalho desconsiderem a retributividade como função adequada à sanção penal, mas que, no recorte utilizado, optou-se por um outro aspecto relevante. Este outro aspecto é a perspectiva do agente potencial enquanto agente provido de racionalidade limitada, maximizador de utilidades. Ao enfocarmos as escolhas do agente potencial, propomos uma reflexão em linha com a teoria de incentivos utilizada pela Law and Economics. Não é objetivo desta pesquisa oferecer um modelo concreto e passível de juízo de eficiência a respeito de qual deva ser a norma mais adequada para solucionar o problema dos ilícitos praticados no âmbito da atividade das pessoas jurídicas. Não obstante, acreditamos que os dados colhidos referentes às preferências do agente potencial são fundamentais para avaliarmos a eficácia da aplicação das normas penais em vigor, assim como para pensarmos as possíveis conseqüências associadas a determinados modelos de responsabilização. Dado que a pessoa jurídica não é passível de aplicação da pena de reclusão, e considerando que sanções dirigidas à suspensão das atividades das pessoas jurídicas podem gerar custos sociais indesejáveis, surgem as questões: (i) é conveniente que a sanção aplicável à pessoa jurídica se dê como perda reputacional? (ii) a sanção penal implica perda reputacional superior àquela imposta pela sanção civil?; (iii) será que as próprias pessoas jurídicas prefeririam um sistema que as responsabilizasse penalmente Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 89 por ilícitos praticados no seu âmbito no lugar da responsabilização penal de pessoas naturais? Os pontos acima são objeto de controvérsia entre autores como Fisse e Braithwaite, de um lado, e, de outro, autores filiados à Law and Economics. Os primeiros não apenas defendem que a perda reputacional deve ser imposta a pessoas jurídicas, como entendem que a sanção penal é superior a sanções de outras naturezas em sua capacidade de impor tal perda. Nesta pesquisa, retomamos tais questões e as integramos à análise dos dados coletados. A pesquisa realizada não permite inferir se uma eventual imposição de sanção penal a pessoas jurídicas implicaria custo maior ou menor à sua reputação do que aquele decorrente de sanções de outras naturezas que podem recair sobre a pessoa jurídica. Até onde pudemos constatar dos dados coletados entre os entrevistados, prevalece uma opinião que confirmaria a hipótese de Brown, apresentada na Parte II, item 4.1.4, no sentido de que gestores e funcionários de empresas não teriam motivos para se opor à responsabilização penal da pessoa jurídica. Os que manifestam essa visão sugerem que as sanções penais às pessoas naturais são por estas percebidas como produtoras de danos à sua reputação em grau maior do que o de outras sanções a pessoas naturais ou sanções a pessoas jurídicas. A situação-problema utilizada é a seguinte: Considerando empresas que, por quaisquer razões, tenham optado por deixar de pagar credores num determinado período de tempo, sendo que: • o conjunto de credores é composto por particulares, pelo Fisco e pelo INSS (credor da contribuição devida quanto à parcela do empregado); • o inadimplemento ao INSS é caracterizado como apropriação indébita, sujeita à sanção penal; • a empresa deve fazer escolha por prioridade em relação a quais de seus credores serão pagos e quais não serão pagos; • um dos credores não-pagos é o INSS, pela contribuição devida quanto à parcela do empregado. Pergunta-se: qual é o regime de prioridades usualmente feito por empresas em tais condições? Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 90 Se constatarmos que os agentes usualmente preferem pagar outros credores a pagar o INSS, então em princípio podemos concluir que a sanção penal aplicável ao agente condenado por apropriação indébita tem baixo potencial de dissuasão em relação a outras sanções. 1.1 Descrição dos pressupostos para escolha da situação-problema Como discutido na presente pesquisa, tradicionalmente reputa-se à sanção penal as funções: (i) de intimidação ou prevenção geral (especial ou geral); (ii) retributiva (inflição de um mal ou expressão de reprovação pública); (iii) de reforço simbólico a valores, instituições, normas ou sistemas normativos (prevenção geral positiva). O tema da demonstração empírica da eficácia da sanção, em suas diferentes funções, é de difícil aferição, como tantas vezes já apontado pela criminologia 47 e pela própria evolução da teoria do delito. 48 Do ponto de vista normativo, este trabalho não assume nenhuma posição com relação à função que a pena deve exercer na sociedade. Assume, apenas, que ela pode produzir efeitos cognitivos sociais. Diante das sabidas dificuldades de uma demonstração empírica de tais 47 A psicologia moral, notadamente por meio dos estudos empreendidos por Lawrence Kohlberg, buscou aferir os níveis de desenvolvimento moral, a partir dos quais poder-se-ia analisar o papel que uma eventual sanção venha a desempenhar nas decisões morais. O resultado desse confronto, porém, só teria serventia na hipótese de todas as normas penais conterem conteúdos morais, o que não é o caso. Além dos casos evidentes de delitos esvaziados de conteúdo moral, como os de criminalização de infrações administrativas, até mesmo no homicídio podem colidir direito e moral: basta pensar em que comete eutanásia, inspirado na generosidade, um dos valores morais por excelência: age conforme a moral e contrário ao Direito. Assim, as únicas aproximações conhecidas são aquelas relacionadas ao papel da sanção penal em fenômenos amplamente considerados. É o caso da queda do número de abortos, na Alemanha, após a descriminalização da conduta e da ineficiência do endurecimento dos crimes hediondos, no tocante à prevenção do delito. No primeiro caso, demonstrou-se que a sanção penal impedia que a gestante fosse esclarecida pelo Estado dos impactos de saúde de sua decisão, bem como dos serviços que a ela estariam disponíveis, caso ela optasse pela manutenção da gravidez (vide, por todos, FAÚNDES et al., 2007). No segundo, a conclusão foi obtida a partir de estudos de projeção e de evolução, demonstrando que o aumento de punição não gerou diminuição de condutas (ILANUD, 2007). 48 Basta ver como a crise do finalismo, vivida na década de 1970, na Europa, deu-se ao redor da impossibilidade de demonstração do livre arbítrio e, via de conseqüência, à aludida capacidade inata de o sujeito escolher entre o prazer potencialmente obtido por meio da infração e o desprazer consubstanciado na pena. Ainda em 1970, Gimbernat Ordeig em seu famoso Hat die Strafrechtsdogmatik eine Zukunft? (1970, p. 379-410) propunha o fim da culpabilidade, idéia desenvolvida, em 1976, por Günther Jakobs em Schuld und Prävention . Claus Roxin buscou contornar a questão a partir do alinhamento políticocriminal da dogmática à necessidade preventiva da pena, como defendeu em Kriminalpolitik und Strafrechtssystem (1973). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 91 efeitos, propomo-nos a nos aproximar da questão a partir da observação de alguns dados empíricos, que trazem alguns dos aspectos envolvidos na discussão sobre sanções. Não obstante tais limitações, conforme apresentaremos a seguir, consideramos que as observações feitas a partir de tais dados trazem pontos fundamentais à discussão do problema. Tendo em vista as dificuldades em se trabalhar empiricamente com a prevenção geral positiva, esta pesquisa escolheu tratar apenas de dois tipos de efeitos tradicionalmente reputados a ela: as idéias de intimidação e de retribuição. Nesse sentido, consideramos o seguinte: Quanto à função de intimidação: é preciso contrastar o grau de intimidação da sanção penal com o grau de intimidação de outras sanções não penais. Para tanto, é necessário partir da perspectiva daquilo que o agente potencial percebe como quadro de ameaças de sanções que pode sofrer por condutas análogas. Devemos tomar dilemas verossímeis (situações que colocam ao agente a decisão entre proposições contemporâneas e de igual valor) e com registro de aceitação de uma das proposições. Assim, devemos excluir os falsos dilemas, os dilemas inexistentes e os dilemas não inferíveis. Falso dilema: trata-se de submeter um quadro de opções ou proposições à escolha do agente, sendo que tais proposições são ou acarretam conseqüências não comensuráveis. Como exemplo, bastaria considerar que um indivíduo possa enfrentar um dilema entre praticar um homicídio e estacionar um veículo em local proibido. Não faria sentido compararmos o grau de intimidação percebido por um agente diante de tal dilema, pois se trata de um falso dilema. Dilema inexistente: trata-se de supor a necessidade de escolha entre duas proposições, sendo que falta a motivação primordial para a escolha. Apesar de parecer bastante trivial, o problema do dilema inexistente muitas vezes não é compreendido, pois é confundido com o dilema não inferível. Como exemplo, considere exigir de um indivíduo abastado, que valoriza mais o ócio do que o trabalho, que decida entre furtar e trabalhar. Falta-lhe a motivação primordial para a escolha e, portanto, o dilema inexiste. Dilema não-inferível: trata-se de uma situação em que não se conhece nem as preferências (motivações primordiais) dos agentes potenciais, nem se sabe se Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 92 enfrentaram um dilema, pois não há registro da decisão por uma das proposições. Para ilustrar, tome-se a seguinte situação: sabe-se que numa comunidade de 10 milhões de habitantes, 2 mil habitantes cometeram o crime de furto num determinado período. Pergunta-se: o que deve ser inferido em termos de grau intimidatório da sanção ao crime de furto a respeito dos demais 9.998.000 habitantes? A resposta correta é que nada pode nem deve ser inferido a respeito desta população, pois não se tem qualquer dado a respeito de sua motivação primordial para o cometimento (ou para o não-cometimento) do crime de furto e não se sabe se o dilema foi enfrentado por aqueles que não o cometeram. Aqui, somente seria possível inferir dilema a partir do registro quanto à ocorrência do furto ou de tentativa de furto. Mas se o agente cogita cometer o furto e desiste de ir em frente, não temos como obter registro de enfrentamento do dilema. Supor, sem dados, que tais habitantes teriam motivação para cometer o crime de furto e que só se abstiveram de cometê-lo em função da percepção quanto ao risco de sofrerem a sanção seria equivocado. Análise relevante (dilemas com registro): deve ser feita apenas sobre o conjunto de indivíduos em relação aos quais há registro de ter enfrentado o dilema e optado pela exposição à ameaça de sofrer sanção penal. Ao compreendermos como as proposições foram valoradas pelos agentes que praticaram o crime, podemos com base na realidade (e não numa suposição infundada sobre a realidade) reformular o conjunto institucional que compõe tais valores e então desenhar políticas públicas vinculadas a uma determinada expectativa de efeito sobre a realidade. Quanto à função retributiva: em sua concepção tradicional, a função retributiva justifica-se pela vontade do grupo social que sustenta sua imposição e não pela expectativa de reação a ela por parte do agente potencial (embora possa estar presente). Embora seja legítimo e necessário ponderar a respeito do grau de mal infligido pela sanção, a decisão coletiva a respeito de expressar reprovação a uma conduta satisfaz a moralidade do próprio grupo que deseja manifestar tal expressão. Assim, não faria sentido buscar a mensuração da eficácia da função retributiva. Ela se impõe ou não por força de uma convenção social, mediante ato de força concretizado na normatização. Nosso problema primordial é verificar o grau de dissuasão da sanção penal. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 93 Na situação-problema selecionada, temos os quesitos necessários para uma aproximação quanto à percepção dos agentes potenciais a respeito do grau de intimidação penal. Esses quesitos são: (i) um dilema real, geralmente ocasionado pela escassez de recursos do agente potencial e a necessidade de distribuí-los entre diferentes atores com os quais o agente potencial deve lidar; (ii) condutas substancialmente análogas que geram sanções de diferentes naturezas; e (iii) a ameaça de sanção penal presente na hipótese de inadimplemento da contribuição devida ao INSS pela parcela do empregado. 1.2 Ressalvas quanto à validade e utilidade da hipótese escolhida Quanto à função da sanção penal: como colocado acima, não cabe questionar o grau de eficácia da sanção penal em sua função retributiva. Ou seja, se o principal motivo da opção pela responsabilização penal for o retributivo, então o presente estudo mostra-se irrelevante. Contudo, se o propósito de utilização da sanção penal for de prevenção geral negativa, torna-se imperativo partir dos dados da realidade (e não de meras suposições ou apostas) para então tomar uma decisão informada a respeito da expectativa real que se quer ter com a opção pela utilização da via penal. Quanto à escolha do crime de apropriação indébita: (e exclusão do crime de sonegação fiscal): na apropriação indébita é razoável assumir que a probabilidade do agente ser autuado é mais alta do que no crime de sonegação fiscal, já que não é preciso provar fraude na apropriação indébita. Basta o inadimplemento. O agente que pratica este crime provavelmente experimenta dificuldade econômico-financeira, o que não necessariamente se verifica para quem comete sonegação fiscal. A situação de crise caracteriza um domínio de perda o que reduz as variáveis a serem consideradas e propicia uma melhor aproximação ao dilema: os credores inadimplidos relevantes procurarão satisfazer seus créditos contra a devedora e, exceto em caso de dependência em relação à devedora, suspenderão relações. Se tomarmos a metáfora de jogos e considerarmos como jogadas as decisões tomadas pelas empresas e seus credores, temos que as empresas em crise tipicamente se encontram em cenário de finitude de jogadas (diferentemente do que acontece numa empresa solvente). As decisões têm que Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 94 visar ao aumento do número de jogadas (continuar no jogo), sendo que qualquer aumento marginal (em termos de número de dias em funcionamento) é percebido como um benefício. Todo este quadro é menos complexo em termos de variáveis e incentivos percebidos pelo agente do que o quadro de sonegação. Quanto ao fator “suspensão da punibilidade mediante pagamento”: A possibilidade de pagar a contribuição previdenciária devida e extinguir a punibilidade é um fator que pode amenizar o caráter intimidatório da sanção, mas não o elimina.49 Cabem aqui duas assunções relevantes: (a) Excesso de auto-confiança por parte do gestor: para retomarmos a metáfora das jogadas exibida no item anterior, devemos considerar que a suspensão da punibilidade mediante pagamento pode ser tratada apenas como uma “segunda chance” ou “segunda rodada” oferecida ao particular em relação ao INSS. Isso não anula a existência de caráter intimidatório da sanção penal associada à apropriação indébita, pelo seguinte: caso o agente queira apostar na “segunda rodada”, necessariamente terá que partir de uma das duas “estratégias”: (i) reservar caixa para pagamento pela suspensão da punibilidade e arcar com encargos ou (ii) apostar na capacidade de geração de receita futura capaz de pagar pela suspensão de punibilidade. As duas exibem excesso de auto-confiança por parte do gestor, sendo que na segunda esse fator é ainda mais intenso; 49 Legislação e jurisprudência quanto à possibilidade de extinguir a punibilidade pelo crime de apropriação indébita previdenciária sofreram várias alterações nas últimas décadas. O crime de apropriação indébita previdenciária vem tipificado no art. 1º da Lei 9.983/2000, que acrescentou ao Código Penal um Art. 168-A, o qual define apropriação indébita previdenciária como “deixar de pagar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional” e prescreve a pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. O §2º de tal dispositivo estabelece que “é extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal”. Até 2003, só haveria extinção da punibilidade por apropriação indébita previdenciária com pagamento integral e anterior ao recebimento da denúncia. O PAES – Programa de Parcelamento Especial (ou REFIS II), criado pela Lei 10.684/2003, passou a admitir a “suspensão da pretensão punitiva do Estado” referente à apropriação indébita previdenciária durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente do crime estivesse incluída no regime de parcelamento (art. 9º). Pela lei instituidora do PAES, uma vez feito pagamento integral dos débitos, a punibilidade pelo crime de apropriação indébita previdenciária seria extinta (art. 9º, §2º). Como esses dispositivos não fazem referência ao recebimento ou não de denúncia para fins de suspensão e extinção de punibilidade, passou-se a interpretar a Lei 10.684/2003 como autorizadora da suspensão (mediante inscrição no programa de parcelamento) e da extinção de punibilidade (pelo pagamento total) independentemente de oferecimento de denúncia. Já o REFIS III, criado pela Medida Provisória No 303, de 29 de junho de 2006, exclui do respectivo programa de parcelamento os débitos relativos a impostos e contribuições retidos na fonte ou descontados de terceiros e não recolhidos à Fazenda Nacional ou INSS (art. 2º, I). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 95 (b) Custo reputacional independente de condenação: embora decorram da sentença condenatória com trânsito em julgado inúmeras conseqüências relevantes para o condenado (a própria imposição da sanção, a perda da primariedade, etc), dependendo do valor da imagem do agente e do respectivo grau de suscetibilidade a abalos, a condenação é desnecessária para afetar a imagem. Como se sabe, há muitos casos em que a mera publicização da autuação e da investigação produzem abalo substancial sobre a reputação do agente. 1.3 Dados coletados A pesquisa foi desenvolvida mediante coleta de dados quantitativos e dados qualitativos. Tipos de dados quantitativos e qualitativos (i) quantitativo: informações referentes ao período de 1988 e 2008 extraídas de processos judiciais relativos a 50 (cinqüenta) empresas acusadas de apropriação indébita por não-recolhimento do pagamento de INSS-empregado, e que no mesmo período foram acionadas por outros credores. Estas informações foram reunidas no gráfico reproduzido abaixo (cuja versão detalhada consta dos Anexos 1 e 2) e no banco de dados em tabela Excel (Anexo 3) . Descrição detalhada quanto à coleta destes dados segue abaixo. (ii) qualitativo: entrevistas com 10 (dez) advogados de três especialidades diversas que trabalham em escritórios de advocacia de primeira linha em São Paulo,com um membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e com um Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O objetivo da parte qualitativa é auxiliar possíveis interpretações dos dados extraídos da parte quantitativa. Uma compilação organizada das informações obtidas nas entrevistas, bem como descrição detalhada quanto à coleta destes dados segue abaixo. Limitações de representatividade: (i) quanto à parte quantitativa: considerando a dificuldade na coleta de dados para a parte quantitativa, nossa amostra de 50 empresas é muito pequena para permitir Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 96 generalização de comportamento em relação a empresas não compreendidas na amostra, que enfrentaram situação análoga. (ii) quanto à parte qualitativa: não assumimos relação de Proxy entre as declarações dos entrevistados e a realidade de conduta de seus clientes. Como explicado na seção própria, os dados obtidos nas entrevistas servem para alimentar a análise da parte quantitativa. 1.4 Método de coleta de dados para a parte quantitativa: Para o desenvolvimento da pesquisa empírica, selecionamos decisões proferidas pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) que versassem sobre o crime de apropriação indébita (art. 168-A do Código Penal). Este levantamento foi feito no banco de dados disponível na página web do Tribunal (http://www.tj.sp.gov.br), por meio da referência legislativa “CP-40 e 168-A”, entre os dias 15 e 23 de fevereiro de 2009. Do resultado de 768 decisões, consultamos 230 acórdãos que atenderam aos seguintes critérios: (i) sede de apelação criminal; (ii) condenação proferida pelo TRF3; (iii) origem da Seção Judiciária de São Paulo e (iv) valor consolidado de não recolhimento de INSS superior a 40 salários-mínimos (aproximadamente 18 mil reais). Do nosso universo inicial de 230 acórdãos, somente 128 acórdãos atenderam aos critérios supra mencionados. A partir destas decisões extraímos o nome da empresa que deixou de repassar os valores descontados de verbas trabalhistas à Previdência, e verificamos se havia execuções cíveis e fiscais em seu nome na primeira instância do estado de São Paulo. Para esta investigação utilizamos o sistema de “Consulta das informações relativas à tramitação dos processos de Primeiro e Segundo Grau” disponível no portal eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP (http://www.tj.sp.gov.br/consulta/Processos.aspx). As empresas sediadas fora da capital do Estado foram consultadas em seus respectivos foros distritais, que indicam tanto processos de execução cível quanto fiscal. Já as empresas paulistanas foram objeto de investigação nos Foros Regionais (Santana, Santo Amaro, Jabaquara, Itaquera, Vila Prudente, Ipiranga, Pinheiros, Nossa Senhora do Ó, Lapa, São Miguel Paulista, Penha de França, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 97 Tatuapé e Parelheiros) e o Foro central (Fórum João Mendes), na busca por execuções cíveis; as execuções fiscais foram pesquisadas somente no âmbito estadual, disponíveis no sistema da Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (PRODESP), também disponível na página da web do TJSP. Todas as empresas que eram rés em quaisquer processos foram selecionadas e tabeladas no software Excel ®, conforme os seguintes critérios: (i) número do processo no TRF3, (ii) nome da empresa; (iii) tipo penal presente na condenação; (iv) período de não-recolhimento de INSS; (v) sede da empresa, (vi) data da distribuição do processo nas varas (cíveis, fiscais ou da Fazenda Pública) e (vii) tipo de ação processual. Considerando o período de não recolhimento de INSS, selecionamos, nas 50 empresas registradas, ações de execução que foram distribuídas até um ano antes do início do não recolhimento e seis anos após o fim do último débito previdenciário. Este intervalo de tempo visa abarcar os processos ajuizados dentro do prazo prescricional de cinco anos para propositura de ações, e de mais um ano, como tempo para o Fisco ajuizar a execução fiscal após a inscrição na dívida ativa.A abrangência destes períodos permite-nos observar a escala de prioridades eleita pelo agente para estipular o tratamento dispensado a cada um dos grupos de interesses na empresa com os quais lida Optamos por este caminho para o levantamento empírico em razão da inexistência de bancos de dados de acesso público e/ou gratuito sobre a saúde financeira das empresas no Brasil e de processos judiciais em que atuem no pólo passivo. Ao longo da pesquisa, percebemos que o cruzamento de dados relacionados a informações para crédito, como protesto de títulos, ou ações judiciais cíveis e as criminais com as respectivas empresas inexiste, uma vez que cada tipo de informação, quando disponível em meio eletrônico, pertence a um banco de dados independente. Por exemplo, as principais informações sobre crédito de empresas estão disponíveis nos bancos de dados do Serasa (Centralização de Serviços de Bancos S.A), cujo acesso é restrito e pago, enquanto que as ações judiciais podem ser consultadas pela página eletrônica do TJSP, cujo banco, apesar de público, é incompleto. Diante das dificuldades encontradas para a obtenção de dados, optamos pela utilização de fontes públicas (bancos de dados do TRF3 e do TJSP) para o Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 98 levantamento de empresas nas quais seu administrador foi réu em um processo criminal e o posterior cruzamento destas informações com eventuais processos cíveis, para então identificarmos a situação financeira da empresa. Assim, conseguimos utilizar fontes de acesso público e gratuito, atribuindo maior transparência metodológica à pesquisa. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 99 1.5 Gráficos com organização dos dados coletados: A) Gráfico para Cenário 1: Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 100 B) Gráfico para Cenário 2: Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 101 1.6 Tratamento e análise dos dados coletados na pesquisa quantitativa Dados de natureza distinta para grupos de credores Doravante utilizaremos a denominação de “Dado A” para dado de evento de inadimplemento e “Dado B” para evento de ajuizamento de ação de cobrança ou execução. A) Dados referentes à dívida INSS-empregado (doravante denominados “Grupo de Dívida INSS”): quanto a estes, referem-se ao período de inadimplemento. Este período consta nas faixas indicadas no gráfico. B) Dados referentes a outras dívidas (doravante denominados “Grupo Outros Credores”): quanto a estes, referem-se às datas de ajuizamento de ações judiciais de conhecimento, cobrança e execução individual e coletiva (pedido de falência). Não levantamos execuções na Justiça do Trabalho. O Grupo de Outros Credores subdividese em “Outros Credores-Fisco” (triângulo preto) e “Outros Credores-Particular” (triângulos azul, vermelho e cinza). Triângulos vermelhos, que representam ajuizamento de pedido de falência, necessariamente referem-se a credores particulares, pois nem o Fisco nem o INSS têm legitimidade para requerer falência. Além disso, quanto às dívidas perante o Fisco, os dados levantados não nos permitem saber quantas são as execuções relativas a dívidas declaradas pelo contribuinte e dívidas não-declaradas pelo contribuinte (sonegação). Observamos que: B.1) Os Dados B relevantes para a análise referem-se a ações que implicam cobrança ou que de qualquer forma implicam constrição ao patrimônio, como execução, busca e apreensão, possessórias, etc. (triângulos azul, preto, vermelho e cinza). Embora constem no gráfico, desprezamos na análise dados referentes a ações no grupo indicado pelo triângulo amarelo, pois estas têm por objeto requerer o reconhecimento de um direito e então apurar sua liquidez. Interessam-nos apenas os casos em que há exigibilidade e liquidez do crédito, pois estes criam o dilema para o devedor. B.2) O custo de acesso a dados quanto à data precisa de inadimplemento do crédito executado ou cobrado nestas ações (Dados A) seria proibitivo para a realização desta pesquisa. Por isso a diferença da natureza de dados entre os Grupos A e B. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 102 (i) Tratamento dos dados, considerando a natureza distinta para os Grupos A e B: Inferência de A (inadimplemento) em função de B (ajuizamento): se quisermos seguir literalmente a hipótese lançada no estudo, teríamos que comparar dados com a mesma natureza. Já observamos que isto seria inviável em termos de custos associados à obtenção de dados referentes à data de inadimplemento para o Grupo B. Os dados do Grupo B nos permitem inferir o dado obtido para o Grupo A. Esta inferência é função do prazo prescricional para ajuizamento de ações de cobrança e de execução, que é de cinco anos para os sub-grupos B. Assim, em princípio qualquer dado relativo ao Grupo B necessariamente se refere a eventos de inadimplemento ocorridos entre o dia anterior ao dia D do ajuizamento menos cinco anos. (ii) Assunção do Dado A para o Grupo “Outros Credores- Particulares”: não obstante o prazo prescricional de cinco anos indicado no item acima para propositura de ações, advogados especializados em litígios cíveis afirmam que, na maior parte dos casos, tratando-se de credor não financeiro, este leva em média entre um e dois meses para ajuizar uma ação de execução contra o devedor, depois de notificá-lo extrajudicialmente do inadimplemento; tratando-se de instituição financeira, esta costuma levar em média entre dois e quatro meses para ajuizar uma ação de execução contra o devedor após a notificação extrajudicial para pagamento. Assim, assumimos que o Dado A é contemporâneo ao Dado B para o Grupo “Outros CredoresParticular”. (iii) Assunção do Dado A para o Grupo “Outros Credores-Fisco”: Se soubéssemos para cada dado dentro do Grupo “Outros Credores-Fisco” qual se refere a uma dívida declarada e qual se refere a uma dívida sonegada, poderíamos isolar o subconjunto das declaradas, para as quais poderíamos trabalhar a assunção de simultaneidade entre o Dado B e o Dado A. Já para as não-declaradas, precisaríamos proceder a uma análise combinatória abrangendo cada um dos eventos distribuídos entre o ano um ao ano cinco, para então construirmos todos os cenários possíveis de priorização do agente. Isto porque: • Quanto ao Dado A para o Grupo “Outros Credores-Fisco” tratandose de dívida declarada pelo contribuinte: não obstante o prazo prescricional de cinco anos indicado no item acima para propositura de ações, advogados especializados em Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 103 execuções fiscais afirmam que o Fisco costuma levar entre seis meses e um ano para ajuizar a execução fiscal após a inscrição na dívida ativa. • Quanto ao Dado A para o Grupo “Outros Credores-Fisco” tratandose de dívida não declarada pelo contribuinte (sonegação): a execução fiscal relativa a dívidas não declaradas depende de fiscalização da autoridade competente. Ao conduzirem a fiscalização, os agentes do Fisco procuram checar todos os dados relativos aos últimos cinco anos, justamente em função da prescrição para a ação executiva. Assim, uma ação de execução fiscal referente à dívida não-declarada pode referir-se a um evento de inadimplemento ocorrido no máximo cinco anos antes do ajuizamento. • Tratamento para o problema indicado no item (iii) acima: ao invés de procedermos a uma análise combinatória de todas as possibilidades referentes à assunção do Dado A para o Dado B no que respeita os “Outros Credores-Fisco”, optamos por construir dois cenários hipotéticos quanto aos dados obtidos. No Cenário 1, trabalhamos com um Dado A simultâneo aos Dados B referentes aos “Outros CredoresFisco”. No Cenário 2, trabalhamos com um Dado A que se assume ocorrido cinco anos antes dos Dados B referentes aos “Outros Credores-Fisco”. Assim, para obtermos o Dado A neste Cenário 2, deslocamos para a esquerda do gráfico todos os Dados B referentes aos “Outros Credores-Fisco” por empresa num espaço correspondente a cinco anos. Controle de contemporaneidade do dilema – corte temporal anterior e posterior ao período de inadimplemento perante o INSS: Desprezamos da análise todos os eventos de cobrança, execução, possessórias, etc. ajuizados pelo Grupo Outros Credores, situados antes dos cinco anos anteriores ao marco inicial do período de inadimplemento ao INSS. Desprezamos também os eventos ocorridos a partir do 6º ano posterior ao termo final do período de inadimplemento, ressalvando-se a análise do Cenário 2. Isto porque assumimos que os eventos que ficam de fora destes marcos temporais podem não estar relacionados com as mesmas Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 104 circunstâncias de crise que motivam o dilema (o dilema só existe se as proposições forem razoavelmente contemporâneas). 1.7 Resultado da análise de dados quantitativos por construção de cenários Cenário 1: Assunção de simultaneidade entre os Dados A e os Dados B para o Grupo “Outros Credores” Das 50 empresas analisadas, 34 optaram por deixar de recolher o INSSempregado em primeiro lugar, isto é, antes de inadimplirem qualquer outro credor que tivesse ingressado com uma medida de cobrança, executiva ou possessória. O não pagamento de INSS-empregado foi, portanto, selecionado como topo em priorização negativa para 68% da amostra (Grupo de Empresas I). A leitura mais minuciosa do gráfico deve interpretar a freqüência e distribuição temporal dos Dados B relativos ao Grupo Outros Credores em contraste com o período de não recolhimento de INSS-empregado. Se aplicarmos esta perspectiva de leitura quanto às remanescentes 17 empresas (executadas ou cobradas por pelo menos um credor antes de inadimplirem o INSS-empregado), temos que: Dentro das remanescentes 17 empresas, 13 empresas têm a maior parte de eventos de execução ou cobrança pelo Grupo Outros Credores majoritariamente concentrada posteriormente ao início do não recolhimento do INSS. Isto significa que tais empresas mantiveram-se solventes com a maioria de seus outros credores no momento em que deixaram de recolher o INSS-empregado, mas, após um determinado período em que já estavam inadimplentes com INSS e com uma minoria de seus outros credores, não conseguiram mais satisfazer os créditos relativos à maioria do Grupo Outros Credores. Essa dinâmica de priorização é indicada no gráfico pela esmagadora incidência de eventos de cobrança, execução e possessórias do Grupo Outros Credores situada na zona à direita do gráfico, isto é, à direita da indicação dos termos iniciais do período de inadimplemento de INSS-empregado. O perfil de priorização deste sub-grupo de 13 empresas (Grupo de Empresas II) alinha-se ao perfil do Grupo de Empresas I. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 105 Devemos ainda tentar interpretar a relação entre encerramento do período de inadimplemento de INSS-empregado e eventuais eventos ocorridos posteriormente a este termo final. Uma leitura plausível é a de ocorrência de inversão de prioridades, eventualmente ocasionada pela necessidade de pagar o INSS-empregado para suspender a punibilidade. Numa aproximação quanto à dinâmica provável do regime de priorização, teríamos que determinados empresários primeiro deixam de pagar o INSS-empregado e enquanto isso, continuam pagando todos ou a maioria do Grupo Outros Credores; posteriormente, surge a “segunda chance” ou “última rodada” na interação com INSS, em que se coloca ao empresário o dilema “pague o INSS-empregado ou sofra as conseqüências da responsabilização penal”. Nesta ocasião, muitos empresários aparentemente conseguem pagar o INSS-empregado, e continuam funcionando. Isto se infere pela existência de eventos de cobrança, execução, possessórias, etc., posteriores ao termo final do período de inadimplemento ao INSS. Uma interpretação possível é que se trata de inversão de prioridade. Esta interpretação, no entanto, só se sustenta se, depois de pagarem o devido a título de INSSempregado, tais empresas não voltaram a inadimplir a contribuição no período analisado. Se elas voltaram a inadimplir o INSS-empregado, mas o dado apenas não aparece no gráfico por não terem sido fiscalizadas pelos agentes do INSS ou não terem sido condenadas judicialmente, então a hipótese de inversão de prioridades não se aplica ou é mitigada. Caso aplicável, o movimento de inversão de prioridades pode ser percebido para 44 empresas, das 50 do gráfico, ou seja, 88% da amostra. Consideremos agora as três empresas remanescentes, excluídos os Grupos de Empresas I e II (estes exibem perfil de priorização substancialmente idêntico): destas, duas deram prioridade mediana ao pagamento do INSS. A empresa indicada na linha “3” do gráfico fez a seguinte prioridade positiva: 1º Outros Credores-Particulares, 2º INSS e 3º Outros Credores-Fisco. A empresa indicada na linha “40” teve dois pedidos de falência pouco antes de deixar de pagar o INSS-empregado. É razoável supor que tenha elidido tais pedidos e continuado solvente em sentido jurídico. Se ela de fato elidiu os pedidos, é porque cedeu às pressões do Grupo Outros Credores-Particulares e logo inverteu sua prioridade inicial. Passou a primeiro deixar de pagar o INSS-empregado, para depois de alguns anos deixar de pagar credores do Grupo Outros CredoresParticulares. O que prevalece para a análise é a estratégia de prioridade inicial. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 106 Apenas uma estabeleceu topo de prioridade positiva ao pagamento ao INSSempregado (empresa indicada na linha “12” do gráfico). O resultado final para o Cenário 1 é o seguinte: • 94% das empresas da amostra preferem priorizar o pagamento da maioria do Grupo Outros Credores ao pagamento de INSS-empregado; • 68% das empresas da amostra deixam de pagar o INSS-empregado antes de qualquer outra dívida; • 88% das empresas da amostra provavelmente adotam a estratégia de inversão de prioridades, para extinguirem ou suspenderem a punibilidade da apropriação indébita; • 4% das empresas da amostra atribuem prioridade mediana ao pagamento de INSS-empregado; • 2% das empresas da amostra priorizam totalmente o pagamento de INSSempregado sobre quaisquer outras dívidas. Cenário 2: Para o Grupo Outros Credores-Fisco, o Dado A ocorre 5 anos antes do Dado B; para o Grupo Outros Credores-Particulares, o Dado A é simultâneo ao Dado B. Das 50 empresas analisadas, 20 optaram por deixar de recolher o INSSempregado em primeiro lugar, isto é, antes de inadimplirem qualquer outro credor que tivesse ingressado com uma medida de cobrança, executiva ou possessória. O não pagamento de INSS-empregado foi, portanto, selecionado como topo em priorização negativa para 40% da amostra (Grupo de Empresas I). Das remanescentes 30 empresas deduzido o grupo acima, 24 optaram por deixar de pagar o Fisco em primeiro lugar. Nestas, o padrão de prioridade de pagamento é o seguinte: 1º Outros Credores Particulares; INSS e por último o Fisco. Supõe-se que se trate de casos relacionados à sonegação fiscal detectada por fiscalização. Provável inversão de prioridade: 44 empresas. Das seis empresas remanescentes, deduzidos os conjuntos acima, há dois Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 107 perfis claramente distintos: quatro empresas dão alta, porém não total prioridade negativa ao INSS-empregado, o que se infere pela concentração maior de dívida ao Grupo Outros Credores-Particular após o inadimplemento com o INSS. Para três destas quatro, inexiste dívida fiscal ou não houve autuação. Uma das quatro priorizou positivamente a dívida fiscal em relação à de INSS-empregado, mas, de modo geral, apresentou topo de prioridade de pagamento para o Grupo Outros Credores-Particulares. Quanto às 2 empresas remanescentes, deduzidos os conjuntos acima, temos o caso das empresas indicadas nas linhas “5” e “40” do gráfico, para as quais as inferências presentes no Cenário 1 não se alteram. Para tais empresas inexistiu dívida fiscal no período considerado ou não houve a respectiva autuação. O resultado final para o Cenário 2 é o seguinte: • 40% das empresas da amostra deixam de pagar o INSS-empregado antes de qualquer outra dívida; • 48% das empresas da amostra estabelecem a seguinte prioridade positiva: 1º Grupo Outros Credores-Particulares; 2º INSS-empregado; e 3º Fisco; • 88% das empresas da amostra provavelmente adotam estratégia de inversão de prioridades; • 8% das empresas da amostra atribuem prioridade mediana ao pagamento do INSS-empregado (embora não no topo de negativa), priorizando positivamente o Grupo Outros Credores-Particulares; • 4% das empresas da amostra priorizam totalmente o pagamento de INSSempregado sobre quaisquer outras dívidas. 1.8 Conclusão sobre os dados quantitativos A conclusão a partir destes dados é que, tendo ocorrido ou não a inversão de prioridades, a maioria dos agentes na amostra preferiu a condenação penal a sanções não penais. Isto porque sabemos que houve condenação penal por apropriação indébita em todas as 50 empresas da amostra. O ponto era identificar se as empresas tinham deixado de pagar seus redores particulares antes ou depois de terem deixado de pagar o INSS. Como sabemos que a maioria das empresas, em qualquer cenário, preferiu deixar Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 108 de pagar o INSS antes de deixar de pagar seus credores particulares, então podemos concluir que a sanção não penal, nestes casos, é percebida como mais ameaçadora do que a sanção penal. 2. PARTE QUALITATIVA 2.1 Método de coleta de dados para a parte qualitativa: O fio condutor das entrevistas foi a proposição aos entrevistados de um hipotético caso prático submetido ao seu aconselhamento, em que o empresário teria de honrar três grupos de dívidas: comerciais (títulos extrajudiciais), tributária próprias e tributárias em regime de substituição (INSS-empregado), mas não tem recursos bastantes para todas elas. Procurou-se, por meio desta abordagem, diminuir o impacto de considerações morais (o dilema deixa de ser devo/quero versus não devo/quero pagar, porém posso versus não posso pagar) e dispensar qualquer elemento de fraude. Com isso, tem-se em vista o delito de apropriação indébita previdenciária (168-A do Código penal), para cuja configuração, de maneira simplificada, bastaria o não-repasse ao INSS da contribuição retida na fonte correspondente à parcela do empregado. Buscou-se atender às características previamente esboçadas no projeto, a saber: (i) que o ilícito devesse ser capaz de gerar apenas dano patrimonial à sociedade como um todo e decorresse típica e diretamente de uma decisão empresarial; (ii) que o agente potencial administrasse recursos escassos e devesse portanto selecionar qual titular de interesses enfeixados pela empresa (fornecedores, clientes, trabalhadores, sócios, Estado, difusos, etc.) seria privilegiado e qual seria preterido pela decisão; (iii) que o agente conhecesse as naturezas das sanções – jurídicas ou sociais – que pudessem ser utilizadas por parte de cada um dos grupos de interesses com os quais lida, sendo que o Estado seria aquele que, “preterido”, iria se utilizar da sanção penal e (iv) que o agente fosse capaz de associar uma taxa de probabilidade ao risco de ser responsabilizado e de sofrer a sanção imposta em decorrência de ter preterido algum dos titulares de interesses na empresa. Apresentado o caso prático, o entrevistador iniciava a entrevista com a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 109 seguinte pergunta: “quando o cliente expõe essa situação ao advogado, quais perguntas são essenciais para que se possa dar o aconselhamento desejado?”. 2.2 Considerações quanto à escolha do perfil dos entrevistados: (i) Razões para exclusão de empresários: dificilmente os filtros morais deixariam de exercer um papel decisivo na resposta, caso fosse dirigida a empresários. Seria ainda preciso entrevistar gestores de empresas de diversos ramos de atividade econômica e porte de empresas. (ii) Razões para opção por advogados: preferiu-se a abordagem de um técnico que, além de dominar com o devido distanciamento os riscos associados às escolhas presentes na escolha da situação-problema, tem experiência em acompanhar casos análogos. Supõe-se que antes de tomar a decisão que compõe o núcleo do caso prático, os agentes buscariam aconselhamento jurídico para levar em consideração todas as variáveis importantes. (iii) Profissionais escolhidos: Foram entrevistados advogados das seguintes áreas: 4 (quatro) criminalistas, 4 (quatro) falencistas e 2 (dois) tributaristas50. Ainda foram entrevistados um membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE – e um Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. Total de entrevistados: 12 (doze). 2.3 Qualificações às respostas dos entrevistados (i) Seletividade: Exceto pelos entrevistados do CADE e do INSS, todos os advogados entrevistados trabalham em escritórios de advocacia de primeira linha, situados em São Paulo. Portanto, deve-se assumir que o recorte de realidade no qual baseiam suas experiências refere-se a empresários e gestores de empresas de grande e médio portes. Para estes, deve-se assumir que o custo reputacional seja superior ao de gestores de outras empresas, já que a imagem das de maior porte recebe maior publicidade em casos de crime tributário do que se verifica para empresas de menor porte. 50 A referência aos entrevistados será feita a partir das seguintes siglas: AC, para advogado criminalista; AT, para tributarista, AF, para falencista e PI1 para o Procurador do INSS Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 110 (ii) Representatividade: a questão colocada aos advogados entrevistados tem como foco o aconselhamento que tais profissionais costumam oferecer quando consultados por seus clientes em dilema semelhante ao da situaçãoproblema objeto desta pesquisa. Como registrado, alguns dos entrevistados relatam que muitos de seus clientes têm forte aversão a qualquer probabilidade de responsabilização penal individual. Não se julgou cabível, no entanto, indagar aos advogados entrevistados qual é o comportamento que efetivamente acabam tomando seus clientes, depois do aconselhamento. Os relatos dos entrevistados, portanto, não servem e não se procurou fazer com que servissem como Proxies para a realidade. 2.4 Tratamento dos dados coletados na pesquisa qualitativa Como afirmado, os dados coletados na parte qualitativa não servem como Proxy para a realidade, mas são utilizados para empreender a análise dos dados quantitativos. 2.5 Síntese das respostas às entrevistas A partir das respostas mais comuns, organiza-se- a síntese do material colhido, abaixo. 3. DIMENSÃO DO PROBLEMA FINANCEIRO A primeira variável importante para enfrentar o caso prático seria compreender se aquilo que se nomeou, no caso prático, de “problema financeiro” é uma dificuldade transitória, de liquidez, ou seja, a empresa está cronicamente endividada, com um cenário provável de falência ou de recuperação judicial. “A primeira pergunta [a se fazer ao cliente, no caso pratico] é: escuta, você acha que o negócio é viável? Justifica a gente ficar pensando o que pagar? É o caso de a gente procurar uma solução para a sua empresa ou a gente tem que pensar em como que vai sair para a liquidação?” (AF2). No cenário de falta de liquidez, o foco do empresário deverá ser o de se “financiar”. Tendo como horizonte o caso prático, esse “financiamento” poderia se Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 111 dar apenas por meio do inadimplemento de um dos grupos de dívidas apontados (credores, impostos próprios e impostos em substituição tributária). Há relativo consenso, entre os entrevistados, no sentido de que o financiamento por meio do inadimplemento dos tributos devidos em regime de substituição deve ser evitado, pois “dá problema no penal”.51 O segundo critério empregado para definir o inadimplemento é o seguinte: evite deixar de pagar o credor que pode emperrar o processo produtivo. O caminho mais viável é o financiamento por meio do inadimplemento dos tributos próprios, “porque é o que mais demora para cobrar, é o que é mais lento na execução, é então onde ele consegue obter um ‘financiamento’: ao invés de dar aquele dinheiro para o Fisco ele usa no giro das atividades dele e aquilo vai aparecer depois de muito tempo, tendo a oportunidade de aparecer um Refis ou alguma coisa” (AF1). Inserido dentro do discurso da liquidez há um sub-registro: o da composição, instituto totalmente natural à tradição de Common Law, mas a que se oferece muita resistência no Brasil (AT1 chama atenção para Projeto de Lei que pretende estatuir a composição no âmbito tributário). O pano de fundo é o de que ao credor interessa muito pouco que a empresa quebre, de sorte que um cenário negociado (a exemplo da recuperação judicial) pode ser bom para ambas as partes: “Está cheio de recuperações judiciais aprovadas pelos credores com deságio de 40%, 50%, para pagar em 15 anos, em 20 anos e aí pode ser que com isso a empresa se viabilize” (AF1). Também, o entrevistado AT1 apontou como solução buscar discutir administrativamente os tributos devidos, quando houver fundamento jurídico para tanto, lembrando-se sempre que a quantidade “de tributos considerados inconstitucionais ou cujas alíquotas foram alteradas por decisões judiciais”. O risco, pondera AF2, é que a recuperação judicial, quando malsucedida, caminha para uma falência. No cenário que ora se denominará, sem rigor técnico, de pré-falimentar, ou seja, “constatado que o negócio é inviável” (AF1), o foco deve se voltar para a responsabilidade pessoal do empresário. Dito de outra maneira, há que tomar cuidados para que a responsabilidade da pessoa jurídica não respingue para o 51 Deixaremos de atribuir essa expressão a um ou mais entrevistado por ter ocorrido na quase totalidade das entrevistas. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 112 campo pessoal. Assim, o primeiro grupo de despesas a ser contemplado é o de tributos em substituição, nomeadamente os retidos na fonte, pelo fato de “dar problema no penal”. Nesses casos, recomenda-se que se transformem os ativos em “patrimônio para pagar isso” (AF1). Em seguida, seria mister atentar às verbas trabalhistas, mormente após a criação da penhora on-line. Também “por meio da execução fiscal se chega relativamente fácil ao patrimônio do administrador” (AF1). Por fim, aponta AF4, há que atentar para obrigações pessoais (aval, fiança) e algumas circunstâncias no âmbito do Direito do consumidor e do ambiental que podem redundar em responsabilidade dos sócios. No tocante aos credores, aqueles com maiores relações pessoais com o empresário serão preferidos, embora o recomendável fosse que um Administrador fosse contratado e deixasse de pagar a todos os fornecedores, construindo um cenário conjunto de recuperação judicial (AF1). O Estado é o último credor a ser levado em consideração, no que tange aos tributos próprios. 3.1 Critério econômico de definição do inadimplemento Há relativo consenso em torno da idéia de que deve ser priorizado em pagamento o credor com condições de obstar o processo produtivo da empresa devedora. A lógica é a seguinte: abstraídas discussões morais, é do interesse de todos que a empresa supere a crise, o que se torna impossível na hipótese de interrupção do processo produtivo. Logo, o credor mais importante é aquele com maior potencial de parar as atividades da empresa. “O papel do advogado é tentar arranjar soluções jurídicas para um raciocínio que é econômico”, ou seja, “primeiro deixar de pagar dívidas não essenciais à sua atividade” (AT1). Trata-se, segundo o AF4, de “eleição de prioridades”. O primeiro grupo, a que se vai buscar privilegiar, é composto pelos fornecedores dos insumos essenciais à produção: matéria prima, energia elétrica, etc. Um segundo grupo reúne outros credores relativamente substituíveis tais como fornecedores de produtos empregados em procedimentos não produtivos (materiais de escritório, produtos de limpeza etc.) ou cuja suspensão de relacionamento não interrompa imediatamente a produção, a exemplo dos bancos. Nesse grupo, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 113 pondera AF3, o relacionamento pessoal ou comercial do administrador com o fornecedor tem impacto decisivo. O Estado, todavia, pode figurar em posição privilegiada quando a empresa necessitar de Certidão Negativa de Débitos (CND) para, fundamentalmente, participar de licitações públicas. “Por exemplo, uma empresa que forneça para entidades públicas serviços ou bens e precise, para ter o recebimento do seu pagamento, do faturamento do mês ou do período, ou do semestre, enfim, para que ele possa receber ele tem que estar adimplente com as obrigações tributárias, através da CND, por exemplo, - e existem muitos casos assim -”, tem, no Estado, “um credor essencial” (AT1). Essa característica, a propósito, é dos poucos incentivos concretos que o ordenamento jurídico oferece, na opinião de PI1 para que as empresas não se financiem por meio da sonegação fiscal. De maneira geral, porém, aconselha-se sacrificar o pagamento dos tributos próprios, dado que entre o inadimplemento e o pagamento transcorrem alguns anos. É o que AF2 denomina de “possibilidade de se administrar” tal dívida “ao longo do tempo”. AT1 pondera que a estratégia pode variar de Estado para Estado a depender da velocidade e da eficiência do funcionamento dos procedimentos administrativos. Ademais, há - embora cada vez menos - a chance de sequer vir a ser autuado ou de se dar prescrição/decadência. Um fator muito levado em consideração nessa forma de “financiamento” é que “a cada x período de tempo há um programa de parcelamento” (AF2), cujas condições muito provavelmente mostrar-se-ão mais vantajosas do que qualquer outro meio de financiamento. O inadimplemento poderia mostrar-se um recurso “eficiente” (AF2). AF3 afirma que o empresário, nessa situação, usa o inadimplemento tributário como substitutivo do banco. Um outro aspecto vantajoso do inadimplemento tributário em relação ao de credores comerciais está relacionado com o protesto, “primeiro sinal aparente de uma situação falimentar” (AF1), após o quê minguaria o acesso a financiamento pelos meios costumeiros. Já no campo tributário, o lapso temporal entre o inadimplemento e um “sinal externo” é muito maior, raramente inferior a dois anos. Há que acrescentar, por fim, o que se denominou de “componente cultural Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 114 ou sociológico”. O brasileiro, afirma AF3, tem a sensação de que o imposto é “esbulho estatal”, na medida em que o cidadão não sente a contrapartida daquilo que contribui. Assim, o peso moral de uma decisão de inadimplir tributos é muito menor, por exemplo, do que de inadimplir uma obrigação assumida para com um fornecedor com quem o empresário trava uma relação comercial sólida. Uma síntese desse pensamento pode ser encontrada na afirmação do AF2: “não se preocupe com o pagamento dos tributos: eles não vão acabar com o seu negócio”. “O Fisco não colabora em nada em sua atividade econômica, ao contrário de um fornecedor, de um banco, que quando pára de te fornecer recursos ou matéria-prima você passa a ter problemas; então, a situação com o Fisco é ‘mais confortável’”. Registre-se apenas um contraponto. AT2 lembra que as multas tributárias são altíssimas, discordando que se trate de um meio eficiente de financiamento. Faz, porém, ele mesmo uma ressalva: “isso pressupondo o nosso perfil de clientes, isto é, empresários sérios comprometidos com a lisura de seus empreendimentos”. 3.2 Critério supletivo: a sanção penal Elemento comum a todas as respostas é a importância de pagar os tributos recolhidos como substituto, na medida em que o mero inadimplemento pode ser suficiente para configurar o delito de apropriação indébita previdenciária. “Não importa o cenário, eu diria para o meu cliente: se preocupe primeiro com os tributos fonte, por que isso dá ação de apropriação indébita.” (AF2). “Você jamais deixe de pagar os tributos que não são seus” (AT2). “Esse dinheiro não é seu; portanto, se você deixar de pagar vai caracterizar apropriação indébita” (AC3). AF3 chega mesmo a afirmar que se o empresário não puder pagar os impostos retidos na fonte ele “vai procurar gerar caixa. Isso eu posso te dizer que é claro”. “Ele deixa inclusive de honrar dívidas que teriam impacto mais direto nas finanças da empresa, a exemplo de um fornecedor”. O “problema no penal” é sentido, empregando as palavras do AF3, entre os empresários mais conservadores, já na mera possibilidade de virem a ser intimados Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 115 para comparecer a uma Delegacia de Policia; para os mais arrojados, o problema surge quando uma privação efetiva de liberdade assume probabilidade maior do que 50%. O entrevistado AC1 relatou o seguinte caso: ele teve de impetrar um habeas corpus preventivo para que seu cliente, cujo nome sequer havia sido apontado em inquérito policial como alguém a ser eventualmente ouvido, não viesse a receber uma intimação em sua residência. Nesse caso, prossegue, foi de nenhum impacto o argumento de que o remédio seria exagerado em face da baixíssima probabilidade de que ele viesse a ser intimado. Para o cliente, porém, seria demais a humilhação de a esposa vê-lo recebendo tal intimação das mãos de um policial. Em tempo: esse administrador sequer integrava a empresa na época dos fatos. Eu vivi uma situação parecida em dois casos. O primeiro deles é um caso de uma empresa que se viu envolvida em um Inquérito Policial, relacionado com questões tributárias, e diante da perspectiva de que outras ações pudessem gerar outros inquéritos, sem se ter um porquê ou um quando, simplesmente pensando na hipótese de que um novo inquérito pudesse surgir, o presidente queria um habeas corpus preventivo. Contra o que fosse. Como se fosse um salvo conduto contra qualquer investigação criminal. Dá para ter? Não, não existe isso. (...) O segundo deles já aconteceu três vezes: o cliente chega e pede uma medida judicial que impeça a instauração de inquérito policial contra ele. E eu perguntei: existe algum indício de que haja alguma investigação em curso? ‘Não, mas eu não posso ser (investigado). Eu não quero que chegue na minha casa uma equipe da Policia Federal às seis horas da manha’. Mas tem algum motivo que te leve a crer nessa possibilidade? ‘Não, mas eu não posso ser (intimado) (AC4). AC4 confirma esse diagnóstico, afirmando que mesmo após reiteradas advertências de que o pagamento tem o condão de extinguir a punibilidade no delito de apropriação indébita, o empresário continua com medo “do penal”. “O medo nasce da própria investigação. Eu vivencio situações em que o recebimento de uma intimação da Policia Federal ou da Policia Civil, por um empresário, por um ex-presidente de uma determinada companhia, por um atual diretor, já gera turbilhões de movimentos dentro da companhia para ver como é que soluciona aquele problema”. AT1 denomina de psicológico o fator “sanção penal”, porque embora a decisão de não pagamento seja puramente econômica, a pena entra como um fator que não pode ser traduzido em termos econômicos. “O administrador da empresa”, ilustra AC1, “lida diariamente com situações tais como ‘a Receita Federal veio aqui e ficou dois anos e a empresa foi autuada em dez milhões’; ele pensa assim: ‘é a empresa’, entendeu? Quando chega o penal ele fala assim ‘bom, estou sendo Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 116 acusado de sonegação de imposto, estou sendo acusado (está super na moda, a propósito) de não pagar contribuição previdenciária do meu funcionário’; nesses casos, ele sente que é com ele, pessoa física, então aí que incide um fator psicológico muito grande”. Perguntados se o emprego do termo psicológico devia-se a seu caráter subjetivo ou a seu caráter infundado, responderam que é por ser subjetivo. “Só de imaginar a intimação chegando pelo correio, ele não quer” (AC1). Seria verdadeira sanção social: “a persecução penal já um constrangimento social muito grande” (AT1). A percepção ecoa junto a entrevistado funcionário do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE: “A pena de prisão, o empresário algemado, isso sim complica. Há um senso comum de que o empresário tem medo do processo penal, mas do que ele tem medo mesmo é do sistema penal americano [estadunidense], porque lá o empresário vai mesmo pra cadeia”. A perda da primariedade também compõe esse cenário. “Eu vejo vários empresários que me procuram e dizem: eu nunca tive um processo, eu nunca tive nada, meu nome está limpo e eu não quero perder a primariedade. Esse é um medo. Principalmente quando perguntado sobre as conseqüências que a perda da primariedade acarreta, e quando se explica que há uma série de institutos ou de benefícios penais que são admissíveis ao primário, mas que reincidente não tem possibilidade de utilizar, como alternativas de pena, ou como alternativas consensuais ao processo, eles percebem não só a importância moral, como a importância também legal ou jurídica da manutenção da primariedade” (AC2). Concretamente, aponta AC2 que há empresas que operam, por exemplo, no ramo de transportes que têm de oferecer aos clientes comprovação regular de idoneidade de seus sócios, incluindo a folha de antecedentes criminais; o mesmo se diga de empresas de blindagem em razão de exigências do Exército. A sanção penal tem, todavia, um caráter que transcende o psicológico. Os entrevistados AC3 e AT2 afirmaram que a Administração é muito mais ágil na apuração dos delitos tributários do que há uma década e que a autoridade policial, assim como o Ministério Público enxergam, na representação fiscal para fins penais, materialidade suficiente para o oferecimento de denúncia. É crescente a percepção de que os delitos tributários podem sim ocasionar penas privativas de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 117 liberdade. Outro elemento a compor o medo relacionado à sanção penal é o renome da empresa no mercado. “Não é só a cadeia. Eu acho que é a questão no nome relacionado à questão criminal, o que pode gerar, né, em termos de imagem, tanto pessoal quando da própria empresa; então a investigação em si já é capaz de gerar um mal estar tão grande, que pode virar um pânico, nem medo” (AC4). Um aspecto que foi nomeado de penal e merece registro é o da prisão do depositário infiel, superado pela decisão recente do Supremo Tribunal Federal. O AF1 relata que esse era um problema sério, sobretudo na hipótese em que o depósito recaia sobre bens fungíveis, a exemplo de papel ou grãos. Registrem-se duas exceções ao padrão de respostas. Um dos advogados criminalistas arriscaria sustentar que o sacrifício dos tributos em substituição seria preferível, por uma combinação de razões de experiência. Primeiramente, acredita que a tese de inexigibilidade de conduta diversa por dificuldade econômica tem eco nos Tribunais. Em segundo lugar, em virtude de o empresário, ao inadimplir uma obrigação tributária, ter dificuldades de escriturar corretamente, isto é, a tentação de lançar o valor efetivamente pago como se correspondente ao que se devia, é grande. Nesses casos, por haver falsidade, a tese da inexigibilidade não socorreria o empresário. Já o entrevistado AC4 pondera que o inadimplemento de quaisquer das dívidas apontadas pode gerar, ainda que indiretamente, em repercussões penais. “A questão dos credores, dependendo de como aquela situação – vamos dizer assim – de inadimplência chegou a existir na empresa, isso pode gerar, sem dúvida nenhuma, ou uma briga de pessoas que vão estar apontando o dedo para aquela pessoa para dizer : ‘olha, ele não me pagou, porque ele fraudou, ou porque ele desviou, ou porque ele criou uma situação artificial para deixar de me pagar e isso pode gerar uma investigação criminal; a gente vê muito isso em questão de concordata, falência, em que acaba gerando isso”. Assim, contrariando as posições anteriores, privilegiaria o pagamento dos credores, pois, em virtude do número de interessados, o empresario estaria lidando “com um universo desconhecido”. A aparente contramão é prontamente explicável: as sanções penais atinentes aos delitos tributários são evitáveis por meio do pagamento. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 118 3.3 Pagamento e extinção da punibilidade Os advogados entrevistados sabem que o pagamento do tributo devido, a qualquer tempo, tem o condão de extinguir a punibilidade do agente, pairando, excepcionalmente, dúvidas quanto à extensão da regra aos tributos em substituição. Explorou-se então o seguinte cenário: se o pagamento extingue a pena, fazendo sumir o “problema no penal”, por que então esse tributo não é tratado como mais uma dívida de valor? O primeiro problema é que a empresa pode, de repente, deixar de ter dinheiro para pagar o montante devido ao INSS, fazendo com que a extinção da punibilidade se mostre, por circunstâncias práticas (esgotamento dos recursos necessários ao pagamento para extinguir a punibilidade), uma hipótese incerta. “O problema” aqui “é até quando o sujeito vai ter o controle do caixa, porque ... chega uma hora que não dá mais... não tem mais dinheiro e aí não consegue pagar” (AF1). Quem quiser assumir o risco de se financiar por meio da apropriação indébita previdenciária deve sempre reservar o montante correspondente ao valor devido, de sorte que antes de quebrar possa honrar com essa dívida (AF2). A colidência de padrões de responsabilidade gera o terceiro aspecto a ser considerado. Na medida em que o pagamento é um ato da pessoa jurídica que extingue a punibilidade de uma pessoa física, na hipótese de a última não mais fazer parte da empresa, não haveria porque pagar essa dívida (ao menos no que toca à sanção penal). Assim, o administrador não se fia na possibilidade de um pagamento futuro, pois sabe que poderá não mais integrar os quadros da pessoa jurídica quando uma eventual questão penal vier a se colocar. “O novo diretor que chega não vai estar muito preocupado com a responsabilidade penal de seu antecessor” (AC3). 3.4 A multa como sanção penal A análise se completa quando se pergunta quanto à pena de multa, sem a possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade. Embora o tema da multa não guarde, do ponto de vista da teoria do delito, relação direta com a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido, insere-se essa discussão nesse momento, pois, em termos de percepção do empresário, a extinção Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 119 da punibilidade pelo pagamento é uma dívida de valor que se ele não conseguir pagar, pode ser preso; a multa é uma dívida de valor que, se ele eventualmente não vier a pagar, não vai ocasionar prisão. Os entrevistados, em sua esmagadora maioria, afirmam que, no caso de a sanção patrimonial penal não poder ser convertida em privativa de liberdade, será tratada como uma dívida de valor ordinária. Exemplo patente disso seria a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Segundo AC3, o administrador equipara a sanção penal pecuniária (multa) a qualquer outra responsabilidade civil e administrativa. “Para ele o que dói diferente é a sanção penal pessoal. Como as sanções são patrimoniais, ele consegue lidar bem com isso”. “Não se iluda com a responsabilidade penal da pessoa jurídica”. No mesmo sentido a opinião de AC2: Se o resultado fosse o mesmo, ou seja, o pagamento de uma quantia, só que fora do sistema policia-justiça criminal, o efeito não seria tão grande. “A ameaça penal gera um peso maior na decisão do empresário”. AC4 discorda frontalmente: “Acho que ao contrário. Primeiro porque, de novo, quando você lida com a área criminal, você atinge um aspecto fundamental para as empresas que é a imagem. Então, a empresa X, processada por crime ambiental, é uma coisa que já gera repercussão. Se você falar que tem questões tributárias, que não sejam da área criminal, faz parte do dia-a-dia da empresa. A área criminal não faz”. Em segundo lugar por motivos puramente empresariais: “Como é que você explica isso para a sua matriz? Eu tive um caso, por exemplo, que era de uma época em que houve muitos inquéritos instaurados em Santos, porque havia muitos problemas com os despachantes aduaneiros. Era um sistema que possibilitava a algumas pessoas falsificar guias. Então a empresa contratava um despachante aduaneiro, pagava para ele os valores dos impostos a serem recolhidos e mais uma porcentagem x; o despachante apresentava uma guia comprovando o pagamento. E a mercadoria chegava. Depois de um tempo, descobriu-se que o esquema era fraudulento”. “O primeiro problema da empresa brasileira é explicar a necessidade de se contratar um despachante – que é uma característica brasileira. E o segundo problema era explicar que, depois de contratado, o despachante deu um golpe. E que, embora já tivesse gasto o valor do imposto, ia ter de gastar três vezes mais para corrigir aquela situação”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 120 Essa percepção, todavia, parece ser isolada, inclusive quando se acrescentam entrevistados relacionados ao poder público. Funcionário do CADE afirma claramente que “nos casos de cartel, cuja sanção é meramente pecuniária, quem paga no final das contas? É o próprio consumidor, pois ela entra como custo para o empresário. Às vezes, o empresário faz até um jogo de custo-benefício, pois ele pensa ‘qual o benefício que eu terei?’. O cartel gera muito benefício.” “O empresário pensa ‘qual o risco que eu vou ter com este cartel? Ah, vou ganhar tantos milhões. Qual o risco de eu ser condenado? É X. Se eu for pego qual o valor da multa máxima? É 30%’ então ele faz um cálculo e toma uma decisão empresarial para ver se vale a pena” “Se a única pena for multa, tanto faz se é CADE ou o juiz penal, é um custo, entra na conta... qual a vantagem que eu vou aferir em comparação ao risco que eu corro? É uma análise racional e econômica.” 3.5 A tese de inexigibilidade de conduta diversa por dificuldades financeiras A imposição de pena a um empresário que deixou de repassar tributos fonte por não ter caixa é injusta, afirma AF2, “pois terá sido preso por um crime que ele não cometeu. Eu acho que seria terrível se um empresário, na hora de pagar o salário, de fato descontasse o valor do INSS e pusesse no próprio bolso. Mas não é isso que ele faz; na verdade ele nunca teve esse dinheiro. Ele nunca existiu. Então, quando ele consegue pagar o salário, ele paga o que ele tem que pagar para o funcionário, isto é, entre pagar para o INSS e pagar para o funcionário, ele vai pagar para o funcionário. Então esse dinheiro, ele não reteve, nunca aconteceu isso, ele nunca teve esse dinheiro para reter”. Na opinião de AC2, a apropriação, nesses casos, funciona como uma ficção jurídica: “a verdade é que há um caixa único e um grupo de despesas que o empresário tem que pagar naquele dia; ele não vai ter carimbado na conta dele: ‘isso é o dinheiro que entrou daquilo; essa outra parte é aquele dinheiro que eu deixei de, que eu descontei do meu trabalhador e que...’; enfim, é o dinheiro que ele tem no caixa para fazer frente às despesas do dia”. Na busca de entender o alcance do que seria um grau suficiente de dificuldade a ponto de configurar a inexigibilidade, perguntou-se: “se o empresário paga a folha de pagamentos e um fornecedor, poder-se-ia dizer que o INSS Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 121 deveria ter sido preferido ao fornecedor?”. AF2 respondeu que a única hipótese de haver dinheiro, no mês seguinte, para honrar o salário é a continuidade da produção, o que é impossível quando os fornecedores deixam de ser pagos. E prossegue: “eu aposto que se o administrador só tinha caixa para a folha de pagamentos e para um fornecedor, que ele não tirou nada para ele [para si próprio] naquele mês. Nem um centavo”. A tese, afirma AC2, vinga nos Tribunais. “A tese é boa. A dificuldade é a prova”. Um critério para aferir a tese de inexigibilidade seria a retirada do empresário: “se ele tinha que pagar R$ 100.000,00 para o INSS, não o fez e tirou R$ 40.000,00 para ele [para si próprio], então não se aplica a inexigibilidade; se ele tirou o suficiente para o seu sustento, digamos, R$ 3.000,00, então sim” (AF2). AC2 confirma a validade do critério. AC2 oferece outra hipótese: se uma empresa depende basicamente do Poder Público e deixa de pagá-lo, por qualquer motivo, fica clara a penúria da empresa. Balanço da empresa endossado por um relatório de auditoria, “demonstrando que a tomada da decisão de não pagar decorre diretamente do fato de não ter dinheiro” é uma prova forte na opinião de AT2. 3.6 “Financiamento” por meio do inadimplemento das obrigações tributárias Houve a oportunidade, com alguns entrevistados, de se indagar: “as respostas mudariam caso a empresa tivesse caixa suficiente e mesmo assim inadimplisse obrigações. O papel da sanção penal muda?”. AC2 afirma já ter visto os seguintes cenários: “há quem faça uma aposta, fique com o dinheiro em caixa, até porque hoje, com uma tese mais ou menos assente de que o pagamento extingue a punibilidade, então tem muita gente que trabalha e que tem uma boa estrutura e também tem uma assessoria na área tributária e que vai fazendo um acompanhamento de como está a coisa, ele fala: ‘eu posso ir acompanhando, dependendo da situação eu faço uma auto-denúncia e com isso eu já livro uma série de multas tributárias’; eu acredito que tenha empresários que façam uma conta de qual é o dinheiro mais barato para ele se Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 122 ‘financiar’”. O PI1 afirma, nesse sentido, que há no Brasil “um planejamento tributário institucionalizado em que as empresas se dedicam voluntariamente a não pagar tributos”. A percepção dos entrevistados AF4, AT2 e AC3, todavia, é um pouco diversa, pois há multas de 300% no âmbito federal ou de 100% da operação, no estadual, tornando o financiamento por meio do inadimplemento uma estratégia pouco eficiente. 3.7 Considerações de política criminal (o Estado criminógeno) Há a clara percepção de que o próprio Estado engendre parte da criminalidade empresarial, notadamente em matéria tributária. Primeiramente, pelo fato de a dimensão administrativo-tributária funcionar mal. “Se o tributário funcionasse melhor não precisaria do Direito penal”, afirma AT1, salvo para os fraudadores propriamente ditos. Houve consenso, nesse particular, entre todos os advogados entrevistados. Mesmo o PI1 compartilha a percepção de que o sistema tem gargalos sérios, sobretudo no campo da execução fiscal, cuja estrutura é arcaica e desestruturada (para ele, a propósito, há uma certa leniência do judiciário para com os devedores públicos, que recebem tratamento muito mais suave do que os devedores privados). O círculo vicioso teria mais ou menos a seguinte dinâmica: os fiscais fazem lançamentos abusivos, impugnáveis por meio de procedimentos muito lentos. O assunto assume cores especiais no campo das fraudes, pois a interpretação do que tenha sido fraudulento ou não é sempre muito conflituosa. AC3 menciona um exemplo interessante: uma empresa servia refeições a seus funcionários. A fiscalização previdenciária considerou essa modalidade de alimentação uma forma indireta de remuneração, sobre a qual, portanto, deveriam incidir determinados tributos. Autuou e agravou a multa por fraude. Na opinião de AC3 e AT2, tratarse-ia de uma divergência plausível de interpretação do quanto fosse “salário”, sendo abusiva a aplicação de multa a título de fraude. “Sobretudo quando se pensa que uma ação de repetição de indébitos, no Brasil, dura cerca de dez anos” (AT2). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 123 Quando o Direito penal se alia ao tributário, os abusos aumentariam. É o que se chama de emprego arrecadatório do Direito penal. AC2 afirma que o Ministério Público Federal assume que faz o papel da Procuradoria da Fazenda. “Os procuradores sabem que o objetivo não é tanto punir, mas fazer recursos entrarem nas contas da União”. “O que se tem visto é o uso do Direito penal como instrumento de coação, de cobrança” (AC1, AC3). Com isso, tem-se o emprego da sanção penal como meio de coagir os empresários a pagarem logo e desistirem de discutir a legalidade ou justiça dos lançamentos. O medo da sanção penal é combustível dessa política de arrecadação. “Em grandes empresas, em multinacionais, a opção pelo pagamento (de tributos devidos) é determinado muito mais pela questão criminal do que por outras questões comerciais ou tributarias” (AC4). Esse sistema “convidaria” o empresário a assumir determinados riscos, como por exemplo algumas condutas consideradas típicas. Até mesmo determinadas posturas jurisprudenciais corroboram esse quadro. Veja-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça quanto aos efeitos da auto-denúncia: “Se um contribuinte deixou de pagar um tributo, confessa espontaneamente e paga, está isento das multas. Mas, para que tenha direito a isso, ele não pode ter declarado esse tributo; porque, se ele declarou, a denúncia espontânea (consistente na própria declaração) não foi seguida do pagamento. Aí o cliente chega para a gente e fala: ‘espera aí, você está querendo dizer que se eu não declarar hoje que eu devo um tributo, mas daqui seis meses eu declarar, confessar e pagar eu estou zerado da multa?’. Sim, está. ‘Então você está me dizendo que, de acordo com o STJ, é melhor eu não fazer nada, correr o risco de um processo criminal, mas se eu tiver caixa daqui seis meses, eu confesso, faço a declaração e pago, e tudo bem?’ Mas como a idéia parece ser a de não aplicar a sanção penal, cria-se uma figura não usual no Direito penal, já discutida acima: a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido. AT1: Se instituem crimes para que haja persecução criminal, para que quem deve seja justa seja injustamente, pague. Logo, se pagar está tudo bem”. Tal situação, porém, privilegia o sonegador contumaz, que aposta nisso quando da fraude tributária. Afinal, afirma AC2, quem está com dificuldades financeiras sequer escolheu deixar de repassar ao INSS. “É instrumento de arrecadação de um lado”, pois acelera o pagamento; de outro, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 124 porém, pode servir de “financiamento”, justamente para o sonegador contumaz. AC4: “Há hoje uma contradição: chegam no criminal questões que, por serem desprovidas de fraude, deveriam ser resolvidas apenas no tributário. Todavia chegam. Então, a extinção da punibilidade serve como uma medida de correção. O ideal, porém, seria que sequer chegasse e, quando chegasse, em virtude da falsidade, que essa modalidade de extinção deixasse de existir”. “Só deveria virar objeto de inquérito policial o crime de fato, já que no Brasil não é assim. O mero não-pagamento é suficiente para instaurar o inquérito” (AC1); “o mero emprego errado de alíquota de ICMS”, vale dizer, lastreado em interpretações diversas da complexa regulamentação do ICMS já dá ensejo a inquérito policial.” A questão assume contornos ainda mais vivos quando o Ministério Público e o Judiciário tornam-se homologadores da Administração, isto é, a Administração fixa que houve fraude e essa decisão não é revista, no mérito, nem quando do oferecimento, tampouco quando do recebimento da denúncia (AC3 e AC4). A conclusão é de que não há uma política criminal no Brasil, no que toca aos delitos tributários. “A Maíra Machado fala um pouco sobre isso: tem a política econômica no Brasil, tem a política monetária no Brasil, mas não tem uma política criminal. Para o nosso cliente estrangeiro é muito esquisito o fato de que se ele sonegar imposto e pagar o que deve, acaba o crime. Ele fala: o Brasil é o paraíso!” (.AC1) 3.8 Percepções quanto ao agente econômico “Eu tive pouquíssimas experiências de clientes empresários que fossem malandros. Em regra, os agentes econômicos querem arcar com suas responsabilidades”. “Quando um cliente chega e fala: não dá mais, minha empresa acabou, e eu pergunto: tá, mas o que você ainda tem de bens, 99% das vezes eles respondem: nada. E ele não está mentindo. Ele não tem para pagar os honorários. ‘Eu não tenho nada; o que eu tinha, eu pus na empresa”. Eles põem até o último centavo, como se fosse um vício”. É assim que AF2 enxerga a média dos empresários brasileiros. AF3 chega mesmo a empregar a expressão latina bonus pater familiae. E arrisca: minha longa experiência de vida e de advogado me permitem arriscar que Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 125 1 em 10 empresários são malandros; se fixarmos na proporção de 2 para 10 “eu nado de costas”. 3.9 Síntese das conclusões dos próprios entrevistados Os empresários terão como pano de fundo decisório a situação financeira de sua empresa, mudando a estratégia a ser adotada, no caso prático, conforme se trate de um problema de liquidez ou de inviabilidade do negócio. No cenário de inviabilidade, a preocupação será blindar o empresário da responsabilidade individual em face daquelas da pessoa jurídica. A primeira a ser evitada é a sanção penal por força do inadimplemento dos tributos-fonte. Em seguida, as dívidas trabalhistas e as execuções fiscais que facilmente atingem o patrimônio do administrador, sobretudo após o advento da penhora online. Há, ainda, que atentar para as obrigações pessoais (aval, fiança) e algumas de Direito consumerista ou ambiental. No cenário de falta de liquidez, há que buscar “financiar” a atividade empresária, evitando o inadimplemento dos tributos-fonte, pois isso resulta em “problema no penal”. O critério da eleição de prioridades, afastada a sanção penal, é o de essencialidade para a manutenção da produção. Via de regra, há que adimplir as dívidas para com credores que têm o poder de fazer o negócio parar. Os impostos próprios costumam ser o último grupo de despesas que mereçam atenção (considerando sempre o caso prático), salvo na hipótese de a empresa necessitar de certidões negativas de débito para suas atividades rotineiras. Os motivos para isso são, principalmente: (i) a incerteza da autuação; (ii) a demora entre o inadimplemento e o efetivo pagamento; (iii) a probabilidade de que venha a surgir um programa de parcelamento, com condições muito melhores que a de um empréstimo bancário. De qualquer sorte, restam pouquíssimas dúvidas de que há que privilegiar o pagamento dos tributos-fonte. Isso porque é generalizada a percepção de que esse inadimplemento resulta repercussões penais. Essas repercussões vão desde a intimação para comparecer em uma Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 126 Delegacia de Policia até a efetiva privação da liberdade. O empresário teme a sanção penal. A extinção da punibilidade pelo pagamento desempenha papel mitigado como contra-estímulo. Primeiramente, pelo fato de não se poder saber até quando vai haver caixa para o referido pagamento. Em segundo lugar, pois se a pessoa física deixar de fazer parte da pessoa jurídica, haverá muito pouco interesse nos efeitos que o pagamento poderão gerar. No campo da política criminal, compartilha-se a opinião de que o delito tributário deveria ser reservado às hipóteses de fraudes propriamente ditas e não a meras discordâncias entre a Administração e contribuinte. No campo das sanções, caso a pena privativa de liberdade seja substituída pela de multa, o efeito diminui sensivelmente, entrando na lógica geral das dívidas de valor. O mesmo se diga da sanção imposta à pessoa jurídica. 4. CONCLUSÕES DA PARTE EMPÍRICA Considerando a limitação de representatividade da amostra, não podemos generalizar os perfis de priorização observados para o universo de empresas brasileiras que passam pelo mesmo dilema objeto do estudo. A dificuldade de acesso à informação quanto ao perfil de priorização na situação-problema estudada, no entanto, nos dá uma dimensão do quão dramática é a necessidade de aprimoramento institucional para incremento do acesso a tais informações. O dado bruto eventualmente detido pelo INSS quanto ao total de inadimplentes não serve a um juízo sobre a expectativa de ponderação do agente potencial entre gravidade de ameaças carregadas pela sanção. Para isto, é necessário o cruzamento de dados que dizem respeito a sanções de naturezas diversas, associadas a relações de distintas naturezas com cada credor. Caso fosse possível generalizar perfis de priorização entre sanções para a situação-problema estudada, poderíamos com segurança transpor o perfil para outras situações análogas de ilicitude penal no âmbito da pessoa jurídica. Não obstante, os dados obtidos pela pesquisa permitem inferências e Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 127 oferecem algumas hipóteses interessantes. A diferença marcante entre os dois Cenários é que, no Cenário 1 há opção majoritária por situar o INSS-empregado no topo das preferências negativas (último lugar de pagamento). Já no Cenário 2 é o Grupo Outros Credores-Fisco que ocupa a preferência por último lugar de pagamento das empresas. O topo das preferências positivas para pagamento do Grupo Outros Credores-Particulares aparece nos dois cenários, já que se assumiu simultaneidade entre Dado A (inadimplemento) e Dado B (data de ajuizamento da ação de cobrança, execução, possessória, etc) para tais credores. Um fator bastante relevante é a hipótese de inversão de prioridades, cuja interpretação parece plausível tendo-se em vista que, em algum momento, a esmagadora maioria das empresas da amostra aparentemente quita o INSSempregado, mas acaba sofrendo ações de execução, cobrança ou possessórias por parte do Grupo Outros Credores-Particulares após o período de quitação do INSS. Então a pergunta é: “por que quitou?”. Uma hipótese plausível é o pagamento para suspender a punibilidade da apropriação indébita. Isto é, chegada a segunda e última “rodada” com o INSS, expressa em termos de “pague ou sofra responsabilização penal”, aí sim os empresários teriam motivação maior para pagar a contribuição. A interpretação inferida da quantitativa não é necessariamente contraditada pela pesquisa qualitativa. Um dos dados mais interessantes levantado nas entrevistas diz respeito ao fator reputacional associado à imagem no nível da pessoa física do gestor. Como colocado no item “ressalvas quanto à validade e utilidade da hipótese escolhida – quanto ao fator suspensão da punibilidade mediante pagamento”, é plausível considerar incidência de dois fatores que eventualmente se excluem mutuamente: a auto-confiança do gestor em sua capacidade de gestão de caixa e o custo reputacional independente de condenação. Para as empresas que enfrentam o dilema colocado no estudo, autoconfiança e custo reputacional podem exercer impacto relevante. Se o custo reputacional associado à apropriação indébita for alto para o gestor da empresa (independentemente de condenação), então é mais provável que o gestor tenha Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 128 como topo de suas prioridades positivas manter a empresa adimplente com o INSS. O que se pode seguramente afirmar é que, para a amostra considerada, esse custo reputacional é muito baixo. Prevalece a auto-confiança do gestor em sua capacidade de gerir o fluxo de caixa da empresa e pagar o INSS apenas no momento da ameaça crível, que é o da incidência de responsabilidade penal. É ainda possível que outros empresários na mesma situação exibam forte aversão a qualquer perspectiva de responsabilização penal sobre sua pessoa (alto custo reputacional) e que, ao enfrentarem o dilema, coloquem o pagamento de INSS-empregado no topo de suas prioridades positivas ou nem sequer cheguem a tornar a empresa inadimplente com o INSS pela parcela do empregado (é o caso do empresário que decide liquidar a empresa quando percebe que ela é inviável em termos econômico-financeiros). Mas essa hipótese não é testável. Trata-se de um dilema não-inferível, pois não deixa registro. Como colocado, o objetivo de uma política pública de responsabilização é focar um problema real e agir sobre ele de modo a minorá-lo. Assim, é inútil raciocinar em termos de dilemas não-inferíveis. Ou seja, para nossa análise, é relevante a hipótese de inversão de prioridades ante a perspectiva de sanção penal. Isso nos conduz à hipótese maior para o estudo, que é a seguinte: dentre o leque de sanções aplicáveis em caso de prática de ilícito no âmbito da pessoa jurídica, é importante considerar múltiplas alternativas de sanções à própria pessoa jurídica. Mas tais sanções dificilmente substituem o poder intimidativo da sanção penal de reclusão para o gestor da empresa. Esta parece constituir-se na ameaça crível que engaja uma decisão da gestão da empresa. Faria mais sentido considerar um pacote de sanções à pessoa natural e à pessoa jurídica, sendo que as primeiras parecem mais promissoras em termos de desempenho da função intimidativa. As segundas não necessariamente devem ser sanções penais, salvo se lhes for atribuída função retributiva ou por algum imperativo prático em termos de reunião de provas a respeito do cometimento do ilícito. A análise não estaria, porém, completa sem que algumas nuances fossem apresentadas. As entrevistas revelam que o “problema no penal” não é necessariamente a pena privativa de liberdade, porém todo o constrangimento de ter que tomar contato com o sistema de justiça criminal, “ter ficha”, perder a primariedade etc. Assim, em que pese a sanção penal realmente desempenhar um Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 129 papel importante na tomada de decisão, não se pode afirmar que apenas aquela privativa de liberdade teria esse efeito. Em sendo a apropriação indébita delito passível de ter sua pena substituída por restritiva de direitos (CP, art. 44 e ss.), pode-se afirmar que os empresários temem a sanção penal ainda que saibam que a chance de serem efetivamente presos é remota. O cruzamento do que seja “problema no penal” com as sanções concretamente impostas nos permitem concluir que há um temor de uma resposta do sistema de justiça criminal com traços infamantes (perder a primariedade, ter ficha, comparecer a Delegacia de Polícia), sem que isso implique forçosamente em prisão. Assim, razoável supor que no caso de o delito de apropriação indébita previdenciária vir a ser punido com a pena de prestação de serviços à comunidade (como pena principal e não substituída) ou com uma pena privativa de liberdade pequena (por exemplo de seis meses a dois anos) também nesse cenário o “problema no penal” influenciaria com igual peso e importância a decisão empresarial. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 130 5. PROCESSO DISTRIBUÍDOS EM RELAÇÃO AO PERÍODO DE DÍVIDA DE INSS| Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 131 5.1 Legenda Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 132 ANEXO 2 - ALTERNATIVAS À RESPONSABILIDADE PENAL 1. INTRODUÇÃO O vocábulo “responsabilidade” aparece relacionado a institutos jurídicos de diferentes áreas do direito, cada qual ligado a uma tradição dogmática distinta. Ao nos propormos a refletir sobre a responsabilidade de pessoas jurídicas e outras coletividades, uma dúvida que surge é, portanto, o que se pretende dizer com este termo. Serão as diferentes responsabilidades jurídicas fenômenos totalmente distintos, ou haverá algo comum a todas elas? Pensá-las como fenômenos distintos teria como conseqüência uma compartimentalização da reflexão, de acordo com cada uma das categorias jurídico-dogmáticas já existentes. Para poder superar tal problema e abrir espaço para a criatividade na reflexão sobre a regulação de ilícitos praticados no âmbito de coletividades, seria preciso achar o elemento comum a esses vários fenômenos, isto é, algo que possibilite a comunicação entre as tradições jurídico-dogmáticas dos vários campos do direito. Podemos encontrar o caminho para tal comunicação na noção de responsabilidade proposta por Klaus Günther. Para este autor, todas as hipóteses de responsabilidade têm em comum uma determinada estrutura formal, bem como uma função social que dela decorre. Nas palavras do autor: Em primeiro lugar, elas têm em comum uma certa estrutura formal. ‘Responsabilidade’ é um termo complexo. Trata-se sempre da responsabilidade de uma pessoa por uma ação (ou omissão) ou conseqüência de uma ação perante outras pessoas. Tais ações, omissões ou conseqüências são atribuídas à pessoa para que esta se responsabilize, devendo prestar contas desses fatos a outras pessoas (GÜNTHER 2009, p. 5-6). De tal estrutura formal decorre a função social própria da responsabilidade, que consiste na estruturação do fluxo infinito dos acontecimentos, de modo a que determinados fatos sejam atribuídos a uma pessoa como conseqüência de uma ação tida como sua. Novamente, nas palavras de Günther: Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 133 Entre os diversos fatores que envolvem todo acontecimento, o complexo e obscuro novelo de relações de causalidade e de probabilidade é reduzido a um ponto escolhido de modo mais ou menos arbitrário: a uma pessoa agente (GÜNTHER 2009, p. 6). Essa estrutura formal e a sua conseqüente função social estão presentes tanto na responsabilidade penal, quanto na responsabilidade civil e na responsabilidade por ilícitos administrativos. O que muda de caso para caso de responsabilidade são as regras de imputação, isto é, os critérios para se estabelecer quando determinado fato deverá – e quando não deverá – ser atribuído a alguém como resultado de ação ou omissão sua. Com relação a isso, não só se diferenciam as responsabilidades penal, civil e administrativa, mas também os vários casos de responsabilidade dentro de cada um desses ramos: a responsabilização civil de um particular obedece a critérios diversos da responsabilização civil de um fornecedor de produtos ou serviços, por exemplo. Os variáveis critérios de imputação, por sua vez, nos propõem a questão da sua legitimidade. Com relação a isso, partiremos do princípio de que tais critérios não são dados, mas sim definidos politicamente, e que sua legitimidade depende, portanto, de sua definição no âmbito de um processo democrático de decisão. Em outras palavras, embora o fio condutor deste trabalho seja a responsabilidade penal da pessoa jurídica – devido ao modo como a questão dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras organizações tem sido apresentada no debate brasileiro – pensamos que compartimentar a reflexão é contraproducente. É preciso levar a sério a idéia de que não existem distinções ontológicas entre os ilícitos penais, civis e administrativos, abrindo a possibilidade de uma solução do problema que não se limite necessariamente ao direito penal. Embora essa afirmação possa parecer trivial, é preciso lembrar que, ainda que os fundamentos dos esforços de naturalização do crime e do criminoso já tenham sido questionados e superados do ponto de vista teórico, é comum, ainda hoje, que os juristas ajam como se houvesse diferenças naturais separando os âmbitos das responsabilidades (PIRES, 1998, p. 12). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 134 Uma última questão fundamental que se coloca a partir concepção de responsabilidade apresentada acima, especialmente do caráter contingente e politicamente determinado dos critérios de imputação, é a questão da opção entre responsabilização individual e coletiva. A imputação se faz sempre sobre o pano de fundo de alternativas: ao se determinar o ponto onde deve ser interrompido o novelo de relações causais e de probabilidade mencionado acima, pode-se fazê-lo para imputar um fato a uma pessoa, a várias pessoas, ao azar, à sociedade etc. (GÜNTHER, 2009, p. 7). Nesse processo, em vez de ser atribuído a um indivíduo que age, o acontecimento poderia ser atribuído também a circunstâncias ou entidades supraindividuais e, nesse caso, “a comunicação social acerca desse acontecimento dar-se-ia de maneira diversa da que ocorre quando o acontecimento é imputado a uma pessoa responsável” (GÜNTHER, 2009, p. 7). Klaus Günther identifica nas sociedades ocidentais contemporâneas uma tendência crescente à individualização da responsabilidade, com conseqüências ambivalentes para a liberdade dos indivíduos (GÜNTHER, 2009, p. 7-12). No entanto, a individualização não é um fenômeno natural, mas sim o resultado de opções políticas de cada sociedade. É assim que deve ser encarada a discussão sobre a conveniência do estabelecimento de responsabilidade penal (ou de outro tipo) para as pessoas jurídicas e outras coletividades. Diante dessas considerações, apresentamos abaixo uma reflexão sobre responsabilidade por ilícitos administrativos e responsabilidade civil, em comparação com a responsabilidade penal, de modo a fornecer elementos para a elaboração de uma política pública que não se limite necessariamente à criminalização como meio para lidar com o problema dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras organizações. Como a responsabilidade administrativa nos parece ter grande potencial para compor uma política pública adequada para regular o problema em análise, além do capítulo abaixo, há - em outro anexo- também um panorama sobre o funcionamento da responsabilidade por ilícitos administrativos no ordenamento jurídico brasileiro. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 135 2. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA52 As tentativas tradicionais de justificar a escolha pela intervenção da esfera administrativa ou penal para lidar com certa constelação de casos estiveram ligadas à busca de uma diferença constitutiva ou “de natureza” entre ilícitos administrativos e penais. Decisiva, nesse sentido, a contribuição teórica de GOLDSCHMIDT, de grande influência no desenvolvimento dogmático das duas áreas, a qual estabelecia que o ilícito penal teria um caráter de lesão eticamente reprovável a um bem jurídico, enquanto o direito administrativo seria um ato de desobediência éticovalorativamente neutro. Nelson HUNGRIA sintetiza os principais contrastes entre os ilícitos penal e administrativo, no pensamento de GOLDSCHMIDT: (i) O Direito Penal Comum (Justizstrafrecht) visa ao indivíduo como vontade ou personalidade autônoma, ao passo que o Direito Penal Administrativo (Verwaltungsstrafrecht) “o encara como membro ou elemento sinérgico da sociedade e, portanto, adstrito a cooperar com a administração pública”; (ii) a ilicitude administrativa, portanto, seria mera “omissão do dever de auxiliar administração no sentido do bem público ou estatal (die Unterlassung der Unterstützung der auf Forderung des ‘offentlichen oder Staatswohls gerichteten Staatsverwaltung’)”, cujas normas seriam antes “normas de serviço” do que propriamente normas jurídicas; (iii) a missão do Direito Penal Administrativo não seria, conseqüentemente, proteger a ordem pública como bem jurídico, porém como “objeto de atenção ou de cuidado (Fürsorgeobjekt) da Administração”; (iv) os ilícitos administrativos seriam sempre omissivos; (v) a conseqüência desses ilícitos seria sempre simples obrigação ex delicto de direito administrativo. (GOLDSCHMIDT, 1902, p. 539, 548 e 576, e HUNGRIA, 1945, p. 16 e ss.). Eis as críticas de HUNGRIA ao pensamento de GOLDSCHMIDT: (i) as normas de Direito Penal Administrativo são normas jurídicas tais como as de Direito Penal Comum, sendo a ordem pública um interesse por elas protegido, 52 O Anexo 3 deste relatório trata, de forma pormenorizada, sobre o modelo brasileiro de direito administrativo sancionador. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 136 assumindo forma de bem jurídico (e não mero objeto de interesse); (ii) logo, o ilícito administrativo é lesão efetiva ou potencial de um bem jurídico, que pode ser cometida de forma comissiva, na medida em que podem tais normas exigire uma omissão; (iii) “não há falar-se em direito penal subjetivo da justiça, em contraposição a um direito penal subjetivo da administração, mas tão somente em direito penal subjetivo do Estado” (HUNGRIA, 1945, p. 16 e ss.). Sustentava, portanto, que a ilicitude jurídica é uma só e rechaçava qualquer tentativa de localizar diferenças substanciais entre os ilícitos administrativo e penal. A punição de certos ilícitos na esfera do direito administrativo”, afirmava, “ao invés de o ser na órbita do direito penal comum, não obedece, como já frisamos, senão a razões de conveniência política: para o direito penal comum é transportado apenas o ilícito administrativo de maior gravidade objetiva ou que afeta mais diretamente o interesse público, passando, assim, a ilícito penal” (1945, p. 18). Em épocas mais recentes, localizam-se, em sede dogmática, ambas as tendências. É o caso, por exemplo, da posição de Manuel Gómez TOMILLO, para quem “o Direito Penal se ocupa da proteção de bens jurídicos (...). O Direito Administrativo Sancionador, pelo contrário, persegue ordenar, de modo geral, setores de atividade, isto é, reforçar, mediante sanções, um determinado modelo de gestão setorial, é o esforço da gestão ordinária da Administração”. Reconhece, porém, que “a falta de clareza quanto aos critérios leva precisamente ao atual fenômeno de administrativização do Direito Penal” (2000, p. 80). Assumindo postura intermediária está ZUÑIGA RODRIGUEZ, ao menos no tocante ao bem jurídico: ao Direito Penal Comum caberia a proteção dos bens jurídicos fundamentais, ao passo que ao Administrativo Sancionador incumbiria a tutela de bens jurídico não fundamentais ou o perigo abstrato ou hipotético a bens jurídicos fundamentais (2001, p. 1442). Solução curiosa encontra-se no Tribunal Constitucional Espanhol que formou uma linha jurisprudencial no sentido de que “a diferença entre a infração administrativa e o delito jaz precisamente no plano subjetivo, de forma que enquanto a sede correta para o tratamento da comissão dolosa é a criminal, para a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 137 culposa, há que se valer da Administração” (TOMILLO e ALVAREZ, 2000, p. 76). Registre-se, por fim, a posição de PALIERO (1994), para quem a principal (e talvez única) forma de distinção entre a sanção administrativa e a sanção penal é a natureza estigmatizante que a última possui. As tentativas de diferenciação essencialistas têm cada vez mais dificuldade em explicar a conformação do que atualmente vem sendo regulado por cada uma dessas áreas. Em primeiro lugar, não justificam o fato de, na maior parte dos casos, a mesma conduta sofrer regulação de ambos os campos. Além disso, a definição de GOLDSCHMIDT não resiste ao progressivo movimento do Direito Penal de proteger bens jurídicos coletivos, por meio da criminalização de condutas que não necessariamente geram resultados. 53 Neste momento em que diferenças ontológicas apresentam-se insustentáveis e distinções com base em funções também apresentam zonas de obscuridade, preferimos não insistir em tentar traçar distinções normativas entre ambas as áreas. Trabalharemos, a princípio, com as distinções de funcionamento que ainda se podem identificar como características de uma ou outra área. Veremos que mesmo adotando tais distinções práticas, encontraremos dificuldades de caracterizar definitivamente cada uma das áreas, na medida em que a adoção de uma determinada postura quanto à natureza do ilícito administrativo, em confronto com o penal, permite divergências quanto aos procedimentos. Para quem considere, por exemplo, haver mera diferença quantitativa entre os ilícitos, eis que todos são manifestações do poder punitivo, pode-se advogar, como conseqüência, que o Direito Administrativo Sancionador, por impor sanção menos grave, possa ter menos garantias (SILVA SANCHEZ, 2006); à conclusão diversa, porém partindo do mesmo ponto, chega ZUÑIGA RODRIGUEZ, para quem é justamente o fato de ser manifestação do poder punitivo que as garantias do núcleo duro do Direito Penal devem, na medida do possível, ser incorporadas pelo Direito Administrativo Sancionador (2001, p. 1441 e ss.). 53 Por isso, sobre esse fenômeno, fala-se em administrativização do Direito Penal (v. SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 131 e ss., bem como MACHADO, 2005, p. 115, 143). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 138 Embora este tema seja bastante complexo e uma análise aprofundada fuja ao escopo do presente estudo, abordaremos abaixo essas questões na medida em que elas se apresentarem importantes na discussão sobre a regulamentação da responsabilidade penal da pessoa jurídica. O escopo da nossa análise é, a princípio, apontar elementos que deverão ser considerados pelo formulador de política pública a refletir sobre as vantagens e desvantagens de regulamentar este tema por meio do direito administrativo somente, por meio do Direito Penal ou por ambos simultaneamente. Com relação à forma de funcionamento de cada um desses ramos, podemos destacar algumas distinções em termos de (i) sanções; (ii) potencial simbólico da comunicação social; (iii) autoridade competente; (iv) critérios de imputação; (v) procedimento aplicável; (vi) instrumentos de produção de prova e medidas cautelares; e (vii) garantias. No que diz respeito ao tipo de sanção aplicada, a distinção tradicionalmente feita entre as duas áreas tem por base a pena de privação de liberdade, que, de acordo com a forma tradicional de definir o Direito Penal, o caracterizaria. Ainda que questionemos tal caracterização do penal, fato é que a possibilidade de utilização das penas privativas de liberdade é possível atualmente apenas nesta esfera do Direito. De fato, ao contrário do que se evidencia na esfera penal, as únicas modalidades de sanções admitidas no Direito Administrativo Sancionador são as de natureza pecuniária ou de constituir o sancionado em obrigação de fazer ou de não fazer (art. 68 da Lei 9.784/99). Apesar da pluralidade de sanções, as mais comumente previstas nas normas administrativistas correspondem à advertência, multa, caducidade do contrato celebrado com a Administração Pública e cassação de licença ou de autorização. Entretanto, no caso de pessoas jurídicas, estamos em um campo em que não há qualquer distinção entre os tipos de sanções que podem ser aplicadas pela esfera administrativa e pela esfera penal. Tendo em vista a impossibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade a pessoas jurídicas, os instrumentos sancionatórios que ambas as esferas têm disponíveis são rigorosamente os mesmos – penas de multa, restrição de direitos, limitação de atividades, submissão a controles especiais etc. Em suma, com relação ao tipo de sanção passível de ser aplicada à pessoa jurídica, não haveria distinção entre a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 139 punição aplicada pela esfera administrativa54 ou pela esfera penal. Argumenta-se, nesse ponto, que haveria uma distinção em termos de força simbólica entre cada uma delas, mais especificamente que a eficácia preventiva da sanção administrativa seria “sem dúvida menor” (SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 364). Embora o pronunciamento de ambas as esferas possa ser compreendido como a comunicação de reprovação de um comportamento e afirmação da norma violada, a princípio, fala-se em um potencial simbólico mais acentuado do Direito Penal 55. Há, entretanto, alguns fatores a serem considerados que podem relativizar essa que seria uma vantagem dessa área em termos de impacto preventivo. Em primeiro lugar, as sanções administrativas, dependendo do caso, podem ser mais graves que a penal56. Manuel Gómez TOMILLO, analisando a sanção de inabilitação para o exercício de uma profissão ou ofício, pondera que “em uma sociedade em que o trabalho representa um bem muito escasso, tal sanção pode ser quase tão grave como a de perda da liberdade, sobretudo se se leva em conta que no sistema do código a pena de inabilitação especial implica a perda definitiva do mesmo” (2000, p. 83). Além disso, embora seja necessária a realização de pesquisa empírica específica a esse respeito, seria possível ao menos colocar em questão se a força simbólica do Direito Penal não estaria justamente ligada à ameaça da prisão. Dessa forma, ausente a possibilidade de prisão, perderia também força persuasiva a 54 Juliana de PALMA (PALMA, 2008) diz que a sanção administrativa é “ato administrativo unilateral, pois aplicada independentemente da aquiescência do sujeito passivo considerado infrator ao final de processo regulatório sancionatório, e imperativo na medida em que se impõe ao administrado com quem termina por travar uma relação vertical de autoridade” e que tem por finalidade “a repressão do infrator, a recomposição da legalidade, a prevenção de infrações, o revestimento de eficácia às políticas regulatórias pela afirmação do regulador perante os regulados e a persuasão nos acordos consensuais”. 55 Alguns autores fazem distinção entre os dois tipos de comunicação, afirmando que a confirmação de uma norma penal não poderia ser feita por via da esfera administrativa. Nesse sentido, Mercedes ARÁN defende a intervenção do Direito penal para a responsabilização da pessoa jurídica e se posiciona contrariamente ao seu deslocamento para o Direito Administrativo, pois acha que os tipos do Código Penal – que expressam um programa de proteção a bens-jurídicos – não devem ficar vazios de conteúdo nos casos em que quem atua em sentido social e econômico é a pessoa jurídica, ou porque as categorias tradicionais não servem, ou porque não seria possível localizar um ator individual (GARCIA ARÁN, 1988, p. 55-56). 56 “Ainda que as sanções administrativas possam ser economicamente muito mais gravosas que as penais, o certo é que cabe contabilizá-las no balanço, com o que acabam sendo mais lesivas para a empresa; em contrapartida, a sanção penal tem um valor simbólico inegável e de máxima relevância negativa para a empresa, o que determina que sua eficácia preventiva seja sem dúvida menor” (TIEDEMANN, 1985, p. 168). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 140 atividade da esfera penal. 57 É possível, ainda, identificar um “déficit crônico de realização prática” do Direito Penal (HASSEMER, 1999, p. 26) que, segundo HASSEMER, decorre tanto da falta de emprego enérgico dos instrumentos penais pelas instituições, mas também seria resultado de um problema estrutural: a esfera penal não estaria conformada para lidar com os novos problemas e as exigências dos novos ramos de regulação.58 A esse respeito, podemos nos reportar ao resultado da pesquisa empírica realizada por nós em acórdãos relacionados à responsabilidade penal da pessoa jurídica na esfera ambiental, em que observamos um grande número de casos extintos e um baixo número de casos que efetivamente lograram chegar a termo59. Podemos aqui apontar que o déficit de aplicação do Direito nesta área está ligado de algum modo à falta de preparo e adaptação do sistema a esse novo instituto. Assim, é preciso atentar ao fato de que o pressuposto potencial simbólico do Direito Penal em um cenário de déficit de aplicação tende a se esvaziar progressivamente. Por fim, não nos parece correto afirmar a priori a falta de impacto simbólico das sanções administrativas. Na medida em que o significado das manifestações das instituições formais encarregadas de aplicar o Direito, bem como das sanções por elas determinadas não estão definidas previamente, mas passam por um processo social de atribuição de sentido, não nos parece possível desde logo desprezar a possibilidade de as manifestações e decisões de um órgão administrativo alcançarem impacto simbólico-preventivo. Até porque a própria doutrina administrativista acaba incorporando as finalidades da sanção penal para aquelas disciplinares, por exemplo, impondo no âmbito administrativo a mesma 57 Pode servir com intuição para uma futura pesquisa empírica, a forma como se consolidou o debate brasileiro acerca do crime de uso de entorpecentes na nova lei de tóxicos. Não estando sujeito a pena de prisão, é corrente encontrar na esfera pública especializada e não especializada afirmações sobre uma possível descriminalização desta conduta, o que não é correto. Os casos aqui seguem sendo processados pela esfera penal, mas apenas não estão mais sujeitos à pena de prisão. 58 Segundo HASSEMER: “los déficits de realización demuestran hasta qué punto el derecho penal se utiliza em sectores que non son los suyos, haciendo cumplir funciones que les son extrañas, lo que produce su desnaturalización permanente y no meramente transitória. De estos datos de hecho se deriva el dato normativi que nos dice que el derecho penal y sus posibilidades estabilizadoras se está utilizando indebidamente” (HASSEMER, 1999, p. 26 e 27). 59 Dos 45 casos analisados, apenas cinco chegaram até a decisão de mérito e, desta parcela, dois já haviam prescrito. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 141 lógica que impera no campo da pena em sentido forte. Mencione-se o entendimento de Elbert da Cruz HEUSELER, que vislumbra quatro finalidades básicas no processo administrativo disciplinar: (i) “em primeiro lugar, a punição é nota característica de norma jurídica”; (ii) “em segundo lugar, a punição também preenche uma outra finalidade, que é a de satisfação social”; (iii) “em terceiro lugar, a sanção deve também, no mundo da Psicologia, com reflexo no mundo jurídico, funcionar como um preventivo”; (iv) “e, por último, a aplicação da sanção tem que haver com o efeito que se pode denominar como educativo ou recuperador” (2003, p.134-135). Reconhecem-se, com facilidade, as posições retributiva e preventiva, seja geral, seja individual. Como exemplos desse fenômeno, podemos mencionar o respeito e o efeito simbólico que têm atualmente os pronunciamentos de dois órgãos da esfera administrativa: a CVM e o CADE. O que queremos com isso dizer é que o potencial simbólico é mutável e depende de uma série de circunstâncias sociais, podendo, portanto, ser construído também quando se tem em mãos a possibilidade de responsabilização administrativa. Durante uma das entrevistas que conduzimos, um representante do CADE afirmou que considera a mensagem da sanção administrativa no mundo empresarial semelhante à mensagem da sanção penal, dizendo que “quando sai uma notícia no jornal ‘Justiça condena empresa A por cartel’ ou ‘CADE condena empresa A por cartel’ é a mesma coisa”.60 Outro ponto que foi tocado pelo entrevistado foi o efeito deterrence (preventivo) que algumas decisões de órgãos administrativos possuem. E, para exemplificar, disse: “o CADE toma uma decisão como ‘Nestlé, você precisa vender a Garoto’. A Nestlé entra na justiça, alega alguma sutileza jurídica e consegue uma liminar bloqueando durante 14 anos a decisão do CADE. Efeito 60 Contrário ao que afirma parte da doutrina européia. Fermín Javier Echarri CASI (CASI, 2003, p. 141), na Espanha, e Carlo Enrico PALIERO (PALIERO, 1994), na Itália, colocam como diferencial entre a sanção penal e a administrativa o efeito estigmatizante da primeira. Casi afirma categoricamente que a sanção penal “acarrea un reproche ético-moral y un valor de intimidación ausente en la aplicación de la sanción administrativa”. Contrária a esta posição, Juliana de PALMA (2008) considera que “além de repercutir diretamente sobre o infrator, a sanção administrativa aplicada pela Administração torna-se exemplar à sociedade em decorrência de seu efeito simbólico, de forma que parcela significativa dos administrados termina por reconhecer a força da autoridade administrativa no manejo do poder sancionador em uma pontual situação. Conseqüentemente, a aplicação de sanções administrativas gera incentivos negativos (custos) à tomada de decisões contrárias ao ordenamento jurídico pelos demais agentes (efeito preventivo)”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 142 prático desta decisão [do CADE] teve quase nenhum, a eficácia da decisão é baixíssima. No entanto, hoje as empresas consultam a CVM se podem fazer uma operação ‘assim ou assado’ e, se a CVM responde opinativamente ‘não’, a empresa não realiza a operação, pois ninguém ousa fazer a operação e correr o risco da sanção administrativa”. Para o entrevistado, o efeito da opinião da CVM tem uma força preventiva maior do que as decisões judiciais ou do CADE porque são feitas anteriormente ao fato e, portanto, o empresário sabe de antemão que aquela conduta certamente gerará “uma dor de cabeça” e um custo maior, como a necessidade de contratação de advogados e a possibilidade de ver desfeito o negócio. Se nossa hipótese estiver correta, de que diferenciar as duas esferas com base na sanção e seus efeitos parece ser atualmente uma distinção bastante relativa, então podemos afirmar que as distinções mais relevantes dizem respeito à forma de funcionamento dessas duas esferas em termos de procedimento adotado, especialmente distinções que se referem ao equilíbrio entre garantias e eficiência e à especialização requerida da autoridade judicante para lidar com determinados problemas. 61 Apesar de a lei federal de processo administrativo (Lei nº. 9.784/99) conferir certa unidade de tratamento da atividade administrativa na Administração Pública federal, necessário ressaltar a difusão de regimes jurídicos sobre a responsabilização administrativa, o que se acentua na esfera regulamentar. De fato, o poder sancionador é cada vez mais disciplinado por meio de regulamentos expedidos pela Administração Pública no exercício do poder normativo, impulsionado com a criação das Agências Reguladoras no contexto da Reforma do Estado. As vantagens normalmente atribuídas à esfera administrativa dizem respeito, em primeiro lugar, à especialização dos agentes. Principalmente no campo da criminalidade econômica, a matéria tratada requer alta capacitação técnica dos funcionários responsáveis pelo seu processamento. Em relação à 61 No mesmo sentido, ZUÑIGA RODRIGUEZ argumenta que a distinção não deve ser apenas uma questão quantitativa. O debate atual deveria ter em conta outros fatores como: garantias aplicáveis; princípios de imputação para declarar a responsabilidade; especialidade e complexidade da matéria que requer uma regulação pormenorizada; o fim preventivo da utilização de um ou outro; e tipo de sanção. Além disso, os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade deveriam ser também considerados nessa decisão (ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2001, p. 194 e ss.). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 143 responsabilização de entes coletivos, uma série de questões específicas vem à tona, não apenas ligadas à matéria em questão (concorrência, tributação, mercado financeiro etc.), mas também relacionada à própria realidade da empresa. A imputação de responsabilidade a pessoas jurídicas pode envolver a cognição de questões ligadas, por exemplo, a um possível déficit organizativo da empresa, à compreensão de sua estrutura e seus mecanismos de controle de ilícitos e, mais importante, à necessidade de dosar a medida da sanção e ao mesmo tempo alcançar um equilíbrio entre dano causado, potencial dissuasório, mas também a manutenção da sua viabilidade econômica. Ou seja, as especificidades do ator envolvido são tantas e são de tal maneira decisivas para que o processo de responsabilização não só seja bem sucedido mas também não agrave ainda mais os custos sociais do problema, que se pode considerar que estamos diante da necessidade de uma outra forma de especialização. Em face dessas questões, ainda que se decida pela regulação da questão pela via do sistema penal, ter-se-ia então que pensar sobre formas de colocar à disposição do juiz penal não só treinamento adequado, mas também auxílio técnico para melhor se aproximar da questão (por exemplo, perícias especializadas em avaliações econômicas, auditorias etc.). Em segundo lugar, no que diz respeito aos requisitos de imputação, o Direito Penal, em seu modelo tradicional, estaria vinculado à imputação de culpa, enquanto o Direito Administrativo poderia levar em consideração outros critérios para imputar. Segundo ADÁN NIETO, por meio desse ramo, trata-se de chegar à responsabilidade não por meio da culpabilidade, mas por meio da capacidade de suportar a sanção. Aproximar-se-ia, de acordo com esse autor, mais da responsabilidade civil do que da penal (NIETO MARTÍN, 2008) Na esfera administrativa não se enfrenta qualquer dificuldade em imputar responsabilidade a pessoas jurídicas, pois essa possibilidade já está prevista em seu sistema de funcionamento tradicional. Ao passo que coadunar o conceito de culpa penal, tradicionalmente ligado ao indivíduo e com raízes na reprovação moral, vem exigindo um esforço de renovação da dogmática penal. Não nos parece, entretanto que esse seja um argumento capaz de excluir a priori a possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica por meio do Direito Penal. Como vimos, há uma Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 144 larga produção teórica no sentido de repensar as categorias penais para esse propósito e não nos parece que critérios de imputação baseados na responsabilização individual seja algo imutável no Direito Penal. No que diz respeito à comparação entre os procedimentos, há dois pontos centrais no confronto entre os dois âmbitos: (i) os instrumentos que estão à disposição para investigar e produzir provas; (ii) o equilíbrio entre celeridade, flexibilidade e garantias processuais. Ao modelo de Direito Administrativo Sancionador costuma-se associar as vantagens da celeridade e da especialização, com sacrifício de garantias; ao Direito Penal comum, a vantagem do devido processo legal, com sacrifício da eficiência. Outra desvantagem é o efeito negativo advindo da sanção penal em sentido forte (ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2001, p. 1421-1422). Com efeito, os críticos da aplicação das garantias do Direito Penal Comum para o Administrativo Sancionador, sinteticamente, apontam que “implicaria uma reprodução em sede administrativa do processo jurisdicional, com o que se perderiam as vantagens de atribuir poder sancionador à Administração” (TOMILLO, 2000, p. 82). Os instrumentos exclusivamente processuais penais para a obtenção de provas têm muitas vezes impacto em alguns direitos fundamentais dos investigados – principalmente a intimidade – e, em razão dessa atuação incisiva, só podem ser autorizados por um juiz competente. São eles: • Busca e apreensão Prevista nos arts. 240 a 250 do CPP, esta medida, na verdade, compreende uma medida cautelar e um meio de obtenção de prova (LOPES JR., 2007, p. 653). A busca seria o instrumento pelo qual se visa encontrar coisas ou pessoas, enquanto a apreensão é uma medida para resguardar a prova e garantir sua restituição a terceiro ou perda ao final do processo. Cleunice PITOMBO (PITOMBO, 2008, p. 87) afirma que é possível “busca sem apreensão, apreensão sem busca e busca seguida de apreensão”. A busca possui um rol definido no §1º, art. 240, e só pode ocorrer após a expedição de mandado judicial que delimite o objeto e a finalidade da busca (art. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 145 CPP, 243). Também é possível a busca e apreensão sem mandado judicial, mas ela só pode ocorrer quando consentida pelo morador 62 ou quando o crime é permanente e a situação de flagrância é constante. No entanto, é possível conciliar a atividade do órgão administrativo com a realização de buscas e apreensões. Desde 2000, a Secretaria de Direito Econômico (SDE), órgão responsável pela investigação e acusação perante o CADE, pode requisitar à Advocacia-Geral da União que solicite uma busca e apreensão a um juiz cível63, de acordo com o art. 35-A da lei 8.884/94 64. Esta busca e apreensão segue os moldes do Código de Processo Civil (art. 839 a 843) e não é necessária propositura de ação para que o mandado seja concedido. O Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade, suspendeu liminarmente o artigo 19, XV, da Lei 9.472/97, que concedida à Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) a competência de realizar busca e apreensão no âmbito de seus processos administrativos de investigação (ADI 1668 MC, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio)65. A apertada maioria de seis Ministros abraçou a tese de que a legitimidade da Administração de apreender bens afetos a seus interesses “diz respeito à provocação mediante o processo próprio, buscando-se alcançar, no âmbito do Judiciário, a ordem para que ocorra o ato de constrição, que é o de apreensão de bens. O dispositivo acaba por criar, no âmbito da administração, figura que, em face das repercussões pertinentes, há de ser sopesada por órgão independentes e, portanto, pelo Estado-juiz” (Voto do Ministro Relator). Os vencidos alinharam-se à divergência inaugurada pelo Ministro Nelson Jobim, para quem a busca e apreensão “caracteriza tipicamente o poder de polícia, 62 Utiliza-se morador, porque o código utiliza a expressão „busca domiciliar“, mas a expressão domicílio abrange um leque muito maior de locais, incluindo estabelecimentos comerciais (BADARÓ, 2008, p. 272). 63 A quantidade de mandados de busca e apreensão expedidos vem aumentado significativamente nos últimos anos. Entre 2003 a 2005, 11 mandados foram cumpridos; em 2006, 19 mandados foram cumpridos; e, em 2007, 84 mandados foram cumpridos (fonte: Programa de Leniência, Ministério da Justiça e Secretária de Direito Econômico, 2008. 64 Um exemplo de busca e apreensão procedida pelo SBDC corresponde à “Operação Fanta”, considerada a maior já realizada no sistema antitruste brasileiro. Com um efetivo de aproximadamente 100 pessoas, dentre as quais técnicos da SDE, agentes da Polícia Federal, Oficiais de Justiça e Advogados da AGU, foram recolhidos 30 sacos de 100 litros contendo computadores, disquetes, CPUs e documentos diversos. 65 O Superior Tribunal de Justiça tem acompanhado o entendimento: RE 551449/CE, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 25.11.2008; RE 951892/CE, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 16.8.2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 146 restrito ao seu mister, ou seja, aquele que tiver exercido ilegalmente a sua atividade terá os bens apreendidos. A discussão, depois, da ilegalidade ou não desse ato será no Poder Judiciário”. Também tem sido consideradas ilícitas as provas obtidas pelos servidores da Receita Federal, em busca e apreensão, quando desacompanhadas de mandado judicial (HC 93050/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10.6.2008). • Interceptação das comunicações telefônicas e as escutas ambientais Regulada pela Lei nº. 9.296/96, a interceptação telefônica se caracteriza pela intervenção de terceiro sem o conhecimento daqueles que conversam (BADARÓ, 2008, p. 279), sendo possível a gravação do diálogo 66. Sua realização depende de autorização judicial, como consta no art. 5º, inciso XII, da CF. O rol de cabimento da interceptação está no art. 2º da Lei nº. 9.296/96 67 e não define quando ela é permitida, mas a partir de quando ela é proibida. E neste ponto surge um problema em relação à responsabilização penal da pessoa jurídica. O inciso III veta a interceptação telefônica quando o fato investigado for punido com, no máximo, pena de detenção. Esta vinculação à pena restritiva de liberdade impede a utilização deste instrumento caso a interceptação se destine a obter prova somente contra a pessoa jurídica. Isto porque não há previsão de pena de reclusão para a pessoa jurídica. Para a realização da interceptação, não é necessário que haja inquérito instaurado contra os investigados, sendo possível, inclusive, que a escuta se dê durante o procedimento administrativo 68, caso o fato investigado preencha os 66 Neste caso é necessária a transcrição do material em auto apartado. BADARÓ (2008, p. 279) questiona a validade da interceptação sem a gravação e transcrição da conversa, uma vez que se impossibilitaria o contraditório pleno por falta de acesso à prova por parte da defesa. 67 Art. 2°. “Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção”. 68 Como decidiu o STF nos Embargos de Declaração do Recurso Extraordinário 449.206/PR: “EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO OPOSTOS À DECISÃO DO RELATOR: CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL: ART. 3º, II, DA LEI 9.296/96. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO REQUERIDA AO JUÍZO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL ADMINISTRATIVA: POSSIBILIDADE. I. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 147 requisitos constantes no art. 2º da lei (BADARÓ, 2008, p. 289). Já a escuta ambiental está regulada no art. 2º, inciso IV, lei nº. 9.034/95, que trata dos crimes praticados por organizações criminosas. Ela é definida como a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial. Portanto, é vedada a sua utilização quando o delito investigado não for cometido por “quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo” (Lei nº 9.034/95, art. 1º) ou sem autorização judicial, o que impede sua utilização em procedimentos administrativos que não tenham implicação penal posterior. Além disso, e mesmo que se vencessem os problemas anteriores, resta ainda a questão de saber se o simples fato de o ilícito ser praticado no âmbito da organização da pessoa jurídica, poderia ser enquadrado na definição “quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. • Quebra de sigilo bancário Prevista no §4º, art. 1º, Lei Complementar nº. 105/01, a quebra de sigilo bancário só pode ocorrer durante o inquérito ou processo penal quando autorizada por juiz competente e necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito – no entanto, a lei dá preferência a um rol específico de crimes 69. Em recente manifestação acerca dos limites ao exercício do poder de fiscalização pelo Banco Central, com intenso debate entre os Ministros, a maioria do STF entendeu pela impossibilidade de haver quebra do sigilo bancário dos correntistas pela atuação fiscalizatória do BACEN, o que afrontaria o direito ao sigilo previsto no art. 5º, Embargos de declaração opostos à decisão singular do Relator. Conversão dos embargos em agravo regimental. II. - Não há óbice legal que impeça o Ministério Público de requerer à autoridade judiciária a quebra de sigilo telefônico durante investigação criminal administrativa. III - Agravo não provido”. (grifo nosso) 69 Lei Complementar 105/01, art. 1º, §4º. “A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes: I – de terrorismo; II – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra o sistema financeiro nacional; VI – contra a Administração Pública; VII – contra a ordem tributária e a previdência social; VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores; IX – praticado por organização criminosa”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 148 inc. XII, da CF. 70 Compreendidos no conceito de reserva de jurisdição desenvolvido pela jurisprudência do STF quando da análise dos poderes de investigação das Comissões Parlamentares de Inquérito, os referidos mecanismos cautelares condicionam-se à prévia autorização judicial para serem empregados no âmbito do processo administrativo. Embora próprios do Direito Processual Penal, estes instrumentos são também úteis à Administração Pública, cuja prática conta com variados precedentes, a exemplo do CADE nos casos em que a conduta investigada no âmbito administrativo também é tipificada criminalmente. Principalmente nos crimes de cartel71, quando, explicou-nos o representante da autoridade antitruste entrevistado, o CADE atua, em conjunto com a Polícia Federal e o Ministério Público, requisitando a execução de diligências tipicamente penais. Por outro lado, o procedimento administrativo, apesar de não contar diretamente com estes instrumentos, possui elementos que são estranhos ao processo penal, os quais, a princípio, são mais flexíveis no que diz respeito às garantias individuais. Esses instrumentos variam em relação às previsões de cada setor de regulação. A título de ilustração, citamos os seguintes mecanismos 72: • Requisitar informações e documentos aos investigados sob pena de multa. 70 RE 461.366-2/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. 03/08/2007. 71 Cf. Entrevista de Paulo Furquim de AZEVEDO, conselheiro do CADE, no qual o entrevistado diz: “Vale a pena destacar três elementos em que o Brasil se destaca e que são muitas vezes tomados como referência pelas demais jurisdições (...) o programa de combate a cartéis, com o uso de mecanismos de busca e apreensão, acordo de leniência e interceptação de comunicação coloca o Brasil na fronteira na dissuasão desse tipo de ilícito”. Disponível em < http://www.cade.gov.br/news/n019/entrevista.htm>. 72 Não ignoramos que uma análise mais cuidadosa dos instrumentos presentes no procedimento administrativo deveria dar conta das especificidades de cada ente administrativo. No caso da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por exemplo, a Resolução 442/04 aprova o regulamento de disciplina do processo administrativo para apuração de infrações a aplicação de penalidades, cujo art. 12 apresenta a seguinte redação: Art. 12. No curso do procedimento de averiguações preliminares, as Superintendências poderão: I – requisitar das empresas envolvidas, de seus administradores e acionistas, do autor de representação ou de terceiros interessados informações, esclarecimentos e documentos; II – requerer a outros órgãos e entidades públicas informações, esclarecimentos e documentos; III – realizar inspeções e diligências; IV – adotar medidas cautelares preventivas; V – suspender o procedimento de averiguações, determinando a instauração de processo administrativo; e VI – adotar quaisquer outras providências, administrativas ou judiciais, que considerar necessárias”. No entanto, tal aprofundamento foge ao escopo deste trabalho. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 149 O art. 10, inciso II, da portaria nº 327/77, da CVM, e o art. 9º, lei 6.835/77, inciso II, obrigam os intimados73 durante a instrução administrativa a comparecer para esclarecimento ou prestação de informações. Caso o intimado não atenda ao chamado da CVM, é possível a aplicação de multa. No procedimento penal isto não é permitido em relação ao réu, já que há previsão expressa do direito ao silêncio. O mesmo acontece com o pedido para apresentação de documentos. • Inspeção Tanto o CADE quanto a CVM possuem a liberdade de investigar quaisquer documentos que interessem ao processo. A lei 8.884/94 (CADE) e a lei 6.835/77 (CVM) possuem disposições semelhantes, que permitem ao órgão inspecionar e extrair cópias de documentos, arquivos eletrônicos, livros contábeis etc. Além disso, o art. 35, lei 8.884/94, permite que a SDE, quando considerar necessário, inspecione qualquer empresa investigada, devendo para isso intimar o investigado da decisão com antecedência de vinte quatro horas do início da diligência. Durante esta inspeção, a SDE pode examinar a sede social, estabelecimento, escritório, filial ou sucursal de empresa investigada e inspecionar estoques, objetos, papéis de qualquer natureza, assim como livros comerciais, computadores e arquivos magnéticos, podendo extrair ou requisitar cópias de quaisquer documentos ou dados eletrônicos. Nosso entrevistado do CADE afirmou, entretanto, que esse instrumento é pouco útil, pois a perda do elemento surpresa normalmente dificulta a descoberta de evidências. • Acordo de leniência Prevista no arts. 35-B e 35-C da Lei nº. 8.884/94, a aceitação do acordo de leniência pelo investigado resulta na “extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável”. A celebração do acordo de leniência gera a suspensão do prazo prescricional penal e a 73 A definição de quem pode ser intimado aparece no inciso anterior. São eles a) as pessoas naturais e jurídicas que integram o sistema de distribuição de valores mobiliários; b) as companhias abertas; c) os fundos e sociedades de investimento; d) as carteiras e depósitos de valores mobiliários; e) os auditores independentes; f) os consultores e analistas de valores mobiliários; g) quaisquer outras pessoas, naturais ou jurídicas, que participem no mercado, ou de negócio no mercado, quando houver suspeita fundamentada de fraude ou manipulação, destinada a criar condições artificiais de demanda, oferta ou preço dos valores mobiliários. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 150 impossibilidade de oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Após o seu cumprimento fica extinta também a punibilidade penal, além da administrativa. Para isso, o investigado precisa confessar a prática da infração, não ser o líder da operação, ser o primeiro a comparecer perante a administração, apresentar provas que impliquem os outros empresários envolvidos, ajudar durante a o curso da investigação para facilitar o trabalho do Estado e parar de praticar o ato infracional. Além disso, é necessário que a infração não seja de conhecimento da SDE e que não fosse possível à SDE descobrir a conduta sem a ajuda do informante. O acordo de leniência, como afirmou o representante do CADE, é um instrumento próximo da delação premiada do âmbito penal, no entanto ela é muito melhor regulada e com benefícios maiores para o delator, o que resulta em um incentivo para a sua celebração74. Isto porque a delação premiada só é aplicada pelo juiz penal no momento da sentença, o que gera incerteza de sua aplicação ao delator e a conseqüente redução no número de delações; não é necessário que a pessoa confesse a prática do crime, mas somente que incrimine os comparsas; e o crime delatado normalmente já está sendo investigado ou já está na fase processual, enquanto o acordo de leniência serve para que a SDE descubra cartéis que sequer sabia que existiam. • Medidas preventivas O procedimento administrativo também possui, atualmente, medidas preventivas (ou cautelares) que não estão previstas para o procedimento penal. A lei 8.884/94 – que regula o funcionamento do CADE –, por exemplo, prevê em seu art. 52 a imposição de medida restritiva para impedir a continuidade de ato do representado que possa causar lesão irreparável ou de difícil reparação ao mercado. 74 No entanto, Castello Branco (CASTELLO BRANCO, 2008, p. 143 e 159) discorda desta posição e destaca que “a incerteza gerada ao denunciante [em razão da subjetividade na avaliação, pelo SDE, dos elementos extintivos da punibilidade], motivando-o à não-celebração do acordo, conseqüentemente, coloca em risco a eficácia do instituto, prejudicando substancialmente a elucidação dos crimes de cartel” e que a “eficácia do acordo de leniência depende, necessariamente, da implementação de regras claras e confiáveis, capazes de seduzir e encorajar o delator a quebrar o ‘pacto de silêncio’ que norteia a prática de cartel”. No entanto, o acordo de leniência tem efetividade pois, entre 2000 e 2003, 10 acordos de leniência foram firmados e “o CADE já reconheceu em diversas ocasiões que o Programa de Leniência é o instrumento de investigação mais efetivo para se prevenir e punir cartéis” (fonte: Programa de Leniência, Ministério da Justiça e Secretária de Direito Econômico, 2008). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 151 No processo penal ainda não há nenhum instrumento similar a este, visto que a lei dos crimes ambientais, a única que regulou a responsabilidade penal da pessoa jurídica até o momento, é silente em relação a esta matéria. Uma análise mais cuidadosa dos instrumentos presentes no procedimento administrativo deveria dar conta das especificidades de cada órgão administrativo, o que, entretanto, foge ao escopo deste trabalho. Cumpre-nos observar que uma das questões centrais a serem consideradas na comparação e eventual escolha sobre a área que regulará o problema está na possibilidade que cada procedimento oferece para buscar elementos investigatórios e instrutórios. Vimos que o processo penal é dotado de mecanismos, a princípio, mais invasivos da intimidade do investigado, mas também mais eficientes, como as escutas telefônicas e ambientais. Em contrapartida, há, a princípio, muito menos flexibilidade em termos de observância de garantias processuais. O processo administrativo é também dotado de instrumentos de investigação e instrução, que, entretanto, são considerados em alguns casos menos eficazes. Para ilustrar esse dilema, mencione-se a opinião do representante do CADE por nós entrevistado que afirmou que a ausência destes instrumentos, próprios do procedimento penal, dificultaria enormemente o trabalho de investigação do CADE75. Castello Branco (CASTELLO BRANCO, 2008, p. 142 e s.) também considera essencial para o trabalho de investigação realizado pelo CADE a busca e apreensão, as escutas telefônicas e as captações ambientais. Outra diferença muitas vezes mencionada em relação a esses dois tipos de procedimento estaria na maior celeridade do procedimento administrativo em relação ao processo penal76. Trata-se de um dado a princípio correto, mas que deve ser analisado conjuntamente com pelo menos uma variável: a possibilidade de as decisões administrativas serem revistas pelo Judiciário. 75 Opinião que é corroborada pelo informativo nº 15 do CADE, no qual se lê: “O caso do Cartel das Britas é um marco na história da defesa da concorrência do Brasil. Trata-se do primeiro cartel condenado pelo CADE, em 45 anos de história, em que a Secretaria de Direito Econômico (SDE) usou sofisticada análise econômica associada a poderosos instrumentos de investigação, até então inéditos no Brasil, como a busca e apreensão” (grifo nosso). Disponível em: <http://www.cade.gov.br/news/n015/noticias.htm>. 76 Segundo ZUÑIGA RODRIGUEZ (ZÚÑIGA RODRIGUEZ, 2001, p. 194), as vantagens do Direito Administrativo no campo econômico estariam ligadas aos seguintes pontos: necessidade de alta capacitação técnica de seus funcionários, celeridade do procedimento e mobilidade da matéria que requerem sistemas de regulação mais flexíveis que o penal. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 152 A CF garante a inafastabilidade do acesso ao Judiciário, sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, art. 5º, inc. XXXV). Ao contrário do que se evidencia nos sistemas de dualidade de jurisdição, cuja principal característica reside na existência de um Tribunal especializado para lidar com os litígios envolvendo a Administração Pública, o modelo de unidade de jurisdição adotado pelo Estado brasileiro determina a concentração dos questionamentos públicos no mesmo órgão jurisdicional para apreciar litígios privados. Dessa forma, juízes podem invalidar a decisão da Administração Pública com fundamento na legalidade. Um dos principais debates que se apresentam hoje na agenda teórica do Direito Administrativo corresponde aos limites do controle judicial dos atos administrativos. O atual cenário teórico dá conta de duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no controle dos atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do ato administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV, CF, e aqueles que buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do Judiciário às decisões administrativas. Com relação a esta segunda corrente, alguns critérios têm sido levantados para conter o controle judicial dos atos administrativos, como o estabelecimento de standards que determinariam um nível mais ou menos incisivo do controle judicial77 e a razoabilidade da decisão da Administração, que predicaria uma postura de deferência do Judiciário frente ao ato administrativo. 78 Em pesquisa de jurisprudência realizada por Daniel WANG, Juliana PALMA e Daniel COLOMBO, na qual foram analisadas 321 decisões proferidas pelo STF, STJ e TRFs com a finalidade de verificar o comportamento do Poder Judiciário frente a pedidos de revisão de atos regulatórios 79, os autores constataram a tendência de a primeira instância rever os atos regulatórios, ao passo que os Tribunais analisados mostraram-se mais deferentes, dado que 75% dos julgados em que a segunda instância reviu a decisão de primeira foi no sentido de 77 Cf. Gustavo BINENBOJM, 2007, p. 235-235. 78 Cf. Alexandre Santos de ARAGÃO, 2003, p. 350-351. 79 Foram analisados os atos regulatórios das seguintes Agências Reguladoras: ANP, ANATEL, ANEEL, ANTAQ, ANTT e ANAC. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 153 manter ato de Agência Reguladora que o juízo a quo tinha invalidado. 80 Quanto ao tipo de ato mais revisado, a pesquisa constatou que os atos de fiscalização e sanção foram os mais revisados pelo Poder Judiciário, embora os atos normativos tenham sido os mais judicializados. Na prática, a pretexto de se aferir a legalidade (sobretudo a constitucionalidade material), envereda-se no campo do conteúdo da decisão administrativa. Entretanto, mesmo restrita a essa matéria, a revisão dos casos pelo Judiciário tem tido impacto no que diz respeito à demora da execução das sanções aplicadas pela esfera administrativa. O tema é especialmente sensível com relação à principal sanção que o Poder Público emprega para reprimir infrações administrativas, dados os recorrentes questionamentos sobre a legalidade e a proporcionalidade da medida levados pelos sancionados ao Judiciário. Ademais, deve-se ressaltar as dificuldades na execução judicial das multas administrativas. As multas aplicadas pela autoridade administrativa não são autoexecutáveis, o que importa na necessidade de cobrança judicial via ação de execução fiscal (Lei nº. 6.830/80) caso o sancionado não pague espontaneamente o valor arbitrado na multa, que acarreta na inscrição do devedor no Cadastro Informativo dos Créditos Não Quitados de Órgãos e Entidades Federais (CADIN). A judicialização da execução das multas administrativas repercute diretamente sobre a efetividade do sistema sancionador administrativo, pois as multas, embora aplicadas, não são cumpridas. Uma vez que a multa consiste em uma das sanções administrativas mais aplicadas pela Administração Pública federal, senão a sanção mais aplicada, tem-se o quadro de ineficácia do sistema de responsabilização administrativa, agravado pelo fato de a demora de processamento das ações de execução fiscal, dentre outros fatores, determinarem o baixo recolhimento das multas aplicadas. A outra faceta da celeridade diz respeito às exigências de garantias em cada tipo de procedimento. Evidente que o processo administrativo também tem 80 Revisão Judicial dos Atos das Agências Reguladoras: uma análise da jurisprudência brasileira, p. 27 (mimeo). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 154 previsões de forma e de determinadas garantias processuais, como o contraditório e a ampla defesa, constitucionalmente assegurados (CF, art.5º, LV). Além disso, previstos no art. 2º da lei 9.784/99, os princípios que regem o procedimento administrativo são: legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Entretanto, trata-se de um instrumento dotado de mais flexibilidade que, a princípio, o procedimento penal, principalmente porque, ao lado dos dois princípios já citados, estão também os princípios do interesse público e da eficiência. Silva Sánchez, ao tratar dessa questão, indica que a exigência de garantias mais rígidas no Direito Penal estaria ligada à gravidade da pena de prisão. Ou seja, a rigidez das garantias formais desse modelo não corresponderia a uma inspiração ontológica do sistema. Firmou-se, na verdade, apenas um contrapeso ao extraordinário rigor das sanções impostas (Cf. SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 167171). A partir da constatação de que o conjunto de garantias seria muito mais o reverso da pena de prisão do que algo inerente à identidade do modelo, Sánchez estabelece uma relação direta entre as garantias de determinado sistema e a severidade das sanções por ele infirmadas. Com isso, vê-se apto a concluir que seria admissível a absorção de novas áreas de tutela menos garantistas dentro do Direito Penal, desde que as sanções previstas para os ilícitos não incluíssem a privação da liberdade. 81 Desse modo, no caso das pessoas jurídicas, em que se teria um procedimento penal no qual não cabe a pena privativa de liberdade, não seria a 81 É nesse sentido também a posição de Antônio Magalhães GOMES FILHO (GOMES FILHO, 1997, p. 55), ao explicar a razão das garantias previstas no direito processual penal, afirma que “no Estado democrático de direito, em que a liberdade individual é reconhecida como premissa fundamental para a justa organização da sociedade, é evidente que as decisões penais, que incidem exatamente sobre o status libertatis do cidadão, só podem ser legitimadas por um saber resultante de procedimentos que permitam esclarecer os fatos sob a dupla ótica do indivíduo e da sociedade: é preciso que as hipóteses acusatórias sejam verificadas, pois sem a existência de provas concludentes não se poderá superar a presunção de inocência do acusado; mas é igualmente necessário que essas mesmas provas sejam produzidas com a participação e o controle da defesa e, ainda, que possa haver contraprova. Em outras palavras, um verdadeiro modelo cognitivo de justiça penal pressupões não apenas que a acusação seja confirmada por provas (nulla acusacione sine probatione), mas também o reconhecimento de poderes à defesa do acusado no procedimento probatório”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 155 princípio inaceitável, ainda que no interior da esfera penal, pensar em alguma medida na flexibilização de critérios de imputação e na relativização de alguns princípios de garantias. A dificuldade estaria, aqui, em casos nos quais estivesse em discussão simultaneamente responsabilização da pessoa jurídica e de pessoas físicas, pois se estas últimas estiverem sujeitas à pena de prisão, então qualquer tipo de flexibilização de garantias deverá se circunscrever à pessoa jurídica. Ou seja, a denúncia teria de ser deduzida somente contra a pessoa jurídica e a condenação desta não poderia gerar efeitos negativos às pessoas físicas – por exemplo, impedindo a possibilidade de empréstimo das provas produzidas durante a persecução penal em que a pessoa jurídica figura no pólo passivo a processos nos quais a ré é pessoa física. A nosso ver, podemos, a princípio, pensar que não estamos diante de procedimentos com critérios fixos ou ontológicos, mas que os critérios e regras de imputação estariam, dentro de certos limites, sujeitos a mudança, em razão de decisões legítimas no âmbito de um do Estado Democrático de Direito. Sobre a caracterização dos dois ramos em face das garantias processuais, e apontando para uma posição que diverge da que acaba de se expor, mencionamos os desenvolvimentos recentes que defendem a extensão das garantias do Direito Penal ao âmbito administrativo. O Tribunal Constitucional espanhol em julgamentos ocorridos nos anos de 1987 e 199182 sustentou que estaríamos diante de um ius puniendi geral que se expressa indistintamente no Direito Administrativo sancionador e no Direito Penal. A tese favorável ao jus puniendi do Estado, hoje prevalecente na doutrina brasileira, considera que a prerrogativa sancionadora constitui, ao lado do poder penal punitivo exercido pelo Judiciário, o poder geral do Estado de reprimir condutas contrárias ao ordenamento jurídico, qualquer que seja a esfera de responsabilização. Como conseqüência, o jus puniendi estatal determinaria um regime jurídico comum para disciplinar a responsabilização penal e administrativa, servindo como efetivo meio de transplante de princípios e regras do Direito Penal para o Direito Administrativo. 82 STC n.º 18/1987 (RTC 1987, 18) e STC n.º 246/1991, RTC 1991, 246. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 156 Seguindo esta tese, Miguel REALE JR., no Brasil, em parecer apresentado perante o CADE em 2006, defendeu a existência de um jus puniendi geral. Para o autor, a escolha do legislador pela via penal ou administrativa é uma “escolha com base na conveniência política deste ou daquele caminho, com vista a alcançar os fins preventivos e retributivos”. Em razão desta unidade do direito de punir, que abarcaria o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, afirma REALE JR. que as duas áreas devem se submeter “aos mesmos princípios de proteção do sujeito sancionado, normas essas comuns, estabelecidos no capítulo das garantias individuais de nossa Constituição Federal”. Assim, certas garantias e princípios que aparentam ser aplicáveis somente na esfera penal também devem ser aplicados no procedimento administrativo sancionador. Como exemplo, REALE JR. cita o princípio da legalidade, da irretroatividade das disposições desfavoráveis, da segurança jurídica e da proporcionalidade. E assevera que também os princípios previstos no art. 5º da Constituição como o princípio da anterioridade (inc. XXXIX); princípio da irretroatividade (inc. XL); princípio da presunção de inocência (inc. LVII); princípio do contraditório e da ampla defesa 83 (inc. LV); e princípio da licitude das provas (inc. LVI) devem ter aplicação integral no procedimento administrativo. 84 Ainda que, como dissemos acima, entendamos que as regras que guiam a imputação estão em disputa e podem ser redefinidas, é preciso considerar as conseqüências de transportar todas as garantias da esfera penal para a administrativa. Isso provavelmente inviabilizaria a regulação, pois este ramo do Direito perderia em celeridade e em flexibilidade e, ao mesmo tempo, não teria incrementado as suas possibilidades de buscar evidências e produzir provas. 83 No entanto, decisão recente do STF afastou a necessidade de defesa técnica em procedimento administrativo. “EMENTA: Recurso extraordinário. 2. Processo Administrativo Disciplinar. 3. Cerceamento de defesa. Princípios do contraditório e da ampla defesa. Ausência de defesa técnica por advogado. 4. A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos”. (grifo nosso) (RE 434.059/PR, Pleno, rel. min. Gilmar Mendes). 84 Posição também defendida por Fermin CASI ao afirmar que “el único camino para evitar una elusión de las garantias del Convenio de Roma, es la aplicación al injusto administrativo, de los princípios penales materiales y atenuando así a potestad sancionadora de la Administración. Y entre ellos el principio de imparcialidad, el derecho de defensa y la interdicción de la indefensión, la presunción de inocencia, el derecho a un proceso sin dilaciones indebidas y garantía de motivación de las resoluciones judiciales, como salvaguardas de índole procesal y constitucional frente a esa potestad sancionadora” (2003, p. 143). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 157 Para Alejandro NIETO, a tese do jus puniendi estatal surge da necessidade prática de viabilização da atividade sancionadora na seara administrativa: faltavalhe o ferramental necessário para disciplina da prerrogativa sancionadora, o qual fora, então, fornecido pelo Direito Penal, com o aproveitamento de regras de processamento e princípios garantistas próprios desta esfera. Porém, passado o estágio inicial de afirmação da autonomia do Direito Administrativo e de formação de seu regime jurídico, ainda assim o conhecimento do jus puniendi estatal continuou forte nos sistemas administrativos, sendo elevado à “categoria de dogma inquestionável”. 85 A ausência de disciplina normativa do exercício da prerrogativa sancionadora, i.e., de suas infrações e sanções administrativas e do seu processo sancionador, também se manifestou no Direito Administrativo brasileiro. 86 Até a edição das leis de processo administrativo no final de década de 1990, a Administração Pública brasileira não contava com normas gerais de regramento processual, quanto mais do tipo sancionador, ressalvadas as legislações especiais. Esse cenário viabilizou o emprego de mecanismos próprios do Direito Penal para disciplina da atuação administrativa sancionatória, corroborado pelo fato de o período pré-redemocratização ensejar o recurso a mecanismos de garantia de direitos individuais frente à Administração Pública ditatorial. No entanto, é de se verificar hoje a alteração do panorama histórico-político que determinou a recepção da tese do jus puniendi estatal. Primeiramente, sucessivas alterações do regime jurídico-administrativo com a constitucionalização de garantias dos indivíduos oponíveis à Administração Pública – a exemplo dos princípios da legalidade, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal – e com a edição das leis de processo administrativo, as quais também prevêem direitos substantivos e adjetivos aos administrados, conformam um Direito Administrativo garantista. Em outros 85 “El enorme éxito de tal postura – elevada ya a la categoría de dogma incuestionable – se debe en parte a razones ideológicas, ya que así se atempera el rechazo que suelen producir las actuaciones sancionadoras de la Administración, de corte autoritario, y, en parte, a razone técnicas, en cuanto que gracias a este entronque con el Derecho público estatal se proporciona al Derecho Administrativo Sancionador un soporte conceptual y operativo que antes carecia”. Alejandro NIETO, 1993, p. 20. 86 Para uma descrição do cenário de ausência de normas específicas para reger a atuação administrativa sancionatória, cf. Carlos Ari SUNDFELD, 1987, p.102-103. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 158 termos, esgota-se a necessidade de transplante de garantias da esfera penal para o Direito Administrativo, que possui seus próprios mecanismos de defesa de direitos. Pelo reconhecimento da autonomia do Direito Administrativo (Sancionador) e, por conseqüência, de seu peculiar regime jurídico, mostra ser descabida a tese do jus puniendi estatal no atual cenário administrativista. Não é o poder punitivo estatal o fundamento da competência sancionatória detida pela Administração Pública, mas é a prerrogativa sancionatória que confere à autoridade estatal a faculdade de aplicar sanções administrativas. A prerrogativa administrativa sancionadora deve ser trabalhada de forma autônoma não apenas em razão de seu fundamento jurídico próprio, correspondente à prerrogativa imperativa, mas principalmente porque seu exercício está lastreado em um regime jurídico peculiar, com regras e princípios específicos. Dessa forma, a prerrogativa sancionadora deve ser contemplada à luz da Constituição Federal e das normas, legais e infra-legais, que conformam o regime de processamento específico desta potestade pública. Ao contrário do processamento penal, a Lei nº. 9.784/99 determina ser um dos deveres do administrado no processo administrativo “expor os fatos conforme a verdade” (art. 4º, inc. I). Questão central seria, por exemplo, a proibição de produção de provas contra si mesmo, garantia ligada ao Direito Penal e que tradicionalmente não vige no Direito Administrativo, eis que é característico dessa área normas de obrigam os investigados a apresentarem documentos ou de alguma forma franquearem acesso a agentes ou órgãos administrativos, sob pena de sanção. Isso se daria justamente porque a esfera administrativa é dotada de meios investigativos e de produção de prova menos eficientes. Estender o princípio que veda a proibição de prova contra si mesmo, sem ampliar a capacidade de intervenção das autoridades administrativas afetaria justamente tal equilíbrio e, no limite, poderia inviabilizar a investigação e instrução de casos por essa esfera. Outra constelação de questões a serem consideradas é a que decorre da intervenção dupla, ou seja, da possibilidade de se imputar responsabilidade e determinar sanções pelas duas esferas ao mesmo fato. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 159 A primeira delas é a utilização de provas emprestadas. Provas emprestadas são aquelas que não foram produzidas no mesmo processo em que estão sendo utilizadas87. BADARÓ (2008, p. 201) afirma categoricamente que provas produzidas em processos administrativos não podem ser trasladadas para processos penais, pois a prova emprestada, para ser utilizada em um segundo processo, deve ter sido produzida perante o juiz natural. 88 Assim, para que o Judiciário possa avaliar questões de mérito decididas em procedimentos administrativos ou utilizar elementos ali constantes, é necessária nova realização da mesma prova produzida durante a instrução em âmbito administrativo, o que elimina por completo a utilidade da primeira produção da prova. O Supremo Tribunal Federal, em decisão paradigmática para o tema, fixou o entendimento de que é inadmissível que a decisão de pronúncia se dê apenas com base em prova emprestada (HC 67.707, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 14.8.1992; posteriormente, RMS 25485/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. 14.3.2006; HC 89468/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. 15.5.2007; HC 91973/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 4.3.2008). Decisões recentes tendem a aceitar a prova produzida fora do processo penal, eis que foi observado o contraditório no procedimento administrativo disciplinar (MS 24803/DF, Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 29.10.2008; em sentido semelhante: RE 328138/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 16.9.2003; HC 78749/MS, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25.05.1999.). O inverso também é verdadeiro na Suprema Corte: provas produzidas no processo penal podem ser emprestadas a procedimentos administrativos,89 87 Cópias de documentos públicos ou não sigilosos constantes em outro processo não são consideradas provas emprestada. Seria uma prova emprestada, a cópia do depoimento de testemunha prestado perante um juiz diverso e sobre outro caso ou cópia de extratos bancários conseguidos a partir da quebra de sigilo decretada em outro processo. 88 Não significa o mesmo juiz, mas um juiz com a mesma competência daquele que vai analisar a prova emprestada. 89 O mesmo não ocorre na situação inversa. O STF já decidiu ser lícito o uso de provas produzidas durante o procedimento penal em procedimentos administrativos. Ementa: “PROVA EMPRESTADA. Penal. Interceptação telefônica. Documentos. Autorização judicial e produção para fim de investigação criminal. Suspeita de delitos cometidos por autoridades e agentes públicos. Dados obtidos em inquérito policial. Uso em procedimento administrativo disciplinar, contra outros servidores, cujos eventuais ilícitos administrativos teriam despontado à colheita dessa prova. Admissibilidade. Resposta afirmativa a questão de ordem. Inteligência do art. 5º, inc. XII, da CF, e do art. 1º da Lei federal nº 9.296/96. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 160 inclusive com base no princípio da proporcionalidade, como no caso de compartilhar com o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado provas obtidas por meio de interceptação telefônica (Inq. 2575 QO, Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, j. 25.6.2008; em sentido semelhante, Inq 2424 QO/RJ, Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 25.4.2007). Além disso, há a questão do bis in idem, já que, em se tratando de pessoa jurídica, as sanções aplicáveis à condenada pelos dois ramos do Direito são semelhantes. Conduzir dois processos dispendiosos, para ao final se chegar à mesma sanção, não está de acordo com o princípio da economia processual e pode gerar situações em que o Direito Administrativo, que possui menos garantias processuais, imponha penas superiores ao Direito Penal. Todos esses problemas estariam presentes caso se chegasse a uma conformação em que pelo mesmo fato, a punição dos indivíduos se desse pela via penal e a da pessoa jurídica pela via administrativa. Por fim, é preciso notar que há um debate importante no âmbito internacional para que as recomendações feitas pelos órgãos internacionais no sentido de que os Estados adotem medidas de incremento da responsabilidade das pessoas jurídicas não os vinculem especificamente à sanção penal. Uma série de diretivas no âmbito da EU que viraram Direito comunitário vigente (à exceção do criticado dispositivo do Corpus Iuris) falam em “medidas necessárias para garantir que as pessoas jurídicas possam ser responsáveis”. 90 Precedentes. Voto vencido. Dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, bem como documentos colhidos na mesma investigação, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessas provas”. (grifo nosso) Questão de Ordem na Petição 3683, Pleno, rel. min. Cézar Peluso 90 Carlos Gómez-Jara DÍEZ analisa esse processo: “interesa destacar que dicho cambio – SC. el paso de una propuesta de responsabilidad penal de las personas jurídicas a una responsabilidad de naturaleza indeterminada de dichos entes – muy probablemente se haya debido a las duras críticas que recibió dicha propuesta legislativa no pasado. Así, uno de los puntos más criticados de la redacción del Corpus Júris fue la introducción de la responsabilidad penal empresarial, dado que ésta se mostraba incompatible com el principio de culpabilidad” (GOMES JARA DÌEZ, 2005, p. 61). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 161 A OCDE adota também posição flexível em relação a esse ponto, ou seja, ressalta o fato de que suas recomendações não estão vinculadas à esfera penal, mas sim à eficiência do sistema de responsabilização, que pode ser diferente de acordo com o ordenamento jurídico de cada país parte. 91 Tais posições conferem, portanto, ao legislador a liberdade de escolher sobre a área do Direito e sob qual conformação isso será mais adequadamente tratado, tornando bastante atual e relevante a discussão sobre as vantagens e desvantagens que caracterizam a regulação por cada um dos ramos do Direito. 3. RESPONSABILIDADE CIVIL Este parágrafo sintetiza as observações esparsas feitas no trabalho92 acerca da responsabilidade civil, de modo a facilitar a análise do potencial desse instituto para cuidar do problema dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras coletividades. É importante advertir que, no estágio atual da pesquisa, não é possível avançar para além da discussão do potencial da responsabilidade civil para cumprir esse papel, pois a conveniência da sua aplicação, bem como o desenho do modelo de responsabilidade civil mais adequado depende das características concretas dos ilícitos que se pretenda regular, não sendo possível posicionar-se em abstrato sobre um modelo geral. 91 “O artigo 2º da Convenção exige que cada parte ‘tome as medidas necessárias ao estabelecimento das responsabilidades de pessoas jurídicas pela corrupção de funcionário público estrangeiro, de acordo com seus princípios jurídicos’. Embora uma Parte seja capaz de adotar seu próprio método para implantar o Artigo 2 da Convenção (i.e. de acordo com seus princípios jurídicos), as Partes estão sujeitas a duas limitações. Primeiro, uma Parte não está obrigada a estabelecer responsabilidade criminal para suborno estrangeiro se, de acordo com seu sistema jurídico, a responsabilidade criminal não for ‘aplicável’ a pessoas jurídicas. Segundo, de acordo com o Artigo 3(1) da Convenção, as pessoas jurídicas devem estar sujeitas a sanções criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas contra o suborno estrangeiro, e de acordo com o Artigo 3(2), caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico da Parte, não se aplique a pessoas jurídicas, a Parte deverá assegurar que estarão sujeitas a sanções não criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas, inclusive sanções financeiras” (Cf. OCDE. 2007, p. 58). 92 Além de organizar as referências esparsas feitas à responsabilidade civil neste trabalho, o presente capítulo reproduz trechos da obra: Flavia Portella Püschel. Responsabilidade. In: José Rodrigo Rodriguez (org.). Dicionário de Direito e Desenvolvimento, São Paulo: Saraiva, no prelo. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 162 Responsabilidade civil: definição e funções Na tradição jurídica brasileira a responsabilidade civil é entendida como o dever de reparar um dano93. O ato ilícito é entendido, nesse contexto, como uma fonte de obrigação, pois constitui o fato jurídico que dá origem a uma relação jurídica obrigacional, na qual a vítima figura como credor e o autor do ilícito como devedor, sendo a prestação o dever de reparar o dano (entre outros: CAVALIERI FILHO, 2008, p. 3; GOMES, 2000, p. 31). Esse modo de definir a responsabilidade civil deixa clara a importância da noção de dano na responsabilidade civil94 e permite deduzir, a partir da própria definição de responsabilidade, o que se considera ser a função precípua desse instituto: a reparação dos danos sofridos pela vítima95. Além dessa função principal, reconhecem-se à responsabilidade civil outras funções, secundárias: a prevenção (por dissuasão) e a distribuição de riscos e danos (PÜSCHEL, 2005, p. 92-95). A prevenção feita pela responsabilidade civil é de um tipo peculiar: dá-se pela dissuasão. Isso significa que se presume ser possível desestimular as pessoas a praticarem atos ilícitos por meio da imposição (ou ameaça de imposição) de uma sanção. A idéia é que a perspectiva ou a experiência de sofrer algo desagradável (o dever de reparar) faça com que as pessoas prefiram não praticar os atos ilícitos. Pode-se 93 Veja-se, a título de exemplo, a definição de Cavalieri Filho, para quem, em sentido jurídico, o vocábulo responsabilidade “designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico” (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 2). 94 Veja-se a afirmação de J. de Aguiar Dias: “...a unanimidade dos autores convém em que não pode haver responsabilidade sem a existência de um dano, e é verdadeiro truísmo sustentar esse princípio, porque, resultando a responsabilidade civil em obrigação de ressarcir, logicamente não pode concretizarse onde nada há que reparar” (AGUIAR DIAS, 1994, p. 9). 95 A função de reparação da responsabilidade civil é amplamente reconhecida pela doutrina. Muitas vezes não é sequer discutida, mas pressuposta pelos autores. Cf., entre outros: (SILVA PEREIRA, 2001, p. 10); (DINIZ, 2002, p. 6-8); (GOMES, 2000, p. 278); (CAVALIERI FILHO, 2008, p.2). Neste ponto é preciso notar que a responsabilidade não tem o poder de desfazer o acontecido: uma vez ocorrido um dano, não é possível eliminá-lo. O que as regras de responsabilidade fazem é determinar quem deve arcar com o prejuízo ocorrido, se a vítima que o sofreu ou outra pessoa. É essa a função que a tradição jurídicodogmática brasileira denomina função de reparação. A reparação está, portanto, no fato de que quando o direito estabelece responsabilidade civil, desloca-se o prejuízo da vítima para outra pessoa, a qual deverá reparar o prejuízo daquela, colocando-a, em princípio e na medida do possível, na situação em que estaria caso o prejuízo não tivesse acontecido. Essa mesma função poderia ser descrita de outro modo, em termos de alocação de riscos e danos. Nesse sentido, a função primordial da responsabilidade civil seria a alocação de riscos e danos na sociedade, com sua atribuição à vítima ou a outra(s) pessoa(s). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 163 aqui fazer um paralelo com as teorias da pena (uma vez que o caráter preventivo atribuído à sanção penal pressupõe igualmente uma noção de dissuasão): espera-se que a responsabilidade civil seja capaz de produzir um efeito de “prevenção geral” e de “prevenção especial” negativas (PÜSCHEL, 2007, p. 24). O caráter secundário desta função da responsabilidade civil na nossa tradição evidencia-se pelo fato de não ser controlável. Ela consiste antes em um efeito preventivo – eventual – do que propriamente em objetivo perseguido diretamente pela responsabilidade civil. Isso se deve ao fato de que em nosso ordenamento, via de regra, não é possível alterar o valor da sanção de reparação com vistas a atingir o objetivo dissuasório. Aplica-se à responsabilidade civil o “princípio da restituição”, na expressão de Aguiar Dias (AGUIAR DIAS, 1994, p. 736), segundo o qual o valor a ser pago pelo responsável deve consistir no valor do dano. Trata-se de princípio atualmente consagrado de modo expresso pelo art. 944, caput, do CC. No entanto, mesmo na vigência do CC anterior – o qual não continha regra equivalente –, o princípio da restituição já era considerado essencial à noção de responsabilidade civil (PÜSCHEL, 2007, p. 18). A exceção expressa que encontramos na legislação está no parágrafo único do mesmo art. 944, o qual permite, no entanto, apenas a redução do valor da indenização, e não o seu incremento. Para que o efeito dissuasório possa ser considerado propriamente um objetivo perseguido diretamente pela responsabilidade civil, é preciso que seja possível o aumento do valor da sanção conforme critérios diversos do simples valor do dano. Pois, se o efeito dissuasório decorre da inflição de um mal ao autor do ilícito, é preciso que o responsável de fato experimente o dever de reparar como um mal. Se o responsável é especialmente rico, por exemplo, ou se a prática do ilícito lhe traz vantagens que superam o valor do dano causado, o efeito dissuasório fica perdido, a não ser que se admita o aumento da sanção. Como veremos abaixo, a visão tradicional da responsabilidade civil foi modificada com relação aos danos morais, hipótese em que grande parte da jurisprudência admite a quantificação da sanção com base em critérios punitivos. Responsabilidade por fato próprio e por fato de outrem Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 164 As pessoas jurídicas e as coletividades em geral agem necessariamente por meio de indivíduos. Além disso, é possível que fatos ocorram, os quais, embora não possam ser considerados como atos de nenhum indivíduo em particular, constituem efeito da atividade da pessoa jurídica ou da coletividade. Sendo assim, a questão fundamental que se apresenta é determinar em que circunstâncias o ato de um ou vários indivíduos, ou mesmo certo acontecimento, o qual não se pode atribuir à ação de nenhum indivíduo, se deve considerar como ação de uma pessoa jurídica ou de uma coletividade não personalizada. Relacionada a essa questão, há a necessidade de determinar como se deve apurar o elemento da culpabilidade em relação aos atos das pessoas jurídicas e demais coletividades. Quando nos referimos à responsabilidade civil, é preciso lembrar que o direito brasileiro não faz distinção entre a responsabilidade de pessoas físicas ou jurídicas: as regras são as mesmas, independentemente do tipo de pessoa. O direito civil brasileiro conhece a responsabilidade por fato de outrem. O art. 932 do CC a prevê em várias hipóteses, dentre as quais há uma que interessa diretamente às pessoas jurídicas, embora não se aplique, como dito acima, apenas a elas96. Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: 96 É interessante notar que a responsabilidade pelo fato de terceiro prevista no art. 932, III do CC é objetiva, isto é, independe da existência de culpa por parte do empregador ou comitente, conforme estabelece o art. 933 do CC. José de Aguiar Dias, relaciona a própria idéia de responsabilidade civil por fato de outrem ao caráter objetivo dessa responsabilização, ao afirmar que “no sistema de responsabilidade civil fundado na culpa, o dano só pode acarretar obrigação de reparos para aquele que o pratica. Cada um responde pessoalmente por seus atos” (AGUIAR DIAS 1983, 553). Antes da aceitação pacífica da responsabilidade sem culpa no direito civil, partidários da responsabilidade por culpa entendiam que o fundamento da chamada responsabilidade por fato de outrem era, em última análise, uma culpa própria, a qual consistia na seleção ou na vigilância inadequadas dos subordinados (culpa in eligendo e culpa in vigilando, respectivamente) (AGUIAR DIAS 1983, 571). Na vigência do CC de 1916, o qual não trazia norma expressa quanto à responsabilidade sem culpa do empregador ou comitente, esta era presumida, na forma de culpa in eligendo, conforme a súmula 341 do STF (Cf. a respeito, CAVALIERI FILHO 2008, 38). Ainda há autores que vêem na responsabilidade por fato de terceiro uma responsabilidade por fato próprio, neste caso, por uma omissão (CAVALIERI FILHO 2008, 25). No entanto, a exigência de que a conduta do empregado, serviçal ou preposto constitua ato ilícito e o fato de que o empregador ou comitente pode reaver o que pagou daquele que causou o dano (CC, art. 934) parece indicar seu caráter de responsabilidade por fato de terceiro, e não por fato próprio. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 165 (...) III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; O fundamento dessa norma está na idéia de subordinação e de substituição. A responsabilidade do empregador ou comitente em relação aos ilícitos praticados por seus empregados serviçais e prepostos está em que estes realizam alguma atividade por sua conta e sob sua direção (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 193; AGUIAR DIAS, 1983, p. 569). A isso se relaciona a idéia de substituição, isto é, a idéia de que, ao agir, o empregado, serviçal ou preposto atua como instrumento do patrão, substituindo-no no exercício de funções que ele não tem como exercer pessoalmente (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 191; AGUIAR DIAS, 1983, p. 572). Exige-se que o ato danoso tenha sido praticado no exercício do trabalho ou em razão dele, mas admite-se responsabilidade do empregador ou comitente, mesmo em casos nos quais o empregado, serviçal ou preposto tenha praticado o ilícito com abuso ou desvio de suas atribuições, desde que o prejudicado esteja de boa-fé (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 194-195). Trata-se de manifestação da teoria da aparência, segundo a qual, considera-se como existente uma situação que na verdade não existe, desde que haja circunstâncias externas que a tornem verossímil e que a pessoa que agiu confiando na aparência esteja de boa fé. Seu fundamento é a necessidade social de garantir segurança às operações jurídicas, bem como a proteção aos agentes que procedem com correção (BORGHI, 1999, 41-43). Como afirma S. Cavalieri Filho em relação à hipótese do art. 932, III do CC, “o terceiro não tem obrigação nem condições de saber os limites das funções do empregado, reputando-se legítimos (...) todos os atos praticados na esfera de suas aparentes atribuições” (CAVALIERI FILHO, 1983, 195). Para o que nos interessa neste trabalho, importa notar que a responsabilidade por fato de outrem do art. 932, III do CC perdeu quase todo seu campo de aplicação, por ter sido substituída por mecanismos de responsabilidade própria do empregador ou comitente (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 192). Assim é que o art. 37, § 6º, da CF estabeleceu a responsabilidade direta (e sem culpa) do Estado e dos prestadores de serviços públicos pelos atos de seus agentes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 166 Nesse caso, não é necessário que o agente tenha praticado ilícito próprio (pelo qual o Estado ou patrão responderia de modo vicário). O ilícito é próprio do Estado ou do prestador de serviço público e se funda na idéia do risco da atividade, segundo a qual os efeitos indesejáveis de determinada atividade se atribuem àquele que criou o risco, o controla e dele tira proveito (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 191; sobre o desenvolvimento da teoria do risco e suas justificativas no direito civil, cf. PÜSCHEL, 2005, p. 95-100). O mesmo ocorreu com relação à responsabilidade do fornecedor, estabelecida pelo CDC. Nesse caso, a lei nem sequer menciona o empregado, serviçal ou preposto (CDC, arts. 12, 14, 18 e 20). O critério para imposição de responsabilidade ao fornecedor é a ocorrência de dano causado por produto ou serviço seu, viciado ou defeituoso, colocado no mercado. Também aqui se considera que a justificativa para a atribuição de responsabilidade ao fornecedor é a assunção de um risco ligado ao exercício de sua atividade. No mesmo sentido, pode-se mencionar o art. 927, parágrafo único, do CC, o qual estabelece uma responsabilidade direta para quem exerce atividade que implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. No direito civil, a passagem da responsabilidade por fato de outrem para uma responsabilidade própria se deu de modo vinculado ao abandono do requisito da culpa. No entanto, não nos parece que esse fato exprima uma relação necessária. É possível imaginar o estabelecimento de uma responsabilidade própria de alguém que exerça certa atividade – no sentido de uma responsabilidade por atos eventualmente praticados por outras pessoas, como empregados, comitentes, etc., mas que não dependa da apuração de responsabilidade dessas pessoas – baseada na culpa (também própria). É o que fazem, no campo do direito penal, as teorias que enxergam uma forma própria de culpa dos entes coletivos em um defeito de organização. Um exercício de imaginação pode explicitar a idéia: o CDC, em seu art. 12 prevê responsabilidade sem culpa do fornecedor por danos resultantes de seus produtos defeituosos. Nesse caso, a responsabilidade é própria porque não importa quem foram concretamente as pessoas que trabalharam na linha de produção, de controle de qualidade, de embalagem, de distribuição, etc., nem em que fase ou por obra de quem o defeito surgiu. Trata-se simplesmente de algo que se entende estar no âmbito do exercício da atividade daquele fornecedor. Por outro lado, a responsabilidade é objetiva, sem culpa, o que significa que Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 167 ela existe ainda que o fornecedor consiga provar que seu processo de produção se deu de forma irrepreensível. Nesse caso, portanto, temos a conjugação (recorrente na responsabilidade civil atual) entre responsabilidade própria do fornecedor e responsabilidade objetiva. Podemos, no entanto, imaginar um sistema que exigisse para a responsabilização do fornecedor, além da existência do defeito no produto colocado no mercado, que se comprovasse que seu processo de produção está organizado de maneira inadequada. Nesse caso imaginário, a responsabilidade continuaria sendo própria, mas exigiria uma falha de organização do fornecedor. 97 Do ponto de vista da questão da atuação, abandonada a idéia de uma responsabilidade vicária, permanece a questão dos critérios pelos quais se deve considerar um acontecimento como ato de uma dada pessoa jurídica ou coletividade. Em primeiro lugar, é interessante notar que abandonar a responsabilidade vicária não implica necessariamente abandonar também o critério dos atos praticados por empregados ou prepostos, uma vez que um ato pode ser considerado como praticado pela pessoa jurídica ou coletividade quando praticado por empregado ou preposto no exercício de trabalho que lhe competir ou em razão dele, independentemente de este ato constituir um ilícito individual do próprio empregado ou preposto. Pode-se incluir, ao lado desse critério, outros, não diretamente relacionados à atuação de indivíduos, mas ligados diretamente à própria atividade da pessoa jurídica ou coletividade, a exemplo do que faz o CDC quando estabelece responsabilidade civil pelo defeito do produto ou serviço. Aproximações entre responsabilidade civil e responsabilidade penal No âmbito da responsabilidade civil, verifica-se desde algum tempo uma transformação na sanção, que a aproxima da responsabilidade penal. Trata-se da responsabilidade civil punitiva. 97 No campo da responsabilidade civil, a preocupação com a reparação das vítimas, entre outros fatores, faz com que um sistema desse tipo não seja desejável. O exemplo destina-se apenas a demonstrar que a responsabilidade própria do fornecedor não implica necessariamente a adoção de um modelo de responsabilidade sem culpa, mas apenas um modelo de culpa voltado à própria organização da atividade. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 168 Além disso, também o direito penal tem passado por mudanças que o aproximam da responsabilidade civil. Por um lado, discute-se a possibilidade de aceitação da reparação como sanção penal (imposta pela prática de ilícito penal, como resultado de condenação em processo criminal). Por outro lado, a própria compreensão dos fins da imputação criminal e da pena tem se alterado com as teorias da função comunicativa. Trata-se de fenômenos que aproximam os dois tipos de responsabilidade e podem ser interessantes para pensar o formato de uma política pública relativa aos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras coletividades. Nos casos de responsabilidade civil punitiva, o autor do ilícito civil é condenado a pagar à vítima não simplesmente um valor correspondente ao dano causado, mas, além disso, um valor calculado para garantir que a sanção seja sentida como um mal pelo imputado. Com isso, procura-se atingir objetivos semelhantes a alguns dos fins perseguidos pela pena enquanto sanção penal: retribuição, prevenção especial negativa e prevenção geral negativa (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 29). A responsabilidade civil punitiva é um dos temas mais polêmicos da responsabilidade civil, e sua aceitação em nosso sistema está longe de ser pacífica entre os doutrinadores. Apesar disso, ela é bastante difundida na jurisprudência nos casos de responsabilidade civil por danos morais98. De todo modo, não há impedimento a que legislação nova introduza expressamente esse tipo de sanção punitiva como modo de regular a prática de ilícitos no âmbito de pessoas jurídicas e coletividades e essa é, portanto, uma ferramenta que pode ser levada em consideração. Pode-se imaginar, inclusive a admissão expressa de responsabilidade com fim exclusivamente punitivo, isto é, responsabilidade civil mesmo na ausência de dano, com o objetivo exclusivo de atingir um objetivo ligado à punição do autor do ilícito (prevenção especial negativa, prevenção geral negativa, etc.). Naturalmente, a aceitação de responsabilidade civil punitiva propõe suas próprias questões, entre elas, o problema do enriquecimento sem causa da vítima, uma vez que os valores pagos a título de 98 Para uma explicação mais detalhada sobre a aceitação da responsabilidade civil punitiva pela doutrina e jurisprudência brasileiras, v. PÜSCHEL, 2007, p. 17-23. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 169 responsabilidade civil destinam-se à vítima. No entanto, trata-se de problema que se pode solucionar, estabelecendo destino alternativo aos valores pagos a título punitivo. Isso significa que, se a opção legislativa for pela resposta sancionatória punitiva, é preciso lembrar que tal via pode ser tomada tanto por meio do direito penal ou do direito administrativo, quanto do direito civil. As principais diferenças relevantes nesse caso seriam relativas não à sanção em si, mas a outros aspectos do sistema, como diferenças processuais, simbólicas, etc. Com relação às modificações do direito penal, uma primeira modificação relevante diz respeito à pena. A pena, ou seja, a sanção no direito penal, tem como nota característica – pelo menos tradicionalmente – o consistir na inflição de um mal ao autor do delito. Esta característica da pena constitui um dos principais e mais assentados critérios da distinção entre as responsabilidades penal e civil: entende-se que o direito civil tem por objetivo a reparação do dano causado à vítima, enquanto ao direito penal cabe buscar a punição dos culpados (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 20). As justificativas para a sanção penal assim entendida encontram-se nas várias teorias da pena, as quais estabelecem vários objetivos possíveis para a lei penal: proteger a sociedade, dar o exemplo do castigo, fazer pagar o mal pelo mal, readaptar o culpado ou neutralizá-lo, mas que têm em comum o fato de que, qualquer que seja o objetivo que se atribua ao direito penal e à pena, tal objetivo se pretende atingir por meio da inflição de um mal (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 20-21). A idéia de pena como inflição de um mal está tão assentada na responsabilidade penal que se afirma com freqüência que “negar que a pena tenha caráter de mal seria o mesmo que negar o próprio conceito de pena” (JESCHECK, 1993, p. 57). Apesar disso, nota-se que a evolução recente do direito penal tem sido no sentido de admitir também certos tipos de sanção as quais já não se encaixam na Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 170 idéia de inflição de um mal. É o caso da aceitação da reparação como sanção penal99. Conforme se disse acima, a distinção entre as sanções é um dos mais assentados critérios para distinguir a responsabilidade penal da civil – cuja sanção característica é a reparação dos danos. Sendo assim, a aceitação da reparação como uma resposta possível do sistema penal representa de certo modo uma revisão das fronteiras entre o direito civil e o direito penal, com uma aproximação entre os dois campos do direito. No direito brasileiro temos a sanção penal de reparação em alguns diplomas legais. É o caso do Código de Trânsito (Lei n.º 9.503/97) que prevê em seu artigo 297100 a imposição de multa reparatória em favor da vítima como modalidade de pena a ser aplicada para crimes cometidos na direção de veículos automotores. Além dessa, a Lei dos Crimes ambientais (Lei n.º 9.605/98) também prevê, dentre as penas restritivas de direito, aplicáveis de maneira autônoma em substituição à privativa de liberdade, a prestação pecuniária à vítima ou a entidade pública ou privada com fim social, consistente em pagamento de importância fixada pelo juiz não inferior a 1 salário mínimo nem superior a 360 (arts. 8º, IV e 12). A mesma pena de prestação pecuniária à vítima e seus dependentes aparece também no rol das possibilidades das penas restritivas de direito introduzidas pela Lei nº. 9.714/98, que modificou o Capítulo das Penas do Código Penal. Com isso, 99 Além da sua aceitação como sanção penal, a reparação também tem sido introduzida no sistema penal de outras formas, notadamente como elemento capaz de afastar a aplicação de sanções propriamente penais. No direito brasileiro, temos exemplo disso na Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei nº. 9.099/95), a qual estabeleceu que, para os casos de menor potencial ofensivo, o juiz deve, sempre que houver dano, buscar a composição civil entre o autor e a vítima (arts. 72-74). Neste caso, a adoção da solução negociada implica renúncia de queixa ou representação e, portanto, o fim da possibilidade de persecução e imposição de sanção penal. Outro exemplo no direito brasileiro é encontrado no campo dos delitos tributários desde a Lei 4729/65, a qual previa a extinção de punibilidade para crimes tributários nos casos de pagamento do débito antes do início da ação fiscal, solução que foi ampliada por leis posteriores e pela jurisprudência (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 21-23). 100 "Art. 297. A penalidade de multa reparatória consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1º do art. 49 do Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime.. § 1º A multa reparatória não poderá ser superior ao valor do prejuízo demonstrado no processo. § 2º Aplica-se à multa reparatória o disposto nos arts. 50 a 52 do Código Penal.§ 3º Na indenização civil do dano, o valor da multa reparatória será descontado". Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 171 a prestação pecuniária poderá substituir a pena de prisão, a critério do juiz (que ponderará condições do condenado e circunstâncias dos fatos), sempre, nos crimes culposos e nos crimes dolosos cometidos sem violência ou grave ameaça, quando a pena fixada na sentença não superar quatro anos (CP, arts. 43, 44 e 45). É verdade que tal movimento em curso propõe uma série de questões dogmáticas nada simples, especialmente em relação às teorias da pena. Apesar disso, há autores que enxergam positivamente a possibilidade de inclusão da reparação como sanção penal, de modo compatível com algumas finalidades da pena. É o caso de C. Roxin. Segundo esse autor, a reparação seria compatível com a idéia de justa retribuição e compensação da culpabilidade, já que com ela dar-seia - de maneira até mais perfeita que com a prisão - uma autêntica compensação e anulação do ato ilícito (ROXIN, 1999, p. 09). Além disso, de acordo com Roxin, a reparação também pode contribuir para o fim preventivo especial da pena. A obrigação de se ocupar pessoalmente do dano produzido e de se esforçar para uma reconciliação com a vítima, diz Roxin, pode influir de maneira muito positiva na atitude social do autor (ROXIN, 1999, p.10). No que tange às formas de prevenção geral, Roxin considera que a obrigação de reparar o dano sofrido pela vítima é capaz de criar na generalidade o sentimento de que a fratura ao Direito foi curada e que a perturbação da paz jurídica produzida pelo delito está superada. Seria, portanto, compatível com uma função de prevenção geral positiva. A reparação seria insuficiente apenas em seus efeitos intimidatórios ou de prevenção geral negativa (ROXIN, 1999, p. 11), pois, funcionando sozinha, a pena de reparação sinaliza que o máximo que poderia acontecer ao autor seria a restituição do status quo ante, o que não representaria nenhum risco para o autor. Isso não aconteceria, entretanto, se ela viesse associada a outra sanção, daí a necessidade de se discutir também as possibilidades de combinação com outras formas de pena, sem invalidar de plano a possibilidade de a reparação funcionar como pena. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 172 De acordo com a sua própria teoria sobre os fins da pena em um Estado Social de Direito, que deve conciliar da melhor forma possível a prevenção geral, a prevenção especial orientada à integração social e a limitação da pena, Roxin chega a afirmar que a reparação no Direito penal, embora não seja a única via, é um modelo de política criminal voltado a atingir esses fins de forma integrada (ROXIN, 2000, p. 34-36). Diante disso, é possível incluir a sanção de reparação – como sanção penal – na discussão sobre a regulação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas e outras coletividades. O potencial da responsabilidade civil para a proteção de interesses públicos Uma crítica que se faz à regulação por meio da responsabilidade civil refere-se à privatização da questão regulada. Como o direito e o processo civil estão voltados à proteção de interesses privados, ficaria a cargo da vítima, titular de um direito violado, decidir se quer ou não mover a ação, fazer um acordo, renunciar ao direito, etc. Além disso, a possibilidade de sanção na responsabilidade civil se limita ao pagamento em dinheiro, o que seria excessivamente limitado. Mesmo deixando em aberto a questão sobre se a responsabilidade civil poderia ou não ser um recurso interessante para a regulação dos ilícitos praticados no âmbito de coletividades, seja de modo isolado ou combinado com outros instrumentos, é preciso dizer que as críticas acima não procedem. A afirmação relativa à privatização da questão parte de uma noção tradicional, segundo a qual, ao direito civil cabe a proteção de interesses privados, ficando a proteção de interesses públicos a cargo do direito penal. Trata-se de um clássico critério com o qual se traça a distinção entre os campos civil e penal (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 29). Nas palavras de Basileu Garcia: “o Direito penal, como se vê pela sua evolução histórica, surgiu tutelando interesses particulares, não há dúvida, mas elevou-se à defesa e conservação da sociedade. Resguardando os homens, que formam a comunidade, as leis penais protegem precipuamente a segurança e a tranqüilidade coletivas. É em função desses dois conceitos – interesse individual e Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 173 interesse público – que se trata a distinção entre o ilícito civil e o ilícito penal” (GARCIA, 1982, v.1, p. 18). No entanto, essa descrição já não corresponde perfeitamente ao direito brasileiro e certamente não constitui uma distinção ontológica entre os ilícitos civil e penal. No que se refere ao direito brasileiro atual, embora seja verdade que por meio da responsabilidade civil se busca primordialmente a reparação de um prejuízo e que isso normalmente constitui um interesse privado da vítima, a admissão em nosso direito da responsabilidade civil por danos a interesses difusos demonstra que o direito civil pode também proteger diretamente interesse público (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 3032). Os direitos difusos são direitos transindividuais, cujos titulares são pessoas que não se podem determinar. Além disso, os direitos difusos são indivisíveis, o que significa que não podem ser quantificados ou divididos entre os membros da coletividade interessada. Direitos difusos como o direito ao meio ambiente (CF, art. 225, § 3º) não podem ser considerados interesses privados. O ato do qual resulta a poluição de um rio ou a destruição de uma floresta prejudica não apenas as pessoas diretamente atingidas em sua saúde ou em seus bens, mas a todos e até mesmo as gerações futuras (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 32). O direito brasileiro prevê a responsabilidade civil pela lesão a interesses difusos, por meio de ação civil pública (Lei nº. 7.347/1985), com possibilidade de condenação do responsável a cumprir obrigação de fazer ou não fazer ou a reparar o prejuízo em dinheiro. Trata-se, portanto, de exemplo em que a responsabilidade civil protege diretamente um interesse social e não um interesse privado (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 32). Por outro lado, na responsabilidade civil punitiva - conforme se viu acima -, perseguem-se as mesmas finalidades normalmente atribuídas ao Direito penal. Sendo assim, é possível dizer que, também nesses casos, os interesses protegidos pelo Direito civil são os mesmos que o Direito penal normalmente protege, isto é, diretamente interesses públicos (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 32). No que se refere à limitação de sanções, note-se que a Lei de Ação Civil Pública (Lei nº. 7.347/1985) admite não apenas a condenação a pagar certa quantia em dinheiro, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 174 mas também a uma obrigação de fazer ou não fazer (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 32). Fica claro, portanto, que existem várias possibilidades de sanção dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras coletividades. Em primeiro lugar, coloca-se a possibilidade de optar entre sanções punitivas ou não punitivas. Além disso, há a possibilidade – tanto no caso da opção pela sanção punitiva quanto pela sanção reparatória – de optar entre as vias penal, administrativa e civil para a realização da imputação de responsabilidade e sanção. Considerações sobre o processo civil A imputação de responsabilidade civil é feita pelo Poder Judiciário, por meio do processo civil. Tendo em vista que questões processuais são relevantes na determinação do potencial de cada tipo de responsabilidade para regular adequadamente o fenômeno de que tratamos, é importante observar algumas características do processo civil que podem influir sobre a adequação da responsabilidade civil como instrumento de política pública para lidar com a questão dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras coletividades, em comparação com as responsabilidades penal e administrativa, sujeitas a regras processuais diversas. Aspectos especialmente sensíveis são a legitimidade ativa para propositura da ação de responsabilidade civil, a destinação de valores pagos a título de punição (se houver), os instrumentos cautelares do processo civil e aqueles para obtenção de provas. As duas primeiras questões já foram apontadas acima, de modo que resta fazer algumas considerações sobre medidas cautelares e mecanismos de obtenção de provas. Selecionamos mecanismos de produção de provas que, parece-nos, tendem a ser mais relevantes no caso da imputação de responsabilidade a pessoas jurídicas e outras organizações. a) Interceptação das comunicações telefônicas e as escutas ambientais Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 175 Conforme Alexandre de Moraes (MORAES, 2008, p. 59-61), está claro no preceito constitucional constante no art. 5º, inc. XII da CF que a interceptação das comunicações telefônicas deve ser feita para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Nesse sentido, não é possível a autorização judicial para decretar a interceptação telefônica no âmbito do processo civil. Todavia, a limitação constitucional não alcança a possibilidade de sua utilização no processo civil como prova emprestada, ou seja, a menos que seja verificado desvio de finalidade, simulação ou conduta fraudulenta, nada obsta que algo trazido aos autos via interceptação telefônica em investigação criminal ou instrução processual penal sirva de prova em demandas ou procedimentos de outras áreas. A respeito de escutas ambientais, a Lei nº. 9.034/95 prevê que tal tipo de produção de prova está somente atrelado aos ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo. Ainda que assim não fosse, analogamente à interceptação telefônica, à luz do já mencionado art. 5º inc XII da CF, só é possível vislumbrar as provas obtidas por escutas ambientais como prova emprestada em procedimentos que não o da investigação criminal ou instrução processual penal. b) Quebra de sigilo bancário O sigilo bancário, bem como o sigilo fiscal, é consagrado como direito individual constitucionalmente protegido. Somente poderão ser excepcionados por decisões judiciais ou em Comissões Parlamentares de Inquérito (MORAES, 2008, p. 71-74). A despeito de outras características específicas sobre este tema, vale ressaltar que o sigilo bancário pode ser devassado tanto pela Justiça Penal como Civil, além das Comissões Parlamentares de Inquérito e pelo Ministério Público (MORAES, 2008, p. 71-74). Está expressamente previsto no art. 1º, §4º da Lei Complementar nº. 105/01 que a quebra do sigilo bancário pode ser feita para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, sem prejuízo da previsão especial para alguns tipos de crimes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 176 c) Requisição de informações e documentos aos investigados sob pena de multa Os artigos 355 a 363 do Código de Processo Civil tratam da “Exibição de documento ou coisa”. A exibição de coisa ou documento certamente pode ser caracterizada como uma técnica de se obter um meio de prova (documento ou coisa). Caso a exigência não seja cumprida, o juiz deverá avaliar qual o significado e a relevância desta não-produção e, também, em que medida o ônus de provar foi afetado, ou seja, a não-produção não vincula algo ao que se está sendo apurado, apenas pode ter o cunho de modificar a convicção do intérprete a respeito do julgamento da causa (BUENO, 2009, p. 268-271) Nem a doutrina, nem a Jurisprudência vislumbram a hipótese de imposição de multa no caso de não apresentação da coisa ou documento, por entender que há uma incompatibilidade com a sanção e o procedimento da exibição de documento ou coisa. Tal entendimento foi consolidado com a edição da Súmula 372 do STJ: “Na ação de exibição de documentos não cabe à aplicação de multa cominatória.” É importante notar, no entanto, que na hipótese da requisição ser feita em face da parte contrária e esta não cumprir a exigência (quando o pedido de exibição de documento ou coisa é deferido), são previstas consequências como a busca e apreensão com utilização de força policial se preciso, sem prejuízo da imputação de responsabilidade por crime de desobediência (CPC, art. 839 a 843). d) Inspeção de livros contábeis e documentos A inspeção judicial está prevista no Código de Processo Civil entre o art. 440 e 443. Tal meio de prova pode ser provocado pela ou determinado de ofício pelo Juiz. A inspeção judicial pode recair sobre coisas ou pessoas. Assim sendo, pode-se inferir que os livros e documentos contábeis, se for preciso, podem ser objeto de inspeção judicial. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 177 À luz do princípio da identidade física do juiz, é necessário que o juiz que tenha realizado a inspeção judicial seja aquele a proferir a decisão judicial, salvo se tiver ocorrido algumas da hipóteses do art. 132 do Código de Processo Civil ( convocação, promoção, aposentadoria etc.). Quanto às medidas cautelares, os procedimentos cautelares específicos em matéria processual civil estão regulados no Livro III, Cap. II, do Código de Processo Civil. Apesar da previsão destes procedimentos (ou medidas) específicos, qualquer pessoa, nos ditames do rito processual cautelar, pode pleitear referida tutela, que por sua vez será concedida se forem reconhecidos os pressupostos legais: fumus bonis iuris e periculum in mora. Ademais, a regulação processual civil a respeito da concessão deste tipo de tutela jurisdicional sofreu alterações dentro da chamada “Reforma do Código de Processo Civil”. A Lei nº. 8.952/94 introduziu no ordenamento a chamada tutela antecipada, ampliando as hipóteses em que podem ser proferidas tutelas preventivas e de urgência. Para Cássio Scarpinella Bueno (BUENO, 2009, p. 21-24), a tutela antecipada e a cautelar são espécies do mesmo gênero. Ambas são previstas para que a tutela jurisdicional chegue ao jurisdicionado em tempo hábil reforçando o preceito constitucional resguardado no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; Posto isso, vale dizer que, após a Lei nº. 8.952/94, o diploma processual civil passou a possuir um poder geral de antecipação (art. 273) e um poder geral de cautelaridade (art. 796). O que deve ficar claro é que, em matéria processual civil, é possível conceder tutelas preventivas ou de urgência tanto em processos cautelares (tutela cautelar), como em processos ordinários ou até em procedimentos especiais (tutela antecipada), diferentemente de tempos passados, quando dependendo do rito escolhido para pleitear a tutela jurisdicional, a prevenção ou a urgência podiam ou Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 178 não ser asseguradas. Podemos concluir, portanto, que atualmente o Judiciário é muito mais flexível no que toca à concessão de tutelas de urgência ou preventivas, haja vista elas poderem ser concedidas em qualquer tipo de demanda. Finalmente, para efeitos comparativos entre as espécies de responsabilidade, indica-se que não há acordos de leniência na esfera processual civil. Algo semelhante a tais acordos, mas com muito mais limitações, é o Termo (ou Compromisso) de Ajustamento de Conduta “TAC”. Tais instrumentos têm qualidade de título executivo extrajudicial, e já são celebrados há mais de uma década, principalmente no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor, ou seja, nas relações de consumo, e no que toca os interesses difusos ou coletivos. Quanto aos direitos difusos e coletivos, vale dizer que as ações que buscam a tutela desses direitos possuem representação extraordinária, não podendo o autor, a princípio, dispor sobre o conteúdo material da lide. Todavia, tal indisponibilidade começou a ser mitigada já na década de 1980, quando se firmou o entendimento de que excepcionalmente a disponibilidade de certo direito pode vir a melhorar à ultimação do interesse coletivo ou difuso. Nesse sentido, os TACs foram criados para dar a oportunidade a causadores de dano assumir certas obrigações, buscando uma situação que melhor atendesse os interesses difusos ou coletivos. Posto isso, vale ressaltar que nem todos legitimados ativos à ação civil pública ou coletiva podem tomar o TAC, pois somente podem celebrar tais termos os órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva. Há controvérsia doutrinária acerca de quais seriam, exatamente, os órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva. É certo que a controvérsia não recai sobre o Ministério Público, a União, os Estados e Municípios, o Distrito Federal e os órgãos públicos, pois estes certamente são legitimados a tomar os TACs. Analogamente não há controvérsia quanto a impossibilidade do TAC ser tomado por Associação Civil, Sindicato e Fundação Privada. De modo que o problema está na Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 179 possibilidade ou não das fundações públicas, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista celebrarem tal compromisso. No que toca sua natureza jurídica, o TAC é “um título executivo extrajudicial, por meio do qual um órgão legitimado toma do causador do dano o compromisso de adequar sua conduta às exigências da lei” (MAZZILLI, 2006, p. 366). Suas principais características podem ser assim definidas: (i) é celebrado por alguns dos órgãos públicos legitimados à ação pública; (ii) não constam do documento concessões de direito feitas pelo órgão público legitimado, mas sim uma assunção, por parte do causador do dano, de obrigações de fazer e/ou não fazer; (iii) não há necessidade nem de testemunhas, nem de advogados; (iv) é título executivo extrajudicial; (v) não há necessidade de ser acolhido ou homologado em juízo. Conclusões: Em primeiro lugar, é importante notar que não é necessário instituir regra especial para existência de responsabilidade civil por ilícitos praticados por pessoas jurídicas. As normas gerais de responsabilidade civil aplicam-se a quaisquer ilícitos civis e a quaisquer pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas. A necessidade de regulação especial existe na medida em que se queira estabelecer regime jurídico diferenciado da regulação geral do direito brasileiro, especificamente os regimes dos arts. 186 e 927 (responsabilidade por ato ilícito próprio) CC e do art. 932, III, do CC (responsabilidade do empregador por ato ilícito praticado por empregado ou preposto). Pode haver interesse na criação de regulação especial por várias razões. Em primeiro lugar, para o estabelecimento de responsabilidade objetiva, uma vez que a responsabilidade prevista pelo art. 186 do CC é subjetiva. Em segundo lugar, para o estabelecimento de responsabilidade própria da pessoa jurídica ou coletividade uma vez que a responsabilidade por fato de outrem do art. 932, III do CC – embora seja objetiva para o empregador – depende da imputação de responsabilidade subjetiva ao empregado ou preposto. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 180 Esta última característica da responsabilidade por fato de outrem pode representar um obstáculo especialmente importante à sanção de ilícitos praticados no âmbito de organizações complexas, pois, justamente a complexidade dessas coletividades tende a dificultar a identificação dos agentes e condutas individuais. Por outro lado, a noção de preposição é bastante ampla para abarcar não apenas as pessoas vinculadas por relação de emprego propriamente dita, mas quaisquer relações em que haja subordinação. Além disso, em nossa tradição reconhece-se a possibilidade de responsabilização até mesmo por quem não seja realmente empregado ou preposto, com base na teoria da aparência. Em terceiro lugar, o estabelecimento de regulação especial é necessário caso se queira permitir a responsabilização de entes não personificados. Além disso, a regulação especial é necessária, caso se queira atribuir à responsabilidade civil uma função punitiva, pois seria preciso permitir o cálculo da sanção com base em critérios voltados à dissuasão – a exemplo do que já acontece com a jurisprudência sobre o cálculo de danos morais. Regulação especial seria especialmente necessária para o estabelecimento de responsabilidade punitiva em relação a danos materiais e em casos de violação de direitos sem produção de danos de nenhum tipo. Como já dito, uma solução desse tipo contrariaria a tradição brasileira de compreensão do instituto da responsabilidade civil e de suas funções, mas não nos parece haver impossibilidade de adoção dessa solução do ponto de vista constitucional ou legal. A opção pela adoção de um sistema de responsabilidade civil punitiva levantaria, no entanto, certas questões importantes. A primeira diz respeito à sua cumulação com a responsabilização penal e/ou administrativa, uma vez que a atribuição de uma função punitiva central à responsabilidade civil faz com que seus objetivos passem a ser semelhantes aos das outras formas de responsabilização. Entendemos que, em princípio, havendo responsabilidade penal e/ou administrativa para certo ilícito, a criação de responsabilidade civil punitiva seria supérflua e exagerada, pois resultaria em dupla ou tripla sanção punitiva pelo mesmo ato. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 181 Além disso, é preciso notar, uma vez que a responsabilidade civil seja punitiva, torna-se problemática a sua previsão na forma objetiva, já que a punição tem por escopo reprimir condutas reprováveis. A reprovabilidade da conduta está ligada à culpa por parte de quem a pratica, ao passo em que o estabelecimento de responsabilidade objetiva está ligado à tradição da responsabilidade civil como instrumento de reparação e distribuição de danos, focado no prejuízo da vítima e não na conduta do autor do ilícito. Por outro lado, não haveria obstáculos à criação de uma noção de culpa específica para os entes coletivos, isto é, que não dependa de se estabelecer a culpa de algum indivíduo. Além disso, para evitar a objeção do enriquecimento sem causa da vítima, no caso da previsão de responsabilidade civil punitiva seria conveniente prever uma destinação diferenciada para a parcela paga pelo responsável a título de punição. Uma possível solução seria criar um fundo, a exemplo da Lei de Ação Civil Pública. Por fim, tendo em vista que os objetivos perseguidos pelas sanções punitivas são essencialmente públicos e não se relacionam diretamente com os prejuízos sofridos pela vítima do ilícito, seria conveniente prever alterações processuais, especialmente para permitir legitimidade ativa mais ampla para a sua propositura, a exemplo da Lei de Ação Civil Pública. A grande vantagem do estabelecimento de responsabilidade civil em relação à responsabilidade penal nos parece ser a possibilidade de evitar todos os problemas decorrentes da aplicação da estrutura penal – pensada para o indivíduo – a pessoas jurídicas e outras coletividades. Do ponto de vista da responsabilidade civil, a responsabilização de pessoas jurídicas e mesmo de coletividades não personificadas não representa problema. Além disso, evita-se a expansão da criminalização de condutas. A desvantagem principal em relação ao direito penal consiste na perda do caráter simbólico que tem a condenação criminal. No entanto, é possível pensar que certos modelos mistos, como a conjugação de responsabilidade civil punitiva para pessoas jurídicas e outras coletividades, com a manutenção de responsabilidade criminal para os indivíduos minimize tal perda. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 182 Além disso, do ponto de vista processual, o direito penal admite a interceptação de comunicações telefônicas e escutas ambientais, o que não é possível no processo civil. Com relação à responsabilidade por infração administrativa, a principal diferença diz respeito ao fato de que a responsabilidade civil é imputada por meio de processo judicial, ao passo que a responsabilidade administrativa se imputa por meio de processo administrativo. Sendo assim, a previsão da reparação101 como sanção administrativa - conforme apontado no item 5.1 - apresenta os riscos decorrentes da possibilidade de revisão judicial das decisões administrativas, bem como a limitação decorrente do fato de não eliminar a necessidade de execução judicial. Tais aspectos são especialmente relevantes se considerarmos que no atual cenário teórico há duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no controle dos atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do ato administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV da CF, e aqueles que buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do Judiciário às decisões administrativas, de modo que não há clareza acerca dos critérios para controle judicial dos atos administrativos. Lembre-se, ademais, que, no que tange ao controle judicial dos atos sancionatórios, verifica-se grande judicialização das sanções aplicadas pelas autoridades administrativas, o que suscita reflexões sobre o esvaziamento da autoridade da Administração Pública. BIBLIOGRAFIA AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil, vol. II. Rio de Janeiro, Forense, 1983. ARAGÃO, Alexandre Santos. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes: uma contribuição da teoria dos ordenamentos setoriais in Revista de Direito Público da Economia, vol. 4. Belo Horizonte: Fórum, out./dez. 2003. 101 Tratando-se da função punitiva, a sanção pecuniária na esfera administrativa já não seria uma sanção de reparação, mas a multa, propriamente. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 183 BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro, Elsevier, 2008. BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. BORGHI, Hélio. Teoria da aparência no direito brasileiro, São Paulo, LEJUS, 1999. CASI, Fermín Javier Echarri. Sanciones a personas jurídicas en el proceso penal: las consequencias accesorias. Cizur Menor, Editorial Aranzadi, 2003. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil, 8ª. ed., São Paulo, Atlas, 2008. GARCÍA ARAN, Mercedes. “Algunas Consideraciones sobre La responsabilidad penal de lãs personas jurídicas”. In: MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. I Congreso Hispano-Italiano de Derecho Penal Econômico. Coruña, 1998, p. 45-56. CASTELLO BRANCO, Fernando. “Reflexões sobre o acordo de leniência: moralidade e eficácia na apuração dos crimes de cartel”. In: Crimes econômicos e processo penal, Série GVlaw. São Paulo, Saraiva, 2008. p 137-159. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil, 16a. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. GOLDSCHMIDT, Das Verwaltungsstrafrecht, Berlin, 1902. GOMES, Orlando. Obrigações, 13a. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1997. GÜNTHER, Klaus. Responsabilização na sociedade civil. In: Teoria da responsabilidade no Estado Democrático de Direito: textos de Klaus Günther, Püschel, Flavia Portella e Machado, Marta Rodriguez de Assis (orgs.), São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1-26. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 184 HASSEMER, Winfried. Persona, Mundo y Responsabilidad. Bases para uma teoria de la imputación em derecho penal. Santa Fé de Bogotá-Colombia, Temis, 1999. HUNGRIA, Nelson. “Ilícito Administrativo e ilícito penal”. In: Revista de Direito Administrativo, 1945, v.1. Rio de Janeiro, Forense, 15-21 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. 4ª Edição. Granada, Comares, 1993. LOPES JR. Aury. Direito procesual penal e sua conformidade constitucional. Vol I.Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2007. MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo, IBCCrim - Ed. Método. 2005. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008. NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madrid: Tecnos, 1993. NIETO MARTIN, Adan. “La responsabilidad penal de las personas jurídicas: esquema de un modelo de responsabilidad penal”. In: Nueva doctrina penal, Nº. 1, 2008. p. 125OCDE. Relatório sobre a aplicação da Convenção sobre o combate ao suborno de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais e a recomendação revisada de 1997 sobre o combate ao suborno em transações comerciais internacionais, 2007. Disponível em: www.cgu.gov.br/ocde/publicacoes/arquivos/avaliacao2_portugues.pdf PALIERO, Carlo Enrico. “La sanzione ammnistrativa come moderno strumento di lotta alla criminalità económica”. In: Rivista Trimestrale Di Diritti Penale Dell'Economia. Casa Editrice Dott. Antonio Milani - CEDAM, 1994. (tradução para o espanhol de GONZÁLES, Carlos Suárez) PALMA, Juliana de. “Processo regulatório sancionatório e consensualidade: análise dos acordos substitutivos no âmbito da ANATEL”. III Congresso Iberoamericano de Regulação Econômica. Associação Ibero-americana de Estudos da Regulação – ASIER, 2008. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 185 PIRES, Álvaro. Aspects, traces et parcours de la rationalité pénale moderne. In: Debuyst, Christian et al. Histoire des savoirs sur le crime et la peine, Paris: De Boeck Université, 1998, p. 3-51. PITOMBO, Cleunice Valentim Bastos. “Licitude da prova obtida por meio da busca e apreensão”. In: Crimes econômicos e processo penal - Série GVlaw. São Paulo, Saraiva, 2008. p 53-89. PÜSCHEL, Flavia Portella. “Funções e princípios justificadores da responsabilidade civil e o art. 927, § único do Código Civil”. In: Revista Direito GV 1 (2005), p. 91-107. ___________________________. A função punitiva da responsabilidade civil no direito brasileiro: uma proposta de investigação empírica. In: Revista Direito GV 6 (2007), p. 17-36. PÜSCHEL, Flávia Portella, MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. “Questões atuais acerca da relação entre as responsabilidades penal e civil”. In: GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, São Paulo: Saraiva, 2008, p.18-37. ROXIN, Claus. La teoría de la imputación objetiva. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, v. 5, fasc. 9A, p. 299-324, set, 1999. ____________. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el processo penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 2000. SILVA PEREIRA, Caio Mário. Responsabilidade civil, 9ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001. SILVA-SÁNCHEZ, Jesus Maria. La expansión del Derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2ª Edição. Montevideo-Buenos Aires, Ed. BF, 2006. SUNDFELD, Carlos Ari. “A Defesa nas Sanções Administrativas”. In: Revista Forense, vol. 298. Rio de Janeiro: Forense, abr./jun. 1987, p.102-103. TIEDEMANN, Klaus. Poder economico y delito. Barcelona, 1985. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 186 ZUÑIGA RODRÍGUEZ, Laura. Bases para un modelo de imputación de responsabilidad penal a las personas jurídicas. Navarra: Aranzadi Editorial, 2001. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 187 ANEXO 3 - O DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 1. O MODELO BRASILEIRO SANCIONADOR DE DIREITO ADMINISTRATIVO Tradicionalmente, o Direito Administrativo brasileiro tem analisado o tema da responsabilização administrativa no item correspondente poder de polícia, então compreendido como um desdobramento do exercício do controle das atividades econômicas e sociais pela Administração Pública. Por grande influência dos trabalhos de administrativistas italianos e espanhóis, o cenário muda a partir da década de 1990, momento em que o estudo do Direito Administrativo Sancionador passa a ser compreendido de forma autônoma ao poder de polícia e ganha espaço nos debates acadêmicos brasileiros com algumas das principais publicações sobre implicações do poder sancionador ou do próprio Direito Administrativo Sancionador.102 Apesar da valorização teórica que o Direito Administrativo Sancionador recentemente recebeu, mostra-se imprescindível a análise do atual estágio de disciplina jurídica, organização e funcionamento do poder sancionador pela Administração Pública. Essa necessidade surge especialmente da nova configuração que o Estado brasileiro revestiu-se após a Reforma Gerencial do Estado – que possui como marco institucional a Emenda Constitucional 19/98 –, assim como de um interesse fundamentalmente pragmático de evidenciar a realidade da atuação sancionatória estatal. Trata-se, portanto, do reconhecimento do modelo brasileiro de Direito Administrativo Sancionador por meio da identificação das normas constitucionais, legais e infra-legais que conformam o sistema de responsabilização administrativa pelo estabelecimento dos procedimentos sancionatórios e previsão dos entes da Administração Pública envolvidos no manejo do poder sancionador. O objetivo deste item é reconstruir o modelo de responsabilização administrativa a partir do panorama normativo e de elementos recolhidos no Direito Administrativo Sancionador, sem prejuízo dos esclarecimentos teóricos que se fizerem necessários no decorrer da exposição. 102 Cf. OSÓRIO (2006); FERREIRA (2001); MOREIRA (2004); VITTA (2003); MELLO (2007). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 188 2. AUTONOMIA DA PRERROGATIVA SANCIONADORA E JUS PIUNIENDI ESTATAL Um pressuposto comum às doutrinas de Direito Administrativo consiste na assertiva de que o Direito Administrativo, ramo do Direito notadamente exorbitante à esfera privada, é composto por normas derrogatórias do Direito Comum – o regime jurídico-administrativo. Segundo essa linha de entendimento, a principal particularidade do regime jurídico-administrativo reside na existência de privilégios administrativos exorbitantes à esfera privada conferidos à Administração Pública, que terminam por colocá-la em posição de superioridade em relação ao administrado, e, em contrapartida, de sujeições à Administração para tutela dos direitos dos administrados103. Compreendidas como uma decorrência do poder de autoridade estatal, as prerrogativas públicas se apresentam nos mais diferentes campos de atuação administrativa, razão pela qual os exemplos são vastos: auto-executoriedade dos atos administrativos, prerrogativa expropriatória, poder de polícia, poder disciplinar e a prerrogativa sancionadora. Exorbitância e instrumentalidade são os traços caracterizadores das prerrogativas públicas no Direito Administrativo. Uma vez que a Administração Pública detém monopolisticamente tais privilégios em detrimento do administrado, com o qual termina por estabelecer relação de sujeição especial verticalizada, as prerrogativas públicas são compreendidas como exorbitantes à esfera particular. Ainda, são consideradas instrumentais porquanto servem para alcançar um determinado fim, sendo essa instrumentalidade o fator de legitimação das mesmas. Depreende-se considerável esforço legitimador das prerrogativas públicas pelos administrativistas brasileiros por meio da identificação de suas funcionalidades, que, resumidamente, podem ser indicadas em três assertivas: (i) as prerrogativas públicas existem para tutela do interesse público; (ii) as prerrogativas públicas existem para afirmar o princípio da 103 A caracterização do regime jurídico-administrativo em prerrogativas e sujeições enseja da “bipolaridade do Direito Administrativo” entre autoridade do Estado e liberdade dos indivíduos apontada por DI PIETRO: “[d]aí a bipolaridade do Direito Administrativo: liberdade do indivíduo e autoridade da Administração; restrições e prerrogativas. (...) Isto significa que a Administração Pública possui prerrogativas ou privilégios, desconhecidos na esfera do direito privado, tais como a autoexecutoriedade, a autotutela, o poder de expropriar, o de requisitar bens e serviços, o de ocupar temporariamente o imóvel alheio, o de instituir servidão, o de aplicar sanções administrativas, o de alterar e rescindir unilateralmente os contratos, o de impor medidas de polícia. Goza, ainda, de determinados privilégios como a imunidade tributária, prazos dilatados em juízo, juízo privativo, processo especial de execução, presunção de veracidade de seus atos”. (DI PIETRO, 2009. p. 61) (grifos nossos). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 189 supremacia do interesse público sobre o interesse privado e (iii) as prerrogativas públicas existem para melhor consecução da finalidade pública. A prerrogativa pública por excelência é a prerrogativa imperativa, a prerrogativa genérica originada da soberania estatal (imperium) que se apresentaria em qualquer atividade administrativa compreendida como o poder de a Administração Pública impor de forma unilateral a sua decisão sobre o administrado. 104 Dessa forma, fica evidente a autoridade do Estado manifestada no exercício das competências administrativas que dá ensejo à clássica dicotomia autoridade – liberdade do Direito Administrativo: na mesma medida que o regime administrativo confere prerrogativas públicas à Administração Pública, também a sujeita a diversos deveres e responsabilidades, especialmente fortes no que tange ao controle da atuação administrativa. É nesse cenário teórico que se insere a prerrogativa sancionatória. Na qualidade de prerrogativa pública, o poder sancionador também se mostra exorbitante e instrumental, sendo concebido como a faculdade de a Administração Pública aplicar imperativamente sanções administrativas.105 Quando exercida pela autoridade administrativa, a prerrogativa sancionadora estabelece uma relação verticalizada entre Administração-sancionadora e administrado-sancionado, formalizando-se na figura da sanção administrativa. Seu fundamento é a própria prerrogativa imperativa, a qual, por decorrer diretamente da soberania estatal, detém como uma de suas finalidades a fundamentação dos demais poderes administrativos imbuídos de materialidade. Conforme se verifica, trata-se de uma perspectiva eminentemente administrativista de caracterização da prerrogativa sancionadora, bastante diferente daquela que encontra no jus puniendi estatal o fundamento único de aplicação de sanções administrativas e de imposição de penas. A tese favorável ao jus puniendi do Estado, hoje prevalecente na doutrina, considera que a prerrogativa sancionadora constitui ao lado do poder penal punitivo exercido pelo Judiciário o poder geral do Estado de reprimir condutas contrárias ao ordenamento jurídico, qualquer que seja a esfera de responsabilização. Como conseqüência, o jus puniendi estatal determinaria um regime jurídico comum para disciplinar a responsabilização penal e administrativa, 104 “La potestad imperativa, o de mando, es la facultad que tiene la Administración de dar órdenes y de obligar a su cumplimiento. Esta facultad es la expressión más directa del principio de autoridad en el ejercicio del Poder Ejecutivo”. (MARIENHOFF, 1965, p. 575). 105 Cf. VERA, 2003. p. 245. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 190 servindo como efetivo meio de transplante de princípios e regras do Direito Penal para o Direito Administrativo. Para Alejandro NIETO, a tese do jus puniendi estatal surge da necessidade prática de viabilização da atividade sancionadora do Estado: faltava-lhe o ferramental necessário para disciplina da prerrogativa sancionadora, o qual fora, então, fornecido pelo Direito Penal. A tese do poder punitivo geral do Estado serviria de ponte entre Direito Penal e Direito Administrativo, fundamentando a passagem dos institutos daquele sistema para o regime jurídico-administrativo. Porém, passado o estágio inicial de afirmação da autonomia do Direito Administrativo e de formação de seu regime jurídico-administrativo, ainda assim o conhecimento do jus puniendi estatal continuou forte nos sistemas administrativos, sendo elevado à “categoria de dogma inquestionável”. 106 A ausência de disciplina normativa própria do exercício da prerrogativa sancionadora, i.e., de suas infrações e sanções administrativas e do seu processo sancionador, também se manifestou no Direito Administrativo brasileiro107. Até a edição das leis de processo administrativo no final de década de 1990, o Direito Administrativo não contava com normas de regramento geral do processo administrativo, quanto mais do tipo sancionador, ressalvadas as legislações especiais. Esse cenário viabilizou o emprego de mecanismos de Direito Penal para disciplina da atuação administrativa sancionatória, corroborado pelo fato de o período préredemocratização ensejar o recurso a mecanismos de garantia de direitos individuais frente à Administração Pública ditatorial. No entanto, é de se verificar hoje a alteração do panorama histórico-político que determinou a recepção da tese do jus puniendi estatal. Primeiramente, sucessivas alterações do regime jurídico-administrativo com a constitucionalização de garantias dos indivíduos oponíveis à Administração Pública – a exemplo dos princípios da legalidade, do contraditório, da ampla defesa e do devido 106 “El enorme éxito de tal postura – elevada ya a la categoría de dogma incuestionable – se debe en parte a razones ideológicas, ya que así se atempera el rechazo que suelen producir las actuaciones sancionadoras de la Administración, de corte autoritario, y, en parte, a razone técnicas, en cuanto que gracias a este entronque con el Derecho público estatal se proporciona al Derecho Administrativo Sancionador un soporte conceptual y operativo que antes carecia” (1993, p. 20). 107 Para uma descrição do cenário de ausência de normas específicas para reger a atuação administrativa sancionatória, cf. SUNDFELD, 1987, p.102-103. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 191 processo legal – e com a edição das leis de processo administrativo, as quais também prevêem direitos substantivos e adjetivos aos administrados, conformam um Direito Administrativo garantista. Em outros termos, não há mais a necessidade de transplante de garantias da esfera penal para o Direito Administrativo, que possui seus específicos mecanismos de defesa dos direitos dos particulares oponíveis à Administração Pública. Nesse sentido, o vasto sistema de controle interno e externo da Administração Pública corrobora à verificação do regime jurídico-administrativo como suficientemente garantista. De fato, é o reconhecimento da autonomia do Direito Administrativo (Sancionador) e, por conseqüência, de seu peculiar regime jurídico que demonstra ser descabida a tese do jus puniendi estatal no atual panorama administrativista. Não é o poder punitivo estatal o fundamento da competência sancionatória detida pela Administração Pública, mas é a prerrogativa sancionatória que confere à autoridade estatal a faculdade de aplicar sanções administrativas. A prerrogativa administrativa sancionadora deve ser trabalhada de forma autônoma não apenas em razão de seu fundamento jurídico próprio, correspondente à prerrogativa imperativa, mas principalmente porque seu exercício está lastreado em um regime jurídico peculiar, com regras e princípios específicos. Dessa forma, a prerrogativa sancionadora deve ser contemplada à luz da Constituição Federal e das normas, legais e infra-legais, que disciplinam esta potestade pública. 108 A tese do jus puniendi estatal é, portanto, refratária à autonomia do Direito Administrativo e reducionista da potestade sancionadora exercida pela Administração Pública e de toda a recente construção garantista do regime administrativo. Nas palavras de Alejandro NIETO: En definitiva, contra viento y marea hay que afirmar que el Derecho Administrativo Sancionador es, como su mismo nombre indica, Derecho Administrativo engarzado directamente en el Derecho Público estatal y no un Derecho Penal vergonzante; de la misma manera que la potestad administrativa sancionadora es una potestad aneja a toda potestad atribuida a la Administración para gestión de los intereses públicos. 109 108 Um exemplo marcante da diferença entre garantias penais e administrativas corresponde ao dever de veracidade. Ao contrário do processamento penal, a Lei nº. 9.784/99 determina ser um dos deveres do administrado no processo administrativo “expor os fatos conforme a verdade” (art. 4º, inc. I). 109 Idem, ibidem, p. 21. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 192 3. DISCIPLINA DO EXERCÍCIO DO PODER SANCIONADOR Na teoria do Direito Administrativo, o princípio da legalidade assume um papel de destaque ao ser amplamente concebido como a diretriz estruturante do sistema jurídico-administrativo (MELLO, 2008, p. 99). Dentre os mais tradicionais debates teóricos no Direito Administrativo, a legalidade se apresenta como um dos conceitos de permanente reflexão e estudo. Um primeiro fator que explica a importância da legalidade na agenda teórica do Direito Administrativo é meramente prático: discute-se a noção de legalidade na medida em que a atuação administrativa delimita-se e conforma-se pelas normas jurídicas que a disciplinam. Porém, a alteração do cenário institucional que a Administração Pública se insere e as renovadas interpretações acerca do papel do Direito na conformação do agir administrativo, em especial quanto ao grau de vinculação da atividade administrativa ao ordenamento jurídico, demandam constantes revisitações sobre o conteúdo da legalidade. Para compreender a atual disciplina do exercício da prerrogativa sancionatória pela Administração Pública, faz-se necessário expor duas recentes tendências que impactam a tradicional noção de legalidade, quais sejam, o crescimento da esfera regulamentar como fonte de disciplina da ação administrativa e a especialização da disciplina jurídica em subsistemas. No âmbito do Direito Administrativo Sancionador, ambos os aspectos mostram-se de extrema relevância, pois, como se indicará mais adiante, cada vez mais são os regulamentos as verdadeiras normas de disciplina do exercício da prerrogativa sancionatória pela Administração Pública, disciplina essa variável conforme a área em que está compreendida. A partir da segunda metade do século XIX, passou-se a entender a legalidade como o dever de a Administração Pública atuar em estrita observância à lei formal, editada pelo Parlamento, de forma que à Administração estaria autorizado fazer apenas aquilo que a lei expressamente autorizasse (secundum lege), ao contrário da esfera privada, cuja autonomia da vontade conferiria às pessoas liberdade para fazer tudo aquilo que a lei não proibisse. Felice GIUFFRÈ aponta que o Estado Legislativo, fundado no postulado de que a lei oriunda do Parlamento se coloca como fonte do Direito Administrativo por excelência, entra em declínio com a configuração do Estado Democrático-Pluralista, caracterizado pela pluralidade de fontes normativas (GIUFFRÈ , 1999, 179). Como Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 193 decorrência do aumento das competências administrativas, houve o engrandecimento da burocracia estatal e, em igual medida, das atividades administrativas a ela cometidas. Embora tal transformação da Administração Pública acompanhe o modelo de Estado Social, em que são cometidos ao Estado deveres de prestação positiva, a opção estatista do legislador em preferir a prestação estatal direta dos serviços públicos afeta significativamente a conformação da Administração Pública e, por conseqüência, o Direito Administrativo (GIUFFRÈ , 1999, 202). O aumento das atividades estatais voltadas à prestação de utilidades públicas aos administrados colocou um dilema à legalidade: a Administração Pública deve agir em conformidade à lei formal, mas esta passa a não mais conseguir disciplinar todas as situações fáticas e minúcias da atuação administrativa. As limitações da lei emanada do Parlamento ficam ainda mais evidentes com o incremento das atividades técnicas que a Administração Pública tem por dever legal desempenhar. O colapso da legalidade formal atrela-se diretamente à denominada crise da lei formal. Sistematicamente, Gustavo BINENBOJM apresenta cinco fatores que propiciaram a crise da lei formal: (i) inflação legislativa, (ii) “dessacralização da lei” como elemento de legitimação, (iii) declínio da concepção de lei como a mais importante forma de manifestação da vontade geral, (iv) proliferação de atos normativos infraconstitucionais hábeis a fundamentar a ação administrativa e (v) prevalência do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo (BINENBOJM, 2006, 125). Dessa forma, o atual Direito Administrativo se defronta com pluralidade de fontes normativas, muitas delas decorrentes da própria atividade administrativa do Poder Público, como é o caso dos regulamentos. No exposto cenário de crise da lei formal e exigências de prontas respostas técnicas e promocionais da Administração Pública, constata-se a valorização do poder regulamentar. A disciplina normativa da competência sancionatória do Estado também é expressa no bloco de legalidade, i.e., o conjunto de preceitos normativos ao qual a Administração Pública se vincula pelo dever de legalidade formado, no caso da atividade administrativa sancionadora, por Constituição Federal, leis que disciplinam especificamente a atividade administrativa sancionadora, a lei federal de processo administrativo (Lei nº. 9.784/99) no âmbito da Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 194 União ou a lei estadual de processo administrativo, caso o ente federado a possua, atos normativos infra-legais e contratos administrativos110. Disciplina normativa da competência sancionatória estatal (federal) 3.1 Disciplina constitucional do poder sancionador Os principais preceitos constitucionais de regramento da prerrogativa sancionatória do Estado correspondem àqueles relativos ao processamento administrativo, com previsão nos artigos 5º e 37, caput, da Constituição. O art. 5º, inc. XXXIV, alínea a, por exemplo, garante o direito de petição aos administrados face à Administração para garantia de seus direitos111. Todavia, são os princípios do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, inc. LV) os preceitos constitucionais correspondentes ao processo administrativo mais debatidos no Direito Administrativo brasileiro, com aplicação imediata ao processo 110 A Resolução Normativa 63/04 da ANEEL assim dispõe sobre o regime de responsabilização administrativa em sua esfera de competência, em compasso ao conceito de bloco de legalidade: “art. 1º, parágrafo único: as penalidades previstas nesta Resolução aplicam-se sem prejuízo das sanções administrativas específicas previstas na legislação e regulamentação setorial vigentes, incluindo normas editadas ou homologadas pela ANEEL, desde que não impliquem mais de uma sanção disciplinar para um mesmo fato gerador”. Nesse sentido, também o art. 65 da Resolução 987/08 da ANTAQ: “as infrações às Leis n. 8.630, de 1993, 9.432, de 1997, e 10.233, de 2001, a outros dispositivos legais, às normas regulamentares emitidas pela ANTAQ e o descumprimento dos deveres estabelecidos nos contratos de concessão, atos de autorização e instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil, sujeitarão o responsável às penalidades previstas nesta Norma, aplicáveis pela ANTAQ, observado o devido processo legal, sem prejuízo de natureza civil ou penal”. 111 In verbis: “São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 195 administrativo sancionador. 112 Outro preceito constitucional de relevante destaque nas discussões de Direito Administrativo corresponde ao princípio do devido processo legal (art. 5º, inc. LIV)113.114 Além dessas, o art. 5º em comento possui outras regras de processamento relevantes ao exercício da prerrogativa sancionatória. Seu inciso LVI veda a admissão de provas ilícitas para instrução de processo administrativo; na medida em que o termo “processo” é expressamente empregado pelo dispositivo para indicar serem “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”, entende-se que o preceito alcança também o processo administrativo, ao lado do processo judicial. No que tange ao exercício dos poderes fiscalizatórios, que geralmente precedem o processo administrativo sancionador, duas garantias constitucionais incidem no exercício da prerrogativa sancionatória, quais sejam, a inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, inc. XI) e o direito ao sigilo (CF, art. 5º, inc. XII). Necessário ressaltar que a mesma construção jurisprudencial que se estabeleceu em torno da reserva de jurisdição no Supremo Tribunal Federal nos casos envolvendo os poderes de investigação das Comissões Parlamentares de Inquérito aplica-se à atividade de fiscalização das autoridades administrativas. Dessa forma, a autoridade administrativa não pode adentrar em residência domiciliar ou profissional para fiscalizar por deliberação própria. 115 Ainda, é vedada a interceptação de comunicação telefônica ou telemática no desenvolvimento da atividade administrativa de fiscalização sem a correspondente decisão judicial, pois o ato encontra-se amparado no conceito de reserva de jurisdição. 116 Em recente manifestação acerca dos limites ao exercício do poder de fiscalização pelo Banco Central, com intenso debate entre os Ministros, a maioria do STF entendeu pela impossibilidade de haver quebra do sigilo bancário dos correntistas 112 In verbis: “Aos litigantes , em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 113 In verbis: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. 114 Cf. MOREIRA (2007). 115 Cf. MS 23.452-1/RJ. Rel. Min. Celso de Mello. 16.09.1999. 116 Cf. MS 23.652-3/DF. Rel. Min. Celso de Mello. 16.09.1999. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 196 pela atuação fiscalizatória do BACEN, o que afrontaria o direito ao sigilo previsto no art. 5º, inc. XII, da Constituição Federal. 117 O princípio da eficiência, constitucionalizado no caput do art. 37 pela Emenda Constitucional nº. 19/98, determinou a valorização dos efeitos da atuação administrativa e, nessa medida, instituiu à Administração Pública o dever de adotar a solução ótima ao caso concreto. Embora o critério para mensuração desta “decisão ótima” seja objeto de intenso debate nos artigos acadêmicos que versam sobre a eficiência administrativa, há forte tendência de considerar a decisão administrativa eficiente quando os meios empregados para satisfação da competência sejam os menos onerosos (critério utlitarista de análise de custo-benefício). 118 Porém, o fator tempo cada vez mais é apontado como uma variável da eficiência, uma vez que rápidas respostas institucionais caracterizam decisões eficientes, consideradas outras variáveis como efetividade e custos. Projetado no âmbito do processo administrativo sancionador, o dever de celeridade processual do art. 5º, inc. LXXVIII, inserido pela Emenda Constitucional nº. 45/04, determina a duração razoável do processo sancionador, com sua rápida resolução119. Além da simplificação dos trâmites processuais, na medida do indispensável à garantia dos direitos dos administrados, o preceito constitucional pode servir de estímulo à adoção de instrumentos consensuais substitutivos de sanção administrativa. Por fim, o art. 5º, XXXV, fundamenta a revisão judicial dos atos administrativos. Compreendido como “uma seqüência predeterminada de atos, entre si relacionados por vínculos lógicos, em que o exaurimento da etapa anterior é pressuposto de instauração da etapa posterior e cujo resultado final deve guardar compatibilidade lógica com os atos antecedentes” (JUSTEN FILHO, 2009, p. 236), cada ato do processo administrativo pode ser impugnado judicialmente pela parte ou por terceiro prejudicado. Todavia, é o ato final do processo administrativo o objeto de maior judicialização. Como se verá mais adiante (cf. item 4.4.), o processo administrativo sancionador é, via de regra, finalizado por meio (i) de sanção administrativa, quando verificada a responsabilidade administrativa da pessoa física ou jurídica que tenha praticado alguma 117 RE 461.366-2/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. 03.08.2007. 118 Para a descrição dos debates colocados em torno do princípio da eficiência, cf. ÁVILA, 2009. 119 In verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 197 infração administrativa, (ii) de ato administrativo que exclua a responsabilização administrativa ou (iii) de acordo administrativo entre Administração e administrado, quando se verifica a terminação consensual do processo sancionador. Os três meios terminativos do processo podem, conforme o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, ser judicializados e invalidados pelo Judiciário. Além dos mencionados preceitos constitucionais que disciplinam o processamento para a responsabilização administrativa, a Constituição Federal possui ainda outras normas que estabelecem competências fiscalizatória e sancionatória, normas de delegação de competência e normas que prevêem algumas sanções constitucionais. No que tange às normas constitucionais que estabelecem competências de fiscalização e sanção, mencione-se o art. 21, VI, que atribui à União o dever de fiscalizar a produção e a comercialização de material bélico por ela autorizado120, a competência de o Sistema Único de Saúde de fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde (CF, art. 200, I) e alimentos (CF, art. 200, VI) e a competência atribuída à autoridade ambiental para aplicar sanções administrativas independentemente da obrigação de reparar danos (CF, art. 225, §3º). O art. 174, porém, merece particular destaque por indicar a fiscalização como uma das formas de o Estado proceder a regulação da atividade econômica, nos seguintes termos: Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Em algumas passagens a Constituição determina obrigação ao legislador de disciplina as funções de fiscalização e sanção, o que denota o regime especial determinado constitucionalmente em certas matérias, como as empresas estatais121, as 120 Nesse sentido, o art. 21, inc. XI, confere competência à União para fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios. 121 “Art. 173. 1. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade (incluído pela Emenda Constitucional n 19, de 1998);” Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 198 empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos122 e os serviços de saúde. 123 Em comum, o exercício da atividade fiscalizatória nestas áreas deve, por imposição constitucional, ter uma disciplina jurídica peculiar às demais em atenção às respectivas particularidades, disciplina jurídica essa definida nas leis específicas que a Constituição incumbiu o legislador ordinário de editar. A Lei nº. 8.987/95 disciplina o exercício das atividades de fiscalização e sancionamento das empresas concessionárias e permissionárias de serviço público. Apesar de intensos debates e a edição de pontuais estatutos jurídicos legais, como é o caso da Petrobrás, não foi ainda editada lei para estabelecer o estatuto jurídico das empresas estatais e suas subsidiárias. Ademais, a Constituição Federal determina algumas sanções administrativas (as denominadas sanções constitucionais), quais sejam: no art. 243, caput, a expropriação da propriedade privada em razão do cultivo ilegal de plantas psicotrópicas124, e, nos artigos 103-B, §4º, III, e 130-A, a remoção, disponibilidade ou aposentadoria com subsídios e proventos proporcionais ao tempo e serviço dos membros do Poder Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça e dos membros do Ministério Público da União e dos Estados pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Conforme se verifica, a Constituição Federal apresenta relevantes preceitos de aplicabilidade imediata ao sistema de responsabilização administrativa, notadamente a respeito dos mecanismos de defesa do administrado frente ao exercício dos poderes administrativos pela autoridade estatal, que devem ser necessariamente considerados para a elaboração de lei que discipline a responsabilização da pessoa jurídica. 122 “Art. 175. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;” 123 “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”. Art. 198. “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional 29, de 2000)”. 124 In verbis: “As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão mediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 199 3.2 Disciplina legal do poder sancionador Existem atualmente dois modelos de disciplina do poder sancionador. Um primeiro modelo corresponde à disciplina geral do exercício do poder sancionador em lei, vigente no Estado de São Paulo com a Lei nº. 10.177/98, a lei paulista de processo administrativo. Após dispor sobre os aspectos gerais do processo administrativo, como os princípios aplicáveis ao procedimento, o regime de formação e invalidação dos atos administrativos e o processamento propriamente dito, a Lei nº. 10.177/98 trata dos procedimentos em espécie, dentre eles, o procedimento sancionatório. A proposta de inserir o procedimento sancionatório em uma lei de natureza geral, vinculante a toda a Administração Pública paulista, funda-se na necessidade de padronizar em um processamento uniforme os diversos tipos de processos sancionatórios que cada ente da Administração possuía. Carlos Ari SUNDFELD, redator da lei paulista de processo administrativo, esclarece a finalidade uniformizadora da Lei nº. 10.177/98: “(...) buscou-se obter uniformidade de comportamento no interior da máquina estatal, em nome da necessidade de sujeição do Estado a preceitos fundamentais da ordem jurídico-administrativa, sobretudo aos princípios e regras constitucionais. (...) Antes, inexistindo uma disciplina universal imposta em lei, cada órgão ou ente adotava, em relação a cada um desses itens, posturas ou soluções diferentes, algumas vezes aplicando regras administrativas próprias, em outras agindo por hábito ou costume, em tantas mais segundo os critérios variáveis dos dirigentes. A Lei objetivou justamente eliminar essa disparidade de atitude em face e problemas semelhantes, a crença de que isso é danoso para o efetivo respeito, seja dos limites dos poderes de autoridades, seja dos direitos das pessoas a eles sujeitos” (SUNDFELD & MUÑOZ, 2006, p. 25). Segundo o modelo estabelecido pela Lei nº. 10.177/98, o processo sancionador se volta à apuração de infração administrativa. Ele é instaurado pela autoridade competente ante a verificação de ocorrência de infração administrativa com o ato de instauração, o qual deve indicar os fatos e as normas correspondentes à infração averiguada e à possível sanção aplicável (normas de responsabilização administrativa). O acusado possui quinze dias após a citação ou intimação para apresentar sua defesa e relacionar as provas que pretende produzir, Concluída a instrução, será intimado a apresentar no prazo de sete dias suas alegações finais. É obrigatório o parecer da consultoria jurídica previamente à decisão final, que deverá ser motivada e proferida dentro de, no máximo, vinte dias. O processo administrativo sancionador paulista é Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 200 sigiloso – ressalvado em relação ao acusado, seu procurador e terceiro que demonstre legítimo interesse –, cabendo a adoção pela Administração de medidas cautelares indispensáveis à eficácia do ato final. O procedimento da Lei nº. 10.177/98 deve ser seguido pelos entes da Administração Pública que não possuírem leis formais específicas para disciplinar seu processo sancionador. Caso o ente conte com lei que o discipline, o procedimento terá, então, aplicação subsidiária no que não lhe for conflitante. Um segundo modelo é verificado no âmbito federal, em que, ao contrário do caso paulista, a lei federal de processo administrativo (Lei nº. 9.784/98) não dispõe especificamente sobre o processo sancionador. Há diversas leis que tratam de alguns aspectos da responsabilização administrativa (i) por matéria – como o processo sancionador nas contratações comuns (Lei nº. 8.666/93) ou nas concessões comuns (Lei nº. 8.987/95) e nas concessões patrocinadas ou administrativas (Lei nº. 11.079/04) – ou (ii) por ente da Administração federal – como a Lei nº. 8.884/94, que cria o CADE e dispõe sobre o processo sancionador antitruste, e a Lei nº. 9.472/97, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) que cria a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e apresenta diretrizes gerais para a responsabilização administrativa por esta Agência. A lei federal de processo administrativo, nestes casos, tem aplicação subsidiária. Sem a pretensão de exaurir as previsões legais relativas ao processo administrativo sancionador, a tabela abaixo indica as principais leis federais que versam sobre algum elemento do tema: LEI DISPOSIÇÃO AD MINISTRAÇÃO DISCIPLINA SANCIONATÓRIA • Atribui competências sancionatórias; • Prevê infrações; • Define os critérios de sopesamento das sanções; 8.884/94 PAS antitruste CADE • Comina sanções; • Dispõe sobre o procedimento sancionador; • Prevê acordos administrativos; • Prevê a forma de execução das sanções. • Atribui competências sancionatórias; • Prevê infrações; Lei 8.112/90 Processo disciplinar Administração federal • Define os critérios de sopesamento das sanções; • Comina sanções; • Dispõe sobre o procedimento sancionador. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 201 • Atribui competências sancionatórias; • Prevê infrações; Lei 4.942/03 PAS previdência complementar Lei 8.666/93 Licitações e contratos administrativos Administração federal Lei 8.987/95 Concessão comum Administração federal Lei 11.079/04 PPP Administração federal Lei 9.427/96 Lei de criação da ANEEL ANEEL Lei 9.472/97 Lei de criação da ANATEL INSS • Comina sanções; • Dispõe sobre o procedimento sancionador. • Prevê infrações; • Comina sanções. • Prevê infrações; • Comina sanções. • Atribui competências sancionatórias; • Prevê a forma de execução das sanções. • Atribui competências sancionatórias; • Prevê infrações; • Comina sanções. • Atribui competências sancionatórias; ANATEL • Prevê infrações; • Define os critérios de sopesamento das sanções; • Comina sanções. • Atribui competências sancionatórias; • Prevê infrações; Lei 9.605/98 PAS ambiental Administração federal • Define os critérios de sopesamento das sanções; • Comina sanções; • Dispõe sobre o procedimento sancionador; • Prevê acordos administrativos. Conforme se depreende da breve listagem das leis que versam sobre o processo sancionador, as leis variam significativamente quanto ao grau de tratamento do processo sancionador. A Lei nº. 8.884/94, por exemplo, possui uma disciplina muito mais extensa da responsabilização administrativa que a proposta pela Lei de PPPs, voltada à disciplina contratual da responsabilização administrativa. No entanto, é de se notar que, no geral, essas leis passam por três itens comuns: (i) previsão da competência para decisão do processo sancionador, (ii) definição de algumas infrações administrativas e (iii) previsão das sanções administrativas aplicáveis pela autoridade competente. Para clarificar o exposto, toma-se o exemplo da ANATEL. A competência para aplicação de sanções administrativas está prevista no art. 19, incs. XI e XVIII, da LGT, de seguinte redação: Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 202 Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente: (...) XI – expedir e extinguir autorização para prestação de serviço no regime privado, fiscalizando e aplicando sanções; (...) XVIII – reprimir infrações dos direitos dos usuários. De forma genérica, o art. 137, LGT determina a infração administrativa nas telecomunicações por descumprimento de obrigações, com a seguinte redação: “o descumprimento de condições ou de compromissos assumidos, associados à autorização, sujeitará a prestadora às sanções de multa, suspensão temporária ou caducidade”. Por fim, as sanções administrativas estão estabelecidas no art. 173, LGT. Sem exclusão das sanções civis e das penas da esfera penal, a ANATEL poderá aplicar sanções de advertência, multa, suspensão temporária, caducidade ou declaração de inidoneidade caso seja apurada a infração administrativa à LGT, às normas regulamentares ou às cláusulas contratuais após regular tramitação do processo administrativo sancionador, garantido o contraditório e a ampla defesa. Apesar de a lei federal de processo administrativo conferir certa unidade de tratamento da atividade administrativa na Administração Pública federal, necessário ressaltar a difusão de regimes jurídicos sobre a responsabilização administrativa, o que se acentua na esfera regulamentar. De fato, é uma característica marcante do Direito Administrativo brasileiro a pluralidade de regimes jurídicos para aplicação de sanções administrativas, mesmo no plano estadual paulista, cuja lei de processo administrativo reserva uma parte para disciplina do processo sancionador. Esse ponto será melhor trabalhado no item a seguir, em que será estudada a seara regulamentar e seus aspectos correlatos, como a reserva de lei no Direito Administrativo Sancionador e a especialidade cada vez maior dos subsistemas administrativos. 3.3 Disciplina regulamentar e contratual do processo sancionador Diz-se disciplina regulamentar do processo sancionador o conjunto de atos normativos (regulamentos) editados pela Administração Pública no exercício de sua competência normativa para estabelecer diretrizes jurídicas da forma de desempenho da Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 203 prerrogativa sancionadora pela autoridade administrativa. Dentro dos limites de sua competência normativa, a Administração Pública edita atos de caráter geral e abstrato nos quais dispõe sobre o procedimento sancionatório, especifica a aplicação de sanções e institui infrações administrativas. De fato, o poder sancionador é efetivamente disciplinado na seara regulamentar. A especialidade material evidenciada na Administração Pública – cujos órgãos e entes administrativos se especializam no controle de determinadas matérias – determina um regramento mais técnico e próximo às especificidades do objeto regulado. Paralelamente à exposta crise da lei formal, a especialidade própria da esfera regulamentar enseja a criação pela Administração Pública de atos normativos voltados ao regramento pormenorizado e técnico do procedimento sancionador. A atual dinâmica normativa no Direito Administrativo Sancionador é, então, composta por leis formais que estabelecem standards (parâmetros gerais) para a regulamentação pela Administração Pública do exercício da prerrogativa sancionatória. Tais standards correspondem, em linhas gerais, à definição da competência para tramitação do processo sancionador e decisão, à previsão das infrações administrativas que o legislador ordinário reputar relevantes e ao estabelecimento das sanções administrativas que a Administração poderá aplicar caso constatada a responsabilização administrativa ao término do processo125. Dessa forma, as leis standartizadas são integradas à categoria de leis-quadros, marcadamente abertas e que delegam à Administração Pública, expressa ou implicitamente, o dever de precisar o conteúdo normativo de seus termos. O item anterior demonstrou este cenário por meio de exemplos legais. Toda a disciplina dos demais aspectos fica, então, a cargo da Administração Pública para que assim proceda por meio de atos normativos que formalmente podem se apresentar na figura de (i) regulamentos para aplicação de sanções administrativas, (ii) processos administrativos sancionadores ou (iii) atos normativos esparsos. Embora recebam nomenclatura diversa, esses atos possuem o escopo comum de definir o trâmite 125 ARAGÃO chama a atenção para a atual tendência de as leis formais terem baixa densidade normativa em prestígio à seara regulamentar: “[a]s leis atributivas de poder normativo às entidades reguladoras independentes possuem baixa densidade normativa, a fim de propiciar o desenvolvimento de ordenamentos setoriais aptos a, com autonomia e agilidade, regular a complexa e dinâmica realidade social subjacente. Ademais, recomenda-se que propiciem à Administração a possibilidade de, na medida do possível, atuar consensualmente, com alguma margem de negociação, junto aos agentes econômicos e sociais implicados” (2003, p. 13). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 204 do processo sancionador com todas as correspondentes minúcias, como a delimitação das fases processuais, dos prazos e recursos cabíveis. Diante da valorização do processo administrativo como arena de participação administrativa por meio de audiências e consultas públicas e, principalmente, como meio racional de formação da decisão administrativa, o foco de atenção dos publicistas desloca-se do ato administrativo final para todo o processo administrativo, de forma que administrar passa a ser compreendido como realizar processos. Uma vez que os processos sancionadores passam a ser cada vez mais conformados por atos normativos, verifica-se a valorização da seara regulamentar na disciplina do exercício da prerrogativa sancionatória pela Administração Pública, razão que permite afirmar com confortável segurança que a disciplina da prerrogativa sancionadora se procede efetivamente na esfera infra-legal. Ademais, a regulamentação do exercício da prerrogativa sancionatória pela autoridade administrativa também adquire outras funcionalidades ao sistema, dentre as quais se destacam (i) a definição dos critérios de sopesamento da sanção administrativa a ser aplicada no caso concreto, (ii) o estabelecimento de outras infrações administrativas mais consentâneas às especificidades do subsistema administrativo (ambiental, energético, antitruste etc.) e (iii) a previsão de acordos integrativos ou substitutivos de sanções administrativas, como o termo de compromisso ou o termo de ajustamento de conduta. A disciplina regulamentar do poder sancionador ganhou grande impulso com a criação das Agências Reguladoras, cujas leis lhes conferem expressamente poder normativo para regular o desenvolvimento de atividades econômicas pelos particulares. É de se notar que a valorização da seara regulamentar, evidenciada com a proliferação de atos normativos e a alteração da estrutura da lei formal para o modelo de standards legais, ocorre exatamente no momento de afirmação das Agências Reguladoras no Brasil na segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000. Sem se restringir ao cenário regulatório126, é de se evidenciar que a prática da regulamentação é notadamente forte no âmbito das Agências Reguladoras. 126 Matérias como meio ambiente, antitruste e mercado de capitais são intensamente reguladas por atos normativos. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 205 A questão dos limites ao exercício do poder normativo pela Administração Pública127 se reveste de contornos peculiares no Direito Administrativo Sancionador e suscita duas relevantes ordens de questionamento: (i) ato normativo pode estabelecer infrações administrativas ou elas devem necessariamente ser previstas em lei oriunda do Parlamento? (ii) há reserva de lei para estipulação de sanções administrativas? Novamente, a doutrina divide-se conforme a compreensão de legalidade que se adote. De acordo com uma primeira linha interpretativa, mais tradicional no Direito Administrativo brasileiro, apenas a lei formal pode determinar infrações e estabelecer sanções administrativas nos casos em que não sejam estabelecidos vínculos de sujeição especial do administrado frente à Administração Pública128. Como pressuposto, essa linha de entendimento concebe a legalidade administrativa como a vinculação da Administração Pública à lei formal, o que limita imediatamente o alcance do poder normativo. Todavia, uma segunda vertente entende que as infrações administrativas podem ser estabelecidas na seara regulamentar ao passo que a previsão das sanções administrativas está compreendida no conceito de reserva legal, embora o ato normativo possa especificar a aplicação das sanções definidas em lei pela previsão de critérios de sopesamento ou pela determinação de agravantes e atenuantes, por exemplo. Esse é o posicionamento adotado por Marcelo Madureira PRATES, para quem (...) ao contrário da reserva legal rígida vigente no domínio penal, a exigir que a lei defina, ela mesma e por completo, a descrição das condutas ilícitas e a sanção aplicável a cada uma delas, no direito administrativo sancionador, maxime quando esteja em causa o exercício de poder sancionador no plano das relações administrativas especiais, tende-se a interpretar de maneira mais flexível a regra da reserva legal, admitindo-se que a lei em sentido formal apenas inicie a regulação substantiva da matéria, por meio da fixação (1) das condutas puníveis, ainda que de modo aberto e genérico, permitindo posteriores preenchimentos (“normas sancionadoras em branco”); e (2) das espécies e dos limites das sanções aplicáveis. Portanto, a descrição definitiva e pormenorizada das infrações administrativas e a fixação específica das sanções administrativas relativamente a cada ilícito 127 Para reconhecimento das principais facetas do questionamento sobre os limites ao exercício do poder regulamentar, cf. ARAGÃO (2006). 128 “(...) tanto infrações administrativas como suas correspondentes sanções têm que ser instituídas em lei – não em regulamento, instrução, portaria e quejandos. Ressalvem-se, entretanto, as hipóteses retro referidas, atinentes à chamada ‘supremacia especial’, em que a Administração extrai seus poderes não diretamente da lei, mas de um vínculo específico travado com o particular – como, por exemplo, de uma concessão de telecomunicações ou do ato de admissão de alguém a uma biblioteca pública”. (MELLO, 2009, p. 838). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 206 poderiam ser legitimamente remetidas para o poder regulamentar (2005, p. 107). A afirmação dos atos normativos como relevante fonte do Direito Administrativo contribui para a relativização do princípio da reserva de legal típica do Direito Penal, que mesmo nesse ramo do Direito encontra questionamentos e experiências práticas de flexibilização. A especialização de órgãos e entes administrativos incumbidos por ordenar uma parcela específica da sociedade determina a proximidade da Administração com o administrado e, conseqüentemente, com a dinâmica própria ao setor analisado, de forma que as normas infra-legais relativas à responsabilização administrativa podem se mostrar mais adequadas e eficazes que aquelas estabelecidas em lei formal, de caráter aberto e pouco pormenorizado. Algumas das infrações estipuladas na Resolução Normativa nº. 63/04 da ANEEL bem exemplificam o exposto: Infrações administrativas na Resolução Normativa 63/04 – ANEEL Art. 3º. Constitui infração, sujeita à imposição de penalidade de advertência: VI – deixar de proceder à organização e atualização de cadastro por unidade consumidora, com informações que permitam a identificação do consumidor, sua localização, valores faturados, histórico de consumo, bem como quaisquer outros dados exigidos por lei ou pelos regulamentos dos serviços delegados; (...) XII – operar e manter as suas instalações elétricas sem dispor de desenhos, plantas, especificações e/ou manuais de equipamentos devidamente atualizados; Art. 4º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo I: (...) VII – deixar de apresentar, nos prazos previstos e segundo as diretrizes da ANEEL, os Programas Anuais de Incremento à Eficiência no Uso e na Oferta de Energia Elétrica, bem como os relativos à Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Setor Elétrico; Art. 5º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo II: X – deixar de instalar medidores de energia elétrica e demais equipamentos de medição nas unidades consumidoras, salvo nos casos específicos excepcionados na regulamentação aplicável; (...) XII – operar centrais geradoras ou instalações da rede básica sem a instalação de medidores de energia elétrica e demais equipamentos de medição exigidos; Art. 6º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo III: (...) XV – provocar o desligamento ou permitir a sua prorrogação no sistema elétrico em decorrência de falha de planejamento ou Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 207 de execução da manutenção ou operação de suas instalações. Art. 7º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo IV: (...) V – discriminar unidades consumidoras da mesma classificação, atendidas em igual tensão de fornecimento, quanto à cobrança de qualquer natureza ou quando da comercialização de energia elétrica excedente, temporária ou de curto prazo, excetuando-se os consumidores livres; É a possibilidade de uma disciplina minuciosa e consentânea às peculiaridades do setor regulado que estabelece a preferência dos atos normativos na determinação das infrações administrativas e na especificação da forma de aplicação das sanções administrativas. Nesse sentido, os contratos administrativos nos quais os vínculos de sujeição especial são formalizados também podem determinar infrações administrativas de aplicação restrita ao contratado por atos relacionados ao desenvolvimento do objeto contratual, bem como o critério de aplicação das correspondentes sanções. De fato, em um cenário de crescente desenvolvimento de funções públicas por particulares – as parcerias público-privadas em sentido amplo –, é notável o aumento de preceitos legais dispositivos das cláusulas obrigatórias dos contratos administrativos e, dentre eles, as cláusulas de disciplina da responsabilização administrativa129. As cláusulas contratuais que delimitam o regime de responsabilização administrativa 129 de uma determinada pessoa jurídica devem ser, portanto, Lei nº. 8.666/93: “Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam: VII – os direitos e as responsabilidades das partes, as penalidades cabíveis e os valores das multas; VIII – os casos de rescisão;” Lei nº. 8.987/95: “Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas: VII – à forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la; VIII – às penalidades contratuais e administrativas que se sujeita a concessionária e sua forma de aplicação; IX – aos casos de extinção da concessão;” Lei nº. 11.079/04: Art. 5º. As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever: II – as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas. X – a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos ao parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente detectadas”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 208 obrigatoriamente consideradas para fins de determinação do bloco de legalidade que irá ditar a específica forma de exercício da potestade sancionadora pela Administração Pública. Como exemplo representativo da disciplina contratual da responsabilização administrativa, transcreve-se abaixo as cláusulas contratuais desta natureza recolhidas do contrato de concessão comum da rodovia BR-116/RJ celebrado entre o DNER e a Concessionária Rio-Teresópolis S/A: Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 209 4. A RESPONSABILIZAÇÃO NO DIREITO ADMINISTRATIVO Exposta a disciplina normativa do exercício da prerrogativa sancionadora pelo Poder Público, com a explicitação dos principais debates teóricos a respeito do exercício do poder normativo no Direito Administrativo Sancionador e as principais característica que decorrem da adoção do modelo de Agências com a Reforma do Estado, passa-se ao estudo detido do processo administrativo sancionador. Este item volta-se à descrição dos principais aspectos procedimentais relacionados à apuração da irregularidade administrativa e sua correspondente resposta pela Administração Pública. Saliente-se, novamente, que existem outros diversos regimes de responsabilização administrativa conforme o ente da Administração Pública incumbido de manejar os poderes de fiscalização e sanção e, também, o seu correspondente regime jurídico ditado pelas leis-quadros, decretos, atos normativos e eventuais contratos de concessão, permissão ou atos de outorga. Ademais, a tramitação processual também será diferente de acordo com o sujeito passivo do processo administrativo e a natureza do vínculo que estabeleça com a Administração Pública, o qual poderá ditar exercício mais ou menos incisivo dos poderes administrativos. No entanto, deve-se reconhecer que a lei geral de processo administrativo determina uma disciplina mínima comum a toda a Administração Pública federal, além de os regulamentos de Direito Administrativo Sancionador disporem de semelhante forma sobre diversos aspectos do processo sancionatório. Por esses motivos, é adequada a descrição do atual estágio de disciplina do processo administrativo sancionador a partir da Lei nº. 9.784/99 – que terá importância primeira no desenvolvimento desse panorama processual – e dos pontos comuns de tratamento jurídico encontrados nas diversas espécies normativas que dispõem sobre o tema. 4.1 Fiscalização e sanção: seus processos administrativos Um esclarecimento prévio à análise do procedimento de responsabilização administrativa se faz necessário para fins de harmonização dos conceitos técnicos adotados neste item. Da análise dos modelos de responsabilização administrativa constata-se a verdadeira imprecisão normativa sobre a funcionalidade do processo de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 210 fiscalização e do processo sancionador. Como conseqüência desse impasse, há significativas disparidades processuais sobre a responsabilização administrativa: afinal, fiscalização e sancionamento ensejam procedimentos específicos? A Resolução nº. 987/2008 da ANTAQ, que disciplina a responsabilização administrativa no âmbito desta Agência Reguladora, aparta o “procedimento de fiscalização” do “processo administrativo para apuração de infrações e aplicação de penalidades”. Compreendido como um dos procedimentos preliminares, o processo de fiscalização na ANTAQ se destina a verificar o cumprimento das obrigações determinadas ao administrado nas leis, nos atos normativos e nos instrumentos de outorga (contratos de concessão ou permissão ou atos de autorização) mediante exercício do poder de fiscalização. Sua conclusão é formalizada no relatório de fiscalização que enseja três ordens de prosseguimento: (i) celebração de termo de ajuste de conduta, (ii) lavratura de auto de infração se “estiver plenamente constatada a autoria e a materialidade da irregularidade” ou (iii) instauração de “processo administrativo contencioso”, i.e., de processo sancionador. O processo sancionador não se resume pela Resolução 987/2008 da ANTAQ a aplicar a sanção administrativa; pelo contrário, é neste processo que haverá a apuração das infrações investigadas no processo fiscalizatório e, caso seja constatada a infração administrativa, o regulador procederá aos critérios de sopesamento para estabelecer a sanção aplicável, bem como sua intensidade. Posicionamento diverso tem a ANATEL em relação à funcionalidade do processo de fiscalização e do processo sancionador, embora também ambos sejam tratados de forma autônoma, inclusive com regulamentos específicos (respectivamente Resolução nº. 441/2006; e nº. 344/2003 e Regimento Interno), ao contrário do que se verifica na ANTAQ, cujos procedimentos são regrados por um mesmo ato normativo (Resolução nº. 987/2008). Segundo o art. 10 da Resolução nº. 441/2006, os procedimentos de fiscalização objetivam, além de outras finalidades, constatar o descumprimento, ou não, de obrigações e “avaliar a extensão de uma infração, considerando seus efeitos para o serviço, para os usuários e para toda a população, a eventual vantagem auferida pelo infrator e outras circunstâncias agravantes ou atenuantes” (art. 10, inc. II). Seu processo de fiscalização contempla tanto o exercício do poder de fiscalização quanto a apuração da responsabilidade administrativa. Ademais, o “processo administrativo para apuração de descumprimento de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 211 obrigações” (PADO) previsto no Regimento Interno da ANATEL especifica a forma de apuração da inobservância de obrigações pelos regulados em procedimento próprio. Por essa razão, a ANATEL dispõe de um último procedimento específico para determinar os critérios de sopesamento da sanção a ser aplicada ante a constatação da infração administrativa no processo de fiscalização ou no curso do PADO, o “processo de aplicação de sanções administrativas”. O modelo de responsabilização administrativa proposto pela ANATEL adota a técnica de especialização das funções para tratar cada etapa da responsabilização administrativa de forma fragmentada, restando menos nítida a separação fiscalização – sancionamento. Não se trata, porém, de limitação do processo sancionador, mas sim de uma forma diferenciada de disciplina da responsabilização administrativa. Para que as considerações deste item propiciem diálogos com outros estudos acadêmicos sobre o tema e proponham reflexões diretamente relacionadas às análises dos elementos de Direito Administrativo Sancionador que se encontram na doutrina, adota-se um posicionamento próximo ao prevalecente na doutrina que compreende fiscalização (ou sindicância) e aplicação de sanções como funções diferentes, com regras de processamento diversas. Pela interpretação adotada, enquanto o processo de fiscalização corresponde à etapa de averiguação da regularidade da atividade desenvolvida pelo administrado pelo exercício de técnicas investigativas, o processo sancionador apura a responsabilidade administrativa e trabalha os critérios para aplicação e sopesamento da sanção, se for configurada infração administrativa. Por essa delimitação, o enfoque de análise restringe-se ao processo sancionador não sem antes, porém, tecer considerações pertinentes sobre a fiscalização administrativa. A fiscalização administrativa corresponde à efetivação da prerrogativa fiscalizatória detida pela Administração Pública no plano concreto por meio de atos administrativos voltados a averiguar a adequação do desenvolvimento das atividades econômicas e sociais pelo administrado às prescrições normativas. Alguns dos principais atos de fiscalização correspondem à requisição de informações, que é especialmente cara na Comissão de Valores Mobiliários e sua correspondente regulação por informação, requisição de documentos e vistoria de instalações. Em algumas normas, verifica-se a exemplificação dos possíveis atos fiscalizatórios que a Administração Pública editar, como na Resolução nº. 442/04 da ANTT, que aprova o Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 212 regulamento de disciplina do ‘processo administrativo para apuração de infrações e aplicação de penalidades’: Art. 12. No curso do procedimento de averiguações preliminares, as Superintendências poderão: I – requisitar das empresas envolvidas, de seus administradores e acionistas, do autor de representação ou de terceiros interessados informações, esclarecimentos e documentos; II – requerer a outros órgãos e entidades públicas informações, esclarecimentos e documentos; III – realizar inspeções e diligências; IV – adotar medidas cautelares preventivas; V – suspender o procedimento de averiguações, determinando a instauração de processo administrativo; e VI – adotar quaisquer outras providências, administrativas ou judiciais, que considerar necessárias. Mencione-se que no julgamento da liminar ADI 1.668-5, a ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei Geral de Telecomunicações (ADI contra LGT), o STF firmou entendimento no sentido da inconstitucionalidade de a Administração Pública efetivar busca e apreensão de bens quando da fiscalização ao suspender a aplicabilidade do art. 19, inc. XV, da LGT. 130 Assim como os atos normativos e os atos sancionatórios, também os atos de fiscalização são atos administrativos, submetidos ao regime ordinário de controle interno e externo. Nesse sentido, cabe mandado de segurança contra ato de fiscalização de autoridade administrativa que viole algum direito detido pelo administrado ou exerça sua competência de forma desproporcional, incorrendo em abuso de poder131. Com relação aos limites à fiscalização, Carlos Ari SUNDFELD admite a aplicabilidade de determinados direitos ainda na fase inquisitória caso o exercício deles no processo sancionador possa ser comprometido pela atuação investigatória da Administração Pública: 130 Essa é a redação do preceito: “Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e, especialmente: XV – realizar busca e apreensão de bens no âmbito de sua competência”. 131 Art. 1º, caput, Lei nº. 1.533/51. “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for ou sejam quais forem as funções que exerça”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 213 A jurisprudência tem afirmado que, nas sindicâncias preliminares, os investigados ainda não são protegidos por todos os direitos decorrentes do princípio da ampla defesa. A oportunidade para exercer esses direitos em sua plenitude só surge com a instauração do processo punitivo. Mas, sob pena de comprometimento à substância desses direitos, o investigado não pode ser obrigado a, no procedimento prévio, praticar atos contrários aos interesses de sua futura defesa. Por isso, a jurisprudência tem conhecido com tranqüilidade a incidência, ainda na fase de investigações, do privilégio contra a autoincriminação e do direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII) (SUNDFELD, 2001, p. 576). De uma forma geral, os atos de fiscalização são previamente estabelecidos em agenda anual de fiscalização dos entes administrativos132 e, formalizados em processo fiscalizatório, desenvolvem-se em compasso com a programação prevista e nos termos do documento formal que delimita o objeto da fiscalização e o agente responsável. Ao final, relatório de fiscalização é elaborado para registrar o objetivo, a metodologia e as técnicas de fiscalização, a descrição do procedimento adotado, as informações levantadas e as conclusões que o ente administrativo alcançou com a fiscalização. No decorrer do processo de fiscalização, é possível a celebração de acordo administrativo entre a Administração Pública e o administrado para suspender uma determinada prática objeto de investigação mediante contrapartida de prestações positivas ou negativas pelo investigado. Essa dinâmica é verificada no CADE, que dispõe como instrumento consensual o termo de compromisso de cessação (TCC) por meio do qual o compromitente cessa a ação investigada e se obriga a adotar certos comportamentos para suspensão do processo de fiscalização ou do processo sancionador. 133 Geralmente o agente competente para fiscalizar também é competente para aplicar sanções, de forma que a autoridade administrativa que fiscaliza também é incumbida de sancionar caso se verifique a responsabilização administrativa. A competência comum de fiscalizar e sancionar detida pela autoridade administrativa 132 É o exemplo da Resolução 441/06, que dispõe sobre o procedimento de fiscalização no âmbito da ANATEL e obriga a previsão da fiscalização no Plano Operacional de Fiscalização em seu art. 11. 133 Art. 53, caput, Lei 8.884/94: “Em qualquer das espécies de processo administrativo, o CADE poderá tomar do representado compromisso de cessação da prática sob investigação ou dos seus efeitos lesivos, sempre que, em juízo de conveniência e oportunidade, entender que atende aos interesses protegidos por lei”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 214 justifica-se pela potencialidade de a decisão desta autoridade ser mais adequada ao caso concreto pelo conhecimento mais detido da prática objeto de processamento. A aplicação de sanção condiciona-se à realização de prévio processo administrativo com garantia de todos os meios de defesa do administrado, a exemplo dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, mas também de direitos mais específicos, como o direito de não ter cobrada despesas processuais134 e o direito de vista e cópia do processo135. A lei federal de processo administrativo possui todo um Capítulo destinado à previsão expressa de alguns dos principais direitos dos administrados oponíveis à Administração Pública no âmbito do processo administrativo, além de outros dispersos no texto legal. O art. 3º, que compõe o Capítulo II intitulado “Dos direitos dos administrados”, possui a seguinte redação: Art. 3º. O administrado tem o seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações; II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente; IV – fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei. Para a Administração Pública, os direitos dos administrados consistem em efetivas sujeições administrativas, i.e., deveres que o Poder Público tem de necessariamente observar quando do cumprimento de suas competências administrativas. Conforme analisado, da mesma forma que o regime jurídicoadministrativo confere prerrogativas exorbitantes à esfera privada para o ente administrativo, também determina deveres inescusáveis na tentativa de alcançar o almejado equilíbrio entre prerrogativas e sujeições. O confronto entre autoridade e liberdade corresponde a uma das questões teóricas de maior projeção no Direito Administrativo e, quando projetada no processo administrativo, determina garantias processuais ao administrado e ônus processuais à Administração Pública. 134 Art. 2º, inc. XI, Lei nº. 9.784/99. 135 Art. 46, Lei n.º 9.784/99. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 215 Embora a função garantista do processo administrativo (sancionador) seja a mais difundida nos estudos de direito administrativo (SILVA, 2006, p. 38), deve-se enfatizar a função de conformação racional das decisões administrativas. O processo administrativo consiste na arena de participação administrativa previamente à tomada de decisão pela Administração Pública e de análises ponderativas acerca das possíveis decisões que o Poder Público tem à sua disposição para aplicar no caso concreto e, assim, findar um determinado problema ou regular uma específica atividade econômica. Em relação ao exercício da prerrogativa sancionatória, é no processo administrativo sancionador que a Administração irá negociar com o administrado eventual termo de compromisso para substituição da sanção administrativa ou suspensão do processo. Também é no processo administrativo sancionador que há a deliberação do tipo de sanção aplicável, bem como o seu sopesamento considerando todos os elementos levantados no decorrer da instrução processual. Dessa forma, o processo sancionador confere racionalidade à tomada de decisões pela Administração Pública acerca do exercício da prerrogativa sancionadora, além de facilitar o controle do ato administrativo final, inclusive social, pois todas as etapas de formação da decisão administrativa estão formalizadas no processo administrativo. Pelos expostos motivos, o processo sancionador mostra-se como o elemento central do Direito Administrativo Sancionador e imprescindível à aplicação de sanções ou à celebração de acordos administrativos. Pela relevância do processo sancionador, diversos atos normativos dispõem sobre procedimentos específicos de disciplina do exercício da prerrogativa sancionadora. A tendência atual verifica na esfera infra-legal é a criação por cada ente administrativo de seu específico procedimento sancionador com atenção às especificidades institucionais, que podem ser determinantes à definição dos prazos e da repartição de competência, e finalidades materiais correspondentes ao setor de atividade ao qual esteja atrelado. Sem deixar de indicar eventuais particularidades, e já advertindo sobre a existência de regimes de processamento específicos, o próximo item busca indicar o modelo básico de processo sancionador a partir da lei federal de processo administrativo. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 216 4.2 Instauração do processo administrativo sancionador Três formas básicas de instauração do processo administrativo sancionador, possuem ampla previsão normativa: (i) instauração de ofício, tanto por meio de auto de infração lavrado após o processo de fiscalização quanto pelo agente público que toma conhecimento de infrações administrativas, ou (ii) por denúncia formulada à autoridade administrativa em reclamações, pedidos de providências ou petições diversas136. O atributo da auto-executoriedade fundamenta a instauração de ofício do processo administrativo sancionador pela Administração Pública. A Administração Pública detém autonomia em relação aos demais Poderes e competência para dar início ao processo de apuração da responsabilidade administrativa. Para tanto, a instauração de ofício de processo sancionador pela Administração pode ser precedido de fiscalização que aponte para indícios de irregularidade administrativa ou do conhecimento da prática de infrações administrativas pela própria autoridade administrativa. Neste último caso, é comum que as normas prevejam o dever inescusável de a Administração Pública averiguar a ocorrência de infração administrativa constatada por seu agente público, o qual também possui o dever de reportar o ilícito administrativo à autoridade competente para fiscalização e/ou sancionamento o infrator. 137 Por sua vez, a denúncia se verifica nas hipóteses em que a Administração toma conhecimento da prática de eventual irregularidade por terceiros, especialmente diante da formulação de reclamações, pedidos de providência ou petições diversas à autoridade administrativa incumbida de fiscalizar a apurar a responsabilidade administrativa daquele que tenha incorrido em alguma infração administrativa. Recebida a denúncia, a 136 Lei nº. 9.784/99, art. 5º. “O processo administrativo pode iniciar-se de ofício ou a pedido de interessado”. 137 É o caso da Resolução n.º 442 na ANTT, que estabelece o processo administrativo para apuração de infrações e aplicação de sanções administrativas: “Art. 2º. A autoridade que tiver ciência de infrações legais ou contratuais, ou de indícios de sua prática, é obrigada a promovera sua apuração imediata, mediante instauração de procedimento de averiguações preliminares ou de processo administrativo, assegurados, nesta hipótese, o contraditório e a ampla defesa”. Nesse sentido, também a Lei n.º 9.790/99, que rege os termos de parceria firmados entre Administração Pública e as sociedades civis de interesse público (OSCIPs): “Art. 12. Os responsáveis pela fiscalização do Termo de Parceria, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública pela organização parceira, darão imediata ciência ao Tribunal de Contas respectivo e ao Ministério Público, sob pena de responsabilidade solidária”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 217 Administração Pública possui a faculdade de instaurar processo sancionador para averiguar a regularidade da prática reportada. A instauração do processo administrativo sancionador visa a estabelecer procedimento formal, com garantias constitucionais e legais ao administrado, para apuração da responsabilidade administrativa por infração, esta compreendida em sentido amplo, contemplando leis formais, atos normativos regulamentares e cláusulas contratuais. Essa ampla compreensão da infração administrativa se coaduna com o conceito anteriormente desenvolvido de bloco de legalidade e o próprio comando da lei geral de processo administrativo de obediência da Administração Pública ao critério de atuação conforme a “lei e o Direito138”. Eventual inobservância de preceito contratual enseja, portanto, a instauração de processo administrativo sancionador. Esse é o entendimento explicitado em diversas passagens normativas, o art. 1º da Resolução n.º 987/2008 da ANTAQ, que disciplina o procedimento sancionador nesta Agência Reguladora, de seguinte redação: Art. 1. Esta norma tem por objeto disciplinar, no âmbito da ANTAQ, o procedimento de fiscalização e o processo administrativo para apuração de infrações e aplicação de penalidades nos casos de condutas que infrinjam disposição legal, regulamentar ou contratual relativas à prestação de serviços de transportes aquaviários, de apoio marítimo e de apoio portuário e à exploração da infra-estrutura aquaviária e portuária, regendo-se pelo disposto nas Leis 9.784, de 1999, e n 10.233, de 2001, com redação dada pela Medida Provisória n 2.217-3, de 2001, do Decreto n. 4.122, de 2002, pelas regras e demais disposições legais pertinentes. No que tange aos legitimados para integrar o processo administrativo, a Lei n.º 9.784/99 apresenta três grandes categorias em seu artigo 9º: (i) as pessoas físicas e jurídicas que iniciem o processo na qualidade de titulares de direitos ou interessadas mediante representação, (ii) as pessoas que não iniciaram o processo, mas detêm direitos ou interesses que possam ser afetados pela decisão administrativa final ou (iii) “as pessoas ou associações legalmente constituídas quanto a direitos e interesses difusos”. Conforme se verifica da apresentação destas categorias de pessoas legitimadas, o Direito Administrativo trabalha com uma concepção mais flexível de legitimação 138 Art. 2º, parágrafo único, Lei 9.784/99. “Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I – atuação conforme a lei e o Direito;”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 218 processual, a qual envolve tanto o titular do direito quanto os interessados no provimento final, de forma que ambos podem integrar ativamente o processo administrativo. Não há explícita menção ao instituto da “intervenção de terceiros”, no entanto, é de se reconhecer que o interessado pode figurar em um dos pólos processuais desde que demonstrado o interesse processual. O formalismo verificado no processo civil em relação à integração de partes no processo é mitigado no âmbito do Direito Administrativo, tanto que a própria Lei n.º 9.784/99 garante ao titular de direitos ou interessado o direito de figurar na relação processual, independentemente de procedimento especial para sua integração no processo. Todavia, na sua atividade normativa a Administração Pública pode editar atos normativos para regrar a forma de composição dos pólos processuais, desde que não importe em supressão do direito, mas apenas ordene o seu exercício. Enquanto lei de disciplina geral de todas as modalidades de processo administrativo na Administração Pública Direta e Indireta, a Lei n.º 9.784/99 e seu mencionado art. 9º aplica-se ao processo sancionador, o que importa no reconhecimento de que a aplicabilidade de determinada sanção administrativa ou a celebração de acordo pode se dar em uma relação processual plurilateral, e não apenas bilateral entre Administração Pública e administrado. Interessados podem integrar o processo para auxiliar uma empresa privada regulada a defender alguma tese se essa decisão gerar alguma orientação vinculante à Administração Pública sobre a prática de determinada infração administrativa, por exemplo. De semelhante forma, entidades de defesa ambiental estão legitimadas a participar da instrução processual e, assim, apresentarem provas quando a aplicação de sanção envolver interesses difusos. Pretende-se com essa ampla participação processual conferir efetividade à decisão administrativa, porquanto a integração das pessoas diretamente relacionadas ao objeto do processo permite que a Administração receba mais informações sobre o caso concreto e reconheça o contexto em que a questão se insere, bem como os diferentes interesses e preocupações relacionados. Com isso, a decisão administrativa tem o potencial de ser mais adequada ao caso e acomodar os interesses expostos, o que confere efetividade à decisão na medida em que ela tenderá ser espontaneamente cumprida pelos administrados e ser menos questionada, em especial no Judiciário. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 219 Há nessa proposta, porém, um efeito nefasto correspondente à possível ineficiência do processo administrativo no qual participem múltiplos interessados ante a demora na tramitação do processo. Um ponto importante para garantia da dinâmica processual minimamente eficiente consiste em delimitar na esfera infra-legal a categoria de “interessado” conforme as particularidades que decorrem do tipo de serviço público prestado, bem como a forma de os interessados integrarem o pólo processual com o menor impacto possível ao bom andamento do processo. Ademais, a organização normativa da forma de exercício dos direitos conferidos pela lei em seu art. 38 aos interessados, como juntada de documentos e pareceres e requerimento de diligências, contribui à manutenção da funcionalidade do processo administrativo. Uma peculiaridade do processo administrativo sancionador corresponde ao fato de haver, via de regra, relação de sujeição especial entre o órgão ou ente administrativo competente para sancionar e a pessoa, física ou jurídica, sujeito passivo da prerrogativa sancionatória. Trata-se de uma decorrência diretamente relacionada com a espécie de norma em que as infrações administrativas são previstas; dado que atos normativos e contratos ou atos de outorga passam a se apresentarem como a fonte primeira de previsão das infrações administrativas em detrimento da lei formal, a relação de sujeição especial se mostra cada vez mais pressuposto do processo sancionador. Atualmente, a maioria dos processos sancionadores é protagonizada por Administração contratante e administrado contratado ou regulador e regulado. Por fim, a Lei n.º 9.784/99 estipula em seu art. 10 a capacidade administrativa: “são capazes, para fins de processo administrativo, os maiores de 18 (dezoito) anos, ressalvada previsão especial em ato normativo próprio”. 4.3 Instrução do processo administrativo sancionador A instrução consiste em uma das etapas mais relevantes do processo administrativo sancionador não apenas porque é nessa fase que os elementos de prova que devem necessariamente ser considerados na decisão administrativa139 são constituídos, mas principalmente por ser o momento de análise das implicações da atuação sancionatória do Estado a partir do reconhecimento do contexto no qual a sanção irá se inserir. A instrução permite identificar, ou ao menos obter mais 139 Art. 38, Lei n.º 9.784/99. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 220 informações sobre, os interesses e conflitos envolvidos, bem como o ambiente econômico-institucional no qual a decisão administrativa será proferida. A atuação administrativa conseqüencialista, que considera os efeitos decorrentes da adoção de uma ou outra forma de decidir, amplia a funcionalidade da instrução para além do levantamento de provas na apuração da responsabilidade administrativa. As atividades de instrução podem ser realizadas de ofício pelo Poder Público140, mediante impulsão oficial141, ou diretamente pelos interessados na aplicação da sanção administrativa142. Quanto à impulsão do órgão responsável pelo processamento administrativo, a Lei n.º 9.784/99 estabelece o critério de menor onerosidade dos atos de instrução. Segundo o seu art. 29, §2º, “os atos de instrução que exijam a atuação dos interessados devem realizar-se do modo menos oneroso para estes”. Pode a Administração Pública requisitar do acusado informações e documentos para compor a instrução do processo sancionador, desde que o ato de requisição não inviabilize o direito de defesa detido pelo administrado (SUNDFELD, 2001, p. 580). A instrução no processo sancionador é ampla e admite diversos meios de prova143. Esta interpretação é extraída da própria Lei n.º 9.784/99 que além de não fixar as atividades instrutórias, assegura ao administrado o direito de formular alegações e apresentar documentos antes da decisão em seu art. 3º, inc. III, e, ainda, proíbe a recusa imotivada do recebimento de documentos (art. 6º, parágrafo único). Trata-se de uma característica geral ao processo administrativo, qualquer que seja o seu objeto, mas que ganha especial relevância no processo sancionador pela inerente importância dos meios de defesa. Se a Lei n.º 9.784/99 não delimita a instrução do processo administrativo de ofício ou por impulsão da Administração Pública, ensejando a interpretação pela ampla instrução probatória, as atividades de instrução do interessado, em contrapartida, são 140 Cf. art. 2º, inc. XII, Lei n.º 9.784/99. 141 MARQUES NETO aponta uma diferença substancial entre processo administrativo e processo judicial quanto ao princípio da oficialidade: “a oficialidade no processo administrativo é muito mais ampla do que o impulso oficial no processo judicial. Ela compreende o dever-poder de instaurar, fazer andar e rever de ofício a decisão” (2004, p. 3510). 142 Cf. art. 29, caput, Lei n.º 9.784/99. 143 “(...) assegura-se à pessoa privada a prerrogativa processual de propor e realizar provas, demonstrando o porquê de sua real necessidade para o caso concreto. Todos os fatos relevantes (principais e acessórios) em que se funda o ato administrativo ou o pedido inicial, bem como a defesa, podem (devem) ser objeto de instrução processual”. MOREIRA, 2004, p. 3798. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 221 estabelecidas em seu art. 38: “o interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada de decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo”. Pela positivação dos poderes instrutórios detidos pelo interessado, a Lei 9.784/99 tanto garante o efetivo direito de participar da condução do processo administrativo, evitando que a Administração Pública discipline normativamente um exercício aquém do minimamente estabelecido em lei, quanto o delimita, conformando o papel da figura do interessado, bastante incipiente no Direito Administrativo brasileiro. A afirmação do interessado na estrutura processual é reiterada no parágrafo 2º do art. 38, que impede a recusa pela Administração Pública das provas propostas pelos interessados, ressalvadas aquelas impertinentes, desnecessárias ou protelatórias mediante decisão fundamentada. Ao tomar essas medidas, a Lei n.º 9.784/99 assegura um papel relevante ao interessado na construção da tomada de decisão administrativa. Independentemente da pessoa que apresente provas – parte ou interessado – são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos, nos termos do art. 30 da Lei n.º 9.784/99 e do art. 5º, inc. LVI, da Constituição Federal. Para realizar diligências mediante impulso oficial, o administrado deve ser intimado no prazo mínimo de três dias se importar em seu comparecimento (art. 26, caput e 2º). Nesse sentido é o teor do art. 41 da Lei n.º 9.784/99: “os interessados serão intimados de prova ou diligência ordenada, com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, mencionando-se data, hora e local de realização”. No entanto, o desatendimento da intimação não gera o efeito de reconhecimento da verdade dos fatos e nem renúncia a direito pelo administrado, ao contrário do que se verifica no âmbito do processo civil (art. 27, caput, Lei n.º 9.784/99). Ressalvados os casos em que a lei disponha sobre a formalidade específica para realização de um determinado ato de instrução, os atos de instrução não demandam uma forma específica (art. 22, Lei n.º 9.784/99). Essa orientação se coaduna com a proposta de simplificação do processo administrativo, um dos critérios de regência dos procedimentos administrativos determinado no art. 2º da lei federal de processo administrativo144. De acordo com o critério de simplificação, o processo administrativo deve ser simples o suficiente para garantia das duas funcionalidades essenciais do 144 Art., 2º, incs. VIII e IX, Lei n.º 9.784/99. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 222 processo administrativo145 – atendimento dos direitos dos administrados e útil decisão administrativa – com o mínimo de formalidade, mínimo esse correspondente apenas ao indispensável à garantia dos direitos dos administrados146. Interessante ressaltar a faculdade que o art. 32 da Lei n.º 9.784/99 confere à Administração Pública de abrir o processo administrativo em que se discuta questão relevante para apreciação geral por meio da realização de audiência pública previamente à decisão administrativa. Embora essa prática esteja diretamente relacionada ao processo administrativo normativo, destinado à elaboração de normas de disciplina do funcionamento interno do ente administrativo ou de regulação das atividades privadas, nada obsta a realização de audiências públicas no processo sancionador, especialmente se deste processo resultar alguma interpretação vinculante ao ente administrativo. 4.4 Decisão administrativa no processo sancionador Encerrada a instrução, o administrado possui no máximo dez dias para se manifestar (art. 44, Lei n.º 9.784/99). Também no Direito Administrativo prevalece a regra do non liquet, que comina à Administração Pública o dever de decidir nos processos administrativos147 e, em reforço ao comando legal, fixa o prazo de trinta dias para que a autoridade administrativa competente emita a decisão, nos termos do art. 49 da Lei 9.784/99, preceito este que admite prorrogação por igual período devidamente motivada. Para a decisão, todos os elementos de prova constituídos na fase instrutória devem ser considerados, inclusive aqueles produzidos pelos interessados. Neste último caso, a Lei n.º 9.784/99 possui preceito que expressamente impõe o dever de a Administração considerar os elementos probatórios na motivação do relatório e na decisão em si considerada (art. 38, §1º). Para deliberar acerca da aplicação, ou não, de 145 A única exigência formal mais explícita que se verifica na Lei 9.784/99 corresponde à formalização dos atos processuais. Esse é o teor do art. 22, §1º: “[o]s atos do processo devem ser produzidos por escrito, em vernáculo, com a data e o local de sua realização e a assinatura da autoridade responsável”. 146 Mencione-se é bastante comum a previsão nos atos normativos de “modelos” para prática de determinado ato pela Administração Pública. A ANTT dispõe em sua Resolução 442/04 de modelos de notificação de infração e de representação, tanto para pessoas físicas quanto para pessoas jurídicas, de intimação, de termo de vista, de retirada de processo e de termo de audiência. Essa prática de simplificação da burocracia administrativa encontra respaldo na lei federal de processo administrativo, em seu art. 7º: “os órgãos e entidades administrativas deverão elaborar modelos ou formulários padronizados para assuntos que importem pretensões equivalentes”. 147 Art. 48, Lei 9.784/99. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 223 sanção administrativa no processo sancionatório, as informações internalizadas e os elementos de prova amplamente produzidos no decorrer da instrução devem ser empregados como subsídios de análise (i) do tipo de decisão administrativa e (ii) da conformação quanto à sua abrangência e profundidade148. Ao término do processo administrativo sancionador, as seguintes decisões podem ser verificadas: (i) ato administrativo declaratório da inexistência de infração administrativa, (ii) ato administrativo declaratório que negue a responsabilidade administrativa da pessoa que figura no pólo passivo do processo sancionador, (iii) ato administrativo que declare a prescrição da pretensão sancionatória da Administração Pública, (iv) sanção administrativa ou (v) acordo administrativo que substitua a sanção administrativa ou a torne mais branda mediante satisfação de obrigações positivas e negativas estabelecidas no ato consensual. As duas primeiras tipologias encerram a absolvição do sujeito passivo no processo sancionador seja porque a sua prática não incide na tipificação de uma infração administrativa, seja porque o ato infracional não é de responsabilidade deste administrado. Em ambos os casos, os elementos de prova são ponderados e a Administração profere decisão material, cuja motivação deve contemplar as conclusões alcançadas com a instrução processual. A prescrição da pretensão punitiva pela Administração Pública federal, direta e indireta, é regida pela Lei n.º 9.873/99. Esta lei não se aplica, no entanto, aos processos administrativos disciplinares e aos processos administrativos tributários que possuem disciplina legal própria, respectivamente pela Lei n.º 8.112/90 quanto aos agentes públicos estatutários e pelo Decreto n.º 70.235/72. Quanto aos prazos para exercício da prerrogativa sancionadora pelo Poder Público federal, portanto, o processo administrativo sancionador não é disciplinado pelos correspondentes preceitos da Lei n.º 9.784/99, mas sim pela mencionada lei de prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública federal, a qual estipula o prazo prescricional de cinco anos. Segundo o art. 1º da Lei n.º 9.873/99, o prazo é ordinariamente contado na data da prática do ato, mas deve ser contado no dia em que tenha sido cessado o ato permanente. Se o fato objeto de apuração administrativa também puder constituir crime, o §2º do art. 1º da Lei n.º 9.873/99 determina que o 148 Cf. MARQUES NETO. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 224 prazo da prescrição punitiva penal deve ser estendido à esfera administrativa e ser aplicado no processo sancionador em detrimento do prazo comum de cinco anos149. Além de estabelecer as regras de cômputo do prazo de prescrição da pretensão sancionatória pela Administração federal, a Lei n.º 9.873/99 ainda define os casos de interrupção da prescrição, quais sejam, (i) pela intimação do administrado, (ii) pelo início da apuração do fato, qualquer que seja o tipo de ato que inicie a averiguação administrativa e (iii) pela decisão condenatória recorrível (art. 2º). Outra possibilidade de decisão no processo sancionador consiste na celebração de acordos substitutivos ou integrativos da sanção administrativo. Algumas normas prevêem expressamente tais acordos administrativos, em sua maioria sob a nomenclatura de “termos de compromisso”150 ou “termos de ajuste de conduta”151, ao passo que outras são exclusivamente voltadas à disciplina da atuação administrativa concertada no Direito Administrativo Sancionador. Como decorrência do influxo normativo, está na pauta da agenda de debates teóricos no Direito Administrativo a consensualidade. 152 O tradicional modelo de desenvolvimento das atividades administrativas por meio de atos administrativos imperativos e unilaterais sobre o qual as linhas teóricas do Direito Administrativo foram erigidas passa a ser cada vez mais questionado em razão de suas disfuncionalidades práticas – em especial a demora para provimento administrativo, a ineficácia das decisões verticalizadas e os custos relacionados – e pelas dúvidas acerca da legitimidade do exercício da autoridade do Estado de forma unilateral e arraigada nas prerrogativas públicas exorbitantes à esfera privada. Em defesa da atuação administrativa concertada, alguns administrativistas indicam que o desenvolvimento da atuação por meio de acordos administrativos pode se apresentar mais célere, menos custosa e seu conteúdo decisório pode ser mostrar mais adequado às demandas colocadas no caso concreto por viabilizar “decisões mais criativas” por se estruturar na negociação da imperatividade estatal. 149 Art. 1º, §2º, Lei n.º 9.873/99. “Quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal”. 150 Cf. Decreto-Lei n.º 6.385/76 da CVM, por exemplo. 151 Cf. Resolução n.º 442/04 da ANTT, Resolução Normativa 63/04 da ANEEL e Resolução Normativa 48/03 da ANS, por exemplo. 152 Cf. MOREIRA NETO (2001). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 225 No plano do Direito Administrativo Sancionador, o exercício da prerrogativa sancionatória pode ser negociada entre Administração e administrado. Dessa forma, os acordos administrativos podem prever uma forma específica de aplicação da sanção administrativa, com termos mais adequados ao administrado ou em menor intensidade (multas mais brandas, por exemplo) pelo comprometimento deste em realizar obrigações positivas ou negativas, quando então são denominados de acordos integrativos. De fato, os acordos administrativos deste jaez não substituem a sanção administrativa e nem suspendem o processo sancionador, mas o integram na qualidade de ato processual e conformam a decisão unilateral final (sanção administrativa). Por outro lado, os acordos substitutivos tomam o lugar da sanção administrativa no momento final do processo sancionador ou suspendem o processo sancionador até que haja cumprimento das obrigações pactuadas entre Administração Pública e administrado. Dentre os efeitos decorrentes da celebração dos acordos substitutivos, deve-se mencionar o efeito de suspensão do prazo prescricional previsto no art. 3º da Lei n.º 9.873/99. Embora o preceito se refira apenas aos termos de compromisso de cessação (TCC) no âmbito do CADE e aos termos de compromisso (TC) da CVM, este efeito deve ser estendido por analogia a todos os acordos administrativos que possuam a mesma funcionalidade dos supramencionados acordos administrativos, quais sejam, substituir a sanção administrativa ou suspender o processo sancionador até o advento do cumprimento das cláusulas comprometidas no termo. Conforme se verifica, o processo sancionador não se destina apenas à apuração e aplicação de sanções administrativas. Ao lado da função garantista que desempenha, o processo sancionador exerce a função de seara de conformação da decisão administrativa mais adequada ao caso concreto, considerando o contexto identificado na fase de instrução e os efeitos da sanção e do acordo administrativo, ambos instrumentos fungíveis à satisfação das competências administrativas. No entanto, o novo modelo de atuação administrativa ensejado pela consensualidade não afasta, por óbvio, a decisão sancionatória do processo sancionador. A aplicação de sanções continua sendo uma das finalidades do processo sancionador, porém, ela passa a coexistir com o ato consensual. De um modo geral, a sanção administrativa consiste no ato administrativo aplicável pela autoridade competente ao término de processo administrativo sancionador com todos os meios de defesa a ele inerentes, como o contraditório e a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 226 ampla defesa, no qual tenha sido reconhecido o descumprimento de lei, ato normativo ou cláusula contratual. Na qualidade de ato administrativo, a sanção administrativa deve atender ao regime geral dos atos administrativos, ditado pelos seus elementos imprescindíveis – competência, objeto, forma, motivo e finalidade –, formas de invalidação e controle, em especial o controle procedido pelo Poder Judiciário. Trata-se do resultado do exercício da prerrogativa sancionadora pela autoridade administrativa competente para tanto, do qual decorrem expressivos efeitos práticos da aplicação da sanção: recomposição da legalidade, afirmar a autoridade administrativa e servir de incentivo negativa à prática de infrações administrativas. Ao contrário do que se evidencia na esfera penal, não há no Direito Administrativo Sancionador sanções que não pecuniárias ou de constituir o sancionado em obrigação de fazer ou de não fazer. Esse entendimento já consolidado foi positivado no art. 68 da Lei n.º 9.784/99: Art. 68. As sanções, a serem aplicadas por autoridade competente, terão natureza pecuniária ou consistirão em obrigação de fazer ou de não fazer, assegurando sempre o direito de defesa. Apesar da pluralidade de sanções administrativas evidenciadas no Direito Administrativo Sancionador, as sanções mais comumente previstas nas leis formais são a multa na fiscalização de uma determinada atividade privada, a caducidade do contrato celebrado com a Administração Pública e a cassação de licença ou de autorização. Para sua aplicação, a sanção administrativa passa por um procedimento de sopesamento a partir de critérios definidos na Lei n.º 9.784/99, em leis formais e em atos normativos residuais para determinar a medida da sanção mais adequada à infração apurada no processo administrativo sancionador. De uma forma geral, os critérios de sopesamento seguem a regra da relação de sujeição especial, ou seja, quanto mais próximo e relacional for o vínculo jurídico estabelecido entre Administração Pública e administrado, maiores serão os critérios para disciplinar a força da sanção e, também, mais incisivo poderá ser o exercício da prerrogativa sancionadora pela autoridade administrativa. Uma empresa que detenha um contrato de prestação de serviço de transporte público com a União, por exemplo, conterá em sua disciplina jurídica desde normas constitucionais até específicas cláusulas contratuais que prevejam infrações Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 227 administrativas ou critérios específicos de sopesamento da sanção administrativa a ser aplicada no caso de inobservância das normas. Um dos critérios mais relevantes de sopesamento da sanção administrativa encontra-se na Lei n.º 9.784/99, em seu artigo 2º, parágrafo único, inc. VI, o qual impede que a Administração Pública imponha sanções em medida superior à minimamente necessária para atendimento do interesse público, nos seguintes termos: Art. 2º, parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público. Apesar da vagueza desse critério, o preceito indica a orientação geral de mínimo exercício da prerrogativa sancionatória, de forma que a autoridade administrativa não pode se valer de sanções demasiadamente gravosas ao administrado que não acompanhem a dimensão dos efeitos gerados pela infração objeto de sancionamento. Qualquer que seja a decisão terminativa do processo sancionador, esta deve necessariamente ser motivada, i.e., com indicação dos fundamentos jurídicos do ato final, nos termos do art. 50 da Lei n.º 9.784/99, e dos elementos de fato recolhidos no processo. 4.5 Revisão da decisão administrativa A decisão da Administração Pública em processo sancionador é passível de revisão pela via administrativa ou judicial. Na esfera administrativa, a revisão se procede por meio da interposição de recurso à autoridade que proferiu a decisão para retratar-se dentro de cinco dias. Transcorrido esse prazo estabelecido no art. 56 da Lei n.º 9.784/99 sem que se verifique a retratação, o recurso é encaminhado à autoridade superior para que aprecie o pedido formulado pelo recorrente. Segundo a lei federal de processo administrativo, o prazo para interposição de recurso administrativo é de dez dias, devendo ser decidido no prazo máximo de 30 dias (art. 59). O recurso administrativo, que possui somente efeito Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 228 devolutivo, ressalvada hipótese de lei que o confira efeito suspensivo (art. 61), independe de caução para ser protocolizado (art. 56, §2º). Importa ressaltar que o recurso administrativo interposto em processo sancionador possui uma dinâmica diferenciada em relação aos recursos verificados nos demais tipos de processos administrativos determinada pelo art. 65 da Lei n.º 9.784/99, de seguinte redação: Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada. Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção. A norma transcrita configura uma garantia conferida ao administrado diretamente interessado na aplicação da sanção administrativa de que o exercício da prerrogativa sancionadora pela Administração Pública acompanha o efetivo prejuízo decorrente da infração administrativa. Dessa forma, a instrução probatória não se resume ao momento intermediário do processo administrativo sancionador, prévio à conformação da decisão administrativa, mas acompanha toda a fase executória da sanção aplicada, de forma que fatos novos ou circunstâncias relevantes podem ensejar a revisão do tipo e da medida da sanção aplicada. A ampla possibilidade de revisão administrativa das sanções se coaduna com a orientação geral de proporcionalidade estabelecida no art. 2º, parágrafo único, VI, da Lei n.º 9.784/99 que dispõe sobre o dever de observância pela Administração Pública da “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. O dever de proporcionalidade das respostas administrativas à infração da legalidade, tomada aqui em sentido amplo para abarcar também as cláusulas de contratos administrativos, exige constante atenção ao contexto no qual o ato sancionatório fora emitido. Para fins de revisão da sanção administrativa, devem ser considerados, além de outros, todos os elementos de prova que permitam caracterizar a prática como infracional, as circunstâncias atenuantes e agravantes, os efeitos decorrentes da prática sancionada e a medida do benefício originado aos sancionados ou terceiros pela infração Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 229 administrativa. Quando verificados após a aplicação da sanção administrativa, tais elementos ensejam a reavaliação do ato administrativo quanto (i) à caracterização da infração administrativa, (ii) à adequação do tipo de sanção aplicada e (iii) ao peso da sanção. Para tanto, a sanção aplicada deve ser revisitada à luz dos critérios de sopesamento determinados na Lei n.º 9.784/99 e nos demais atos normativos. Como resultado do recurso administrativo, a autoridade administrativa poderá, nos termos do art. 64 da Lei n.º 9.784/99, “confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência”. No entanto, é defeso o agravamento da sanção por expressa previsão legal na lei federal de processo administrativo (art. 65, parágrafo único). Mostra-se relevante salientar que a regra de abertura do direito de defesa do administrado para formulação de alegações caso a revisão do ato importe em gravame à situação do recorrente previsto no art. 64, parágrafo único, não é, portanto, aplicável ao processo sancionador. Além da revisão administrativa, a sanção aplicada ao término de processo sancionador pode ser contestada judicialmente para que o Poder Judiciário invalide a decisão administrativa ilegal. Segundo o princípio constitucional da inafastabilidade do Poder Judiciário (CF, art. 5º, inc. XXXV), os atos administrativos, do qual é exemplo a sanção administrativa, podem ser levados à apreciação do Poder Judiciário para garantia do estado de legalidade. Ao contrário do que se evidencia nos sistemas de dualidade de jurisdição, cuja principal característica reside na existência de um Tribunal especializado para lidar com os litígios envolvendo a Administração Pública153, o modelo de unidade de jurisdição adotado pelo Estado brasileiro determina a concentração dos questionamentos públicos no mesmo órgão jurisdicionado para apreciar litígios privados. Dessa forma, juízes podem invalidar a decisão da Administração Pública com fundamento na legalidade. Um dos principais debates que se colocam hoje na agenda teórica do Direito Administrativo corresponde aos limites do controle judicial dos atos administrativos, debate esse reforçado com a criação das Agências Reguladoras, que predicam independência e autonomia decisória para regular determinado setor. O atual cenário teórico dá conta de duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no controle dos atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do ato 153 Cf. CASSESE, 1994, p. 44 e ss. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 230 administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV, CF e aqueles que buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do Judiciário às decisões administrativas154. Sem clareza acerca dos critérios para controle judicial dos atos administrativo, o momento é de reflexão sobre quais seriam as circunstâncias que predicariam um controle mais ou menos incisivo do Judiciário sobre a atividade administrativa. No que tange ao controle judicial dos atos sancionatórios, verifica-se grande judicialização das sanções aplicadas pelas autoridades administrativas, o que suscita reflexões sobre o esvaziamento da autoridade da Administração Pública na medida em que a competência sancionatória que detêm são deslocadas para o Poder Judiciário mediante o questionamento judicial da validade do ato administrativo proferido ao final do processo sancionador. Além da judicialização das sanções administrativas pela ação do administrado, que discute a legalidade de sua aplicação ou a proporcionalidade entre a infração administrativa e a medida da sanção, outra hipótese de aproximação do processo sancionador ao Judiciário corresponde à execução judicial das multas aplicadas pela autoridade administrativa. Esse ponto é especialmente sensível para a afirmação da Administração Pública frente ao administrado. As multas aplicadas pela autoridade administrativa não são auto-executáveis, o que importa na necessidade de cobrança judicial via ação de execução fiscal (Lei 6.830/80) caso o sancionado não pague espontaneamente o valor arbitrado na multa, que acarreta na inscrição do devedor no Cadastro Informativo dos Créditos Não Quitados de Órgãos e Entidades Federais (CADIN). A judicialização da execução das multas administrativas repercute diretamente sobre a efetividade do sistema sancionador administrativo, pois as multas, embora aplicadas, não são cumpridas. Uma vez que a multa consiste em uma das sanções administrativas mais aplicadas pela Administração Pública federal, senão a sanção mais aplicada, tem-se o quadro de ineficácia do sistema de responsabilização administrativa, agravado pelo fato de a demora de processamento das ações de execução fiscal, dentre outros fatores, determinarem o baixo recolhimento das multas aplicadas. Os dados apresentados pelo CADE bem explicam o exposto: 154 Cf. WANG, PALMA & COLOMBO (p. 5, mimeo). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 231 Fonte: Relatório de Gestão do CADE (exercício de 2008) 155 5. BIBLIOGRAFIA ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.), O Poder Normativo das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006. _____. “As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes: uma contribuição da teoria dos ordenamentos setoriais”. In: Revista de Direito Público da Economia, vol. 4. Belo Horizonte: Fórum, out./dez. 2003 ÁVILA, Humberto. “Moralidade, Razoabilidade e Eficiência na Atividade Administrativa”. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 4. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em 15 de julho de 2009. BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006 CASSESE, Sabino. La Crisis del Estado. Buenos Aires: Lexis-Nexis, 2003 (trad. Pascual Caiella e Juan González Moras). DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. 155 Disponível em http://www.cade.gov.br. Acesso em 20 de julho de 2009. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 232 FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001. Felice GIUFFRÈ. “Declínio del Parlamento Legislatore e Crescita del Potere de Inchiesta”. In: LABBRIOLA, Silvano (coord.). Le Autoria Indipendenti. Milão: Giuffrè, 1999. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 200 MARIENHOFF, Miguel S. Tratado de Derecho Administrativo, tomo I. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1965. MARQUES NETO, Floriano Azevedo. “Limites à Abrangência e à Intensidade da Regulação Estatal”. In: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. vol. 4. Salvador, nov-jan, 2005-2006. _____. “Princípios no Processo Administrativo”. In: Fórum Administrativo – Direito Público, vol. 37. Belo Horizonte: Fórum, 2004. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. As sanções administrativas à luz da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. MOREIRA, Egon Bockmann. “Agências Reguladoras Independentes, Poder Econômico e Sanções Administrativas”. In: GUERRA, Sérgio (coord.), Temas de Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004. _____. “O Direito à Prova no Processo Administrativo”. In: Fórum Administrativo – Direito Público, vol. 39. Belo Horizonte: Fórum, mai. 2004, p. 3798. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Novas Tendências da Democracia: Consenso e Direito Público na Virada do Século – o Caso Brasileiro”. In: Revista Brasileira de Direito Público, vol. 3. Belo Horizonte, Fórum, 2001 NIETO, Alejandro. Derecho Administraivo Sancionador. Madrid: Tecnos, 1993. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 2ª ed. São Paulo: RT, 2006. PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia. Coimbra: Almedina, 2005. SILVA, Manuel Vasco Pereira da. Em Busca do Ato Administrativo Perdido. Coimbra, Almedina, 2006. SUNDFELD, Carlos Ari. “A Defesa nas Sanções Administrativas”. In: Revista Forense, vol. 298. Rio de Janeiro: Forense, abr./jun. 1987. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 233 _____. “Introdução ao Processo Administrativo”. In: SUNDFELD, Carlos Ari & MUÑOZ, Guillermo Andrés (coord.), As Leis de Processo Administrativo. Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98. São Paulo: Malheiros, 2006. _____. “Lei da Concorrência e Processo administrativo: o direito de defesa e o dever de colaborar com as investigações”. In: Fórum Administrativo – Direito Público, vol. 5. Belo Horizonte: Fórum, jul. 2001. p. 576 VERA, José Bermejo. “La Potestad Sancionadora de la Administración”. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (coord.), Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. VITTA, Heraldo Garcia. A Sanção no Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. WANG, Daniel, PALMA, Juliana & COLOMBO, Daniel. “Revisão Judicial dos Atos das Agências Reguladoras: uma análise da jurisprudência brasileira”. In: SCHAPIRO, Mario (coord.). Direito Econômico Regulatório. São Paulo: Saraiva, 2010. No prelo. Relatório de Gestão do CADE (exercício de http://www.cade.gov.br. Acesso em 20 de julho de 2009. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 2008. Disponível em 234 ANEXO 4 - A DISCUSSÃO DO PROBLEMA DA RESPONSABILIZAÇÃO POR ILÍCITOS PRATICADOS NO ÂMBITO DE PESSOAS JURÍDICAS NO CAMPO DA DOGMÁTICA PENAL 1. INTRODUÇÃO A estrutura individual de imputação, sobre a qual a dogmática tradicional de Direito Penal foi construída, vem se mostrando cada vez mais ineficiente diante da proliferação de práticas delitivas que ocorrem no âmbito de organizações altamente hierarquizadas e funcionalmente diferenciadas. De fato, as ações tomadas no âmbito de um ente coletivo são, muitas vezes, de difícil averiguação para aqueles que não participam dele. Além disso, em tal estrutura organizacional, um resultado lesivo ao bem jurídico geralmente é provocado pela ação conjunta de muitos sujeitos, de diversas posições hierárquicas e com um grau diferenciado de informação, sendo muito difícil identificar todos os participantes da ação e delimitar a contribuição de cada um para o evento. Nestes contextos, a estrutura tradicional de imputação historicamente consolidada em nosso Direito Penal acaba apresentando um forte déficit regulatório156. Isso porque tal estrutura, pensada para lidar com casos simples como o de um homicídio doloso individual, pressupõe que um único autor disponha fundamentalmente de três capacidades: capacidade de realização de uma ação, capacidade de compreensão da ilicitude do ato e capacidade de decisão. O problema surge quando este modelo tradicional e individual de imputação (em que estas três capacidades estão concentradas sobre uma única pessoa) precisa dar 156 Esta estrutura individualista de imputação no Direito Penal clássico (“das individualistische Zurechnungskonzept des klassischen Strafrechts”) é denunciada por Bernd Schünemann como uma das causas do déficit regulatório sobre a chamada “criminalidade econômica”. Segundo este autor, o paradigma individualista (individualstrafrechtliches Paradigma) adotado tradicionalmente pelo Direito Penal não conseguiria dar conta de delitos realizados através de um complexo de ações interligadas, isto é, de padrões de comportamento coletivos (kolletive Verhaltensmusters), já que teria sido pensado, originariamente, para combater e regular ações individuais, cuja realização pudesse, facilmente, ser imputada à vontade e à ação de uma só pessoa. Neste sentido, ver SCHÜNEMANN, 1994, p. 267 e seguintes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 235 conta de fenômenos complexos, ocorridos no âmbito de organizações hierárquica e funcionalmente estruturadas. Nestes casos, estas capacidades não estão, necessariamente, condensadas em uma única pessoa. Isso porque, em uma empresa, é freqüente que a ação seja executada por pessoas que não são verdadeiramente responsáveis ou não têm exclusiva responsabilidade pelo ato e que, muitas vezes, nem sequer se dão conta das conseqüências de sua atuação. Pode-se até mesmo afirmar que a maioria das condutas é executada por setores inferiores da estrutura empresarial, que, normalmente, não dispõem nem de uma alta compreensão da eventual ilicitude de seus atos, nem da capacidade de decidir se eles serão ou não levados a cabo. Os setores intermediários da organização, por sua vez, costumam dispor de uma capacidade relativa de compreensão da eventual ilicitude dos atos realizados nas baixas instâncias, mas não detêm nem o poder de decidir se o ato deve ou não ser realizado, nem a competência para sua execução. Finalmente, os setores superiores da empresa, apesar de disporem da capacidade de decidir ou não pela execução do ato, não participam diretamente deste e, em alguns casos, nem sequer conseguem reconhecer a eventual ilicitude de todos os atos praticados no âmbito da complexa rede de relações por eles liderada. 157. Há de modo geral certa obscuridade na divisão de funções, na distribuição de competências e nos fluxos de informação que determinam os comandos a serem executados, resultando extremamente complicado determinar quais são os atores envolvidos em uma eventual infração cometida no âmbito da organização (SCHÜNEMANN, 1982, p. 42-43). Na maior parte dos casos não é possível encontrar os três componentes fundamentais à responsabilização – ação, decisão e conhecimento – em um único indivíduo, o que bloqueia o processo de imputação individual. Essas condições delineiam as dificuldades de determinação normativa de competências e de responsabilidades dentro da estrutura da empresa, que vem se apresentando nas dificuldades de prova do ato ilícito e suas circunstâncias 157 Neste sentido, Schünemann nos dá um interessante exemplo: um simples operário de uma empresa química pode estar encarregado de, tarde da noite, despejar no rio um determinado conteúdo a ele entregue; dos efeitos maléficos de sua ação ele não sabe. O engenheiro que dá ordens ao operário, por sua vez, pode ter adquirido tal prática de seus antecessores e, portanto, também não saber da relação que estes atos podem ter com eventuais danos ambientais. O diretor da empresa, por fim, pode não dispor de todas as informações relevantes acerca da prática quotidiana de sua empresa, acreditando apenas e tão-somente que sua atual configuração é não somente rentável como também completamente lícita. SCHÜNEMANN, 1994, p. 272. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 236 (COSTA, 1992). 158 Diante deste cenário, surgem algumas propostas de solução para este problema, sendo a responsabilização penal das pessoas jurídicas uma dentre as possíveis respostas político-criminais ao fenômeno da criminalidade empresarial. Uma das alternativas dogmáticas de se abordar a problemática da criminalidade da empresa e as insuficiências da imputação pessoal por atos comissivos é pensar em estruturas alternativas para a imputação individual, que tentem desviar das dificuldades enfrentadas pelo processo tradicional de imputação. Esse conjunto de propostas está voltado principalmente à responsabilização daqueles que ocupam cargos de direção ou são superiores aos executores materiais, papéis estes que normalmente não são alcançados pelas regras tradicionais da autoria159. Nesse sentido, verificamos tentativas de redefinir dogmaticamente o instituto da autoria, por meio do conceito de “autoria mediata”; além disso, é possível observar também a construção de tipos penais que imputam responsabilidade por omissão ou por não-cumprimento do dever, utilizados em sua maioria na modalidade culposa; por fim, também encontramos regras que definem a possibilidade de “atuação em lugar do outro”, voltadas a solucionar as lacunas de imputação que ocorriam em casos de crimes de mão própria, em que o autor responsável não age, mas quem o faz é um representante formal ou informal seu. Embora uma análise mais ampla dessas formas de regulação não seja objeto do presente estudo, apresentaremos brevemente tais soluções a seguir, pois nos parece que, do ponto de vista da formulação de estratégias legislativas para lidar com o problema da criminalidade de empresas, estas alternativas podem ser consideradas conjuntamente com a opção de responsabilizar a pessoa jurídica. 158 Analisando esse fato, Faria Costa concluiu que “tornam-se patentes e indiscutíveis as enormes dificuldades de prova – bastas vezes intransponíveis – com que deparamos sempre que se começa a percorrer reversamente o fio da cadeia hierárquica sustentadora da decisão que levou à prática de um acto penalmente ilícito”. 159 Em alguns casos, inclusive, defende-se a impunidade dos executores imediatos por razões de política criminal: “La escasa capacidade de resistência frente a La actitud pro-delictica Del grupo por parte de quien, como regra general, esta obligado a obedecer dentro de uma escala jerarquizada; la eficacia auto-exculpatoria de quien siempre puede alegar que actúa de um modo altruísta em interés de la casa; La alta fungibilidad de los miembros que ocupan las escalas inferiores de la organización, etc.” (SCHÜNEMANN, 1988, p. 531). No mesmo sentido, SILVA SÁNCHEZ, 1997. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 237 Em seguida, entraremos no tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica propriamente dita, tratando, primeiramente, das resistências que esse instituto enfrenta diante da dogmática penal tradicional, especialmente no caso da corrente finalista. Por fim, trataremos das tentativas contemporâneas de repensar as categorias penais e incorporar as novidades do instituto à teoria do delito. 2. ALTERNATIVAS À RESPONSABILIDADE COLETIVA PARA LIDAR COM CRIMES EMPRESARIAIS Uma decisão sobre a responsabilização penal da pessoa jurídica não pode ser levada adiante sem se considerar que uma posição em relação a esse instituto terá, possivelmente, conseqüências em relação às demais formas de imputação de responsabilidades dentro da empresa e vice-versa. Por exemplo, a não-aceitação do instituto da responsabilidade penal na pessoa jurídica pode eventualmente acentuar decisões que responsabilizem individualmente administradores. Da mesma forma, o incremento dos tipos omissivos, ou mesmo a consolidação de uma posição dogmática em relação à autoria que permita imputar com maior tranqüilidade responsabilidade aos administradores, podem mudar o cenário em que a decisão político-criminal de responsabilizar a empresa deverá ser tomada. Parece-nos, portanto, que tais opções devem ser analisadas conjuntamente sob dois pontos de vista: por um lado, o da conveniência político-criminal, especialmente no que diz respeito às conseqüências que cada uma dessas formas tem no âmbito da empresa; por outro, o do tipo de intervenção e de limitação de liberdade pessoal que cada uma destas formas traz consigo. A forma direta e tradicional de imputação em direito penal, como apontamos, se aplicaria sem maiores problemas no âmbito empresarial a casos em que um agente identificável com sua ação produz imediatamente um resultado típico. Há nestes casos, entretanto, uma dificuldade inicial, que já indicamos acima, no que diz respeito à individualização de responsabilidades dentro da empresa. Mais ainda, se o que se pretende é imputar responsabilidade ao administrador, a tarefa é ainda mais difícil, já que casos em que há decisões expressas e atuações imediatas deste são dificilmente produzidos neste ambiente. O mais comum é que condutas lesivas sejam imediatamente causadas pela ação de subordinados, ainda que aqueles que ocupem posições de administradores estejam ou envolvidos ativamente na elaboração ou estruturação de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 238 estratégias de atuação da empresa que tenham resultado lesivas ou que tenham ao menos agido de forma negligente em relação a seus deveres de cuidado de observar o resultado. Algumas figuras dogmáticas vêm sendo utilizadas para dar conta da decisão político-criminal de imputar responsabilidade aos administradores que se encontram em uma dessas duas posições: a imputação por autoria mediata, a comissão por omissão imprudente e, complementarmente, a regra de atuação em lugar do outro. 2.1 Responsabilidade dos órgãos diretivos por infração de dever Uma das soluções comuns no âmbito dos delitos empresariais é a imputação de responsabilidade pessoal a determinadas pessoas que ocupam posições dentro da empresa – normalmente àqueles que exercem a função de órgão diretivo ou ao titular da empresa – com base na idéia de infração de dever160. A imputação aqui se refere às ações que uma pessoa que ocupa determinada posição no âmbito da empresa deveria ter praticado para que não se chegasse a produzir lesões a bens-jurídicos. Justamente em razão do tipo de conduta que se pretende atingir por intermédio do Direito Penal é que tais omissões são geralmente imputadas na forma imprudente. Ou seja, a exigência de dolo nesse tipo de imputação as tornaria supérflua e, dessa forma, trata-se de imputar pelo caráter descuidado da ação que deixou de evitar o risco. A princípio, imputar por dolo mostrar-se-ia factível na modalidade de dolo eventual, quer dizer, o sujeito, sabendo que sua ação voluntária seria capaz de criar determinado risco, assume a possibilidade da concretização do resultado. Como define Zuñiga Rodriguez, trata-se, no fundo, de uma decisão políticocriminal de estabelecer onde se considera que são infringidos os mandatos da norma penal, um assunto de determinação da posição do dever jurídico (ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2000, p. 176). Ou seja, esse tipo de incriminação pode ser entendido, em última instância, como responsabilização por ter assumido certo papel na empresa e não pelo que concretamente realizou. 160 Há legislações que trazem disposições expressas sobre a violação do dever de garante dos titulares da empresa por delitos/faltas praticadas pelos subordinados, cf. Parágrafo 130 da OwiG alemã e o artigo 130 da Lei de infrações ou sanções administrativas espanhola (lei 30/1992). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 239 No que diz respeito à estrutura da imputação, a omissão pode ser caracterizada de duas formas – a omissão própria e a imprópria. Na omissão própria, a conduta diretamente descrita no próprio tipo penal é uma conduta omissiva (eg. omissão de socorro). Pode haver o resultado, mas ele não faz necessariamente parte do tipo, não se liga com o dever dirigido ao omitente. Os delitos de omissão imprópria, por sua vez, são construídos a partir dos tipos de ação, mediante sua combinação com a regra geral que imputa a omissão daqueles que ocupam a posição jurídica de “garante”. Embora existam tipos formulados diretamente na forma omissiva, os casos freqüentes de omissão a que nos referimos nos parágrafos anteriores são os de omissão imprópria (também chamados de “delitos de comissão por omissão”). Estes se diferenciam dos tipos de omissão própria também por não se esgotarem no nãocumprimento de um mandato exigido por lei e envolverem a realização de um resultado. O resultado é um dos elementos chave para o estabelecimento do vínculo entre indivíduo e imputação. O indivíduo é convertido em “garante” e isso significa que ele tem o dever de evitar o resultado. O garante que infringe esse dever é imputado pelo resultado. A conduta passiva é subsumível a tipos penais pensados para condutas ativas, por meio de um raciocínio que a considera equivalente à ação. Para abarcar essa modalidade de omissão, a explicação dogmática sobre a estrutura básica do tipo teve de ser modificada. Os requisitos da imputação ao tipo pela omissão imprópria são, além da não-evitação do resultado, a fixação do círculo de garantes que podem vir a ser considerados autores. Isso quer dizer que, para imputar uma lesão (originalmente tipo de ação positiva) a uma pessoa que não agiu para evitá-la, não basta simplesmente constatar que ela poderia ter evitado o resultado com a sua ação (causalidade hipotética). Nem todos podem ser autores de um delito de omissão imprópria, pois “não existe um dever de ajudar em todo momento que seja necessário, cujo descumprimento seja punível”. (JESCHECK, 1996, p. 668). Assim, a equivalência de uma omissão em relação a uma ação pressupõe – além da causalidade hipotética – um “fundamento jurídico especial”, um dever jurídico especificamente dirigido a um determinado sujeito, que o faça responder como garante da evitação do resultado161. Nos crimes omissivos em geral, não há desde logo um vínculo entre conduta e resultado. A estrutura que guia a imputação, nesses casos, nunca é diretamente uma 161 O parágrafo 13, I, do CP alemão define como autor do delito de omissão imprópria aquele que tenha de se “responsabilizar juridicamente” para que o resultado não ocorra. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 240 relação de causalidade. Há, em primeiro lugar, o juízo de causalidade hipotética, mas é principalmente o conteúdo normativo de um dever de ação não-cumprido que determinará a imputação. É sempre uma norma que liga a conduta ao resultado. Nos delitos omissivos próprios, essa norma preceptiva é descrita no próprio tipo penal. É exatamente porque isso não acontece no caso dos delitos comissivos por omissão (que se utilizam do mesmo tipo de ação para imputar a omissão) que há um grande debate dogmático sobre a definição desses deveres de ação. 162 Pode-se dizer que a doutrina chegou, majoritariamente, a um acordo em relação à seguinte formulação: atribui-se o resultado a uma omissão (imprópria) a partir de um nexo de causalidade hipotético (não se poderá falar em certeza, nem em exame com base em curso real) de que, com a execução da ação omitida, o resultado teria sido evitado com uma probabilidade muito próxima da certeza. (JESCHECK, 1996, p. 656 e 667). Assim, definiu-se o primeiro requisito da evitabilidade. 163 O problema maior ainda estaria por conta da definição dos deveres dos garantes (segundo requisito). A construção dogmática tradicional apóia-se no reconhecimento de causas que originam deveres jurídicos e reconhece como tais: a lei, o contrato e o atuar precedente perigoso ou ingerência (acrescentando-se posteriormente o dever derivado das “estreitas relações de vida”)164. 162 Desde o início da sua formulação dogmática, a fraca definição sobre as circunstâncias que ligam uma omissão a um resultado e que atuam na definição das posições de garante foi marca permanente dos delitos de omissão imprópria. Jescheck chega a afirmar que esses delitos trouxeram uma debilitação do mandato de certeza do Direito. (JESCHECK, 1996, p. 656) Os critérios de imputação a esses tipos foram objeto de contínua discussão e elaboração pela dogmática penal, além de sucessivos esforços tanto do legislador quanto da jurisprudência. As tentativas de lhe dar concretude, entretanto, nunca resultaram plenamente satisfatórias, ainda que se tenha chegado a fórmulas dogmáticas relativamente estáveis. 163 Sob o ponto de vista da imputação objetiva, a teoria tradicional exige ainda que se estabeleça o vinculo da causalidade hipotética. Ou seja, a idéia de que uma ação positiva dos administradores teria evitado o dano. Como se trata de uma pergunta bastante difícil de se responder, ela tende a ser respondida com base em um juízo de razoabilidade. O que, ao final de contas, não deixa de ser uma mera suposição. E isso significa, em suma, que a imputação objetiva se dá fundamentalmente pela violação de um dever típico do cargo ou função, que ganha status penal nos crimes de resultado na medida em que se produz o resultado típico. Para que não se tratasse de responsabilidade objetiva, haveria que se requerer, no campo da responsabilidade subjetiva, pelo menos uma omissão por imprudência, ou seja, a previsibilidade que a omissão possa aumentar o risco a bens jurídicos. 164 Essa enumeração foi reformulada por Armin Kaufmann, que criticou esses critérios por não oferecer nenhuma fundamentação de conteúdo para o reconhecimento dos deveres de garante. Ele passa então a distinguir entre deveres de garante que desenvolvem uma proteção ao bem jurídico determinado (esses deveres de custódia podem ser de diferentes tipos: vínculo natural, relações estreitas de comunidade, assunção voluntária) e deveres que obrigam o garante à supervisão de uma fonte de perigo (dever de garante derivado de um atuar precedente perigoso, dever de garante para o controle de fontes de perigo e responsabilidade como garante da atuação de terceiros). Discute esses critérios: JESCHECK, 1996, p. 668-677. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 241 No caso de administradores ou órgãos de uma sociedade, está-se diante de papéis regulamentados em relação aos quais a gama de deveres está a princípio definida em lei, estatuto ou contrato. A previsibilidade em relação ao tipo de responsabilidade a que o administrador está sujeito nesses casos depende do tipo de previsão legislativa existente ou do grau de consolidação dos precedentes nos Tribunais. É possível regulamentar a atividade do administrador por meio do estabelecimento de deveres específicos e determinados ou por meio de normas gerais de boa administração. Ou ainda pelo primeiro modelo, complementado pelas normas gerais. Ainda que não se possa antever o momento de aplicação da norma, a possibilidade de o administrador vir a ser responsabilizado por crime omissivo tende a ser melhor definida e circunscrita em sistemas em que a atividade do administrador está regida por normas mais específicas. Normas gerais que estabelecem deveres de zelar pela boa administração ou bom funcionamento da empresa, a menos que se tenha uma jurisprudência consolidada a esse respeito, tendem a dar menos previsibilidade à atividade do administrador e sua condição de garante. Dessa forma, a definição do âmbito de imputação penal, nesses casos, depende da combinação entre estratégia legislativa e consolidação do âmbito de responsabilidade dos administradores pelos tribunais. No Brasil, a configuração da responsabilidade societária está disposta de modo fragmentário, mas podem-se indicar como principais dois diplomas legais: a Lei n.º 6.404/76, que dispõe sobre sociedades por ações e o Código Civil, que regula os demais tipos societários, em especial, a sociedade limitada. A par de algumas previsões específicas, encontramos nesses diplomas normas gerais de diligência. 165 Os administradores de sociedades por ações, tanto os membros do Conselho de Administração quanto os da Diretoria, têm de observar os deveres de diligência (Lei n.º 6.404/76, art. 153), de lealdade (art. 155) e de informação e confidencialidade (art. 157). Ademais, respondem se agirem em conflito de interesses (art. 156 e 254), com violação à lei ou ao estatuto ou se, dentro das suas atribuições ou poderes, atuarem com culpa ou dolo, causando prejuízos à companhia (art. 158). 165 Para uma descrição mais detalhada dessa regulamentação, bem como de sua aplicação pelos Tribunais superiores, cf. MACHADO e MÜLLER, 2009 (prelo). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 242 Quanto aos administradores das sociedades limitadas, também se aplica no que couber o regime jurídico incidente aos administradores de sociedades por ações. O Código Civil dispõe que o administrador deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus negócios (CC, art. 1011) e responde por perdas e danos decorrentes de atos praticados em discordância com a maioria dos sócios (CC, art. 1013, §2º.). Como regra geral, os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e terceiros prejudicados quando desempenha as suas funções com culpa (CC, art. 1.016). Diante da abrangência de tais deveres gerais de diligência, é possível pensar que a possibilidade de imputação de responsabilidade ao administrador de sociedades é bastante ampla: ele será responsabilizado por qualquer conduta ativa de funcionários no âmbito da pessoa jurídica, sempre que se puder demonstrar que poderia ter agido com mais diligência na evitação desse resultado. Não bastasse isso, há ainda no âmbito dos delitos comissivos por omissão uma figura que também pode trazer problemas delicados sob o ponto de vista da indeterminação do preceito: é a do garante com base na ingerência. Para definir o que seja o garante por ingerência, é preciso olhar para as características do comportamento anterior; como ele deve se apresentar para ter como conseqüência a criação de deveres de ação. Há, na doutrina, distintas possibilidades de definição da ingerência: uma conduta que simplesmente cria um perigo maior que o habitual ou uma conduta que cria um perigo e ocorre mediante a infração de um dever jurídico relevante. A primeira definição, mais corrente, é a que traria mais problemas, pois a posição do garante deriva simplesmente de um atuar precedente considerado perigoso. Isto é, não se exige que esse comportamento anterior seja também contrário a um dever, ainda que culposamente. A conduta anterior deveria simplesmente caracterizar-se como uma atuação perigosa ao bem-jurídico, ainda que desenvolvida mediante atividade lícita. E muitas vezes é justamente essa relação de causalidade entre o comportamento anterior e a realização do risco que pode ficar pouco clara e gerar incerteza para a atividade do empresário. Situações problemáticas envolvendo a falta de clareza sobre as conseqüências do comportamento realizado anteriormente deram-se especialmente em casos envolvendo responsabilidade pelo produto (MACHADO, 2007). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 243 Esse foi o caso – que ficou bastante famoso na Alemanha como leading case da responsabilidade pelo produto – da imputação de responsabilidade aos diretores da fábrica pelos danos à saúde atribuídos ao spray para limpeza de couros Lederspray. Os diretores da fábrica foram condenados pelas lesões à saúde de consumidores, em omissão imprópria por ingerência, por não terem retirado o produto defeituoso de circulação (apenas suspenderam a distribuição futura). O BGH entendeu que eles ocupavam a posição de garantes, que decorreria automaticamente dos riscos de sua própria atividade, sem pressupor infração de dever; mais especificamente, dos riscos inerentes ao produto que comercializavam. O BGH considerou comportamento prévio perigoso (ingerência) o exercício da própria atividade empresarial, tida pelo Tribunal como arriscada em si. 166 A mera condição de diretores de uma sociedade que fabricava um produto que se mostrou – posteriormente – um foco de perigo foi suficiente para exigir deles que tivessem feito tudo o que estava a seu alcance para que não incrementassem objetivamente os perigos da vida cotidiana, sob pena de responsabilização criminal da omissão. Não era necessário que essa conduta tivesse envolvido a violação de deveres específicos, bastando o primeiro critério de periculosidade. De qualquer forma, exigiu-se deles que tivessem se comportado como garantes, o que significa dizer: que tivessem tomado medidas mais incisivas para reverter o possível dano iniciado à saúde dos consumidores. A controvérsia em relação ao caso em questão é agravada, ainda, na medida em que não era clara desde o início a condição perigosa do produto nem da atividade. Isso determinou também falta de clareza em relação à situação de garante que seria atribuída aos diretores e aos deveres que lhes seriam exigidos a esse título. Situações como esta, contudo, nos parece cada vez mais prováveis de acontecer, especialmente quando se trata de ramos de atividade que envolvam forte uso de tecnologia. 166 “La conduta previa de los cuatro acusados que originó el peligro consistió em que, como directivos de las empresas, introdujeron em el mercado los sprays cuyo uso normal podía causar daños en la salud de los usuarios. Que se trataba de productos peligrosos para la salud (...) se deduce de las consideraciones que han sido realizadas con la prueba de la relación de causalidsad entre el uso del spray y la producción de los daños (....) Y tampoco es admisible el argumento del recurrente de que la impresión de la peligrosidad del spray en todo caso sólo se confirmó después de la reunión de los directivos y que sólo la distribuiciónn posterior a esse momento o el mantenimiento del producto en el mercado es lo que puede parecer ‘contrario al deber’. La contrariedad a deber objetiva de la conduta previa no requiere que el agente infrinja ya sus deberes de cuidado y que se haya comportado, por tanto, de modo imprudente (...) Es suficiente com la desaprobación jurídica del resultado peligro” (BGH, 117/118 – tradução HASSEMER, MUNOZ CONDE, 1995). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 244 Seguindo essa forma de configurar a ingerência, o que se tem é o estabelecimento de uma responsabilidade especial ou um dever geral daqueles que ocupam órgãos diretivos da empresa de excluir todos os perigos derivados da exploração do negocio, da configuração da empresa e de seu procedimento produtivo167. Encontramos na doutrina alemã uma série de posições que, no mesmo sentido da decisão do BGH, defendem a colocação do garante com base na ingerência e a fundamenta no reconhecimento da função de mando inerente ao cargo de administradores (cf. HERZBERG, 1972, p 321). Ou seja, a posição de garante se apoiaria no estabelecimento de uma relação de trabalho fática e limitada no espaço pelo empresário e nas relações de autoridade. 168 No mesmo sentido, BOTTKE (1996, p. 142) defende que todo dever de garante pressupõe como “momento real” para sua fundamentação, ao lado do momento normativo, uma organização fática de um círculo vital do garante. Esse tipo de solução, como argumenta Frisch, seria o mais justo, pois teria como fundamento a submissão do âmbito de responsabilidade ao espaço de liberdade previamente existente169. O componente fático da responsabilidade do órgão no âmbito 167 Para uma análise mais detalhada desse caso, cf. MACHADO, 2007. 168 São por causa das relações de autoridade que a comunidade pode confiar no controle de pessoas perigosas pelos superiores (LK-JESCHECK, 1985, § 13, n. 45); cf. NOLL, 1972, p. 20 e ss. para quem, a responsabilidade justifica a competência, a competência justifica a responsabilidade; também LAMPE é a favor de um dever de garante geral dos superiores, (cf. LAMPE, 1976, p 48). Há proposta de basear a posição de garante para evitar delitos nas faculdades de mando, no domínio sobre a causa do resultado – domínio da organização sobre pessoas perigosas (RUDOLPHI, 1992). BOTTKE critica essa posição: não é possível fundamentar no ser (do exercício do poder de mando) o dever de paralisar perigos (p. 135). Sobre as posições heterogêneas acerca do fundamento da posição de garante, v. BOTTKE 1996, p. 132 ss. A posição de Jakobs restringe o fundamento da posição de garantes a deveres: os deveres de garante devem ser fundamentado na responsabilidade em virtude de uma competência institucional. Ou seja, a possível posição de garante dos administradores ou titulares e deveria estar fundamentada em seus deveres em virtude da competência de organização. (JAKOBS, 1991, p. 29/26 e ss. 29 e ss.). 169 “el auténtico fundamento normativo de la posición de garante estriba en la ponderación de intereses. Dicha ponderación pretende responder a la pregunta acerca de quién es especialmente competente, de acuerdo con los princípios de distribución adecuada de libertades y de cargas (y aparte de lo que constituya deberes de solidadriedad general), para evitar que se produzcan determinados cursos causales peligrosos para bienes jurídicos de terceros. El caso más simple de dicha responsabilidad especial es el de la competência atribuída para excluir los peligros que pudieran derivarse de la própria actuación: quién ejerce la libertad de configurar su conducta de forma autônoma y excluyendo la intromisión de terceras personas debe, a cambio, preocuparse de que su acción no implique peligros. Esta no es solo la solución más simple y oportuna desde el punto de vista de los bienes jurídicas (puesto que el sujeto actuante es quien mejor puede conocer y suavizar el potencial de peligro inherente a sua acción), sino que, sobre todo, se trata de la distribuición de cargas más adecuada y justa: no se pueden ejercer las libertades (y las ventajas que resultan de las mismas) y esperar que sean los terceros quienes se preocupen de reducir las posibles dificultades que dicho ejercício de las libertades pueda causar (FRISCH, 1996, p. 112-113). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 245 das omissões negligentes parece ser, neste ponto, o componente ligado à garantia da culpa penal, pois evita a imputação de responsabilidade a órgãos ou diretores que não tenham tido conhecimento da situação fática e possibilidade de atuar. Em suma, a colocação do administrador na posição de garante é, como se vê, um tema bastante controvertido e da maior importância, sendo que deles muitas questões problemáticas podem ser levantadas. Em primeiro lugar, nos parece problemática a falta de clareza em relação aos deveres de cuidado do administrador e conseqüentemente quanto à possibilidade de virem a ser imputados por crimes, na modalidade omissiva, por condutas praticadas por terceiros. Zuñiga Rodriguez chama justamente a atenção para o problema da falta de consenso na doutrina em relação aos critérios que devem ser utilizados para definir a posição de garante e suas conseqüências que, no limite, atingem o princípio da culpabilidade: “se corre el riesgo de ‘flexibilizar’ los conceptos de la omisión para resolver supuestos complejos en los que el peso está en la salvaguarda del deber jurídico, convirtiendo la norma penal en un mero delito de infracción del deber’ (Pflichtsdelikte) extra-penal. No existe consenso en la doctrina penal en donde recae la posición de garante, en el titular, en los directivos, en los administradores, en los asesores, etc.., por lo que imputar responsabilidad en este campo puede conculcar el principio de culpabilidad que tanto se pretende salvaguardar” (ZUÑIGA RODRIGUEZ, p. 187 e 188). Em segundo lugar, para além da idéia de incerteza com relação ao âmbito de aplicação do tipo, percebemos que prever deveres de diligência gerais aproximam, em muito, essa forma de imputação da chamada “responsabilidade objetiva”170. É preciso atentar para a seriedade dessa decisão. A criação de tipos comissivos por omissão, ainda mais em sua modalidade culposa, tem impactos significativos sobre a liberdade do indivíduo, pois não se trata de imputar responsabilidade penal apenas no caso em que o administrador de alguma forma deu pessoalmente causa a um resultado lesivo, mas também quando não evitou a realização do resultado. Afinal, deve-se notar que um excesso de imputação nesse sentido poderia sobrecarregar o administrador e 170 Neste sentido, Schüneman critica essa forma de imputação, afirmando se tratar de mera transposição das figuras da responsabilidade civil para o âmbito do Direito Penal. Ou seja, tratar-se-ia de sancionar com penas criminais a violação de deveres de cuidado estabelecidos no âmbito civil (SCHÜNEMANN, 2002, p 141). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 246 possivelmente tornar demasiado pesado o fardo que acompanha o exercício de funções no âmbito da empresa171. No Brasil, este tema foi raramente abordado pela dogmática e também não existe qualquer estudo que revele como os nossos Tribunais vêem aplicando tal instituto. Uma discussão mais profunda sobre esse instituto se faz necessária e deveria incluir a rediscussão da determinação da Parte Geral do Direito brasileiro, que prevê a posição de garante por ingerência, sem qualquer definição acerca do critério para definir a ingerência, desafiando, assim, o mandato de determinação do direito penal e afetando a segurança jurídica. 2.2 Autoria mediata em virtude do domínio da organização Outra possibilidade dogmática, defendida por uma corrente de autores172, pretende fundamentar a atribuição de responsabilidade ao administrador ou membro de órgão na empresa por atos cometidos por seus subordinados pela via da reinterpretação do conceito de autoria. A discussão sob essa chave não pressupõe apenas imputar administradores e órgãos por omissão, mas imputar a título de co-autores (em delitos comissivos e omissivos). A partir do conceito tradicional de autoria, que considera autor aquele que participa dos atos executórios, seria impossível cogitar a co-autoria em boa parte dos casos envolvendo crimes empresariais, pois é comum que administradores e membros de órgãos diretivos não executem diretamente os atos descritos pelo tipo penal. Diante disso, muitos autores passam a sugerir uma reformulação das bases tradicionais do conceito de autoria, de forma a aplicá-lo também a casos de criminalidade organizada. A tentativa de resolver este problema de imputação de responsabilidade dentro da empresa por meio do próprio conceito de autoria utiliza principalmente a figura da autoria mediata. Desenvolvida primeiramente por Claus Roxin para tratar de casos 171 A decisão sobre o Habeas Corpus n° 83.554/PR, relatada em 15/08/2005 pelo Min. Gilmar Mendes, aborda essa questão. Ao julgar ação penal impetrada contra o então diretor da Petrobrás Henri Philippe Reichstul, acusando-o de ser responsável pelos danos causados por um grande vazamento de óleo praticado pela empresa, o Supremo Tribunal Federal sustentou a inviabilidade de imputar a Reichstul a posição de garante de toda a atividade da empresa, responsabilização essa que configuraria “um exagero”. 172 Cf. JESCHECK e WEIGEND, 1996, p. 670; JAKOBS, 1997, p. 750 ss; MUÑOZ CONDE, 1999, p. 157; GRACIA MARTIN, 1993. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 247 envolvendo aparatos organizados de poder173, ela vem sendo utilizada para lidar também com fenômenos ligados à criminalidade empresarial. A partir dessa doutrina, são considerados autores mediatos os ocupantes de altos cargos que dão ordens, não intervindo diretamente na execução do ato, mas, entretanto, dominando sua realização através de um aparato organizado de poder estatal. Seriam também co-autores, neste sentido, não apenas o chefe máximo de uma organização, mas também todo aquele que no âmbito da hierarquia transmite a instrução delitiva com poder de mando autônomo. Ou seja, situações em que é possível a formação de uma cadeia de co-autores, incluindo-se o executor imediato. O critério para diferenciar co-autores e partícipes é o chamado “domínio do fato” (Taterschaft) no âmbito da organização. O denominado “homem de trás” controla o resultado típico por meio da estrutura de poder, sem levar em consideração aqueles que atuam diretamente como executores, que se caracterizam por sua fungibilidade e por sua atuação automática no âmbito da organização. As características dos aparatos organizados de poder seriam, segundo esse esquema, a pluralidade de sujeitos ativos, a estrutura organizada hierarquicamente com divisão de trabalho, o mecanismo funcional da organização, que funciona de maneira automática, a fungibilidade do executor e que o aparato esteja à margem da lei.174 Alguns autores defendem que esse mesmo esquema pode ser aplicado à estrutura e ao funcionamento interno de uma empresa, ainda que a empresa não cumpra o último requisito da ilegalidade, na medida em que é uma organização formalizada pelo Direito.175 Afirma-se que os delitos praticados no âmbito de empresas compartilhariam, no essencial, das características que permitiriam o reconhecimento da autoria mediata: há ações que envolvem um grande número de sujeitos, que graças ao pertencimento ao grupo sentem-se em geral respaldados para adotar condutas de maior risco; há indeterminação dos sujeitos passivos; há complexidade no nexo causal, em razão da complexidade da organização e dos seus processos, da divisão do trabalho e da fragmentação das decisões; há distribuição de funções geralmente vertical dentro da 173 Roxin desenvolveu tal teria em 1963, quando procurou tratar do famoso caso Eichmann, na Alemanha. 174 Cf. MUÑOZ CONDE, 2000, p. 104ss e CEBALLOS, 2002, p. 65. Há uma disputa doutrinária sobre a imprescindibilidade desses critérios para a imputação do autor mediato. Assim, ROTSCH considera que a fungibilidade não é imprescindível (cf. ROTSCH, 1998, p. 492). AMBOS considera que não é imprescindível que o aparato organizado de poder esteja à margem do ordenamento jurídico. Ver AMBOS, 1998, p. 50. Esses dois autores, entretanto, por outras razões são críticos à aplicação da teoria de Roxin a empresas. 175 Nesse sentido SCHÜNEMANN, 1979, p. 102 e SILVIA SÁNCHEZ, 1997, p. 40; SILVIA SÁNCHEZ, 1995, p 368. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 248 empresa e os subordinados são geralmente fungíveis (CEBALLOS, 2002, p. 66-68). A respaldar tal transposição, o próprio Supremo Tribunal alemão, no obter dictum de uma de suas decisões, aplicou esta teoria recentemente176. Entretanto, um setor relevante da doutrina alemã e espanhola, bem como o próprio Roxin, é crítico e faz uma série de restrições à aplicação desse conceito à realidade das empresas. Por exemplo, Rotsch afirma que a teoria de Roxin supõe uma situação de fungibilidade dos executores e de funcionamento automático da organização, o que não estaria presente no caso de empresas. Para Kai Ambos, em empresas organizadas de modo hierárquico, não se poderia pressupor a existência de executores intercambiáveis, no sentido do critério da fungibilidade (AMBOS, 1998, p. 45). Para além desta crítica interna, que nega a possibilidade de transposição desta idéia para a realidade das organizações empresárias, há também quem afirme que o próprio conceito de domínio de fato seja insuficiente. Isso porque ele seria sempre definido de modo naturalista, quer dizer, em termos de aportes naturalísticos no sentido da execução do ato. Entretanto, vão afirmar alguns autores, quando se pensa na realidade que se pretende alcançar, vê-se que a operação da categoria se dá muito mais em termos de definições normativas, ligada à competência do autor. Tratar-se-ia, por isso, de verificar a quem se atribui competência sobre as conseqüências de realização do ilícito (GÓMEZ- JARA DÍEZ, 2006, p. 195 e JAKOBS, 1993, p. 612), abstraindo-se a questão acerca dos aportes naturalistas e das relações psíquicas entre autor e fato. Em outras palavras, esta concepção estaria de acordo com uma visão global da imputação que decorre de decisões normativas sobre os critérios de imputação, tornando-se necessário que se defina normativamente em que condições administradores e órgãos devem ser responsabilizados como co-autores. Não estaríamos, portanto, muito distantes da solução em que abordamos anteriormente, em que se definem normativamente os deveres dos administradores e órgãos da empresa e em que circunstâncias sua omissão é relevante para o Direito Penal. Em outras palavras, quando 176 O Tribunal Supremo alemão chegou a afirmar expressamente no obter dictum de sua decisão no chamado “caso Krenz” que também os problemas ligados à responsabilidade no âmbito da empresa se deixam solucionar por meio a autoria mediata, cg. BGH, 40, p. 237. Interessante notar, entretanto, que o próprio Roxin, ao tratar da responsabilização dos administradores e diretores adota posição distinta, considerando que tais pessoas devem ser responsabilizadas por indutores e não co-autores. (Cf. ROXIN, 2000, p. 682). Há outras opiniões que colocam os administradores em outras posições, como por exemplo a de FRISH, para quem a intervenção do diretor que planeja e dá ordem é meramente acessória, cf. FRISCH, 1996 , p. 108. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 249 se trata de adotar uma postura normativa as distinções entre ação e omissão deixam de ser relevantes. Desse modo, Jakobs, bem como autores que, como ele, defendem a normativização dos critérios da dogmática penal enfrentam menos problemas para solucionar a questão da imputação aos dirigentes a título de autores. A partir deste panorama, percebe-se que a possibilidade de resolver problemas de imputação por meio da ampliação do conceito de autoria vem sendo intensamente discutida na doutrina estrangeira. A princípio, não haveria óbices no sistema brasileiro de reinterpretar o conceito de autoria nesses termos. O debate a esse respeito na doutrina nacional é, entretanto, bastante incipiente. Além disso, não há estudos específicos que indiquem como os nossos Tribunais vêem aplicando o conceito de autoria, o que parece indicar para a necessidade de aprofundar, em vários sentidos, a reflexão acerca das formas de se solucionar o déficit de regulação representado pelas infrações praticadas no âmbito de entes coletivos. 2.3 Cláusula de atuação em lugar de outro No plano da responsabilização individual de administradores, órgãos e representantes surge como questão relevante a imputação em casos de “delitos de mão própria”. Formulação comum no âmbito do direito penal econômico, os crimes próprios exigem (expressa ou implicitamente177) que a ação típica (ou a atuação com domínio do fato) seja realizada por um sujeito específico, alguém que esteja em determinada posição (ex. empresário; o gerente; o administrador, o proprietário etc...). Em outras palavras, nem todo sujeito pode ser considerado autor deste tipo de infração. A situação apontada por problemática pela doutrina que trata dos delitos empresariais refere-se a casos em que tais condutas, formuladas a princípio como crimes próprios, são realizadas (com realização da ação típica ou domínio do fato) no âmbito da empresa, ambiente em que geralmente vigoram sistemas complexos de divisão de tarefas, por pessoas (ou conjunto de pessoas) que não necessariamente ocupam tal posição. Ou seja, a qualidade de sujeito especial não estava presente naquele que se comportou efetivamente como autor (mediato ou imediato). 177 A exigência implícita se dá em casos em que só a partir de determinada posição é possível realizar uma determinada ação. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 250 De outro lado, imputar o sujeito qualificado pelo fato realizado pelo sujeito nãoqualificado seria uma imputação por fato alheio, o que violaria o princípio da culpabilidade. Nesse caso, a solução tradicional determinaria que ninguém fosse imputado (nem por autoria, nem por participação). Ocorreria uma cisão dos elementos do tipo entre os atores e seria, assim, produzida uma lacuna de punibilidade (nas palavras de GRACIA MARTIN, 1995, p. 93). Para enfrentar situações como essas, alguns ordenamentos jurídicos têm positivado regras especiais autorizando a extensão da autoria formal dos delitos próprios àqueles que atuaram no lugar do sujeito qualificado. É o caso da legislação espanhola, que adotou uma disposição geral a esse respeito. O artigo 15 introduzido pela Ley Orgánica de Reforma Parcial y Urgente del Código Penal de 25 de junho de 1983 tem a seguinte redação: “el que actuare como directivo u órgano de una persona jurídica o en representación legal o voluntária de la misma, responderá personalmente, aunque no concurran en él y si en la entidade en cuyo nombre obrare, las condiciones, cualidades o relaciones que la correspondiente figura de delito requiera para poder ser sujeto activo del mismo”. No mesmo sentido, funcionam o parágrafo 14 do Código Penal alemão, o parágrafo 9° da Lei alemã de Contravenções (Ordnungwiedrigkeitsgesetz), bem como o artigo 12 do CP português. Tais dispositivos ampliam a autoria nos delitos próprios, incluindo o representante no rol dos seus possíveis autores. Ao passo que resolve algumas questões, tal ampliação implica, no entanto, no surgimento de novos problemas. Do ponto de vista da solução do caso concreto, tais dispositivos deixam ainda por resolver o problema daquele que atua como administrador, órgão ou representante de fato, circunstância bastante comum no dia a dia das empresas. Nesses casos, a lacuna de punibilidade só seria efetivamente resolvida com a imputação do elemento especial de autoria, não apenas aos que agem formalmente como representantes daqueles que detém a qualidade especial, mas também aos representantes de fato. Surge, assim, uma discussão dogmática importante a esse respeito, a partir das teorias da representação. A jurisprudência e parte importante da doutrina alemã têm aceitado um método de “interpretação fática” dos conceitos de órgão e representante, ou seja, uma interpretação dita “material” dos elementos de autoria. Na doutrina espanhola, Gracia Martin é o autor que destacadamente defende esta posição: quem assumiu a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 251 tarefa de cumprimento de deveres de outros, deveres estes garantidos com pena, se colocou na mesma posição do sujeito idôneo e no caso de infringir tais deveres, terá realizado o mesmo ilícito (GRACIA MARTIN, 1995, p. 98). Tal interpretação fática, no entanto, parece deixar sempre à análise do caso concreto a decisão sobre a autoria e a responsabilidade penal pelo fato, o que implica em aceitar um critério altamente fluido e indeterminado para o processo de imputação. Por este e por outros motivos, questionase a viabilidade de solucionar os problemas regulatórios acima mencionados por meio da idéia de atuar em lugar de outro, o que nos leva à necessidade de refletir sobre um novo parâmetro de responsabilização, não mais estruturado na aferição de atos estritamente individuais para determinação de culpa, mas sim em um padrão coletivo de condutas, com base na admissão da responsabilização penal da própria pessoa jurídica. 3. O DEBATE DOGMÁTICO EM TORNO DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS: A RESISTÊNCIA AO INSTITUTO POR PARTE DA DOUTRINA TRADICIONAL. Do exposto até aqui, percebe-se que as soluções que procuraram dar conta da criminalidade econômica apenas flexibilizando os critérios de imputação individual apresentam sensíveis dificuldades dogmáticas, seja por falta de clareza, seja por implicarem uma determinação casuística quando da aferição de responsabilidade. Para além destas deficiências, tais soluções recebem ainda uma série de críticas em relação à própria conveniência de se responsabilizar individualmente nestes casos. Neste registro, costuma-se, por um lado, criticar a ampliação excessiva da responsabilidade individual e a conseqüente sobrecarga do indivíduo (GÜNTHER, 2000, p. 503), que pode ser observada pelo uso exagerado dos chamados crimes omissivos impróprios. Por outro lado, questiona-se ainda a eficácia preventiva deste padrão individual de responsabilização, dado que, em primeiro lugar, ainda que as pessoas físicas possam suportar a pena (via encarceramento ou outra medida de privação de liberdade), elas geralmente não dispõem de capacidade financeira para responder pelo dano causado por suas condutas. Em segundo lugar, não se pode subestimar a possibilidade de pessoas físicas negociarem junto a outros agentes da empresa mecanismos que a compensem por sua exposição ao risco por prática de crime, criando-se, assim, uma espécie de seguro privado que beneficia o Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 252 agente potencial ligado à pessoa jurídica, desde que lhe seja possível obter da empresa quantia suficiente que compense o risco de ser investigado e condenado. Em suma, há uma larga reflexão crítica acerca da responsabilidade individual no campo dos ilícitos empresariais e, diante dela, vem crescendo em importância propostas que buscam adotar padrões de responsabilização coletiva, da própria pessoa jurídica. Em oposição ao modelo individual, a responsabilização da pessoa jurídica guardaria algumas vantagens, pois faria com que o ente coletivo internalizasse os custos do ilícito, o que poderia ser desejável do ponto de vista da prevenção. Além disso, muitos autores consideram que a pessoa jurídica estaria mais bem posicionada do que o Estado ou as vítimas para evitar que o crime seja cometido ou para identificar os indivíduos responsáveis por sua prática. Não obstante as vantagens apontadas e os diversos argumentos a favor do instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica178, a adoção desse instituto mantém-se como um dos assuntos mais polêmicos da atualidade. Ele trás consigo grandes dificuldades teóricas e, mais ainda, coloca em xeque conceitos tradicionais da teoria do delito, tais como (e especialmente) os conceitos de ação e de culpa. Neste registro, torna-se fundamental a reflexão a respeito de se e de como as categorias da dogmática penal poderiam ser aplicáveis a um modelo coletivo de responsabilização. Isso porque tal possibilidade de aplicação é vista como um requisito básico da própria admissibilidade deste instituto nas ordens jurídicas de cada Estado. A exemplo disso, uma parte da discussão teórica sobre o tema na Alemanha aponta para dois caminhos opostos: de um lado, parte dos autores questiona se as categorias tradicionais de ação e culpa podem servir de parâmetro à análise do comportamento das pessoas jurídicas; de outro lado, parte da doutrina procura sustentar que tais categorias devem ser reformuladas, de forma a que possam ser 178 Aqueles a favor da responsabilização penal da pessoa jurídica chamam atenção para o relevante papel social que tais organizações representam na atualidade, bem como para o crescente aumento do número de casos onde a pessoa jurídica se apresenta como o autor próprio do delito. A possibilidade de uma empresa transferir a punição de si para um ou mais indivíduos que a compõem é fortemente criticada. Mais ainda, costuma-se fazer referência à dificuldade, dados o tamanho e a complexidade de algumas organizações, de se identificar e individualizar as condutas das pessoas naturais que participam do ato delituoso. Por fim, mesmo nos casos em que tais condutas podem ser cuidadosamente individualizadas, é necessário para tanto um longo e demorado procedimento, o que oferece à empresa tempo hábil para evadir as eventuais vantagens patrimoniais aferidas ilicitamente. Neste sentido, ver HIRSCH, 1995, p. 287-288. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 253 aplicadas não apenas às pessoas naturais, mas também às pessoas coletivas. O primeiro caminho pressupõe os critérios dogmáticos desenvolvidos pela escola finalista179 de Direito Penal. No que concerne à ação, esta escola a define ontologicamente, como uma “alteração do mundo exterior, condicionada pela vontade de um ser consciente e direcionada a um determinado fim”. Por sua vez, no que tange à noção de culpa, define-se esta a partir de critérios psicológicos, afirmando-se que a atribuição de culpa consiste em “uma objeção levantada a uma pessoa que voluntariamente decidiu-se por um comportamento ilícito, apesar de ter o dever de se comportar conforme o Direito”. A análise da responsabilidade penal de pessoas jurídicas a partir desta perspectiva, que parte das categorias tradicionais de ação e culpa para analisar o comportamento dos entes coletivos, acaba sendo infrutífera. Isso porque, a partir de uma concepção ontológica de delito, tudo o que se toma como comportamento do ente coletivo é, na verdade, uma ação de um ou mais homens que o compõem, na medida em que apenas pessoas naturais se encontram em condições de decidir livre e conscientemente a favor ou contra o Direito. Por esta razão, pensar nas possibilidades dogmáticas de processamento da responsabilidade penal da pessoa jurídica é algo que vem sendo perseguido, fundamentalmente, por outro caminho, a nosso ver mais frutífero. Como veremos mais adiante, este caminho consiste em modificar as categorias de ação e de culpa180 de tal forma que toda ação tomada em nome da pessoa jurídica passe a ser 179 A Escola Finalista, desenvolvida fundamentalmente por Hans Welzel, pode ser considerada a principal escola de Direito Penal no século XX. Para tal escola, que encontra grande aceitação até os dias de hoje, trata-se de perceber que a regulação jurídica da vida em sociedade está determinada por categorias a priori, isto é, que determinadas estruturas humanas definem necessariamente a forma pela qual uma conduta poderá ser juridicamente avaliada e regulada. Assim, exemplarmente, Hans Welzel vai afirmar que o conceito jurídico-penal de Ação não pode prescindir do fato de que todo agir humano é um agir orientado finalisticamente, ou seja, um comportamento dotado de sentido e de uma orientação final. Quando se transpõe esta premissa para a análise da possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas, torna-se necessário, segundo os finalistas, “perceber que os modos de organização e o processo de atividades reais das pessoas jurídicas constituem para a regulação jurídica dados previamente estabelecidos (...), no sentido de que os elementos estruturais de tal realidade previamente dada traçam, por si só, limites à possibilidade de sua valoração e, portanto, ao estabelecimento de possíveis conseqüências jurídicas”. Cf. GRACIA MARTÍN, 1996, p. 38. 180 Em sua maioria, as tentativas de reformulação dos conceitos da teoria do delito procedem um processo de funcionalização e de desmaterialização de categorias como ação e culpa. Por funcionalização e desmaterialização entende-se, em linhas gerais, o processo pelo qual estas categorias deixam de ser tomadas como categorias regidas por leis naturais (por exemplo: causa-efeito) e psíquicas (por exemplo: dolo), para então serem tomadas normativamente por sua função e significado sociais. Esta visão – também chamada de “funcionalismo radical” – foi desenvolvida pelo penalista Günther Jakobs, que é Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 254 concebida como ação própria do ente coletivo, e que a sua responsabilização possa ser fundada em uma culpa própria da organização, diferente da culpa de seus membros (TIEDEMANN, 1998, p. 1172). 3.1 Sobre a capacidade de ação (em sentido jurídico-penal) das pessoas jurídicas. Tradicionalmente concebe-se a ação - enquanto base elementar da teoria do delito - de forma estritamente ligada às leis naturais. Inicialmente, tal conceito pressupunha apenas e tão-somente a existência de um nexo causal, e desta forma servia para afastar da imputação penal aqueles fatos que não podem ser vistos como causa de um resultado de alteração no mundo exterior. Em um segundo momento, percebe-se as dificuldades que tal formulação enfrenta para explicar fenômenos como a tentativa e os crimes de perigo; por essa razão, introduz-se à exigência de prova de um nexo causal também a verificação da finalidade do autor, isto é, se o comportamento delituoso foi provocado por um agir finalisticamente orientado ao ilícito (WELZEL, 1969, p. 33)181. Partindo-se desta fórmula de ação, na qual tanto o nexo causal empiricamente verificável quanto a orientação ou finalidade da ação são de suma importância, é praticamente impossível conceber uma regulação penal sobre o comportamento das pessoas jurídicas. Isso porque esta formulação parte de uma perspectiva ontológica, centrada no ser humano enquanto pessoa natural e, portanto, não pode aceitar uma coletividade dando origem a um nexo causal e, assim, alterando o mundo exterior a partir de seu próprio comportamento. Mais ainda, tal perspectiva acaba por não conceber que uma pessoa jurídica possa orientar seu agir finalisticamente, pois não seria ela que tomaria as decisões de tomado como base para todos que, no debate sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica, pretendem re-descrever a compreensão do que se entende por “pessoa”. Nestes termos, o autor chegou a afirmar em seu Tratado: “Não se pode aceitar a idéia de que a definição de Sujeito com que trabalha a dogmática penal pressuponha sempre ingredientes extraídos das pessoas naturais (como corpo e psique), mas nunca extraídos das pessoas jurídicas (como constituição e membros). Pelo contrário, também estes podem ser definidos como um Sistema imputável”. Cf. JAKOBS, Günther. Strafrecht – Allgemeiner Teil. Berlim, Walter de Gruyter, 1993. Pág. 149. Por estas e outras formulações, parece contraditória a posição que o próprio Jakobs desenvolve anos mais tarde (JAKOBS, 2002, p. 570) negando a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica. Esta contradição é indicada, pro exemplo, em ALVARADO, 2007, p. 426. 181 Neste sentido, Welzel vai afirmar que “a ação deve ser definida como exercício da atividade finalista e a omissão como a não-realização de uma ação finalista”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 255 seguir determinados fins, mas sim seus membros (GRACIA MARTÍN, 1996, p. 4041)182. Apenas estes seriam capazes de, finalisticamente, dar origem a um nexo causal e, assim, de criar alterações no mundo exterior capazes de violar bens jurídicos relevantes. Vista nestes termos, a conduta (ação ou omissão), pedra angular da teoria do crime, seria produto exclusivo do homem e a capacidade de ação exigiria a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual. A partir desta perspectiva, portanto, costuma-se negar às pessoas jurídicas capacidade de ação em sentido penal e, conseqüentemente, possibilidade de estas serem penalmente responsabilizadas (JESCHECK, 1988, p. 204) (ROXIN, 1992, p. 154) (MUÑOZ CONDE, 1989, p. 276). Esta conclusão, no entanto, não deve ser encarada como necessária, na medida em que vale apenas e tão-somente se partimos do pressuposto de que a dogmática penal deve sempre construir seus conceitos com base nos princípios das ciências naturais e de fundamento ontológico, como é o caso do conceito de causa e de finalidade da ação. Partindo de uma perspectiva normativa, segundo a qual o delito não é um fenômeno meramente físico-natural, mas sim um constructo humano que apenas se dá em sociedade183, então podemos admitir que a responsabilização de uma pessoa não pressupõe necessariamente a existência de um nexo causal ou a comprovação da orientação psicológica de uma ação humana. A partir da normativização da teoria do delito, percebe-se que o que torna um comportamento relevante para o Direito Penal não é apenas o fato de ser aquele 182 Segundo Gracia Martín, “às pessoas jurídicas faltam a consciência e a vontade em sentido psicológico, e com isso a capacidade de autodeterminação”. Mais ainda, afirma que, “no caso das pessoas jurídicas, sujeito de imputação e sujeito da ação não coincidem, pois elas só podem atuar através de seus órgãos e representantes, isto é, de pessoas físicas (sujeitos da ação) (...) O elemento portador da possibilidade de responsabilização penal é sempre e apenas o exercício da vontade, bem como o seu processo de formação”. 183 “Em sua maioria, as tentativas de reformulação dos conceitos da teoria do delito procedem a uma funcionalização e desmaterialização de categorias como ação e culpa. Por funcionalização e desmaterialização entende-se, em linhas gerais, o processo pelo qual estas categorias deixam de ser tomadas como categorias regidas por leis naturais (por exemplo: causa-efeito) e psíquicas (por exemplo: dolo), para então serem tomadas normativamente por sua função e significado sociais. Esta visão – também chamada de “funcionalismo radical” – foi desenvolvida pelo penalista Günther Jakobs, que é tomado como base para todos que, no debate sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica, pretendem re-descrever a compreensão do que se entende por “pessoa”. Nestes termos, o autor chegou a afirmar em seu Tratado: “Não se pode aceitar a idéia de que a definição de Sujeito com que trabalha a dogmática penal pressuponha sempre ingredientes extraídos das pessoas naturais (como corpo e psique), mas nunca extraídos das pessoas jurídicas (como constituição e membros). Pelo contrário, também estes podem ser definidos como um sistema imputável”. Cf. JAKOBS, 1993, p. 149. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 256 causa de um resultado ilícito, nem de ser tal ação orientada finalisticamente, mas sim o fato de tal comportamento representar a violação de um dever jurídico. Se assim não o fosse, um boxeador que fere seu oponente em uma luta ou um cirurgião plástico que opera uma paciente deveriam ser imputados por lesão corporal. Se isso não ocorre é porque, no âmbito de seus papéis sociais, eles não estão, a partir destes comportamentos, violando quaisquer de seus deveres e, conseqüentemente, não podem ser responsabilizados. O que interessa ao Direito Penal, portanto, são apenas os comportamentos que podem ser interpretados como violações de deveres condensados em normas penais. Esta nova perspectiva deixa claro que a “humanidade” não é a característica essencial que define um ente como autor de um delito. Para se cometer um crime, é necessário que tenha se realizado uma violação de um dever pertencente a um determinado âmbito de atividade social. Portanto, quando se avaliam os pressupostos de processo de imputação penal, deve-se levar em conta não o fato de o autor ser um ser humano (capaz de dar início a um nexo causal e de orientar sua psique em vista de um resultado ilícito), mas sim o rol de deveres sob responsabilidade de um ente, cuja violação é o verdadeiro objeto da regulação penal. Nessa perspectiva, o Direito não trabalha com um conceito ontológico, mas sim com um conceito normativo de pessoa, como portadora de direitos e deveres (KELSEN, 1960, p. 160), que deve ser capaz de organizá-los e defini-los conforme as regras contingentes de uma dada sociedade. O status de pessoa, nestes termos, apenas pode ser definido e modulado dentro do sistema social. A punibilidade por omissão mostra-se como exemplo claro de que o Direito Penal não se interessa simplesmente por comportamentos que iniciam um nexo causal e culminam em um resultado ilícito, mas sim, e principalmente, por fenômenos que representam a violação de um dever por parte de uma pessoa. Nos delitos omissivos, evidencia-se o fato de que o delito deve ser compreendido normativamente, enquanto violação das normas penais. A partir destas considerações, percebe-se que o conceito penal de ação não precisa necessariamente ser compreendido como comportamento que dá início a um nexo causal e psicologicamente orientado a um determinado fim. Pelo contrário, a ação pode ser entendida simplesmente como o comportamento Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 257 realizado por um portador de direitos e deveres socialmente determinados (“pessoa”). Assim sendo, não apenas as pessoas naturais (seres humanos) seriam capazes de agir em sentido penal. Na medida em que também as pessoas jurídicas são “seres sociais”, às quais direitos e deveres são atribuídos e que são correntemente tratadas como portadoras de papeis sociais, pode-se afirmar que, segundo tal perspectiva, quando uma associação viola um dever com a poluição das águas de uma reserva, ela está, de fato, agindo. Ao violar as normas de proteção ao meio-ambiente, a pessoa jurídica passa a ser objetivamente imputável. Contra esta concepção costuma-se argumentar que não são as pessoas jurídicas, mas sim seus membros que realizam de fato o comportamento delitivo e, portanto, apenas estes últimos devem ser tomados como responsáveis. Com essa argumentação, que parte de bases ontológicas para afirmar que apenas pessoas naturais podem realizar qualquer comportamento, pretende-se combater a formulação de um conceito de ação próprio à pessoa jurídica, independente de seus membros. 184 No entanto, esse argumento só tem força se for aceito o conceito de ação como alteração no mundo exterior finalisticamente orientada. Ao compreender comunicativamente o mecanismo do processo de imputação penal, parte da doutrina alemã tem afirmado a possibilidade de se responsabilizar penalmente uma pessoa jurídica. Isso significa aceitar uma nova fórmula para o conceito geral de ação, para o qual também pessoas jurídicas podem ser tomadas como autores de um delito, reconhecimento este derivado da existência comunicativa de uma “ação complexa”, diferente das contribuições parciais de cada indivíduo que participou do nexo causal do crime imputado. A avaliação de um comportamento como delitivo, portanto, não depende de critérios ontológicos, mas sim do sentido social que se atribui para um fenômeno que se apresenta como violação de um dever normativo. Partindo destes novos termos, torna-se possível sustentar, dogmaticamente, que também uma pessoa jurídica pode ser sujeita à imputação penal, na medida em que também ela pode ser tomada como portadora de direitos e deveres e que a ela pode ser atribuída a responsabilidade pelo complexo de ações de seus membros, cujo significado 184 Tentativas de formulação de um conceito de ação próprio às pessoas jurídicas podem ser verificadas, guardadas as diferenças pontuais entre cada proposta, em EHRHARDT, 1994, p. 239; HIRSCH, 1995, 289; TIEDEMANN, 1998, 1172; HEINE, 1996, p. 211. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 258 normativo-social condensa-se em uma “ação” violadora de um rol de deveres. 3.2 Sobre a capacidade de culpa das pessoas jurídicas A capacidade de culpa dos entes coletivos também é um tema polêmico no âmbito dogmático e tem importância fundamental quando da reflexão acerca dos fundamentos da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ainda que se aceite que a responsabilidade penal coletiva é uma boa solução institucional para lidar com a criminalidade praticada no âmbito das pessoas jurídicas, torna-se indispensável definir como atribuir tal responsabilidade. Da mesma forma que a criação de um conceito “normativo” de ação levanta a necessidade de se determinar em que circunstâncias o ato de um ou vários indivíduos deve ser considerados como ação de uma pessoa jurídica, a possibilidade de pensar em uma capacidade de culpa dos entes coletivos aponta para a necessidade de se determinar como se devem apurar os elementos que irão embasar a culpabilidade em relação aos atos das pessoas jurídicas e demais coletividades. Um dos possíveis fundamentos para imputar a pessoa jurídica pode ser visto na idéia de responsabilidade por fato de outrem, cujas origens remontam ao Direito civil. Em termos esquemáticos, pode-se dizer que, segundo este modelo, para que a empresa possa ser responsabilizada por atos de seus empregados, seria necessário observar fundamentalmente três requisitos. Em primeiro lugar, deve-se verificar, logicamente, que houve um crime cometido por um empregado da empresa. Em segundo lugar, a ação deve ocorrer no exercício de sua função, sendo que uma ação fora deste quadro não poderia ser tomada como sendo de responsabilidade do ente coletivo. Finalmente, deve haver o propósito de agir em favor da empresa, sendo irrelevante a existência do propósito de favorecimento de si próprio ou de terceiros, bem como a questão sobre se tal favorecimento de fato ocorreu (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 547 – 548). Desenhada desta forma, a responsabilidade penal do ente coletivo torna-se absolutamente dependente da responsabilidade penal da pessoa física que cometeu o ato, de modo que ele vem a responder penalmente mesmo que o subordinado não Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 259 tenha permissão para agir ou ainda tenha contrariado uma proibição expressa nesse sentido, escusando-se, em contrapartida, quando a pessoa física não se fizer punível (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 542-543). Trata-se, portanto, de um modelo que leva em consideração, tanto para a atribuição da conduta à pessoa jurídica, quanto para apuração de culpabilidade apenas o indivíduo (partindo, assim, da conjugação de um modelo de ação individual com um modelo de culpabilidade individual). Por ser fundado na atuação individual, este sistema trás consigo uma série de dificuldades. Segundo Günther Heine, tal modelo teria utilidade somente no âmbito de empresas de pequeno porte, mostrando-se insuficiente quando se tem em consideração a complexidade atual da organização empresarial, que não permite a identificação da pessoa física responsável, nem dos representantes hierarquicamente superiores responsáveis pelo crime (HEINE, 2001, p. 58). Mais ainda, seria possível identificar um efeito colateral de ampliação da responsabilidade das pessoas físicas no Direito penal (já que quanto maior a extensão da responsabilidade do indivíduo, maior a dos entes coletivos), bem como uma equiparação da responsabilidade individual com a coletiva e uma dificuldade em se controlar toda a coletividade por meio do controle da ação de um indivíduo isoladamente (HEINE, 2001, p. 59). Tais dificuldades ficam claras quando analisamos a aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil. Em nosso país, embora a regra geral de responsabilidade penal seja construída com base em um sistema de culpa própria e de imputação individualizada consagrado na Parte Geral do nosso Código Penal185, nos casos em que se admite a responsabilização penal da pessoa jurídica186, vem se partindo claramente de um sistema de responsabilidade por fato 185 Fazendo com que, na maioria das infrações praticadas em âmbitos coletivos, o administrador ou funcionário da pessoa jurídica responda criminalmente apenas em razão de sua própria ação ou omissão (quando a omissão for imputável), e apenas na medida da sua culpabilidade, conforme Arts. 13 e 29 do Código Penal. 186 A Constituição Federal de 1988 trouxe, em dois de seus artigos, disposições relativas à responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos. O art. 173, §5° determina que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”. O art. 225, § 3°, por sua vez, dispõe que “as condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Para regulamentar estes dispositivos, surge em 1998 a Lei nº. 9.605 (mais conhecida como Lei dos Crimes Ambientais), que passa a prever, em nível infraconstitucional, a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em seu art. 3º, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi estabelecida da seguinte Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 260 de outrem. A comprovar esta tese, estudo empírico desenvolvido recentemente em acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores (STF e STJ) julgados entre 2005 e 2007, sobre o tema da responsabilidade de administradores de empresas 187 mostra que a maioria das decisões em matéria penal versa sobre o trancamento de ações penais, tendo predominância as decisões que determinam o encerramento da ação penal com base em falta de prova para autoria ou ausência de individualização da conduta. O entendimento predominante nos Tribunais vem sendo proferido no sentido de que é necessária a imputação do co-réu pessoa física para que se possa processar criminalmente a pessoa jurídica. No âmbito do processo penal esta regra se desdobra na necessidade de que as condutas sejam bem descritas e particularizadas já no momento da dedução de acusação (CPP, art. 41) e, evidentemente, que a condenação seja expressão da verificação da culpa individual do acusado, recebendo este também uma pena determinada a partir de circunstâncias judiciais individualizadoras (CP, art. 59). Disto extrai-se a conclusão de que, por exigir a identificação da pessoa física para figurar como co-réu, o modelo de responsabilidade por fato de outrem cai novamente diante da extrema dificuldade de individualizar condutas e de provar a autoria em âmbitos altamente diferenciados e funcionalmente estruturados. Desta forma como vem sendo entendida a responsabilidade da pessoa jurídica, qual seja, de forma estritamente ligada à culpabilidade de um indivíduo forma: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou no benefício da sua entidade. Parágrafo único: a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”. Nestes termos, a responsabilidade de entes coletivos é atualmente aplicável, portanto, somente a casos envolvendo crimes contra o meio-ambiente. 187 A pesquisa “Responsabilidade dos administradores de sociedades empresariais na jurisprudência do STJ e STF”, coordenada por Marta Machado e Viviane Muller Prado foi desenvolvida com o apoio da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, com o objetivo de verificar a concretização do regime jurídico de responsabilização civil e penal de administradores de sociedades empresariais a partir da análise quantitativa e qualitativa da jurisprudência dos Tribunais Superiores do Brasil – Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). O levantamento jurisprudencial foi realizado com base nos instrumentos de busca disponibilizados nos sites dos Tribunais e seus respectivos bancos de dados, por meio de palavras-chave que fossem capazes de abranger as decisões acerca da responsabilidade dos administradores de empresa, a saber: “responsabilidade e administrado$”, “responsabilidade e gerent$”, “responsabilidade e direto$”, “responsabilidade e conselheir$”, “responsabilidade e gesto$”, “denúncia e administrado$”, “denúncia e gerent$”, “denúncia e direto$”, “denúncia e conselheir$” e “denúncia e gerent$”. O levantamento teve como limite temporal 01.01.05 a 01.04.07. Após a exclusão manual de decisões que não se aplicavam à pesquisa, foram analisados 276 acórdãos, sendo 270 casos julgados pelo STJ e 6 julgados pelo STF. No que diz respeito à matéria, 224 acórdãos versam sobre matéria não penal e 52 acórdãos são de matéria penal. Para informações mais detalhadas, cf. MACHADO, M.; MÜLLER, V.; GANZAROLLI, M.; MARQUES, L. 2009. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 261 que a ela pertence, o modelo de responsabilidade coletivo, tal qual aplicado hoje em nosso país, pouco consegue enfrentar e superar as dificuldades derivadas de um modelo de imputação estritamente individual. Diante destas dificuldades, um outro caminho dogmático, através do qual torna-se possível pensar no fundamento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, é aquele que não depende da apuração de responsabilidade de seus membros mas sim de uma culpa própria dos entes coletivos (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 560). Neste contexto, a possibilidade de se conceber a pessoa jurídica como um ente capaz de culpabilidade torna-se uma discussão fundamental, se o que se pretende é oferecer instrumentos dogmáticos adequados para tratar do déficit de regulação vivenciado hoje frente às infrações praticadas no âmbito de entes coletivos. Tal reflexão sobre a capacidade de culpa da pessoa jurídica, da mesma forma que ocorre com a discussão sobre sua capacidade de ação, também enfrenta obstáculos dogmáticos significativos. Da perspectiva da dogmática tradicional, não apenas a categoria da ação é tida como instransponível aos entes coletivos, sendo que também o conceito de culpabilidade costuma ser usado para negar a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas. A doutrina tradicional toma os entes coletivos como seres sem capacidade de culpa. Apoiada nos dogmas “societas (HUNGRIA/FRAGOSO, 1978, p. 628-631) 188 delinquere non potest” e “nulla poena sine culpa”, afirma- se que o conceito penal de culpa não pode ser aplicado a entes diferentes das pessoas em sentido natural (EHRHARDT, 1994, p. 45). Isso porque, tradicionalmente, a noção de culpa pressupõe a existência de um ente com capacidade de livre auto-determinação moral (freie und sittliche Selbstbestimmung), capacidade esta que apenas seres humanos poderiam ter (GRACIA MARTIN, 1995, p. 66). 188 Já a assertiva de Nelson Hungria e Heleno Fragoso expressavam este entendimento tradicional. Neste sentido, a emblemática assertiva de Hungria-Fragoso de que “no direito brasileiro, o princípio ‘societas delinquere non potest’ é regra absoluta”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 262 No entanto, tal forma de considerar o conceito de culpa vem sendo criticada por muitos autores, que procuram reformular este conceito, colocando-o em termos normativos. Tal perspectiva levanta a objeção de que, em muitos casos, também os entes coletivos são considerados portadores de direitos e deveres, deveres estes que, se violados, têm por conseqüência a atribuição de sanções. Segundo essa perspectiva normativa, a atribuição de culpa a um sujeito deve ser sempre analisada a partir da conformação contingente de uma dada sociedade, composta de portadores de direitos e deveres. Nestes termos, a característica fundamental de uma pessoa não é o seu status de ser humano, mas sim o fato de esta pertencer a uma sociedade que depende de normas que atribuem direitos e deveres a seus membros. É esta atribuição de direitos e deveres, portanto, que caracteriza uma pessoa no mundo jurídico, permitindo que esta participe da sociedade. É a partir desta normativização da própria idéia de pessoa que a noção de culpa vem sendo reformulada. Esta não é mais entendida nem como nexo psíquico entre a ação e o autor, nem como reprovação por um uso desviante da liberdade de ação do homem. O que vem sendo afirmado, assim, é que o desvalor promovido pela atribuição de culpa não é dirigido à simples consciência de se agir ilicitamente189, muito menos ao exercício reprovável do livre-arbítrio, isto é, à liberdade de se escolher entre um comportamento lícito e um ilícito. Pelo contrário, o desvalor da culpa se relaciona com a possibilidade de organizar seu próprio comportamento dentro das fronteiras da norma (JAKOBS, 1993, p. 24). Para estas teorias mais recentes, portanto, a compreensão do conceito de culpabilidade não deve se restringir à existência ou não de uma vontade humana e livre; o que deve ser analisado é se uma pessoa – enquanto portadora de direitos e deveres – possui a capacidade de organizar seu comportamento de forma a observar as normas que regram a vida em sociedade. Já que as normas jurídicas apenas fixam fronteiras, dentro das quais os comportamentos dos seres sociais podem se mover, a tarefa de uma pessoa passa a ser organizar seu círculo de comportamentos de forma que isso não atinja esferas 189 Afinal, isso significaria, no limite, aceitar que há culpabilidade tanto nos crimes por culpa inconsciente quando nos casos em que se verifica um erro de proibição vencível. O argumento é de JAKOBS, 1993. p. 25. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 263 de liberdade alheias. Nestes termos, pelo fato da noção de culpa não mais depender de elementos puramente psicológicos (HIRSCH, 1995, p. 292) (como a consciência do ilícito, por exemplo), mas sim da capacidade de organização das próprias esferas de liberdade atribuídas pelas normas jurídicas, percebe-se que o conceito penal de culpabilidade não está necessariamente ligado à idéia de ser humano, mas sim e apenas à idéia de pessoa, enquanto portadora de direitos e deveres. Esta mudança radical de perspectiva tem profundos efeitos sobre a discussão a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Se o alvo legítimo da reprovação feita pela atribuição de culpa é a pessoa enquanto portadora de direitos e deveres, e não apenas o ser humano concebido ontologicamente, então todos os entes dotados daquele status podem ser capazes de agir com culpa. Isso significaria atribuir capacidade de culpa também às pessoas jurídicas, na medida em que também elas, e não apenas os homens, seriam dotados da capacidade de se organizar dentro das fronteiras estabelecidas pelas normas jurídicas. 190 Da mesma forma que a ação da pessoa jurídica não deve ser identificada à ação executada por um ou mais de seus membros, também a culpa daquela não deveria ser tratada como a culpa destes. Pelo contrário, a culpabilidade dos entes jurídicos deveria ser entendida como decorrente de uma organização defeituosa da ação complexa por eles executada, independente das ações individuais que a compõem. Em vários países onde uma pessoa jurídica tem o dever de criar programas de execução lícita de suas ações, fala-se de um dever imputável ao ente coletivo em si, e não às pessoas naturais que dele fazem parte; se este programa de execução lícita das ações coletivas não é formulado, ou mesmo se a pessoa jurídica age reiteradamente por vias ilícitas que culminam no cometimento de delitos, falase da responsabilização da própria pessoa jurídica, e não de seus membros. Tal imputação tem por fundamento o fato de que os comportamentos no âmbito coletivo não foram organizados dentro das fronteiras estabelecidas pelas normas jurídicas; em poucos termos: fundamenta-se na culpabilidade da pessoa jurídica. Se o reconhecimento de capacidade de culpa depende da possibilidade que um ente tem de organização seu comportamento dentro das fronteiras normativas, 190 É neste sentido que se afirma que o conceito de culpa deve, sim, estar vinculado à noção de liberdade, que, no entanto, não deve fazer referência ao livre-arbítrio, mas sim à “liberdade de organizar autonomamente os próprios comportamentos” (Cf. JAKOBS, 1993, p. 34). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 264 então se deve reconhecer que, se tal possibilidade não existe, a este ente não pode se atribuir um agir com culpa. Nesta perspectiva a capacidade de culpa não depende simplesmente da consciência da antijuridicidade do ato cometido (como afirmava a doutrina tradicional), mas sim da condição de organizar o próprio comportamento de acordo com o Direito. Se tal capacidade inexiste no caso concreto, então a “pessoa” não age com culpabilidade e, portanto, não pode ser alvo de uma reprovação penal. Isso significa que não apenas os entes naturais, mas também os entes coletivos podem ser considerados incapazes de culpa; este seria, por exemplo, o caso da empresa que pratica atos considerados crimes, que não seria sequer dotada de status de pessoa jurídica, e que, portanto, não é alvo regular da atribuição do dever de organização lícita de seus próprios comportamentos. Diante destes pressupostos, alguns modelos de culpabilidade própria se desenham nos últimos tempos, como forma dogmática de fundamentar uma responsabilidade independente daquela que por ventura possa haver em relação ao indivíduo. A culpabilidade por defeito de organização (“Organizationsverschulden”) Uma primeira perspectiva a ser mencionada no sentido de um modelo de imputação baseado na responsabilidade subjetiva da própria empresa (culpabilidade por defeito de organização) encontra-se na proposta de Klaus Tiedemann, que busca reformular o tradicional princípio da culpabilidade, adaptando-o às relações internas das pessoas jurídicas e fundamentando sua responsabilidade com base em categorias sociais e jurídicas. Conforme o autor, a 2ª Lei Alemã para Luta Contra a Criminalidade Econômica191, datada de 1986, reformou o § 30 da Lei de Infrações Administrativas (Ordnungswiedrigkeitsgesetz), introduzindo como sanção contra empresa uma espécie de multa (“Bebußung”), que deixou então de ter caráter meramente acessório. A partir deste momento, teria surgido uma forte discussão acerca da natureza jurídica dessa sanção (TIEDEMANN, 1988, 1171). 191 “2. Gesetz zur Bekämpfung der Wirtschaftskriminalität, 1986“. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 265 Ao interpretar a nova redação do § 30 da Ordnungswiedrigkeitsgesetz, Tiedemann procede a uma re-elaboração do conceito de culpabilidade para as pessoas jurídicas. Tal artigo, ao prever a aplicação de multa direta a um ente coletivo, evidenciaria que os destinatários da norma penal são as próprias pessoas jurídicas mencionadas neste texto legal (e não os membros que delas fazem parte). Por prever a imposição de multa à pessoa jurídica também nos casos em que seus membros cometem ilícitos penais, o dispositivo traria implícito o fato de que os entes coletivos podem ser destinatários de normas penais. Esta constatação, afirma Tiedemann, permitiria afirmar que estaria, a partir de então, aberta a possibilidade de imputação penal de uma ação praticada pela pessoa natural como ação própria da pessoa jurídica (TIEDEMANN, 1988, 1171) (EHRHARDT, 1994, p. 186-187), isto é, de responsabilização referente a uma ação própria da pessoa jurídica, ainda que esta tenha sido, in concreto, executada por um de seus membros (TIEDEMANN, 1988, p. 1172)192. Como se percebe, Tiedemann parte do pressuposto de que as pessoas jurídicas possuem capacidade de ação em sentido penal. No entanto, para que se possa responsabilizá-las pela comissão de delitos, é necessário que estas sejam, também, capazes de culpa, isto é, culpáveis. Ao analisar este ponto, Tiedemann afirma que a exigência de culpabilidade que a nova redação do § 30 da Ordnungswiedrigkeitsgesetz traz consigo seria inferior à exigida no âmbito do Direito Penal tradicional. Isso porque a multa prevista nesta lei poderia ser alocada entre as sanções administrativas e as sanções penais (TIEDEMANN, 1988, 1172). Neste sentido, este autor afirma que seria possível formular, para os casos de delitos cometidos por entes coletivos, um conceito de culpabilidade diverso do usado em casos de delitos cometidos por pessoas naturais: se nestes a noção de culpabilidade está fundamentalmente vinculada a uma “reprovação 192 Discutível é até que ponto uma ação cometida por pessoa natural dentro do âmbito da empresa deve ser tomada como ação própria do ente coletivo. O problema é trabalhado por SCHROTH, 1993, p. 189 e seguintes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 266 ética frente ao agir individual contra a norma” (TIEDEMANN, 1988, 1172)193, naqueles tal noção deveria ser orientada por “categorias sociais e jurídicas”194. Esta nova orientação do conceito de culpa, capaz de fundamentar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, pode ser chamada de “culpabilidade por defeito de organização”. Segundo Tiedemann, a pessoa jurídica seria responsável pelos fatos realizados por seus membros sempre que ela e seus órgãos não tenham tomado as medidas de cuidado ou vigilância necessárias à garantia de uma atividade não-delitiva (TIEDEMANN, 1988, p. 1172)195. No âmbito da pessoa jurídica (como uma empresa, por exemplo), todo delito ou infração administrativa dos seus órgãos representantes surgiria como um erro do próprio ente coletivo, a não ser que se esteja frente a um caso de “excesso de representação”196. Nestes termos, o ato individual deveria ser tomado como ato próprio do ente coletivo, na medida em que este tenha se omitido em tomar medidas de prevenção necessárias ao desenvolvimento lícito de suas atividades. Como se percebe, esta responsabilização não se dá por conta do fato individual, cometido pela pessoa natural, mas sim por conta da falta de cuidado do ente coletivo, que em um momento anterior poderia ter evitado a ocorrência do delito (TIEDEMANN, 1988, p. 1173). Este fator omissivo, afirma Tiedemann, seria o elemento capaz de fundamentar a reprovação penal frente a pessoas jurídicas. O princípio de imputação que está por trás deste raciocínio não seria novo para o Direito Penal. Pelo contrário, seria possível, segundo Tiedemann, reconhecê-lo 193 Tiedemann fala de um “agir pessoal moralmente defeituoso” (“eine als persönliche sittliche Fehlleistung”). 194 “einer an sozialen und rechtlichen Kategorien ausgerichteten Schuldbegriff”. Cf. (TIEDEMANN, 1988, 1172). Neste texto, Tiedemann ainda não deixa claro o que entende por essa expressão. Posteriormente, no entanto, o autor a clarifica um pouco mais, afirmando que se trata de interpretar de estender e interpretar o conceito de culpabilidade “no sentido de uma responsabilidade social”. Cf. TIEDEMANN, 1993, p. 233. 195 Neste mesmo sentido, Schroth afirma que a culpabilidade da pessoa jurídica não deve ser vista como sendo puramente vinculada ao órgão autor do delito; pelo contrário, ela deve ser tomada como culpabilidade funcional (funktionale Organschuld), isto é, como fruto da imputação de um comportamento culposo do órgão à pessoa jurídica que ele representa. Tratar-se-ia de uma culpa por defeitos de organização do ente coletivo. Cf. SCHROTH, 1993, p. 203-204. 196 Com este termo se designa todo ato ou conjunto de atos que, embora tomado dentro do âmbito da pessoa jurídica, constitua abuso funcional por parte da pessoa natural que dela faz parte. Neste caso, logicamente, a pessoa jurídica não deveria arcar com a responsabilidade pelo delito cometido, pois a ela não pode ser imputado um dever de evitar comportamentos que excedam as funções internamente distribuídas para persecução de sua atividade. Apontamentos críticos sobre os limites estabelecidos pela idéia de “excesso de representação” podem ser encontrados em SCHÜNEMANN, 1994, p. 284-285. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 267 claramente na fundamentação de punibilidade nos casos de actio libera in causa (TIEDEMANN, 1989, p. 170). Aqui, como na previsão do § 30 da OWiG, haveria uma espécie de responsabilização por um ato cometido em momento de ausência de culpabilidade, ou em que a aferição desta é irrelevante para a imputabilidade197. A aferição de culpabilidade referente ao ato praticado pela pessoa natural seria, assim, irrelevante na medida em que a responsabilidade pelo ato se baseia num comportamento reprovável anteriormente ocorrido (no caso, na omissão de organização por parte da pessoa jurídica) (TIEDEMANN, 1988, 1173). Seria a violação, por omissão, de um dever de vigilância (Aufsichtspflichtverletzung)198 que fundamentaria a culpabilidade do ente coletivo, com base em um defeito de organização a ele imputável. O modelo de Tiedemann foi uma das primeiras tentativas profícuas de desenvolvimento e re-elaboração da categoria de culpabilidade, de modo a que se pudesse aplicá-la também às pessoas jurídicas. Com a idéia de culpabilidade por defeito de organização, Tiedemann introduziu no debate dogmático o entendimento de que há casos em que os entes coletivos têm uma posição de garante sobre as ações de seus membros, estando obrigados por tal posição a se organizarem corretamente. Ainda que muitos de seus argumentos tenham sido posteriormente criticados (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 156-159), fato é que muitos autores seguiram Tiedemann no intento de novas formulações de categorias dogmáticas, buscando adaptar a teoria do delito tradicionalmente individual às novas tendências e necessidades político-criminais da criminalidade coletiva. Nos próximos itens, a fim de ilustrar a discussão sobre a criação de modelos de imputação próprios para a pessoa jurídica, escolhemos dois autores que buscaram repensar sistematicamente essa questão: Ernst-Joachim Lampe e Günther Heine. Não pretendemos, entretanto, por fugir ao escopo do presente estudo, esgotar o panorama dessa discussão, devendo-se mencionar que há outros autores que também articularam propostas também consistentes (por exemplo, GÓMES JARA DÍEZ, 2006; SCHROTH, 1993; e EHRHARDT, 1994). 197 É o caso, por exemplo, do indivíduo que se alcooliza propositalmente, sabendo que neste estado cometeria um delito. Pelo princípio da actio libera in causa, tal indivíduo deve ser penalmente responsabilizado, ainda que seu estado psíquico esteja alterado pelo consumo de álcool a ponto de afetarlhe a capacidade de consciência de ilicitude (o que pode levar a se atestar uma incapacidade de culpabilidade). A idéia norteadora de tal princípio consiste na noção de que ninguém deve se beneficiar de uma auto-colocação em estado de inconsciência, isto é, ninguém deve poder ser tomado como incapaz de culpa se este estado foi artificial e intencionalmente promovido. 198 Tiedemann engloba neste conceito “deveres e medidas de cuidado, de controle e de organização, exigíveis na estruturação de uma pessoa jurídica que pretende exercer sua atividade licitamente”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 268 A culpabilidade referente ao injusto de sistema (“Systemsunrecht”) Diante das correntes que intentam a reformulação das categorias dogmáticas a fim de adaptar a teoria do delito à responsabilidade penal dos entes coletivos, parte da doutrina entende que uma re-interpretação das categorias tradicionais não pode ser procedida sem que se corrompa a lógica interna do sistema de delito, sendo necessário desenvolver e fundamentar por completo um novo sistema especial de responsabilidade penal, próprio para os entes coletivos. Partindo do reconhecimento da necessidade político-criminal de responder penalmente a condutas delitivas praticadas no âmbito das pessoas jurídicas, a única solução factível seria o desenvolvimento de um Direito Penal especial, que estivesse apto a combater estes fenômenos. Um modelo dogmático engenhoso, que procurou levar a cabo este projeto, foi desenvolvido por Ernst-Joachim Lampe, em seu texto “Systemunrecht und Unrechtssysteme” (LAMPE, 1994), onde fundamenta uma culpabilidade referente ao injusto de sistema (“Systemsunrecht”). Neste artigo, Lampe afirma que, até aquele momento, não se teria elaborado nem uma teoria unitária do injusto no sistema penal (eine Theorie des Systemsunrechts), nem uma teoria da responsabilidade dentro dos sistemas de injusto penal (eine Theorie der Verantwortung innerhalb von Unrechtssysteme). A razão para isso consistiria no fato de que as construções dogmáticas tradicionais apenas tomariam como ponto de partida o indivíduo, deixando de lado considerações sobre as chamadas estruturas sistêmicas do injusto199 (LAMPE, 1994, p. 683). Dado que em nossa sociedade a criminalidade sistematicamente organizada apresentaria uma grande periculosidade, seria necessário repensar as categorias dogmáticas tradicionais - baseadas na responsabilização 199 O termo usado é “Systemstrukturen des Unrechts“. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 269 individual de pessoas naturais - para que se possam preencher os déficits de regulação dos delitos de organização200 (LAMPE, 1994, p. 683). A questão fundamental, portanto, se centraria no diagnóstico de que a dogmática tradicional de Direito Penal seria capaz, apenas e tão-somente, de reagir frente à delinqüência sistemática a partir de um instrumentário baseado sobre um padrão de autor individual201 (LAMPE, 1994, p. 684). O problema, afirma Lampe, estaria no fato de que este instrumentário não se adaptaria mais à complexidade das circunstâncias fáticas que se apresentam na atualidade, já que a participação de várias pessoas em um fato punível não consegue ser explicada a partir de um paradigma de autor individual. Assim, este autor propõe que a dogmática com base em “ações injustas” (Unrechtshandlungen) seja complementada por uma dogmática com base em “sistemas de injusto” (Unrechtssysteme) (LAMPE, 1994, p. 687)202. Sistemas de injusto são, na definição de Lampe, “relações de pessoas organizadas com fins ilícitos”203 (LAMPE, 1994, p. 687), que devem ser vistos como sistemas sociais compostos de indivíduos relacionados comunicativamente entre si204. Tal comunicação interna e tal interação são baseadas em modelos relativamente interativos que estruturam uma dada organização. 200 O exemplo dado é das carências práticas no âmbito do Direito Penal Econômico, que apenas conseguiria reconhecer, dentro da organização econômica, a responsabilidade individual das pessoas naturais que dela fazem parte (seja como órgão, seja como representante). 201 “Nosso Direito Penal é, tradicionalmente, um Direito Penal Individual“ (Individualstrafrecht). O autor típico pressuposto neste modelo seria um indivíduo, que deve responder apenas pelo seu ilícito pessoal e pela sua culpa individual (conforme § 29 do Código Penal Alemão). 202 Deve se notar que a investigação de Lampe se centra fundamentalmente no injusto dos sistemas, e não simplesmente em sua culpabilidade. Isso porque o projeto deste autor busca formular uma nova estrutura para teoria do delito, de forma a que esta dê conta dos problemas trazidos nos casos de criminalidade organizada. Exemplar, neste sentido, é a afirmação de que “o conteúdo da culpabilidade depende, antes de tudo, do conteúdo dado ao próprio injusto – que por sua vez deve ser entendido enquanto culpabilidade realizada (zu verwirklichen Schuld). Neste sentido, ver LAMPE, 1994, p. 732. A mesma observação pode ser encontrada em GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 180-181. 203 “Auf Unrechtsziele hin organisierte Beziehungen von Menschen“. Cf. LAMPE, Ernst-Joachim. Op. cit. Pág. 687. 204 Foge do escopo deste trabalho explorar exaustivamente todos os conceitos trabalhados na obra de Lampe. Importante é apenas ressaltar que este autor parte de pressupostos da Teoria dos Sistemas (fundamentalmente desenvolvida pelo sociólogo Niklas Luhmann) para, a partir dela, desenvolver uma teoria do delito que seja operacional à compreensão dos delitos cometidos por entes coletivos. Para uma análise aprofundada das interações internas a uma organização, nos termos da Teoria dos Sistemas, ver LUHMANN, 2006. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 270 Existiriam, nestes termos, dois tipos diversos de sistemas de injusto: a) os sistemas de injusto simples (einfache Unrechtssysteme) e b) os sistemas de injusto constituídos (verfaßte Unrechtssysteme). Ambos têm por característica o fato de serem constituídos de relações entre indivíduos destinadas à realização de um ou mais delitos. No entanto, ao passo que os primeiros se baseiam em relações pessoais entre seus membros205, os segundos se caracterizam pela existência de regras de pertencimento que desconsideram as relações pessoais entre seus elementos206. Dos três tipos207 de sistemas de injusto constituídos citados por Lampe, interessa-nos fundamentalmente os chamados “sistemas potencialmente criminosos” (kriminell anfällige Systeme), pois são em relação a eles que se encontram as principais questões sobre culpabilidade e responsabilidade das pessoas jurídicas. Neste ponto, a figura da Empresa é dotada de grande relevância. Lampe define empresa pode ser definida como uma “unidade organizada, cujo titular é um sujeito de direito que serve a um dado fim econômico” (LAMPE, 1994, p. 697). A relação entre esta unidade sistêmica e seu entorno, seu ambiente, exigiria adaptações recíprocas – daquela em relação a este e deste em relação àquela. Em outras palavras, se a sociedade deve se adaptar à necessidade de busca por lucro da empresa, esta, por sua vez, deve se adaptar à necessidade social de que tal busca seja realizada responsavelmente (LAMPE, 1994, p. 699). Partindo deste pressuposto, Lampe diferencia o injusto que tem lugar dentro do âmbito empresarial contra a empresa mesma (Betriebsbereich) daquele que tem lugar no âmbito da própria organização empresarial (Organizationsbereich). Ao passo que os primeiros constituem – a partir do ponto de vista da empresa – delitos especiais, 205 O exemplo principal deste sistema simples são as associações fundadas sobre os fenômenos de participação e de co-autoria, em que se verifica uma relação relativamente forte de conhecimento pessoal entre os envolvidos na prática delituosa. 206 Por exigirem um baixo grau de conhecimento entre seus componentes, os chamado “sistemas constituídos” admitem um maior grau de complexidade e são dotados, assim, de uma comunicação e de uma interação organizadas em termos de distribuição funcional hierarquizada (“Kommunkationen und Interkationen, die meistens hierarchisch, selektiert sind”). Cf. LAMPE, 1994, p. 694. Por não dependerem de um profundo conhecimento recíproco entre seus membros, afirma-se que estes são, em certa medida, fungíveis, na medida em que, por exemplo, empregados de uma empresa podem ser substituídos sem que esta altere significativamente sua existência social. 207 A) “Sistemas com finalidade criminal” (por exemplo, as organizações criminosas de tráfico); B) “sistemas potencialmente criminosos” (por exemplo, as empresas que cometem reiteradamente delitos contra seu entorno); e C) “sistemas criminalmente pervertidos” (por exemplo, as instituições estatais ilícitas). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 271 imputáveis ao indivíduo autor208, os segundos são delitos que ocorrem devido a uma organização deficiente da empresa; neste sentido, estes últimos são injustos que apresentam, ademais de uma dimensão individual, também uma dimensão sistêmica, e, portanto, devem poder ser imputados à própria empresa209. Neste sentido, injustos de dimensão sistêmica seriam todos aqueles comportamentos que lesionam bens jurídicos com base em certa filosofia da empresa210 ou com uma dada forma de sua organização (LAMPE, 1994, p. 709). A responsabilidade penal com base na filosofia da empresa dar-se-ia quando seu caráter delitivo encontra expressão no comportamento lesivo de um de seus membros. A responsabilidade com base na estrutura de organização da empresa, por sua vez, seria um injusto sistêmico quando favorecesse seus membros no cometimento de delitos211. Concretamente, existiriam quatro causas fundamentais que constituiriam um injusto de sistema de responsabilidade da empresa: a) o potencial perigo utilizado pela empresa para realizar uma dada prestação; b) a estrutura deficitária de sua organização (defiziente Organisationsstruktur), que neutralizaria erroneamente a periculosidade deste potencial; c) uma filosofia empresarial criminógena, que ofereceria aos membros da organização a tentação de levar a cabo ações delitivas; d) a erosão de responsabilidade interna à empresa, nos casos em que esta não possui regras claras e eficientes de responsabilização de seus membros em caso de desvios funcionais (LAMPE, 1994, p. 709). 208 O exemplo dado é do empregado que causa um grande dano ambiental, sem que este fato seja desejável ou possivelmente valorizado e incentivado pela empresa em que trabalha. O fato de que ele tenha se utilizado do instrumental técnico da empresa não altera nada em sua responsabilidade individual, pois, neste caso, o delito não é dotado de qualquer “dimensão sistêmica”. Cf. LAMPE, 1994, p. 708. 209 Este seria o caso quando alguém realiza ações que, normalmente, ocorrem sem qualquer risco de dano, mas que, na combinação com outras ações, ligadas àquelas com base em uma determinada organização ou em um plano empresarial, acabam por trazer consigo conseqüências ilícitas; verificar-se-ia, nestes casos, um patente déficit organizatório (eine organisatorische Defizite), imputável à empresa responsável pelo planejamento e combinação das interações internas a ela. Cf. LAMPE, 1994, p. 708. 210 Por “filosofia da empresa“ entende Lampe a totalidade da orientação e da concepção de valores que direcionam a empresa, principalmente em relação a sua posição em seu contexto social, econômico e ecológico. Cf. LAMPE, 1994, p. 708. 211 Exemplos disso seriam casos em que a organização da empresa não se preocupa com a criação de normas de internas de controle, ou mesmo quando não desenvolve regras de responsabilização individual por atos de seus empregados. Nestes casos, quando surge uma lesão de bem-jurídico praticada com base nesta organização deficiente da empresa, produz-se um injusto sistêmico, cuja responsabilidade deve ser arcada pelo ente coletivo, e não pelos seus membros. Neste sentido: LAMPE, 1994, p. 727 e seguintes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 272 A partir disto, fica claro que para Lampe, também a uma empresa – enquanto sistema social – pode-se formular uma reprovação ético-social212. Em concreto, pode-se afirmar que “a culpabilidade de uma empresa – de seu management – consiste no fato de esta ter criado ou mantido uma filosofia criminógena e/ou certas deficiências organizativas” (LAMPE, 1994, p. 732). A culpabilidade da empresa seria expressão de um caráter empresarial defeituoso, na medida em que esta, na hora de fixar seus objetivos e organizar seu instrumental para a perseguição dos mesmos, o faz de tal modo reprovável que passe a ser visto como um sistema que não está à altura de suas responsabilidades (LAMPE, 1994, p. 724)213. Do exposto fica claro que a construção do delito em Lampe vincula a categoria da culpabilidade à noção de caráter, que, por sua vez, nada mais é que uma alusão a um determinado status da pessoa jurídica214. Nestes termos, o chamado “injusto de sistema” (Systemsunrecht) seria, inicialmente, um mero estado de injusto, que pode ocorrer por meio de ações, mas não necessariamente o deve. Se nos injustos cometidos por pessoas naturais a predisposição contrária ao Direito não constitui, por si, um fato punível, no que tange às pessoas jurídicas tal predisposição seria, desde já, um injusto. No entanto, ao contrário do que afirmam seus críticos, Lampe não formula uma teoria com base única e exclusivamente no caráter do autor. Pelo contrário, seu conceito de culpabilidade mantém, em certa medida, a referência à reprovabilidade de um ato. 212 Lampe afirma que a responsabilidade penal se pode atribuir a toda unidade que participa da vida social, seja ela uma pessoa natural, seja ela uma pessoa jurídica. “A esta, ainda que possa ser tomada como uma ficção, não podem ser negados sua relevância e sua existência social”. A reprovação que se faz aos entes coletivos não é, de forma alguma, ético-individual, mas sim ético-social, referente, por exemplo, ao não cumprimento de seus deveres para com o contexto no qual a pessoa jurídica atua. Cf. LAMPE, 1994, p. 723. 213 Por partir da idéia de que se está, nestes casos, frente a um “caráter defeituoso da empresa”, Lampe sugere, em uma de suas obras recentes, que a própria sanção que se aplica às pessoas jurídicas deve ter como objetivo combater e alterar estas características deficitárias do “caráter empresarial criminógeno”. Neste sentido, afirma que somente se pode atingir justiça se a sanção penal contra a pessoa jurídica trouxer consigo uma modificação de tal existência: “a filosofia criminógena ou a estrutura organizativa deficitária da empresa deve ser modificada de modo a que esta deixe de fomentar lesões a bens-jurídicos. Para tanto, são necessários outros meios de sanção, para além das penas privativas de liberdade e das multas.”. E completa: “a intervenção no caso das empresas econômicas pode, inclusive, conduzir para sua liquidação e seu desmantelamento”. Cf. LAMPE, 1999, p. 74 e 183. 214 Tal construção é usualmente criticada em dois sentidos. Primeiro, seria impossível pensar seriamente em um caráter próprio das pessoas jurídicas, já que este seria um conceito necessariamente vinculado à expressão de personalidade e de livre-arbítrio. Em segundo lugar, a culpabilidade com base no caráter de uma pessoa consistiria em um retrocesso ao chamado “Direito Penal do Autor” (“Täterstrafrecht”), para o qual a responsabilização de um ente deve ser basear não no ato cometido, mas sim nas características pessoais do autor que o cometeu; em outros termos, a construção de Lampe pecaria por não poder se integrar às concepções da dogmática jurídico-penal moderna. Tal argumento é reconstruído em GÓMEZJARA DÍEZ, 2005, p. 183-184. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 273 E isso por dois motivos. Primeiramente porque o próprio conceito de ato jurídico-penal é ampliado por Lampe, passando a ser considerada como causa de um resultado injusto não apenas a ação individual executada por uma pessoa natural, mas também a existência (sistêmica) de uma estrutura social (ein Sozialgebild) que fomente ou garante que o injusto venha a se realizar (LAMPE, 1999, p. 74). Neste sentido, a própria existência de uma pessoa jurídica com organização defeituosa pode ser compreendida, em princípio, como “ato”, na medida em que deveria ser pensada em seu sentido para o sistema social (LAMPE, 1999, p. 74). Em segundo lugar, porque Lampe frisa que a culpabilidade empresarial não deve ser pensada sem se fazer alusão à relação entre o injusto de sistema e o injusto pessoal a ele vinculado. “A responsabilidade da empresa não pode (...) se apoiar em um injusto alheio à ação” (LAMPE, 1994, p. 733). Neste modelo, nem a filosofia criminógena nem a organização empresarial defeituosa seriam suficientemente capazes de gerar responsabilidade penal, sendo necessário, ainda, que dita filosofia ou deficiência se realize por meio do comportamento de um dos membros da pessoa jurídica (LAMPE, 1994, p. 734). Em poucos termos, a responsabilidade penal requer, nestes casos, a ocorrência adicional de um delito de resultado (LAMPE, 1994, p. 734). Portanto, a responsabilidade penal de um sistema de injusto se fundamenta, por um lado, na existência não suficientemente adaptada às exigências ético-sociais de uma comunidade e, por outro, nas ações realizadas pelos membros do ente coletivo, sempre que tais ações se baseiem em uma certa filosofia da empresa ou que sejam favorecidas por uma estrutura de organização deficiente. Tais ações, que não precisam ser por si reprováveis, são imputadas ao sistema social como delito de resultado (Erfolgsunrecht)215, sempre que for possível relacioná-lo com o próprio injusto de sistema (LAMPE, 1994, p. 744). É neste ponto que se introduz uma das principais inovações colocadas pelo modelo de Lampe. Para este autor, junto à responsabilidade própria da pessoa jurídica deve existir também a possibilidade de responsabilização penal de alguns indivíduos internos ao sistema de injusto. Neste sentido, seriam responsabilizáveis aqueles 215 Nisto consiste a principal diferença da responsabilização desenvolvida por Tiedemann, para quem a responsabilização da empresa deve ser pensada por conta de um delito de ação (Handlungsunrecht), e não como delito de resultado (Erfolgsunrecht). Outra diferença importante consiste no fato de que, em Lampe, a figura da “filosofia empresarial criminógena” detém grande relevância, sendo necessária para a responsabilização a existência de um nexo entre o resultado ilícito e o conjunto de valores propagado internamente pela pessoa jurídica. Neste sentido, BACIGALUPO, 1998, p. 190. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 274 membros cujo comportamento tenha culminado na proliferação de uma filosofia empresarial criminógena ou que tenha permitido atitudes criminais no âmbito interno da organização216. Em termos concretos, poderiam ser responsabilizados “aqueles membros obrigados a determinar o espírito da empresa ou, em última instância, que deveriam - com base numa posição de garante - ter impedido infiltrações de mentalidade criminógena” (LAMPE, 1994, p. 733); este seria o caso, por exemplo, dos membros responsáveis pelo controle e pela estruturação da organização empresarial 217. Do exposto, resta claro que a proposta de Lampe procura estabelecer uma teoria geral da responsabilidade do sistema, elaborada a partir da própria estrutura dos chamados “sistemas de injusto”. Com tal objetivo, este autor estabeleceu dois princípios fundamentais. Primeiramente, afirma-se que, se um sistema social comete um injusto, então a responsabilidade penal deve ser imputada, em primeiro lugar, ao próprio sistema. Tal responsabilidade penal fundamenta-se, por um lado, em uma certa filosofia criminógena adotada pelo ente coletivo e, por outro, em uma organização deficitária que favorece e/ou incentiva o cometimento de um ou mais delitos. A culpa da pessoa jurídica, nestes termos, é vista em seu sentido social: neste sentido, a culpabilidade empresarial seria a expressão última de um caráter empresarial defeituoso. Adicionalmente, ainda que a própria configuração defeituosa constitua, per se, um injusto sistêmico, é necessário para a responsabilização penal que uma ação praticada por um dos membros da empresa gere danos a bens–jurídicos socialmente relevantes; tal ação, se puder ser tomada como reflexo e conseqüência do injusto de sistema, é imputada à pessoa jurídica como delito de resultado (Erfolgsunrecht) de sua autoria. Em segundo lugar, Lampe afirma que, ao lado da responsabilidade social, também deve ser formulada a responsabilidade individual de alguns membros centrais 216 Esta concepção trás consigo dificuldades práticas, na medida em que o próprio Lampe aceita que a filosofia da empresa não corresponde necessariamente com as idéias de seus diretores, expressando, pelo contrário, uma espécie de “espírito supraindividual” (corporate culture) que domina a empresa. 217 Como exemplos significativos Lampe cita, por um lado, aqueles que, como órgão responsável ou como representante, têm como tarefa fixar os objetivos e as tarefas da empresa e, por outro, aquele grupo de personalidades que conformam o management empresarial, pertencendo à chamada “brain área” da pessoa jurídica e que devam, portanto, se preocupar com a adaptação desta frente a seus ambientes social, econômico e ecológico. Nestes casos, afirma Lampe, todos os membros responderiam em co-autoria por eventuais delitos. Cf. LAMPE, 1994, p. 733 e seguintes. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 275 ao sistema. Tal responsabilidade pelo sistema (Systemverantwortung) deveria ser imputada aos membros de um ente coletivo com potencial criminal, sempre que sua posição diretiva (na chamada “brain area”, por exemplo) componha e determine de forma criminógena a chamada filosofia empresarial, ou que estruture de deficitariamente a organização empresarial (LAMPE, 1994, p. 744). Este modelo, ainda que não difundido na doutrina contemporânea (GÓMEZJARA DÍEZ, 2005, p. 187), é considerado uma das tentativas mais aprofundadas e conseqüentes de superar os pressupostos individualistas da dogmática penal tradicional (BACIGALUPO, 1998, p. 192 e seguintes) e criar uma nova base teórica para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Culpabilidade pela condução da atividade empresarial Outra proposta que merece nossa atenção é o modelo de imputação defendido por Günter Heine. Conforme esse autor, a concepção de responsabilidade originária da empresa teria sido desenvolvida inicialmente pela jurisprudência a partir dos modelos de transferência de responsabilidade da pessoa física, a qual seguia os objetivos de reforço da auto-responsabilidade da empresa e do seu estímulo no controle de riscos futuros, realizando-se desta forma a “neutralização” de culturas empresariais defeituosas (HEINE, 2006, p. 36). A partir dessa idéia, Heine toma em consideração a noção da empresa como um “garante de supervisão”, ou seja, que se faz responsável por meio da criação de perigos empresariais em função de sua estrutura deficitária ou de déficits existentes em sua organização, como substrato para a imputação de responsabilidade dos entes coletivos pela prática de crimes (HEINE, 2006, p. 37). A estrutura deficitária da empresa como fundamento da responsabilidade própria da empresa se encontraria presente na idéia de uma “cultura corporativa” (corporate culture) do direito penal australiano, isto é, o desenvolvimento dentro da empresa por meio de sua postura, regras e procedimentos no sentido de encorajar o cometimento de crimes em seu âmbito ou ainda de não se evitar a sua realização quando podia tê-lo feito. Nos Países Baixos idéia análoga se encontra no desenvolvimento jurisprudencial Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 276 de uma “autoria funcional” da empresa, na qual se tem em consideração a política e a práxis desenvolvida pela mesma, essenciais no aferimento do poder de organização da empresa sobre o comportamento ilícito da pessoa física e a sua aceitação ou não do mesmo (HEINE, 2006, p. 37-38). Por sua vez, a organização deficitária da empresa consistiria fundamentalmente na responsabilidade por vigilância, cabendo a ela deveres de supervisão e evitação de riscos (HEINE, 2006, p. 38). Dogmaticamente a imputação da empresa deveria ocorrer de maneira independente da responsabilidade penal da pessoa física e em um sistema paralelo ao aplicado aos indivíduos. Assim, Heine fala na “transposição” para as empresas das “categorias de imputação do direito penal individual - desde a ação, o domínio do fato e a causalidade até os elementos subjetivos e a culpabilidade” (HEINE, 2006, p. 47). Dessa forma, a culpabilidade da empresa seria baseada na condução da atividade empresarial, apurada a partir de uma análise do comportamento da empresa ao longo do tempo. Ela não se configuraria como culpabilidade pelo fato concreto, mas pela condução defeituosa da atividade da empresa no que respeita a prevenção dos riscos empresariais (“responsabilidade das empresas pela investigação, planificação, desenvolvimento, produção e organização”). Trata-se de uma análise que em última instância considera um aspecto “subjetivo” de imputação, pois não seria possível determinar uma organização deficitária sem se considerar uma “mentalidade de empresa” ou cultura empresarial defeituosa (HEINE, 2006, p. 47- 48). Todavia, o autor chama atenção para o fato de que não pretende fundamentar a culpabilidade da empresa a partir de sua equiparação com a culpabilidade das pessoas físicas, baseando-se em um desenvolvimento antropomórfico de imputação. O que se teria em apreço seria na verdade o esboço de uma categoria que preenche uma função análoga à categoria da culpabilidade existente no sistema penal individual e que aprecia um desenvolvimento sistêmico defeituoso, ao invés de um comportamento previsivelmente defeituoso (HEINE, 2006, p. 49). Uma vez resolvida a questão em torno da culpabilidade própria da empresa, não haveria de acordo com Heine maiores problemas na determinação dos demais elementos Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 277 subjetivos do injusto (dolo, culpa, consciência da ilicitude) relativamente à imputação penal das empresas, os quais deveriam igualmente ser determinados coletivamente. Segundo o autor, tais elementos encerrariam atualmente não o real conhecimento do autor, mas as suas representações sociais, o que seria inclusive muito mais simples de se constatar no âmbito da imputação coletiva do que no individual (HEINE, 2006, p. 54). Nessa linha, mesmo a noção de autoria comportaria um correspondente próprio de um sistema específico para as empresas, que ele denomina de autoria por “domínio da organização”, que ocorreria quando, por exemplo, a empresa opta por não realizar as medidas preventivas mais adequadas no tempo oportuno. Tratam-se de medidas tomadas tanto em plano vertical como horizontal que representam um managment inadequado dos riscos empresariais (HEINE, 2006, p. 51). 3.3 Balanço provisório: o caminho da normativização dos conceitos A virada da dogmática penal no sentido da normativização dos conceitos da teoria do delito trás consigo uma nova forma de considerar as questões envolvendo a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por tomar o conceito de “pessoa” não de forma ontológica (isto é, não o vinculando necessariamente aos aspectos naturais do ser humano), mas sim normativamente, a pessoa é vista como portadora de direitos e deveres, o que torna impossível avaliar tal status sem que se considere o contexto social no qual ele se insere. Nestes termos, a ação passa a poder ser avaliada não como comportamento puramente naturalístico, mas sim como um complexo dotado de significado social. Por este motivo torna-se também aceitável a idéia de que uma pessoa jurídica pode agir propriamente, bastando para isso que as diversas ações individuais executadas por seus membros possam ser avaliadas como uma ação complexa em seu significado global. Esta “ação complexa”, por sua vez, é conseqüência de uma vontade coletiva, que ontologicamente considerada é fruto de diversas vontades humanas, mas que socialmente e comunicativamente avaliadas ganham status de vontade própria ao ente coletivo. Finalmente, a perspectiva normativa do conceito de culpa abre a Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 278 possibilidade de fundamentar a imputação penal de um ente não simplesmente sobre a consciência que este teria de estar agindo ilicitamente. Pelo contrário, a noção normativa de culpa exige para imputação que a pessoa jurídica seja dotada da capacidade de organizar seus comportamentos de acordo com o Direito. Se uma pessoa tem a possibilidade de organizar seus comportamentos de acordo com a medida das regras de convivência social e, por sua vez, não o faz, então a ela pode ser atribuída uma reprovação de culpabilidade. E o fato de que, normalmente, as pessoas jurídicas possuem a capacidade de organizar licitamente suas atividades conforme padrões de licitude permite imputar àquelas que agem de modo desviante uma reprovação penal. Diante disso, surge todo um novo campo de reflexão a respeito de quais são os possíveis critérios para se aferir se uma pessoa jurídica se organiza ou não de maneira culpável. Os modelos de Tiedemann, Lampe e Heine, acima expostos, são apenas exemplos do tipo de disputa dogmática que deve ser travada e do tipo de imaginação institucional que deve ser fomentada neste registro. Estas novas teorias, que buscam concepções de ação e de culpa que possam ser vistas a partir de uma perspectiva social e não apenas ontológica, constituem a base para se afirmar, no interior da dogmática jurídica e para os fins de reconhecimento do potencial comunicativo e da necessidade de imputação, que pessoas físicas e pessoas jurídicas são noções aproximáveis do ponto de vista de uma teoria da imputação e que, portanto, também estas últimas podem ser penalmente responsabilizáveis. É no âmbito dessa linha de pensamento que se situam as tentativas mais bem sucedidas de adaptar o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica aos conceitos da teoria do delito. 4. BIBLIOGRAFIA ALVARADO, Yesid Reyes. “Die Verbandshaftung“. In: Festschrift für Günther Jakobs. Berlim, Karl Heymanns Verlag, 2007 AMBOS, Kai. “Domínio de hecho por domínio de voluntad em virtud de aparatos organizados de poder”. Trad. Manuel Cancio Meliá. Universidad Externado de Colômbia, In: Cuadernos de Conferencias y Artículos, n. 20, 1998. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 279 BACIGALUPO, Silvina. La Responsabilidade Penal de las Personas Jurídicas. Barcelona, Bosch Editorial, 1998. BOTTKE, Wilfried. Responsabilidad por la no evitación de hechos punib;es de subordinados en la empresa econômica. In MIR PUIG, S.; LUZÓN PEÑA, D.M.. Barcelona: Bosch, 1996, p. 129-197. CEBALLOS, Elena B. Marin de Espinosa. Criminalidad de Empresa. La responsabilidad penal em las estructuras jerárquicamente organizadas. Valencia, Tirant lo Blanch, 2002. COSTA, José de Faria. “A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos (ou uma reflexão sobre a alteridade das pessoas coletivas, à luz do direito penal)”. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, n.º 4, p. 537-559, out.dez. 1992. EHRHARDT, Anne. Unternehmensdelinquenz und Unternehmensstrafe – Sanktionen gegen juristische Personen nach deutschem und US-amerikanischem Recht. Berlim, Duncker und Humblot, 1994. FRISCH, Wolfgang. “Problemas fundamentales de la responsabilidad penal de los órganos de dirección de la empresa: Responsabilidad penal en el ámbito de las responsabilidad de la empresa y de la división del trabajo”. In: MIR PUIG, Santiago. LUZÒN PENA, Manuel. Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el producto, Barcelona, Bisch Editor, 1996, p. 99-128 GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. La culpabilidad penal de La empresa. Madri, Marcial Pons, 2005. ________________________. “La coautoría como fundamento de la responsabilidad penal de los órganos de dirección de la empresa por delitos cometidos por los subordinados? Reflexiones Preliminares”. In: Derecho y Justicia penal en el siglo XXI. Libro Homenaje al Prof. Antonio Gonzalez-Cuellar Garcia. Madri, Ed. Colex, 2006, p. 191-210 (a) Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 280 GRACIA MARTIN, Luis. “Instrumentos de imputación jurídico penal em la criminalidad de empresa y reforma penal”, In: Actualidad penal, n. 16, 1993. _______________________. “La responsabilidad penal del directivo, organo y representante de la empresa en el derecho español. Estúdio especifico de los problemas dogmáticos y político criminales que plantea el delito cometido a partir de una ‘actuación en lugar de outro”. In: Hacia un Derecho Penal Econômico Europeo. Jornadas en honor del Profesor Klaus Tiedemann, 1995, 81-124. _______________________. “La cuestión de la responsabilidad penal de las propias personas jurídicas”.In: Responsabilidad Penal de las Empresas y sus Órganos y Responsabilidad por el Producto. Barcelona, J. Bosch, 1996. GÜNTHER, Klaus. De la vulneración de un Derecho a la infracción de un deber. ¿Um ‘cambio de paradigma’ en el Derecho Penal? La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Editorial Comares, 2000. p. 503. HASSEMER, Winfried. e MUNOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto em derecho penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 1995. HEINE, Günther. internationale „Die Entwicklung strafrechtliche - nationale Verantwortlichkeit Konsequenzen“. von In: Unternehmen: Österreichische Juristenzeitung 1996. _______________. “La responsabilidad penal de las empresas: evolución y consecuencias nacionales”. In: POZO, José Hurtado et alli (org.). La responsabilidad criminal de las personas jurídicas: uma perspectiva comparada. Valencia: Tirant lo blanch, 2001. _______________. “Modelos de responsabilidad jurídico-penal originaria de La empresa”. In: GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos (Org.). Modelos de Autorresponsabilidad Penal Empresarial. Propuestas globales contemporâneas. Navarra, Thomson Aranzadi, 2006. HERZBERG, Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, 1972. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 281 HIRSCH, Hans Joachim. „Strafrechtliche Verantwortlichkeit von Unternehmen“. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 107/1995. HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal – Vol. 1. Rio de Janeiro, Forense, 1978. JAKOBS, Günther. Strafrechts – Allgemeiner Teil: Die Grundlagen und die Zurechnubngslehre. Berlim, Walter de Gruyter, 1993. ________________. Derecho Penal Parte General: Fundamentos y teoría de la imputación. 2 ed. Madrid, Marcial Pons, 1997. ______________. , „STRAFBARKEIT JURISTISCHER PERSONEN?“. In: PRITTWITZ, Cornelius (Org.). Festschrift für Klaus Lüderssen. Baden-Baden, Nomos verlag, 2002. JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts – Allgemeiner Teil. 4ª Edição. Berlim, Duncker&Humbold, 1988. JESCHECK, Heinrich e WEIGEND, TH. Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil. Berlin, Duncker & Humblot, 1996. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. Wien, 1960. KREMNITZER, Mordechai; GHANAYIM, Khalid. “Die Strafbarkeit von Unternehmen”. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 113, 2001. LAMPE, Ernst-Joachim. „In welcher Weise sol der neben den zivil – und verwaltungsrechtlichen Massnahmen erforderliche Schutz (i.w.S) gegen irreführende Erbung ausgestaltet werden?“ In: Tagunsgsbericht der Sachverständigenkomission zur Bekämpfung der Wirtschaftskriminalität, Bundesjustizminosterium (Hrsg) Band 9, 1976, Anlage 6. _______________________. „Systemunrecht und Unrechtssysteme“. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 106/1994. _______________________. Strafphilosophie – Studien zur Strafgerechtigkeit. München, Heymanns Verlag, 1999. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 282 LUHMANN, Niklas. Organisation und Entscheidung. Wiesbaden, VS Verlag, 2006. MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, 2007. MACHADO, Marta; MÜLLER, Viviane, et all. Responsabilidade dos administradores de sociedades empresariais na jurisprudência do STJ e STF, cadernos Direito GV, 2009 (prelo). MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoría General del Delito. 2ª Edição. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989. ________________________. “Problemas de autoria y participación en la criminalidad organizada”. In: FERRÉ OLIVÉ, Juan Carlos; BORRALLO, Enrique Anarte (Orgs). Delincuencia organizada : aspectos penales, procesales y criminológicos, 1999. _______________________. “Domínio de la voluntad em virtud de aparatos organizados em organizaciones ‘no desvinculadas del Derecho?”. In: Revista Penal. Julio 2000, p. 104 e seguintes. NOLL, „Welche straflichen Mittel empfehlen sich für eine wirksamere Bekämpgung der Wirtschaftskriminalitat?“. In: Verhandlungen des 49 Deutschen Juristentags, Band II, 1972, p 20 ss. ROTSCH, Thomas. „Die Rechtsfigur des Täter hinter dem Täter bei der Begehung von Straftaten im Rahmen organisatorischer Machtapparate und ihre Übertragbarkeit auf wirtschaftliche Organisationsstrukturen“. In: NStZ, 1998. ROXIN, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil I. Munique, C.H. Beck, 1992 ___________. Täterschaft und Tatherrschaft. Berlim, Walter de Gruyter, 2000. RUDOLPHI, Hans Joachim. (Org). Systematischer Kommentar StGB, 6a ed, 1992, § 13, n. 32. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 283 SCHÜNEMANN, Bernd. Unternehmenskriminalität und Strafrecht – eine Untersuchung der Verantwortlichkeit der Unternehmen und ihrer Führungskräfte nach gelstendem und geplantem Straf- und Ordnungswidrigkeitenrefcht. Munique, Carl Heymanns, 1979. ____________________. „Strafrechtsdogmatische und kriminalpolitische Grundfragen der Unternehmenskriminalität“. In: Zeitschrift für Wirtschaft-, Steuer- und Strafrecht (Wistra), 1982/2. ____________________. “Cuestiones Básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa”. In: Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madrid, tomo XLI, fasc. 1, p 529-58, enero/abril, 1988. _____________________. “Die Strafbarkeit der juristischen Personen aus deutscher und europäischer Sicht“. In: Bausteine des europäischen Wirtschaftsstrafrechts: Madrid-Symposium für Klaus Tiedemann. Berlim, Carl Heymanns Verlag, 1994. _____________________. Temas actuales y permanentes del derecho penal después del milênio. Madri, Tecnos, 2002. SCHROTH, Hans-Jürgen. Unternehmen als Normenadressaten und Sanktionssubjekte. Gießen, Brühlscher Verlag, 1993. SILVA-SÁNCHEZ, Jesus Maria. “Responsabilidad penal de las empresas y de sus órganos em derecho español”. In: SILVIA SÁNCHEZ, J. Maria. (Org). Fundamentos de um Sistema Europeo del Derecho Penal. Barcelona, Bosch, 1995. ______________________________. “Critérios de asignación de responsabilidad em estructuras jerárquicas”. In: BACIGALUPO, Silvina. Empresa y delito en el nuevo Código Penal. Consejo General del Poder Judicial. Madrid, 1997. TIEDEMANN, Klaus. „Die ‚Bebußung‘ von Unternehemen nach dem 2. Gesetz zur Bekämpfung der Wirtschaftskriminalität“. In: Neue Juristische Wochenschrift, Heft 19, 1988. _________________. „Strafbarkeit und Bußgeldhaftung von juristischen Personen und ihren Organen“. In: ESER, Albin. e THORMUNDSSON, Jonatan. (Org). Old Ways and Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 284 New Needs in Criminal Legislation. Freiburg, Eigenverlag Max-Planck-Institut für Ausländisches und Internationales Strafrecht, 1989. __________________. Lecciones de Derecho Penal Económico (Comunitario, Español, Alemán). Barcelona, PPU, 1993. WELZEL, Hans. Das deutsche Strafrecht. 11ª Edição. Berlim, Walter de Gruyter, 1969. ZUÑIGA RODRÍGUEZ, Laura. Bases para un modelo de imputación de responsabilidad penal a las personas jurídicas. Navarra: Aranzadi Editorial, 2000. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 285 ANEXO 5 – CARACTERÍSTICAS DAS PESSOAS JURÍDICAS RELEVANTES PARA SUA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL 1. INTRODUÇÃO A responsabilidade penal de pessoas jurídicas e outras coletividades traz questões novas para o direito penal, pois o coloca diante de centros de imputação de responsabilidade com características essencialmente distintas dos indivíduos. Para que a responsabilidade das pessoas jurídicas e outras coletividades possa ser um mecanismo eficaz na persecução dos fins do direito penal é preciso, portanto, que este leve em consideração as características peculiares desses novos sujeitos e as circunstâncias em que desenvolvem suas atividades. Naturalmente, uma vez que as regras gerais sobre formação e funcionamento das pessoas jurídicas e demais coletividades está no direito civil, um primeiro passo fundamental para a criação de um direito penal adaptado a esses novos sujeitos é a compreensão de como eles estão regulados por esse ramo do direito. Não necessariamente para que o direito penal se curve ao direito civil, pois a adaptação dos institutos do direito civil aos objetivos da responsabilização penal quando necessário deve ser considerada sempre uma possibilidade, mas, principalmente porque as pessoas jurídicas e outras coletividades exercem papel socialmente relevante, especialmente no exercício da atividade econômica e terão, portanto, sempre essa dimensão a ser levada em conta. Nesse sentido, trataremos a seguir de conceitos e características do direito civil que possuem relevância no que toca a responsabilidade penal da pessoa jurídica e outras coletividades, a saber: a noção de pessoa jurídica, sociedade, empresário e empresa; as peculiaridades da transformação e união das pessoas jurídicas; e os fenômenos da sua atuação em coletividades mais complexas e não personificadas. 2. NOÇÃO DE PESSOA JURÍDICA, SOCIEDADE, EMPRESÁRIO E EMPRESA Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 286 A conceituação destes institutos de direito civil é de suma importância na medida que evita confusão e delimita com precisão nosso tema. No direito brasileiro, pessoa jurídica, sociedade, empresário e empresa são conceitos intimamente relacionados, mas que não se sobrepõem completamente. As pessoas são entes dotados de personalidade, um atributo jurídico (GOMES, 1971, p. 133) consistente na aptidão para ser o centro de imputação de direitos e deveres jurídicos. No direito brasileiro, tal atributo cabe tanto aos indivíduos quanto a certas coletividades, estas denominadas pessoas jurídicas218. Deixando de lado a antiga discussão a respeito da natureza da pessoa jurídica, fato é que o direito brasileiro a reconhece como sujeito de direito, uma das duas espécies de pessoas, ao lado das pessoas físicas ou naturais (CC, art. 40). Empresário, por sua vez, pode ser definido como alguém que participa do sistema econômico exercendo atividade de produção ou circulação de bens ou serviços no mercado, com o objetivo de obter uma remuneração, o lucro219, o qual consiste na diferença entre o que ele gasta para oferecer os bens e serviços em questão e o que outras pessoas pagam por eles (FARACO, 2007, p. 124). Nessa definição, podemos perceber os elementos essenciais da idéia de empresário: o exercício de uma atividade (i) econômica (ii), de modo autônomo (iii) e profissional (iv). 220 (i) Atividade pode ser definida como um conjunto de atos ordenados em função de um determinado objetivo (ASQUINI, 1996, p. 117); (ASCARELLI, 1962, p. 147); 218 Do atributo jurídico da personalidade, decorre a chamada capacidade de direito, isto é, a capacidade de ser sujeito de direito, de ser titular de direitos e deveres. Sendo assim, toda pessoa (física ou jurídica) é sujeito de direito. No entanto, nem todo sujeito de direito é necessariamente uma pessoa no direito brasileiro. O direito reconhece a certos entes despersonalizados a capacidade de ser titular de direitos e deveres em situações especiais. Exemplos de tais casos são a massa falida e o espólio. 219 Como se verá abaixo, o requisito do objetivo de obtenção de lucro para a caracterização do empresário é polêmico. No entanto, parece ser esta a posição do CC. 220 Com relação a esses elementos fundamentais do conceito de empresa (ou mais precisamente, de seu conceito funcional, que nos interessa aqui) a doutrina é bastante pacífica, embora haja discordância com relação a certos aspectos do significado de alguns desses elementos. Sobre o conceito de empresa, cf., entre outros: (ASQUINI, 1996, p. 109-126); (ASCARELLI, 1962, p. 158); (FERRI, 1976, p. 43-45); (BESSONE, 1957, p. 25-36); (BULGARELLI, 1985, p. 206); (MELLO FRANCO, 1993, p. 62-63). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 287 (BULGARELLI, 1985, p. 175-176); (MELLO FRANCO, 1993, p. 59). Distingue-se, portanto, da prática de meros atos isolados. (ii) A atividade é econômica quando seu objetivo é a criação de riqueza, isto é, a produção ou distribuição de bens ou serviços (ASCARELLI, 1962, p. 162); (BULGARELLI, 1985, p. 193). (iii) A autonomia pode ser definida de forma negativa, em contraposição à subordinação. Atividade subordinada, segundo Tulio Ascarelli (ASCARELLI, 1962, p. 157), é aquela que, simultaneamente, desenvolve-se na dependência de outrem e cujos resultados referem-se a bens alheios ou a serviços depois fornecidos por outrem. (iv) O profissionalismo, por sua vez, caracteriza-se pela habitualidade, o objetivo de satisfação de necessidade alheia e o propósito de obter um ganho (ASQUINI, 1996, p. 110-117); (ASCARELLI, 1962, p. 164-204); (FERRI, 1976, p. 45-53); (BULGARELLI, 1985, p. 194-196). A habitualidade é o exercício constante e estável da atividade, não sendo profissionais, portanto, as atividades ocasionais. Naturalmente, a avaliação da habitualidade deve levar em conta as características de cada atividade. Assim, devem-se considerar habituais as atividades sazonais, por exemplo. O elemento da satisfação de necessidade alheia indica que para que se considere uma atividade como profissional deve-se produzir para o mercado e não para si próprio (FERRI, 1976, p. 45-46); (ASCARELLI, 1962, p. 165)221. Quanto ao que se deve compreender como propósito de obter um ganho, a doutrina diverge. Alguns autores entendem que tal requisito deve ser entendido em sentido estrito, como finalidade de lucro, abarcando, portanto, apenas atividades cujo objetivo é a obtenção de um incremento patrimonial e não um simples objetivo egoísta qualquer, como evitar gastos (FERRI, 1976, p. 53); (ASCARELLI, 1962, p. 189). Outros autores defendem um entendimento mais amplo do objetivo de ganho, considerando suficiente que a atividade tenha por objetivo buscar o reembolso dos fatores de produção empregados ou evitar perdas e gastos (BULGARELLI, 1985, p. 194-195); (MELLO FRANCO, 1993, p. 62). 221 Asquini e Bulgarelli igualmente consideram a necessidade de satisfação de necessidade alheia como um requisito do conceito de empresário, mas a relacionam não ao profissionalismo, mas ao caráter econômico da atividade (ASQUINI, 1996, p. 110); (BULGARELLI, 1985, p. 193). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 288 Com relação a esse aspecto, o Código Civil parece ter optado pela posição mais estrita, pois, embora não se refira expressamente ao lucro na definição de empresário do art. 966, atribui o caráter de empresário (quando se trata de pessoas jurídicas) apenas às sociedades, cuja definição legal (CC, art. 981) inclui o objetivo de partilha de resultados, ou seja, de obtenção de lucro em sentido estrito. Sobre o conceito legal de empresário, trataremos em seguida. É importante observar, portanto, que os empresários não são os únicos a exercer atividade econômica. Em primeiro lugar, há agentes que o fazem sem ter como objetivo a obtenção de lucro. É o caso das fundações e associações, de que trataremos adiante (FARACO, 2007, p. 127). Além disso, conforme o Código Civil, há casos em que se exerce atividade econômica com finalidade lucrativa sem, no entanto, haver atividade empresarial. Tratase do caso dos profissionais liberais (CC, art. 966, parágrafo único), como médicos e advogados. Nesses casos, considera-se que o exercício da atividade econômica difere da atividade do empresário em razão da forma como é exercida: na prática da atividade empresarial, o aspecto central é a capacidade do empresário de organizar de modo eficiente os fatores de produção, ao passo que nas profissões liberais prepondera a capacidade intelectual do profissional. Além disso, a concorrência entre profissionais liberais se dá de modo diferenciado em relação à concorrência entre empresários, uma vez que a conduta de profissionais liberais é geralmente regida por um código de ética próprio (FARACO, 2007, p. 128). O Código Civil dedica um livro específico ao empresário e à atividade empresarial (Parte Especial, Livro II: Do Direito de Empresa) e traz uma definição legal de empresário em seu art. 966, o qual estabelece: Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. O conceito de empresa pode ser derivado do conceito de empresário. Assim, empresa pode ser definida como a atividade econômica organizada para a produção de bens ou de serviços exercida profissionalmente pelo empresário. Nesse sentido, é importante notar que a empresa consiste em uma situação fática, da qual o empresário é titular. O empresário é uma pessoa, um sujeito de direito, já a empresa, enquanto tal, não pode ser considerada sujeito de direito. (FARACO, 2007, p. 130, n.12). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 289 O empresário pode ser um indivíduo ou uma coletividade. O desenvolvimento de atividades empresariais, quando feito coletivamente, se dá por meio das sociedades. A sociedade é um contrato pelo qual duas ou mais pessoas se reúnem para perseguir um objetivo comum, consistente no exercício de uma atividade econômica e na partilha entre si dos resultados dessa atividade (CC, art. 981) (FARACO, 2007, p. 132). O direito brasileiro prevê vários tipos de sociedade: a sociedade em conta de participação (a), a sociedade em nome coletivo (b), a sociedade em comandita simples (c), a sociedade limitada (d), a sociedade anônima (e), a sociedade em comandita por ações (f), a sociedade cooperativa (g) e a sociedade simples (h) (CC, arts. 991 a 1096). Nem toda a sociedade é considerada empresária pela lei brasileira. Dependendo da atividade exercida (empresarial ou não, nos termos do art. 966, CC) ou do tipo societário adotado, a sociedade será considerada empresária ou não-empresária, esta última denominada sociedade simples pela lei (CC art. 982, 983).222 Conforme o art. 44, II, CC, as sociedades são um tipo de pessoa jurídica de direito privado, ao lado das associações (CC, art. 44, I), fundações (art. 44, III), organizações religiosas (CC, art. 44, IV) e partidos políticos (CC, art. 44, V). Isso não significa, no entanto, que todas as sociedades sejam pessoas jurídicas. Em primeiro lugar, é preciso notar que no direito brasileiro o surgimento da pessoa jurídica exige o registro, conforme o art. 45, CC, caput, o qual estabelece: Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. O CC especifica essa norma para o caso das sociedades em seu art. 985: A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos. Antes da realização do registro, a sociedade é uma sociedade não-personificada, denominada sociedade em comum pela lei (CC, art. 986 a 990). Isso significa que a sociedade existe juridicamente, mas sua atividade é exercida diretamente pelos sócios, pois não surgiu ainda para o direito um centro de imputação de normas jurídicas diferente dos sócios. Nesse caso, a lei determina que o patrimônio social constitui um 222 A expressão “sociedade simples” é usada em dois sentidos diferentes pelo CC: em contraposição à expressão “sociedade empresária” (art. 982) e para designar um tipo societário específico (art. 997-1038). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 290 patrimônio especial, de titularidade comum dos sócios (CC, art. 988) e que todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais (CC, art. 990). A existência de um patrimônio especial não significa que haja um patrimônio autônomo em relação ao patrimônio dos sócios, mas apenas que uma parte do patrimônio de cada um dos sócios está afetada ao exercício da atividade social. O conjunto de direitos e deveres relacionados ao exercício da atividade social é de titularidade de todos os sócios e constitui uma parcela identificável do patrimônio pessoal de cada um. É apenas com a personificação da sociedade, pelo registro, que tais direitos e deveres passam a integrar um patrimônio diverso do patrimônio dos sócios e autônomo em relação a estes, qual seja, o patrimônio próprio da sociedade, pessoa jurídica (FARACO, 2007, p. 142-143). Além das sociedades em comum, também as sociedades em conta de participação carecem de personalidade jurídica. A diferença, nesse caso, é que, enquanto a sociedade em comum é uma sociedade ainda não personificada (podendo vir a sê-lo), a sociedade em conta de participação é uma sociedade não-personificada (não“personificável”) por definição legal (CC, art. 991, caput e 993, caput). Nesse caso, a situação patrimonial é análoga àquela das sociedades em comum (CC art. 994). Já a responsabilidade pelas obrigações sociais perante terceiros é exclusiva do sócio que exerce a atividade social (sócio ostensivo). A responsabilidade dos demais sócios existe apenas perante o sócio ostensivo (CC, art. 991, parágrafo único). Como mencionado acima, além das sociedades, as associações e fundações também são espécies de pessoas jurídicas de direito privado. Ao contrário das sociedades, no entanto, elas não exercem atividade empresarial. As associações consistem na união de pessoas para a persecução de fins não econômicos (CC, art. 53), ao passo que as fundações são conjuntos de bens destinados à persecução de fins religiosos, morais, culturais ou de assistência (CC, art. 62). Diferentemente das sociedades, as associações e fundações não podem ter fim econômico. Isso não significa, no entanto, que associações e fundações não possam exercer atividades econômicas, mas simplesmente que o exercício de atividade econômica por essas pessoas jurídicas deve ser feito com objetivo de desenvolver seus fins estatutários e não com o objetivo de obter lucro. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 291 Ao exercer atividade econômica, associações e fundações podem fazê-lo com resultados positivos, isto é, com lucro, mas o lucro não pode ser apropriado pelos associados, diretores ou conselheiros. No caso dessas pessoas jurídicas, o lucro precisa ser reinvestido na própria associação ou fundação como meio para a realização de seus objetivos estatutários. É isso que as distingue dos empresários (FARACO, 2007, p. 127128, n. 7). Para sintetizar a relação entre os conceitos de pessoa jurídica, sociedade, empresário e empresa no direito brasileiro, podemos dizer que: (a) nem toda pessoa jurídica é empresária (além das associações e fundações, há sociedades nãoempresárias); (b) nem todo empresário é pessoa jurídica (é possível exercer atividade empresarial individualmente ou por meio de coletividades não personificadas); (c) a empresa, consistindo na atividade exercida pelo empresário, não é pessoa para o direito, ou seja, não tem personalidade e não pode, portanto, ser titular de direitos e deveres. Essas distinções e relações são fundamentais para a delimitação do fenômeno que se pretenda regular juridicamente: o problema são os ilícitos praticados por pessoas jurídicas ou por organizações coletivas em geral, sejam elas personificadas ou não? Trata-se de regular ilícitos relacionados ao exercício da atividade econômica empresarial – nos termos da legislação civil existente - ou da atividade econômica em geral? Como tratar os indivíduos que exercem atividade empresarial? Neste ponto, já é possível notar que o recorte feito pela legislação e pelo debate jurídico criminais, a partir da noção de pessoa jurídica, pode deixar de abarcar uma parte das atividades ilícitas praticadas no âmbito de organizações que exercem atividades econômicas223. Essa é uma questão a ser levada em conta na elaboração de políticas públicas e, principalmente, na redação de textos normativos. 223 Como afirma Zuñiga Rodriguez, la abstracción PERSONA JURÍDICA no comprende las mismas agrupaciones de personas en los mismos países, ni se refiere a todas las organizaciones com potencial poder criminógeno. Es una construcción jurídica que depende de cada legislación y no comprende las asociaciones de hecho. En términos económicos - funcional a los delitos socioeconómicos - la definición que prima es EMPRESA, en tanto unidad económica del mercado constituida para producir bienes y servicios. Pero también hay asociaciones de personas que no tienen fines de lucro como las empresas, que también pueden ser agentes criminógenos, como puede ser un partido político, o una simple asociación sin fines lucrativos, por lo que conviene ampliar el espectro conceptual A LOS DELITOS QUE SE COMETEN EN UNA ORGANIZACIÓN DE personas, al margen de su personería jurídica. En suma, si buscamos un denominador común en este tipo de criminalidad es sin duda LA ORGANIZACIÓN (ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2004, p. 262 e 263). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 292 Um exemplo do direito brasileiro pode deixar mais claro o que significa manter em aberto a possibilidade de atacar o problema da ilicitude relacionada a organizações por meios outros que não a responsabilidade (penal) de pessoas jurídicas. Trata-se do modo como se estabeleceu o âmbito de aplicação do CDC (Código de Defesa do Consumidor). Embora grande parte dos problemas surgidos com o desenvolvimento do mercado de produção e consumo em massa esteja relacionada ao modo como se desenvolve atualmente a atividade econômica empresarial, de modo que, possivelmente, a maior parte dos problemas os quais o CDC se destina a atacar seja resultado do exercício de atividade empresarial por pessoas jurídicas, a definição do âmbito de aplicação da lei com base nas idéias de pessoa jurídica ou de empresa representaria um risco de que seu objetivo fundamental de proteção ao consumidor não fosse atingido, tendo em vista a possibilidade de prejuízos ao consumidor serem causados por pessoas jurídicas não empresariais (fundações que prestam serviços no mercado, cooperativas, etc.) ou por entes coletivos sem personalidade jurídica (sociedades não-personificadas, grupos de sociedades, etc.). Diante disso, o CDC estabelece seu âmbito de aplicação por meio de um conceito novo, especificamente voltado a servir aos propósitos dessa lei, qual seja, o conceito de fornecedor, definido pelo art. 3º., caput da lei do seguinte modo (sobre o conceito de fornecedor, v. PÜSCHEL, 2006, p. 57-94): Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. Portanto, uma primeira conclusão a que podemos chegar é que o debate acerca da regulação jurídica de ilícitos praticados no âmbito de organizações que exercem atividade econômica não deve assumir a priori que a pessoa jurídica seja o melhor meio para definir o alcance da legislação. Além disso, pode-se concluir também que qualquer que seja o recorte que se pretenda adotar, a clareza com relação aos termos usados para expressar essa escolha é fundamental para a correta delimitação do âmbito da responsabilidade. A importância da clareza acerca do fenômeno que se pretende regular, bem como quanto ao sentido jurídico da expressão “pessoa jurídica” ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas na legislação penal pode ser percebida pelas conseqüências da Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 293 confusão feita em um acórdão do Tribunal Regional da 4ª. Região224, o qual merece por isso um comentário mais detido neste ponto. Conforme se lê no relatório da decisão: O Ministério Público Federal denunciou ENIO NELCI SILVA FLORES, dando-o como incurso no art. 55 da Lei nº 9.605/98 c/c art. 15, II, alíneas a, b, e, i, em concurso formal com o delito previsto no art. 2º da Lei nº 8.176/91 e denunciou ENIO NELCI SILVA FLORES - FI, pessoa jurídica, pela prática do delito previsto no art. 55 c/c art. 15, II, alíneas a, e, i, n, da Lei nº 9.605/98, sujeitando-se às penalidades aplicáveis, conforme disposto nos artigos 21 a 24 da legislação ambiental citada, pelos seguintes fatos delituosos: " 1. 0 acusado ENIO NELCI SILVA FLORES agindo no interesse próprio e em beneficio da pessoa jurídica "ENIO NELCI SILVA FLORES - FI", no dia 23 de outubro de 2003, por volta das 23h30min, utilizando-se da embarcação denominada "XENA", inscrição nº 462-078827-9 , de propriedade de "ADÃO NUNES DE SOUZA", CNPJ 87.602.389/0001-23, em área de preservação ambiental, explorou matéria prima pertencente à União sem autorização legal do Departamento Nacional de Produção Mineral- DNPM, na área do Parque Estadual Delta do Jacuí, coordenadas geográficas Lat. 22J0465292 e Long. UTM6684451 (GPS 12 garmin, nº 36159387- fl. 19), extraindo o volume de cerca de vinte (20) metros cúbicos de areia do Rio Jacuí. 2. Na mesma oportunidade e local, o acusado ENIO NELCI SILVA FLORES e a empresa denunciada "ENIO NELCI SILVA FLORES - FI", utilizando-se da draga "XENA", agindo no interesse próprio e em benefício da pessoa jurídica, executaram extração de recursos minerais sem a competente licença ambiental da Fundação Estadual de Proteção Ambiental - FEPAM, provocando degradação ambiental dentro dos limites do Parque Estadual Delta do Jacuí, considerado por lei como área especialmente protegida. 3. Conforme constatado pela Patrulha Ambiental (fls. 06/13), a draga de sucção "XENA", sem possuir a necessária autorização do DNPM e sem licença da FEPAM, foi flagrada executando mineração clandestina de areia durante a noite, no intuito de fraudar a fiscalização, por ordem do denunciado, o qual determinou a mineração em local no qual sabia ser proibida tal atividade, por tratar-se do Parque Estadual Delta do Jacuí. (...) A denúncia foi recebida em 25/06/2004 (fl. 02). Regularmente processado o feito, foi proferida sentença, publicada em 17/10/2005, julgando procedente a denúncia para: (a) CONDENAR o réu ÊNIO NELCI SILVA FLORES, pela prática dos delitos enunciados nos arts. 2º da Lei 8.176/91 e 55 da Lei 9.605/98, c/c o art. 70 do CP, às penas de 1 (um) ano e 02 (dois) meses de detenção e 10 (dez) dias-multa, no valor unitário de 1/3 (um terço) do salário mínimo nacional vigente ao tempo dos fatos, devidamente atualizado (concurso formal entre os crimes de usurpação do patrimônio público e extração de recursos minerais sem autorização). Substituiu a pena privativa de liberdade aplicada ao réu ÊNIO NELCI SILVA FLORES por duas restritivas de direitos, consistente em prestação pecuniária, no valor de 02 salários mínimos e prestação de serviços à comunidade; e (b) CONDENAR a pessoa jurídica ÊNIO NELCI SILVA FLORES - FI, pela prática do delito tipificado no artigo 55 c/c artigo 15, II, 224 TRF 4ª. Região – Apelação Criminal no. 2004.71.00.024695-3/RS – Rel.Luiz Carlos Canalli – j. 14/08/2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 294 alíneas a, b, i, n, c/c artigos 21 a 24, todos da Lei 9.605/98, cumulativamente, à pena restritiva de direito de suspensão definitiva de suas atividades e à pena de prestação de serviços à comunidade consistente na manutenção de um espaço público, a ser determinado pelo Juízo da Execução Penal, pelo prazo de 01 (um) ano. O réu apela requerendo a reforma parcial da sentença, no que diz respeito à pessoa jurídica do recorrente quanto a suspensão definitiva das atividades da empresa, que se efetivada ficará privado das atividades que mantém o seu sustento e de sua família. O Ministério Público Federal também apela requerendo: a) aplicação da regra do concurso formal impróprio; b) a majoração da pena aplicada ao art. 2º da Lei 8.176/91, em razão da culpabilidade, dos antecedentes e das conseqüências do delito, bem como a incidência das agravantes do art. 61 do CP, I "a" (motivo torpe) e "c" (mediante dissimulação); c) necessidade de aumento da pena em patamares superiores a 1/6, pela incidência do concurso formal; d) inaplicabilidade da substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito; e) necessidade de elevação da pena de prestação pecuniária. O Ministério Público Federal opinou pelo parcial provimento do recurso da acusação e da defesa (fls.367/384). Resultado foi o provimento parcial dos recursos, com alteração apenas das sanções aplicadas. A questão problemática que se percebe nesse caso é que os réus são, na verdade, a mesma pessoa, uma vez que Ênio Nelci Silva Flores, pessoa física, é empresário individual. Portanto, embora desde a denúncia o caso tenha sido tratado como tendo dois réus, havia apenas um. Ocorre que a constituição de uma coletividade, bem como a personificação dessa coletividade para o exercício de uma atividade econômica empresarial constituem uma possibilidade, mas não uma obrigação ou necessidade no direito brasileiro. Como se disse acima, nem todo empresário é pessoa jurídica. Em grande parte dos casos, os indivíduos que desejem exercer uma atividade econômica terão interesse em constituir pessoas jurídicas para tanto. A criação de coletividades permite juntar esforços e o incentivo clássico para a constituição de pessoas jurídicas é a possibilidade de limitar os riscos relacionados ao exercício da atividade empresarial. Ainda assim, é possível, como no caso julgado, que um indivíduo (pessoa física) opte por exercer uma atividade empresarial individualmente. Nesse caso, uma parte do seu patrimônio será destinada ao exercício da empresa, sem constituir, no entanto, patrimônio autônomo. O que ocorre é apenas a afetação de uma parte do patrimônio do indivíduo ao exercício de sua atividade empresarial e uma distinção dos atos que ele Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 295 pratica enquanto empresário, isto é, os atos relacionados ao exercício da empresa, dos atos que pratica, digamos assim, em sua vida privada (atos não-relacionados com o exercício da empresa). Portanto, nesse caso, há um empresário (o indivíduo, pessoa física), há uma empresa, mas não há pessoa jurídica. Não há, portanto, nenhum centro de imputação diverso do próprio indivíduo, seja para a responsabilidade civil, para a responsabilidade administrativa ou para a responsabilidade penal. Embora não haja no acórdão nenhuma argumentação expressa nesse sentido, é possível supor que o propósito do tribunal tenha sido aplicar uma sanção penal que estivesse voltada e atingisse diretamente o exercício da atividade empresarial. Para que isso fosse possível, no entanto, o âmbito de aplicação da lei penal teria que ser definido de outra forma, com base no exercício de atividade empresarial, e não com base na figura da pessoa jurídica. Tem-se a impressão de um descompasso entre o que o Tribunal entende ser o objetivo da lei penal e o modo como a própria lei definiu seu âmbito de aplicação. Esse caso nos mostra, portanto, como a falta de clareza sobre os objetivos da chamada “responsabilidade penal da pessoa jurídica” e o descompasso entre o que se consideram serem seus objetivos e a técnica legislativa empregada para atingi-los pode levar a resultados problemáticos. 3. TRANSFORMAÇÃO DE PESSOAS JURÍDICAS O fato de as pessoas jurídicas não terem uma base biológica como as pessoas físicas faz com que tenham certas peculiaridades, as quais precisam ser consideradas quando da regulação de sua responsabilidade, seja ela penal, administrativa ou civil. Diferentemente dos indivíduos (pessoas físicas) as pessoas jurídicas podem transformar-se, passando por modificações do seu contrato social ou estatuto, bem como cindir-se, fundir-se, incorporar ou ser incorporadas por outras. Trata-se de situações em que a identidade da pessoa jurídica original é afetada. Nos casos de responsabilidade civil, tendo em vista que a sanção consiste em um débito (o qual é em princípio transferível), a possibilidade de adaptação da Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 296 responsabilidade às transformações da pessoa jurídica é relativamente simples do ponto de vista jurídico-dogmático. Já no âmbito da responsabilidade penal, no entanto, o princípio de que a pena não deve ultrapassar a pessoa do condenado – talhado para lidar com indivíduos – tende a constituir um obstáculo jurídico-dogmático para tratar com as pessoas jurídicas nessas situações. Diante disso, existe o risco de que a aplicação da lei penal à pessoa jurídica seja elidida – inclusive por ma fé – diante do desaparecimento da pessoa jurídica no âmbito da qual se praticou o ato delituoso ou da sua transformação em pessoa diversa. Exporemos abaixo os casos de transformações de pessoa jurídicas, uma vez que tais fenômenos, a nosso ver, devem ser levados em consideração quando da formulação da regulamentação sobre responsabilização. Incorporação A incorporação é um negócio jurídico por meio do qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra (CC, art. 1116; Lei nº. 6.404/1976, art. 227). Como resultado da incorporação, todo o patrimônio da sociedade incorporada integra-se ao patrimônio da sociedade incorporadora e a sociedade incorporada é extinta (CC, art. 1.118; Lei nº. 6.404/1976, art. 227, § 3º.). Há sucessão universal, transferindo-se todo o patrimônio da incorporada à incorporadora, tanto o ativo quanto o passivo. Sendo assim, os débitos da incorporada passam a ser de titularidade da incorporadora, o que significa que, do ponto de vista da responsabilidade civil, a sanção – consistente no dever de reparar – é transferida para a sociedade incorporadora. Com relação à sanção penal, é preciso levar em conta o fato de que existe a possibilidade de que a pessoa jurídica imputada deixe de existir em virtude de incorporação, sendo preciso refletir sobre se, e em quais hipóteses faria sentido aplicar a sanção penal à incorporadora, bem como sobre o modo de impedir que a incorporação venha eventualmente a servir de expediente para escapar à imputação penal ou à execução da sanção penal. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 297 Fusão A fusão é um negócio jurídico por meio do qual duas ou mais sociedades se unem para formar sociedade nova. Como resultado da fusão, todas as sociedades originais são extintas e substituídas por uma sociedade nova, que as sucede universalmente (CC, art. 1.119; Lei nº. 6.404/1976, art. 228). Com relação ao patrimônio, portanto, a situação da nova sociedade resultante da fusão é a mesma da incorporadora em relação à incorporada: ela se torna titular do patrimônio – ativo e passivo – das sociedades que se fundiram. Com relação ao direito penal, o problema que se apresenta também é o mesmo: o que fazer diante da extinção da pessoa jurídica a ser imputada ou apenada e da nova pessoa jurídica que resultou da fusão? Cisão A cisão é o negócio jurídico por meio do qual uma sociedade transfere parcelas do seu patrimônio a outras sociedades. As sociedades que recebem o patrimônio da sociedade cindida podem ser tanto sociedades já anteriormente existentes quanto sociedades criadas especialmente para este fim. Embora o capítulo X do subtítulo II, do Título II do livro “do direito da empresa” do CC se chame “da transformação, da incorporação, da fusão e da cisão das sociedades” (grifo nosso), não se encontra aí regulação expressa sobre a cisão, a não ser no art. 1122, § 3º. que trata da hipótese de falência da sociedade cindida. Já a Lei n.º 6404/1976 possui regulação expressa sobre a cisão, em seu art. 229. A cisão pode ser total ou parcial, conforme se transfira parte ou a totalidade do patrimônio da sociedade cindida. No caso de cisão total, a sociedade cindida extingue-se (Lei n.º 6404/1976, art. 229). Com relação à responsabilidade civil, determina o art. 229, § 1º: Art. 229§ 1º. sem prejuízo do disposto no art. 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 298 sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados. Por sua vez, o referido art. 233 estabelece: Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão. Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida serão responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso, qualquer credor anterior poderá opor-se à estipulação, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data de publicação dos atos de cisão. Com relação à responsabilidade penal, assim como nos casos anteriores, é preciso ponderar uma solução para o caso de extinção da pessoa jurídica cindida. Transformação de tipo societário As sociedades podem converter-se de um tipo em outro. Nesses casos, sem que haja extinção prévia da sociedade que se transforma, ela sofre uma alteração de seus atos constitutivos (CC, art. 1113; Lei n.º 6404/1976, art. 220). Isso altera qualitativamente a pessoa jurídica que pode passar, por exemplo, de sociedade limitada a sociedade anônima, ou vice-versa (RIZZARDO, 2007, p. 954). As razões empresariais para tais transformações relacionam-se normalmente à necessidade de adaptar a estrutura da sociedade à expansão dos negócios, ao aumento de seu capital, à necessidade de simplificar sua estrutura, entre outras (RIZZARDO, 2007, p. 954). Todos os tipos societários são, em princípio, aptos a transformarem-se uns nos outros (RIZZARDO 2007, 956).225 A transformação não extingue obrigações da pessoa jurídica (CC, art. 1115; Lei n.º 6404/1976, art. 222). Sendo assim, e tendo em vista que a sanção na 225 Segundo A. Rizzardo (RIZZARDO, 2007, p. 956), associações, fundações e cooperativas não podem transformar-se em sociedades empresárias, em virtude de sua natureza peculiar. Nesses casos, seria necessário primeiro dissolver e liquidar a pessoa jurídica, constituindo-se posteriormente a nova sociedade. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 299 responsabilidade civil consiste no dever de indenizar, este tipo de responsabilidade não é abalado. Do ponto de vista da imputação penal, esse tipo de alteração das pessoas jurídicas é, dentre todos, o que traz menos problemas, uma vez que não há extinção da pessoa jurídica. Ainda assim, é preciso notar que haverá alteração do nome da pessoa, conforme as regras dos arts. 1155 a 1662, CC. Além disso, a transformação de tipo societário, ao levar à alteração também da organização da sociedade pode ter efeitos relevantes para a aplicação de sanções penais voltadas a regular tal organização. 4. UNIÃO DE PESSOAS JURÍDICAS Além das possibilidades de transformação da pessoa jurídica, é preciso levar em conta que pessoas jurídicas podem unir-se por vários meios para criar organizações mais complexas, não personificadas. Também essa situação é relevante do ponto de vista da imputação penal. Em primeiro lugar, trata-se de fenômenos associativos que, sem configurar pessoa jurídica autônoma, constituem organizações relevantes do ponto de vista da política criminal, tanto por constituir ambiente no qual, justamente, tendem a surgir as situações para as quais o direito penal tradicional – focado na responsabilidade individual – se mostra inadequado, como também por constituir uma possível forma de evasão da incidência da responsabilidade penal por parte das pessoas jurídicas. Especialmente se o foco da regulação penal forem os aspectos viciados das organizações, a eficácia da intervenção penal pode depender de sua aplicação ao conjunto de pessoas jurídicas que atuam unidas. Além disso, tendo em vista que as pessoas jurídicas podem ser criadas livremente e que o poder de controle de uma pessoa jurídica pode em realidade ser detido por outra pessoa jurídica, existe a possibilidade de utilização de pessoas jurídicas controladas como meio de praticar ilícitos em favor da sociedade controladora. Existe mesmo a possibilidade de criação de pessoas jurídicas controladas especificamente para esse fim. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 300 Diante disso, é necessário que a lei penal leve em conta os fenômenos associativos não personificados (grupos societários e consórcios) na regulação dos ilícitos das pessoas jurídicas. Grupos societários A existência dos chamados grupos societários está ligada a estratégias usadas pelas sociedades para a expansão de suas atividades e para o controle de riscos. Dentre as possibilidades para expansão das atividades da sociedade está a expansão externa, isto é, o crescimento da empresa por meio da utilização ou agregação de estrutura organizacional ou meios de produção alheios (MULLER PRADO, 2006, p. 39). Do ponto de vista jurídico, tal expansão pode ser feita de vários modos: por operações de fusão ou incorporação; por formas de associação e colaborações de longo prazo, como o consórcio, o licenciamento de tecnologia, a subcontratação, contratos de gerenciamento, franchising e joint ventures; e a aquisição de propriedade e participação no capital de outra sociedade (MULLER PRADO, 2006, p. 40). Quando a expansão externa resulta na situação em que uma pessoa jurídica passa a ter influência determinante no desenvolvimento da atividade de outra, pode-se dizer que estamos diante de um grupo societário. Nesses casos, forma-se uma unidade econômica de pessoas que se mantêm juridicamente autônomas (MULLER PRADO, 2006, p. 40-41). Sendo assim, os grupos empresariais são formados por pessoas jurídicas economicamente dependentes de outra pessoa jurídica, mas que não perdem sua personalidade jurídica própria, mantendo, portanto, cada uma suas próprias estruturas organizacionais e patrimônios independentes (MULLER PRADO, 2006, p. 41). Por sua vez, o conjunto das pessoas jurídicas ligadas desse modo, isto é, o grupo empresarial, não possui personalidade jurídica própria. Trata-se de uma organização despersonalizada. O fenômeno dos grupos é bastante difundido entre as grandes empresas brasileiras e a manutenção da personalidade jurídica própria de cada membro do grupo, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 301 com a conseqüente independência patrimonial e não confusão de responsabilidades entre o controlador e as pessoas jurídicas controladas, é um importante fator que torna o grupo empresarial uma forma atraente para a expansão dos negócios, permitindo o controle e a redução de riscos226 (MULLER PRADO, 2006, p. 41). O direito brasileiro regula sistematicamente os grupos empresariais na Lei das S.A. (Lei n.º 6.404/1976). Essa lei define critérios legais para a configuração dos grupos empresariais, além de trazer também algumas regras voltadas a proteger certos interesses relacionados aos grupos. (MULLER PRADO, 2006, p. 47). Além disso, encontra-se tratamento específico das sociedades coligadas no CC (arts. 1097 a 1101). No entanto, o CC apenas descreve situações de ligação entre sociedades, sem estabelecer uma disciplina específica para os casos de participação de uma sociedade no capital de outra (MULLER PRADO, 2006, p. 47). Por fim, encontram-se referências diretas ou indiretas aos grupos empresariais de maneira esparsa em diversos diplomas legais: CLT (Dec.-lei n.º 5.452/1943), art. 2º., § 2º.; Lei n.º 8.884/1994, art. 17 e art. 20; CDC (Lei n.º 8.078/1990), art. 28; Lei n.º 9.605/1998, art. 4º. O art. 2º., § 2º da CLT estabelece a responsabilidade solidária de empresas que “estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica”. O art. 17 da Lei n.º 8.884/1994 prevê a responsabilidade solidária de “empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, que praticarem infrações da ordem econômica. Além disso, no art. 20, a mesma lei determina que o grupo de empresas também é considerado agente econômico. 226 Além desse aspecto, a formação de grupos apresenta também a vantagem da flexibilidade, pois sua estruturação depende da simples participação no capital social, o que facilita tanto a aquisição do controle quanto o desfazimento do investimento, pela compra e venda das ações ou quotas (MULLER PRADO, 2006, p. 42). Do ponto de vista da gestão empresarial, a flexibilidade dos grupos, também constitui uma vantagem, pois possibilita a gestão tanto concentrada quanto descentralizada e a atuação em locais diversos, permitindo, por exemplo, a atuação internacional, com formação de empresas multinacionais ou transnacionais (MULLER PRADO, 2006, p. 42 e 44). Por fim, os grupos apresentam em geral a vantagem de permitir a expansão da sociedade com menores custos, pois normalmente a aquisição de controle por meio da aquisição de participação societária envolve investimentos menores do que iniciar uma nova atividade ou realizar a expansão interna dos negócios (MULLER PRADO, 2006, p. 42-43). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 302 O art. 28 do CDC, por sua vez, estabelece responsabilidade subsidiária para as “sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas”. Finalmente, o art. 4º. da Lei n.º 9.605/1998, embora não se refira expressamente aos grupos, prevê a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica sempre que esta “for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos à qualidade do meio ambiente”, permitindo a responsabilização civil de diferentes membros de um grupo de empresas. Com relação aos critérios para configuração dos grupos empresariais, a doutrina costuma distinguir, com base na sistemática da Lei das S.A., entre grupos de direito e grupos de fato (MULLER PRADO, 2006, p. 53). Os grupos de direito são aqueles constituídos por meio de uma convenção entre sociedades controladora e controladas, conforme o art. 265 da Lei das S.A. Segundo Fábio Konder Comparato (COMPARATO, 1978, p. 205), o grupo de direito seria uma sociedade de sociedades, ou uma sociedade de segundo grau, não personificada. Já Viviane Muller Prado (MULLER PRADO, 2006, p. 60, n. 85) entende que não haveria propriamente uma sociedade, pela ausência de um fim comum, mas o grupo de direito seria, antes, um meio para legitimar a subordinação da atividade das empresas do grupo à direção unitária da controladora. Apesar da previsão legal, os grupos de direito são, no entanto, praticamente inexistentes no Brasil227 (MULLER PRADO, 2006, p. 69). Os grupos societários são muito difundidos no Brasil na modalidade grupos de fato. Os grupos são de fato quando constituídos simplesmente pela aquisição do controle societário de uma sociedade sobre outras. Segundo a Lei das S.A., art. 243, § 3º., “considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas é titular de direitos de 227 Viviane Muller Prado aponta como possíveis razões para o baixo número de grupos de direito no Brasil, entre outras, a artificialidade do modelo importado, a facultatividade de formação de grupos convencionais – permanecendo a possibilidade de constituir os grupos de fato - e o alto custo, decorrente do direito de recesso dos sócios minoritários da estrutura administrativa do grupo. O interesse em legitimar a relação de subordinação entre controladas e controladora seria incentivo insuficiente para levar o empresário a optar por incorrer no alto custo que a criação de grupos de direito implica (MULLER PRADO, 2006, p. 71). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 303 sócios que lhe assegurarem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores”. A Lei das S.A. prevê algumas regras próprias para os grupos de fato, referentes à responsabilidade de administradores, demonstrações financeiras, reparação de danos pela controladora à controlada, etc. Mas, fora tais previsões legais específicas, aplica-se às sociedades que compõem um grupo de fato as mesmas regras que se aplicam às sociedades isoladas em geral (MULLER PRADO, 2006, p. 55). No âmbito da responsabilidade civil, a lei e os tribunais têm recorrido freqüentemente ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica para lidar com os grupos societários. O instituto da desconsideração da personalidade parte da própria idéia de personalidade das pessoas jurídicas, isto é, pressupõe que existe uma separação entre os direitos e deveres da pessoa jurídica e os direitos e deveres das pessoas que os compõem (sejam estas pessoas físicas ou outras pessoas jurídicas) e consiste, justamente, na previsão de hipóteses em que tal separação será pontualmente posta de lado (ZANITELLI, 2007, p. 220). Tratando-se de responsabilidade civil, isso significa que, em um determinado caso, o patrimônio dos membros do grupo será tratado como se fosse único, podendo a vítima do dano satisfazer-se a partir de qualquer um deles. Seria possível imaginar-se solução assemelhada para o direito penal. Naturalmente, tendo em vista que o objetivo não será mais em primeira linha a reparação do dano sofrido pela vítima do ilícito, seria necessário adaptá-lo aos objetivos da responsabilidade penal. Uma possibilidade, por exemplo, seria permitir a responsabilidade penal da controladora (ainda que não de todas ou de qualquer uma das sociedades do grupo) quando o ilícito for praticado no âmbito de uma sociedade controlada. Fundamento para isso seria o fato de que as decisões acerca da administração da sociedade controlada podem se considerar tomadas, em última análise, no âmbito da controladora e em seu benefício. Outra possibilidade seria responsabilizar todos os membros do grupo, no caso em que se configure um problema de organização que seja geral. Fundamento para isso Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 304 seria a unidade organizacional e tal posição se justificaria na medida em que a responsabilidade penal e sua sanção sejam voltadas a corrigir problemas de organização. Seria necessário, no entanto, – assim como também se faz no âmbito da responsabilidade civil – ponderar que quanto mais ampla a admissão da desconsideração da personalidade, menor serão os efeitos positivos da personificação de coletividades do ponto de vista empresarial. Seu papel como instrumento de organização e de limitação de riscos da atividade empresarial fica diminuído quando se ampliam as possibilidades de desconsiderar a personalidade dos membros do grupo. Trata-se de uma ponderação de interesses entre o estímulo à atividade econômica e os objetivos da imputação penal. 228 Consórcios Os consórcios são um tipo de associação empresarial paritária, isto é, a união de sociedades em que não se estabelece uma relação de controle de um membro sobre o outro. Os participantes de um consórcio se unem para colaboração temporária ou permanente, sem a formação de uma sociedade. Existe uma direção unitária, mas esta não implica controle ou influência dominante de um participante sobre o outro (MULLER PRADO, 2006, p. 57-58). Dentre decisões judiciais levantadas no âmbito desta pesquisa, há um caso envolvendo consórcio (TRF da 4ª. Região – MS n. 2002.04.01.054936-2/SC – Rel. Vladimir Freitas – j. 25/02/2003). A decisão reconheceu a impossibilidade de imputação de responsabilidade criminal com fundamento na Lei n.º9605/98 ao consórcio, pelo fato de este não ter personalidade jurídica. Conforme se lê na ementa: Os consórcios são mera união de pessoas jurídicas e, por não terem personalidade jurídica, não respondem por crimes ambientais praticados por suas componentes, seus representantes ou empregados. E conforme o voto do relator: 228 Conforme Leandro Martins Zanitelli, a jurisprudência brasileira tem tendido a aplicar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica de forma bastante ampla aos grupos empresariais em casos de responsabilidade civil quando se trata de proteger terceiros diante dos grupos, indicando uma tendência dos tribunais a favorecer a proteção de terceiros em detrimento ao estímulo que a personificação representa para a atividade econômica (ZANITELLI, 2007, p. 240) Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 305 Assim, consiste o consórcio na união de duas ou mais empresas para alcançar um propósito. Suas responsabilidades e atribuições são fixadas por via contratual, cabendo a responsabilização penal decorrente de crime ambiental ser atribuída a cada empresa, individualmente, em conformidade com suas atribuições dentro do pacto celebrado. Isso porque cada participante do consórcio obriga-se apenas nos termos estabelecidos nos contratos, respondendo de acordo com as obrigações assumidas. Por tal, de fato, não há como se responsabilizar a totalidade das empresas quando o ataque ao bem jurídico for realizado por apenas uma delas, isoladamente. Conseqüentemente, não responde o consórcio por crime ambiental. Aqui, assim como no caso dos grupos societários, é preciso ponderar o interesse em se regular a organização em si, caso em que pode ser necessário responsabilizar todos os participantes do consórcio. Isso seria importante, por exemplo, se o objetivo da imputação penal e de sua sanção for a correção de vícios na estrutura organizacional. 4 BIBLIOGRAFIA ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale – Introduzione e teoria dell’impresa. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1962. ASQUINI, Alberto. Profili dell’impresa. Rivista del Diritto Commerciale 41, 1943. Tradução portuguesa de Fábio Konder Comparato. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro 104, p. 109-126, 1996. BESSONE, Darci. Direito das emprêsas – Nova posição do direito comercial. Revista Forense 170, p. 25-36, 1957. BULGARELLI, Waldírio. A teoria jurídica da empresa – Análise jurídica da empresarialidade. São Paulo: RT, 1985. COMPARATO, Fábio Konder. “Os grupos societários na nova Lei de Sociedade por Ações”. In: Ensaios e pareceres de direito empresarial, Rio de Janeiro: Forense, 1978. FARACO, Alexandre Ditzel. Empresário, sociedade e pessoa jurídica. In: Flavia Portella Püschel (org.). Organização das relações privadas, São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 121-147. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 306 FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. 4. ed. Torinese, 1976. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, 3a. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1971. MELLO FRANCO, Vera Helena de. Lições de direito comercial – Teoria geral do direito comercial. São Paulo: Maltese, 1993. MULLER PRADO, Viviane. Conflito de interesses nos grupos societários, São Paulo: Quartier Latin, 2006. PÜSCHEL, Flavia Portella. A responsabilidade por fato do produto no CDC – Acidentes de consumo, São Paulo: Quartier Latin, 2006. RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa, 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2007. ZANITELLI, Leandro. Desconsideração d a pessoa jurídica. In: Organização das Relações Privadas. Flavia Portella Püschel (org.), São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 219-243. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 307 ANEXO 6 - DIAGNÓSTICO DA DISCUSSÃO E APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS NO CENÁRIO BRASILEIRO Neste texto, trataremos de descrever o cenário brasileiro em relação ao instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas: 1) o arcabouço normativo: sua introdução na Constituição de 88 e sua regulamentação para o caso de crimes ambientais; 2) o debate doutrinário que se seguiu a essa inovação; 4) um diagnóstico da aplicação do instituto, colhido a partir de pesquisa empírica de jurisprudência nos Tribunais Regionais Federais e Tribunais Superiores; e, por fim, 3) uma breve análise dos projetos de lei em tramitação, que visam a ampliar o alcance do instituto. 1. DESCRIÇÃO DO ARCABOUÇO NORMATIVO A Constituição Federal de 1988 trouxe, em dois de seus artigos, disposições relativas à responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos. O art. 173, §5° determina que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular” (grifos nossos). O art. 225, § 3°, por sua vez, dispõe que “as condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (grifos nossos). Por trazerem, pela primeira vez na história do Direito brasileiro, a previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica, tais dispositivos tornaram-se objeto de grande discussão dogmática em nosso país, não apenas por parte da doutrina penalista, mas também da doutrina constitucionalista. Estas discussões se intensificaram ainda mais quando, a despeito dos questionamentos sobre a constitucionalidade do estabelecimento dessa responsabilização pela Constituição, surge a Lei n.º 9.605/98, que passa a prever, em nível infraconstitucional, a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 308 Fundamentada pelo supracitado art. 225, §3°, CF, esta lei foi resultado do projeto de lei n° 1.164-E de 1991 da Câmara dos deputados, modificado pela versão do substitutivo 62 no Senado Federal. Em seu art. 3º, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi estabelecida da seguinte forma: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou no benefício da sua entidade. Parágrafo único: a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato”. Nos itens a seguir, buscaremos retratar o debate doutrinário brasileiro acerca do tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica, tratando de seus aspectos propriamente dogmáticos, bem como dos questionamentos levantados a respeito da constitucionalidade deste instituto. 2. UM RETRATO DO DEBATE DOUTRINÁRIO BRASILEIRO ACERCA DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS Um retrato do debate jurídico brasileiro acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas pode ser analisado e exposto a partir de três diferentes perspectivas. Inicialmente, podemos enquadrar o debate sob uma perspectiva constitucional, isto é, expor a parcela dos argumentos que, quando da análise deste modelo de responsabilização, levantou questões acerca de sua constitucionalidade. Trata-se, neste ponto, de apresentar os argumentos que se dedicaram a pensar i) se, em um primeiro nível, as previsões dos arts. 173, §5° e 225, § 3°, CF, seriam compatíveis com os demais princípios consolidados na constituição, e ii) se, em um segundo nível, as previsões da Lei de Crimes Ambientais seriam, por sua vez, eivadas de inconstitucionalidade e, portanto, deveriam ser tidos como inválidos. Sob uma segunda perspectiva, o debate doutrinário brasileiro pode ser analisado sob o ponto de vista da dogmática penal propriamente dita. Neste ponto, serão expostos os argumentos que, de um ponto de vista interno à teoria do delito, procuraram pensar se a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é compatível com os elementos estruturantes do conceito de delito, tais como o conceito de ação, de culpabilidade, entre outros. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 309 Por fim, a partir de uma terceira perspectiva, o debate pode ser exposto a partir de discussões sobre política criminal. Neste momento, o foco está em argumentos de ordem pragmática, a respeito da necessidade e da viabilidade concreta da instituição da responsabilidade penal das pessoas jurídicas. 2.1 A polêmica acerca da adoção do instituto pela Constituição Federal As normas constitucionais supramencionadas, em parte por constituírem uma novidade em matéria constitucional, em parte pela falta de clareza de sua redação, despertaram não apenas entre os penalistas, mas também entre os constitucionalistas, grandes embates. Em um primeiro momento, a discussão a respeito da responsabilização penal da pessoa jurídica no direito brasileiro passou pelo enfrentamento da seguinte questão: teria a Constituição Federal, de fato estabelecido tal tipo de responsabilização? Se não, seria, de qualquer forma, possível e constitucional a instituição da responsabilidade penal das pessoas jurídicas em nosso ordenamento jurídico? Para responder tais perguntas, os teóricos se ocuparam, além da exegese dos artigos 173, §5° e 225, §3, da análise da compatibilidade do instituto com princípios constitucionais, como os princípios da pessoalidade da pena (CF, art. 5 °, XLV), da sua individualização (CF, art. 5°, XLVI) e da culpabilidade (CF, art. 5°, LVII). Neste debate acerca da constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica, encontram-se tanto interpretações que a afirmam como entendimentos que a negam229, encontrando-se alguns autores que não oferecem um posicionamento claro a respeito do assunto230. 229 Há quem afirme que, além daqueles que reconhecem e daqueles que negam a previsão constitucional deste instituto, haveria aqueles que não tomariam partido a respeito. Como exemplo deste último caso, costuma-se citar José Afonso da Silva, que, ao comentar as medidas repressivas estabelecidas pela Constituição a cargo do Poder Público no que tange à tutela penal ao Meio Ambiente, teria deixado de se posicionar a respeito do tema. No entanto, não nos parece ser correta esta avaliação. Isso porque muitos daquelas “faltas de posicionamento a respeito” devem ser analisadas como aceitações tácitas da constitucionalidade da previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica. O próprio José Afonso, Invocando o art. 173, § 5°, afirma que este “prevê a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas independentemente de seus dirigentes, sujeitando-as às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica, que tem como um de seus princípios a defesa do meio ambiente” (SILVA, 2007, p. 848). O fato deste autor não problematizar a questão e, mais ainda, partir dela como um dado, parece evidenciar sua concordância com a mesma. 230 Um posicionamento nebuloso pode ser encontrado na formulação de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins. Estes autores, ao analisarem o art. 225, § 3° da CF, aceitam, por um lado, como dado o Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 310 Aqueles que se colocam contra a recepção da responsabilidade penal da pessoa jurídica pela Constituição o fazem formulando argumentos de diversaz ordens. Podemos enxergar três principais pilares que sustentam a argumentação a favor da inconstitucionalidade do instituto: a) um de ordem estritamente dogmática, b) um que se funda sobre interpretações literal e sistemática do texto constitucional, e c) um que se refere ao contexto histórico dos debates constituintes. a) A defesa da inconstitucionalidade do instituto com base em argumentos dogmáticos será analisada de forma pormenorizada no ponto 2.2 infra, quando exporemos o debate travado pelos penalistas brasileiros em torno das principais categorias da teoria do delito que entrariam em conflito com o instituto em questão. Por hora, no entanto, cabe citar aqueles que, embora não sendo teóricos do direito penal, sustentam a incompatibilidade da responsabilidade da pessoa jurídica com a Carta Magna, com base em argumentos dogmáticos. Este é o caso de José Cretella Júnior, que, entre os constitucionalistas que negam a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, é o que melhor desenvolve sua argumentação. Ao analisar o art. 225, § 3°, da Constituição Federal de 1988, este autor afirma contundentemente: “o dispositivo é bem claro ao fixar, de início, os dois tipos de responsabilidades, a responsabilidade individual – civil ou criminal – dos dirigentes, pessoas físicas, e a responsabilidade civil, tão-só, da pessoa jurídica” (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4028, grifos nossos). Para justificar sua opinião, Cretella Júnior sustenta que “a fonte primária ou remota – ato gerador, a causa determinante – da responsabilidade, pública ou privada, é sempre, em última análise, o homem”. “’Agir’ ou ‘deixar de agir’, afirma, seria traço típico do homem, da pessoa física, que se expande ou se retrai no mundo”. (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4030). Com base nesta premissa, este autor entende, então, que “a pessoa jurídica não tem vontade”, sendo que, ainda que o Direito lhe atribua direitos e deveres, em definitivo se fato do constituinte não ter excluído qualquer tipo de pessoa da possibilidade de responsabilização. Por outro, no entanto, seu posicionamento parece mal formulado. Isso porque, ao afirmarem que “são puníveis tanto as pessoas físicas quanto as pessoas jurídicas, estas pecuniariamente, e seus diretores, se tipificada a infração, penalmente.” (BASTOS/MARTINS, 1998, p. 925, grifos nossos), não fica claro se, neste ponto, há uma negação da possibilidade de responsabilização penal da própria pessoa jurídica ou se, de fato, o que há é apenas uma falta de clareza conceitual por parte destes autores, ao criarem uma oposição artificial entre “sanção pecuniária” e “sanção penal”. Do trecho supracitado, podem-se extrair dois entendimentos diversos: a) que os autores admitem responsabilidade penal apenas às pessoas físicas, cabendo às pessoas jurídicas apenas a responsabilização não-penal (“pecuniária”); ou b) que os autores usam “sanção penal” e “sanção privativa de liberdade” como sinônimos, reduzindo, erroneamente, aquela a esta. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 311 trataria sempre de uma ou várias pessoas físicas que cometeram o ato prejudicial imputado à pessoa jurídica231 (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4039-4040). Conseqüentemente, a responsabilidade da pessoa jurídica seria “necessariamente patrimonial, a única compatível com sua natureza”232 (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4044). b) À análise propriamente dogmática acerca da capacidade de ação dos entes coletivos, costuma-se acrescer um argumento que parte da análise literal do texto constitucional para afirmar a inexistência da responsabilidade penal da pessoa jurídica em nosso sistema. Partindo da letra do Art. 225, § 3º, CF, costuma-se afirmar que o constituinte nunca teria recepcionado a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, pois teria colocado, “de um lado, a pessoa física, a quem se aplica o termo conduta, de outro lado, a pessoa jurídica, à qual se aplica o vocábulo atividade, cominando, aos atos lesivos das primeiras, sanções penais, e, às atividades das segundas, sanções administrativas e econômicas, independentemente da obrigação de reparação dos danos causados” (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p.4045. No mesmo sentido, ver SANTOS, 2006, p. 428; PRADO, 1992, p. 32-33). Há também autores que buscam fazer uma análise sistemática dos dispositivos em questão. Nestes termos, levantando objeções acerca da compatibilidade deste instituto com outros valores protegidos pela Constituição, autores como Luiz Régis Prado afirmam que à luz dos princípios penais ínsitos na própria Constituição e no sentido tradicional das categorias jurídico-penais a elas adstritas, a responsabilidade penal da pessoa jurídica seria impossível (PRADO, 1992, p. 32-33). Isso porque uma análise isolada dos dispositivos constitucionais supracitados seria insuficiente, sendo necessário interpretá-los de maneira sistemática. É neste sentido que autores como Luis Luisi, Luiz Vicente Cernicchiaro e René Ariel Dotti sustentam que, dado que haveria princípios ordenamento constitucional que deveriam prevalecer no caso de conflitos, uma análise isolada do dispositivo dos artigos 173, §5º e 225, § 3°, admitindo a 231 Sobre a discussão dogmática sobre os conceitos de ação e de culpabilidade no âmbito da responsabilidade penal da pessoa jurídica, ver o item III.3, infra. 232 Este autor chega mesmo a literalmente afirmar que “o adágio romano societas delinquere non potest tem aplicação, ainda hoje, não havendo responsabilidade penal das pessoas jurídicas”. (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4044). No entanto, admite como possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por ocasião de legislação que regule o art. 173, § 5° da CF, desde que excluída a pena de privação ou restrição de liberdade, já que “totalmente incompatível com a sua natureza” (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4045). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 312 responsabilidade penal da pessoa jurídica, entraria em conflito com valores básicos protegidos pela própria Constituição, a dizer, os princípios da pessoalidade da pena (CF, art. 5 °, inc. XLV), da culpabilidade (CF, art. 5°, inc. LVII) e da individualização da pena (CF, art. 5°, inc. XIII) (PRADO, 2001, p. 108; LUISI, 2001, p. 90-93; DOTTI, 1995, p. 189; DOTTI, 2001, 152; CERNICCHIARO, 1991, p. 142-143)233. c) Por fim, em um terceiro nível de objeção, alguns autores que buscaram na reconstrução histórica do processo constituinte uma justificativa para negar a adoção constitucional da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Miguel Reale Jr., por exemplo, considerando a importância da interpretação histórica em matéria constitucional, sustenta que não teria sido intenção do constituinte admitir a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Na votação do primeiro turno do processo constituinte, afirma, teria sido suprimido o termo “criminal”, contido na fórmula “responsabilidade criminal desta”, o que, por si só, demonstraria que o legislador originário tivera a intenção de manter somente as pessoas físicas como passíveis de responsabilização penal. Usando deste argumento, sustenta-se que o art. 225, §3° da Constituição deveria ser interpretado no sentido de que as pessoas físicas e jurídicas devam se sujeitar, respectivamente, a sanções penais e administrativas (REALE JÚNIOR, 2001, 138). Com um posicionamento diametralmente oposto àqueles que negam a constitucionalidade e a recepção da responsabilidade penal da pessoa jurídica por nosso ordenamento, diversos teóricos marcaram também suas posições. Neste grupo podem ser incluídos tanto aqueles que não apenas defendem a constitucionalidade, mas aprovam a opção tomada pelo constituinte, quanto aqueles que, embora a considerem um equívoco de lege ferenda, admitem-na como inquestionável de lege lata. 234 233 Neste mesmo sentido, Cernicchiaro defende que é imperativo entender a Constituição como um sistema ao se analisar os dispositivos relativos à responsabilidade da pessoa jurídica. Para este autor, o art. 173, § 3° determinaria o modo com o qual se deve interpretar o art. 225, § 5°, já que ele deixa explícita a necessidade de adequar o tipo de sanção com o tipo de pessoa a quem ela se aplica (CERNICCHIARO, 1991, p.141). Encontrando-se a sanção penal, por força do art. 5°, XLV da CF, vinculada à responsabilidade da pessoa física, então a sanção compatível com as pessoas jurídicas apenas poderia ser outra que não a penal (CERNICCHIARO, 1991, p. 144; BITENCOURT, 1999, p. 68). Sustentando a violação do princípio da culpabilidade por parte da responsabilização penal dos entes coletivos, ver SANTOS, 2006, p. 429. 234 Este é o caso, por exemplo, de autores como José Carlos de Oliveira Robaldo e René Ariel Dotti, que, embora admitam que a interpretação literal desses dispositivos constitucionais represente o estabelecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, se posicionam por uma compreensão teleológica dos dispositivos constitucionais em questão, a fim de se evitar esse tipo de responsabilização no direito brasileiro, a qual se deveria restringir a sanções de ordem civil e administrativa apenas (é o caso Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 313 Parece-nos que os teóricos de Direito Constitucional que se colocaram a favor da constitucionalidade da previsão de responsabilidade penal das pessoas jurídicas não formulam seus argumentos de forma pormenorizada. Ou seja, diante dos artigos citados, não se dedicam a defender largamente sua recepção constitucional A título de exemplificação, Pinto Ferreira se limita a afirmar que a Constituição de 1988 introduziu a responsabilidade penal por danos ao meio ambiente para as pessoas jurídicas, entendendo caber ao legislador a regulação correspondente da matéria a partir da criação de tipos penais e através do direito administrativo (FERREIRA, 1995, p. 302; SHECAIRA, 2003, p. 133). Da mesma forma, Walter de Moura Agra afirma apenas que com a inovação trazida pela Constituição em matéria ambiental “não apenas os administradores das empresas poderão sofrer sanções penais pela prática de crimes contra o meio ambiente, mas as próprias empresas, na condição de pessoas jurídicas, poderão ser responsabilizadas criminalmente (CF, art. 225, § 3°)” (AGRA, 2007, p. 697). 235 Dada a reduzida elaboração argumentativa dos constitucionalistas que defendem a adoção desta forma de responsabilidade pela Constituição de 1988, parece-nos que a tarefa de fundamentação de sua constitucionalidade ficou mesmo a cargo dos teóricos do Direito Penal. É neste campo que serão formuladas as mais elaboradas objeções frente aos três pilares que defendem a inconstitucionalidade deste instituto, tais como expostos acima. Nos parágrafos a seguir236, procuraremos expor as principais tentativas de objeções frente àqueles que se colocaram contra a constitucionalidade da responsabilização penal dos entes coletivos. de ROBALDO, 1998, p. 1-2, e DOTTI, 1995, p. 187). Da mesma forma, Zaffaroni e Pierangeli, apesar de admitirem que o instituto foi incorporado ao ordenamento brasileiro, se posicionam contrariamente à imputação penal da pessoa jurídica, pois esta implicaria em uma infração ao nullum crimen sine conducta, afirmando, in verbis: “a Constituição admitiu a responsabilidade desses entes no que respeita a ordem econômica e financeira (art. 173, §5°) e ao meio ambiente (art. 225, §3°)” (ZAFFARONI/ PIERANGELI, 2007, p. 356). Ressalvadas as particularidades de seu pensamento, também Luis Paulo Sirvinkas argumenta que, apesar de ser “tormentoso” admitir a responsabilização penal da pessoa jurídica no direito penal, esta fora admitida tanto pela Constituição Federal (art. 225, § 3°) quanto pela legislação infraconstitucional (art. 3°, Lei nº. 9.605/98) (SIRVINKAS, 1998(b), p.22). 235 O mesmo padrão argumentativo pode ser visto, ainda, em Paulo Affonso Leme Machado, ao afirmar que “a responsabilidade penal da pessoa jurídica é introduzida no Brasil pela Constituição Federal de 1988, que mostra um dos seus traços inovadores” (MACHADO, 2006, p. 687), bem como em Galvão da Rocha, ao mencionar que a Constituição Federal expressamente admitiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica (ROCHA, 1998, p. 27). 236 As objeções frente aos argumentos de ordem dogmática que defendem a inconstitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica (letra “a)” supra) serão mais bem expostas no item V.2.2 infra. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 314 b) Procurando refutar os resultados da interpretação literal da Constituição procedida por autores como Régis Prado e Cretella Júnior, autores como Sérgio Salomão Shecaira e Vladmir Passos de Freitas extraem outras conclusões da leitura do Art. 225, §3° da Constituição. Para Shecaira, a diferenciação entre conduta e atividade, formulada por Cretella Júnior e Régis Prado, seria insustentável, pois desconsideraria o fato de que não existe precisão matemática no processo de determinação do sentido de uma proposição jurídica (SHECAIRA, 2003, p. 136). Para este autor, o termo atividade, usado pelo dispositivo em questão, não seria atribuível somente às pessoas jurídicas, devendo também o ser às pessoas físicas. Neste sentido, os termos conduta e atividade teriam sido usados como sinônimos, fato que afastaria o argumento de que aos entes coletivos apenas caberia sanções de ordem administrativa ou civil. Mais ainda, ao usar a conjunção “e” entre as palavras “penais” e “administrativas”, o constituinte teria tido a intenção expressa de incluir a pessoa jurídica não só como alvo de sanções administrativas, mas também de sanções penais (FREITAS, 1999, p. 213). Neste sentido, tanto pessoas físicas como jurídicas poderiam praticar condutas (ou atividades) que lesassem o meio ambiente, e por isso poderiam ser punidas (SHECAIRA, 2003, p. 136-137). Também o argumento de inconstitucionalidade fundado em uma interpretação sistemática da Constituição é alvo de críticas. Segundo alguns autores, a idéia de que a responsabilização penal da pessoa jurídica afrontaria diretamente valores constitucionais como o princípio da culpabilidade237 e o da responsabilidade pessoal238 não seria sustentável. Em primeiro lugar, porque as previsões dos arts. 173, §5° e 225, § 3°, CF não afrontariam diretamente o princípio constitucional de nullun crime sine culpa239. Apesar 237 O argumento, em linhas gerais, seria o de que, por ser dirigida a um ente sem autonomia moral, a sanção penal contra a pessoa jurídica violaria o princípio de que não pode haver pena sem culpabilidade. 238 A idéia geral pressuposta aqui é de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por envolver conseqüências maléficas para todos os membros do ente coletivo (e não apenas para aqueles que realizaram efetivamente o ato típico), vai contra o princípio de que nenhuma pena deverá passar do autor (e, eventualmente, do partícipe) do ato ilícito. 239 Neste ponto de nosso relatório, focaremos apenas e tão-somente os argumentos estritamente constitucionais que se referem ao princípio de culpabilidade, isto é, apenas aqueles que procuram refletir acerca da compatibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica com a norma constitucional que afirma ser impossível a imposição de pena sem que haja culpabilidade. Neste sentido, os diversos conteúdos que a noção de culpabilidade pode assumir, bem como a possibilidade de se pensar modelos de culpabilidade adequados à imputação do ente coletivo, não serão analisados neste momento, mas sim no anexo n° 4 desta pesquisa. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 315 de a Constituição ter firmado a responsabilidade em decorrência da culpa como regra geral (“princípio da culpabilidade”, cf. art. 5, LIII, LIV, LV e LVII), ela teria fixado também uma outra forma de responsabilidade nos capítulos sobre a “Ordem Econômica e Financeira” e “do meio ambiente”. Neste sentido, autores como Shecaira afirmam que, ainda que o método sistemático seja necessário e fundamental para evitar antinomias e contradições internas ao sistema normativo, ele não poderia servir de pretexto para excluir todo e qualquer tratamento diferenciado para determinados casos. (SHECAIRA, 2003, p. 139-140). Em outros termos, a necessidade de se interpretar sistematicamente as normas jurídicas não deve fazer com que se ignore o fato de que em um ordenamento se verificam freqüentemente normas que operam no esquema regra/exceção.240 A Constituição, enquanto diploma normativo, apresenta inúmeros exemplos de regras que operam neste esquema.241 A Constituição firmou, de fato, a responsabilidade penal em face da culpa como regra geral. Isto seria inquestionável. No entanto, questiona-se, por que haveria ela de, novamente, fixá-la quando da redação dos capítulos “da ordem econômica e financeira” e “do meio ambiente”? Precisaria um texto de lei afirmar a mesma coisa três vezes? Autores como Shecaira sustentam que não, que “uma Constituição apenas aborda novamente o que dispôs como regra em vista de modificála” (SHECAIRA, 2003, p. 142). Em poucos termos, o que se trataria era de um caso de regra/exceção, não havendo, portanto, que se falar em uma oposição que representasse uma genuína contrariedade entre a responsabilidade penal derivada de culpa e a responsabilidade penal não-derivada de culpa (SHECAIRA, 2003, p. 142-143). 242 240 O sentido de tal argumento pode ser mais bem verificado levando-se em conta que “nas disposições de direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita diretamente à norma particular ou especial. De um lado, tem-se o princípio afirmador da regra geral; de outro, como dispositivo de exceção, aquele que particulariza um pensamento, tornando-o específico para a aplicação de um tema. O que estritamente não cabe neste, deixa-se para a esfera de abrangência daquele” (SHECAIRA, 2003, p. 141). De qualquer forma, ainda que aceito este argumento, é interessante mencionar a ponderação de Régis Prado, para quem tal esquema de regra-exceção exigira a presença, em nosso sistema, de normas harmonizadoras que propiciassem uma perfeita convivência entre uma (geral) e outra (excepcional) formas de responsabilidade (PRADO, 2005, p. 181). 241 A responsabilidade civil, por exemplo, decorre em regra de culpa do causador do dano (como na previsão de responsabilidade civil por dano material, moral ou à imagem, cf. Art. 5º, V, CF e Art. 159 do Código Civil). No entanto, a própria Carta Magna excepciona tal regra, quando em seu Art. 37, § 6º prevê a responsabilidade objetiva (independente de dolo ou culpa) do Estado. Estaríamos, aqui, diante de um claro caso de regra/exceção: uma pessoa jurídica de direito privado só responde civilmente por culpa, exceto se prestar serviços ao poder público. 242 A crítica de Cirino dos Santos a este argumento não nos parece consistente. Segundo este autor, “se o constituinte tivesse pretendido instituir exceções à regra de responsabilidade penal derivada de culpa, teria ele utilizado linguagem clara e inequívoca” (SANTOS, 2006, p. 426). Cirino dos Santos parece, aqui, cometer o erro de exigir uma aplicação absoluta do princípio da legalidade, isto é, de exigir que cada exceção feita no sistema seja feita de maneira expressa. Ora, a tarefa de dotar o ordenamento de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 316 Em segundo lugar, o argumento de inconstitucionalidade fundado em uma interpretação sistemática da Constituição não seria sustentável também porque os supracitados dispositivos não afrontariam o princípio da pessoalidade (“responsabilidade pessoal, cf. CF, art 5º, XLV). Afinal, este princípio vedaria apenas que a responsabilização de alguém que não contribuiu pessoalmente para a realização do ato típico. Nestes termos, ao reconhecer a responsabilidade penal de uma empresa por ato praticado, por exemplo, contra o meio ambiente, se estaria apenas e tão-somente reconhecendo sua própria responsabilidade243; apenas haveria violação deste princípio se, por exemplo, uma empresa fosse responsabilizada por ato praticado no âmbito de outra empresa (SHECAIRA, 2003, p. 143). Além do mais, existiriam, no Direito brasileiro, determinadas hipóteses em que se admite que os danos causados pela pena repercutam para além da pessoa que tenha cometido o crime. 244 Quanto aos efeitos que a responsabilidade do ente coletivo gera para os membros que dele fazem parte, esta parte da doutrina entende que não há, de fato, senão um efeito secundário da responsabilidade própria da pessoa jurídica (CABETTE, 2003, p. 65-66; ROTHENBURG, 1998, p. 63). Neste sentido, Galvão da Rocha afirma que, muito embora outras pessoas (como sócios, fornecedores, empregados, consumidores) venham consistência e de operacionalidade não é de competência exclusiva do legislador; pelo contrário, é também tarefa do intérprete refletir sobre a compatibilidade entre as normas, bem como de superar as incongruências sistêmicas das chamadas “falsas antinomias”. Se o argumento de Cirino dos Santos procedesse, teríamos de admitir que o sistema jurídico pode apenas ser consistente e coerente se o for assim formulado pelo legislador, o que significaria, no limite, um retorno à simplista concepção de que a interpretação correta de uma norma é apenas aquela que se refere à voluntas legislatoris, não havendo, conseqüentemente, qualquer caráter construtivo e constitutivo nas interpretações feitas pela dogmática e pelos operadores do direito. 243 Diante deste contexto, é interessante ressaltar ponderações como a de Rothenburg, segundo as quais, sendo a pessoa jurídica composta por indivíduos, não seria possível que seus membros não viessem igualmente a sofrer as conseqüências de qualquer tipo de sanção a ela imputada, seja ela civil, administrativa ou penal. Em outros termos, a extensão negativa dos efeitos de uma condenação a terceiros não-envolvidos no ilícito (que integrem os membros da pessoa jurídica), seria, na verdade, um mau resultante de qualquer tipo de condenação (ROTHENBURG, 1998, p. 63). A nosso ver, ainda que se admita que tais efeitos são correntes, eles devem ser, no entanto, mitigados ao máximo, principalmente quando houver grande probabilidade de repercussões sociais negativas - como, por exemplo, o desemprego decorrente da interdição de atividades da empresa (cf. item II.4 supra deste relatório) 244 A Lei nº. 3.807/60 em seu art. 43 previa e auxílio reclusão para os beneficiários (mulher, filhos) do beneficiário detento ou recluso, caso este não recebesse nenhuma espécie de remuneração da empresa e já tivesse contribuído no mínimo com 12 contribuições mensais. O benefício se mantinha enquanto houvesse a prisão do segurado e deveria ser provado trimestralmente por meio de atestados reconhecidos por autoridade competente. O auxílio reclusão se encontra previsto atualmente no art. 80 da lei 8.213 e tem por objetivo substituir os meios de subsistência do segurado e de sua família, tendo por base o fato o desamparo ao qual fica deixada a família do preso. (PINTO MARTINS, 2006, p. 387). Seria justamente esta a razão de ser do auxílio-reclusão oferecido quando o pai de família é apenado com pena privativa de liberdade e sua mulher e filhos perdem sua forma de sustento. O instituto do auxílio-reclusão demonstraria, segundo o autor, que, mesmo em hipóteses de penalização de pessoas físicas, há a infração ao princípio da pessoalidade das penas. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 317 a ser atingidas com a condenação da pessoa jurídica, tal se daria de maneira apenas indireta, não se tratando da aplicação de uma pena a quem não tenha agido ilicitamente (ROCHA, 1998, p. 28). 245 Assim, “não se poderia falar propriamente em violação de um princípio norteador do direito penal” (SHECAIRA, 2003, p. 143). Deste modo, afirmam estes autores, a interpretação sistemática da Constituição não pode ser usada para negar a constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica, dado que nenhum princípio alegado – nem o da culpabilidade, nem o da pessoalidade da pena – seriam maculados com a previsão deste novo modelo de responsabilização. c) Finalmente, foram formuladas críticas também às interpretações históricas que, como desenvolvidas por autores como Miguel Reale Júnior e expostas acima, procuravam sustentar a inconstitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Embora partindo do mesmo pressuposto, isto é, embora concordando que nenhum acontecimento surge isolado e que explicar sua origem é fundamental para sua compreensão, alguns autores chegaram a conclusões diametralmente opostas a de Reale Júnior. Para Shecaira, por exemplo, uma interpretação histórica não pode apenas comparar as diferenças entre as redações de projetos de lei, sendo necessário também refletir sobre as concepções reinantes à época da constituinte. Citando um daqueles deputados que teria tido um papel importante na redação do capítulo “do meio ambiente”, este autor evoca a figura do relator deste capítulo, o Deputado Federal Fábio Feldmann. Por ter, anos mais tarde, integrado a comissão de juristas para a elaboração do Código Ambiental, e por ter, nesta oportunidade, se mostrado inequivocamente favorável à responsabilização penal dos entes coletivos, Feldmann seria a prova clara de que as concepções reinantes à época da constituinte foram postas afirmando a importância desta nova modalidade de responsabilidade das pessoas jurídicas. Desta forma, também uma adequada interpretação histórica dos artigos 173, §5° e 225, § 3°, CF dariam base para se concluir pela constitucionalidade deste polêmico instituto (SHECAIRA, 2003, p. 143-144). 245 Para esta linha de argumentação, apenas haveria uma efetiva responsabilização dos membros do ente coletivo, para além dos meros efeitos secundários sobre eles, caso a pessoa natural pratique de alguma forma o ato delituoso, seja como co-autor, seja como partícipe (SHECAIRA, 2003, p. 143). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 318 2.2 Adequação da responsabilidade penal de pessoas jurídicas às categorias da teoria penal Para além das divergências que se relacionam à constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica, juristas brasileiros também se debruçaram sobre os problemas de ordem dogmática que esta implica, principalmente no âmbito da teoria do delito tradicional, ainda bastante presente no Brasil. Há menos de um século, possuíam ainda grande força em nosso país as idéias oriundas do positivismo naturalista italiano, de maneira que, para se determinar a responsabilidade penal do indivíduo, fazia-se decisiva a análise de suas “inclinações naturais” para a vida criminosa. Mais recentemente, a partir da década de 80, em especial com a promulgação da reforma da parte geral do Código Penal, a doutrina brasileira passa a ser fortemente influenciada pelas idéias do finalismo alemão, o qual, conforme explicamos mais detalhadamente do item III.3.1 supra, avoca ao direito penal a investigação da natureza da ação, que somente se verificaria quando um indivíduo modificasse finalisticamente a realidade à sua volta. Em certa medida, esta visão acabou por implicar em uma concepção psicológica da ação, que por sua vez determinou as demais categorias estruturantes do conceito de delito (como a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade). Diante deste contexto, a responsabilidade penal da pessoa jurídica representa uma ruptura na lógica que predominantemente foi adotada no direito penal brasileiro, uma vez que o ente coletivo consiste em uma espécie de personalidade que não encontra um correspondente no mundo sensível (tal como as pessoas físicas - que além de serem sujeitos de direitos, existem concretamente, com sentimentos, consciência e locomoção a elas inerentes). Isto dado, a inclusão da atividade de um ente abstrato (que existe “somente” no mundo jurídico), em um sistema que foi, em princípio, desenvolvido em torno do comportamento do ser humano, provoca inevitavelmente problemas de compatibilidade com a teoria do delito246. Nesses termos, as correntes mais tradicionais da ciência jurídico-penal brasileira vêm concluindo que a pessoa jurídica não se encaixa como centro de imputação penal, já que ela não age nem se motiva como uma pessoa natural. A idéia aqui defendida é a de que “as determinações do ser (a organização 246 No anexo n° 4 deste relatório, tratamos com maiores detalhes os obstáculos que uma “dogmática ontologicizada” representa para a formulação de modelos de responsabilidade penal de entes coletivos. Do que se trata, neste momento, é de retomar os argumentos do debate nacional sobre o tema, para que se possa pensar se e em que medida o debate brasileiro está eivado de vícios de fundamentação e de naturalizações equivocadas quando da reflexão sobre esta nova modalidade de responsabilização. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 319 psicossomática do ser humano) constituem o limite intransponível das proposições do dever ser” (SANTOS, 2006, p. 424). Ainda que este entendimento não possa ser considerado absolutamente hegemônico, pode-se afirmar consistentemente que ele marca fortemente a grande maioria dos trabalhos nacionais sobre o tema. Nos parágrafos que seguem procuraremos expor como o debate dogmático nacional tem se posicionado a respeito da compatibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica com cada uma das categorias estruturantes da teoria do delito (principalmente com as categorias de ação e de culpabilidade). Capacidade de ação No Brasil, como dissemos, a dogmática penal é fortemente influenciada pela chamada escola finalista de Direito Penal247. Tomando esta vertente como ponto de partida, a grande maioria dos penalistas nacionais define a ação como “exercício da atividade finalista, no desenvolvimento de uma atividade dirigida pela vontade à consecução de um determinado fim” (PRADO, 2001, p. 106), “como atividade consciente dirigida a um fim” (DOTTI, 2001, p. 155-156; BITENCOURT, 1999, p. 5960; JESUS, 1985, p. 197; FRAGOSO, 1985, p. 152). Entendida desta forma, a ação em sentido jurídico-penal representaria o “fundamento psicossomático do conceito de crime” (SANTOS, 2006, p. 432)248, sem o qual este não poderia ser pensado. Ao vincular o conceito de ação à noção de vontade 247 A escola finalista tem como seu principal teórico o alemão Hans Welzel, que fundou seu sistema de pensamento em oposição à escola causalista, afirmando que a ação em direito penal deve ser entendida como “exercício da atividade finalista”, atrelando ao mero resultado causal da pessoa a necessidade de este ser orientado por uma vontade que lhe atribui um fim (WELZEL, 1969, p. 33). Mais detalhes sobre o tema podem ser encontrados no anexo n° 4 deste relatório. 248 Interessante notar a posição de Cirino dos Santos, que defende que a ação como “fundamento psicossomático do conceito de crime” estaria pressuposta em todas as vertentes da dogmática de direito penal, desde o modelo causalista até o modelo funcionalista (“social”). Não podemos concordar com este entendimento, pois ele nos parece retratar de modo equivocado o desenvolvimento teórico das últimas décadas. Ao fazer referência a modelos funcionalistas, Cirino dos Santos cita autores como Jescheck, Weigend e Roxin. Não obstante a enorme importância destes pensadores, eles não são, em definitivo, as únicas posições funcionalistas que teorizam sobre o conceito de ação. Autores do chamado “funcionalismo radical”, inspirados fundamentalmente na obra de Günther Jakobs (ver anexo n° 4 deste relatório), não são citados por Cirino dos Santos, o que leva este a afirmar, de modo equivocado, que toda a dogmática penal vincula a ação a elementos psicológicos de seus autores. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 320 que dirigiria a conduta para um determinado fim, a maioria dos teóricos brasileiros acabam por “psicologizar” esta categoria, fazendo com que ela se remeta, necessariamente, às características de comportamento que apenas os seres humanos poderiam realizar249. Neste sentido, afirmações como a de Pierangelli deixam claro este entendimento majoritário, ao sustentarem que “a conduta é voluntária quando nela existe uma decisão da parte do agente, por outras palavras, quando não é um simples resultado mecânico, automático. A conduta é voluntária ainda quando a decisão do agente não tenha sido tomada livremente, ou quando o agente a tome motivado por coação ou por circunstâncias extraordinárias.” (PIERANGELLI, 2004, p. 432). As conseqüências que tal concepção traz para a análise da responsabilidade penal da pessoa jurídica são sensíveis. Se se admite que o conceito de ação utilizado pelo direito penal está necessariamente atrelado à noção de vontade livre250, então aos entes coletivos faltaria, invariavelmente, capacidade de ação. De acordo com isso, costuma-se afirmar, no Brasil, que a própria noção de tipo subjetivo seria constituída com base nas funções do aparelho psíquico humano (SANTOS, 2006, p. 433; PRADO, 2001, p. 104; CERNICCHIARO, 1991, p. 142-143; BITENCOURT, 1999, p. 61). Assim, a doutrina nacional majoritária entende que, ainda que se admitisse a formação de uma vontade coletiva no seio da pessoa jurídica, o dolo que dirigiu a realização do ilícito continuaria se referindo, no limite, aos aparelhos psíquicos das pessoas físicas que a compõem (PRADO, 2001, p. 102; SANTOS, 2005, p. 15). Por esta ser a pedra fundamental da estrutura do delito251, faltando à pessoa jurídica capacidade de ação, seria conseqüentemente impossível admitir que um ente coletivo possa ser passível de responsabilidade penal (PIERANGELLI, 2004, p. 430; SANTOS, 2006, p. 432; PRADO, 2001, p. 105-106; MIRABETE, 1987, p. 106; CONSTANTINO, 1999, p. 1). É neste sentido que a maioria dos penalistas brasileiros 249 Neste sentido, um finalista como Régis Prado vai afirmar que a idéia de ação é dotada, invariavelmente, de um “coeficiente de humanidade” (PRADO, 2001, p. 104). Da mesma forma, ainda que partindo de outras premissas teóricas, negando a ontologização promovida pelo finalismo, a conclusão de que a ação em sentido jurídico penal é fenômeno humano também pode ser encontrada em autores como Juarez Tavares, que a define como “toda conduta conscientemente orientada em função de um objeto de referência e materializada tipicamente como expressão da prática humano-social”. Cf. TAVAREZ, 2007, p. 154 e seguintes. 250 Entendida por esta parte da doutrina como “energia psíquica individual produtora da ação típica” (SANTOS, 2006, p. 433). 251 Basta pensar que as categorias centrais da dogmática penal (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) têm por função sistêmica atribuir predicados a um determinado objeto. Por exemplo, uma um comportamento só pode ser típico e antijurídico se for entendido como ação (típica e antijurídica). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 321 vai afirmar que, sendo a ação um produto exclusivo do homem, o poder de escolha que a determina, por ser dirigido a um fim, somente seria atribuível às pessoas físicas (DOTTI, 2001, p. 155-156). As pessoas jurídicas careceriam de vontade em sentido psicológico e não teriam por essa razão capacidade de conduta em seu sentido ontológico, não podendo, assim, figurar no pólo ativo de delitos. (ZAFFARONI/PIERANGELI, 2007, p. 355). Dado que esta visão confere à natureza da ação humana (enquanto conduta orientada a fins) o papel de determinar as categorias jurídico-penais, seu caráter préjurídico é inegável. Por entenderem que “a ação não é criação da ciência jurídica”, e que “o direito apenas a toma do mundo real e lhe atribui uma valoração” (assim, por exemplo, PIERANGELLI, 2004, p. 430), a teoria majoritária no Brasil acaba tratando os conceitos penais como conceitos fixos, naturalmente determinados e dotados de uma referência pré-jurídica, fazendo com que a valoração procedida pelo direito tenha apenas caráter de mero reconhecimento, mas nunca de constituição de sentido. Levando em conta este tipo de crítica, alguns autores brasileiros vêm questionando as concepções psicologicistas do finalismo nacional, afirmando que seria, sim, possível pensar em uma vontade e, conseqüentemente, em uma ação própria dos entes coletivos. A concepção que começa a ser discutida procura analisar a complexa realidade interna às pessoas jurídicas, para dar novos contornos ao conceito de ação jurídico-penal. Nesse sentido, Rothenburg argumenta que, quando se trata de um ente coletivo, pode acontecer dos sentimentos dos homens que dele fazem parte se dissolverem na totalidade do sentimento do grupo (ROTHENBURG, 1998, p. 62), o qual seria, necessariamente, diferente das partes que o compõem. Este amálgama de vontades e sentimentos individuais, assim, passa a constituir um sentimento e uma vontade próprios, que, muitas vezes, chegam mesmo a contradizer as vontades individuais de seus elementos constituintes252. Deste modo, a partir desta vontade 252 A crítica feita pro aqueles que negam a responsabilidade penal das pessoas jurídicas acaba sendo, neste ponto, circular. Ao enfrentar o argumento de que há casos em que a ação institucional – fundada em uma vontade coletiva – chega mesmo a contradizer a vontade dos indivíduos que compõem o ente coletivo, a doutrina de viés finalista acaba tendo de se apoiar sob o dogma de a responsabilidade está necessariamente fundada na ação e na vontade humanas. Este tipo de circularidade pode ser notado, por exemplo, em Cirinos dos Santos, quando este afirma que “a chamada vontade coletiva – simulacro de espinha dorsal da ação institucional da pessoa jurídica – não pode ser confundida com a vontade consciente do conceito de ação da pessoa física: a vontade coletiva da ação institucional não contém os requisitos internos da ação humana, como base psicossomática do conceito de crime, que fundamentam a natureza pessoal da responsabilidade penal (SANTOS, 2006, p. 431). No mesmo sentido, ver DOTTI, 1995, p, 191 Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 322 coletiva, poder-se-ia falar também de uma ação coletiva, resultante não da motivação psicológica do ser humano, mas sim de sua “realidade sociológica” (SHECAIRA, 2003, p. 110). Ao reconduzir a categoria de ação jurídico-penal para um plano pragmático, o que esta vertente crítica visa é uma interessante “despsicologização” do conceito de ação, tal qual formulado pelos finalistas253. De fato, ela não nega que o ser humano tem papel fundamental tanto na tomada de decisão quanto na execução da vontade institucional. No entanto, esta parte minoritária da doutrina nacional questiona o fato de que isso seja justificativa suficiente para afastar a possibilidade de imputação do ente coletivo (SMANIO, 2001, p 169- 171). Isso porque o componente individual não poderia ser desvinculado de seu papel dentro do complexo social, pois isso implicaria em ignorar que, quando pertencente a um amálgama institucional, a ação individual perde sua particularidade e passa a integrar um complexo distinto (ROTHENBURG, 1988, p. 62-63). Partindo, portanto, de uma ação institucional (SHECAIRA, 2003, p. 110-111) que seria fundada em uma vontade própria da pessoa jurídica (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 89-90; CABETTE, 2003, p. 64), expressa por seus órgãos e independente da vontade daqueles que a compõe (SMANIO, 2001, p. 169), esta parte minoritária da dogmática penal brasileira tem defendido, nos últimos anos, a capacidade de ação das pessoas jurídicas. 253 O potencial crítico deste intento, no entanto, não exime de críticas a consistência de sua fundamentação. Ainda que afirme a necessidade de analisar a realidade sociológica para se pensar a responsabilidade penal dos entes coletivos, a postura de Shecaira nos parece excessivamente eclética, ao menos no que concerne ao uso que faz das categorias da teoria do delito. Em sua tese sobre o tema, Shecaira usa da idéia de “vontade coletiva” para afirmar a necessidade de revisão do argumento segundo o qual as pessoas jurídicas seriam incapazes de culpabilidade. Ora, se este autor fosse conseqüente com a idéia de que “se deve partir da realidade social” para analisar este problema, então não poderia usar de um conceito psicologizado como “vontade” para a definição de culpabilidade. Isso porque, como procuramos expor no item III.3.2 supra, uma perspectiva sociológico-normativa (como parece ser a da proposta de Shecaira) procuraria exatamente superar a idéia de que a culpabilidade se define como nexo psíquico entre autor e resultado, ou mesmo como reprovação por um uso desviante da liberdade individual. Em poucos termos, se Shecaira parte realmente de uma perspectiva normativa-sociológica (“da realidade social”), então o desvalor da culpabilidade deveria, para ele, se relacionar com a possibilidade de organizar seu próprio comportamento dentro das fronteiras da norma, não devendo se restringir à existência ou não de uma vontade livre, ainda que “institucional”. Basta se pensar, por exemplo, que uma empresa age quando um simples funcionário seu comercializa um de seus produtos, não sendo necessário, para tanto, que uma assembléia seja organizada para cada ato realizado para a pessoa jurídica; em poucos termos, de uma perspectiva normativa-sociológica conseqüente, seria necessário pensar em ações coletivas para além do paradigma psicologista da vontade, o que não é feito. Este tipo de incongruência pode ser vista, por exemplo, quando Shecaira cita os modelos de culpabilidade própria de ente coletivo formulados por Hirsch e Tiedemann, para, com isso, afirmar a possibilidade de se falar de uma “vontade coletiva” (SHECAIRA, 2003, p. 110-112). O que Shecaira esquece, no entanto, é que o que estes autores citados procuram fazer é precisamente negar à vontade o caráter definidor das categorias da teoria do delito. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 323 Capacidade de culpabilidade A depender da concepção de ação em sentido jurídico-penal da qual se parte, a discussão sobre uma possível adequação do conceito de culpabilidade pode mesmo ser considerada inócua. Isso porque, pela própria estruturação da teoria do delito, a discussão sobre os predicados que uma conduta pode ter, quando da análise a respeito de seu caráter penalmente ilícito, depende, antes de tudo, da possibilidade de entendê-la como ação. Neste sentido, para aqueles que entendem que a pessoa jurídica é incapaz de agir em sentido jurídico-penal, argumentos como a incapacidade de culpabilidade ou a infração ao princípio da pessoalidade da pena seriam desnecessários para se demonstrar a inviabilidade desse instituto, posto que, antes de tudo, os entes coletivos não teriam sequer capacidade penal de ação (ZAFFARONI / PIERANGELI, 2007, p. 355). Não obstante isso, apesar da grande maioria dos penalistas no Brasil afirmar a incapacidade de ação dos entes coletivos, verifica-se que a capacidade de culpabilidade das pessoas jurídicas ainda é um dos pontos mais debatidos no cenário nacional. 254 Em termos gerais, da mesma forma como ocorre com a ação, também a categoria da culpabilidade é, no Brasil, fortemente marcada pelo pensamento finalista. Nos termos tradicionalmente colocados, o princípio da culpabilidade – também expresso na fórmula nullum crimen sina culpa – seria um conceito complexo, composto pelos seguintes elementos: a) capacidade de culpabilidade (também conhecido como imputabilidade), b) real ou possível conhecimento da antijuridicidade da conduta, e c) exigibilidade de conduta adversa (DOTTI, 2001, p. 164; SIRVINSKAS, 1998, p.21; BITENCOURT, 1999, p. 63). 255 Para a maioria dos penalistas brasileiros, este é o único conceito de culpabilidade aplicável atualmente pelo Direito Penal. Definido-a necessariamente como “juízo de 254 Isso porque o conceito de culpabilidade acaba sendo trabalhado tanto por aqueles que defendem a responsabilidade penal da pessoa jurídica (e por isso, precisam fundá-la sobre algum modelo de culpabilidade próprio a elas), quanto por aqueles que, além de afirmar a incapacidade de ação dos entes coletivos, acabam sustentando também a incapacidade culpabilidade destes, como argumento subsidiário para rechaçar este modelo de responsabilização. 255 A exigência de ocorrência destes três elementos se justifica para indicar se o autor do ilícito sabe o que faz (imputabilidade e conhecimento da antijuridicidade, bem como se teria o poder de não fazer o que fez (exigibilidade de conduta adversa) – fatos necessários à fundamentação do juízo de reprovação que caracteriza a culpabilidade (FRAGOSO, 1985, p. 202). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 324 reprovação a um sujeito imputável que realiza, com consciência de antijuridicidade e em condições de normalidade de circunstâncias”, a doutrina nacional majoritária entende que a pessoa jurídica não é passível de agir com culpa (PRADO, 2001, p. 106; SANTOS, 2006, p. 440; ROBALDO, 1998, p. 1; BITENCOURT, 1999, p. 62). Em primeiro lugar, porque a pessoa jurídica não seria imputável (i.e., seria incapaz de culpabilidade), na medida em que noções como a de maturidade e sanidade mental, que seriam a base da imputabilidade, a ela não se aplicariam. Estes requisitos seriam necessariamente relacionados às pessoas físicas, e não poderiam, portanto, ser de forma alguma verificados na vontade produzida em reuniões deliberativas de um ente coletivo. A imputabilidade, por partir de critérios de capacidade bio-psicológica (DOTTI, 2001, p. 165), seria algo impossível de ser pensado de forma independente para as pessoas jurídicas (PRADO, 2001, p. 106-107).256 Em segundo lugar, porque a consciência de ilicitude do injusto, enquanto conhecimento da antijuridicidade concreta do ato (SANTOS, 2005, p. 228), que permitiria ao sujeito imputável saber o que faz, apenas poderia ser verificada no aparelho psíquico individual das pessoas físicas (DOTTI, 2001, p. 165-166). Neste sentido, “a vontade coletiva formadora da ação pragmática [seria] incapaz de representar a natureza proibida da ação típica” (SANTOS, 2006, p. 441). 257 256 Segundo Cirino dos Santos, admitir o contrário implicaria na aceitação de situações “absurdas”, como no caso em que é considerável imputável uma vontade coletiva formulada em assembléia constituída por dois sócios esquizofrênicos - e, portanto, inimputáveis (SANTOS, 2006, p. 440-441). Este tipo de argumento, no entanto, é fundamentalmente falho sob dois aspectos. Primeiramente, porque não leva em conta o fato de que as ações coletivas não se remetem necessariamente a uma vontade formulada no âmbito de uma reunião deliberativa; acreditar nisso significa, no limite, psicologizar a ação coletiva , ignorando a própria forma de funcionamento da estrutura hierárquica da pessoa jurídica, no âmbito da qual poderes e atribuições estão altamente pulverizados e muitas ações são tomadas sem que possam ser reconduzidas a cernes decisórios como uma assembléia. Em segundo lugar, é falho porque, ainda que se admita que as ações coletivas se remetem ao “cérebro” da assembléia, no exemplo citado não se poderia nunca falar de uma ação da pessoa jurídica, já que qualquer decisão tomada por dois esquizofrênicos seria, desde o início, nula já do ponto de vista civil (cf. CC, art. 166, I c/c art. 3º II). Ou seja, mesmo que fosse correto conduzir toda ação coletiva a uma decisão tomada por instâncias deliberativas, isso não acarretaria em aceitar como culpável uma “ação” fundada na decisão de dois homens (não apenas penalmente, mas também) civilmente incapazes. 257 A principal conseqüência para tal impossibilidade de verificação da consciência da ilicitude restaria na impossibilidade de aplicação do chamado erro de proibição. Ao não se poder pensar se e em que medida a pessoa jurídica conhecia a ilicitude de seu ato, a exclusão de culpabilidade de seus atos não poderia ser realizada com base na figura do erro de proibição, em nenhuma de suas modalidades (vencível ou invencível). Como se verá em seguida, e como se colocou também no anexo n°4 desta pesquisa, este diagnóstico pressupõe que a culpabilidade necessariamente estaria vinculada à noção de livre-arbítrio e à capacidade humana de decidir por uma ação conforme o Direito (assim ver, entre outros, PRADO, 2001, p. 106-107 e DOTTI, 2001, p. 166). Este pressuposto, no entanto, pode ser colocado em questão, ao se abrir espaço para formulações alternativas do conceito de culpabilidade, aplicáveis também às estruturas complexas dos entes coletivos. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 325 Por fim, as situações de exculpação fundadas na inexigibilidade de conduta diversa também seriam inaplicáveis à pessoa jurídica. Isso porque, segundo esta parte da doutrina, as situações de exculpação legais (coação irresistível, obediência hierárquica, excesso e legítima defesa real ou putativa) e supralegais (provocação de legítima defesa, conflito de deveres e desobediência civil) pressuporiam a sensibilidade a pressões ou perturbações emocionais, sensibilidade esta que apenas poderiam ser verificada no aparelho psíquico humano (PRADO, 2001, p. 107; CERNICCHIARO, 1991, p. 142-143; BITENCOURT, 1999, p. 64). Com base nestes argumentos, de matriz fortemente finalista, a maioria dos penalistas no Brasil estabelece uma relação necessária entre o juízo de reprovação de culpabilidade e as capacidades psico-biológicas do ser (humano). Nestes termos, a reprovabilidade, característica do moderno conceito de culpabilidade, é entendida como juízo formulável exclusivamente sobre as pessoas físicas. A nosso ver, tais pressupostos tendem a matizar o debate e forjá-lo sob bases naturalizantes, transformando os conceitos da teoria do delito em categorias ontológicas necessárias e empobrecendo a discussão sobre as mais adequadas formas de regulação em cada sociedade. Este procedimento fica claro em dois breves exemplos: quando os finalistas se posicionam, em relação a modelos alternativos de culpabilidade, se apoiando sempre sobre a necessariedade da categoria culpabilidade se referir ao juízo de reprovação sobre o livre-arbítrio daquele ser humano que decide agir contra o Direito, embora pudesse não o fazer258; e quando, em caráter mais geral, afirmam que a incompatibilidade da 258 A título de exemplo, Luiz Régis Prado e Juarez Cirino dos Santos fazem as seguintes avaliações acerca do modelo de culpabilidade própria proposto por Klaus Tiedemann (ver anexo n° 4 deste relatório): “o modelo analógico de culpabilidade, proposto por Tiedemann para a pessoa jurídica é pura ficção; afinal, os defeitos ou falhas de organização, que fundamentariam a culpabilidade da empresa, não seriam atribuíveis à pessoa jurídica, como pretende o modelo, mas às pessoas físicas dirigentes desta” (SANTOS, 2006, p. 442). “A culpabilidade por organização defeituosa decorreria não do ente coletivo por si só, mas das ações de seus órgãos e representantes. Assim, a fundamentação dessa teoria resultaria na violação do princípio da responsabilidade penal subjetiva. Com isso, não se teria um Direito Penal autêntico, tendo-se em vista que não haveria a culpabilidade por um fato típico, mas uma “responsabilidade pelo fato de se atuar em sociedade” (PRADO, 2001, p. 107). Estas afirmações deixam claro como o debate no Brasil tende a ser majoritariamente enfrentado: diante de novas formulações dogmáticas, que inclusive levam em conta aspectos relevantes de política criminal, a doutrina majoritária no Brasil argumenta que “as categorias da teoria do delito são determinações do ser”, que “a estrutura teológica do ser humano, a sua vida interior, é algo que legislador algum pode modificar” (PIERANGELI, 2004, p. 431). Deste modo, a dogmática “ontologicista” acaba por esterilizar o debate acerca de quaisquer novas formas de regulação, tornando rígida a estrutura categorial do sistema penal e negando qualquer possibilidade (ainda que fortemente coerente) de se repensar os critérios condutores do processo de imputação penal. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 326 responsabilidade penal das pessoas jurídicas com as categorias da dogmática de Direito Penal já é discutida há séculos. 259 Contra este tipo de rigidez analítica, uma parte minoritária do debate dogmático brasileiro procura, então, forjar uma série de argumentos que colocam em xeque a idéia de que a capacidade de culpabilidade é exclusiva do ser humano. Primeiramente, isto é feito a partir do questionamento da própria consistência do argumento da doutrina majoritária. Exemplarmente, autores como Shecaira e Lecey sustentam que a culpabilidade fundada na noção de autodeterminação livre e consciente seria, no limite, um truísmo, pois a noção de livre-arbítrio seria ontologicamente indemonstrável (SHECAIRA, 2003, p. 109; CABETTE, 2003, p. 58). Neste sentido, o corolário do conceito finalista de culpabilidade – o “poder agir de outro modo” – seria inconsistente, constituindo, na verdade, não um elemento constituinte do delito, mas sim um pressuposto lógico da própria possibilidade de imputação (LECEY, 1998, p. 46). Visto desta forma – como fundamento da punibilidade – a noção de culpabilidade deixa de estar vinculada ao livre-arbítrio, passando a ser aplicável, também, aos entes coletivos (SHECAIRA, 2003, p. 109). Em segundo lugar, a incapacidade de culpabilidade das pessoas jurídicas é questionada com um argumento negativo, baseado na comparação com a imputação formulada em outras esferas do Direito. Aqui, a questão que se coloca é a seguinte: “como justificar que se possa punir administrativamente, ou mesmo civilmente? Não seria uma burla de etiquetas permitir a reprovação administrativa e civil por um crime ecológico, mas não uma reprovação penal?” (ROTHENBURG, 1998, p. 62; SHECAIRA, 2003, p. 109). De uma perspectiva normativa, a pessoa passa a ser vista como centro de imputação, como sujeito de direitos e deveres. Assim, se os entes coletivos podem firmar contratos, ser herdeiros, ser responsabilizados civil e administrativamente, então também diante de uma infração penal eles poderiam ser tido 259 Neste sentido, César Roberto Bitencourt afirma que “há mais de um século debate-se a incompatibilidade dos conceitos dogmáticos de Direito Penal com a natureza e a essência da pessoa jurídica” (BITENCOURT, 1999, p. 52-53). Ora, não apenas o teor literal da frase, mas também suas implicações teóricas deixam evidente que este autor, assim como muitos outros, parte do pressuposto de que as categorias dogmáticas são estáveis e necessárias, constituindo hoje parâmetro legítimo de avaliação da responsabilidade dos entes coletivos da mesma forma como feito há um século atrás. As diferenças sociais entre estes períodos históricos, bem como as necessidades político-criminais que se impõem em cada um deles, são, desta forma, postas de lado, dificultando a reflexão a respeito de possíveis formas mais adequadas de regulação jurídica sobre novos fenômenos. O mesmo raciocínio pode ser verificado em CERNICCHIARO, 1991, p. 145-146. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 327 como autores do delito (RIBAS, 2002, p. 97). Este argumento, no entanto, não nos parece sustentável, se proposto de forma isolada. Sem dúvida nenhuma, conceber a pessoa como sujeito de deveres e direitos, desvinculando-a de análises morais, é conseqüente com uma teoria normativa de Direito Penal. No entanto, partir deste pressuposto não deve levar a ignorar as especificidades de funcionamento de cada uma das esferas do Direito, tomando-as como “mera burla de etiquetas”. Cada ramo pode ter regras de imputação distintas, sem que isso signifique que sejam ontologicamente distintos. A responsabilidade no Direito Penal – ao contrário de no Direito Civil, por exemplo – funciona historicamente vinculada à noção de culpa. Em outros termos: existe no Direito Penal a impossibilidade de responsabilidade objetiva. Assim sendo, ao invés de ignorar peremptoriamente a especificidade da responsabilidade penal em nosso sistema jurídico, afastando a necessidade de haver culpa para se imputar alguém, parece-nos mais adequado tentar reformular tal conceito, de forma a que ele possa dar conta também do fenômeno da responsabilização das pessoas jurídicas. 260 É neste sentido que parte minoritária da doutrina nacional vem sustentando, ainda que a passos lentos, um terceiro tipo de argumento contra a incapacidade de culpabilidade dos entes coletivos, baseado na adequação deste conceito à realidade da pessoa jurídica (ROCHA, 1998, p. 28; LECEY, 1998, p. 47). Assim, aceitando a idéia de que a responsabilização no Direito Penal não pode abrir mão do pressuposto de culpa do imputado (sob pena de violar o princípio da responsabilidade subjetiva), discute-se atualmente se, e em que medida, seria possível falar de uma culpa própria da pessoa jurídica. Isso se justificaria pelo fato de que exigir dos entes coletivos o mesmo que se exige dos indivíduos para a atribuição de culpa (imputabilidade, consciência de ilicitude e inexigibilidade de conduta diversa) implicaria não reconhecer a peculiaridade do fenômeno complexo que é a “pessoa jurídica” (LECEY, 1998, p. 47). Nestes termos, os modelos nacionais de culpabilidade própria da pessoa jurídica poderiam ser basicamente divididos em duas vertentes. A primeira acaba por solucionar a questão por meio da alusão a uma vontade coletiva. Este é, por exemplo, o caso de Shecaira e de Rothenburg, que sustentam a noção de culpabilidade da pessoa jurídica sob o fundamento de uma “vontade pragmática”, “institucional”, que, por ser independente das vontades individuais que a compõem, deveria ser passível de um juízo autônomo de reprovação (SHECAIRA, 2003, p. 110; ROTHENBURG, 1998, p. 62). 260 Para mais detalhes deste intento em nível internacional, ver anexo n°4 deste relatório. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 328 Esta visão, contudo, parece não conseguir romper totalmente com a concepção psicologizada de culpabilidade.Uma segunda vertente, por sua vez, ainda que de forma muito genérica, parece apontar para caminhos mais promissores, procurando desvincular o conceito de culpabilidade da noção de vontade, afirmando que aquele deve estar fundado, em relação às pessoas jurídicas, sobre critérios outros que não os formulados pelo finalismo. Assim, por exemplo, Eládio Lecey e Araújo Júnior afirmam que, como para as pessoas jurídicas a finalidade da pena não consiste no impacto sobre a modificação da vontade (i.e. do juízo interno de reconhecimento do erro, como ocorreria com as pessoas físicas), mas sim na exemplaridade e na retribuição, o juízo de reprovação poderia legitimamente prescindir da consciência de ilicitude (LECEY, 1998, p. 47), devendo ser entendida como decorrente de uma organização defeituosa que estrutura a própria pessoa jurídica (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 93-94). A nosso ver, apesar da coerência geral do pressuposto segundo o qual aos entes coletivos não se pode querer aplicar os mesmos conceitos aplicados às pessoas físicas, as formulações e os modelos de culpabilidade própria da pessoa jurídica são, no Brasil, ainda muito pouco elaborados. Não obstante isso, tais modelos mostram que o debate está aberto a novos desenhos e que os conceitos dogmáticos não são tão unívocos como a doutrina majoritária afirma. Pelo contrário, eles estão em constante e permanente disputa, devendo ser avaliados não apenas em termos de coerência interna e teórica, mas também no que concerne às conseqüências que a adoção de uma ou de outra vertente trazem consigo. Neste contexto, não apenas a discussão dogmática passa a ser renovada, mas também um outro campo, pouco explorado no Brasil, passa a ser palco de debates: o campo da política criminal. 2.3 Discussão no campo da política-criminal No Brasil, o debate jurídico no campo da política criminal é ainda muito incipiente. Tradicionalmente limitados a discussões em torno da consistência interna do sistema de delito, os juristas brasileiros não têm a tradição de trabalhar aprofundadamente com questões relacionadas à forma mais adequada de se atingir uma determinada finalidade da pena, aos problemas práticos e às possíveis soluções concretas para uma efetiva regulação de novos problemas. Os diagnósticos dos quais se Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 329 parte costumam ser pouco fundamentados e estudos empíricos são raros no debate brasileiro. No que diz respeito ao tema da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, a discussão no campo da política criminal parece, logo de partida, sofrer de uma forte deficiência de clareza metodológica. As duas principais questões político-criminais – as dos fins a serem perseguidos pelo sistema penal e a dos meios necessários para tanto – encontram-se, no Brasil, pouco delimitadas, sendo mesmo possível verificar que, muitas vezes, as finalidades da regulação penal são discutidas sem que se faça referência a quais seriam os meios mais adequados e legítimos de sua formulação. Por este motivo, a seguir, procuramos reconstruir a discussão sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, categorizando as linhas argumentativas encontradas em nosso debate. Para tanto, consideramos fundamental distinguir, de um lado, os argumentos que se dirigem aos fins que se pretende alcançar com a responsabilização penal dos entes coletivos e, de outro, os que trataram dos meios adequados para que estes fins possam ser atingidos. Fenômenos de criminalidade coletiva e a incapacidade de respostas do Direito Penal tradicional Em geral, as necessidades político-criminais que motivam a responsabilização penal das pessoas jurídicas não são abordadas de forma detida pelos teóricos nacionais. Pelo contrário, a maioria das manifestações sobre o tema costuma ser formulada em termos exclusivamente dogmáticos, limitando-se a afirmar ou negar a compatibilidade deste instituto com as categorias tradicionais da teoria do delito ou com os princípios adotados por nossa Constituição, nos termos expostos nos itens 2.1 e 2.2 supra. Assim, os reais problemas que esta forma de responsabilização visa combater costumam ficar geralmente à margem da reflexão teórica realizada pelos juristas nacionais. Quando trabalhadas, as motivações que induziram o legislador nacional a introduzir, na Constituição e na Lei de Crimes Ambientais, disposições que regulam a responsabilidade penal da pessoa jurídica são avaliadas de forma ambivalente. Por um lado, alguns dos mais renomados penalistas brasileiros tendem a reduzir a opção do legislador pela responsabilização coletiva a “uma mera necessidade utilitarista”. É o que se verifica, por exemplo, em Luiz Régis Prado, que acaba Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 330 praticamente por negar a relevância político-criminal da responsabilidade penal da pessoa jurídica, sem dar maiores fundamentos para tanto. Ao analisar o tema, este autor afirma que seria “imperiosa a necessidade de proteger a pessoa humana do risco de sua instrumentalização pelo poder estatal. O homem não pode ser considerado como simples meio para a persecução de finalidades político-criminais, ainda que de defesa social” (PRADO, 2001, p. 109 e 110). Outros autores que abordam o tema sob o prisma político-criminal dão relevância aos problemas que a adoção do instituto visa responder. Admitindo-se que as peculiaridades da vida contemporânea estimulam os indivíduos a abrigarem-se sob o manto de proteção dos entes coletivos, tem sido largamente aceito o fato de que delitos contra a ordem econômica, contra o meio-ambiente, contra a fé-pública, entre outros, são praticados em larga escala por intermédio de pessoas jurídicas (ROCHA, 1998, p. 26; ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 73; ROTHENBURG, 1998, p. 59; MILARÉ, 2000, p. 355, SHECAIRA, 2003, p. 112). Assim, mesmo autores como Robaldo, Dotti, Cernicchiaro e Bitencourt, que se posicionam contra a responsabilização penal dos entes coletivos, admitem que as pessoas jurídicas estão, cada vez mais, sendo usadas como meio para a realização de atividades ilícitas altamente complexas. Haveria, neste sentido, uma forte “necessidade por sanções vigorosas para coibir e prevenir que as pessoas jurídicas transitem impunemente na ilegalidade” (CERNICCHIARO, 1991, p. 142; BITENCOURT, 1999, p. 69), sendo essencial proteger juridicamente valores como o equilíbrio do meio-ambiente e a higidez do sistema financeiro (ROBALDO, 1998, p. 1; SANTOS, 2006, p. 424). Frente a este contexto de crescente importância da criminalidade coletiva na atualidade, são diagnosticadas as dificuldades práticas para combater tal fenômeno, sendo centrais as que derivariam da inadequação do modelo de imputação individual do Direito Penal tradicional para combater estes novos fenômenos. Parte da doutrina identifica que os mecanismos penais tradicionais seriam insuficientes para controlar as condutas ilícitas vinculadas aos entes coletivos.261 E isso 261 Um claro exemplo deste tipo de situação é citado por Shecaira: “quando em uma grande empresa utiliza-se um documento falso, é possível – e até provável – que quem com ele vai trabalhar não tenha o conhecimento de sua origem ilícita. Nestas circunstâncias os funcionários dirão a si mesmos, com toda a sinceridade, que fizeram algo que estavam obrigado a fazer. Ao mesmo tempo não previram como é que seriam interpretadas suas decisões por seus subordinados. Estes últimos ignoravam o significado da atividade global ao qual contribuíram com seus aportes individuais. Na realidade, não estavam obrigados, tampouco, a conhecer esse significado” (SHECAIRA, 2003, p. 114). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 331 por três principais motivos: a) em primeiro lugar, porque este tipo de ambiente, altamente hierarquizado e marcado por uma forte divisão de funções, acabaria por dificultar a produção de provas e a identificação dos possíveis responsáveis individuais pelos danos (SHECAIRA, 2003, p. 112-113), contribuindo para o estabelecimento de uma “irresponsabilidade organizada” (LECEY, 1999(a), p. 36; LECEY, 1998, p. 38); b) em segundo lugar, porque a punição de apenas um ou alguns indivíduos tenderia a não afetar o ente coletivo em seu ímpeto delituoso, dado que, neste tipo de criminalidade, o exercício das funções é contingente, sendo absolutamente viável que outro empregado venha a desempenhar as condutas antes realizadas pelo indivíduo penalizado (ROTHENBURG, 1998, p. 61; SHECAIRA, 2003, p. 112-113; LECEY, 1999(a), p. 3536); c) por fim, porque a punição que a responsabilidade individual muitas vezes recai exclusivamente sobre dirigentes ou administradores da pessoa jurídica, resultando, em alguns casos, em uma forma de responsabilidade objetiva destes, ao fazer com que um indivíduo responda por todos os ilícitos cometidos em âmbito coletivo (SHECAIRA, 2003, p. 113). Para superar estas dificuldades enfrentadas por um Direito Penal tradicionalmente formulado sobre o paradigma do homicídio individual262 e ineficaz no combate de ilicitudes praticadas no âmbito de entes coletivos, é que alguns penalistas brasileiros sugerem como solução a inclusão da pessoa jurídica como sujeito de imputação penal. Através da adoção da responsabilidade penal coletiva, afirma esta vertente, não seria mais necessário enfrentar as dificuldades de individualização dos autores e das condutas ilícitas, dado que os delitos passam a ser imputados à pessoa jurídica como um todo.263 Mais ainda, a adoção da responsabilização coletiva evitaria que a penalização recaísse sobre o último homem da cadeia hierárquica, o qual, por medo, tende a não incriminar seus superiores. (LECEY, 1999(a), p. 36). Entretanto, nem sempre as respostas jurídicas para o problema da individualização da conduta são propostas em termos jurídico-penais. Neste sentido, diversos juristas brasileiros afirmam que o combate eficaz às infrações coletivas poderia ser feito por meios outros que não pelo Direito Penal, já que o ordenamento jurídico 262 Para detalhe, ver anexo n° 4 deste relatório. 263 Neste sentido, Lagrasa sustenta que seria inconcebível, tendo-se em vista a complexidade existente dentro de empresas nacionais e multinacionais, onde há reiterada e intensa transferência de responsabilidades, admitir-se que o Judiciário se mantenha estático durante anos a fim de aguardar investigações que venham a aferir quem seria o responsável pelo cometimento de determinado crime (LAGRASA, 2002, p. 01). Criticamente, ver DOTTI, 2001, p. 168-169. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 332 disporia de uma gama de sanções de outras ordens, quer de Direito Civil, quer de Direito Administrativo, que poderiam se mostrar mais adequadas (ROBALDO, 1998, p.1; ESTELLITA/ COSTA, 2003, p. 02). Isso porque, ao se utilizar o Direito Penal para combater estes novos fenômenos, seria necessário abrir mão de princípios essenciais a sua esfera (intervenção mínima, culpabilidade, tipicidade estrita, etc), o que não ocorreria ao se utilizar das esferas civis e administrativas (BITENCOURT, 1999, p. 6567; CERNICCHIARO, 1991, p. 142-143; SANTOS, 2006, p. 424; DOTTI, 2001, p. 149-168). Neste ponto, torna-se fundamental a discussão a respeito de ser ou não a responsabilidade penal da pessoa jurídica um meio adequado para a consecução da finalidade de combater eficazmente a criminalidade coletiva. A responsabilidade penal da pessoa jurídica como um meio adequado para o combate da criminalidade coletiva No debate brasileiro, as respostas para esta pergunta são pouco abordadas e os argumentos encontrados podem ser categorizadas sob três principais pontos. Em primeiro lugar, discute-se a adequação de se adotar a responsabilidade penal dos entes coletivos com base no fato de que estes não podem ser alvos de pena privativa de liberdade. Em segundo lugar, discute-se se, de fato, a responsabilização penal coletiva favoreceria ou, na verdade, prejudicaria o combate aos verdadeiros culpados pelas infrações. Em um terceiro e último ponto, discute-se se as finalidades da pena – sejam de prevenção, sejam de retribuição – poderiam ser alcançadas neste tipo de responsabilização. Necessidade de penas privativas de liberdade no Direito Penal De forma pulverizada e beirando o senso-comum, é possível encontrar, na doutrina brasileira, manifestações contrárias à responsabilização penal de pessoas jurídicas com base no argumento de que estas não seriam passíveis de sofrer penas privativas de liberdade. Na medida em que um ente coletivo não pode ser efetivamente preso, a regulação penal de suas ações seria um absurdo lógico, uma contradição em seus próprios termos (SANTOS, 2006, p. 4446; THOMPSON, 2000, p. 220-221). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 333 A nosso ver, este tipo de posicionamento é equívoco sob vários aspectos. Em primeiro lugar, porque é expressão dos ranços naturalizantes da racionalidade penal moderna, ao tratar como necessária a relação entre crime e pena de prisão, fazendo desta a única resposta possível dada pelo Direito Penal. Hoje vem sendo chamada atenção para o fato de que as sanções penais são de muitos tipos, desde aquelas restritivas de direito até a imposição de multas pecuniárias (ROTHENBURG, 1998, p. 64). A pena privativa de liberdade não apenas não é a única forma de resposta penal aos conflitos como, ainda, pela idéia de intervenção mínima, deve ser utilizada apenas quando não haja alternativas menos gravosas para se combater o fato delituoso (CABETTE, 2003, p. 67). Levando-se em conta o fato de ser hoje amplamente aceito que a pena privativa de liberdade deve ser usada com parcimônia, seria até mesmo contraditório afirmar que a impossibilidade de prisão dos entes coletivos constitui em um óbice para a sua responsabilização penal (SHECAIRA, 2003, p. 107). Além disso, argumenta-se, a pena privativa de liberdade seria inclusive menos adequada do que outras sanções em muitos casos. A exemplo dos crimes ambientais, a prisão dos responsáveis por um dano seria muito menos adequada do que medidas como a suspensão parcial ou total das atividades do ente coletivo por ele responsável, a prestação de serviços à comunidade, o custeio de projetos ambientais, a publicação da sentença às expensas da condenada, etc. (SHECAIRA, 2003, p. 107; LECEY, 1998, p. 44). Em segundo lugar, o posicionamento de que a regulação penal desprovida da possibilidade de prisão seria um absurdo lógico é equívoco porque desconsidera as diferenças processuais que a adoção deste modelo de regulação implica. A adoção da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, embora não possa usar da pena de prisão, não instaura uma responsabilidade análoga à civil ou à administrativa. Isso porque o Direito Penal é dotado de um procedimento peculiar, com garantias rígidas, de um lado, mas com instrumentos poderosos na aferição de fatos delituosos. Por este motivo, seria equivocado pensar que a adoção da responsabilidade penal sem prisão não tem qualquer sentido, podendo ser óbvia e facilmente substituída pela regulação administrativa ou civil. Este tipo de consideração, no entanto, não é encontrado no debate brasileiro, constituindo toda uma nova agenda de pesquisa jurídica ainda a ser conduzida. O problema da responsabilidade coletiva como forma de acobertar “os Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 334 verdadeiros culpados”. Um segundo argumento contrário à adoção da responsabilidade penal das pessoas jurídicas afirma que esta levaria a um acobertamento dos “verdadeiros culpados” pelas infrações. Segundo autores como Regis Prado, este instituto camuflaria a vontade de pessoas físicas que controlam e dirigem as ações dos entes coletivos, impossibilitando a punição daqueles que se aproveitariam da estrutura de uma empresa a fim de cometer ilícitos (PRADO, 2001, p. 114; CONSTANTINO, 1999, p.1-2). Assim, partindo da idéia de que “nas grandes e nas pequenas sociedades mercantis sempre há um número limitado de pessoas, perfeitamente identificáveis, que decidem tudo à margem dos sócios” (PRADO, 2001, p. 111), esta vertente da doutrina afirma que seria sobre tais indivíduos, e não sobre a pessoa jurídica que deveria recair a sanção penal. Neste sentido, só se deveria responsabilizar penalmente quando pudesse ser identificado e individualizado os autores físicos dos fatos praticados; caso contrário, correr-se-ia o risco de formular uma “pura penalização formal das pessoas jurídicas” (BITENCOURT, 1999, p. 68-69). No limite, poderia ocorrer a criação de sociedades de fachada, de modo que os indivíduos efetivamente responsáveis pelas infrações deixassem de ser penalmente sancionados. Nestes termos, a atribuição de responsabilidade própria à pessoa jurídica estimularia a impunidade, fazendo com que a investigação deixe para segundo plano a identificação dos prepostos dos entes coletivos (DOTTI, 2001, p. 144). Desta forma, o objetivo de combater a complexa criminalidade praticada no âmbito destes organismos acabaria não sendo atingido nem mesmo em caso de dissolução de uma empresa, pois nada impediria que as pessoas físicas “realmente responsáveis pelo delito” voltem a realizar novas infrações sob o manto de outra pessoa jurídica (CABETTE, 2003, p. 74-75). Este tipo de argumento guarda profundas relações com a concepção dogmática da qual parte seus defensores. Como exposto anteriormente, de uma perspectiva finalista, a pessoa jurídica nunca poderia agir no sentido próprio do termo, já que a ela faltaria o componente bio-psicológico básico a qualquer ente penalmente imputável: a vontade. Ao negar a ação própria do ente coletivo, posições como esta acabam por negligenciar os problemas concretos da criminalidade praticada no âmbito de coletividades. Nesse sentido, afirmar que nos entes coletivos “sempre há um número limitado de pessoas, perfeitamente identificáveis” é um truísmo que não se sustenta Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 335 quando se tem em conta a realidade das sociedades contemporâneas e o problema concreto de casos penais sem resultado por impossibilidade de individualização adequada de condutas. Em segundo lugar, o argumento segundo o qual a responsabilização do ente coletivo geraria o “acobertamento dos verdadeiros responsáveis” é discutível, primeiro, porque a princípio (e nos modelos que estudamos) a responsabilidade coletiva não afasta a responsabilidade individual. Nesse sentido, o principal dispositivo constitucional a respeito do tema, (CF, art. 173, §5°) determina que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza” (grifos nossos). Além disso, as relações entre responsabilidade individual e coletiva dependem do modelo de responsabilização adotado, que pode ser desenhado de diversas maneiras. Em última análise, a não incidência da regulação penal se dá por um fundamento de incompatibilidade a priori e não por uma avaliação de política criminal sobre a adequação ou não da regulação penal. A adequação para atingir as finalidades da pena. Por fim, um terceiro argumento político-criminal correntemente levantado se refere a uma eventual impossibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica para atingir as chamadas finalidades da pena. Este ponto, no entanto, embora seja correntemente mencionado no debate político-criminal brasileiro, não é abordado de forma sistemática. No geral, apenas argumentos genéricos são levantados, sem uma fundamentação adequada dos posicionamentos. Estudos de ordem empírica são inexistentes. De qualquer modo, procuraremos reconstruir alguns dos principais pontos levantados pelos juristas nacionais sobre esta questão, procurando, na medida do possível, agrupá-los. Aqueles que se utilizam as posicionam contra a adoção da responsabilidade penal das pessoas jurídicas sustentam seu posicionamento analisando principalmente duas finalidades da pena: a de prevenção especial positiva e a de prevenção geral negativa. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 336 Em primeiro lugar, costuma-se afirmar que a responsabilização penal das dos entes coletivos não seria adequada para atingir os fins de prevenção especial positiva, na medida em que elas não teriam capacidade de arrependimento, necessária a sua futura reintegração na sociedade (PRADO, 2001, p. 108; CONSTANTINO, 1998, p. 1). Por não poderem sofrer as conseqüências morais da pena, os entes coletivos nunca poderiam ser reeducados (SANTOS, 2006, p. 446). Neste sentido, costuma-se argumentar que seria absurdo admitir efeitos de prevenção especial positiva para as pessoas jurídicas, pois a estas não se aplicariam as idéias norteadoras da execução penal (cf. art. 1º, Lei n.º 7.210/84), cujo objetivo central seria “efetivar as disposições de sentença ou de decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (DOTTI, 2001, p. 167). Em segundo lugar e partindo desta mesma chave, a incapacidade psicológica de sentir a reprovação formulada penalmente seria também um obstáculo à realização da chamada prevenção geral negativa - caracterizada pelo efeito intimidador da pena perante possíveis futuros delinqüentes. Na medida em que tal intimidação exigiria a capacidade de reconhecer a punição de outra pessoa jurídica como “expressão de sofrimento e tormento”, a responsabilidade penal dos entes coletivos também não seria adequada para atingir esta finalidade (PRADO, 2001, p. 108; DOTTI, 2001, p. 166). Como se pode ver, estes argumentos são marcados por uma concepção fortemente psicologizada do fenômeno do crime. Segundo ela, não apenas os conceitos de culpabilidade e de ação penal, mas também as próprias finalidades da punição estatal devem estar fortemente atreladas ao aparelho psíquico do autor do delito. Assim, quando este inexiste, esta vertente acaba por negar não apenas a possibilidade de construção dogmática de uma responsabilidade penal coletiva, mas também a própria viabilidade desta para atingir as finalidades do sistema penal. Levando isso em conta, encontramos posturas críticas a esta concepção psicologicista das finalidades do Direito Penal, por não se coadunar com o atual desenvolvimento teórico deste campo (CABETTE, 2003, p. 70-71). Segundo estes autores, um dos principais objetivos atribuídos modernamente à pena consiste na chamada prevenção geral positiva, caracterizada pela reafirmação – através da sanção estatal – da ordem jurídica questionada pelo ato delituoso. Assim, afirmam que pensar em impor objetivos morais a uma empresa, mais do que um contra-senso, seria ainda uma forma de reavivar algo que mesmo em relação às pessoas físicas não deveria ser Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 337 aplicado (SHECAIRA, 2003, p. 107; ROTHENBURG, 1998, p. 64). Neste mesmo sentido, penalistas como Araújo Júnior entendem que a intimidação de infratores ou possíveis infratores por meio do sofrimento não seria mais um valor em si, pois a idéia atual do Direito Penal seria o de “reforçar a validade e utilidade das normas dentro da convivência na sociedade”. Neste contexto, portanto, não seria tão importante o fato de o infrator da norma ser uma pessoa física ou uma pessoa jurídica (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 94). Para além disto, os autores a favor da responsabilidade penal da pessoa jurídica ainda questionam a forma pela qual costuma-se negar a capacidade de intimidação dos entes coletivos. Embora não questionem o fato de que estes não possuem atividade psicológica, a função preventiva da pena estaria atendida também no caso de punição das pessoas jurídicas. Isso porque estas realizam suas ações por meio dos indivíduos que delas fazem parte, que por sua vez podem, enquanto participantes da estrutura coletiva, sofrer os efeitos intimidatórios de uma intensa sanção dirigida a ela (ROCHA, 1998, p. 28; LECEY, 1999(a), p. 11-12). Neste ponto, não apenas seria possível pensar em intimidação do ente coletivo, como também esta apenas seria satisfatória se a responsabilização fosse dirigida a ele, e não às suas pessoas físicas; isso porque, por exemplo, a imposição de multa destas por um ato que beneficia a empresa tenderia a ser fixada com base na fortuna do indivíduo, não gerando, portanto, qualquer dissuasão relevante frente à pessoa jurídica como um todo. Em outras palavras, a prevenção geral negativa poderia ser bem mais efetiva se uma multa fosse fixada tendo como base o patrimônio da empresa (SHECAIRA, 2003, p. 109) 264. Para alem desses argumentos, o debate nacional é bastante pobre diante da complexidade do tema das sanções mais adequadas às pessoas jurídicas e seus possíveis efeitos. De modo geral, resta claro que, no seio da doutrina brasileira, a discussão a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica encontra-se ainda limitada. Do ponto de vista dogmático, a maioria dos penalistas ainda está presa ao finalismo, o que acaba por naturalizar um modelo de teoria do delito que inviabiliza o debate; por outro lado, aqueles que se colocam a favor da adoção deste instituto acabam 264 Shecaira e Rothenburg lembram a possibilidade de divulgação na mídia da condenação do ente coletivo, fato que poderia ter repercussões negativas para a imagem desta no mercado, intimidando-a a não seguir em suas atividades delituosas (SHECAIRA, 2003, p. 108; ROTHENBURG, 1998, p. 64). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 338 não desenvolvendo consistentemente questões fundamentais sobre o tema, tais como os termos em que a ação da pessoa jurídica é realizada, qual o modelo de culpabilidade mais adequado para a imputação de sua responsabilidade, de que maneira devem-se estabelecer as relações entre as pessoas jurídicas e as pessoas físicas a fim de que estas possam vinculá-las penalmente. Do ponto de vista político-criminal, por sua vez, o debate é ainda mais deficitário. Em primeiro lugar, porque a maioria dos penalistas brasileiros sequer reflete sobre os problemas que a adoção da responsabilidade penal dos entes coletivos procura resolver. Quando o fazem, verifica-se uma clara deficiência de estudos empíricos que fundamentem os posicionamentos colocados. Mais ainda, a discussão sobre os fins da pena é colocada de forma assistemática, na medida em que nenhum autor reflete pormenorizadamente sobre cada uma das funções do Direito Penal e sobre como estas poderiam ser alcançadas através da responsabilidade penal dos entes coletivos. 2.4. Outras questões levantadas pela doutrina acerca da lei dos crimes ambientais. A despeito das insuficiências formuladas no campo teórico, é possível se verificar, ainda que muito pontualmente, questionamentos doutrinários relevantes a respeito da lei dos crimes ambientais, os quais decorreriam, em grande parte, da omissão do legislador em aspectos considerados essenciais para uma imputação específica da pessoa jurídica. Tal omissão fundamentou a reação de alguns autores contra a admissão da aplicação concreta do instituto. Neste sentido, tem-se afirmado que a Lei n.º 9605/ 98 nada mais teria feito do que enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la. Por uma falta de concretude a respeito dos pressupostos e detalhes da imputação coletiva, esta disciplina normativa não seria passível de aplicação concreta (ROBALDO, 1999, p. 98). De qualquer forma, até o presente momento, muitas questões relativas à interpretação desta lei permanecem em aberto. Poucos juristas se ocuparam realmente da definição de critérios mais concretos para a imputação penal da pessoa jurídica, bem como da solução das lacunas e demais problemas existentes nestes diplomas normativos. A seguir, apontaremos sucintamente os principais aspectos levantados pela doutrina nacional nesse sentido. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 339 Modelo de responsabilização O art. 3° da Lei n.º 9605/98, supracitado, define as condições para que haja imputação penal da pessoa jurídica no âmbito dos delitos ambientais. Os critérios de responsabilização por ele determinados seriam dois. Primeiramente, a infração precisaria ter sido cometida por decisão do representante legal, contratual ou órgão colegiado da pessoa jurídica. Isso, no entanto, parece altamente vago, na medida em que o conteúdo deste preceito não é absolutamente assentado no debate nacional. Diante disto, na intenção de delimitar o conteúdo e alcance desse critério, autores como Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas entendem que o representante legal seria aquele que retira as suas atribuições da lei. Nesta hipótese, portanto, o representante não seria constituído em decorrência do ajuste dos sócios, e sim de dispositivo legal. Este entendimento teria sustentação no então vigente art. 302, inc. III do Código Comercial, que determinava que, caso haja omissão no contrato, todos serão considerados habilitados a gerir e, desta maneira, todos serão considerados representantes da pessoa jurídica. (FREITAS/FREITAS, 2001, p. 68-69). Em segundo lugar, seria necessária a presença de um interesse ou benefício da empresa. Para determinação deste critério, no entanto, as posições são as mais diversas, e não há até o momento uma definição a esse respeito. Há quem sugira, por exemplo, que as situações onde existam interesse ou benefício da empresa deveriam ser avaliadas caso a caso, cabendo à empresa provar o contrário, ou seja, presumir-se-ia sempre que a atuação dessas pessoas estivesse em jogo que houve para a empresa vantagem decorrente da mera prática do crime a ela imputado (FREITAS/FREITAS, 2001, p. 70 e seguintes). Outro ponto indefinido se refere à necessidade ou não de se comprovar a existência de concurso entre a pessoa física e a pessoa jurídica no cometimento do ilícito durante o curso processual. Por um lado, uma vertente tem afirmado que a lei de crimes ambientais teria adotado um sistema de dupla imputação. Isso significaria que a punição de um agente não permitiria deixar de lado a persecução daquele que concorreu para a realização do crime - seja por meio da co-autoria, seja por meio da participação (SHECAIRA 2003, p. 145); nestes termos, pelo fato da pessoa jurídica agir Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 340 objetivamente por intermédio de uma pessoa natural, dever-se-ia considerar aquela como autora mediata. Tratar-se-ia necessariamente de uma situação de co-autoria entre a pessoa jurídica e a pessoa física. Desta maneira, seria possível aplicar, “com breves adaptações”, a disposição do concurso de pessoas do Código Penal a fim de se punir criminalmente a pessoa jurídica (SHECAIRA, 2003, p. 148-149). Por outro lado, há quem entenda que a denúncia não deva necessariamente apontar as duas pessoas, podendo ser dirigida apenas ao ente coletivo, caso não se descubra as pessoas físicas envolvidas – o que se justificaria pelo fato de que justamente para essas situações é que a responsabilização penal das pessoas jurídicas teria sido criada (FREITAS/FREITAS, 2001, p. 67). Penas aplicáveis As penas aplicáveis às pessoas jurídicas encontram-se previstas nos art. 21 a 23 da Lei n.º 9.605/98. Não acompanham, portanto, cada um dos tipos. Dentre as possíveis penas se exclui, obviamente, a pena privativa de liberdade, sendo as sanções possíveis de serem aplicadas, de acordo com a lei, a multa, a pena restritiva de direitos ou a prestação de serviços à coletividade, cumulativamente ou alternativamente, como determina o seu art. 21. A pena de multa, conforme o disposto no art. 18 da Lei nº. 9.605/98, será calculada de acordo com os critérios do Código Penal, considerando-se o valor da vantagem obtida com o ato ilícito. Quanto ao cálculo do dia-multa, não foi elaborado procedimento de cálculo específico para a pessoa jurídica. Deste modo, a pena de multa será calculada com base no art. 49 do Código Penal e, caso se revele ineficaz, mesmo que venha a ser aplicada no valor máximo, poderá sofrer aumento de até três vezes, dependendo do valor que tenha sido auferido pela empresa com a prática do delito e da situação econômica da empresa (Lei n.º 9.605/98, art. 6° e 18). Logo, a dosagem da multa, de acordo com Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, deverá levar em conta ainda a gravidade do delito, o grau de reprovação da conduta, o resultado do dano causado e o princípio da individualização da pena - art. 5°, XLVI, CF (FREITAS/FREITAS, 2001, p. 72-73). As penas restritivas de direitos, por sua vez, estão previstas no art. 22 da lei e consistem: na suspensão parcial ou total de atividades, na interdição temporária de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 341 estabelecimento, na obra ou atividade e na proibição de contratar com o Poder Público, obter subsídios, subvenções ou doações. A prestação de serviços à comunidade se dará com o custeio de programas e projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas, manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas (Lei n.º 9.605/98, art. 23). 265 Além disso, a pena restritiva de direito vem sendo alvo de discussão no que concerne a sua duração. Isso se deve ao fato de que o art. 55 da lei determina que ela terá a mesma duração que a pena privativa de liberdade cominada ao crime, de modo que o legislador não teve o cuidado de converter as penas privativas de liberdade, endereçadas aos indivíduos, para as respectivas penas aplicáveis às pessoas jurídicas. No tocante às penas restritivas de direito, não haveria ainda qualquer critério legal que estabelecesse uma proporção entre o crime e a duração das penas, sem existir também um limite máximo previsto para os gastos a serem despendidos pela empresa (ESTELLITA/COSTA, 2003, p. 1-4). Ausência de regras processuais específicas Além das questões penais que a Lei dos Crimes Ambientais oferece, existem ainda problemas de ordem processual que representam grandes desafios para a aplicação do instituto em tela, uma vez que a lei de crimes ambientais não teria trazido previsões específicas quanto à pessoa jurídica, a fim de adaptar o direito processual penal a esse novo centro de imputação da pena. Diante disso, encontramos algumas tentativas de soluções para esta lacuna. Neste sentido, há, por exemplo, quem sugira que essa falta de disciplina da Lei n.º 9605/98 seja suprida pelas normas do Código de Processo Penal, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. (SICOLI, 1998, p. 1-3). Outros, por sua vez, sustentam que a solução adotada nacionalmente seja a mesma tomada na França, a implementação da previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Código Penal fora editada posteriormente a Lei nº. 92-1336, de 16.12.1992, com a finalidade de 265 Neste ponto, interessante levar em conta a crítica feita por Freitas e Freitas no sentido de que, caso a pessoa jurídica seja condenada, a pena que prevê limite de 1 a 3 anos não poderá ser extrapolada por mais do que esse período, mesmo que o restabelecimento do dano necessite de mais tempo do que isso (FREITAS/FREITAS, 2001, p. 72-73). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 342 realizar as modificações necessárias ao Código de Processo Penal, tal qual o modo pelo qual se dará a citação da empresa e a definição do seu domicílio, entre outras (SHECAIRA, 1998, p.2). De modo geral, da mesma forma que a reflexão sobre os aspectos teóricos que envolvem o instituto em questão, também os problemas pontuais da adoção desta forma de responsabilização são tratados superficialmente e de modo assistemático. As possíveis incongruências e as lacunas verificáveis em termos de procedimento e em termos de determinação e aplicação das sanções penais às pessoas jurídicas constituem, desta forma, um dos principais desafios das reflexões futuras sobre o tema. 3. PROJETOS DE LEI EM TRAMITAÇÃO Nesta parte do relatório serão analisados os projetos de lei em tramitação que tenham como objeto a responsabilização penal da pessoa jurídica. Para tanto, foram realizadas pesquisas nos sítio eletrônico da Câmara dos Deputados (http://www.camara.gov.br) e do Senado Federal (http://www.senado.gov.br) pelos seguintes termos: “responsabilidade penal E pessoa jurídica”, “criminal E pessoa jurídica” e “crime E pessoa jurídica”. Dentre os projetos encontrados, os que efetivamente estabeleciam a responsabilidade penal da pessoa jurídica são os seguintes: - Projeto de Lei do Senado n.º 4.842/1998 (“Dispõe sobre o acesso a recursos genéticos e seus produtos derivados e dá outras providências”). Autora: Senadora Marina Silva (PT/AC). Data de apresentação: 18 de novembro de 1998. Situação atual266: aguardando constituição de Comissão Temporária. - Projeto de Lei da Câmara n.º 27/1999 (“Acrescenta artigo à Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, instituindo a responsabilidade penal de pessoas jurídicas cujos funcionários realizem práticas de racismo”). Autor: 266 Última consulta realizada em 14.06.09. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 343 Deputado Paulo Rocha (PT/PA). Data de apresentação: 03 de fevereiro de 1999. Situação atual: aguardando parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania267. - Projeto de Lei da Câmara n.º 1.197/2003 (“Estabelece as áreas ocupadas por dunas e falésias como espaços territoriais especialmente protegidos e dá outras providências”). Autor: Deputado João Alfredo (PT/CE). Data de apresentação: 05 de junho de 2006. Situação atual: pronto para pauta. - Projeto de Lei da Câmara n.º 1.142/2007 (“Tipifica o crime de corrupção das pessoas jurídicas em face da Administração Pública”). Autor: Deputado Henrique Fontana (PT/RS). Data de apresentação: 23 de maio de 2007. Situação atual: aguardando parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. 3.1.Exposição de motivos Analisaremos, nesse item, as Exposições de Motivos dos Projetos de Lei que buscam criminalizar condutas da Pessoa Jurídica, focando, principalmente, nos objetivos propostos e na viabilidade constitucional do projeto. 268 Projeto de Lei n.º 27/1999 O propositor do PL n.º 27/1999, Deputado Paulo Rocha, justifica a propositura pelo contexto de “crescimento da intolerância expresso pelo assenso [sic] dos grupos neonazistas, anti-semitas e a crescente xenofobia em países europeus, assusta ao [sic] mundo contemporâneo”. Dessa forma, o PL “atualiza a legislação, fortalecendo a proteção a grupos raciais e étnico-religiosos”. A atualização a que se refere à exposição de motivos se daria com a “adequação” da legislação que criminaliza o racismo às inovações verificadas nas áreas de Crimes contra o Meio Ambiente e contra a Ordem Econômica. 267 O projeto já foi objeto de análise da Comissão de Constituição e Justiça, cujo parecer de autoria do Deputado Bispo Rodrigues, foi pela “inconstitucionalidade, injuricidade e má técnica legislativa, e, no mérito, pela rejeição”. Em 31 de janeiro de 2007 o projeto foi arquivado com base no art. 105 do Regimento Interno da Câmara (“Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação...”) e em 06 de março de 2007, o Deputado Paulo Rocha requereu o desarquivamento da proposição. 268 Em virtude da indisponibilidade da Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 4.842/1998 nos sites da Câmara dos Deputados e do Senado, não foi possível analisá-la. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 344 Aponta, além disso, a Exposição de Motivos, a previsão feita pelo projeto de que as empresas deverão ter programas de formação e prevenção dos atos de preconceito e discriminação, o que colaboraria “para a diminuição dos casos de discriminação, livrando as empresas das sanções previstas nesta Lei”. Isso nos permite concluir que entre as razões para proposição do projeto de lei estaria a idéia de que medidas diretamente relacionadas com a estrutura e organização das pessoas jurídicas sejam relevantes para atingir um objetivo de prevenção de ilícitos. O autor reconhece que os permissivos constitucionais dos arts. 173, §5º e 225, §3º são excepcionais para uma efetiva responsabilização penal da pessoa jurídica. Entretanto, não parece haver, na fundamentação legal do projeto, nenhuma problematização ou, tampouco, referência ao fato de o crime de racismo não estar claramente abrangido por essas hipóteses. Projeto de Lei n.º 1.197/2003 A exposição de motivos do PL n.º 1.197, assinada pelo Deputado autor João Alfredo Telles Melo, procura salientar a importância das dunas e falésias para a biodiversidade brasileira, alegando ser “imprescindível, pois, que toda e qualquer atividade antrópica nessas regiões seja adequadamente disciplinada, do ponto de vista legal, (...) com a previsão, inclusive, de criminalização das condutas contrárias às normas em vigor, que sejam efetiva ou potencialmente lesivas ao direito das presentes e futuras gerações ao patrimônio ambiental que lhes servirá de substrato à vida”. Diante disso, conclui-se, como objetivo do Projeto, “dar adequado embasamento legal às necessárias medidas preventivas e coercitivas relativas à conservação ambiental de dunas e falésias, ecossistemas tão relevantes que temos o dever de preservar para as presentes e futuras gerações”. Não há qualquer referência ao porquê de se criminalizar as condutas de pessoas jurídicas e tampouco às especificidades de tal decisão. Isso refletiria a falta de detalhamento do Projeto sobre a questão, como se observa, por exemplo, na ausência de previsão de critério para atribuição de certo evento à pessoa jurídica. A exposição de motivos tampouco indica a justificativa da escolha da via penal para tratar da questão. Com relação à questão da constitucionalidade, a exposição de motivos não traz nenhuma reflexão. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 345 Projeto de Lei n.º 1.142/2007 O Deputado Henrique Fontana, na Exposição de Motivos do PL n.º 1.142/2007, aponta, como objetivo do projeto: “atacar a corrupção nas suas origens, ou seja, nos focos em que ela se origina: através de representantes políticos; de funcionários públicos; e de empresários que praticam a corrupção, afinal, todos se beneficiam de alguma forma indigna dos recursos auferidos com atos ilícitos”. Sendo assim, o objeto do Projeto de Lei seria “suprir uma lacuna na Lei, a qual não responsabiliza criminalmente as empresas que praticam a corrupção, bem como seus dirigentes”. O autor aponta as previsões dos art. 173, §5º e 225, §3º da Constituição Federal, como uma forma que o constituinte encontrou de lidar com um tipo de criminalidade específica, em que os agentes se utilizam das estruturas dos entes coletivos para lesar o patrimônio público. Após citar defensores da responsabilidade penal da pessoa jurídica, bem como países que a adotaram, o autor do PL faz breves considerações acerca das sanções estatuídas pelo Projeto e conclui que “é com esse espírito que apresento essa proposta legislativa que mune o Estado brasileiro de ferramentas para enfrentar graves problemas da sociedade e, desse modo (...)”. Daí se pode concluir que a instituição de responsabilidade da própria pessoa jurídica atenderia principalmente ao objetivo de dotar o Estado de meios eficazes para atacar o problema da corrupção diretamente em um de seus pontos de origem: as pessoas jurídicas. No que diz respeito à abrangência pelos dispositivos constitucionais do crime de corrupção, o Deputado reconhece a polêmica da instituição da responsabilidade penal da pessoa jurídica, mas afirma, em seguida, que isso não o impede de submeter aos pares “e à sociedade brasileira essa iniciativa inovadora e que certamente ajudará o Estado brasileiro a enfrentar com armas mais eficazes os atos de corrupção e os desvios e desperdícios de recursos públicos”. Não há na exposição de motivos justificativa da escolha da via penal para tratar da questão. Há apenas a referência a que o PL visa a “suprir uma lacuna na lei” e referência aos dispositivos constitucionais que tratam da responsabilidade de pessoa jurídica (CF, art. 173, § 5º. e art.225, § 3º.). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 346 3.2. Constitucionalidade dos Projetos de Lei em virtude de seus objetos Como já mencionado, a responsabilidade penal da pessoa jurídica é prevista, na Constituição Federal de 1988, nos arts. 173, §5º. e 225, §3º., apenas nas hipóteses de crimes contra a ordem econômica e financeira, crimes contra a economia popular e crimes contra o meio ambiente. É imperativo, portanto, que se tenha em vista esse âmbito delimitado pela Constituição Federal ao analisar os Projetos de Lei que buscam criminalizar novas condutas praticadas no âmbito da pessoa jurídica. As condutas tipificadas nos quatro Projetos de Lei analisados dizem respeito ao (i) ao patrimônio genético, (ii) ao racismo, (iii) a lesões ao meio ambiente e (iv) à corrupção. Assim, tais projetos devem ser discutidos sob a perspectiva de sua adequação às hipóteses previstas na Constituição. A constitucionalidade do PL n.º 27/1999, que cuida de racismo, é especialmente contestável, uma vez que não há ligação direta entre seu objeto e a proteção ao meio ambiente, à ordem econômica e financeira ou à economia popular. Em relação ao Projeto n.º 1.197/2003, a harmonização com a hipótese prevista na Constituição Federal nos parece menos problemática, uma vez que o Projeto visa a criminalização de condutas que provoquem alterações não-autorizadas em dunas e falésias - abrangido pela hipótese de crime contra o meio ambiente, do art. 225, §3º., CF. Por fim, no tocante ao Projeto n.º 1.142/2007, que prevê a hipótese de que pessoas jurídicas respondam por crimes de corrupção, a questão nos parece controversa, mesmo sob a interpretação mais ampla de ordem econômica, como a adotada por José Afonso da SILVA (2005, p.395), para quem a previsão constitucional referente à punição penal da pessoa jurídica abrangeria todos os princípios da ordem econômica previstos no artigo 170, CF, quais sejam: a soberania nacional; a propriedade privada; a função social da propriedade; a livre concorrência; a defesa do consumidor; a defesa do meio ambiente; a redução das desigualdades regionais e sociais; a busca do pleno emprego; e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Ainda que se entenda que atos de corrupção ativa praticados por uma empresa podem atingir a livre concorrência, princípio da ordem econômica, na medida em que Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 347 podem eventualmente colocá-la em situação de vantagem em relação a outras empresas concorrentes, não nos parece que tal compreensão esteja livre de questionamento. Decorreria desse raciocínio que qualquer prática ilícita de uma empresa que gere algum tipo de vantagem patrimonial ou concorrencial deveria também ser considerada lesiva à ordem econômica, solução esta que poderia vir a ser questionada por acarretar ampliação indevida da abrangência do disposto no §5º, art. 173, CF. 3.3. Requisitos para a responsabilização da Pessoa Jurídica Feitas as considerações a respeito da compatibilidade do objeto dos Projetos de Lei com a Constituição Federal, cabe agora analisar os requisitos de cada projeto para que se impute responsabilidade criminal à pessoa jurídica, tanto no que diz respeito à conduta descrita, quanto no que se refere ao modo como se considera a realização da ação típica e como se apura o elemento da culpabilidade da pessoa jurídica. O PL n.º 1.142/2007 prevê que a pessoa jurídica será responsabilizada criminalmente por “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público ou agente político de quaisquer dos três Poderes da República, para determiná-lo a praticar, omitir, retardar ou condicionar a prática de ato de ofício, em seu nome, interesse ou benefício de sua entidade” (art. 2º, caput). No que diz respeito à pessoa cuja ação possa vir a incriminar a pessoa jurídica, o projeto dispõe, que constituirão atos de corrupção das pessoas jurídicas apenas aqueles praticados por “decisão de representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado, diretor, gerente, procurador ou interposta pessoa”. Em relação ao Projeto de Lei n.º 1.197/2003, a conduta descrita consiste em “provocar qualquer alteração nas dunas e falésias, sem licença das autoridades competentes ou em desacordo com os termos dos licenciamentos ambientais concedidos, ou deixar de cumprir quaisquer dos deveres estabelecidos por esta Lei”. Na segunda parte, criminaliza-se o não-cumprimento de quaisquer dos deveres previstos no PL. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 348 O projeto dispõe que se o crime previsto em seu art. 6º269, “for praticado por pessoa jurídica, aplicar-se-ão as penas previstas nos arts. 21 a 23 da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998”. O projeto, entretanto, não dá maiores detalhes sobre as circunstâncias em que a prática dos atos previstos poderá ser considerada como imputável à pessoa jurídica. O Projeto de Lei n.º 27/1999, determina que as empresas “cujos funcionários em serviço praticarem atos de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” estão sujeitas às penalidades determinadas pela Lei. No artigo seguinte, o projeto prevê que “para efeitos das penalizações das empresas, nos termos do art. 21, consideram-se as seguintes situações contra os seus funcionários: I – decisões “transitadas e julgadas” (sic) nas áreas criminais ou cíveis em favor das vítimas; II – mais de uma queixa crime em delegacias; III – mais de uma denúncia de crime ou mais de uma ação ajuizada pelo Ministério Público, estadual ou federal”. Trata-se do estabelecimento de distintas possibilidades de condicionar a aplicação de sanção à empresa por conduta de seu funcionário. O inciso I estabelece que uma das hipóteses de responsabilização é a existência de decisão “transitada e julgada” (sic) na esfera criminal ou cível. O que teríamos aqui é a imposição de uma espécie de conseqüência acessória à pessoa jurídica resultado da condenação de seus funcionários por atos praticados em serviço. O inciso II parece em alguma medida problemático. Mesmo entendendo que, ao tratar de “queixa crime em delegacias”, o legislador quis dizer notícia de crime de ato pretensamente praticado por funcionário, a hipótese não deixa de ser questionável: o mero registro de uma notícia de crime não requer qualquer averiguação mais séria sobre a existência de indícios de materialidade do delito e tampouco de autoria, elementos que serão objeto de análise apenas em momentos posteriores da persecução penal. Nesse sentido, prever que simplesmente a existência de “mais de uma queixa crime em delegacia” possa ensejar a responsabilização de uma empresa por ato de seu funcionário é um requisito demasiadamente frágil e pode suscita problemas que dizem respeito à violação à presunção de inocência. 269 Art. 6º: Constitui crime provocar qualquer alteração nas dunas e falésias, sem licença das autoridades competentes ou em desacordo com os termos dos licenciamentos ambientais concedidos, ou deixar de cumprir quaisquer dos deveres estabelecidos por esta Lei. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 349 Por fim, a última hipótese de responsabilização da empresa por conduta de qualquer funcionário é a existência de “mais de uma denúncia de crime ou mais de uma ação ajuizada pelo Ministério Público, estadual ou federal”. Muito embora estejamos aqui diante de casos que já passaram pelo juízo de delibação para instauração da ação penal, e, nesse sentido, trata-se de situação com algum nível de certeza, pois exigiu ao menos a existência de prova da materialidade e indícios de autoria, não deixa de ser questionável frente ao mesmo princípio da presunção de inocência que a simples existência das ações penais possa desde logo ensejar a penalização da empresa. Tais previsões podem significar um âmbito de aplicação de sanções a empresas demasiadamente amplo, o que poderia acarretar inclusive efeitos contraproducentes no sentido dos fins preventivos a serem alcançados, pois a empresa pode ser responsabilizada com base nesses requisitos frágeis, mesmo nos casos em que tenha adotado uma política de prevenção a tais práticas. Ou seja, já que eventuais medidas positivas não serão levadas em consideração, trata-se de um desestímulo a sua adoção. Por fim, o Projeto de Lei n.º 4.842/1998 prevê, em seu art. 54, que “as pessoas jurídicas serão apenadas conforme o disposto nesta Lei, nos crimes em que a infração seja cometida por decisão de seus representantes legais ou contratuais, ou de seus órgãos colegiados, no interesse ou benefício da entidade”. Não difere, portanto, da regra de responsabilização indireta que já vige no caso dos crimes ambientais. 3.4. Aspectos processuais penais Outra questão importante a ser considerada diz respeito à lacuna de disposições nesses projetos de lei acerca de questões processuais. Isso porque, embora se aplique o Código de Processo Penal a todas as hipóteses, há questões específicas no âmbito das pessoas jurídicas que devem ser tratadas, debatidas em profundidade no tópico V.5 deste relatório. Os Projetos de Lei n.º 27/1999 e o PL n.º 4.842/1998 sequer mencionam a questão procedimental. Em relação ao PL n.º 1.197/2003, a única disposição a respeito de atos processuais está em seu art. 6º, §5º, ao dispor que “o processo penal seguirá o rito ordinário, sendo de 15 (quinze) dias o prazo para contestar a denúncia, que se iniciará Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 350 com a citação da pessoa física acusada ou com a notificação do representante legal da pessoa jurídica acusada”. Por fim, o PL n.º 1.142/2007, que tipifica a corrupção praticada pelas pessoas jurídicas, prevê, em seu art. 10, no que diz respeito à representação que “a pessoa jurídica será representada por quem a lei ou os estatutos indicarem”, com a exceção do parágrafo único que determina que, nos casos de conflito de interesse, a pessoa jurídica deverá ser notificada para designar outro representante. Note-se que a previsão é ligeiramente diferente tanto do art. 37, CPP, que trata da representação da pessoa jurídica no pólo passivo da ação penal, como do art. 12, CPC. Estes estabelecem que a pessoa jurídica deverá ser representada por quem os respectivos contratos ou estatutos designarem e, em seu silêncio, por seus diretores ou sócios-gerentes. O art. 10 não faz distinção entre a indicação da lei ou do estatuto. 3.5. Responsabilidade e transformações da pessoa jurídica Outra preocupação em relação à criminalização de condutas praticadas pela pessoa jurídica diz respeito à imputação de responsabilidade nos casos de possíveis alterações societárias na empresa como, por exemplo, modificações formais na estrutura que busquem isolar a pessoa jurídica acusada de crime. O único projeto de lei que faz menção a essa questão é o 1.142/2007, que determina, em seu art. 2º, §2º, que “a responsabilidade penal da pessoa jurídica permanecerá independentemente das alterações contratuais, fusões ou cisões societárias havidas antes ou durante o processo criminal”. O caput do art. 2º articula como critério para responsabilizar a pessoa jurídica ser o ato ilícito praticado por decisão de representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado, diretor, gerente, procurador ou interposta pessoa, no nome, interesse ou benefício da pessoa jurídica. O §2º fixa uma exceção a tal regra, determinando, nessa perspectiva, espécie de responsabilidade sem culpa própria ou responsabilidade por ato de terceiro. Eventualmente e, a fim de diferenciar o leque de situações que podem ser atingidas por essa regra, poder-se-ia pensar em alguns critérios que limitassem sua abrangência. Para citar alguns exemplos, casos em que o benefício da prática ilícita seja auferido pela pessoa jurídica sucessora, casos em que haja continuidade delitiva ou em que se apure a ocorrência de fraude à lei. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 351 Além disso, nota-se que a redação do projeto, ao estabelecer que a responsabilidade penal da pessoa jurídica permanecerá independentemente das alterações societárias elencadas, pode dar lugar a incertezas no casos de cisão. A cisão resulta na formação de diversas pessoas jurídicas e não está claro se a responsabilidade penal se aplica a todas ou a apenas alguma delas. De outro lado, merece algumas ponderações de ordem pragmática a previsão segundo a qual as operações societárias indicadas no texto do projeto, ocorridas anteriormente ao processo penal, impliquem sucessão de responsabilidade penal. Isso porque referida norma imporia um ônus grande à empresa “receptora” (aquela, por exemplo, com a qual venha fundir-se a pessoa jurídica que pratica a corrupção ou aquela à qual seja destinada parcela do patrimônio em hipótese de cisão parcial). Esse ônus consistiria em fazer diligência prévia à operação societária, a fim de verificar ocorrência de corrupção praticada pela empresa “alvo”. Acontece que a empresa alvo dificilmente revela sua participação em condutas como um crime de corrupção da Administração Pública. Geralmente nem mesmo funcionários de diversos escalões internos à organização da pessoa jurídica chegam a ter ciência da prática do ato. Diferentemente do que ocorre nos casos de sucessão trabalhista e tributária, nos quais a obrigação está registrada no passivo da empresa ou, caso não esteja, deve, em princípio, ser passível de apuração e ser então associada a uma taxa de contingência, a prática de atos de corrupção não é facilmente detectável, seja por indivíduos ou agentes internos ou externos à empresa. Por esta razão, mostra-se questionável a responsabilização penal da empresa resultante de um processo de fusão ou cisão, por atos de corrupção anteriores à operação, cometidos pela empresa “absorvida”. 3.6. Relação entre pessoas jurídicas Os projetos de lei não prevêem situações que envolvam “triangulação”, isto é, a prática do ato por parte de uma pessoa jurídica destinada a beneficiar terceiro. Tampouco dão conta de problemas ligados a grupos empresariais de fato ou de direito, formas de organizações empresariais que, como observamos, podem suscitar questões relevantes no que diz respeito à aplicação de regras de responsabilização. 3.7. Penas Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 352 Ao se abordar o problema de crimes praticados por pessoa jurídica da esfera privada, uma questão preliminar é pressupor que, tanto empresas constituídas por meio de pessoas jurídicas com histórico de desempenho de operações lícitas, quanto empresas “de fachada”, são sujeitos ativos potenciais da conduta que se quer sancionar. Se ambos os casos se manifestam na realidade, é preciso considerar qual o impacto desejado da sanção, tendo em perspectiva os efeitos que podem surtir sobre cada um dos casos. O impacto desejado da sanção, em linhas gerais, pode ser definido como dúplice: de um lado, fazer com que o agente repare o dano, cesse a prática e se previna a sua reincidência; de outro, fazer com que a sanção e sua aplicação sejam um fator de prevenção da prática de ilícitos por outros agentes potenciais. Contudo, como já afirmamos neste trabalho, a sanção deve ser pensada de modo que o impacto desejado seja obtido sem prejuízo à preservação de demais interesses juridicamente relevantes, como a manutenção da capacidade produtiva da empresa e de seus reflexos positivos para a sociedade (supondo que a capacidade produtiva não seja dependente de benefícios gerados por atos ilícitos). Tratando-se de empresa puramente “de fachada”, esta questão pode ser desprezada, já que não sobrariam atividades lícitas a serem preservadas. Entretanto, nem sempre é fácil distinguir, sem maiores apurações, se a empresa investigada é “de fachada”. No caso de pessoas jurídicas que desempenham atividade lícita, custeada e remunerada de forma independente do resultado auferido com a prática do ato ilícito, os efeitos da sanção devem se limitar ao escopo do impacto desejado, e só a tal escopo. Afinal, é indesejável que as sanções produzam efeitos negativos sobre o desempenho das atividades lícitas, hipótese em que a sanção ultrapassaria seu fim e geraria efeitos negativos de difícil mensuração para a sociedade como um todo. Os Projetos de Lei analisados prevêem as seguintes penas para aplicação às pessoas jurídicas: - PL n.º 27/1999 (racismo): multa no valor de 30 salários mínimos no caso de empresa ré primária, proibição de funcionamento por 6 (seis) meses a 1 (um) ano na segunda penalização e proibição de funcionamento em penalizações seguintes. - PL n.º 1.142/2007 (corrupção): multa, no valor de 10 a 50 vezes o montante da vantagem ofertada ou do proveito econômico almejado, restritiva de direitos (suspensão parcial de atividades ou dissolução, interdição temporária de estabelecimento ou Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 353 atividade e proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações), prestação de serviços à comunidade (custeio de programas e projetos contra a corrupção e contribuições a entidades voltadas para o combate à corrupção), colocação sob vigilância judiciária, perda de bens e publicidade da decisão condenatória. - PL n.º 1.197/2003 (alterações não-autorizadas em dunas e falésias): penas previstas nos artigos 21 a 23 da Lei n.º 9.605: multa, restritivas de direitos (suspensão parcial ou total das atividades, interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade e proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações) e prestação de serviços à comunidade (custeio de programas e projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas, manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas). - PL n.º 4.842/1999 (proteção aos recursos genéticos): embora o projeto mencione, em seu art. 54, que as “pessoas jurídicas serão apenadas conforme o disposto nesta Lei”, a Lei não traz nenhuma sanção penal para as empresas, tratando tão somente de sanções administrativas no art. 57. A seguir analisaremos alguns potenciais benefícios e desvantagens trazidos pelos tipos de penas. Multa O caráter patrimonial da sanção de multa faz com que ela seja a primeira a ser pensada quando se trata do estabelecimento de formas de punição para as pessoas jurídicas. No entanto, o caráter puramente patrimonial da sanção de multa implica em duas questões. A aplicação de uma multa excessivamente alta poderia inviabilizar a atividade lícita do agente e, conseqüentemente, prejudicar outros interesses. Por outro lado, a sanção puramente patrimonial poderia levar ao cálculo de custo/benefício do agente na comissão de crimes, de forma que, caso a perspectiva de ganho com o ato ilícito supere o valor da multa e a possibilidade de condenação, não haverá dissuasão, ocorrendo, inclusive, a prática de provisionar possíveis condenações. Restritivas de direitos (proibição de funcionamento, suspensão das atividades, interdição temporária) Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 354 O PL n.º 1.142/07 distingue apenas as pessoas jurídicas cuja atividade exclusiva ou predominante está associada a atos de corrupção da Administração Pública e pessoas jurídicas que desempenham atividades lícitas, mas que praticam atos de corrupção em caráter eventual. Essa distinção encontra-se refletida no art. 4º, § 2º do PL n.º 1.142/07 e vem formulada de modo questionável. Isso porque a referência à sanção de dissolução (contida art. 4º, I, do PL n.º 1.142/07) seria imprópria. A dissolução é procedimento destinado à apuração de haveres, o que, em princípio, interessa apenas aos sócios, já que fazem jus ao eventual saldo patrimonial depois de pagos todos os credores e o Estado. Supondo um caso de sociedade “de fachada” (isto é, sociedade sem histórico de atividades lícitas independentes do resultado dos atos de corrupção), uma sanção que se pode cogitar seja imposta à pessoa jurídica consistiria não na dissolução, mas na extinção de autorização para funcionar. Uma vez extinta a sociedade, aí sim teria lugar a dissolução. Isso é conseqüência da aplicação do art. 1.033, inc. V do Código Civil: “Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: V – a extinção, na forma da lei, de autorização para funcionar”. Em segundo lugar, o dispositivo condiciona a aplicação da sanção à verificação de que “os fundadores da pessoa jurídica (...) tenham tido a intenção (...) de por meio dela, praticar os crimes previstos na lei ou quando a prática reiterada de tais crimes demonstre que a pessoa jurídica está a ser utilizada para esse efeito, quer pelos seus membros, quer por quem exerça a respectiva administração.” Do modo como foi redigido o dispositivo, a sanção (propriamente de extinção de autorização de funcionamento, e não de dissolução) não poderia ser aplicada em nenhuma das hipóteses a seguir: (a) caso os fundadores não tenham tido a intenção de praticar os crimes previstos na lei por meio da pessoa jurídica (mas, por hipótese, os gestores ou sócios adquirentes das participações dos fundadores tenham tido tal intenção); (b) caso não seja possível provar a intenção dos fundadores; (c) caso o ato de corrupção não tenha sido objeto de prática reiterada. Supondo que a sanção de extinção de autorização para funcionamento seja desejável, os critérios apresentados no §2º do art. 4º do PL n.º 1.142/07 parecem problemáticos para a sua aplicação. Não é fácil comprovar a intenção dos fundadores da pessoa jurídica quanto a um propósito de constituir ou utilizar-se da pessoa jurídica para praticar atos de corrupção. Na realidade, ainda que deixada de lado a dificuldade prática de comprovação de intenção, questiona-se qual a utilidade e a necessidade de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 355 condicionar a aplicação de sanção à intenção manifestada já no momento de constituição da pessoa jurídica. Do mesmo modo, o elemento “prática reiterada” pode ser mais problemático do que auxiliador no combate a estes delitos. Mais ainda, é preciso que se compreenda que poderá ser problemática a tentativa de formulação de critérios que permitam definir a priori quais entidades são “exclusiva ou predominantemente” dedicadas à corrupção e quais o são apenas secundariamente. Para determinar a priori se uma sociedade é ou não predominantemente dedicada à prática de corrupção, uma possibilidade seria pré-estabelecer normativamente algum referencial como percentual de receita segregada por atividade desempenhada pela empresa. Todavia, essa estratégia de abordagem pode se mostrar arbitrária e imprecisa. Um modo relativamente mais confiável para se aferir se há algo que justifique a continuidade da empresa por meio de determinada pessoa jurídica, isto é, se existe atividade lícita com custeio e receita independentes do produto da atividade ilícita, seria submeter a empresa agente da prática a uma avaliação econômico-financeira – custeada às próprias expensas e por meio de contratação de profissional idôneo nomeado pelo juiz – , que ateste a viabilidade da empresa num cenário em que não haveria aproveitamento do benefício produzido pelo crime. O que se deve almejar é a expurgação das práticas ilícitas pelas pessoas jurídicas ou em seu benefício, sem, contudo, comprometer seu funcionamento produtivo. Neste sentido, as sanções restritivas de direitos previstas nos incisos I a II do art. 4º do PL n.º 1.142/07 devem ser vistas com reserva. 270 Tanto maior deve ser a cautela quando se tratar de pessoa jurídica que desempenha atividades lícitas, pois é justamente neste caso que sanções como a extinção ou interdição temporária podem produzir efeitos danosos à sociedade como um todo. Além de implicar o afastamento de um ente produtivo da economia do país, com prejuízo para a comunidade de trabalhadores, consumidores e credores, as sanções podem ainda impedir que a pessoa jurídica produza receita necessária para reparar o próprio dano derivado do crime de corrupção. No lugar destes critérios, mereceria ainda reflexão a idéia de que a aplicação da sanção de extinção da pessoa jurídica (considerando a gravidade da sanção em relação 270 A hipótese prevista no inc. III do mesmo artigo, que consiste na sanção de proibição de contratar com o Poder Público, é também prevista em outras normas do ordenamento, e há boas razões para sustentar que seja imposta em qualquer caso em que seja comprovada a utilização da pessoa jurídica para a prática do ato de corrupção ativa. Deve-se apenas prever um limite temporal de efeitos da sanção, algo que faltou na redação do PL n. 1.142/07. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 356 aos interesses de terceiros e mesmo do Estado) seria condicionada à determinação a posteriori de se a pessoa jurídica por meio do qual se praticou o ato de corrupção exerce atividade lícita que justifique sua preservação. Por fim, vale notar que o § 3º do art. 4º, que regulamenta a aplicação da pena de interdição temporária apresentaria problemas. A princípio, parece que os parágrafos referentes ao art. 4º buscam fornecer critérios para ajudar o juiz a fixar a pena mais adequada ao caso. Este parágrafo, no entanto, parece criar, de forma sob-reptícia, uma forma qualificada do tipo de corrupção praticado por pessoas jurídicas, que seria a prática da conduta ilícita, acrescentada a circunstância de a pessoa jurídica estar funcionando “sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar”. Se o objetivo for criar tal forma qualificada do tipo, seria recomendável que isso fosse feito explicitamente. Seria necessário, ainda, cotejar tal disposição com a regulamentação em âmbito administrativo, a fim de verificar se as conseqüências jurídicas nos dois campos previstas para o funcionamento sem autorização são compatíveis. No que tange ao Projeto de Lei n.º 1.197/2007, este remete à Lei de Crimes Ambientais ao prever as sanções aplicáveis às pessoas jurídicas. Não há, portanto, qualquer inovação nessa questão, aplicando-se as considerações que fizemos acima sobre a necessidade de se ponderar sanções que levem em conta o princípio da preservação da empresa. O Projeto n.º 27/1999, prevê que, no caso de reincidência, a empresa será proibida de funcionar temporariamente (de 6 meses a 1 ano) e, nas penalizações seguintes, será proibida de funcionar definitivamente. Deve-se ressaltar que a proibição de funcionamento, ainda que temporária, pode acarretar prejuízos permanentes à empresa. A respeito dos efeitos das sanções previstas caberia indagar se o ônus imposto às empresas de terem suas atividades interrompidas por ato de “qualquer funcionário” não seria desproporcional à sua capacidade de prevenir esses atos. A interrupção de atividades lícitas de uma empresa produtiva, que gera externalidades positivas à sociedade traria fortes conseqüências negativas, que poderia suplantar os possíveis efeitos positivos da aplicação da sanção. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 357 Restritivas de direitos (proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações) A proibição de contratar com o Poder Público pode ser considerada uma sanção interessante, pois ela é capaz de atingir um dos principais interesses da pessoa jurídica, o patrimonial, sem, contudo, incorrer nas questões problemáticas suscitadas no caso da pena de multa. Apesar do caráter patrimonial da sanção, não é possível quantificar com exatidão os prejuízos causados pela sua aplicação. Conseqüência disso é o fato de que o cálculo custo/benefício na comissão do crime não seria tão simples e direto como no caso da multa. No que tange às ponderações acerca da preservação de empresas que desenvolvem atividades lícitas de modo viável, vale considerar que os efeitos negativos dessa sanção podem ser elevados no caso de empresas que atuam apenas com o Poder Público, e que teriam sua atividade principal atingida pela proibição. Prestação de serviços à comunidade O art. 5º do PL n.º 1.142/2007 e o art. 23 da Lei n.º 9.605/1998, aplicável, por remissão, ao PL n.º 1.197/2003 cuidam das modalidades de pena de prestação de serviços. As modalidades de prestação de serviço previstas são (i) “custeio de programas e projetos contra a corrupção” e (ii) contribuições a entidades voltadas para o combate à corrupção” no caso do primeiro PL e (i) “custeio de programas e projetos ambientais”, (ii) “execução de obras de recuperação de áreas degradadas”, (iii) “manutenção de espaços públicos” e (iv) “contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas”. Atividades de prestação de serviços à comunidade por pessoas físicas ligadas à empresa não são previstas, com acerto, provavelmente a fim de evitar situações que frustrem o escopo da lei ou que pelo menos não tenham impacto sob a pessoa jurídica como um todo. Por outro lado, as previsões das penas supracitadas sob a rubrica “prestação de serviços” parecem ter, na realidade, caráter puramente patrimonial. O fim de ressocialização supostamente atribuídos à modalidade de pena de prestação de serviço não é atendido em tais previsões ou, ao menos, não se diferencia em relação à pena de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 358 multa. A especificidade da previsão deste artigo parece dizer respeito apenas à destinação dos valores envolvidos. A previsão, aqui, é a de que eles sejam diretamente alocados pela pessoa jurídica condenada a projetos e entidades voltados ao combate à corrupção ou à proteção do meio ambiente. Tendo em vista as dificuldades adicionais de fiscalização da destinação desses recursos (tanto no que diz respeito à correta transferência por parte da empresa, como no que diz respeito à idoneidade das atividades desenvolvidas pelas entidades escolhidas), seria mais adequado pensar em alternativas mais seguras, como, a criação de um fundo público ao qual estariam vinculados os recursos advindos da pena de multa. Nesse caso, a escolha das entidades e projetos merecedores de custeio, bem como sua fiscalização seria feito por gestores públicos. Já existe na organização do Estado brasileiro previsão de fundo semelhante para o caso de condenações em ações civis públicas. Trata-se do Fundo de Defesa de Interesses Difusos, criado pelo art. 13 da Lei da Ação Civil Pública. A criação de algo semelhante ou ainda a possibilidade de utilização dessa mesma estrutura poderia ser considerada no presente caso. Vigilância judiciária Essa forma de sanção nos parece a princípio interessante, pois tende a se voltar muito mais a fins preventivos e de garantia de cessação da prática ilícita do que punitivos, no sentido de inflição de um mal à empresa. Além disso, atenderia, ao menos em tese, às preocupações expostas acima de preservação da empresa como ente econômico relevante quando atua no desenvolvimento de atividades lícitas. Contudo, experiências no campo do direito falimentar, relacionadas a interventores judiciais, mostram que isso pode ser uma fonte de problemas, especialmente no que diz respeito à formação e adequação dos funcionários responsáveis por essa tarefa. Sugerimos, dessa forma, que se cogite que a prática de vigilância seja realizada por meio de avaliações periódicas de suas práticas por empresas especializadas de auditoria, cuja contratação correria às expensas da empresa condenada. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 359 Perda de bens A pena de perda de bens está prevista no art. 3º. do PL n.º 1.142/2007, com possibilidade de aplicação isolada ou cumulativa, ao lado da multa, da restrição de direitos, da prestação de serviços à comunidade, da colocação sob vigilância judiciária e da publicidade da condenação. No Código Penal ela é considerada uma modalidade de pena restritiva de direitos. Para fins de harmonização, pode ser mais adequado que a perda de bens figurasse entre as hipóteses do art. 4º do projeto. A previsão do art. 7º do projeto gera dúvidas. Este dispositivo se insere em uma seqüencia de artigos que esclarecem e fixam parâmetros para a aplicação das penas anteriormente previstas e parece estar se referindo à perda de bens, entendida como pena e prevista no art. 3º, V do projeto. Se este entendimento estiver correto, sua previsão estaria eivada de um problema, pois o perdimento em favor da União de produtos ou proveito do crime é um dos efeitos genéricos da condenação, previsto na Parte Geral do Código Penal e não se confunde com a pena. A pena de perda de bens deverá sempre recair sobre bens de origem lícita271, caso contrário é simples efeito da condenação e não pena. De outro lado, caso o art. 7º pretenda se referir à perda de bens ilícitos, como efeito da condenação, então ele é supérfluo, pois o tema já está regulamentado pela Parte Geral do Código Penal. O art. 9º, por outro lado, parece criar uma ficção: no caso de pessoa jurídica criada, preponderantemente, para a prática de atividades ilícitas, as empresas de “fachada” supra-mencionadas, todo o seu patrimônio será considerado produto do crime. Parece-nos problemático estender o âmbito do instituto do perdimento de bens, como efeito da condenação, a fim de que atinja também a perda de bens lícitos. Seria mais adequado, nesta hipótese, caso se pretenda manter a previsão, que a liquidação forçada de todo o patrimônio tenha a natureza de pena restritiva de direito. Publicidade da decisão condenatória 271 Nesse sentido, STOCCO E SILVA FRANCO, p. 305: “pode recair sobre bens móveis ou imóveis ou documentos de valor econômico, mas sempre deve atingir bens de origem lícita, pois não se confunde com os efeitos da condenação dispostos no art. 91 do Código Penal”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 360 Trata-se de uma previsão em princípio interessante, pois altera a lógica do paradigma punitivo vigente, reforçando a publicidade da imputação de responsabilidade como uma resposta em si relevante do sistema jurídico para a sociedade. Tal medida parece transferir para o mercado as decisões sobre eventuais conseqüências negativas da imputação de responsabilidade, impondo também à empresa condenada a demonstração da cessação das práticas ilícitas, de sua confiabilidade, solidez, etc. No que diz respeito à clareza dos dispositivos, a lei talvez devesse ressaltar que a publicidade da decisão se dá apenas após sentença condenatória transitada em julgado. 3.8. Projeto de Lei do Senado n.º 03/2005: conseqüências da condenação da pessoa física Embora não preveja responsabilidade penal da pessoa jurídica, merece menção neste ponto o Projeto de Lei n.º 03/1005, que prevê o acréscimo ao art. 92, CP, como efeito da condenação penal, o “pagamento de multa, de cem a mil salários mínimos, por pessoa jurídica utilizada para a execução do crime de que foi condenado seu dirigente, podendo ainda ser extinta, com a devida comunicação aos órgãos competentes, ou ter suas atividades suspensas por até dez anos” (grifamos). Esclarece, ainda, buscando evitar as questões problemáticas da responsabilidade penal da pessoa jurídica, que “não se trata, frise-se, de imputabilidade penal da pessoa jurídica, mas de previsão de pagamento de multa como um dos efeitos da condenação de seus dirigentes”, sob o fundamento de que “cria-se, assim, mais um fator de desestímulo ao crime, pois, no mínimo, constrange a geração ilícita de dividendos financeiros”. A pessoa jurídica aqui arca com a pena sem que seja necessária a verificação de critérios de responsabilização a ela relacionados e sem que possa participar do processo e defender-se. É possível questionar se a punição automática da pessoa jurídica gera ganhos preventivos, já que o caráter automático da medida não leva em consideração possíveis medidas que ela tenha internamente adotado – em termos de organização, cultura institucional, mecanismos de controle etc. - para evitar a prática de ilícitos. Pode, portanto, gerar desincentivos. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 361 4. APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS: PESQUISA JURISPRUDENCIAL SOBRE A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA. A fim de traçar um diagnóstico mais completo da aplicação do instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica, uma das estratégias desta pesquisa foi a de empreender um estudo sistemático de julgados em casos envolvendo imputação de crimes ambientais a pessoas jurídicas nos Tribunais Superiores e Tribunais Regionais Federais. Com isso, foi possível colher dados relevantes acerca de como os Tribunais vêm entendendo as regras e requisitos para responsabilização de pessoas jurídicas, bem como os resultados que esses casos vêm alcançando e os principais problemas nele enfrentados. Exporemos, a seguir, a metodologia utilizada na coleta e tabulação de dados e os resultados obtidos. Vale lembrar que, efetivamente, encontramos um número bastante reduzido de casos que chegaram a ser analisados em seu mérito. 4.1 Introdução O levantamento jurisprudencial que ora se apresenta foi realizado a partir dos acórdãos disponíveis no banco de jurisprudência online dos cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF)272. Foram selecionadas todas as ementas que resultaram da busca pela expressão “responsabilidade penal da pessoa jurídica” e as variações necessárias em razão dos diferentes sistemas de busca de cada Tribunal ou aquelas que poderiam resultar em maior número de resultados.273 Somente este termo foi utilizado como entrada (e, 272 A pesquisa foi feita na semana de 01 a 07 de março nos seguintes endereços eletrônicos: ww.trf1.gov.br; www.trf2.gov.br; www.trf3.gov.br; www.trf4.gov.br; www.trf5.gov.br; www.stj.jus.br; www.stf.jus.br. 273 Assim, para o STJ foram utilizados os termos “(RESPONSABILID$ ADJ2 PENA$) COM (PESSOA$ ADJ2 JURIDIC$)” e “(PESSOA E RESPONSABILIDADE E JURIDICA E PENAL) NAO OBJETIVA”; para o STF “responsabilidade e penal e pessoa e jurídica“; para o TRF 1 “RESPONSABILIDADE E PENAL E PESSOA E JURÍDICA”; para o TRF 2 e TRF3 “RESPONSABILIDADE PENAL PESSOA JURÍDICA”; para o TRF 4 “RESPONSABILIDADE E Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 362 quando necessário, suas variações), e isso porque este conjunto constitui a expressão mais ampla referente ao tema, possibilitando, assim, um número maior de retornos. Nestes termos, esta busca resultou 38 ementas no STF, 63 no STJ, 18 no TRF1, 10 no TRF 2, 86 no TRF3, 52 no TRF4 e 3 no TRF5, perfazendo um total de 270. Todas as decisões repetidas ou que não tinham direta relação com a responsabilidade penal da pessoa jurídica foram descartadas manualmente. Este foi o caso, por exemplo, de ementas em que a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica somente era levantada como tese de defesa em crimes para os quais não há previsão expressa de responsabilização coletiva (estelionato, por exemplo), ou mesmo quando a discussão girava em torno da responsabilidade dos sócios da empresa em crimes tributários ou previdenciários. Ao final, obteve-se um total de 48 acórdãos relativos a crimes ambientais cometidos por pessoa jurídica, distribuídos da seguinte maneira: Diante deste quadro, vale observar, de pronto, os poucos recursos encontrados, fato este que constitui um possível indício de que o oferecimento de denúncias em face de pessoas jurídicas seja pequeno. Em segundo lugar, é interessante notar que PENAL E PESSOA E JURÍDICA” e “"RESPONSA*" E PENAL E PESSOA PROX JURÍDICA”; e para o TRF 5 “RESPONSABILIDADE PENAL PESSOA JURÍDICA”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 363 encontramos poucas decisões relacionadas a conflitos de competência estadual e federal. Em terceiro lugar, de pronto também chama a atenção a discrepância de acórdãos encontrados em cada um dos Tribunais. Enquanto existe um grande número de ocorrências nos TRF1 e TRF4, nenhuma decisão foi encontrada no TRF 3. As razões para tal descompasso podem ser as mais diversas, mas algumas hipóteses podem ser levantadas. Por um lado, tal diferença poderia ser explicada em razão da incidência maior de delitos ambientais em determinadas regiões do país, tal como a existência mais concentrada de atividades exploratórias da fauna e da flora brasileira nos estados abrangidos pelos TRF1 e TRF4, em detrimento dos demais. Por outro lado, outra hipótese levantada ao longo da pesquisa é a existência de “filtros institucionais” no encaminhamento desses casos; isso porque, no âmbito da presente pesquisa, indicamos que, em entrevista, o advogado criminalista 1 afirmou que a Lei dos Crimes Ambientais, no que se refere à responsabilidade penal da pessoa jurídica, “não pegou em São Paulo”, o que pode ser visto como uma possível explicação para a ausência de decisões sobre a matéria no TRF3. Por fim, devem ser consideradas também diferenças no que diz respeito a práticas de alimentação dos bancos de decisões disponíveis eletronicamente, que não são uniformes em todos os Tribunais. A visão geral do presente levantamento evidenciou que o momento da decisão de recebimento da denúncia pelo juiz ainda é o mais controvertido, com mais da metade dos recursos sendo provenientes desta decisão. De fato, em apenas 5 dos acórdãos analisados houve decisão de mérito, sendo que em tais decisões pode-se ver uma discussão corrente em relação à aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica no pólo passivo da ação penal, na medida em que um número elevado de recursos discutiu a sua validade ou legitimidade. Não obstante tais discussões, em sua maioria surgidas apenas em referência a decisões de primeira instância, a aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica nos acórdãos analisados pareceu pacífica nos Tribunais. Mostrou-se importante, como veremos, a necessidade de inclusão do co-autor pessoa física no pólo passivo da ação penal. 4.2 Principais características das decisões Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 364 Adentrando na análise dos acórdãos, consideramos importante, de modo a expor com maior clareza as principais questões aferidas nesta pesquisa jurisprudencial, definir diversas categorias de análise destes julgados, relevantes para descrever o perfil de caso encontrado e o tipo de desfecho a que se chegou. Neste sentido, as categorias que foram utilizadas são: (i) tipo de pessoa jurídica imputada; (ii) presença de réu pessoa física; (iii) tipo de recurso e ações impugnativas; (iv) autor do recurso; (v) momento em que foi interposto o recurso ou ação impugnativa; (vi) tipo de crime; (vii) tipo e modalidade de conduta conforme a denúncia; (viii) pedidos dos recursos e das ações impugnativas; (ix) andamento da ação após a interposição do recurso; (x) teor das decisões; (xi) evolução da decisão; (xii) unanimidade das decisões; e (xiii) decisão e fundamentação. Tipo de pessoa jurídica imputada Uma primeira questão importante de se notar consiste no fato de que a forma de organização societária (sociedades simples, limitada, anônima, etc.) parece ser indiferente na fundamentação das decisões judiciais, que não se preocupam em diferenciar um ente coletivo de outro. Pela leitura dos acórdãos analisados, apesar de haver diversas formas organizativas sob a denominação “pessoa jurídica”, em nenhum dos julgados encontrados recorreu-se à descrição do tipo empresarial como fator de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 365 delimitação do conceito de pessoa jurídica. A única exceção encontrada foi a de um mandado de segurança274, cujo réu era um consórcio. Neste caso, o Tribunal decidiu pelo trancamento da denúncia, pois não considerou possível a responsabilização desta forma de organização comercial. Assim, foi argumentado que Consiste o consórcio na união de duas ou mais empresas para alcançar um propósito. Suas responsabilidades e atribuições são fixadas por via contratual, cabendo a responsabilização penal decorrente de crime ambiental ser atribuída a cada empresa, individualmente, em conformidade com suas atribuições dentro do pacto celebrado. Isso porque cada participante do consórcio obriga-se apenas nos termos estabelecidos nos contratos, respondendo de acordo com as obrigações assumidas. Por tal, de fato, não há como se responsabilizar a totalidade das empresas quando o ataque ao bem jurídico for realizado por apenas uma delas, isoladamente. Conseqüentemente, não responde o consórcio por crime ambiental (grifamos). Presença de co-réu pessoa física Outro ponto que chamou a atenção, e que também já foi mencionado, consiste no fato de que, na maior parte dos casos analisados, havia a presença de co-réu pessoa física concomitantemente a réus pessoas jurídicas (68,75% do total). Se excluírmos do 274 TRF4, Mandado de Segurança n. 2002.04.01.054936-2, Relator Des. Vladimir Passos de Freitas, j. 25.02.2003. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 366 total as decisões em que não há menção sobre a existência de co-réu, este percentual chega a 80,48%. A aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica verificada nos Tribunais, no entanto, não implica na admissão de que apenas o ente coletivo seja sujeito da denúncia. Pelo contrário, predomina o entendimento de que é necessária a imputação do co-réu pessoa física para que se possa processar criminalmente a pessoa jurídica, o que nos fornece o claro indício de que os Tribunais brasileiros enxergam, ainda, este modelo como sendo um sistema de responsabilidade por fato de outrem, e não um modelo de responsabilidade própria275. Isso se reflete na constatação de que, nos acórdãos levantados, há uma exigência constante, por parte do Poder Judiciário, de que a pessoa física que agiu em nome da pessoa jurídica seja denunciada juntamente com esta. Tal exigência, entretanto, acaba por não superar as dificuldades em se individualizar pormenorizadamente as condutas em ambientes funcionalmente diferenciados, o que faz com que, como veremos adiante, nas situações em que não se consegue identificar a conduta concreta da pessoa física, os casos sejam precocemente extintos. Tipo de recursos e ações impugnativas 276 Os recursos encaminhados para análise dos Tribunais são, em grande maioria, recursos em sentido estrito, Habeas Corpus e mandado de segurança (este últimos somam 43,7 % do total). Além disso, da análise do gráfico 4, nota-se que existiram apenas 4 apelações criminais (8,33% do total), ou seja, somente estes recursos tiveram por objeto uma sentença de mérito em primeira instância. A partir destes dados, consideramos ser possível formular duas hipóteses explicativas desta situação: a primeira é a de que casos envolvendo pessoas jurídicas ainda sejam relativamente 275 Para mais detalhes, ver anexo n° 4 desta pesquisa. Optamos por considerar os recursos em HC e os recursos em MS juntamente com HC e MS originários, de modo que não haja repetição de informações sobre um mesmo processo. Além disso, os HC recebidos como MS, em razão da fungibilidade recursal, foram enquadrados na pesquisa como HC, pois se considerou o tipo de recurso interposto e não sua forma. Nestes casos existia menção nos próprios acórdãos sobre a possibilidade desta conversão. Assim, alguns HCs foram convertidos, enquanto que outros impetrados em favor da pessoa jurídica não foram sequer conhecidos. O não-conhecimento de HC cujo paciente era pessoa jurídica ocorreu nas seguintes decisões: TRF1 HC 2003.01.00.007523-0, Relator juiz Jamil Rosas de Jesus, j. 17.06.2003; TRF1 HC n. 2003.01.00.042154-7, Relator Des. Carlos Olavo, j. 06.04.2004 e STJ HC 16.762, Relator Min. Hamilton Carvalhido, j. 23.11.2004. 276 Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 367 recentes e, por isso, não teria ainda havido tempo suficiente para que um número mais significativo de ações fossem sentenciadas, apeladas e julgadas em segunda instância; a segunda hipótese explicativa - que nos parece mais plausível - aponta no sentido de que haveria diversas questões que prejudicam a continuidade das ações, determinando que poucas alcancem seu estágio final. Autor do recurso A partir desta categoria, foi possível observar que há um padrão constante no que tange ao autor da ação penal nos casos de responsabilidade da pessoa jurídica. Como pode ser observado no gráfico 5 (abaixo), considerando-se o grupo de casos levantados no STJ, o grupo de casos levantados no TRFs e o total das decisões, para cada 10 recursos interpostos pela defesa, o MP interpõe aproximadamente 8,8 recursos. Neste contexto, o único recurso realizado de ofício pelo juiz da causa encontrado foi relativo a um conflito negativo de competência.277 277 STJ, Conflito de Competência negativo n. 37.356, Relator Min. Felix Fischer, j. 12.03.2003. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 368 Momento da interposição do recurso No gráfico 6 (abaixo), foram distribuídas as informações sobre o momento no qual as partes (defesa ou MP) interpuseram o recurso dentro do processo penal, sendo que, no critério “antes da sentença”, foram agrupados os recursos interpostos entre a decisão do juiz de primeira instância de receber ou não a denúncia e a sentença de primeira instância. A partir disso, observa-se que a grande maioria destes recursos foram interpostos antes da sentença. Na categoria “após a sentença”, por sua vez, encontram-se os recursos interpostos em qualquer momento após a publicação da sentença de primeira instância278. Vale lembrar que não foi encontrado nenhum recurso interposto em momentos anteriores ao oferecimento da denúncia. O gráfico 6 parece ainda reforçar a hipótese de que os casos envolvendo pessoas jurídicas são extintos precocemente, na medida em que observamos que apenas 12,5% de todos os recursos foram interpostos após a prolação de uma sentença em primeiro grau. 278 Também foi enquadrado neste critério um caso de ação criminal de competência originária do TRF 4 (Apelação Criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Braz, j. 15.05.2008), uma vez que não há apelação possível desta decisão. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 369 Tipo de crime O gráfico 7 (acima) indica a quantidade de tipos penais que apareceram nas denúncias dos processos analisados, quando mencionados no relatório do acórdão. Uma vez que cada acusado pode ter cometido mais de um crime, optou-se pela contagem de todos os tipos penais presentes no oferecimento da denúncia. Por tal razão, o valor total da tabela ultrapassa o universo de 48 acórdãos. Além disso, quando foi imputada à pessoa jurídica mais de uma conduta referente ao mesmo tipo penal (concurso de crimes ou crime continuado), considerou-se este fato como apenas uma unidade na tabela. Isto se justifica pelo interesse em Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 370 observar quais condutas levaram a uma quantidade maior de denúncias em face de pessoas jurídicas. Ao analisar estes número, percebe-se que a maior diversidade de tipos penais denunciados refere-se aos crimes contra a flora (arts. 38 a 53), que conta com 6 diferentes crimes e 26 ações denunciadas. A seguir estão os crimes de poluição e afins (arts. 54 a 61), com 4 diferentes formas delitivas e 31 denúncias realizadas. Em seguida, encontram-se os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (arts. 62 a 65) e os crimes contra a fauna (arts. 29 a 37), com respectivamente 2 e 1 tipos de crime em 4 e 3 denúncias. No critério “outros” foi incluído um caso em cuja denúncia constava um crime tipificado na Lei n.º 8.176/91 e não na Lei de Crimes Ambientais. Esta lei define os crimes contra a ordem econômica, e a conduta em questão é a descrita em seu art. 2º, caput. 279 Tipo e modalidade de conduta De acordo com o relatório dos acórdãos, foi ainda possível identificar o tipo e modalidade de conduta imputada à pessoa jurídica. Do universo analisado, apenas 39 decisões faziam menção à forma de conduta realizada (ação ou omissão) e à modalidade em que ela ocorreu (dolo ou culpa). Deste conjunto, predominam as condutas comissivas e dolosas (como se pode ver nos Gráficos 8 e 9, abaixo). Vale ainda ressaltar que a Lei n.º 9605/98, ao prever mais de 30 tipos penais, reservou somente 12 deles à modalidade culposa. 279 Art. 2° Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpacão, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Pena: detenção, de um a cinco anos e multa. § 1° Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo. § 2° No crime definido neste artigo, a pena de multa será fixada entre dez e trezentos e sessenta diasmulta, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime. § 3° O dia-multa será fixado pelo juiz em valor não inferior a quatorze nem superior a duzentos Bônus do Tesouro Nacional (BTN). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 371 Pedidos dos recursos Conforme já visto anteriormente, a maior parte dos recursos são interpostos previamente à sentença de primeiro grau. No que diz respeito ao conteúdo destes pedidos, é possível perceber que existem apenas dois pedidos de absolvição ou redução da pena280, em favor da defesa, e somente 280 TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Braz, j. 15.05.2008 e TRF4 2003.72.04.013512-0, Relator Des. Néfi Cordeiro, j. 15.05.2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 372 dois pedidos de condenação da pessoa jurídica. 281 Entendemos que a carência de pedidos cujo objeto seja uma decisão de mérito esteja relacionado à extinção precoce de processos criminais envolvendo pessoas jurídicas. A leitura do gráfico 10 também evidencia um dado já apontado na análise do momento de interposição do recurso, qual seja, a predominância de recursos interpostos antes da sentença de primeiro grau, com pedidos de recebimento da denúncia e de trancamento da ação penal, que somam quase 80% do total. Em menor frequência, também surgiram dois pedidos cujo objeto foi a recolocação da pessoa jurídica no pólo passivo da ação penal, ambos de interesse da acusação. 282 Evolução da decisão 281 TRF4, Apelação n. 2004.72.04.002610-3, Relator Des. Luis Fernando Penteado, j. 13.06.2007 e TRF4, Apelação n. 2004.71.00.024695-3, Relator Des. Luis Carlos Canalli, j. 14.08.2007. Em um dos pedidos de condenação há também o pedido de recolocação da pessoa jurídica no pólo passivo, uma vez que ela havia sido excluída da relação processual pelo juiz de primeira instância após o recebimento da denúncia e antes da sentença (TRF1, Apelação 2005.41.00.001244-4). 282 STJ, Recurso Especial n. 847.476, Relator Min. Paulo Galotti, j. 08.04.2008 e STJ, Recurso Especial 564.360, Relator Min. Gilson Dipp, j. 02.06.2005. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 373 A categoria “evolução da decisão” foi criada a fim de observar a manutenção ou não das decisões do juiz a quo pelos Tribunais, isto é, se e em que medida as decisões são ou não alterada em juízo de segunda instância. Como mostra o gráfico 11 (abaixo), os TRFs (61,2% dos casos) alteraram muito mais as decisões de primeiro grau que o STJ (33,3% dos casos). Os recursos analisados apresentam relativa uniformidade nos TRFs e STJ quanto à continuidade da ação, após seu julgamento em sede recursal. Em aproximadamente 65% dos casos, a ação prosseguiu após o julgamento dos recursos. Do exposto, percebese que a quantidade de decisões de primeiro grau alteradas é superior à de decisões mantidas, indicando que tanto STJ como TRFs reformam mais as decisões para manter seu prosseguimento. Em geral, é maior o número de ocorrências em que as instâncias superiores decidem no sentido de reverter a decisão anterior de encerramento do caso. Por fim, vale esclarecer as duas últimas colunas do gráfico. Por um lado, a terceira coluna (“Parcialmente alterada a decisão da instância anterior”) procura indicar a ocorrência de alteração parcial de duas decisões proferidas pelo TRF 4; em uma das decisões283 houve o trancamento da ação de um dos tipos denunciados, mas manteve a denúncia em relação aos outros; em outra, o julgamento de uma apelação criminal284 manteve a condenação e alterou a pena de suspensão definitiva das atividades pela de suspensão temporária das empresas. Por outro lado, a última coluna refere-se à ação de competência originária do Tribunal Regional Federal, pois trata de denúncia contra prefeito em exercício. 285 283 TRF4, Habeas Corpus n. 2008.04.00.005931-5, Relator Des. Paulo Afonso Brum, j. 04.06.2008. 284 TRF4, Apelação criminal n. 2004.71.00.024695-3, Relator Des. Luis Carlos Canalli, j. 14.08.2007. 285 TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Braz, j. 15.05.2008. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 374 Detalhamento da decisão final A partir do gráfico 12 (acima), fica evidente a predominância, nos Tribunais, de decisões que determinam a continuidade da persecução penal. Somadas as decisões que determinam seu recebimento e o prosseguimento da ação penal, temos 21 casos de prosseguimento contra 13 de trancamento ou rejeição da denúnica. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 375 Além disso, aparece novamente o pequeno número de recursos interpostos após decisão de mérito (absolvição ou condenação) em primeiro grau – apenas 4 casos de 48 casos (8% do total). Quanto ao não-conhecimento de seis recursos interpostos, quatro Habeas Corpus não foram conhecidos pela impossibilidade da pessoa jurídica figurar como paciente neste tipo de ação286. Um deles287 não foi conhecido por tratar de matéria probatória, o que é vedado. O Recurso Especial288 não foi conhecido por estar em desacordo com as exigências legais para sua admissibilidade. Sobre o conjunto de acórdãos analisados, vale mencionar algumas particularidades. Em um dos casos de prosseguimento da ação, designou-se novo interrogatório, pois se observou a impossibilidade de preposto da pessoa jurídica representá-la em processo penal, o que só poderia ser feito pelo representante legal. 289 Além disso, a pessoa jurídica acusada foi recolocada no pólo passivo em uma apelação e um recurso especial. Nos dois casos foram consideradas nulas as decisões que afastaram a pessoa jurídica do pólo passivo depois do recebimento da denúncia, e em ambos determinou-se a elaboração de nova sentença que incluísse a pessoa jurídica no pólo passivo. 286 TRF1, Habeas Corpus n. 2003.01.00.042154-7, Relator Des. Carlos Olavo, j. 06.04.2004; TRF1, Habeas Corpus n. 2003.01.00.007523-0, Relator juiz federal Jamil Rosa de Jesus, j. 17.06.2003; STJ, Habeas Corpus n. 93.867, Relator Min. Felix Fischer, j. 08.04.2008; STJ, Habeas Corpus n. 16.762, Relator Min. Hamilton Carvalhido, j. 26.11.2004. 287 STJ, Habeas Corpus n. 21.644, Relator Min. Gilson Dipp, j. 21.08.2003. 288 STJ, Resp n. 331929, Relator Min. Felix Fischer, j. 17.09.2002. 289 TRF4, Mandado de Segurança n. 2002.04.01.013843-0, Relator Des. Jorge Luíz Borges Germano, j. 10.12.2002. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 376 Unanimidade das decisões Como mostra o gráfico 13 (acima), nos acórdãos analisados prevalece a unanimidade das decisões. Somente nos TRF1 (cinco decisões) e TRF4 (uma decisão) existem casos decididos por maioria. As seis decisões por maioria indicaram no resultado final a possibilidade de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica. No TRF1, todas as decisões por maioria foram favoráveis ao autor da ação e somente versavam sobre o trancamento (três no total) ou o recebimento da ação (duas no total). O recurso no TRF4, por sua vez, também versava sobre o trancamento da ação, mas este não foi provido, e determinou-se a realização de nova audiência para saneamento de nulidade. Decisão e fundamentação No extenso gráfico em linhas colocado abaixo, procuramos tratar da decisão e da fundamentação dos julgados analisados. Na barra lateral esquerda deste gráfico, encontram-se as diferentes decisões proferidas no âmbito dos acórdãos pesquisados, enquanto na parte superior encontram-se todas as fundamentações utilizadas nos 48 acórdãos. Dividindo o universo deste modo, é possível observar qual o fundamento mais utilizado para cada tipo de decisão proferida. Vale lembrar que, como é possível Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 377 mais de um fundamento para cada decisão, a soma total destes resultados ultrapassa o número de acórdãos analisados. Da análise feita nestes termos, percebe-se que as combinações mais comuns entre decisão (d) e fundamentação (f) são: • (d) recebimento da denúncia por responsabilização penal da pessoa jurídica (13 vezes); (f) ser constitucional a • (d) recebimento da denúncia por (f) considerar inadequado o momento processual em que o juiz de primeira instância excluiu a pessoa jurídica da relação processual (5 vezes); • (d) não-trancamento da ação por responsabilização penal da pessoa jurídica (5 vezes); e • (f) ser constitucional a (d) trancamento da ação penal por (f) ausência de co-réu pessoa física (5 vezes). De acordo com os dados desta tabela, parece ser possível afirmar que os Tribunais estão atualmente sendo chamados para resolver questões “primárias” quanto à responsabilização penal da pessoa jurídica. Isso porque eles vem sendo chamados para se pronunciarem sobre temas como a constitucionalidade desta responsabilização penal, assim como sobre a necessidade de co-existência de réu pessoa física, análises feitas estas ainda no início do procedimento penal. Além disso, como exposto abaixo e já mencionado anteriormente, em relação à individualização da conduta por parte da pessoa física e a sua respectiva persecução penal, a maioria dos julgados analisados indica a necessidade de fazer tal individualização. Do universo de casos analisados, 75% das justificativas para trancamento das ações versavam sobre a inexistência de co-réu pessoa física e falta de provas da conduta individual concreta, assim como 40% das fundamentações para o não-recebimento da denúncia cuidam da falta de imputação de crime à pessoa física que agiu concretamente. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 378 Não há prova de decisão do Não há a previsão de procedimentos e Há previsão constitucional e legal Considerado inadequado o momento representante legal aprovando o A pessoa jurídica não Decisão sobre penas específicas para a pessoa jurídica para a responsabilização penal da para a exclusão da pessoa jurídica do Há co-réu pessoa física Não há co-réu pessoa física cometimento do delito em pode ser paciente de HC competência no âmbito penal, o que impede a pessoa jurídica pólo passivo benefício da pessoa jurídica continuidade da ação Trancada a ação 0 0 0 5 1 0 0 0 Não trancada a ação 5 0 1 0 0 0 0 0 Recebida a denúncia 13 5 1 0 0 0 0 0 Não recebida a denúncia 0 0 0 2 0 0 0 2 Não conhecido o recurso 1 0 0 0 0 3 0 0 Recolocada a pessoa jurídica no pólo passivo 2 2 0 0 0 0 0 0 Decisão sobre competência 0 0 0 0 0 0 2 0 Condenada a PJ 3 0 0 0 0 0 0 0 Condenada a PJ, mas reconhecida a prescrição. 0 0 0 0 0 0 0 0 Reforma parcial da sentença para diminuir a pena 0 0 0 0 0 0 0 0 Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 379 Não é necessário extinguir a Não é possível É cabível a modalidade culposa em Há permissão dos órgãos pessoa jurídica se ela é reconhecer a crimes cometidos por pessoas competentes para que a pessoa primária e o empresário se responsabilidade jurídicas. jurídica agisse daquela forma comprometeu a reparar os jurídica de consórcios danos causados Precrita a ação contra a pessoa A responsabilização Não é possível física, deve também se penal da PJ é análise de mérito reconhecer a prescrição da ação inconstitucional em HC contra a pessoa jurídica Trancada a ação 0 1 1 0 0 0 0 Não trancada a ação 1 0 0 0 0 0 0 Recebida a denúncia 0 0 0 0 0 0 0 Não recebida a denúncia 0 0 0 0 0 1 0 Não conhecido o recurso 0 0 0 0 0 0 1 Recolocada a pessoa jurídica no pólo passivo 0 0 0 0 0 0 0 Decisão sobre competência 0 0 0 0 0 0 0 Condenada a PJ 0 0 0 0 0 0 0 Condenada a PJ, mas reconhecida a prescrição. 0 0 0 0 2 0 0 Reforma parcial da sentença para diminuir a pena 0 0 0 1 0 0 0 Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 380 4.3 Análise qualitativa das apelações e ação criminal Como já explicitado acima, o próprio fato de estarem os tribunais tratando, em sua maioria, de questões “primárias” da responsabilidade penal da pessoa jurídica fez com que o levantamento jurisprudencial realizado resultasse em apenas cinco decisões de mérito, em casos julgados no âmbito dos Tribunais Regionais Federais - 4 apelações e 1 ação criminal. Ainda que em todas as decisões houvesse condenações, em um deles foi reconhecida a prescrição da pretensão punitiva. A seguir, promovemos uma análise qualitativa destas decisões, sistematizando as principais questões e argumentos que foram levantados nestes julgados. Inicialmente, é interessante notar que, em todas estas decisões, os Tribunais reconheceram a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, embora esse ponto tenha sido questionado mais de uma vez. Em um dos acórdãos290, a parte recorrente alegou ilegitimidade para figurar no pólo passivo por ser inviável a responsabilização penal da pessoa jurídica. Não obstante isso, ao decidir sobre o caso, o Tribunal afirmou ser atualmente pacífico, em sua jurisprudência, a imputação de pena à pessoa jurídica. Debruçado sobre esta mesma questão, o juiz a quo mencionado na Apelação criminal n. 2005.41.00.001244-4291 excluiu a pessoa jurídica do processo, sob o argumento de que: em atenção ao societas delinquere non potest, o crime é produto exclusivo do homem, porque ‘dotado de personalidade e vontade próprias, ostenta aptidão a protagonizar condutas passíveis de censura penal: nullum crimen sine conducta’, enquanto que ‘a pessoa jurídica é mera ficção, inexiste por si e, portanto, sozinha, carece de aptidão à prática de crimes. Tal julgado, no entanto, foi reformado pelo Tribunal, que reintegrou a pessoa jurídica ao pólo passivo e em seguida, condenou-a. Afirmou-se, em referência à decisão de primeiro grau, que “as pessoas jurídicas não são somente uma abstração, pois agem no mundo dos fenômenos, sendo, portanto, seres com real juízo de existência (teoria da realidade objetiva), já que são dotadas de vontade coletiva, devendo ser equiparadas, em 290 TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Vaz, j. 15.05.2008. 291 TRF1, Apelação criminal n. 2005.41.00.001244-4, Relator juiz federal Saulo Casali Bahia, j. 11.12.2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 381 regra, como seres sociais, às pessoas físicas, tanto em direitos como em obrigações”. Tal decisão é especialmente interessante quando a analisamos sob a ótica do modelo de responsabilidade que nela está pressuposto. Ao que parece, o Tribunal está, nesta sentença, fazendo referência ao modelo da responsabilidade própria da pessoa jurídica, que é vista como “ser que age”; desta forma, parece estar aberto um caminho para a superação das dificuldades de individualização e para a formulação de um modelo de responsabilidade que se adéqua melhor a um contexto marcado por uma forte diferenciação funcional. Não obstante isso, este acórdão parece nadar na contracorrente. Em todos os demais julgados, existiam pessoas físicas denunciadas juntamente com a pessoa jurídica, e as condenações dos entes coletivos foram sempre acompanhadas das condenações das respectivas pessoas físicas co-autoras. Esta é mais uma demonstração da exigência jurisprudencial da existência de co-autoria entre a pessoa física e a jurídica, já mencionada anteriormente. Para além dos requisitos para a imputação da pessoa jurídica, outro ponto que merece ser destacado é aquele acerca do modo de aferição da responsabilidade coletiva. Das apelações analisadas, duas resultaram de sentenças condenatórias em primeira instância, uma de absolvição e outra de reconhecimento de causa extintiva da punibilidade. A absolvição em primeira instância foi proferida sob o fundamento da ausência de indícios de autoria. O Tribunal reverteu tal decisão, reconhecendo a “autoria” da pessoa jurídica, e se aduz que a própria pessoa jurídica teria “agido” em busca de determinado benefício. Revelou-se peculiar o critério utilizado para tal aferição: ter o fato ocorrido dentro de suas instalações: No que pertine à autoria em relação à empresa Cerâmica Pamil Ltda., entendo estar devidamente demonstrada. Apesar de a defesa alegar que a extração da argila não se deu por ato da pessoa jurídica, nem dentro de sua propriedade, os documentos elaborados pelas autoridades ambientais deixam claro exatamente o contrário, que a retirada do mineral deu-se pela Cerâmica Pamil Ltda., tendo ocorrido o fato dentro de suas instalações, conforme dão conta os seguintes documentos: - Notícia de Infração Ambiental (fls. 07-12); - Boletins de Ocorrência Ambiental de nºs 29414 e 29415 (fls. 13 e 14); Autos de Infração de nºs 346188, 346189 e 346190 (fls. 15-17). A área da empresa, conforme referido nos documentos, é totalmente cercada, o que afasta possível engano a respeito do local dos fatos. Além disso, os Termos de Embargo/Interdição de nºs 0280089 e 0280090 (fls. 18 e 19) confirmam a realização dos fatos pela Cerâmica Pamil Ltda, tanto que teve suas atividades paralisadas, sendo que a defesa não trouxe qualquer notícia sobre eventual Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 382 impugnação dos atos no âmbito administrativo (TRF 4 – Apelação 2004.72.04.002610-3). Já no caso em que o juiz a quo reconheceu causa extintiva da punibilidade292 houve afastamento da pessoa jurídica do pólo passivo, alegando-se ser esta mera ficção e, portanto, parte ilegítima. O Tribunal, também neste caso, reverteu tal decisão, retomando o argumento de que “as pessoas jurídicas não são somente uma abstração, pois agem no mundo dos fenômenos, sendo, portanto, seres com real juízo de existência (teoria da realidade objetiva), já que são dotadas de vontade coletiva, devendo ser equiparadas, em regra, como seres sociais, às pessoas físicas, tanto em direitos como em obrigações”. Interessante chamar a atenção para os critérios aqui utilizados para a responsabilização do ente coletivo: “no exame e definição da responsabilidade, na área ambiental, é imprescindível a separação da ação do seu representante legal, como pessoa física, devendo o julgador verificar o resultado: se beneficia somente o representante, apenas este responde; se beneficia a empresa, havendo prova de ter agido nos seus fins institucionais, responde também esta, ressalvadas as hipóteses de coautoria”. Desta forma, parece haver indícios, na jurisprudência, para uma diferenciação entre as infrações cometidas a despeito da pessoa jurídica e as infrações cometidas pela própria pessoa jurídica. Outro ponto relevante é o tipo de pena a ser aplicado sobre os entes coletivos. Quando houve condenação de pessoas jurídicas em primeira instância, foram aplicadas penas restritivas de direito – prestação de serviços à comunidade e, em um dos casos, a suspensão definitiva das atividades, sem aplicação de penas de multa. O TRF4 aplicou a pena de multa em um caso, fixando-a em R$ 131.000,00293. Em geral, os TRF1 e TRF4 privilegiaram apenas a pena de prestação de serviço à comunidade, como custeio de programas e de projetos ambientais, manutenção de espaço público pelo prazo de um ano, contribuições mensais no valor de um salário-mínimo a entidades ambientais ou culturais, pelo período de 08 meses, execução de obras de recuperação de áreas degradadas pelo prazo máximo de 1 ano e 6 meses. 292 TRF1, Apelação criminal n. 2005.41.00.001244-4, Relator juiz federal Saulo Casali Bahia, j. 11.12.2007. 293 TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Vaz, j. 15.05.2008. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 383 A segunda instância, por sua vez, alterou todas as decisões apeladas. Dentre as condenações a quo, no caso em que se determinou a pena de suspensão definitiva das atividades, esta foi reformada para de suspensão temporária das atividades 294. No entendimento do Tribunal, “mostra-se mais adequado que a sanção de suspensão parcial anteceda a pena de suspensão total das atividades da empresa, e que esta penalidade fique restrita às atividades relacionadas ao dano ambiental causado pela pessoa jurídica”. Considerou-se também que havia sido firmado pelo co-réu, sócio responsável pela pessoa jurídica, um compromisso de ajustamento de conduta com o Ministério Público Estadual. Em uma das decisões, o TRF4 manteve a condenação, mas reconheceu a ocorrência da prescrição. De todo modo, a imputação de responsabilização à pessoa jurídica contida na sentença condenatória não deve ser desprezada295. Na apelação em razão da absolvição, o Tribunal reformou a decisão de primeira instância para condenar a pessoa jurídica e aplicou penas de multa e restritivas de direito - contribuições a entidades ambientais ou culturais. Entretanto, as penas não chegaram a ser executadas, pois foi reconhecida, de ofício, a prescrição da pretensão punitiva. Esta decisão foi anulada e os autos foram remetidos ao juiz sentenciante, para que este pronunciasse nova decisão, desta vez incluindo a pessoa jurídica no pólo passivo. 296 Por fim, merece destaque uma ação criminal de competência originária do TRF, Ação Penal n. 2005.04.01.009770-1, na qual a pessoa jurídica foi condenada às penas de multa e prestação de serviços consistentes na execução de obras de recuperação das áreas degradadas pelo prazo máximo de 1 ano e 6 meses. Interessante notar a discussão do problema da dosimetria da pena aplicada a pessoas jurídicas. Ante a ausência de limites temporais para as penas aplicáveis, a solução desse acórdão foi considerar os limites abstratos da pena privativa de liberdade previstos no tipo, como referenciais para o dimensionamento da sanção. 4.4 Questões que levantam aspectos dogmáticos relevantes 294 TRF4, Apelação criminal n. 2004.71.00.024695-3, Relator Luis Carlos Canalli, j, 14.08.2007. 295 TRF4, Apelação criminal n. 2004.72.04.002610-3, Relator Des. Luiz Fernando Wowk, j. 13.06.2007. 296 TRF4, Apelação criminal n. 2003.72.04.013512-0, Relator Des. Néfi Cordeiro, j. 15.05.2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 384 Nos parágrafos que seguem, destacaremos, ainda que de forma sucinta, algumas situações que se mostraram importantes para uma reflexão dogmática da responsabilização penal da pessoa jurídica. Neste sentido, um primeiro caso que revela questões dogmáticas interessantes é aquele de uma denúncia em face de uma empresa pública por crime contra o meio ambiente297, empresa esta que, apenas após a privatização, foi denunciada pela prática do crime ocorrido anteriormente. Este caso mostra-se relevante porque nele, apesar de a decisão final trancar a ação por ausência de co-réu pessoa física, o relator aborda a questão da responsabilidade penal por sucessão. Embora não tenha se aprofundado na discussão do tema, o relator acredita não ser possível a sucessão criminal, em razão da proibição constitucional de que a pena ultrapasse a pessoa do condenado. Mencione-se, ainda, um caso298 em que a ausência de procedimentos específicos para processamento de pessoas jurídicas foi o fundamento da decisão que rejeitou a denúncia. No âmbito do Recurso em sentido Estrito n. 2001.51.09.000324-1, o Tribunal rejeitou o pedido de recebimento da denúncia, embora tenha considerado constitucional a responsabilização penal da pessoa jurídica. O relator do voto vencedor argumentou pela impossibilidade de se aplicar a responsabilidade penal da pessoa jurídica sem instrumentos e previsões específicas para lidar processualmente com a pessoa jurídica e com sua individualização da pena299. Afirmou o relator Abel Gomes que “nosso direito ainda não se aparelhou, convenientemente, de institutos claros e precisos, necessários a que se efetive essa punição” e que “a Lei n.º 9.605/98 ainda não foi capaz de contemplar, completamente, a disciplina infra-legal apta a possibilitar a adoção da responsabilização penal das pessoas jurídicas”. 4.5 Breve descrição dos casos em que houve análise de mérito TRF 1 – Apelação 2005.41.00.001244-4 297 TRF5, Mandado de Segurança n. 2006.05.00.058401-4. Relatora Des. Margarida Cantanelli, j. 14.08.2007, 298 TRF2, Recurso em Sentido Estrito n. 2001.51.09.000324-1, Relator Des. Abel Gomes, j. 24.08.2005. 299 Afirmando que “não estão devidamente cominadas as penas que se aplicariam, especificamente, em cada tipo penal transgredido pela pessoa jurídica, limitando-se, a lei, a tratar da aplicação das penas às pessoas jurídicas, de forma genérica – artigos 21 a 24 - sem observar princípios constitucionais que seriam imprescindíveis para a correta utilização deste novo instrumento político-criminal de prevenção como, por exemplo, o da individualização”. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 385 Denunciados Pessoa Jurídica: Buratti & Buratti Ltda – Me; Denunciados Pessoa Física: Nilton Bahia Rosa (não consta o cargo); Adequação típica (PJ): art. 46, Lei 9.605/98; Resumo do caso: os denunciados venderam produtos de origem vegetal sem licença válida outorgada pelo IBAMA Decisão de primeira instância: condenou Nilton à pena de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de reclusão e 20 (vinte) dias-multa, substituindo a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos; e, com base no art. 43, III do Código de Processo Penal, excluiu da relação processual a referida empresa. Fundamento na primeira instância: Em atenção ao societas delinquere non potest, o crime é produto exclusivo do homem, porque “dotado de personalidade e vontade próprias, ostenta aptidão a protagonizar condutas passíveis de censura penal: nullum crimen sine conducta”, enquanto que “A pessoa jurídica é mera ficção, inexiste por si e, portanto, sozinha, carece de aptidão à prática de crimes”; Penas aplicadas à pessoa jurídica em primeira instância: nenhuma; Apelante: Ministério Público; Pedidos: Inclusão da pessoa jurídica no pólo passivo e sua conseqüente condenação; Decisão de segunda instância: Provida a apelação para anular a sentença proferida e determinada a realização de outra que inclua a pessoa jurídica no pólo passivo. Penas aplicadas à pessoa jurídica: não se aplica. Fundamento na segunda instância: (i) no exame e definição da responsabilidade, na área ambiental, é imprescindível a separação da ação do seu representante legal, como pessoa física, devendo o julgador verificar o resultado: se beneficia somente o representante, apenas este responde; se beneficiar a empresa, havendo prova de ter agido nos seus fins institucionais, responde também esta, ressalvadas as hipóteses de co-autoria; (ii) as pessoas jurídicas não são somente uma abstração, pois agem no mundo dos fenômenos, sendo, portanto, seres com real juízo de existência (teoria da realidade objetiva), já que são dotadas de vontade coletiva, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 386 devendo ser equiparadas, em regra, como seres sociais, às pessoas físicas, tanto em direitos como em obrigações; (iii) A apuração da responsabilidade se dá à vista da culpabilidade institucional, aferida pelo comportamento da empresa e em face da sua responsabilidade social, em cada caso concreto e segundo as suas circunstâncias, não procedendo a objeção de que a lei teria consagrado a responsabilidade penal objetiva, calcada apenas no fato delitivo praticado pelo seu representante; (iv) uma vez recebida a denúncia, não pode o juiz a quo excluir a empresa da relação processual, pois tal fato equivale à retratação da decisão que recebeu a denúncia, o que é impossibilitado ao juiz, já que o momento para se rejeitar a acusação, ou mesmo excluir réus do feito, é o da decisão que examina se os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal foram atendidos. TRF 4 – Apelação 2003.72.04.013512-0 Denunciados Pessoa Jurídica: Carbonifera Belluno Ltda; Denunciados Pessoa Física: Henrique Salvaro, administrador e sócio majoritário; Adequação típica (PJ): art. 55, Lei 9.605/98; Resumo do caso: extração de carvão sem a licença necessária; Decisão de primeira instância: (i) declarou extinta a punibilidade dos réus em relação ao crime previsto no artigo 330 do Código Penal, pela ocorrência da prescrição; (ii) condenou o réu Henrique Salvaro à pena de 2 anos e 4 meses de detenção e 65 dias-multa, no valor unitário de 3 salários-mínimos vigentes em setembro de 2003, pela prática dos delitos previstos nos artigos 2º da Lei nº 8.176/91, c/c 55 "caput", da Lei nº 9.605/98, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, esta fixada em R$50.000,00; (3) condenou a pessoa jurídica à pena de prestação de serviços à comunidade, consistente em custeio de programas e de projetos ambientais a serem definidos em processo de execução, no valor de R$100.000,00, atualizados até o desembolso; Penas aplicadas à pessoa jurídica: pena restritiva de direito – prestação de serviço à comunidade; Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 387 Apelantes: réus; Pedidos: preliminarmente a nulidade da sentença por ocorrência de mutatio libelli sem que houvesse aditamento da denúncia e chance de manifestação da defesa e nulidade do processo ab initio por não ter sido oferecida a transação penal; quanto ao mérito, alegam ausência de provas da prática do delito, a aplicação de atenuantes prevista na legislação ambiental, a impossibilidade de serem somadas as penas aplicadas e a ocorrência da prescrição; Decisão de segunda instância: (i) é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica quando também denunciado o co-réu pessoa física, (ii) há provas suficientes do cometimento do delito, (iii) Mantida a condenação da primeira instância para a pessoa jurídica, (iv) diminuída a pena de detenção da pessoa física para 7 meses o que resulta em prescrição da pretensão punitiva, (v) declarada extinta a punibilidade em relação à pessoa jurídica pela ocorrência da prescrição para a pessoa física; Penas aplicadas à pessoa jurídica: mantida a pena restritiva de direito, mas reconhecida a prescrição de oficio. TRF 4 – Apelação 2004.71.00.024695-3 Denunciados Pessoa Jurídica: Enio Nelci Silva Flores Firma Individual Denunciados Pessoa Física: Enio Nelci Silva Flores, sócio responsável e administrador Adequação típica (PJ): art. 55 c/c art. 15, II, alíneas a, e, i, n, Lei 9.605/98 Resumo do caso: Uso de draga para extração de areia sem a devida licença em área de conservação ambiental durante o período noturno; Decisão de primeira instância: (i) condenou o réu Ênio Nelci Silva Flores, pela prática dos delitos enunciados nos arts. 2º da Lei 8.176/91 e 55 da Lei 9.605/98, c/c o art. 70 do CP, às penas de 1 (um) ano e 02 (dois) meses de detenção e 10 (dez) dias-multa, no valor unitário de 1/3 (um terço) do salário mínimo nacional vigente ao tempo dos fatos, devidamente atualizado (concurso formal entre os crimes de usurpação do patrimônio público e extração de recursos minerais sem autorização). Substituiu a pena privativa de liberdade aplicada ao réu por duas restritivas de direitos, Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 388 consistente em prestação pecuniária, no valor de 02 salários mínimos e prestação de serviços à comunidade; e (ii) condenou a pessoa jurídica pela prática do delito tipificado no artigo 55 c/c artigo 15, II, alíneas a, b, i, n, c/c artigos 21 a 24, todos da Lei 9.605/98, cumulativamente, à pena restritiva de direito de suspensão definitiva de suas atividades e à pena de prestação de serviços à comunidade consistente na manutenção de um espaço público, a ser determinado pelo Juízo da Execução Penal, pelo prazo de 01 (um) ano. Penas aplicadas à pessoa jurídica: penas restritivas de direito – Suspensão definitiva das atividades e prestação de serviço à comunidade; Apelantes: Réu e MPF Pedidos: réu – reforma parcial da sentença para afastar a pena de suspensão definitiva das atividades; MPF – elevação das penas aplicadas à pessoa física. Decisão de segunda instância: alterada a pena para suspensão temporária das atividades, mas somente aquelas lesivas ao meio ambiente, pelo mesmo tempo da pena restritiva de direitos (1 ano); Penas aplicadas à pessoa jurídica: penas restritivas de direito – Suspensão temporária das atividades lesivas ao meio ambiente e prestação de serviço à comunidade (adotar e manter espaço público pelo prazo de 1 ano); Fundamentos da segunda instância: (i) Mostra-se mais adequado que a sanção de suspensão parcial anteceda a pena de suspensão total das atividades da empresa, e que esta penalidade fique restrita às atividades relacionadas ao dano ambiental causado pela pessoa jurídica, (ii) o co-réu, sócio responsável pela pessoa jurídica apelante, firmou Compromisso da ajustamento com o Ministério Público Estadual, no qual se obrigou a obter renovação do licenciamento ambiental referente à draga bem como a não extrair areia sem prévio licenciamento ambiental, (iii) réus não são reincidentes em crimes ambientais, (iv) a dosimetria da pena foi feita da seguinte maneira: obtida a pena média para a restritiva de liberdade aplicável às pessoas físicas e acrescidas as agravantes. TRF 4 – Apelação 2004.72.04.002610-3 Denunciados PJ: Ceramica Pamil Ltda; Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 389 Denunciados PF: Sérgio Pagnan E César Antônio Pagnan, sócios- proprietários; Adequação típica (PJ): arts. 38 e 55, caput, Lei 9.605/98; Resumo do caso: extração de argila e corte de árvores em área de preservação permanente sem autorização dos órgãos competentes; Decisão de primeira instância: desclassificação do fato do art. 38 para o 50 da mesma lei e absolveu os réus por falta de provas de autoria; Penas aplicadas à pessoa jurídica: absolvida; Apelantes: MPF; Pedidos: afastar a desclassificação e condenar os réus nos termos da denúncia; Decisão de segunda instância: mantida a desclassificação do tipo e condenada a empresa Cerâmica Pamil Ltda. nas sanções do art. 55, caput, da Lei nº 9.605/98 e os réus Cesar Antonio Pagnan e Sérgio Pagnan nas sanções do art. 2º, caput, da Lei nº 8.176/91, em concurso formal com o art. 55, caput, da Lei nº 9.605/98. Reconhecida de ofício a prescrição. Penas aplicadas à pessoa jurídica: prestação de serviço à comunidade (contribuições a entidades ambientais ou culturais, através de pagamentos mensais de 01 salário-mínimo pelo prazo de 08 meses) e multa (30 dias-multa, no valor de 01 saláriomínimo). Não aplicadas em razão do reconhecimento de ofício da prescrição. Fundamento da segunda instância: (i) há prova da autoria da pessoa jurídica; (ii) sanção escolhida porque observa o caráter sócio-educativo, auxiliando entidades voltadas à defesa do bem lesado pela conduta ilícita, sem deixar de manter o fim punitivo; (iii) valor da multa semelhante à pena restritiva de direito e adequada à capacidade financeira da pessoa jurídica; (iv) “ausente critérios específicos na legislação a respeito da prescrição das penas de pessoa jurídica, de modo a facilitar sua análise, entendo por determinar a sanção aplicada dentro do prazo da pena em abstrato, com cumprimento de forma mensal. Considerando que o administrador é o mentor do ilícito, tenho não ser razoável usar outro critério que leve o prazo prescricional a ser maior que aquele incidente para o gestor da empresa” (foi considerada a extensão pena restritiva de direito [8 meses] para o cálculo da prescrição). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 390 TRF 4 – Ação Penal 2005.04.01.009770-1 Denunciados Pessoa Jurídica: Madeiras Oeste Ltda; Denunciados Pessoa Física: Darci Castagna (Administrador Da Pj E Prefeito De Nova Itaberaba S/C), Leocir Pedro Moro, Almério Zanfonatto, Marcos Vinicius Cella, Euclides Antonio Possan, Ivete De Marco Caleffi, Roque Nicolau Weber E Reinério Nadaleti; Adequação típica (PJ): art.s 50 c/c 53, inciso II, alínea c, e 39, todos da Lei nº 9.605/98; Resumo do caso: destruição de florestas nativas, objeto de especial preservação pela legislação ambiental utilizando documentação falsa. A denúncia foi oferecida e recebida na 1ª instância, mas após a posse como prefeito do réu Derci Castagna, a competência foi transferida para o Tribunal, que sentenciou o feito. Pedidos (PJ): (i) ilegitimidade para figurar no pólo passivo por ser inviável a responsabilização penal da pessoa jurídica; (ii) a extinção do feito ante a existência de coisa julgada e a declaração de sua nulidade pela ausência de oportunidade para apresentação de defesa prévia; (iii) absolvição; Decisão de segunda instância: Condenada como incursa na sanção do artigo 38 combinado com o 53, inciso II, alíneas a e c, ambos da Lei nº 9.605/98; Penas aplicadas à pessoa jurídica: Multa (131 dias-multa no valor de R$ 1.000,00, totalizando R$ 131.000,00 e prestação de serviços à comunidade (execução de obras de recuperação de áreas degradadas pelo prazo máximo de 1 ano e 6 meses [A recuperação dos locais danificados e degradados deverá ser equivalente, no mínimo, ao dobro do quantitativo de espécimes vegetais derrubados pela empresa]); Fundamentos da decisão: (i) é pacífico na jurisprudência a responsabilização penal da pessoa jurídica; (ii) evidenciado ser Darci Castagna o gestor, de fato e de direito, da sociedade comercial Madeiras Oeste, não há mácula ou vício hábil a ensejar a exclusão da empresa do pólo passivo destas ações criminais; (iii) Geni Teresinha Castagna é a representante da pessoa jurídica e apresentou defesa prévia mesmo não constando no rol de denunciados, assim sanado o vício da falta de intimação para apresentação de defesa prévia; (iv) dosimetria da pena: inexistindo previsão de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 391 limites temporais para as penas aplicáveis para a pessoa jurídica, a solução é considerar os limites abstratos da pena privativa de liberdade previstos no tipo, como referenciais para o dimensionamento da sanção. Para a Multa deve ser considerada a situação econômica do infrator; (v) “Acaso fosse pena física partiria ela de patamar mínimo (um ano), acrescido quantum derivado das circunstâncias judiciais (quatro meses), adicionando-se à pena-base, ademais, outra fração relativa às agravantes (dois meses)”. (vi) “a restrição de atividades implicaria possível reflexo na diminuição do número de empregados, o que não se deseja”. 4.6 Breve descrição dos casos que trouxeram problemas dogmáticos relevantes TRF 5 - MS 2006.05.00.058401-4 Pessoa Jurídica: SAELPA – Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba; Resumo do caso: Foi recebida a denúncia contra a pessoa jurídica (art. 40, Lei 9.605/98). A pessoa jurídica impetrou mandado de segurança para trancamento da ação; Fundamento principal: Decisão de recebimento foi abusiva por receber denúncia exclusivamente contra pessoa jurídica; Decisão de segunda instância: não recebida a denúncia por ausência de co-réu pessoa física; Peculiaridades: (i) A Procuradoria deu parecer favorável à ré reconhecendo a teoria da dupla imputação o que obrigou o MPF de 1ª instância a apresentar contestação; (ii) o Relator se mostra inclinado a não reconhecer a teoria da dupla imputação (“A legislação, em nenhum momento, condiciona o surgimento da responsabilidade à prática em co-autoria do delito. Maximizou, como pede a maioria dos constitucionalistas, o texto da CF/88 para não lhe oferecer qualquer contenção supérflua [...]Duvido quanto à legalidade dessa exigência, mas, em benefício da estabilidade das decisões judiciais e da segurança jurídica, aplico-a ao caso em questão.”); (iii) Há sucessão entre empresas, uma vez que a SAELPA foi privatizada após o cometimento do delito, o Relator não se aprofunda demais no tema, mas acredita Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 392 que não é possível a sucessão criminal por razões constitucionais (a pena não pode passar da pessoa do condenado). TRF 4 – MS 2002.04.01.054936-2 Pessoa Jurídica: Consórcio energético Foz do Chapecó – FORMADO por Cia. Do Vale do Rio Doce e Foz do Chapecó S.A.; Resumo do caso: recebida denúncia contra diversas pessoas físicas e jurídicas por infração dos arts. 40 e 55 da Lei 9.605/98; Fundamento principais: ilegitimidade passiva para responder a ação penal por não ser uma pessoa jurídica, mas sim uma associação de empresas; Decisão de segunda instância: declarada inepta a denúncia e trancada a ação; Peculiaridades: o Relator não aceita a responsabilização penal de consórcios (“consiste o consórcio na união de duas ou mais empresas para alcançar um propósito. Suas responsabilidades e atribuições são fixadas por via contratual, cabendo a responsabilização penal decorrente de crime ambiental ser atribuída a cada empresa, individualmente, em conformidade com suas atribuições dentro do pacto celebrado. Isso porque cada participante do consórcio obriga-se apenas nos termos estabelecidos nos contratos, respondendo de acordo com as obrigações assumidas. Por tal, de fato, não há como se responsabilizar a totalidade das empresas quando o ataque ao bem jurídico for realizado por apenas uma delas, isoladamente. Consequentemente, não responde o consórcio por crime ambiental”). TRF 2 – RESE 2001.51.09.000324-1 Pessoa Jurídica: Pousada Terras Altas; Resumo do caso: não foi recebida a denúncia contra a PJ em 1ª instância, pois o juiz não considerou admissível a responsabilização penal da pessoa jurídica; Decisão de segunda instância: não recebida a ação contra a pessoa jurídica (por maioria); Peculiaridades: (i) o relator aceitou a tese de que há previsão constitucional e infraconstitucional de responsabilização penal da pessoa jurídica, nos crimes Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 393 ambientais; (ii) no entanto, ele considera que “nosso direito ainda não se aparelhou, convenientemente, de institutos claros e precisos, necessários a que se efetive essa punição”; (iii) e argumenta que não estão devidamente cominadas as penas que se aplicariam, especificamente, em cada tipo penal transgredido pela pessoa jurídica, limitando-se, a lei, a tratar da aplicação das penas às pessoas jurídicas, de forma genérica – artigos 21 a 24 - sem observar princípios constitucionais que seriam imprescindíveis para a correta utilização deste novo instrumento político-criminal de prevenção como, por exemplo, o da individualização; (iv) Não há inconstitucionalidade no reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, “mas a Lei n. 9.605/98 ainda não foi capaz de contemplar, completamente, a disciplina infra-legal apta a possibilitar a adoção da responsabilização penal das pessoas jurídicas”, o que impediria o recebimento da denúncia; (v) o relator do voto vencido afirma que é possível receber a denúncia pois “no que tange ao princípio da individualização da pena, a Lei Ambiental atende ao postulado que, essencialmente, dirige-se ao juiz sentenciante. É certo que o juiz, ao estabelecer as penas aplicáveis à pessoa jurídica, será norteado pelos mesmos princípios e regras de fixação da pena da pessoa física. Ignorará, por óbvio, as circunstâncias de cunho subjetivo e personalíssimas, estabelecendo a pena segundo o mesmo modelo trifásico. Os parâmetros mínimo e máximo de pena privativa de liberdade servirão como parâmetros temporais para a duração da pena restritiva de direitos e de prestação de serviços à comunidade, conforme o artigo 7º da Lei nº 9.605/98 e 44 do Código Penal”; (vi) quanto às questões de ordem processual, afirma que “a solução adequada seria a incidência da regra prevista no art. 3º do CPP, e a atração das normas próprias para o chamamento da pessoa jurídica ao processo de natureza civil. A citação faz-se por meio do representante legal. Interroga-se, em nome de sociedade, o representante legal. As regras previstas para a não localização da pessoa jurídica ou de seu representante ensejam as mesmas conseqüências da não localização do réu pessoa física”. 5. BIBLIOGRAFIA AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2ª edição. 2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 394 ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. “Societas delinquere potest: revisão da legislação comparada e estado atual da doutrina”. In: GOMES, Luiz Flávio (coordenador). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias e Direito Penal. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Gandra. Curso de Direito Constitucional. Volume 8. São Paulo. Editora Saraiva. 1998. BITENCOURT, Cézar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: GOMES, Luiz Flávio (coordenador). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias e Direito Penal. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 1999. CABETTE, Eduardo Luis Santos. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: Estudo crítico. Curitiba. Juará Editora. 2003. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. COSTA JÚNIOR, Paulo José Da. Direito Penal na Constituição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 1991. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. 2ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense Universitária. 1991. DOTTI, René Ariel. “A incapacidade criminal da pessoa jurídica. Uma perspectiva do direito brasileiro”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano. 3. n.11 julho-setembro de 1995. São Paulo. ________________. “A incapacidade penal da pessoa jurídica – uma perspectiva do direito brasileiro”. In: PRADO, Luiz Régis (coordenador). Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2001. ESTELLITA, Heloisa. “Responsabilidade penal da pessoa jurídica: um caso de aplicação de pena com fundamento do 'princípio do porque sim'”. In: Boletim do IBCCRIM, n° 133, dez./ 2003 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. Volume 7. São Paulo: Editora Saraiva. 1995. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 395 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Direito Penal: a nova Parte Geral. Rio de Janeiro, Forense, 1985. FREITAS, Vladimir Passos de. O crime ambiental e a pessoa jurídica. Cidadania e Justiça. Ano 3, N. 6. Rio de Janeiro, 1999 FREITAS, Vladimir Passos de. / FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza (de acordo com a lei 9.605/98). 7ª edição revisada e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2001. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral. Vol. 1. São Paulo, Saraiva, 1985. LAGRASA NETO, Caetano. Responsabilidade da Pessoa Jurídica nos Crimes Ambientais. In: Boletim IBCCRIM n. 116 Julho de 2002. São Paulo. LECEY, Eládio. “A proteção do ambiente e a responsabilidade penal da pessoa jurídica”. In: Direito ambiental em evolução. Curitiba. Editora Juruá. 1998. ____________. “Novos direitos e juizados especiais. A proteção do meio ambiente e os juizados especiais”. In: Revista de Direito Ambiental. Ano 4. julhosetembro de 1999. n. 15. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Penal Ambiental. São Paulo: Editora Malheiros. 14ª edição. 2006. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2000. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. São Paulo, Atlas, 1987. PIERANGELLI, José Henrique. “Responsabilidade penal das pessoas jurídicas e a nova lei ambiental”. In: Revista do Instituto de pesquisas e estudos. N. 39. janeiro a abril de 2004. Bauru. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 396 PINTO MARTINS, Sérgio. Direito da Seguridade Social. São Paulo. Editora Atlas. 2006. PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Ambiental - Problemas Fundamentais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992. __________________. “Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: fundamentos e implicações”. In: PRADO, Luiz Régis (coordenador). Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2001. _________________. Direito Penal do Ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território e biossegurança (com a análise da Lei 11.105/2005). São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2005. REALE JÚNIOR, Miguel. “A responsabilidade penal da pessoa jurídica”. In: PRADO, Luis Régis (coordenador). Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2001. RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues. Revista de direito ambiental. Ano 7. n. 25. Janeiro – marco de 2002. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. ROBALDO, José Carlos de Oliveira. “O direito penal na contramão da história”. In: Boletim IBCCRIM n. 68 – Julho 1998. São Paulo. ROCHA, Fernando Antônio Nogueira Galvão da. “Responsabilidade penal da pessoa jurídica”. In: Revista de Direito Ambiental. N. 10. Ano três. Abril-julho de 1998. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. ROTHENBURG, Walter Claudius. “A responsabilidade criminal da pessoa jurídica na nova lei de infrações ambientais”. In: Revista de Direito Ambiental. Ano 3. Janeiro-Marco de 1998. n. 9. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Curitiba, ICPC, 2005. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 397 ______________________. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba, ICPC, 2006. SHECAIRA, Sérgio Salomão. “A responsabilidade das pessoas jurídicas e os delitos ambientais”. In: Boletim IBCCRIM. N. 65. – abril Especial/ 1998. São Paulo. _________________________. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. De acordo com a Lei 9605/98. 2ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2003. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo, Malheiros, 2007. SIRVINSKAS, Luis Paulo. Questões polêmicas sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais. Boletim IBCCRIM. N. 65 – abril Esp. 1998(a). São Paulo. ______________________.Tutela penal do meio ambiente. São Paulo. Ed. Saraiva. 1998(b). SMANIO, Gianpaolo Poggio. “A responsabilidade penal da pessoa jurídica”. In: Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Caderno Jurídico. Ano 1 – Volume 1. n. 3 – Outubro de 2001. Imprensa Oficial SP. TAVAREZ, Juarez. “Apontamentos sobre o conceito de ação”. In: PRADO, Luiz Regis (Org.). Direito Penal Contemporâneo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. P. 154 e seguintes THOMPSON, Augusto. “Aplicação da criminologia na justiça penal – a criminalização da pessoa jurídica”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 31, 2000. WELZEL, Hans. Das deutsche Strafrecht. 11ª Edição. Berlim, Walter de Gruyter, 1969. ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7ª. edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2007. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 398 ANEXO 7 – CENÁRIO INTERNACIONAL DA IMPLEMENTACÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS INTRODUÇÃO Nos parece importante que a discussão acerca do modelo brasileiro de responsabilização da empresa leve em consideração experiências estrangeiras, pois, embora possamos apontar uma tendência internacional convergente para a criminalização de atos empresariais, cada país vem adotando modelos distintos de responsabilização. O estudo comparado, dessa forma, nos ajuda a visualizar (embora não esgote as possibilidades) o leque de combinações e os diferentes resultados que se pode obter a partir dos distintos arranjos das regras de imputação e tipos de sanção. Além disso, tomamos contato com distintos processos de introdução e harmonização desse instituto com o sistema geral vigente e, ainda que de modo sucinto, com um diagnóstico de sua aplicação. Dentro das limitações da pesquisa, selecionamos algumas experiências como relevantes para o nosso trabalho. A partir dessas linhas gerais, podemos indicar que nosso estudo comparado abordará, a princípio, as seguintes experiências: (i) a americana, que se mostra como um bom contraponto para o debate dogmático europeu e brasileiro, por ser uma das experiências mais antigas, que já conta com um grau significativo de reflexão e institucionalização; (ii) no âmbito europeu, o estudo das experiências alemã, espanhola, portuguesa e italiana; (iii) o estudo dos países europeus estará inserido, como não poderia deixar de ser, no contexto da hamonização jurídicopenal por qual vem passando a União Européia. A comparação entre distintos sistemas exige que se tenha cautela na determinação do método comparativo. Por essa razão, trabalhamos, sempre que possível, com equipes internacionais, que produziram relatório guiados, a fim de transmitir a especificidade de cada sistema; a comparação entre os modelos; e aportar material para a discussão e revisão do caso brasileiro. Nos itens abaixo, destacamos os aspectos centrais dos modelos estudados e transcrevemos, ao final deste texto, a íntegra dos informes estrangeiros. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 399 1. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NA UNIÃO EUROPÉIA Para uma visão de direito comparado acerca do instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica, indispensável se faz uma análise da produção normativa da União Européia sobre esse assunto, haja vista a importância do papel que desempenha nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados-Membros, bem como a sua interferência direta sobre a esfera de direitos de seus nacionais. A opção pela análise do direito comunitário não ignora, todavia, a influência de outros instrumentos internacionais sobre os ordenamentos jurídicos de diversos países com respeito a esse tema, como a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE, de 1997 (QUANTE, 2005, p. 186-187). Do mesmo modo, merece ser destacada a atuação do Conselho da Europa, o qual, cumpre salientar, não integra os quadros institucionais da União Européia. Nesse sentido, o Comitê de Ministros dos Estados membros do Conselho da Europa pronunciou uma recomendação em 1988, a R (88) 18. Nessa ocasião300, o Conselho da Europa, diante do reconhecimento do aumento da criminalidade relacionada ao exercício de atividades empresariais e da complexidade da estrutura organizacional das empresas, que impediria a identificação da pessoa física que cometeu o ato ilícito, advertiu quanto à necessidade da responsabilização penal das empresas por parte dos Estados, que deveriam se esforçar para superar as dificuldades de responsabilização existentes em seus ordenamentos jurídicos. 301 300 Deve-se observar, todavia, que esse posicionamento da necessidade da responsabilização estritamente penal das pessoas jurídicas não foi mantido em momentos posteriores, como no caso do Convênio do Conselho da Europa sobre criminalidade informática, assinado no ano de 2001 em Budapeste, o qual prevê uma responsabilização das pessoas jurídicas que pode ter tanto natureza penal, administrativa ou até mesmo civil. Os parâmetros estabelecidos para a aferição de responsabilidade, além disso, quase não se diferenciam dos previstos pelos atos normativos da União Européia para harmonização das legislações nacionais, os quais dão lugar a um modelo de responsabilidade por atribuição à pessoa jurídica dos atos praticados pela pessoa física (SÁNCHEZ, 2002, p. 115-117; 127). 301 Dispõe o documento em sua versão original: Considering the difficulty, due to the often complex management structure in an enterprise, of identifying the individuals responsible for the commission of an offence; Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 400 A partir dessas considerações iniciais, antes mesmo de analisarmos propriamente os atos normativos que dizem respeito à responsabilização da pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos, e para melhor compreender o campo de influência dessas normativas internacionais nos sistemas jurídicos internos, será traçado, a seguir, um breve panorama a respeito das competências normativas da EU e da sua relação com os ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros. 1.1 A Atividade Normativa da União Européia A União Européia, instituída pelo Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em 1993, é uma organização supranacional que tem por base as Comunidades Européias (Comunidade Atômica Européia e Comunidade Européia, antiga Comunidade Econômica Européia), bem como políticas e formas de cooperação para a realização de seus objetivos (art. 1° do Tratado da União Européia, TUE). Nesse sentido, alude-se à EU como sendo um teto que se apóia sobre três colunas – as Comunidades Européias (cujo principal texto normativo é o Tratado que institui a Comunidade Européia, TCE), a Política Externa e de Segurança Comum (art. 11 a 28 do TUE) e a Cooperação Policial e Judiciária em Matéria Penal (art. 29 a 42 do TUE). Para a realização de suas finalidades, a União Européia dispõe de diversos órgãos que cumprem funções legislativas, executivas e judiciárias. De acordo com Sarmiento, a relação entre o direito comunitário europeu e o direito interno dos EstadosMembros é regida por princípios semelhantes aos que regem a relação entre as unidades federativas e a União, quais sejam, os princípios da primazia e do efeito direto (SARMIENTO, 2006, p. 53). Em suas palavras, o primeiro estabelece a supremacia do direito comunitário europeu sobre o direito nacional em caso de conflito, tornando inaplicável a norma de direito nacional. Por vezes, tal conflito pode chegar a resultar não apenas na Considering the difficulty, rooted in the legal traditions of many European states, of rendering enterprises which are corporate bodies criminally liable; Desirous of overcoming these difficulties, with a view to making enterprises as such answerable, without exonerating from liability natural persons implicated in the offence, and to providing appropriate sanctions and measures to apply to enterprises, so as to achieve the due punishment of illegal activities, the prevention of further offences and the reparation of the damage caused; Considering that the introduction in national law of the principle of criminal liability of enterprises having legal personality is not the only means of solving these difficulties and does not exclude the adoption of other solutions serving the same purpose; Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 401 inaplicabilidade, como também na anulação da norma interna. Quanto ao princípio do efeito direto, através dele garante-se que se possa recorrer a tribunais ordinários, isto é, tribunais nacionais, para tratar de normas de direito comunitário europeu. Assim, quando as normas do direito comunitário europeu outorgarem diretos a indivíduos, estes poderão esgrimir tais direitos na sede judiciária nacional, como se se tratasse de um direito de criação garantido por lei nacional. Do fato de que cada uma dessas “colunas” possui objetos e formas de atuação próprias, caracterizando-se a primeira delas por possuir uma forma de organização supranacional, enquanto que as outras duas organizam-se de modo preponderantemente intergovernamental, decorre que cada uma delas irá demonstrar um tipo de produção normativa igualmente próprio. No Tratado que institui a Comunidade Européia encontram-se as disposições sobre os órgãos da União Européia (o Parlamento, o Conselho, a Comissão, o Tribunal de Justiça e o Tribunal de Contas) e suas competências normativas no âmbito da primeira coluna. De acordo com o mencionado caráter supranacional da UE, tais competências, quando vinculantes, representam a correspondente transferência de competência legislativa dos próprios Estados-Membros à União. Nesse sentido, o art. 249 do TCE prevê os atos normativos que a Comissão adotará em conjunto com o Parlamento e o Conselho. Dentre esses atos, encontram-se, nos termos do dispositivo citado: o regulamento, que é obrigatório e possui caráter geral, vigendo de maneira direta e imediata no território dos Estados-Membros; a diretiva, que “vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios”; a decisão, que se dirige a destinatários específicos (um Estado-Membro ou um particular), sendo nessa medida apenas a eles vinculante; as recomendações e os pareceres, que não são vinculativas como as demais, mas que nem por isso deixam de surtir efeitos jurídicos relevantes, se enquadrando, portanto, como soft law (SARMIENTO, 2006, p. 70). As diretivas, de especial relevância no contexto das reformas dos ordenamentos jurídicos europeus no sentido da responsabilização das pessoas jurídicas pelo cometimento de atos ilícitos, não perdem importância após a sua transposição legislativa pelos Estados-Membros. Isso ocorre justamente porque, com a criação da legislação pelo Estado, elas passam a ter uma função orientadora da interpretação do Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 402 direito nacional, ou seja, passam a surtir “efeitos interpretativos” (SARMIENTO, 2006, p. 69). Em que pese o caráter abstrato e meramente orientador das diretivas, cada vez mais elas têm sido utilizadas de modo a se estabelecer um alto nível de vinculação dos Estados quanto ao seu conteúdo (SARMIENTO, 2006, p. 69). Mesmo o seu efeito meramente indireto foi relativizado pelo Tribunal de Justiça da União Européia, que aceita a aplicação imediata de uma diretiva nos casos em que o Estado negligentemente ou não fez a sua transposição, ou a fez de maneira insuficiente. Tal relativização, porém, não pode ser empregada em situações que representem um prejuízo ao indivíduo, não podendo ser, portanto, invocada em matéria penal (DANNECKER, 2001, p. 60-61). Outra parte da competência normativa desses órgãos origina-se no Tratado que institui a União Européia. Relativamente à cooperação intergovernamental no que tange o pilar da Política Externa e de Segurança Comum, o art. 12 do TUE prevê atos do direito comunitário que não geram efeitos imediatos para os indivíduos, mas apenas aos Estados-Membros nas relações que mantêm entre si (SARMIENTO, 2006, p. 73). Quanto ao terceiro pilar (Cooperação Policial e Judiciária em Matéria Penal), a competência normativa da União Européia é especialmente relevante para o nosso estudo, principalmente no que diz respeito ao objetivo elencado no art. 31, n° 1, e do TUE, referente à adoção de “medidas que prevejam regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis nos domínios da criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico ilícito de droga”. Para a realização desse objetivo, o art. 34 do TUE confere ao Conselho o poder de adotar atos normativos semelhantes aos atos da primeira coluna, embora nenhum deles seja dotado da força vinculativa que possuem as regulamentações. Nesse sentido, o Conselho poderá adotar posições comuns sobre a atuação da UE perante determinado tema, bem como emitir decisões-quadro, além de realizar decisões, elaborar convenções e recomendar a sua adoção pelos Estados-Membros. As decisões-quadro detêm estrutura análoga às diretivas, na medida em que são adotadas com fins de “aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros” e que “vinculam os Estados-Membros quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios” (art. 34, n° 2, b do TUE). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 403 Todavia, o mesmo dispositivo do Tratado da União Européia prevê expressamente a inexistência do efeito direto por parte das decisões-quadro. Não obstante isso, deve-se levar em consideração o posicionamento do Tribunal de Justiça sobre o tema, o qual chegou a afirmar a obrigação de os tribunais nacionais considerarem as decisões-quadro no momento de interpretação do direito nacional (SARMIENTO, 2006, p. 74). 1.2 Competência da União Européia em matéria penal No que diz respeito ao papel e a influência do direito comunitário europeu na responsabilização das pessoas jurídicas por ilícitos praticados em seu âmbito, resta ainda aberta a questão acerca da natureza e os limites da competência da União Européia para legislar sobre tal matéria. Quanto a uma competência de criação de sanções penais em nível supranacional, não existe atualmente previsão expressa nos tratados que a autorize, como também se entende inexistir essa possibilidade justamente pela falta de cessão de soberania por parte dos Estados-Membros a esse ponto (KINDHÄUSER, 2003, p. 17). Há quem afirme que essa falta de competência legislativa em âmbito supranacional não impediria, em princípio, que a União Européia impusesse a obrigação aos Estados-Membros de legislarem em matéria penal (DANNECKER, 2001, p. 58; AMBOS, 2006, p. 41-42). No entanto, o entendimento geral por parte dos órgãos da UE, como o Tribunal de Justiça (Acórdão de 13.09.2005, C-176/03, ponto 47), sempre foi até o momento o de que a competência da Comunidade Européia não abrange a legislação penal e processual penal dos Estados-Membros o que caberia apenas à UE no domínio do terceiro pilar, por meio da adoção de decisões-quadro. Ainda de acordo com essa visão, em havendo necessidade de a Comunidade atuar por meio de diretivas nesse campo, ela não poderia determinar concretamente as sanções a serem aplicadas pelos Estados-Membros (Comunicação da Comissão ao Parlamento, COM (2005) 583, ponto 5). Desse modo, as diretivas sempre se limitaram à fórmula da adoção de “sanções efetivas, proporcionais e dissuasivas”, sem especificar a sua natureza e o seu alcance (DANNECKER, 2001, p. 58), especialmente no que diz respeito à responsabilização das pessoas jurídicas. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 404 Todavia, esse entendimento foi em parte modificado com a decisão do Tribunal de Justiça sobre a anulação da Decisão-Quadro 2003/80 para proteção do meioambiente por meio do direito penal (Processo C-176/03). Nesta época, o Tribunal fora chamado a decidir a pedido da Comissão sobre a invasão de competência da Comunidade por parte do Conselho, quando este estabeleceu por meio de uma decisãoquadro a previsão de sanções penais aplicáveis às pessoas físicas e jurídicas relativamente a condutas lesivas ao meio-ambiente. De acordo com a Comissão, a disposição de regras que protejam o meioambiente estaria incluída na esfera de competência da Comunidade Européia (art. 3°, n° 1, l, e 174° a 176° do TCE), não sendo lícita ao Conselho qualquer regulação no âmbito do terceiro pilar que verse sobre esse assunto, mesmo que a título de aproximação das Legislações penais dos Estados-Membros. O Tribunal de Justiça esclareceu, nessa oportunidade, a divisão de competências entre o primeiro e o terceiro pilar da União Européia, ou seja, estabeleceu mais concretamente o que deveria ser regulado através de diretivas ou até regulamentações por meio dos instrumentos previstos no TCE e o que deveria ser objeto de decisõesquadro, no âmbito da Cooperação Policial e Judiciária em Matéria Penal. Em seu acórdão, o Tribunal admite a competência da Comunidade Européia para proceder à aproximação das legislações penais dos Estados-Membros, a despeito do fato de que os artigos 135.° e 280.°, n.° 4, do TCE vedam a intervenção da UE nas legislações penais nacionais em determinadas matérias. Em suas palavras: embora seja verdade que, em princípio, a legislação penal, como as regras de processo penal, não são abrangidas pelo âmbito da competência da Comunidade, tal não pode impedir o legislador comunitário, quando a aplicação de sanções penais efetivas, proporcionadas e dissuasivas pelas autoridades nacionais competentes constitua uma medida indispensável para lutar contra os atentados graves ao ambiente, de tomar medidas relacionadas com o direito penal dos Estados-Membros que considere necessárias para garantir a plena efetividade das normas que promulgue em matéria de proteção do ambiente. Essa decisão do Tribunal de Justiça levou a Comissão a concluir que o alcance da competência da Comunidade Européia foi ampliado no que respeito ao estabelecimento de medidas penais a serem tomadas pelos Estados, na medida em que esta poderia não apenas dispor sobre as finalidades a atingir, como também determinar Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 405 as formas e os meios pelos quais isso seria realizado. Deste modo, afirma a Comissão, in verbis (COM (2005) 583): Note-se que o Tribunal de Justiça foi mais longe do que o seu AdvogadoGeral lhe havia proposto. Este considerava, com efeito, que o legislador comunitário tinha competência para estabelecer o princípio do recurso a sanções penais para os atentados graves ao ambiente, mas não para determinar exacta e concretamente o regime das mesmas. Tal entendimento, contudo, foi posteriormente rechaçado pelo Tribunal, quando este, em 2007, vindo a se pronunciar acerca do pedido da Comissão para anular a decisão-quadro 2005/667, sob o mesmo fundamento do caso anterior, afirmou que, embora possa a Comunidade impor a aplicação de sanções penais efetivas, proporcionais e dissuasivas quando indispensáveis para garantir a “plena eficácia das normas que adota nesse domínio”, restaria excluída de sua competência a fixação mais concreta do “tipo e do grau das sanções penais” a serem aplicadas pelas autoridades nacionais (C-440/05). Por fim, é importante notar que tal orientação do Tribunal de Justiça, se comparada com seu posicionamento anterior a esse respeito302, deixa patente o aumento da importância dada pela União Européia ao uso do direito penal, que passa a ser visto como o instrumento mais poderoso para que se possam assegurar os seus objetivos e proteger os bens jurídicos que lhe digam respeito. Neste contexto, torna-se ainda mais relevante o tema da responsabilização penal das pessoas jurídicas. Nesse tocante, cabe ressaltar que o direito da União Européia possui ainda outros efeitos sobre os ordenamentos jurídicos nacionais em matéria penal que não se limitam tão somente à produção de normas por meio desse organismo. A legislação secundária exerce sobre os Estados-Membros não apenas os poderes normativos direto ou indireto mencionados, como também gera a obrigação a uma interpretação das normas penais 302 Nesse sentido, os trechos mencionados pelo Tribunal em outras decisões a esse respeito: In principle, criminal legislation and the rules of criminal procedure are matters for which the members states are still responsible. However, it is clear from a consistent line of cases decided by the court, that community law also sets certain limits in that area as regards the control measures which it permits the member states to maintain in connection with the free movement of goods and persons. The administrative measures or penalties must not be conceived in such a way as to restrict the freedom required by the treaty and they must not be accompanied by a penalty which is so disproportionate to the gravity of the infringement that it becomes an obstacle to the exercise of that freedom (C-203/80); o Governo neerlandês argumenta que o regulamento relativo à análise do hálito 1987 se aplica no domínio do direito penal, que se encontra fora do âmbito do direito comunitário [...] Se bem que, em princípio, a legislação penal e as normas do processo penal relevem da competência dos EstadosMembros, não pode daí deduzir-se que este domínio do direito não pode ser afectado pelo direito comunitário (C-226/97). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 406 nacionais conforme o direito comunitário (HECKER, 2008, p. 345 ss.). Isso tem por resultado a criminalização de condutas em âmbito nacional, já que se passa a considerar, por exemplo, um determinado comportamento como forma de realização do tipo penal, o que ocorre igualmente quando se verifica uma colisão entre o direito nacional e o comunitário, nos termos do princípio da primazia do direito comunitário (HECKER, 2008, p. 318 ss.), bem como quando, por forca do Art. 10, TCU, ocorre a assimilação por parte dos ordenamentos internos dos bens jurídicos e interesses da Comunidade, que devem ser protegidos pelos Estados-Membros na mesma medida em que esses protegem seus próprios interesses e bens (HECKER, 2008, p. 239). A análise desses mecanismos fugiriam, no entanto, aos objetivos visados neste trabalho, além de possuir pequena relevância prática até o momento no que diz respeito especificamente à responsabilização das pessoas jurídicas. 1.3 Formas de Responsabilização da pessoa jurídica no âmbito da União Européia Uma análise sobre a aplicação de sanções à pessoa jurídica pelo cometimento de atos ilícitos no âmbito da União Européia irá depender do tipo de ato normativo que se tem em questão. Assim, há que se diferenciar, primeiramente, as sanções estabelecidas concretamente pela própria União Européia - por ela diretamente aplicadas ou não - das sanções a serem implementadas pelos Estados-Membros, de acordo com os parâmetros por ela determinados. Sanções estabelecidas pela própria União Européia As sanções estabelecidas e regulamentadas diretamente pela União Européia são de dois tipos. Existem as sanções que são aplicadas de maneira imediata, ou seja, diretamente por um órgão da União, e as que são impostas por órgãos nacionais. Estas últimas encontram-se no âmbito de regulamentos da União Européia em política pesqueira e agrícola, as quais, embora não possuam um caráter estritamente patrimonial, implicam a restrição a algum benefício patrimonial concedido neste setor, como prevêem os regulamentos 714/89, 1738/89, 915/89 e 3813/89 da Comissão (RODRÍGUEZ, 2000, p. 145); tais sanções são classificadas por Dannecker como Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 407 conseqüências financeiras desfavoráveis ou perda de um direito (DANNECKER, 2001, p. 89). Aqui nos ocuparemos das sanções aplicadas diretamente pela União Européia, uma vez que, a partir de sua atuação sancionadora, ela acabou por estabelecer, ao longo dos anos, importantes critérios e princípios para a imputação de responsabilidade à pessoa jurídica, na medida em que estes acabam por influenciar o direito penal e contravencional dos próprios Estados-Membros (TIEDEMANN, 1994, p. 256). Trata-se mais concretamente das multas instituídas por meio de regulamentos, a título dos artigos 81, 82 e 83 do TCE, em matéria de direito da concorrência, em especial os artigos 23 do regulamento 1/2003303 e 14 do regulamento das concentrações comunitárias 139/2004304, dirigidas especificamente às empresas, européias ou não. 303 Artigo 23.o. Coimas 1. A Comissão pode, mediante decisão, aplicar às empresas e associações de empresas coimas até 1 % do volume de negócios total realizado durante o exercício precedente, sempre que, deliberadamente ou por negligência: a) Forneçam informações inexactas ou deturpadas em resposta a um pedido apresentado nos termos do artigo 17.o ou do no 2 do artigo 18.o; b) Forneçam informaçõs inexactas, incompletas ou deturpadas ou não forneçam uma informação no prazo exigido em resposta a um pedido que lhes tenha sido dirigido por decisão tomada nos termos do artigo 17.o ou do n.o 3 do artigo 18.o; c) Apresentem de forma incompleta os livros ou outros registros relativos à empresa, quando das inspecçõs efectuadas nos termos do artigo 20.o, ou não se sujeitem às inspeções ordenadas mediante decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 20.o; d) Em resposta a um pedido de explicação feito nos termos da alínea e) do n.o 2 do artigo 20.o: — respondam de forma inexacta ou deturpada, — não rectifiquem, no prazo estabelecido pela Comissão, uma resposta inexacta, incompleta ou deturpada dada por um membro do pessoal, ou — não dêem ou se recusem a dar uma resposta cabal sobre factos que se prendam com o objecto e a finalidade de uma inspecção ordenada mediante decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 20.o; e) Forem quebrados os selos apostos, nos termos da alínea d) do n.o 2 do artigo 20.o, pelos funcionários ou outros acompanhantes mandatados pela Comissão. 2. A Comissão pode, mediante decisão, aplicar coimas às empresas e associações de empresas sempre que, deliberadamente ou por negligência: a) Cometam uma infracção ao disposto nos artigos 81.o ou 82.o do Tratado; ou b) Não respeitem uma decisão tomada nos termos do artigo 8.o que ordene medidas provisórias; ou c) Não respeitem um compromisso tornado obrigatório por decisão tomada nos termos do artigo 9.o Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 408 A coima aplicada a cada uma das empresas ou associações de empresas que tenha participado na infracção não deve exceder 10 % do respectivo volume de negócios total realizado durante o exercício precedente. Quando a infracção cometida por uma associação se referir às actividades dos seus membros, a coima não deve exceder 10 % da soma do volume de negócios total de cada membro activo no mercado cujas actividades forem afectadas pela infracção da associação. 3. Quando se determinar o montante da coima, deve tomar-se em consideração a gravidade e a duração da infracção. 4. Quando for aplicada uma coima a uma associação de empresas tendo em conta o volume de negócios dos seus membros e essa associação se encontrar em situação de insolvência, a associação é obrigada a apelar às contribuições dos seus membros para cobrir o montante da coima. Se essas contribuições não tiverem sido pagas à associação no prazo fixado pela Comissão, esta pode exigir o pagamento da coima directamente a qualquer uma das empresas cujos representantes eram membros dos órgãos directivos envolvidos da associação. Depois de exigir o pagamento nos termos do segundo parágrafo, a Comissão pode exigir, sempre que tal seja necessário para assegurar o pagamento total da coima, o pagamento do saldo remanescente a qualquer um dos membros da associação que estavam activos no mercado em que foi cometida a infracção. Todavia, a Comissão não exigirá o pagamento nos termos do segundo ou terceiro parágrafos às empresas que demonstrarem não ter executado a decisão de infracção da associação e que, quer a desconheciam, quer dela se tenham distanciado activamente, antes de a Comissão ter iniciado a investigação no processo. A responsabilidade financeira de cada empresa no tocante ao pagamento da coima não pode exceder 10 % do respectivo volume de negócios total realizado durante o exercício precedente. 5. As decisõs aprovadas nos termos dos n.os 1 e 2 não têm carácter penal. 304 Artigo 14.o. Coimas 1. A Comissão pode, por via de decisão, aplicar às pessoas referidas na alínea b) do n.o 1 do artigo 3.o às empresas e associações de empresas, coimas até 1 % do volume de negócios total realizado pela empresa ou associação de empresas em causa na acepção do artigo 5.o sempre que, deliberada ou negligentemente: a) Prestem informações inexactas ou deturpadas num memorando, certificação, notificação ou notificação complementar apresentados nos termos do artigo 4.o, do n.o 5 do artigo 10.o e do n.o 3 do artigo 22.o; b) Prestem informações inexactas ou deturpadas em resposta a um pedido feito nos termos do n.o 2 do artigo 11.o; c) Prestem informações inexactas, incompletas ou deturpadas em resposta a um pedido feito através de decisão nos termos do n.o 3 do artigo 11.o ou não prestem as informações no prazo fixado; d) Apresentem de forma incompleta, aquando das inspecções efectuadas ao abrigo do artigo 13.o, os livros ou outros registos exigidos relativos à empresa ou não se sujeitem às inspecções ordenadas por via de decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 13.o; e) Em resposta a uma pergunta feita nos termos da alínea e) do n.o 2 do artigo 13.o, — respondam de forma inexacta ou deturpada, — não rectifiquem, no prazo fixado pela Comissão, uma resposta inexacta, incompleta ou deturpada dada por um membro do seu pessoal, ou — não dêem ou se recusem a dar uma resposta cabal sobre factos que se prendam com o objecto e finalidade de uma inspecção ordenada mediante decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 13.o; f) Forem quebrados os selos apostos nos termos da alínea d) do n.o 2 do artigo 13.o pelos agentes ou outras pessoas mandatadas pela Comissão. 2. A Comissão pode, por via de decisão, aplicar às pessoas referidas na alínea b) do n.o 1 do artigo 3.o ou às empresas em causa coimas até 10 % do volume de negócios total realizado pela empresa em causa na acepção do artigo 5.o, sempre que, deliberada ou negligentemente: Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 409 Tais critérios de imputação foram sendo aos poucos estabelecidos pelo fato de as regras da União Européia nessa matéria serem bastante genéricas, já que não prevêem mais que a descrição do ilícito e a sanção correspondente. Embora haja a expressa previsão nesses regulamentos de que as multas em questão não possuem caráter penal, muito se discutiu na doutrina sobre sua natureza jurídica, questionando-se se elas, na verdade, não possuiriam natureza penal, ou se constituiriam pura e simplesmente sanções administrativas; havendo ainda a defesa de que se trataria de sanções sui generis que deveriam ser aplicadas conforme os princípios advindos do direito penal (KINDHÄUSER, 2003, p. 16). É uma questão que se faz importante na medida em que se mostra decisiva para a determinação das garantias e dos critérios que serão aplicados na aferição de responsabilidade das empresas (RODRÍGUEZ, 2000, p. 150). Atualmente entende-se que tais sanções, por conta de seu elevado grau punitivo e caráter preventivo, pertencem, enquanto direito contravencional, à esfera do direito penal em sentido lato (KINDHÄUSER, 2003, p. 18; RODRÍGUEZ, 2000, p. 148). Conseqüência disso, portanto, é a existência necessária de um comportamento que seja culpável (KINDHÄUSER, 2003, p. 18), sendo ainda aplicáveis as garantias do Estado de Direito pertencentes ao direito penal material dos Estados-Membros, tais como o princípio da legalidade, da proibição de analogia, da taxatividade, da irretroatividade e do in dubio pro reo (KINDHÄUSER, 2003, p. 21 e ss.). Outro aspecto relevante, nesse contexto, diz respeito à fixação do conceito de empresa, desenvolvido a partir dos julgamentos proferidos pela Comissão e pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Tal conceito fora, em princípio, definido pelo a) Omitam notificar uma operação de concentração de acordo com o artigo 4.o e com o n.o 3 do artigo 22.o antes da sua realização, a menos que estejam expressamente autorizadas a fazê-lo ao abrigo do n.o 2 do artigo 7.o ou mediante decisão tomada nos termos do n.o 3 do mesmo artigo; b) Realizem uma operação de concentração sem respeitar o artigo 7.o; c) Realizem uma concentração declarada incompatível com o mercado comum por decisão tomada ao abrigo do n.o 3 do artigo 8.o ou não cumpram as medidas ordenadas por decisão tomada ao abrigo dos n.o 4 ou 5 do artigo 8.o; d) Não respeitem uma das condições ou obrigações impostas por decisão tomada nos termos da alínea b) do n.o 1 do artigo 6.o, do n.o 3 do artigo 7.o ou do segundo parágrafo do n.o 2 do artigo 8.o 3. Na determinação do montante da coima, há que tomar em consideração a natureza, a gravidade e a duração da infracção. 4. As decisões tomadas nos termos dos n.os 1, 2 e 3 não têm carácter penal. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 410 Tribunal como uma “conjunção unitária de fatores pessoais, materiais e imateriais que confluem em uma personalidade jurídica independente, com a qual se persegue uma finalidade econômica duradoura” (DANNECKER, 2001, p. 108; FROMM, 2007, p. 285), tendo sido posteriormente ampliado por uma concepção econômica trazida pela Comissão, que possibilita a imputação dentro de relações societárias complexas, como no caso de grupos de empresas, evitando-se o encobrimento da sociedade matriz através de sua filial (DANNECKER, 2001, p. 108), bem como nas situações de liquidação, fusão e transformação de empresas (FROMM, 2007, p. 285). Nesses últimos casos, a Comissão desenvolveu alguns critérios para a responsabilização das empresas, principalmente nos casos em que elas sofrem uma alteração em sua identidade. Em tais situações, entende a Comissão (89/191/CEE: 21.12.1988 , n° 49): É irrelevante, por conseguinte, que uma empresa possa ter vendido a outra a sua atividade no sector do LdPE: o comprador não se torna, por tal fato, responsável pela participação do vendedor no cartel. Se a empresa que cometeu a infração continuar a existir, continua responsável apesar da transferência. Por outro lado, quando é a própria empresa autora da infração que é absorvida por outro produtor, a sua responsabilidade poderá acompanhá-la e transferir-se para a nova entidade ou para a entidade resultante da fusão. Não é necessário demonstrar que o adquirente praticou ou assumiu como próprio o comportamento ilícito. O fator determinante é saber se existe uma continuidade funcional e econômica entre o autor original da infração e a empresa resultante da fusão. Quanto a essa questão, o Tribunal de Justiça (Acordão 11.12.2007, C-280/06) foi recentemente chamado a decidir prejudicialmente sobre os limites estabelecidos entre o princípio da responsabilidade pessoal e o critério da continuidade econômica, em um caso em que a parte final de uma conduta ilícita havia sido assumida pela empresa que incorporou a empresa originária, a qual continuara existindo, porém não mais exercendo a atividade econômica no setor em que a sanção se aplica; esta questão parece especialmente problemática quando se leva em consideração os fins de dissuasão da conduta que se buscam com a aplicação dessas sanções. No que diz respeito ainda ao conceito de empresa, não se mostra necessária para a sua configuração tratar-se de uma unidade privada, tendo entendido o Tribunal de Justiça que o “conceito de ‘empresa’ abrange qualquer entidade que exerça uma atividade econômica, independentemente do estatuto jurídico dessa entidade e do seu modo de financiamento” (Acordão 11.12.2007, C-280/06, n° 38). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 411 A imputação de responsabilidade da empresa pelo cometimento de ilícitos no direito comunitário baseia-se num modelo bastante amplo de representação, que independe da função da pessoa física como órgão legitimado de representação, bastando que ela possa agir pela empresa, sendo irrelevante a sua posição dentro dela (FROMM, 2007, p. 285-286). Logo, a ação da empresa fica configurada pela atividade de quaisquer de seus empregados, desde que quando ajam em seu nome o façam dentro de suas atribuições (DANNECKER, 2001, p. 109). Apesar dessa ampla margem na configuração da ação da empresa, necessário se faz que ela tenha agido com dolo ou culpa, os quais, mesmo que vistos majoritariamente como elementos da culpabilidade, são também considerados no direito de cartel da Comunidade Européia como elementos subjetivos da tipicidade (KINDHÄUSER, 2003, p. 35). A Comissão entende o dolo atualmente como o conhecimento da realização do tipo legal, dirigido a todos os seus elementos, o que inclui também o curso do processo causal (KINDHÄUSER, 2003, p. 35). A culpa, por sua vez, é determinada através da verificação de que a empresa poderia e deveria saber ou perceber que ela realizava um ilícito (KINDHÄUSER, 2003, p. 39). Desafiante se mostra, por outro lado, a análise da orientação da Comissão e do Tribunal de Justiça quanto ao tratamento dado ao erro. Em seus julgamentos, a Comissão não se utiliza das diferenciações dogmáticas de que se servem tradicionalmente o direito penal de cada um dos países europeus (TIEDEMANN, 1994, p. 271). Nesse sentido, existe a possibilidade de exclusão da responsabilidade quando se tratar de um erro inevitável, com decisões em casos que podem ser considerados erros sobre um fato justificativo ou ainda erro de proibição, o mesmo não se aplicando, porém, quando tal erro possa ser remetido à negligência da empresa (TIEDEMANN, 1994, p. 271-273). Nessa última hipótese, contudo, leva-se em consideração o erro no momento de medição da sanção a ser aplicada (KINDHÄUSER, 2003, p. 60). Quanto às causas de justificação, há muitas vezes, por parte das empresas, a tentativa de justificar seus atos com a alegação da existência de legítima defesa, em relação à qual, mesmo tendo a Comissão feito uma conceituação acerca de seu significado, não se encontra ainda jurisprudência no sentido de aceitar a escusa de responsabilidade com base nessa justificativa (KINDHÄUSER, 2003, p. 56); já no que tange à alegação de estado de necessidade, este é amplamente aceito pela Comissão Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 412 como uma causa de exclusão de responsabilidade da empresa (KINDHÄUSER, 2003, p. 57). O processo promovido pela Comissão respeita, no mais, princípios e garantias próprios de um processo administrativo (KINDHÄUSER, 2003, p. 94). As empresas têm reconhecido o seu direito de defesa, que inclui o direito de serem ouvidas, o acesso à instrução probatória, à assistência jurídica de um advogado, à proteção do sigilo de correspondência, ou ainda à não-produção de prova contra si mesma, muito embora (em maior ou menor proporção) tais direitos não sejam aplicados com a mesma força e integralidade com que seriam em um procedimento penal (DANNECKER, 2001, p. 130 e ss.). Previsão de sanções por meio da aproximação das legislações penais Conforme mencionado acima, a atuação da UE sobre os ordenamentos jurídicos dos Estados-membros relativamente ao direito penal se dá fundamentalmente através das diretivas e das decisões-quadro. Além dessas, encontram-se ainda como instrumentos utilizados na harmonização dos ordenamentos jurídicos europeus as convenções realizadas com esse propósito, dentre as quais cabe mencionar o 2° Protocolo que completa a Convenção sobre a Proteção dos Interesses Financeiros da Comunidade Européia, de 19.07.1997, que prevê, a partir de parâmetros praticamente idênticos aos estabelecidos por meio das diretivas e decisões-quadro, a obrigação de os Estados responsabilizarem as pessoas jurídicas por atos de fraude, corrupção e lavagem de dinheiro (FROMM, 2007, p. 289). É interessante notar que praticamente todos os atos normativos da União Européia dotados de aproximação da legislação penal dos Estados-Membros prevêem, além da responsabilidade penal das pessoas físicas, a responsabilidade das pessoas coletivas305 em nome das quais se pratica o ilícito306. 305 Esse é o termo utilizado na versão portuguesa dos documentos em apreço, o qual, conforme se verá adiante, compreende um rol de organizações coletivas que ultrapassa o conjunto dos entes que possuem personalidade jurídica. 306 No plano das decisões-quadro, as seguintes: 2000/383 (falsificação de moeda), 2002/475 (luta contra o terrorismo), 2003/80 (proteção do meio-ambiente através do direito penal, anulada pela decisão do Tribunal de Justiça de 13.09.2005), 2003/568 (combate à corrupção no setor privado), 2004/757 (relativo ao tráfico ilícito de drogas), 2005/667 (repressão da poluição por navios), 2008/913 (luta contra certas formas e manifestações de racismo e xenofobia). No plano das diretivas, as de número 2002/90 (auxílio à Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 413 As diretivas, como já vimos, podem servir para a “adoção de medidas penais adequadas” pelos Estados-Membros, mesmo que limitadas a uma “forma setorial, e apenas na condição de ser estabelecida a necessidade de lutar contra as infrações graves à realização dos objetivos da Comunidade e de prever medidas penais, a fim de garantir a plena efetividade de uma política comunitária ou o funcionamento adequado de uma liberdade” (COM (2005) 583). No entanto, são poucas as diretivas utilizadas com esse fim, sendo ainda parte delas apenas complementares a decisões-quadro já existentes sobre determinado tema (é o caso das Diretivas 2005/35, relativa à poluição por navios e 2002/90, sobre o auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares). Além disso, em decorrência do já mencionado entendimento mais restrito acerca de seu alcance, elas não costumam determinar nem a natureza nem os tipos de sanção que devam ser aplicados, exceção feita à Diretiva 2004/82, relativa à obrigação de comunicação de dados dos passageiros pelas transportadoras, que prevê, em seu artigo 4º, que as sanções “efetivas, proporcionadas e dissuasivas” aplicadas às transportadoras em seu montante máximo não sejam inferior a 5.000 euros e em seu montante mínimo não sejam inferior a 3.000 euros. Em que pese ainda a orientação inicial do Tribunal de Justiça da União Européia acerca da divisão de competências em matéria de aproximação das legislações penais, a Comissão tem mantido o caráter genérico das diretivas. É o que se pode concluir da edição da Diretiva 2008/99, para proteção do meio-ambiente através do direito penal, que ao substituir a Decisão-Quadro 2003/80 anulada por meio da decisão mencionada, não faz menção à natureza das sanções a serem adotadas relativamente às pessoas físicas ou coletivas. As decisões-quadro, por sua vez, apresentam de maneira mais concreta as sanções a serem aplicadas pelos Estados-Membros às pessoas coletivas. Isso, em primeiro lugar, porque visam sempre a uma aproximação das legislações penais dos Estados-Membros, havendo, assim, uma vinculação quanto à natureza das medidas entrada, ao trânsito e à residência irregulares), 2004/82 (obrigação de comunicação de dados dos passageiros pelas transportadoras) 2005/35 (poluição marítima), 60/2005 (prevenção da utilização do sistema financeiro para lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo), 2008/99 (proteção do meioambiente através do direito penal). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 414 sancionatórias a serem adotadas. Em segundo lugar, porque muitas vezes estabelecem o grau e a natureza das sanções penais. Nesse passo, encontra-se nas decisões-quadro a imposição de uma sanção pecuniária, que poderá ser cobrada a título de pena (multa) ou de contravenção (coima307), deixando outras modalidades de pena como uma mera recomendação. Desta maneira, percebe-se que a harmonização dos ordenamentos jurídicos em matéria penal não ocorre necessariamente por meio do direito penal strictu sensu, deixando as decisões-quadro aberta a possibilidade de responsabilização contravencional. Todavia, isso acaba consistindo em uma diferença muito sutil, já que o tipo de pena a ser aplicada será a mesma, independentemente da escolha que se faça. Essa questão se coloca especialmente no caso da Decisão-Quadro 2005/667, que fixa quantias pecuniárias mínimas e máximas a serem aplicadas: Artigo 6° Sanções aplicáveis a pessoas coletivas 1. Cada Estado-Membro deve tomar as medidas necessárias para garantir que as pessoas coletivas consideradas responsáveis nos termos do n° 1 do artigo 5° sejam puníveis com sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas. As sanções: a) Incluem multas ou coimas, as quais, pelo menos nos casos em que a pessoa coletiva seja considerada responsável por infrações a que se refere o artigo 2°, são: i) de um máximo de, pelo menos, 150 000 a 300 000 euros; ii) de um máximo de, pelo menos, 750 000 a 1 500 000 euros nos casos mais graves, incluindo, pelo menos, as infrações cometidas intencionalmente abrangidas pelos n.os 4 e 5 do artigo 4°; b) Podem, em todos os casos, incluir outras sanções que não sejam multas ou coimas, como: i) exclusão do direito a benefícios ou auxílios públicos; ii) inibição temporária ou permanente do exercício de atividades comerciais; iii) colocação sob vigilância judicial; iv) liquidação por decisão judicial; v) obrigação de tomar medidas específicas para eliminar as conseqüências da infração que deu origem à responsabilidade da pessoa coletiva. 307 Na versão em português de Portugal, essa é a expressão utilizada. De acordo com o art. 1º, do DecretoLei 433/82, de 27/10, a coima é uma sanção aplicada em decorrência de uma condenação por contraordenação (correspondente à contravenção no ordenamento jurídico brasileiro). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 415 A despeito dessas singularidades, as diretivas e as decisões-quadro demonstram parâmetros muito semelhantes, se não idênticos, de determinação da responsabilidade dos entes coletivos pela prática de ilícitos. Quanto ao conceito de pessoa coletiva, há uma preocupação por uma delimitação o mais ampla possível, para que se possam incluir nesta categoria, por exemplo, entidades sem fins lucrativos (Relatório da Comissão acerca da implementação da Decisão-Quadro 2003/568, COM(2007) 328, p. 3). Assim, o termo “pessoa coletiva” é normalmente definido como sendo “qualquer entidade que beneficie desse estatuto por força do direito nacional aplicável, com exceção do Estado ou de outras entidades de direito público no exercício das suas prerrogativas de autoridade pública e das organizações de direito internacional público” (Decisão-Quadro 2003/568). Além disso, estabelece-se um modelo de responsabilização que depende da identificação da pessoa física que agiu (embora não haja a necessidade de condenação da pessoa física, já que se afirma não impedir a responsabilidade da pessoa coletiva a instauração de ação penal contra as pessoas singulares), devendo esta tê-lo feito em seu nome e proveito, desde que possua capacidade de vincular a pessoa coletiva através de seus atos. Tal capacidade decorre de uma posição superior na estrutura organizacional da pessoa coletiva, que decorre de poderes de representação da pessoa coletiva, autoridade para tomar decisões em seu nome ou para exercer fiscalização das atividades realização em seu âmbito. Existe ainda a responsabilização da pessoa coletiva como partícipe (cumplicidade ou instigação), sendo igualmente passível de sanção a conduta omissiva da pessoa coletiva, que ocorre no caso da realização da ação criminosa por pessoas físicas sem capacidade vinculativa, que apenas fora possível em razão da falta de supervisão ou controle das pessoas que se encontram na posição de fiscalização e chefia. A Responsabilidade Penal da Empresa no Corpus Juris O Corpus Juris consiste em uma sugestão de código penal realizada por um grupo de juristas de diversos países por encomenda da Comissão, tendo por finalidade Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 416 oferecer uma série de princípios orientadores para a proteção penal dos interesses financeiros da União Européia (Corpus Juris, prefácio, p. III). Ele é composto por regras penais especiais, com a previsão de oito tipos penais e regras de parte geral, para a aplicação desses tipos, além de regras processuais. De acordo com a proposta do Corpus Juris, a persecução penal seria de responsabilidade de uma Procuradoria Européia criada para esse fim, com competência de atuação em todos os países da União Européia (art. 18 e ss.). O processo penal se desenvolveria perante os próprios tribunais nacionais dos Estados-Membros (art. 25, 26 e prefácio, p. III), cabendo ao juiz em questão, além da aplicação do direito contido no Corpus Juris, o direito de seu país (art. 25). O Corpus Juris, vale mencionar, possui uma importância não apenas doutrinária, como também política, tendo se em vista a pretensão (malograda até o momento), por parte da Comissão, da criação da figura do Promotor Público Europeu (ZEDER, 2001, p. 50). A sua parte geral prevê tanto a responsabilização penal do dono do negócio (Geschäftsherr) e de pessoas com poder de controle e decisão dentro da empresa (art. 12), quanto a responsabilidade penal de entes coletivos (Vereinigungen308) por qualquer dos tipos penais previstos, quais sejam, a fraude em prejuízo dos interesses financeiros da União Européia e delitos equivalentes (art.1), fraude em oferta licitatória (art. 2), lavagem de dinheiro e receptação (art. 3), organização criminosa (art. 4), corrupção (art. 5), lesão de dever funcional (art. 6), abuso de função (art. 7) e violação de sigilo funcional (art. 8), na forma de autoria, instigação ou auxílio (art. 11). De acordo com essa proposta de responsabilização penal dos entes coletivos por ilícitos praticados, não existem diferenças entre as regras gerais de imputação a eles aplicadas e à pessoas particulares que cometerem os mesmos delitos. Assim, de acordo com o Corpus Juris, para que a pessoa jurídica possa ser responsabilizada, é necessária a comprovação do dolo ou de culpa (art. 9), havendo exclusão da responsabilidade penal nos casos de erro de tipo e de ilicitude, quando inevitável, ou a diminuição da pena, 308 Muito embora a tradução mais usual do termo para o português seja “associação”, o uso dessa palavra pode gerar confusão com o conceito jurídico de associação no direito brasileiro, enquanto que no documento em tela a intenção foi de empregar um conceito muito mais amplo do que esse, conforme se verá a seguir. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 417 quando evitável (art. 10). É ainda nesse sentido considerado o arrependimento na bis). tentativa, que exclui a responsabilidade quando for eficaz (art.11 Para fins de aplicação do Corpus Juris, na linha do que já se aplica atualmente no âmbito da União Européia em matéria administrativo-sancionatória, entende-se por entes coletivos tanto os entes dotados de personalidade jurídica, quanto os entes que possuem capacidade de direito e patrimônio próprio (art. 13). O modelo de imputação baseia-se na teoria da reapresentação. A ação deve ter sido realizada em favor da empresa por um órgão, representante ou outra pessoa que aja em nome da empresa, ou que possua poder de decisão fático ou jurídico (art. 13). A pena aplicada aos entes coletivos é a de multa, cujo montante será determinado em cada caso, no limite máximo de 10 milhões de euros (art. 14, 1, b). Junto a ela, há a possibilidade de cominação de penas acessórias, como a publicação da decisão condenatória e a suspensão de direito a subvenções por até 5 anos (art. 14, 2). Para a sua determinação, de acordo com o artigo 15, devem ser considerados, assim como para a pessoa física, a culpabilidade do ente coletivo, a gravidade da ação e o grau de participação, direcionados a partir de necessidades de prevenção geral e especial. Ainda podem ser levados em consideração o comportamento anterior do réu, condenações anteriores, sua personalidade, motivação, posição social e econômica e seu esforço em reparar o dano, além das circunstâncias próprias do direito nacional do Estado-Membro onde a pena será aplicada. 2. RESPONSABILIDADE DOS ENTES COLETIVOS EM DIREITO COMPARADO Vistas as formas de responsabilização dos entes coletivos no direito da União Européia, as quais possuem relevância para empresas sediadas não apenas nos EstadosMembros, como também para empresas que de qualquer lugar do mundo possuam interesses localizados nessa região, analisaremos mais concretamente a maneira pela qual alguns países europeus (Portugal, Espanha, Itália e Alemanha) vieram a dar cumprimento às recomendações, diretivas, decisões-quadro, convênios, tratados e acordos que versam a esse respeito, bem como a aplicação do instituto nos Estados Unidos, considerado um dos berços da responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 418 Nas páginas a seguir, destacamos e sumarizamos algumas das principais características da intervenção penal diante das infrações cometidas no âmbito de entes coletivos travada nesses países. Para tanto, usamos como base os informes produzidos pelos colaboradores internacionais participantes desta pesquisa. Neste ponto, portanto, apenas sistematizamos as informações contidas em tais informes, que, para consulta específica sobre os aspectos particularizados adotados em cada um destes países, podem ser acessados em suas versões integrais nos apêndices ao presente texto. 2.1 Natureza da responsabilidade Dentre os países estudados, três deles responsabilizam penalmente os entes coletivos. São eles os Estados Unidos, onde a responsabilidade penal da pessoa jurídica é reconhecida desde 1909, Portugal, que a instituiu genericamente em 1982 e mais concretamente em 1984, e a Itália. Esses dois últimos países também possuem um sistema de sancionamento contravencional dos entes coletivos. Em Portugal, o processo de adoção da responsabilidade penal das pessoas colectivas inidicou em 1982, quando foi aprovado o actual Código Penal, que no seu art. 11.º determinava: “Salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal”. A partir desta previsão excepcional, abriu-se espaço para futuros diplomas que regulamentassem a possibilidade de responsabilização de entes coleitvos. Com este intuito, dois anos mais tarde, surgiu o Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, relativo às infracções contra a economia e contra a saúde pública, diploma legal paradigmático do direito penal secundário e que determinava a responsabilidade das pessoas colectivas, a par com a das pessoas físicas, como regra, do seguinte modo: “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo”. Estabelecia-se, pois, a responsabilização coletiva, quer a crimes, quer a contra-ordenações (“Ordnungswidrigkeiten”), contra a economia e a saúde pública. Nos EUA, a decisão seminal a reconhecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é sensivelmente mais antiga tendo se dado em 1909, por ocasião do julgamento pela Suprema Corte dos Estados Unidos do caso New York Central e Hudson River Railroad Company versus Estados Unidos (212 U.S. 481). Para além da construção pretoriana característica do modelo de Common Law, o modelo de Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 419 responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos EUA é dotado de uma interessante particularidade: no plano federal, foi criada, em 1991, uma diretiva a todos os juízes federais (Sentencing Guideline Manual) em que se regulamentava, dentre outros, a responsabilidade penal das corporações, nos termos definidos naquele documento. Ainda que esta diretiva não tenha, hoje, caráter vinculante, tal documento propicia ao magistrado diversos critérios para a aferição sobre se houve ou não responsabilidade do ente coletivo, bem como para, se for o caso, quantificar a pena a ela referente. Na Itália, o modelo de responsabilidade penal é recente e foi introduzido no ano de 2001. Nele, tem vigência o principio da autonomia da responsabilidade do ente coletivo, que se mantêm mesmo quando não se identifica a pessoa física atuante ou, ainda, quando esta não é imputável. Assim, não é sequer necessário que, quando se inicia um processo contra a pessoa jurídica, também tenha de se iniciar um processo contra a pessoa física que por ela tenha atuado. Não obstante isso, houve grande controvérsia no meio doutrinário e jurisprudencial a respeito da natureza da responsabilidade introduzida pelo decreto legislativo 231/01, uma vez que, nesse instrumento, o legislador denominou a mesma como “responsabilidade administrativa”; hoje, no entanto, é dominante o entendimento de que tal ato normativo estabeleceu a responsabilidade penal dos entes coletivos no país. Tipo semelhante de controvérsia ocorreu no caso da Espanha. Isso porque, além da previsão de responsabilidade contravencional dos entes coletivos em legislação especial, a Parte Geral do Código Penal espanhol de 1995 introduzia uma série de medidas (“conseqüências acessórias”) aplicáveis a coletividades em decorrência da condenação penal de uma pessoa física, as quais, dado seu forte caráter gravoso, poderiam justificar a idéia de que, em realidade, se trata de uma verdadeira sanção penal, ainda que sem aferição de responsabilidade ou culpabilidade da pessoa jurídica. A reforma do Código Penal, feita em 2003, afastou essa dúvida, trazendo expressamente em sua exposição de motivos o fato de que, a partir de então, se trata de uma verdadeira “responsabilidade penal das pessoas jurídicas”, pois estabelece que, “quando se impõe uma pena de multa ao autor do delito, será responsável pelo pagamento da mesma de maneira direta e solidária a pessoa jurídica em cujo nome o indivíduo atuou”. Na Alemanha, por sua vez, não há previsão de responsabilidade penal para os entes coletivos, restando vigente, desde 1952, a chamada “responsabilidade contravencional” regulada pela Ordnungswidrigkeitengesetz, reformada em 1968. A Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 420 natureza de tal regulação é controversa, guardando pontos de convergência309 e pontos de divergência310 frente à regulação através do Direito Penal. No que tange especificamente à responsabilidade dos entes coletivos, há nesse país uma regra de responsabilidade mediata destes (art. 30 OWiG): por meio da atuação de pessoas naturais, órgãos, representantes legais, etc., a pessoa jurídica pode ser considerada mediatamente autora de um delito. Assim, trata-se de uma responsabilidade própria do ente coletivo, responsabilidade esta, porém, que só se dá por fato alheio, pois a sanção contravencional não depende da imposição de sanções à pessoa individual que atuou ilicitamente. 2.2 Clima político-criminal em torno da responsabilização dos entes coletivos Os motivos que ensejaram a criação da responsabilidade penal da pessoa jurídica em cada país são diversos. Não cabe, aqui, tratar especificamente de todos eles, mas apenas indicar, sucintamente, qual era o clima político-criminal que antecedeu a adoção deste modelo de responsabilização nos países em apreço. Nos países em que existe a responsabilidade penal dos entes coletivos, o convencimento de que o direito penal constituiria um instrumento necessário e eficaz na prevenção de crimes ocorridos no âmbito dos entes coletivos não se mostrou ser o principal fator para a sua introdução, sendo mais relevantes, pelo contrário, outros tipos de argumento. Assim, no caso de Portugal e da Itália, não foi apenas a idéia do recurso ao direito penal como medida mais adequada de prevenção que levou à criação da responsabilidade penal dos entes coletivos. Em Portugal, além do argumento da eficácia do instrumento penal, admite-se como importante a pressão dos organismos internacionais (Recomendações do Conselho da Europa e Decisões-Quadro da União Européia) para o controle de crimes cometidos no seio das empresas como causa determinante de sua instituição e seu desenvolvimento posterior. A pressão, portanto, 309 Como pontos em comum, costumam-se citar: o fato de que ambas tem finalidade de proteção de bensjurídicos; o fato de que uma contravenção, da mesma forma como um crime de bagatela, não merece pena de prisão; o fato de que a lei de contravenções é estruturada de forma muito similar ao código penal – contendo uma parte geral e uma especial; o fato de que, da mesma forma que o código penal e ao contrário das leis administrativas, a OWiG também é de competência exclusiva da esfera federal. 310 Como pontos diferentes, costumam-se citar o fato de que, na regulação contravencional, o processo é iniciado no âmbito de uma autoridade administrativa, ao passo que, na regulação penal, o processo deve iniciar, necessariamente, perante a autoridade judicial; que a sanção de prisão não pode ser aplicada aos autores de contravenções; o fato de que, na condenação por contravenções, nada altera os “antecedentes” do autor – dado a menor reprovabilidade ético-social que se atribui às infrações da OWiG. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 421 foi exercida externamente, o que parece ter deixado em segundo plano o debate nacional sobre a conveniência deste instituto. Tanto assim que, atualmente, a discussão em torno da responsabilidade penal dos entes coletivos nesse país não possui mais seu foco na conveniência da resposta penal, mas na sua extensão, ou seja: indaga-se se, além dos crimes situados no âmbito da criminalidade moderna (especialmente crimes econômicos), a coletividade deve ser punida por delitos pertencentes ao direito penal clássico, nos quais se afiguram tradicionalmente bens jurídicos individuais como cerne dos tipos penais, tais como a propriedade, a vida, etc.. Da mesma forma, também na Itália, por sua vez, os instrumentos jurídicos que estatuíram a responsabilidade própria dos entes coletivos foram estabelecidos justamente em cumprimento a instrumentos internacionais nesse sentido. Assim, as condutas criminalizadas nesse âmbito coincidem com as matérias de regulação dos diversos instrumentos internacionais, já mencionadas quando tratamos da responsabilidade penal da pessoa jurídica na União Européia. O debate nacional na Espanha parece mais resistente do que aqueles travados nos países supracitados. O entendimento dogmático espanhol mostra-se majoritariamente contrário a um sistema penal dirigido aos entes coletivos. Mas não por esse motivo dispensa-se uma resposta repressiva ao cometimento de crimes no âmbito das coletividades, o que já estaria satisfatoriamente estabelecido, na opinião de muitos autores, com a existência das medidas acessórias. Não obstante isso, legislativamente o clima na Espanha é de mudança, havendo uma tendência verificável na direção da aplicação de penas aos entes coletivos, justamente em seguimento de orientações oriundas da União Européia. Por fim, na Alemanha, essa influência da União Européia não se mostra tão determinante, uma vez que nesse país já se verificava a responsabilização contravencional das pessoas jurídicas, que é considerada, pela maioria da doutrina, suficiente para os fins de prevenção e de satisfação das obrigações internacionais existentes nessa matéria. 2.3 Coletividades imputáveis Uma questão especialmente importante na determinação da responsabilização dos entes coletivos pela prática de crimes diz respeito a que tipos de coletividades se Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 422 pretende fazer responsável. Isso porque, a depender do regramento que se adota, determinadas agremiações e determinados grupos de pessoas podem ou não ser responsabilizadas coletivamente pelas infrações que neles ou através deles forem praticadas. A nossa lei dos crimes ambientais (Lei n.º 9.605/ 98), por exemplo, fala em responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Todavia, determinado o sentido do termo de acordo com o nosso direito civil, diversas formas de sociedade e agrupações empresariais são excluídas da responsabilização penal por crimes cometidos em seu âmbito e em seu interesse. Por outro lado, não havendo menção específica pela lei sobre a natureza das pessoas jurídicas, as pessoas jurídicas de direito público poderiam, em tese, serem passíveis de pena. Mas não é apenas no Brasil que se encontram dificuldades desse tipo. O Código Penal espanhol também faz menção ao termo “pessoa jurídica”, mas a doutrina interpreta este vocábulo de forma restritiva: tal norma seria dirigida apenas às empresas. Na Alemanha, a existência de dois diplomas com previsões díspares também dificulta a identificação de quais entes coletivos podem ser responsabilizados: se por um lado lei contravencional alemã fala em “pessoa jurídica” (juristische Personen) e “associações” (Vereinigungen), considerados ambos os termos pela dogmática como entes coletivos dotados de personalidade jurídica no sentido do direito civil e comercial, por outro lado a lei contravencional específica para a regulação de cartéis fala de empresas (Unternehmen) e de “associações de empresas” (Unternehmenvereinigungen); não se imputa, portanto, qualquer ente coletivo, ficando excluídas as associações sem capacidade jurídica, bem como os clubes e coletividades ainda não personalizadas. Na Itália e em Portugal, o espectro de entes responsabilizáveis é maior. Existe a inclusão expressa da lei de entes coletivos não-personalizados, tais como sociedades e associações de fato, havendo neste último país, inclusive, tentativas de uniformização das legislações especiais quanto a isso, sendo em ambos os países excluída legislativamente a responsabilidade penal dos entes da administração pública. Algo interessante de se notar é que inexiste, nos países em análise, qualquer previsão legal específica a respeito do fenômeno de grupo de empresas, havendo na Itália, porém, um direcionamento dos tribunais no sentido de imputar os crimes cometidos pela empresa controlada à controladora. Os EUA, pela própria natureza de responsabilidade que adota, é aquele país que adota a visão mais abrangente das coletividades penalmente imputáveis. O Código Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 423 Americano (U.S. Code) refere-se às corporações como sendo qualquer pessoa diferente do indivíduo (person other than an individual) (Titulo 18, Capítulo I, Parágrafo 18), e o no comentário ao parágrafo §8A1.1 do U.S. Sentencing Guidelines Manual lê-se que “o termo inclui: corporações, partnerships, associações, sociedades por ações, sindicatos, trusts, fundos de pensão, organizações não-incorporadas, subdivisões governamentais e políticas e organizações sem fins lucrativos”. Neste país, ainda, há uma preocupação com as relações entre a empresa matriz e a filial, verificando-se uma consolidada construção jurisprudencial que possibilita a responsabilização da empresa matriz a partir de princípios de desconsideração (quando se utiliza da filial com fins criminosos) ou pela via da imputação direta do crime. Além disso, nesses ordenamentos jurídicos, de um modo geral, a responsabilidade penal (ou contravencional) “acompanha” o ente condenado em casos de transformação, fusão, cisão e extinção, havendo previsão legal específica nesse sentido em Portugal, Alemanha, Itália e no Anteprojeto de Código Penal espanhol de 2008. 2.4 Crimes e penas No que tange às infrações imputáveis aos entes coletivos, verifica-se, a depender do país, espectros restritos e espectros amplos de responsabilidade. Isto é, há casos em que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é aplicada apenas a alguns tipos de infrações, ao passo que há casos em que ela é aplicada a todo ou quase todo comportamento tido como crime pela ordem jurídica. Em grande parte dos países analisados, diversas matérias são contempladas, sendo que a sua maioria se situa no âmbito do direito penal econômico (como lavagem de dinheiro, falsificação de moeda, proteção à livre concorrência) e da proteção de bens jurídicos supra-individuais (corrupção, meio-ambiente, segurança laboral, etc.). Não obstante isso, verifica-se, em alguns dos países em tela, controvérsias quando a punição dos entes coletivos diz respeito a delitos próprios do direito penal tradicional. Em Portugal e na Espanha, a previsão da responsabilização dos entes coletivos pela prática de crimes nos respectivos Códigos Penais amplia de grande modo o espectro de aplicação material da mesma, de maneira que, nesse último país, a responsabilidade das pessoas jurídicas pode em princípio ser estabelecida relativamente Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 424 a quaisquer crimes previstos pela parte especial. Raciocínio análogo pode ser aplicado aos EUA, vez que não existe limitação legal específica quanto à matéria que pode vir a ser objeto de punição para as corporações. Com isso, chega-se mesmo a se colocar em dúvida a própria finalidade do instituto como instrumento de prevenção, vez que chega a ser previsto até mesmo com relação a crimes sexuais (como o estupro em Portugal e a mutilação de órgãos femininos na Itália). Já no que tange às respostas relacionadas aos crimes praticados pelos entes coletivos, estas giram preponderantemente em torno de penas e sanções pecuniárias, como as multas e a restituição dos danos causados às vítimas. Mas existem possibilidades alternativas a elas. Em Portugal prevêem-se ainda, tal qual ocorre às pessoas físicas, penas acessórias às principais, em sua maioria restritivas de direitos, dentre as quais se encontram a privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos e a publicidade da sentença, a qual também é possível nos Estados Unidos e na Itália. Se fazem também presentes medidas mais gravosas, como a extinção dos entes coletivos (Portugal, Espanha), a suspensão ou encerramento temporário de suas atividade (Portugal, Espanha, Itália), proibição de contratar com a vítima (Espanha) e a sua intervenção ou vigilância judiciária para resguardar os direitos dos trabalhadores e dos credores pelo tempo necessário à solução do problema (Portugal, Espanha). Na Espanha, ainda, podemos encontrar algo interessante: um regime de responsabilização diferenciado para os casos de associações com objetivos eminentemente ilícitos, impondo-se penas a seus diretores, fundadores e presidentes. Para além das multas, interessante notar que os EUA adotam outras duas formas de sanção para as pessoas jurídicas: a restituição dos danos causados às vítimas e chamada probation. A restituição dos danos pode ser imposta pecuniariamente para um grupo determinável de vítimas ou ainda por meio das remedial orders311 e do serviço comunitário. 312 A probation, por sua vez, é uma sentença condenatória que, todavia, 311 Previstos para os casos em que o número de vítimas é inestimável ou quando a reparação mostre-se impossível, são medidas reparatórias que venham a eliminar ou diminuir o risco de que o delito venha a causar novos danos. Se o risco futuro for estimável, a Corte poderá inclusive determinar a criação de trust com vistas a dar conta do dano esperado. (U.S. Sentencing Guideline Manual, §8B1.2). 312 Novamente, é uma modalidade de restituição quando o número de atingidos configurar uma comunidade, de sorte que a reparação mais indicada se dê por meio de determinados serviços e não pela restituição pecuniária individual (U.S. Sentencing Guideline Manual, §8B1.3). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 425 não redunda em pena privativa de liberdade, desde que o condenado observe determinadas condições, como não cometer crime local, estatal ou federal durante a probation, ou se abster de ter como sede determinado local, salvo quando as circunstâncias revelem que a medida seria desproporcional. Mais ainda, o tribunal pode ordenar que a organização, às suas expensas e no formato e mídia especificados por ele, torne pública a natureza do delito cometido, o fato da condenação, a natureza da punição imposta e os passos que serão tomados para prevenir a ocorrência de delitos similares. Por fim, há neste país também a possibilidade de se impor forfeiture313 e debarment314, em que o juiz impede que corporações condenadas por determinadas infrações (incluindo apropriação indébita, furto, falsificação, corrupção, destruição de arquivos, elaboração de declarações falsas, evasão fiscal ou receptação de bens furtados) de negociar com agências governamentais ou de participar de programas governamentais. Por fim, quanto aos critérios que determinam a fixação da pena, eles variam muito de país para país. Nos Estados Unidos, são de grande relevância os aspectos subjetivos que envolvem o fato criminoso e as características “pessoais” das corporações. Assim, é considerada a existência de um propósito primariamente criminal ou de uma atuação a partir da utilização de meios criminosos, o que, fazendo-se uma analogia com o direito penal individual, corresponderia às formas de dolo direto de primeiro e segundo grau. Também se consideram a capacidade da corporação de pagar multas e a culpabilidade da mesma sobre o caso em questão - o que envolve, por exemplo, a cultura corporativa favorável ou não à prática de condutas criminosas em seu favor, a utilização de programas de ética e compliance e os próprios antecedentes históricos da corporação. Em Portugal, as condições econômicas do ente coletivo também são relevantes na fixação da pena de multa, sendo igualmente tomadas em consideração (conforme construção doutrinária) a sua culpa e os fins de prevenção geral e especial. Tais fins também são determinantes na aferição da multa contravencional no 313 Trata-se da subtração de propriedade sem uma compensação. No âmbito criminal, é “a perda de um direito, privilégio ou propriedade em razão de um crime, quebra de obrigação ou negligência de um dever”. Do ponto de vista procedimental, é um instrumento de apropriação de bens como punição pelo comportamento criminal do autor. Fonte: GARNER, 1990. 314 Para maiores informações, vide Debarment, Suspension, and Ineligibility, 48 C.F.R. § 9.406-2(a)(1)(3) (2007). Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 426 direito alemão, aos quais se soma a averiguação de ter sido a contravenção cometida culposa ou dolosamente. Na Espanha, diferentemente, os critérios subjetivos próprios das pessoas jurídicas não possuem peso na delimitação do montante da pena, mas tão somente a gravidade do delito praticado. Na Itália, por fim, existe a conjugação de todos esses fatores na dosimetria da pena imposta aos entes coletivos (gravidade do fato, grau de responsabilidade, esforços no sentido de eliminar ou atenuar os efeitos do crime, condições econômicas e patrimoniais). Quanto à execução das penas impostas às pessoas jurídicas e entes equiparados, não se encontram disposições específicas nos ordenamentos jurídicos em apreço. Em caso de não pagamento da pena de multa, procede-se de modo análogo às pessoas físicas, com a execução de seu patrimônio. 2.5 Elementos e critérios de imputação Nos ordenamentos jurídicos analisados, alguns elementos e critérios de imputação de responsabilidade aos entes coletivos se assemelham. De uma maneira geral, a sua responsabilidade deriva da responsabilidade da pessoa física que atuou em seu âmbito, muito embora não seja indispensável que haja condenação penal ou contravencional da mesma. A noção do atuar em benefício do ente coletivo, que encontramos prevista em nosso direito penal através da Lei n.º 9.605/ 98, é um elemento chave nos sistemas repressivos dos países em estudo. A necessidade de ser a ação ilícita realizada dentro do ente coletivo também é um fator recorrente nesses ordenamentos jurídicos para a sua responsabilização. Mais ainda, em todos estes países se colocam limitações ao círculo de pessoas que podem vincular os entes coletivos penal ou contravencionalmente, seja por meio da própria função desempenhada pela pessoa que age diretamente, seja por meio de atribuição de deveres