ÁREA DE LINGUAGENS E CÓDIGOS / REDAÇÃO O

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ÁREA DE LINGUAGENS E CÓDIGOS / REDAÇÃO O
COLÉGIO
ÁREA DE LINGUAGENS E CÓDIGOS / REDAÇÃO
Módulo I
VILAS
Por Lucas Rocha
“Antes de escrever, portanto, aprendei a pensar.”
Nicolas Boileau – França, [1636-1711] - Escritor/Poeta/Crítico
O homem mal-educado
O MAL-EDUCADO não tirava o chapéu em nenhuma situação. Nem às senhoras quando
passavam, nem em reuniões importantes, nem quando entrava na igreja.
Aos poucos a população começou a ganhar repulsa pela indelicadeza desse homem, e com os
anos está agressividade cresceu até chegar ao extremo: o homem foi condenado à guilhotina.
No dia em questão colocou a cabeça no cepo, sempre, e orgulhosamente, com o chapéu.
Todos aguardavam.
A lâmina da guilhotina caiu e a cabeça rolou.
O chapéu, mesmo assim, permaneceu na cabeça. Aproximaram-se, então, para finalmente
arrancarem o chapéu àquele mal-educado. Mas não conseguiram.
Não era um chapéu, era a própria cabeça que tinha um formato estranho.
TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Brecht. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p. 20.
Tirinhas acessadas no dia 26/12/2012, no site www.malvados.com.br
“Uma mentira, ainda que a digam milhares de bocas, não deixa de ser uma mentira.”
Anatole France, França -[1844-1924], Crítico/escritor
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Módulo I
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1. A IDEOLOGIA – Marilena Chauí
A alienação social se exprime numa “teoria” do conhecimento espontânea, formando o senso comum
da sociedade. Por seu intermédio, são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é
diretamente percebida e vivida.
Um exemplo desse senso comum aparece no caso da “explicação” da pobreza em que o pobre é
pobre por sua própria culpa (preguiça, ignorância) ou por vontade divina ou por inferioridade natural. Esse
senso comum social, na verdade, é o resultado de uma elaboração intelectual sobre a realidade, feita
pelos pensadores ou intelectuais da sociedade – sacerdotes, filósofos, cientistas, professores, escritores,
jornalistas, artistas, que descrevem e explicam o mundo a partir do ponto de vista da classe a que
pertencem e que é a classe dominante de sua sociedade. Essa elaboração intelectual incorporada pelo
senso comum social é a ideologia. Por meio dela, o ponto de vista, as opiniões e as ideias de uma das
classes sociais – a dominante e dirigente – tornam-se o ponto de vista e a opinião de todas as classes e
de toda a sociedade.
A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas, dar-lhes a
aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os seres humanos. Indivisão: apesar da divisão
social das classes, somos levados a crer que somos todos iguais porque participamos da ideia de
“humanidade”, ou da ideia de “nação” e “pátria”, ou da ideia de “raça” etc. Diferenças naturais: somos
levados a crer que as desigualdades sociais, econômicas e políticas não são produzidas pela divisão
social das classes, mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades, da inteligência, da força
de vontade maior ou menor etc.
A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer com que todas as classes sociais
aceitem as condições em que vivem, julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender
transformá-las ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há uma contradição profunda entre as
condições reais em que vivemos e as ideais. Por exemplo, a ideologia afirma que somos todos cidadãos e,
portanto, temos todos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. No entanto, sabemos
que isso não acontece de fato: as crianças de rua não têm direitos, os idosos não têm direitos: os direitos
culturais das crianças nas escolas públicas é inferior aos das crianças que estão em escolas particulares,
pois o ensino não é de mesma qualidade em ambas: os negros e índios são discriminados como inferiores,
os homossexuais são perseguidos como pervertidos etc.
A maioria, porém, acredita que o fato de ser eleitor pagar as dívidas e contribuir com os impostos já
nos faz cidadãos, sem considerar as condições concretas que fazem alguns serem mais cidadãos do que
outros. A função da ideologia é impedir-nos de pensar nessas coisas.
Os procedimentos da ideologia
Como procede a ideologia para obter esse fantástico resultado? Em primeiro lugar, opera por
inversão, isto é, coloca os efeitos no lugar das causas e transforma estas últimas em efeitos. Ela opera
como o inconsciente: este fabrica imagens e sintomas: aquela fabrica ideias e falsas causalidades. Por
exemplo, o senso comum social afirma que a mulher é um ser frágil, sensitivo, intuitivo, feito para as
doçuras do lar e da maternidade e que, por isso, foi destinada, por natureza, para a vida doméstica, o
cuidado do marido e da família. Assim, o “ser feminino” é colocado como causa da “função social
feminina”.
Ora, historicamente, o que ocorreu foi exatamente o contrário: na divisão sexual-social do trabalho e
na divisão dos poderes no interior da família, atribui-se à mulher um lugar levando-se em conta o lugar
masculino: como este era o lugar do domínio, da autoridade e do poder, deu-se à mulher o lugar
subordinado e auxiliar, a função complementar e, visto que o número de braços para o trabalho e para a
guerra aumenta o poderio do chefe da família e chefe militar, a função reprodutora da mulher tornou-se
imprescindível, trazendo como consequência sua designação prioritária para a maternidade. Estabelecidas
essas condições sociais, era preciso persuadir as mulheres de que seu lugar e sua função não provinham
do modo de organização social, mas da Natureza e eram excelentes e desejáveis. Para isso, montou-se a
ideologia do “ser feminino” e da “função feminina” como naturais e não como históricos e sociais. Como se
observa uma vez implantada uma ideologia, passamos a tomar os efeitos pelas causas.
A segunda maneira de operar da ideologia é a produção do imaginário social, através da imaginação
reprodutora. Recolhendo as imagens diretas e imediatas da experiência social (isto é, do modo como
vivemos as relações sociais), a ideologia as reproduz, mas transformando-as num conjunto coerente,
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lógico e sistemático de ideias que funcionam em dois registros: como representações da realidade
(sistema explicativo ou teórico) e como normas e regras de conduta e comportamento (sistema prescritivo
de normas e valores). Representações, normas e valores formam um tecido de imagens que explicam toda
a realidade e prescrevem para toda a sociedade o que ela deve e como deve pensar, falar, sentir e agir. A
ideologia assegura a todos modos de entender a realidade e de se comportar nela ou diante dela,
eliminando dúvidas, ansiedades, angústias, admirações, ocultando as contradições da vida social, bem
como as contradições entre esta e as ideias que supostamente a explicam e controlam.
Enfim, uma terceira maneira de operação da ideologia é o silêncio. Um imaginário social se parece
com uma frase onde nem tudo é dito, nem pode ser dito, porque, se tudo fosse dito a frase perderia a
coerência, tornar-se-ia incoerente e contraditória e ninguém acreditaria nela. A coerência e a unidade do
imaginário social ou ideológica vêm, portanto, do que é silenciado (e, sob esse aspecto, a ideologia opera
exatamente como o inconsciente descrito pela psicanálise). Por exemplo, a ideologia afirma que o
adultério é crime (tanto assim que homens que matam suas esposas e os amantes delas são
considerados inocentes porque praticaram um ato em nome da honra), que a virgindade feminina é
preciosa e que o homossexualismo é uma perversão e uma doença grave (tão grave que, para alguns,
Deus resolveu punir os homossexuais enviando a peste, isto é, a AIDS).
O que está sendo silenciado pela ideologia? Os motivos pelos quais, em nossa sociedade, o vínculo
entre sexo e procriação é tão importante (coisa que não acontece em todas as sociedades, mas apenas
em algumas, como a nossa). Nossa sociedade exige a procriação legítima e legal – a que se realiza pelos
laços do casamento -, porque ela garante, para a classe dominante, a transmissão do capital aos
herdeiros. Assim sendo, o adultério e a perda da virgindade são perigosos para o capital e para a
transmissão legal da riqueza: por isso, o primeiro se torna crime e a segunda é valorizada como virtude
suprema das mulheres jovens. Em nossa sociedade, a reprodução da força de trabalho se faz pelo
aumento do número de trabalhadores e, portanto, a procriação é considerada fundamental para o aumento
do capital que precisa da mão de obra. Por esse motivo, toda sexualidade que não se realizar com
finalidade reprodutiva será considerada anormal, perversa e doentia, donde a condenação do
homossexualismo. A ideologia, porém, perderia sua força e coerência se dissesse essas coisas e por isso
as silencia.
2. A REDAÇÃO DO ENEM – Sistema de correção
A matriz de redação do Enem considera cinco competências cognitivas, que servem de referência para a
correção do texto elaborado pelos participantes do Exame. O texto referido é do tipo dissertativoargumentativo e deve ter de sete até máximo de trinta linhas. Essa matriz apresenta as seguintes
competências:
I. demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita.
II. compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para
desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo.
III. selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de
um ponto de vista.
IV. demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da
argumentação.
V. elaborar proposta de solução para o problema abordado, respeitando os valores humanos e
considerando a diversidade sociocultural.
A matriz tem um aspecto inovador no que se refere ao texto dissertativo-argumentativo: além de
solicitar um ponto de vista da parte do autor, prerrogativa desse tipo textual, também requer a elaboração
de uma proposta de intervenção social que respeite os direitos humanos (competência V).
A partir do tema apresentado para a redação o participante do Exame deve demonstrar a sua
capacidade de refletir sobre questões sociais, culturais e políticas atuais e de propor intervenções, de
acordo com argumentos que devem ser evidenciados ao longo do desenvolvimento do texto.
O participante precisa saber ler em sentido amplo, pois é a partir da articulação das informações
contextualizadas na proposta de redação que ele deverá construir um texto revelador de um autor crítico e
propositivo.
Para a correção da Redação do ENEM serão considerados seis níveis de proficiência de produção
escrita distribuídos nas cinco competências previstas na Matriz de Redação, a saber:
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Competência I: Demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita
PONTUAÇÃO
DESCRIÇÃO
120
Demonstra excelente domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa e de
escolha de registro. Desvios gramaticais ou de convenções da escrita serão aceitos
somente como excepcionalidade e quando não caracterizem reincidência.
Demonstra bom domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa e de escolha
de registro, com poucos desvios gramaticais e de convenções da escrita.
Demonstra domínio mediano da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa e de
escolha de registro, com alguns desvios gramaticais e de convenções da escrita.
80
Demonstra domínio insuficiente da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa, com
muitos desvios gramaticais, de escolha de registro e de convenções da escrita.
200
160
40
0
Demonstra domínio precário da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa, de forma
sistemática, com diversificados e frequentes desvios gramaticais, de escolha de registro e
de convenções da escrita.
Demonstra desconhecimento da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa.
Competência II: Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas
de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto
dissertativo-argumentativo.
PONTUAÇÃO
DESCRIÇÃO
200
Desenvolve o tema por meio de argumentação consistente, a partir de um repertório
sociocultural produtivo, e apresenta excelente domínio do texto dissertativo-argumentativo.
160
Desenvolve o tema por meio de argumentação consistente e apresenta bom domínio do
texto dissertativo-argumentativo, com proposição, argumentação e conclusão.
120
Desenvolve o tema por meio de argumentação previsível e apresenta domínio mediano do
texto dissertativo-argumentativo, com proposição, argumentação e conclusão.
80
40
0
Desenvolve o tema recorrendo à cópia de trechos dos textos motivadores ou apresenta
domínio insuficiente do texto dissertativo-argumentativo, não atendendo à estrutura com
proposição, argumentação e conclusão.
Apresenta o assunto, tangenciando o tema, ou demonstra domínio precário do texto
dissertativo-argumentativo, com traços constantes de outros tipos textuais.
Fuga ao tema/não atendimento à estrutura dissertativo-argumentativa.
Competência III: Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões
e argumentos em defesa de um ponto de vista.
PONTUAÇÃO
200
160
120
80
DESCRIÇÃO
Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema proposto, de forma
consistente e organizada, configurando autoria, em defesa de um ponto de vista.
Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma organizada, com
indícios de autoria, em defesa de um ponto de vista.
Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, limitados aos argumentos
dos textos motivadores e pouco organizados, em defesa de um ponto de vista.
Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, mas desorganizados ou
contraditórios e limitados aos argumentos dos textos motivadores, em defesa de um ponto de
vista.
Apresenta informações, fatos e opiniões pouco relacionados ao tema ou incoerentes e sem
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40
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defesa de um ponto de vista.
Apresenta informações, fatos e opiniões não relacionados ao tema e sem defesa de um
ponto de vista.
Competência IV: Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para
a construção da argumentação.
PONTUAÇÃO
DESCRIÇÃO
200
160
Articula bem as partes do texto e apresenta repertório diversificado de recursos coesivos.
Articula as partes do texto com poucas inadequações e apresenta repertório diversificado
de recursos coesivos.
Articula as partes do texto, de forma mediana, com inadequações e apresenta repertório
pouco diversificado de recursos coesivos.
Articula as partes do texto, de forma insuficiente, com muitas inadequações e apresenta
repertório limitado de recursos coesivos.
Articula as partes do texto de forma precária.
Ausência de marcas de articulação, resultando em fragmentação das ideias.
120
80
40
0
Competência V: Elaborar proposta de solução para o problema abordado, respeitando os
valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.
PONTUAÇÃO
200
160
120
80
40
0
DESCRIÇÃO
Elabora muito bem proposta de intervenção, detalhada, relacionada ao tema e articulada
à discussão desenvolvida no texto.
Elabora bem proposta de intervenção relacionada ao tema e articulada à discussão
desenvolvida no texto.
Elabora, de forma mediana, proposta de intervenção relacionada ao tema e articulada à
discussão desenvolvida no texto.
Elabora, de forma insuficiente, proposta de intervenção relacionada ao tema ou não
articulada com a discussão desenvolvida no texto.
Apresenta proposta de intervenção vaga, precária ou relacionada apenas ao assunto.
Não apresenta proposta de intervenção ou apresenta proposta não relacionada ao tema
ou ao assunto.
A redação é corrigida e avaliada por dois corretores, profissionais da área de Letras. Para o cálculo da
nota, soma se a pontuação atribuída pelo corretor em cada competência, e divide-se o total por 5. O
mesmo é feito com referência ao segundo corretor. Cada corretor desconhece a nota atribuída pelo outro
corretor, sendo a nota final a média aritmética das duas notas obtidas. No caso de discrepância igual ou
maior do que 300 pontos, haverá outra correção por um professor supervisor. Essa terceira nota é a que
prevalecerá. A terceira correção configura-se como um recurso de ofício.
A nota zero na redação poderá ser atribuída ao participante nas seguintes situações:
• Apresenta texto em branco - B (em branco)
• Apresenta texto com até 7 linhas (não incluindo título) - I (insuficiente)
• Apresenta texto em que haja a intenção clara do autor em anular a redação ou texto que desconsidera a
competência V (fere explicitamente os direitos humanos) - N (nulo)
• Apresenta texto que não desenvolve a proposta de redação, considerando-se a competência II
(desenvolve outro tema e/ou elabora outra estrutura textual - F (fuga ao tema/ não atendimento ao tipo
textual)
Por fim, vale lembrar:
- Apenas as redações adequadamente transcritas na Folha de Redação são corrigidas.
- A redação deve ser transcrita para a Folha de Redação com caneta esferográfica de tinta preta.
- Para ser corrigida, a redação deve ter o mínimo de 7 linhas.
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- O rascunho e as marcações assinaladas nos Cadernos de Questões não são considerados para fins de
correção da redação.
- Na redação corrigida, não há necessidade de título. Caso o participante inclua título, este não será
computado como linha efetivamente escrita para o mínimo de 7 linhas.
- As rasuras devem ser evitadas. Caso ocorram, basta passar um traço no trecho inadequado e dar
continuidade ao texto.
- A proposta de redação apresenta textos motivadores que não devem ser copiados no texto produzido.
Anotações:
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3. A PROPOSTA DE REDAÇÃO ESTILO ENEM
A partir da leitura dos textos motivadores seguintes e com base nos conhecimentos construídos ao
longo de sua formação, redija texto dissertativo-argumentativo em norma padrão da língua portuguesa
sobre o tema: Publicidade infantil em questão no Brasil, apresentando proposta de intervenção, que
respeite os direitos humanos. Selecione, organize e relacione, de forma coerente e coesa, argumentos e
fatos para defesa de seu ponto de vista.
Texto I
A aprovação, em abril de 2014, de uma resolução que considera abusiva a publicidade infantil, emitida
pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), deu início a um verdadeiro
cabo de guerra envolvendo ONGs de defesa dos direitos das crianças e setores interessados na
continuidade das propagandas dirigidas a esse público.
Elogiada por pais, ativistas e entidades, a resolução estabelece como abusiva toda propaganda
dirigida à criança que tem “a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” e
que utilize aspectos como desenhos animados, bonecos, linguagem infantil, trilhas sonoras com temas
infantis, ofertas de prêmios, brindes ou artigos colecionáveis que tenham apelo às crianças.
Ainda há dúvida, porém, sobre como será a aplicação prática da resolução. E associações de
anunciantes, emissoras, revistas e de empresas de licenciamento e fabricantes de produtos infantis
criticam a medida e dizem não reconhecer a legitimidade constitucional do Conanda para legislar sobre
publicidade e para impor a resolução tanto às famílias quanto ao mercado publicitário. Além disto,
defendem que a autorregulamentação pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária
(Conar) já seria uma forma de controlar e evitar abusos.
IDOETA, P. A.; BARBA, M. D. A publicidade infantil deve ser proibida? Disponível em: www.bbc.co.uk. Acesso em: 23 de maio de
2014 (adaptado)
Texto II – A PUBLICIDADE PARA CRIANÇAS NO MUNDO
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Texto III
Precisamos preparar a criança, desde pequena, para receber as informações do mundo exterior,
para compreender o que está por trás da divulgação de produtos. Só assim ela se tornará o consumidor do
futuro, aquele capaz de saber o que, como e por que comprar, ciente de suas reais necessidades e
consciente de suas responsabilidades consigo mesma e com o mundo.
SILVA, A. M. D.; VASCONCELOS, L. R. A criança e o marketing: informações essenciais para proteger as crianças do marketing
infantil. São Paulo: Summus, 2012 (adaptado).
TEMA 02
A partir da leitura dos textos motivadores seguintes e com base nos conhecimentos construídos ao
longo de sua formação, redija texto dissertativo-argumentativo em modalidade escrita formal da língua
portuguesa sobre o tema “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”,
apresentando proposta de intervenção que respeite os direitos humanos. Selecione, organize e relacione,
de forma coerente e coesa, argumentos e fatos para defesa de seu ponto de vista.
TEXTO I
Nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres,
43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465, que
representa um aumento de 230%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de assassinato
no país.
WALSELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2012. Atualização: Homicídio de mulheres no Brasil. Disponível em: www.mapadaviolencia.org.br. Acesso em: 8 jun. 2015
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4. A PROPOSTA DE REDAÇÃO ESTILO CONSULTEC
TEMA 01 (UEFS 2013.2)
INSTRUÇÕES: (UEFS 2013.2)
• Escreva sua Redação no espaço reservado ao rascunho.
• Transcreva seu texto na Folha de Redação, com caneta de tinta azul ou preta, usando de 25 (vinte e
cinco) a 30 (trinta) linhas.
• Caso utilize letra de imprensa, faça distinção entre maiúsculas e minúsculas.
• É obrigatório o uso do título.
Será anulada a Redação
— redigida fora do tema e tipo propostos;
— apresentada em forma de verso;
— assinada fora do campo apropriado;
— escrita a lápis ou de forma ilegível;
— constituída apenas da transcrição “ipsis litteris” (total) dos textos da prova.
Texto Motivador
Para especialistas, contestação de rua ainda é importante, embora raramente conte com a simpatia da
população. De um lado, tiros com balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio; do outro, orelhões
pichados e sacos de lixo queimados pelo chão. Enquanto as recentes marchas contra o aumento da
passagem de ônibus pelo Brasil engrossam a cada edição, uma parcela da opinião pública acredita que
esses protestos atrapalham mais a sociedade do que o governo.
Mas enquanto as marchas ganham os noticiários, silenciosamente um número cada vez maior de
coletivos ganha popularidade propondo mudanças na cidade, sem confrontar o poder público, mas
também sem pedir sua permissão para atuar. Para especialistas, os jovens brasileiros estão “engasgados”
depois de passarem muito tempo calados e, por isso, buscam seus próprios meios de protestar pelo país.
“As críticas não são contra a reivindicação de baixar a passagem do ônibus, mas a forma como ela é feita:
dizem que é um grupo de baderneiros que promove tumulto e confronta a ordem”, afirma o cientista
político e professor da PUC-SP Pedro Arruda. “O protesto é legítimo. Quem se opõe agora se oporia de
qualquer maneira: assim como não protestou no começo, vai criticar quem fizer isso. ”
“Protestos de rua raramente têm a adesão da maioria”, avalia a pesquisadora de inovação e
tendências Mariana Nobre. “Eles são propostos sempre por uma pequena parte da sociedade, de onde
surgem as ideias de mudança. Acredita-se que as pessoas com esse perfil representem 3% das
populações pelo mundo. Portanto é natural que manifestações como essas não sejam bem recebidas de
imediato.” “Alguns observadores começaram a dizer que a sociedade estava mais disposta a aceitar a
intervenção pacífica ou a ocupação. De repente, houve uma guiada nas últimas semanas, com
movimentos mais tradicionais, que pregam a paralisação, a greve, os protestos que usam o próprio corpo
como argumento”, diz Mariana.
(PREITE SOBRINHO, Wanderley. Jovens retomam protestos no Brasil. Jornal O Dia. Disponível em:<
http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2013-06-11/jovens-tomam-as-ruas-e-recorrem-a-coletivos-para-retomar-protestos-no-brasil.html>.
Acesso em: 17 jun. 21013. Adaptado).
Tema da Redação
Levando-se em consideração as ideias apresentadas no fragmento em destaque e os
conhecimentos construídos ao longo de sua formação, produza um texto dissertativo-argumentativo, na
norma culta padrão da língua portuguesa, sobre a importância dos protestos populares para a
manutenção de uma sociedade democrática.
TEMA 02 (UNEB 2009)
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“[...] Não lhe encontro qualquer lesão, os seus olhos estão perfeitos. A mulher juntou as mãos num
gesto de alegria e exclamou, Eu bem te tinha dito, eu bem te tinha dito, tudo se ia resolver. Sem lhe dar
atenção, o cego perguntou, Já posso tirar o queixo, senhor doutor, Claro que sim, desculpe, Se os meus
olhos estão perfeitos, como diz, então por que estou eu cego, Por enquanto não lhe sei dizer, vamos ter de
fazer exames mais minuciosos, análises, ecografia, encefalograma, Acha que tem alguma coisa a ver com
o cérebro, É uma possibilidade, mas não creio, No entanto o senhor doutor diz que não encontra nada de
mau nos meus olhos, Assim é, Não percebo, O que quero dizer é que se o senhor está de facto cego, a
sua cegueira, neste momento, é inexplicável.”
(SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 23.)
“[...] Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te
diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que,
vendo, não veem. ”
(SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 310.)
Com base nos fragmentos em destaque, do romance “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago,
e considerando também a epígrafe “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, do mesmo livro, produza
um texto argumentativo sobre o tema:
“O pior cego é aquele que não quer enxergar”.
INSTRUÇÕES:
• Escreva na modalidade padrão da língua portuguesa.
• Desenvolva seu texto, considerando também os seus conhecimentos de vida e as suas reflexões sobre a
“necessidade de ter olhos quando outros os perderam”.
• Defenda os seus pontos de vista e proponha possíveis soluções para problemas decorrentes de uma
falta de visão humana.
TEMA 03 (UNEB 2013)
No mapa do barulho de Salvador, sons de carros estão no topo das denúncias. Mesmo com mais de
dois mil aparelhos aprendidos desde o começo do ano, lideram a lista de 12 dos 15 bairros mais
barulhentos da cidade. Fora Pituba — onde os vizinhos são alvos de queixas — e na Barra e Rio
Vermelho — onde os bares tiram o sossego de quem reclama —, é do asfalto que vem a maior parte do
problema.
“Ao estacionar o carro na rua e abrir o porta-malas com o som alto, as pessoas se apropriam do
espaço social e mostram que estão ali. É uma disputa pelo espaço urbano”, explica Cíntia Muller,
professora de antropologia da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora do Núcleo de Antropologia e
Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul [...]
Seres humanos conversam a uma altura média de 60 decibéis e sussurram a 20. Uma gota de água
produz som de até 40, e a Lei do Silêncio estabelece limites de 60 decibéis, entre as 22h e as 7h, e 70 das
7h às 22h. Um despertador de gongos metálicos nos acorda com uma campainha de 80, quase o máximo
permitido a um trio elétrico. É um erro reduzir nossa percepção à recepção. Intensidade sonora não está
diretamente ligada a desconforto, e a sensação de incômodo depende de como o som chega aos ouvidos.
E nisso há fortes componentes subjetivos. Fora a parte física (comprimento de ondas, tipo de
emissores, posição do receptor e intensidade), o modo como percebemos o som é altamente influenciado
por nosso envolvimento cultural e psicológico. “Mesmo a informação visual da localização da origem afeta
a avaliação do ruído”, explica Genuit. Aceitar que alguém assista a TV com um volume moderado na sala
ao lado, enquanto estamos dormindo e acordar com a conversa dos vizinhos é simbólico. Desconsiderada
a natureza do som (grave, agudo, complexo ou simples), é a invasão do espaço doméstico que diferencia
a percepção e a reação ao barulho. “A valorização do silêncio é uma questão social”, explica Cíntia.
“Tenho alunos que moram em invasões e relatam que é normal ouvir o que o vizinho faz — do banho ao
sexo — e estão acostumados a isso”.
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De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), depois da água e do ar, a poluição do som é
um dos problemas ambientais que mais afetam a população. Ruídos constantes de mais de 55 decibéis
durante o dia e 45 decibéis à noite seriam nocivos à saúde, segundo a OMS.
(TELLES, Daniel. Paz paga. Muito, n. 280, p. 26-29, 25 ago. 2013. Revista semanal do grupo A Tarde.)
A partir da leitura do fragmento em foco e de sua experiência cotidiana, elabore um texto
argumentativo acerca do crescimento exagerado do barulho nas áreas urbanas.
Observações:
• Utilize a norma culta escrita da língua portuguesa na produção de seu texto.
• Analise causas e efeitos da poluição sonora com relação ao ser humano.
• Apresente uma ou mais sugestões para o controle desse tipo de problema ambiental.
5. TEXTOS INFORMATIVOS
ATENTADOS EM PARIS, ONDA DE CHOQUE
Os caminhos da radicalização (LAURENT BONELLI)
Com velocidade impressionante, os massacres em Paris fizeram emergir duas análises opostas.
Uma propõe intensificar os bombardeios à distância e, em nome da segurança, sacrificar liberdades. A
outra insisti na transformação do mundo, identificar as causas da decomposição social e restituir os
encadeamentos que levaram
PASSADO o estupor dos atentados, quando se dissipam os sentimentos de indignação e de
impotência e a dor se restringe ao círculo íntimo das vítimas, subsiste uma lancinante questão. Por que,
em um contexto de paz, jovens franceses atacaram com tal violência indivíduos escolhidos em função de
suas opiniões, de sua fé religiosa presumida ou do uniforme que vestem? Dos assassinatos cometidos por
Mohammed Merah em março de 2012 a estes dos dias 7, 8 e 9 de janeiro de 2015, imputados a Saïd e
Chérif Kouachi e Amedy Coulibaly, passando pelo ataque do museu judeu da Bélgica, em 24 de maio de
2014, do qual é acusado Mohammed Nemmouche, não menos que 28 pessoas encontraram a morte.
O que sabemos destes últimos? Mesmo que cheias de lacunas, as informações recolhidas pela
imprensa permitem que se forme uma ideia de suas trajetórias sociais. Primeiro, conheceram intervenções
precoces e rigorosas dos serviços sociais e da justiça para menores. Os ambientes familiares foram
julgados inapropriados ou falhos; as passagens por abrigos e famílias de acolhida marcam a infância e a
adolescência da maioria deles. Sua escolaridade parece corresponder à das camadas menos qualificadas
dos meios populares, o que atesta a orientação para formações técnicas (CAP, BEP
oubaccalauréatprofissional) – que eles não necessariamente concluíram – em um momento em que
o baccalauréatgeral se tornou um diploma mínimo de referência na França.
Essa relegação escolar encontra por vezes uma compensação nas sociabilidades de rua (o mundo
das gangues) e nas pequenas desordens que as acompanham.1 Atos transgressivos (como o roubo de
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carro ou moto, dirigir sem carta), ligados à honra (rixas e ofensas) ou à posse (roubos de casas, agressões
ou roubos com violência), atraíram rapidamente a atenção dos policiais e da justiça. Depois de diversos
casos, Merah, Coulibaly e Nemmouche foram presos pela primeira vez aos 19 anos.
E os novos delitos cometidos assim que saíram da prisão revogaram a condicional e aumentaram sua
pena: passaram grande parte da juventude detidos. Criados na periferia de Corrèze, os irmãos Kouachi
parecem ter ficado por mais tempo distantes dessa sociabilidade e só caíram mais tarde em uma pequena
delinquência de “malandragem” (em que a ocultação e a venda de drogas coexistiam com empregos
precários ou não declarados), em sua mudança para a região parisiense no começo dos anos 2000. Isso
não impediu que Chérif fosse mantido em prisão preventiva entre 2005 e 2006, aos 23 anos, mas em
razão de sua participação numa rede de encaminhamento de voluntários para o Iraque – um tipo de
engajamento que une os cinco homens.
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Todos aderiram a uma visão do islã feita de combatentes com aura de heróis (os mujahedins), de
ações brilhantes e de histórias de conflitos longínquos. Inclusive, diversos viajaram para esses destinos
(Síria, Paquistão, Afeganistão, Iêmen). A propaganda, as pregações e as temporadas de iniciação
forneceram um quadro de leitura do mundo relativamente simples, que junta em um todo coerente sua
experiência concreta da dominação, a que outros povos experimentam (no Mali, na Chechênia, na
Palestina etc.) e uma grande narrativa civilizacional que designa os judeus e os não crentes como os
responsáveis por todos esses males. Essa concepção da religião é ainda mais bem endossada por
significar ao mesmo tempo uma tomada de consciência (de sua situação) e uma libertação (ela oferece à
revolta um ideal mais “elevado” e universal do que a delinquência e a marginalidade).
A relativa homologia de suas trajetórias deu início à fúria classificatória de alguns especialistas, que já
proclamam o advento de um “lumpenterrorismo” ou de um “gangsterrorismo”. No entanto, ainda que
desagradem aos apóstolos da classificação de perfis, essas características não parecem muito singulares.
Elas correspondem de um jeito ou de outro à da “geração das cités” [conjuntos habitacionais de periferia
(N.T.)] à qual eles pertencem (todos nasceram nos anos 1980), marcada pela desfiliação, por uma maior
dificuldade no acesso ao emprego não qualificado, pela segregação espacial e pelos controles policiais,
por uma abordagem étnica das relações sociais e pela diminuição das mobilizações políticas realizadas
pela geração anterior.2
Sendo situações tão comuns, não é a ação que deveria espantar, e sim sua raridade... Não podemos
então nos limitar à busca das causas ou ao estudo das justificativas. “Se a radicalização é um processo”,
explicam as cientistas políticas Annie Collovald e Brigitte Gaïti, “é preciso aceitar acompanhá-la antes de
poder explicá-la. Trata-se da passagem do por que ao como”.3 Não há dúvida de que as exortações de um
chefe jihadista para atacar a França, o Ocidente ou a comunidade judaica inspiram os aspirantes à revolta;
mas em nenhum caso elas são o motor de sua passagem à ação. “Essa decisão definitiva é a última de
uma longa série de decisões anteriores, das quais nenhuma, tomada isoladamente – e aí está o ponto
central –, pareceria estranha em si”, lembra o sociólogo Howard S. Becker.4 Assim como o historiador
norte-americano Christopher Browning, que mostrou – no que continua sendo, provavelmente, uma das
melhores obras sobre a radicalização – por quais mecanismos (o conformismo do grupo, a
despersonalização das vítimas etc.) “homens comuns” que pertenciam ao 101o batalhão de reserva da
polícia alemã se transformaram entre julho de 1942 e novembro de 1943 em frios exterminadores, 5seria
preciso reconstituir as séries de acontecimentos próprias à existência dos autores dos atentados e aos
universos nos quais eles evoluem.
Genealogia dos atentados
Primeiro, o modus operandidos atentados se inscreve na
continuidade das formas anteriores de delinquência às quais
alguns deles puderam se entregar. Roubar carros, obter armas,
manuseá-las e utilizá-las, por exemplo, durante um assalto,
constituem técnicas e modos de ação transponíveis. O
desenrolar dos ataques reflete também a permanência desse
tipo de prática: as observações de terreno ainda são
aproximativas; os planos de fuga se limitam a voltar para casa; e
se isso se revela impossível, parece não haver outra opção a
não ser fugir sem rumo. O sangue-frio para levar a cabo o
atentado e a habilidade para conduzi-lo rapidamente a fim de
fugir parecem as únicas qualidades necessárias. Mesmo a morte
como mártir, atirando sobre as forças da ordem, se parece
estranhamente com a de Scarface, encarnado por Al Pacino no
filme de Brian de Palma, um ícone de alguns jovens das cités; ou
ainda a do assaltante Jacques Mesrine, cuja biografia era lida
por Merah algumas semanas antes de sua morte. A familiaridade com esses modos de ação e sua
legitimidade para aqueles que os utilizam constituem uma etapa importante para entender, ainda que
insuficientemente, como eles podem em seguida se estender para outros alvos. Assim, a vontade de
Coulibaly de “acabar com os policiais”, enquanto os irmãos Kouachi atacavam o Charlie Hebdo, pode sem
dúvida se ligar ao seu ódio contra uma instituição que matou diante de seus olhos seu melhor amigo, Ali
Rezgui, em setembro de 2000, quando os dois homens estavam colocando motos roubadas em uma
caminhonete.
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Depois, essa violência política não surge do nada. Podemos traçar sua genealogia a partir da guerra
civil argelina. O conflito, iniciado em dezembro de 1991 pela anulação das eleições que tinham dado a
vitória à Frente Islâmica de Salvação (FIS), foi extremamente violento. Até o início dos anos 2000, os
enfrentamentos intensos entre o Exército e os Grupos Islamistas Armados (GIA) fizeram diversas dezenas
de milhares de mortos e provocaram deslocamentos e exílios em massa. Essa situação trágica não
poupou as famílias argelinas instaladas na França, às quais pertencem tanto Merah e Nemmouche quanto
os irmãos Kouachi. Abdelghani Merah, irmão mais velho de Mohammed, contou sobre suas férias de verão
em Oued Bezaz, onde a família paterna, que apoiava os GIA, exibia armas e às vezes “um guarda ou um
civil decapitado”. Ele também explicou as pressões nesse período de um de seus tios de Toulouse para
que suas irmãs “largassem a escola, colocassem o véu islâmico e ficassem em casa”. 6 No contexto
francês, essas decisões religiosas podem constituir ao mesmo tempo uma ordem para crianças
excessivamente emancipadas (em seus passeios, suas relações ou seu modo de se vestir) e um apoio
mais diretamente político aos grupos armados. Como o de Djamel Beghal, apresentado como o mentor de
Chérif Kouachi e de Coulibaly, encontrado na prisão de Fleury-Merogis em 2005. Nascido em 1965, ele
participou das redes de apoio dos GIA na França, o que o levou à prisão em 1994. Juntamente com
Coulibaly e Chérif Kouachi, ele também faz parte de um grupo de catorze pessoas suspeitas de ter
preparado em 2010 a evasão de Smaïn Aït Ali Belkacem, um dos artífices dos atentados de 1995. Na
detenção, Kouachi teria entrado em contato com Farid Melouk, também condenado pelo apoio logístico a
esses ataques.
Nesses encontros acontece uma ligação entre gerações diferentes de militantes ativos do islã político.
Ela inscreve o engajamento em uma história mais longa, marcada por proezas de batalha, derrotas e
reorientações.7 Em 1995, os GIA podiam esperar uma vitória militar e política na Argélia. As bombas
colocadas nos transportes públicos parisienses visavam obrigar o governo francês a restringir seu apoio ao
regime militar. Alguns anos depois, essas opções se distanciaram. Os GIA foram derrotados e o Grupo
Salafista para a Pregação e o Combate, criado em 1998, declinou sob os golpes do Exército. Esse
enfraquecimento político e territorial explica sem dúvida sua vinculação à Al-Qaeda em 2007, sob o nome
de Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI), e uma mudança de estratégia. A organização se concentrou, a
partir de então, em operações isoladas no Saara, no máximo no Mali e em Níger (como sequestros de
ocidentais). Para os militantes vivendo na França ou na Europa, a continuidade da causa empregou então
vias diferentes das dos mais antigos. Ela passou, nesse momento, por um redirecionamento – e às vezes
uma partida – para o que os serviços de investigação chamam de “as terras do jihad” ou a passagem à
propaganda pela ação.
Esse modus operandi tinha sido adotado pelos anarquistas na conferência de Londres de 1881. Seu
princípio é simples: o fato insurrecional (atentados, assassinatos, sabotagens, recuperações) “é o meio de
propaganda mais eficaz e o único que [...] pode penetrar até nas camadas sociais mais profundas e atrair
as forças vivas da humanidade para a luta”.8Empregado um pouco em toda a Europa, nos Estados Unidos
e na Rússia, ele atinge também governantes, policiais, magistrados, religiosos, opositores políticos,
“burgueses” anônimos. Ele visa ao mesmo tempo punir responsáveis (por julgamentos, por torturas etc.),
vingar camaradas mortos e eliminar símbolos a fim de acordar as massas. Cento e trinta anos antes
de Inspire, a revista da Al-Qaeda na Península Arábica chamando à morte de Stéphane Charbonnier, o
Charb, jornais como A Revolução Social, A Luta e A bandeira negra inauguravam as colunas “Estudos
científicos”, “Produtos antiburgueses” e “Arsenal científico”, consagradas à fabricação de bombas. Em
1884, O Direito Social lançou até mesmo uma campanha “para a compra do revólver que deve vingar o
companheiro Louis Chaves”, morto por policiais.
Propaganda pela ação
Para grande prejuízo de seus defensores, a propaganda pela ação, no
entanto, não movimenta mais as multidões. Alguns atos puderam ser
percebidos com benevolência, mas não mobilizaram ninguém. Ao contrário,
eles até mesmo provocaram um distanciamento do mundo operário dos
movimentos anarquistas, já que uma repressão sem piedade se abatia sobre
eles. A tal ponto que essa estratégia foi abandonada no início do século XX,
em proveito de ações mais coletivas. Em seguida, ela foi utilizada com o
mesmo insucesso por movimentos de extrema esquerda (Ação Direta na
França, Fração Armada Vermelha na Alemanha e Brigadas Vermelhas na
Itália), mas também por partidários de extrema direita (como a Organização
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Armada Secreta, Timothy McVeigh, executado nos Estados Unidos pelo atentado de Oklahoma City em
1995, e Anders Behring Breivik, responsável pelo massacre de Utøya, na Noruega, em 2011).
Os recentes assassinatos que abalaram a França confirmam essa regra. Apesar das ordens de
Coulibaly a seus “irmãos muçulmanos” em seu vídeo póstumo (“O que vocês fazem quando o Profeta é
insultado repetidas vezes? O que vocês fazem quando massacram a população inteira? O que vocês
fazem quando, diante de vocês, seus irmãos e irmãs morrem de fome?”), estes últimos rejeitam
maciçamente ações das quais eles são as vítimas colaterais, se julgarmos pelos ataques às mesquitas,
pelas degradações dos locais de culto e pelas agressões físicas que se seguiram. Os dirigentes políticos
parecem desconhecer as lições da história quando entoam cantos guerreiros, como o primeiro-ministro
Manuel Valls, que clamou na Assembleia Nacional em 13 de janeiro de 2015: “Sim, a França está em
guerra contra o terrorismo, o jihadismo e o islamismo radical”.
Não dois, mas três atores
Primeiro, a situação, por mais trágica que seja, não é uma guerra. Ela continua sob o controle dos
serviços policiais e das autoridades judiciárias. Os autores e seus cúmplices foram neutralizados ou presos
rapidamente, e podemos legitimamente pensar que o mesmo se repetiria se outros atos viessem a
acontecer. O risco zero nunca existiu, mesmo nos regimes mais policiados (como o Chile de Augusto
Pinochet e a Espanha de Francisco Franco).
Depois, o discurso guerreiro supõe uma polarização, já que repousa sobre a mobilização de todos
contra um inimigo comum. Se o argumento pode ter algum eco quando seus exércitos se chocam contra
as fronteiras, ele não tem efeito em uma situação ordinária. As dificuldades de alguns professores para
que se respeitasse um minuto de silêncio oficial em suas classes no dia 8 de janeiro de 2015, assim como
a composição social das imensas manifestações do domingo seguinte, mostram que não havia
unanimidade em algumas populações. Como se espantar? A vida cotidiana dos meios populares e mais
particularmente de sua juventude continua mais próxima em muitos pontos à dos autores dos atentados do
que da dos governantes que os incitam a se mobilizar, ou à das classes médias cultas tentadas a desfilar.
As múltiplas formas de discriminações cotidianas (social, religiosa, de aparência ou de origem), a
relegação social e espacial, assim como os controles policiais, tornam pouco provável a coalizão em um
mesmo movimento daqueles que sofrem essas discriminações, daqueles que as organizam e daqueles
que as lamentam sem, no entanto, se preocupar realmente com elas. Da mesma forma que alguns maus
alunos alemães estudados pela socióloga Alexandra Oeser se dizem nazistas para chocar seus
professores,9 o apoio verbal aos atentados oferece a seus homólogos franceses uma bela ocasião para
contestar uma ordem escolar e social que os exclui.
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Mais grave ainda, a polarização guerreira é um nonsense em matéria de violência política. Dois
discursos simétricos se opõem: o das autoridades (“ou vocês estão do nosso lado ou do lado dos
terroristas”) e o das organizações clandestinas (“ou vocês estão do nosso lado ou são maus muçulmanos,
maus nacionalistas, maus revolucionários etc.”). A “relação terrorista”, porém, não implica dois, mas três
participantes.10 O enfrentamento entre os dois primeiros se faz sob os olhares na maioria das vezes
indiferentes do essencial da população, colocada em posição de espectadora via mídia.
Esse distanciamento constitui precisamente a condição da não extensão da violência, particularmente
quando os grupos radicais não dispõem de base social ou territorial forte. A pressão para desembocar em
condenações unânimes pode incitar, por rejeição, uma minoria desses espectadores a se unir aos
objetivos, ou até mesmo às fileiras, das organizações visadas. É um risco ainda maior se essa pressão for
reforçada por medidas judiciais ou administrativas voltadas a dobrar aqueles que se negam a aceitá-la.
LAURENT BONELLI é integrante do grupo de análise política da Universidade Paris 10 - Nanterre. Publicou La France a peur.
Une histoire sociale de l'insécurité, Paris, La Découverte, 2008.. Ilustração: Tulipa Ruiz. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE
BRASIL, Novembro de 2015.
Estado Islâmico: a ameaça se renova (JOSÉ ANTÔNIO LIMA)
Os atentados em Paris indicam que a organização jihadista mudou sua estratégia para ampliar o
caos e atrair potências a um conflito ainda maior
Imagem da revista digital Dabiq, um dos braços midiáticos do ISIS, mostra Abdelhamid Abaaoud, conhecido como Abu Umar al-Baljiki, o
suposto cérebro por trás dos atentados em Paris
ALÉM DE ser o segundo maior atentado terrorista contra o Ocidente desde o 11 de Setembro,
o massacre ocorrido em Paris na noite de 13 de novembro marca uma importante mudança na estratégia
do autoproclamado Estado Islâmico. Desde a fundação do califado, em novembro de 2014, o grupo
jihadista concentrou seus esforços na construção de um Estado. Além de cometer genocídios, destruir
monumentos históricos e divulgar execuções espetaculosas, o Estado Islâmico tenta demonstrar às
populações que domina e aos potenciais recrutas sua capacidade de sustentar um governo funcional. O
grupo faz isso ao manter uma complexa rede de instituições cujo intuito é dar aos "residentes" nas cidades
controladas uma sensação de normalidade. O exemplo máximo disso são os aparatos judiciais e policiais.
Além de forçar a aplicação de uma draconiana versão da lei islâmica, eles servem para resolver conflitos
entre indivíduos ou entre tribos e clãs, uma maneira de garantir a ordem.
Da mesma forma, o Estado Islâmico emite documentos de identificação, cuida de ruas e estradas,
estabelece diretrizes para motoristas de carros e regras para agricultores e pescadores. Em Raqqa, a
"capital" do ISIS, como também é conhecida a organização jihadista, funciona até um escritório de
proteção aos direitos do consumidor. Em grande medida, a busca pela construção de um Estado deriva do
messianismo apocalíptico do Estado Islâmico. Ao mesmo tempo, entretanto, essa necessidade vive em
tensão com o fervor religioso.
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A crença no fim do mundo acompanha o ISIS desde suas primeiras formas de existência, sob o
comando do jordaniano Abu Musab al-Zarqawi. Seus sucessores levaram ao máximo a convicção de que
o apocalipse estaria chegando. Em 2006, ao mudar o nome da organização de Al-Qaeda no Iraque para
Estado Islâmico do Iraque, o egípcio Abu Ayyub al-Masri, substituto de Zarqawi, passou a pregar a tese de
um iminente fim do mundo. O fato de o apocalipse não ter ocorrido no período estipulado por ele minou
sua credibilidade até 2010, quando foi morto. Sob o comando de Abu Bakr al-Baghdadi, o atual "califa", os
líderes do ISIS seguem acreditando no fim do mundo, mas se dedicam a construir um Estado pois o
julgamento final seria anunciado pelo renascimento do califado – o império islâmico desaparecido, mas
cujo retorno foi profetizado. Tomar território e estabelecer o "reino de Deus" na Terra é, assim, uma
necessidade.
Até recentemente, a construção estatal vinha sendo uma prioridade das lideranças dos ISIS, à frente
até mesmo de sua marca registrada: a violência brutal. No início de outubro, um estudo da Quilliam,
um think tank baseado em Londres e dedicado ao contraterrorismo, mostrou que mais da metade das
propagandas do ISIS veiculadas no mês anterior se dedicavam a divulgar traços da vida civil e do
funcionamento das instituições nos territórios dominados. O tempo ocupado pelas atrocidades não chegou
a 5%. Agora, a estratégia mudou. Em duas semanas, três grandes atentados foram reivindicados pelo
Estado Islâmico – a derrubada do voo 9268 da Metrojet no Egito; os ataques suicidas em Beirute, capital
do Líbano; e os massacres em Paris.
Todos os interesses atingidos eram de inimigos do ISIS. A Metrojet é russa, país que realiza
uma intensa campanha militar na Síria; o distrito de Bourj al-Barajneh, alvo em Beirute, é dominado pelo
Hezbollah, organização ligada ao Irã e aliada do regime de Bashar al-Assad; e a França é uma das nações
ocidentais mais assertivas na coalizão anti-ISIS. No caso do avião russo, o ISIS reivindicou o atentado e,
nesta terça-feira 17, Moscou confirmou que o avião foi derrubado por um explosivo improvisado. No
Líbano, os serviços de inteligência trabalham com a hipótese de os quatro homens-bomba serem parte de
uma célula terrorista enviada ao país pelo comando central jihadista. No caso de Paris, está cada vez mais
clara a conexão entre o ato terrorista e a atividade do ISIS.
Como disse o presidente francês, François Hollande, os ataques
"foram decididos e planejados na Síria".
Observados em conjunto, vários fatos apontam para
isso. Pelo menos três dos terroristas que atacaram Paris (Omar
Ismaïl Mostefai, Samy Amimour e Bilal Hadfi) estiveram na Síria
em algum momento e o homem apontado como principal
suspeito de ser o cérebro dos atentados, o belga Abdelhamid
Abaaoud, que ainda está no país árabe, é um conhecido ativista
do ISIS. Antes do massacre, revelou a Associated Press, oficiais
da inteligência do Iraque enviaram um despacho a outras
agências informando que o próprio Abu Bakr al-Baghdadi teria
ordenado ataques contra todos os países da coalizão liderada
pelos Estados Unidos, além de Irã e Rússia. Na segunda-feira 16, integrantes do ISIS divulgaram um
vídeo no qual celebraram as mortes em Paris e prometeram atentados em outras capitais, incluindo
Washington.
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Informações de pessoas com conhecimento da reservada forma de funcionamento do ISIS indicam
que, de fato, os ataques no exterior fazem parte de uma nova estratégia. Na primeira parte de uma
entrevista publicada pelo site Daily Beast, um ex-militante do Estado Islâmico atribui a nova tática às
derrotas sofridas pelos jihadistas no campo de batalha. Elas fizeram minguar a chegada de guerrilheiros
estrangeiros, diz ele, e a liderança da organização decidiu usar seus simpatizantes de outra
forma, fomentando a criação de células terroristas adormecidas. Os líderes do Estado Islâmico, disse a
fonte ainda em outubro, antes dos ataques no Egito, no Líbano e na França, "pediram às pessoas para
ficarem em seus países e lutar lá, matar cidadãos, explodir prédios, fazer o que for possível".
Reportagem da Reuters com membros do ISIS contatados pela internet segue na mesma linha.
Segundo as fontes da agência, há um aparato de operações estrangeiras no comando do Estado Islâmico,
chefiado por um jordaniano, que há dois meses teria ordenado uma onda de ataques no exterior. A partir
da Síria, sairiam diretrizes de treinamento e ordens de ataque. Novamente, a estratégia reflete parte do
messianismo do Estado Islâmico. A organização é obcecada pelo fim do mundo, que viria em breve, em
uma batalha épica entre os jihadistas e os "infiéis". Após a vitória islâmica, a ser comandada pelo mahdi,
uma figura mítica apontada em profecias como o redentor dos muçulmanos, viria o apocalipse.
Ao que parece, o pêndulo entre a construção de um Estado e o messianismo apocalíptico está se
inclinado para o segundo lado. A ofensiva no exterior tem como objetivo instigar os governos estrangeiros
a reagir, e até aqui a única alternativa debatida tem sido a intensificação da ofensiva militar contra o
Estado Islâmico. É uma resposta que fortalece a narrativa a respeito do fim do mundo e reafirma a tese
dos jihadistas sobre a necessidade de os muçulmanos se unirem para combater os infiéis. O Estado
Islâmico pode estar perdendo algumas batalhas militares, mas tem conseguido moldar o confronto a seu
gosto. É preciso esperar para saber se seus inimigos vão cair na armadilha.
JOSÉ ANTÔNIO LIMA é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista CARTA CAPITAL, Novembro de 2015.
Um Brasil de oportunidades para todos (TEREZA CAMPELLO)
Em pouco mais de uma década, a estratégia brasileira de desenvolvimento inclusivo já se traduziu
em expressiva redução da pobreza e das desigualdades. Mas ainda há muito a fazer para saldar
uma dívida social forjada ao longo dos séculos. Para ter sucesso, será preciso consolidar as
conquistas obtidas e ir além
O aparecimento das primeiras políticas sociais para lidar com um passivo de séculos de escravidão e
descaso no Brasil data dos anos 1930. De modo geral, contudo, eram construções clientelistas ou focadas
no mundo do trabalho formal e urbano, deixando de fora quem mais precisava: a imensa maioria de
pobres, que naquela época ainda se concentrava no campo. Após a Constituição de 1988 começaram a
surgir políticas sociais para melhorar a vida da população mais vulnerável, mas a lógica de captura do
Estado pelas elites, em certa medida, persistia, uma vez que as políticas sociais eram as primeiras a ser
sacrificadas em nome da estabilidade macroeconômica.
Nos últimos anos, uma extensa e robusta rede de proteção social ajudou a tirar milhões de brasileiros
da pobreza. Um componente fundamental dessa rede é o Programa Bolsa Família. Criado pelo então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva em outubro de 2003, o programa hoje atende 14 milhões de famílias –
cerca de 50 milhões de brasileiros –, ao custo de menos de 0,5% do PIB. Além de aliviar a pobreza por
meio da transferência direta de renda, ele contribui para romper o ciclo da transmissão da pobreza de pais
para filhos ao reforçar o acesso a direitos nas áreas de educação e saúde, por meio das
condicionalidades.
Do Bolsa Família ao Brasil sem Miséria
Antes do Bolsa Família, o sistema de proteção social brasileiro era voltado à concessão de benefícios
para pessoas que haviam perdido a capacidade produtiva. A população pobre produtiva em idade ativa
ficava de fora, o que deixava descobertas também suas crianças. O Bolsa Família alterou essa lógica,
numa mudança de paradigma que requereu altas doses de coragem e vontade política, porque a
tendência de culpar as pessoas pobres por sua condição era (e em larga medida ainda é) forte.
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A implantação do Bolsa Família demandou também enormes evoluções
do ponto de vista operacional, fosse para encontrar o público-alvo, registrar
as famílias, transferir-lhes renda ou monitorar as condicionalidades do
programa. A atuação da rede do Sistema Único de Assistência Social (Suas),
o aprimoramento e a expansão do Cadastro Único para Programas Sociais, a
construção do sistema de pagamento de benefícios Bolsa Família junto à
Caixa Econômica Federal e a mobilização dos sistemas de educação e saúde
para aferição das condicionalidades foram alguns dos avanços que
permitiram o sucesso do programa.
É claro que o Bolsa Família não foi uma iniciativa isolada para melhorar a
vida das pessoas mais pobres. Milhões foram beneficiados pelas ações de
valorização do salário mínimo, geração de empregos, fortalecimento da
agricultura familiar e acesso a bens e serviços no governo Lula. Aqueles que
continuaram na miséria depois desse amplo processo de inclusão eram os
mais vulneráveis: o cerne da pobreza. Lidar com essa pobreza mais resistente exigiria esforço redobrado
por meio de uma nova iniciativa, o Plano Brasil sem Miséria.
Um novo estágio na proteção social
A adoção de uma estratégia multidimensional coordenada, com objetivos e metas claros e
mensuráveis, é uma das iniciativas mais importantes dos países que procuram reduzir seus níveis de
pobreza, segundo as melhores práticas recomendadas por organismos multilaterais e especialistas no
assunto. Esse tipo de estratégia, que alinha políticas de diferentes áreas e aproveita as sinergias entre
elas, materializou-se no Brasil a partir de 2011, quando a presidenta Dilma Rousseff lançou o Plano Brasil
sem Miséria, com o objetivo de superar a extrema pobreza em todo o país. Mais uma vez, a colocação em
prática de uma estratégia ousada, de grande escala e abrangência nacional não seria possível sem
grande vontade política. A firme determinação da presidenta da República foi fundamental para garantir o
engajamento não só dos 22 ministérios participantes do Plano, mas também o dos estados e municípios e
o da sociedade civil.
A construção do Plano Brasil sem Miséria partiu do acúmulo das políticas sociais e ferramentas
desenvolvidas a partir de 2003, dando continuidade às experiências bem-sucedidas na redução da
pobreza, que foram ampliadas, revigoradas e articuladas a outras ações. Foi o caso do Programa Bolsa
Família e também do Cadastro Único, principal ferramenta para o mapeamento da pobreza e para a
identificação e seleção de beneficiários das iniciativas do Brasil sem Miséria. Os programas de Aquisição
de Alimentos, Mais Educação e Luz para Todos são outros exemplos de iniciativas preexistentes que
entraram no Plano. Mas ele também trouxe novidades, como as lanchas e equipes móveis da assistência
social, os cursos de qualificação profissional do Pronatec, os programas Água para Todos e Bolsa Verde,
e a Ação Brasil Carinhoso.
O Bolsa Família passou por uma série de aprimoramentos com o advento do Brasil sem Miséria. O
principal foi o início do pagamento de um novo benefício, que complementa a renda familiar para que
todos superem o patamar da extrema pobreza (R$ 77 mensais por pessoa). Isso significa que cada família
recebe valores diferentes (o suficiente para ultrapassar a linha), o que representou uma grande mudança
estrutural no Bolsa Família.
Multidimensionalidade
A pobreza se manifesta de múltiplas formas além da insuficiência de renda, incluindo insegurança
alimentar e nutricional, baixa escolaridade, pouca qualificação profissional, fragilidade de inserção no
mundo do trabalho, acesso precário à água, energia elétrica, saúde e moradia, entre outras. Superar a
extrema pobreza requer, portanto, a ação intersetorial do Estado. Por isso, o Plano Brasil sem Miséria foi
organizado de maneira multidimensional, em torno de três eixos de atuação.
O primeiro é dedicado a proporcionar um rendimento mínimo estável ao público-alvo do Plano. O
segundo envolve esforços de inclusão produtiva, para oferecer, na cidade e no campo, oportunidades de
qualificação, ocupação e geração de renda. O terceiro eixo diz respeito à melhoria do acesso a serviços
públicos – especialmente em educação, saúde e assistência social –, direcionando a expansão das redes
de serviços para as áreas com maior incidência de pobreza extrema. Várias das políticas envolvidas se
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articulam, potencializando seus resultados. É o caso do uso compartilhado do cartão do Bolsa Família pelo
Bolsa Verde e da atuação da rede socioassistencial na mobilização para o Pronatec, por exemplo.
Linha de extrema pobreza e público-alvo
A linha de extrema pobreza do Brasil sem Miséria tem vários usos: diagnóstico, acompanhamento da
taxa de extrema pobreza ano a ano e seleção do público prioritário. Embora se tenha considerado usar
uma abordagem das privações (multidimensional), optou-se por uma linha monetária porque ela propicia
uma boa aproximação das várias dimensões da pobreza e, ao mesmo tempo, traz as vantagens da
simplicidade e da transparência, facilitando o acompanhamento pela sociedade. Mas isso não significa que
o Plano deixe de lado tanto a atuação quanto as medições periódicas de um ponto de vista
multidimensional.
A linha usada pelo Brasil sem Miséria era de R$ 70 mensais no início do Plano. Aplicada aos
resultados do Censo Demográfico de 2010, ela permitiu obter informações sobre a dimensão, a localização
e as características socioeconômicas da população em extrema pobreza. Aplicada à Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad), possibilita o acompanhamento anual da evolução da taxa de extrema
pobreza. Aplicada ao Cadastro Único, que localiza e qualifica os brasileiros mais pobres, permite ao poder
público agir para diminuir a pobreza nas muitas dimensões em que ela se manifesta.
A reconhecida volatilidade da renda dos mais pobres é um dos motivos para que a linha de extrema
pobreza não delimite todos os beneficiários do Brasil sem Miséria, mas seu público prioritário. Excluir uma
família pobre de uma ação pode significar ter uma família extremamente pobre sem cobertura no futuro.
Além disso, quem está acima da linha monetária pode sofrer privações em outras dimensões que,
somadas, configurem situação de extrema pobreza de um ponto de vista multidimensional. Por isso, a
linha, que atualmente é de R$ 77 mensais per capita ao mês, é tida como uma referência, mas não exclui
de muitas das ações do Brasil sem Miséria quem está acima dela.
O Cadastro Único
Desde seus primeiros anos – quando os registros eram relativamente escassos, duplicados e
incompletos – até hoje, o Cadastro Único percorreu um longo caminho de aperfeiçoamento. Atualmente
operando on-line em todos os 5.570 municípios brasileiros, ele cobre 27 milhões de famílias de baixa
renda (renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa). O Cadastro Único tem informações
completas sobre cada uma das famílias registradas, permitindo saber quem são, onde moram, o perfil
educacional de cada um dos seus membros, o perfil de trabalho e renda, as principais despesas, as
características da construção dos domicílios, se há acesso a serviços como os de eletricidade,
saneamento e coleta de lixo, se a família faz parte de grupos tradicionais ou específicos (como indígenas e
quilombolas), entre outras informações, atualizadas no máximo a cada dois anos. A consistência das
informações é checada por meio de cruzamentos com outros registros administrativos.
Conjugando o uso das linhas (de extrema pobreza e de pobreza) e do Cadastro Único (que aponta a
renda e muitas outras dimensões de privações), o Plano Brasil sem Miséria pode agir
multidimensionalmente, com base nas características verificadas no público a ser atendido. O uso das
informações do Cadastro Único e de seus cruzamentos com outros registros administrativos para fazer a
seleção de público de várias ações permitiu oferecer uma abordagem aprimorada, que leva em conta uma
série de privações para além da renda. Ou seja, mesmo usando uma linha de extrema pobreza
unidimensional (monetária), foi possível desenhar uma estratégia multidimensional e atuar dessa forma.
A busca ativa
Falta de conhecimento sobre seus direitos, de informações sobre os serviços disponíveis ou de
acesso a equipamentos públicos são apenas algumas das dificuldades enfrentadas pelos mais pobres
para usufruir os serviços e benefícios a que fazem jus. Para que o Plano Brasil sem Miséria fosse bemsucedido, era necessário que essas pessoas fossem atendidas, o que demandou uma mudança na
postura do Estado. A busca ativa foi então colocada no centro da estratégia do Brasil sem Miséria: trata-se
do compromisso do Estado de ser proativo para encontrar, cadastrar e incluir as pessoas mais pobres, no
lugar de simplesmente ofertar os serviços e esperar que a população venha em busca deles.
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Desde o início, a busca ativa foi um dos conceitos do Brasil sem Miséria mais incorporados pelos
diferentes atores do Plano, em especial os municípios, responsáveis por viabilizar as ações de busca ativa
para inclusão de mais famílias em extrema pobreza no Cadastro Único.
O Plano Brasil sem Miséria impulsionou a busca ativa de muitas formas: aumento nos repasses de
recursos financeiros do governo federal para as prefeituras; criação de equipes móveis da assistência
social, preparadas para ir aonde as famílias mais pobres estão (inclusive com a entrega de lanchas para
facilitar os deslocamentos em vários municípios); e mutirões de cadastramento. O resultado foi a inclusão
de 1,4 milhão de novas famílias extremamente pobres no Cadastro Único de julho de 2011 a março de
2015.
Mais resultados
Os aprimoramentos que o Brasil sem Miséria proporcionou ao Bolsa Família permitiram acabar com a
extrema pobreza no universo do programa, retirando 22 milhões de pessoas da miséria. Mais de 1,75
milhão de pessoas de baixa renda se matricularam em cursos de qualificação profissional do Pronatec,
melhorando suas perspectivas de trabalho e renda. Mais de 960 mil cisternas de consumo e sistemas de
produção foram construídos e entregues desde o início do Plano. E os repasses da Ação Brasil Carinhoso
aos municípios contribuíram para que a quantidade de crianças do Bolsa Família em creches aumentasse
33% entre 2011 e 2014.
No que diz respeito a macrorresultados, a taxa de extrema pobreza monetária, que era de mais de 8%
em 2003, chegou em 2013 à casa dos 3% da população – patamar em que o Banco Mundial considera a
extrema pobreza erradicada. Já o Índice Multidimensional de Pobreza, usado pelo Pnud em seu Relatório
de Desenvolvimento Humano, apontou uma taxa de pobreza multidimensional de 2,8%, em 2013. E um
indicador multidimensional do Banco Mundial registrou 1,1% de pobres crônicos (pobres do ponto de vista
monetário e do não monetário) no mesmo ano. Esses resultados, obtidos por meio de diferentes
metodologias de aferição, convergem numa trajetória consistente de queda. Houve redução de
desigualdades regionais, raciais e etárias, e o Brasil alcançou antes do tempo o principal Objetivo de
Desenvolvimento do Milênio, relativo à redução da pobreza, e saiu do mapa da fome da Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Enfrentar as ameaças e ir além
O Brasil avançou concretamente no acesso dos mais pobres a direitos e serviços desde 2003. Mas,
diante do passivo de uma história de profundas desigualdades, muito ainda temos a avançar. Infelizmente,
contudo, corremos risco de retrocesso. Tentativas de redução da maioridade penal, de diminuição da
idade para o trabalho e de mudança do conceito de família põem em risco direitos básicos. As redes
sociais escancararam o preconceito contra a população pobre e contra diversos grupos vulneráveis.
É natural que profundas mudanças estruturais como as que o Brasil colocou em prática em tão pouco
tempo encontrem resistências, mas não podemos andar para trás. Precisamos lutar juntos, enquanto
sociedade, para mostrar que o que nos torna civilizados é saber conviver com as diferenças, compreender
e celebrar a diversidade, entender que a maior riqueza de um país é seu povo – todo ele,
independentemente de sua região, renda, raça, religião, idade ou orientação sexual.
TEREZA CAMPELLO é ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Ilustração: Bernardo França. Jornal LE MONDE
DIPLOMATIQUE BRASIL, Novembro de 2015.
Que jornalismo é esse? (MALU FONTES)
NA VERDADE, muita gente que diariamente busca informar-se talvez faça essa pergunta de outro
jeito: “que p*... é essa?” Não há outras expressões senão essas para traduzir o espanto que pessoas
minimamente letradas que assinam ou compram jornais, impressos ou online, ou que buscam sites, portais
e blogs, procurando informação e não (apenas) entretenimento, sentem diante da avalanche de erros que
tem invadido todos os dias as notícias.
Durante um fórum de jornalismo realizado em outubro deste ano, em São Paulo, pelo canal de TV
fechado Globo News e pela revista Piauí, praticamente todos os participantes entrevistados repetiam em
uníssono, ao referirem-se à tão debatida crise dos jornais ou do jornalismo: sempre haverá lugar nos
veículos noticiosos para os bons textos, o texto bem construído e com o máximo de precisão e informação
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sobre o fato noticiado ou abordado. Para textos bons, sempre haverá leitor, asseguravam. Entretanto,
diante da natureza de determinadas notícias publicadas para atrair os leitores menos interessados em
informação e sedentos de detalhes sórdidos da intimidade alheia, e, principalmente, diante de tantas
notícias com tantos erros, não parece estar havendo exatamente o contrário? Uma espiada rápida diária
em sites locais e nacionais parece provar o oposto do lugar assegurado aos bons textos: para o texto ruim
sempre haverá espaço.
REVÓLVER
É importante esclarecer que quando se fala em bons textos no jornalismo não se pede que jornalistas
sejam literatos. Jornalismo não é literatura e ninguém está se queixando da falta de beleza. A cobrança
mínima que se faz a alguém que escolhe ser jornalista voluntariamente, já que não lhe colocaram um
revólver contra a cabeça para que adotasse essa profissão e desconhece-se casos de famílias que
ameaçaram seus rebentos de deserdá-los, caso não se tornassem jornalistas, é que saiba usar a
gramática e a língua do país onde vive. Uma vez atendidas essas duas condições obrigatórias, espera-se
de um jornalista que seja responsável ao apurar detalhadamente os dados do fato que irá noticiar e que
tenha a capacidade de contar uma história ou explicar um fenômeno com absoluta clareza.
Levando-se em conta os absurdos que qualquer leitor assíduo de notícias vê diariamente, a impressão
que se tem é que os jornalistas dotados dessas capacidades estão em extinção e que, no ritmo no qual o
abuso de erros vem se dando, o jornalismo, se quiser sobreviver, vai ter que se reproduzir em cativeiro.
Qual o leitor, do tipo que importa e interessa aos anunciantes dos grandes veículos, vai querer gastar seu
tempo e dinheiro para ler majoritariamente textos mal escritos e borbulhando de erros de Língua
Portuguesa? A qualidade da escrita escorre pela vala, sobretudo nas plataformas online dos veículos. As
explicações possíveis são várias. A plataforma online exige atualização contínua, está submetida à histeria
da pressa no grau máximo, pois busca-se vencer a concorrência dando furos quanto à publicação das
notícias, e contratam principalmente estagiários que muitas vezes ainda não têm noção mínima do assunto
sobre o qual estão escrevendo.
PREGUIÇA
E se tudo isso fosse pouco, uma revelação assustadora: a maioria dos estudantes de Jornalismo não
lê livros, tem um repertório literário abaixo do sofrível e, embora pareça inacreditável, não lê jornais nem
consome informação. Como, num cenário marcado por essa preguiça intelectual, pode-se queixar da falta
de leitores? O leitor de notícias é, acima de tudo, um cliente que precisa e quer informação correta, clara e
útil. Se não for por isso, por que ele vai comprá-las? Se é para ler qualquer coisa, o blog do vizinho até
que conta bem as coisas do bairro e faz umas piadinhas. E é de graça.
MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA, jornalista e professora de Jornalismo da mesma Universidade. Jornal
CORREIO, Novembro de 2015.
Quem realmente acolhe os refugiados? (HANA JABER)
Os governos ocidentais fingem que descobriram a amplitude do caos sírio apenas com o
recente afluxo de refugiados. Apenas uma ínfima minoria dos sírios consegue chegar à Europa ao
fim de uma viagem perigosa. No mais das vezes, eles encontraram refúgio em outra região de seu
país, na Turquia, no Líbano ou na Jordânia
“A MÃE permaneceu na aldeia com meu irmão mais novo para cuidar dos mais velhos”, conta Hamad
Hamdani, de 15 anos. “Ela insistiu para que eu me refugiasse com meu tio na Turquia. Receava por minha
segurança, por causa das milícias que tomaram o controle de A’zaz.” Natural de uma aldeia na periferia
dessa cidadezinha ao norte de Alepo, Hamad deixou a Síria há três anos. Em julho de 2012, seu pai foi
morto por um barril de explosivos em ataque da aviação de Bashar al-Assad. Semanas mais tarde, de
manhã, o adolescente dava adeus à mãe e subia numa caminhonete junto com a família de um tio,
desertor do Exército do governo. Impelido por esse gigantesco vendaval, cada refugiado tem sua própria
história, que só deixa entrever uma parcela minúscula do drama sírio e suas consequências para os
países vizinhos.
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NUM PRIMEIRO momento, Hamad e os seus se instalaram no acampamento turco de Oncupinar,
província de Kilis, logo do outro lado da fronteira. É um dos 22 centros abertos a partir de 2011 pelas
autoridades de Ancara nas oito províncias fronteiriças. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (Acnur), mais de 4 milhões de pessoas fugiram da Síria por causa da guerra civil, sem
contar os 7,6 milhões de deslocados no interior do país.1 Cerca de metade dos refugiados sírios vive hoje
na Turquia (1,9 milhão, segundo o Acnur), dos quais 80% fora dos acampamentos. A família de Hamad
ocupa agora um pequeno apartamento num bairro popular de Gaziantep, cidade onde mais de um
habitante em cada dez é sírio. Hamad trabalha como garçom em um café; seu tio, como entregador e
ajudante na cozinha do estabelecimento: “No começo, o acampamento de Kilis era limpo e organizado”,
recorda Wael Hamdani, o tio. “Não nos faltava nada. Entretanto, havia uma certa arbitrariedade. Não
suportei os horários e a vigilância de nossas entradas e saídas. Não corri o risco de desertar para
permanecer fechado como numa caserna. Precisava trabalhar, me mexer e alimentar minha família, mas
não sabia que seria tão difícil.” De seu lado, Hamad tem saudade do acampamento: na escola, ele podia
se acamaradar com aqueles milhares de “jovens cabeças úteis” que vagavam sem rumo pelas ruas.
O afluxo de refugiados constitui “um desafio colossal para a Turquia”, nas palavras do presidente
Recep Tayyp Erdogan. Independentemente das questões de logística e segurança, o país deseja, para
cuidar da própria imagem, “acolher os sírios nas condições mais decentes possíveis”, explica o editorialista
Ali Bayramoglu. Inúmeros veículos de comunicação internacionais destacaram a qualidade dos serviços
oferecidos aos refugiados. Sob a administração conjunta do Acnur e das autoridades turcas,
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supervisionados de perto pelos serviços de segurança, os acampamentos ficam longe das cidades e são
centros de acolhida provisórios. Para sair de lá, a pessoa precisa informar às autoridades aonde pretende
ir. E, embora Ancara afirme proibir a entrada em seu território de combatentes da Organização do Estado
Islâmico (OEI), vários críticos se manifestaram na imprensa turca para denunciar a cegueira do governo
perante a realidade desses movimentos.
Um segundo desafio foi lançado à coesão da sociedade turca. Com 800 quilômetros, a fronteira com
a Síria mais parece um complicado mosaico etnorreligioso composto de populações turcomanas, curdas
ou armênias, ortodoxas, sunitas ou alauitas, falantes de árabe ou de turco, cuja coabitação pacífica o
Estado turco levou um século para conseguir. O afluxo de refugiados, em sua diversidade étnica,
ressuscita um problema mal resolvido da história coletiva. Incidentes ocorrem a todo instante. No início do
verão local, a sudoeste do país, os turcos de fala árabe foram acusados pelos ultranacionalistas de
encorajar o afluxo de sírios a fim de “arabizar” essa região, principalmente o antigo Sandjak de
Alexandreta, objeto de litígio histórico com a Síria desde sua anexação à Turquia em 1939.
Signatária da Convenção de Genebra de 1951, mas com uma cláusula que limita seus
compromissos com populações europeias, a Turquia adotou em abril de 2013 uma lei de estrangeiros que
prevê, sobretudo, a não expulsão de cidadãos sírios, bem como agilidade em matéria de concessões de
vistos de trabalho. Desse modo, a Turquia criou em 2014 uma Direção-Geral dos Migrantes, posta sob a
autoridade direta do primeiro-ministro. O governo, de resto, não fecha as portas à residência permanente:
os sírios de ascendência turca e os turcomanos são até encorajados a solicitar a nacionalidade turca.
A rude hospitalidade turca
O terceiro desafio é econômico. Os aumentos da demografia local, dos aluguéis e do custo de vida,
mas também a queda no setor do turismo, alimentam a reticência das populações em relação aos
refugiados. Sem dúvida, nenhum atrito sério foi registrado, e, de modo geral, o país continua sendo um
porto relativamente seguro para os exilados. Mas a guerra na Síria serve de pretexto ao presidente
Erdoğan, que joga com uma estratégia de tensão para tranquilizar seus eleitores. 2 Os partidos
nacionalistas acusam o governo de pôr em risco a identidade turca, enquanto a esquerda laica teme que
os campos de refugiados acabem servindo de retaguarda para o Estado Islâmico. “Antes de 2011, e após
a suspensão dos vistos, os sírios eram bem-vindos à Turquia”, explica Nasser Ahssne, empresário de
Alepo agora instalado em Esmirna. “Eles consumiam e dinamizavam as trocas comerciais bilaterais. Hoje,
continuam bem-vindos, mas sua situação se deteriora. Sente-se que a disposição para a hospitalidade
enfraquece. Por isso, alguns decidem partir para a Europa.”
O custo financeiro da acolhida dos refugiados não cessa de aumentar. “Damos a maior parte do
dinheiro e já é hora de alguém nos ajudar”, declarou em meados de setembro o vice-primeiro-ministro
Numan Kurtulmus, calculando em “US$ 7 bilhões desde 2011” o montante das despesas e acusando a
União Europeia de “imobilismo e egoísmo”.
Por sua vez, o Líbano acolheu mais de 1,1 milhão de refugiados, ou seja, o equivalente a um quarto
da população local. Contrariamente à Turquia, sua presença não mobiliza as autoridades. Nada de
espantoso nisso, quando se conhece a situação política do país: uma presidência vaga há um ano, 3 um
Parlamento “autoprolongado” e um gabinete ministerial incumbido de dar conta dos assuntos do dia a dia.
As decisões de fechamento e abertura da fronteira se sucedem sem lógica visível. Paralisado
politicamente, o Líbano só toma medidas emergenciais: acolhida ou não de determinado contingente de
refugiados, concessão de visto de entrada a partir de fevereiro de 2015. Apesar da urgência, nenhuma
ajuda financeira foi concedida, nenhum acampamento foi montado. O Alto Comissariado e as inúmeras
ONGs locais e internacionais contribuem, mas, no fim das contas, os refugiados ficam entregues a seus
próprios recursos, num país “relegado a si mesmo”, como se apressam em definir grande número de
jovens libaneses que atualmente não escondem sua cólera contra a classe política.
Em Beirute, à pergunta sobre onde se encontram os refugiados sírios, a resposta do homem da rua
é imediata: “Em todos os lugares e em lugar nenhum”. Andando ao acaso, não é raro ver, sob um prédio
ou num canto de calçada, ao abrigo do vento, uma família refugiada em volta de uma refeição frugal posta
sobre jornais como se fossem guardanapos. Também se vê de vez em quando uma tenda com a sigla
UNHCR (Acnur, em inglês), erguida em um dos raros terrenos vagos da capital. Sentado à mesa de um
café do bairro de Hamra, o jornalista libanês Radwan el-Zein relata: “Primeiro, chegaram os sírios ricos.
Depois, os menos ricos e, agora, os mais pobres. Todos se viram da melhor maneira possível, e nós com
eles. Mas alguns, decepcionados, voltam para a Síria. Soubemos há pouco da morte de um jovem
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vendedor de jornais bastante conhecido no bairro. Acabara de entrar em casa quando sucumbiu a um
bombardeio”.
Para os Médicos sem Fronteiras (MSF), a maioria dos refugiados sírios sofre de “depressão” e vive
“na maior precariedade”. Por sua vez, o Alto Comissariado lamenta que apenas 100 mil crianças sírias, de
um total de 400 mil, frequentem a escola. Sob o peso de uma história recente impossível de esquecer e da
herança de três décadas de presença militar síria no Líbano (1975-2005), os libaneses se preocupam
principalmente com o número de refugiados, que, segundo eles, as autoridades subestimam. Após o início
dos enfrentamentos, em 2011, dois campos irreconciliáveis se levantaram um contra o outro. Os sunitas
eram majoritariamente pela oposição, enquanto o Hezbollah apoiava o regime de Al-Assad. Como sempre,
os cristãos se dividiram. “Em certos meios, o ódio aos sírios não desapareceu”, comenta um dirigente
político maronita que não quer ser identificado. “A guerra civil do outro lado da fronteira foi vista tanto como
um castigo para aqueles que nos ocuparam durante trinta anos quanto como um risco maior de
desestabilização e um perigo potencial para as minorias não muçulmanas da região, em caso de queda do
regime de Al-Assad.”
Fronteiriça à Síria e comuna sunita da Bekaa, Ersal está situada num corredor em continuidade
topográfica com o Qalamun sírio. À medida que os combates se intensificavam nessa região entre o
regime apoiado peloHezbollah, de um lado, e as diferentes facções oposicionistas, de outro– sobretudo a
frente Al-Nosra, próxima da Al-Qaeda –, os refugiados foram chegando e triplicaram a população. Os
jihadistas da oposição síria armada se fundiram na massa dos civis e as bandeiras do Estado Islâmico
logo apareceram. Reagindo a isso, o Hezbollah, que entretanto se comprometera a apoiar o regime de AlAssad apenas em território sírio, passou a farejar uma ameaça sunita. Confrontos sangrentos provocaram
a morte de dezenas de pessoas e a intervenção vigorosa do Exército libanês durante o verão local de
2014 e depois em maio de 2015.
Como não há resposta governamental organizada, os vínculos confessionais entram em cena. Ativas
e solidárias, as paróquias cristãs de todas as seitas estendem pelo país inteiro uma rede de fraternidade
que lhes permite auxiliar os correligionários refugiados. Do mesmo modo, alguns bairros populares de
Trípoli e Beirute, que outrora acolhiam trabalhadores sírios, agora são o destino dos refugiados, assim
como os campos palestinos de Nahr el-Bared, Chatila, Burj al-Barajneh e Ain el-Helweh. Por fim, muitas
famílias sírias buscam abrigo nas zonas rurais ou no interior libanês, mediante pagamento ou troca de
serviços, como vigilância e jardinagem. Às vezes, as dissensões são sepultadas de comum acordo. No sul
do país, por exemplo, na comuna de Bint-Jbeil, que todavia é feudo do Hezbollah, vivem famílias sunitas
vindas das regiões de Deraa e Raqqa. Para os refugiados, o silêncio – isto é, a não expressão de
convicções religiosas e políticas – se tornou uma lei implícita de sobrevivência, não imposta, mas
escrupulosamente respeitada.
Terceiro país afetado pela guerra, a Jordânia recebeu 630 mil sírios, segundo o Acnur. O país nunca
deixou de acolher refugiados. A última grande onda remonta a 2003, data da invasão do Iraque pela
coalizão anglo-americana, que resultou num afluxo maciço de iraquianos (fala-se em 300 mil), dos quais
os mais afortunados se instalaram na Jordânia, enquanto os outros acharam meios de alcançar a Europa
ou de retornar a seu país.
Hoje, como então, a solidariedade entre populações aparentadas desempenha seu papel. Foi o caso
entre a síria Deraa e a jordaniana Ramtha, duas cidades irmãs que se prolongam uma à outra dos dois
lados da fronteira e mantêm antigos laços de socialização e comércio (nomadismo, casamento,
contrabando, caravançarás...). Sentadas juntas, duas mulheres originárias de Deraa conversam. Uma é a
mãe; a outra, a tia de dois jovens presos em 2011 pelos serviços de segurança sírios. Só por terem escrito
“Erhal” (Liberdade) no muro da escola, acabaram presos e torturados. Sua sorte provocou as primeiras
manifestações que, apesar da repressão, se estenderam ao resto do país antes de degenerar em conflito
sangrento. “Os garotos nos foram devolvidos em estado lastimável”, lembra Oum Kassem, a mãe. “Não
dissemos nada: que poderíamos dizer? Não queríamos partir, mas tivemos de tomar essa decisão. Nossa
casa era utilizada por atiradores de elite.
Todos os habitantes de Deraa contarão histórias semelhantes. Eles dirão que nenhum de nós partiu
por vontade própria. Dirão também que nenhum morador de Ramtha deixou de receber uma família
refugiada.” De fato, todas as alavancas de solidariedade – familiares, aldeãs, tribais ou econômicas –
foram acionadas com um entusiasmo de reencontro que surpreendeu os próprios habitantes. Quase como
se uma época passada renascesse, em que o Huram se fundia harmoniosamente com a Galileia e em que
a livre circulação de homens era ainda possível...
Caravanas oferecidas pela Arábia Saudita
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Dispondo de menos recursos que seu homólogo turco, mas com mais boa vontade que o vizinho
libanês, o governo jordaniano tentou acompanhar o afluxo de refugiados. Ao final de julho de 2012, o
campo de Zaatari foi inaugurado no norte do país. Na época, a Jordânia já tinha certa experiência com os
palestinos chegados em 1948 e 1967, e também com trabalhadores estrangeiros que fugiram do Iraque
durante a Primeira Guerra do Golfo (1990-1991). Convém não esquecer ainda a onda de exilados
provocada pelas diversas fases de violência interconfessional posteriores à invasão do Iraque em 2003.
Rapidamente, as tensões entre jordanianos e exilados sírios, mas também o surgimento de
contestações sociais no seio da população local, levaram as autoridades a se ocupar dos refugiados. O
termo “campo”, a princípio, designava numerosos ajuntamentos de tendas e caravanas. Oficialmente
existem seis, espalhados pelas principais cidades do norte; contudo, outros acampamentos vão
aparecendo aos poucos, principalmente no centro do país, e logo são desmantelados. Na prática, o
governo jordaniano só requisitou terrenos para construir os campos de Zaatari (2012) e Azraq (2014), a fim
de acolher respectivamente 120 mil e 130 mil pessoas. Noventa por cento do financiamento dessas
instalações e sua manutenção, avaliados em US$ 2 bilhões desde 2012, provêm de contribuintes
externos, como as monarquias do Golfo.
Na esfera prática, o Acnur garante a administração do recenseamento e da distribuição dos serviços,
recorrendo à experiência da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados (UNRWA, sigla
inglesa).4 De modo geral, a ONU calcula que o custo global da acolhida dos refugiados sírios alcançará
US$ 3 bilhões em 2015 – montante respeitável, quando se sabe que em 2014 a Jordânia só recebeu US$
854 milhões, isto é, 38% dos US$ 2,3 bilhões que gastou.
Bem mais modestos em termos de infraestrutura que os campos turcos, Zaatari e Azraq vão se
transformando aos poucos em cidades. Caravanas e, depois, construções modulares, oferecidas pela
Arábia Saudita, substituem as tendas. Plantam-se árvores e dão-se às ruas nomes bucólicos: Jasmim,
Jujuba etc. Ao longo da via principal do campo de Zaatari, alinham-se lojas e oficinas de todos os tipos.
Muita gente circula graças às bicicletas doadas pela cidade de Amsterdã. Os Emirados Árabes Unidos
financiaram em parte trabalhos de infraestrutura, como canalização de água e rede de esgotos. Apesar
desses esforços, os dois campos construídos em pleno deserto não são nada confortáveis, e sua
população caiu de 156 mil em março de 2013 para 79 mil em agosto último (um terço de sua capacidade).
Os refugiados têm uma única obsessão: ir para as cidades, sobretudo Amã, e confundir-se com a
população local. A paisagem urbana e social, principalmente no norte da Jordânia, foi afetada. Famosos
por sua habilidade artesanal, culinária e comercial, os sírios justificam seus talentos. Oficinas de caldeiraria
e marcenaria, restaurantes e mercados se abrem por toda parte. A indústria da construção prospera com a
demanda de moradias para os refugiados mais ricos, enquanto empresários sírios investem na zona
industrial de Al-Hassan, privilegiando setores como o agroalimentar. Em Amã, as redes mais prestigiosas
de confeitarias damascenas, como a Bakdash, célebre sorveteria fundada em 1895, já operam, e alguns
cafés contam com uma clientela essencialmente síria, que vai aos poucos retomando seus antigos hábitos.
Ameaça fingida à identidade nacional
Com o fluxo incessante de novos refugiados, os sírios, cujo traquejo urbano serviu de modelo à
pequena-burguesia jordaniana, tornam-se convidados indesejáveis, e já se nota um endurecimento das
autoridades. O controle nas fronteiras foi reforçado, e quem entra ilegalmente pode até ser entregue às
autoridades sírias, não importa o risco que corra. Vale lembrar que nem a Jordânia nem o Líbano são
signatários das convenções de Genebra e não se sentem obrigados a respeitar a cláusula do dever de
proteção.
Como no Líbano e na Turquia, os refugiados são reféns do jogo político interno. A autoproclamada
“oposição de esquerda”, que se diz progressista e anti-imperialista, acusa os refugiados de ameaçar ao
mesmo tempo a identidade nacional e a segurança da Jordânia, como se pode ler nos jornais simpáticos
ao regime de Damasco: “A maior parte dos refugiados sírios no exterior integra categorias sociais
incapazes de se adaptar quer ao pluralismo, quer ao modo de civilização que caracterizam a
Síria”.5 Cooptadas pelo regime nas eleições legislativas e depois nas municipais de 2013,6 a fim de
estrangular as contestações populares e enfraquecer o movimento da Irmandade Muçulmana, essas vozes
xenofóbicas se tornaram mais eloquentes, com a desconfiança aumentando à medida que os jihadistas
acumulam êxitos no território. Já o governo acena com a situação excepcional criada pelo afluxo de
refugiados para justificar a lentidão das reformas prometidas em 2011, durante a Primavera Árabe.
O êxodo sírio ultrapassou, em amplitude, o palestino de 1948, e podemos nos interrogar sobre as
consequências dessas dinâmicas populacionais. A flexibilidade das sociedades de refúgio e sua capacidade de
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acomodar-se a situações a priori catastróficas são notáveis. Mas qual será, a médio prazo, o futuro das
fronteiras nacionais, embaralhadas tanto pelo fluxo de refugiados como pela circulação de grupos
combatentes? O empenho e a boa vontade política da Turquia contrastam com a indigência das respostas
libanesa e jordaniana, embora essas sociedades possuam a mesma matriz linguística e cultural da Síria.
HANA JABER é Pesquisadora associada da Catédra de História Contemporânea do Mundo Árabe, Collége de France, Paris.
Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Novembro de 2015.
Desafios para o SUS (MARCELO CASTRO)
TODA sociedade luta pela conquista de direitos e garantias
fundamentais. Dentre eles, a saúde é um dos mais lembrados. No Brasil, o
benefício é garantido pelo SUS (Sistema Único de Saúde), que completa 27
anos. O direito à saúde foi reconhecido tardiamente no país, mas, de
maneira generosa, garante acesso às ações e aos serviços para a sua
promoção de maneira universal, integral e igualitária.
A partir da Constituição de 1988, o Brasil passou a ver a saúde de
modo integral, unindo prevenção e cura, e incluiu a todos, deixando de ser
um serviço apenas para o trabalhador contribuinte do regime geral da
Previdência Social. Ao longo desses anos, o número de atendidos pela
saúde pública no Brasil saltou de 50 milhões para 200 milhões de pessoas.
O SUS tornou-se a maior política de justiça social do país, sem nunca
retroceder. Todos os governantes respeitaram a Constituição e contaram
com dirigentes que promoveram consideráveis avanços no sistema.
O SUS foi uma conquista realizada por muitos cérebros e corações. Há
no país milhares de pessoas que mensalmente discutem e fiscalizam a saúde em seus conselhos, numa
verdadeira democracia participativa. São profissionais, especialistas, pesquisadores e acadêmicos que
todos os dias lutam pelo sonho de ter no país uma saúde de qualidade.
Atualmente, União, Estados e municípios investem cerca de R$ 214 bilhões anuais em saúde pública.
Sabemos que ainda é insuficiente, dado os altos custos em razão do avanço tecnológico da medicina. Tal
situação exige do Estado racionalidade em sua incorporação, pautando-se pelo custo-benefício e
evidências científicas.
Com todas as dificuldades, temos saúde no Samu (Serviço de Atendimento Médico de Urgência), nas
UPAs (Unidade de Pronto Atendimento), nos hospitais, nos centros de atenção e controle de câncer, nas
unidades básicas, nos laboratórios, na vacinação, na fiscalização e controle de transporte de mercadorias
perigosas, nas ações dos 300 mil agentes de saúde e endemias e em muitos outros espaços e formas.
Isso é a força viva da sociedade na garantia da implementação e do aperfeiçoamento constante do SUS,
ouvindo os seus integrantes institucionais, os municípios e os Estados, o setor privado, o Legislativo e
agora o Judiciário, que tem sido chamado diariamente a mediar questões individuais de saúde.
Para avançarmos ainda mais, são temas que importam considerar: financiamento adequado, atenção
básica de qualidade e em todos os municípios do país, gestão regionalizada e eficiente, relações públicas
e privada em ambiente de segurança jurídica e sanitária. O aperfeiçoamento da rede pública ainda esbarra
na necessidade de formação de profissionais de saúde para o modelo SUS e no debate sobre a
judicialização que precisa ser enfrentado. Houve um crescimento constante dos gastos do Ministério da
Saúde com ações judiciais para atender pedidos por cirurgia, equipamentos e medicamentos, inclusive
para a compra de produtos sem registro na Anvisa ou eficácia comprovada. Os valores saltaram 500% nos
últimos quatro anos e, em 2015, devem ultrapassar R$ 1 bilhão.
Meu compromisso no Ministério da Saúde é atuar com maior destaque nesses pontos, sem
desconsiderar os demais, e trabalhar para dar continuidade a tudo o que vem sendo desenvolvido nesses
27 anos. Precisamos subir, junto com a sociedade, os degraus da consolidação do SUS para a garantia de
um país mais justo. A saúde nos pertence e dela não vamos nos separar.
MARCELO CASTRO, 65 anos, é ministro da Saúde. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Novembro de 2015.
A ética de Ali Babá (FREI BETTO)
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Módulo I
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O BRASIL assiste, estarrecido, a uma aula magna de sem-vergonhice, descaramento e falta de ética.
A lição descabida de corporativismo é digna dos 40 ladrões de Ali Babá. Em matéria de política, a
criminalidade resulta da soma de imunidade com impunidade.
A CPI da Petrobras gasta fortunas do contribuinte e termina com um relatório pífio, no qual o único
culpado é quem, por meio de delação premiada, colabora com a Justiça na identificação de criminosos.
Pretender impor uma lei que proíba a delação premiada é o mesmo que convocar a nação à omissão geral
frente ao crime. Se você souber que alguém rouba os cofres públicos, sonega tributos, compra
parlamentares, faça vista grossa, fique calado, associe-se ao criminoso pela via da omissão cúmplice.
Boa lição para as nossas crianças e jovens! Só falta suprimir das delegacias o boletim de ocorrência.
Ao ser assaltado ou furtado, cale-se, jamais delate o crime e o bandido. Há décadas se fala em ética na ou
da política e pouco se avança. Nem as provas inquestionáveis do crime são suficientes para ao menos
envergonhar parlamentares que, como o rei da parábola, estão nus, mas insistem que todos admirem seus
lindos trajes.
Uns, porque sonham com o golpe paraguaio de decretar o impeachment de Dilma. Outros, porque Ali
Babá sabe distribuir benesses aos 40 ladrões e agora os mantém com o rabo preso. Se o traírem, haverão
de pagar com a secura das fontes escusas de abastecimento de campanhas eleitorais. Por que a nação
não se mobiliza pela ética? Porque estamos, como diria Guimarães Rosa, na terceira margem do rio.
Saímos do longo período em que a ética era pautada por valores religiosos, consciência de pecado, culpa
diante de Deus. Quantos jovens estão, hoje, preocupados com pecado?
E ainda não atingimos a margem socrática da ética fundada na razão, alicerçada em princípios
kantianos e assegurada por instituições que sejam mais fortes que as virtudes humanas. Assim, o limbo
ético abre espaço à política do "toma lá, dá cá"; do corporativismo que coa mosquitos ao se tratar do
adversário e engole camelos quando se trata de defender sua "tchurma"; da omissão e do silêncio que
buscam encobrir a mentira, a malversação, o nepotismo e a corrupção. Na casa da mãe Joana, o debate
"ético" consiste em medir se o meu corrupto amealhou mais que o seu.
Haja Jesus batizando empresas de fachadas! Usa-se e abusa-se do Santo Nome em vão, já que isso
ilude os incautos e amealha votos para a seara dos lobos em pele de cordeiros. Se o Brasil não reagir a
tanto descaramento e cinismo, faltarão bananas para espelhar o baixo nível de nossa republiqueta.
CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO, 71, o Frei Betto, é assessor de movimentos sociais e escritor. É autor de "Paraíso
perdido "" Viagens aos Países Socialistas" (Rocco), entre outros livros. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Novembro de 2015.
Um basta ao assédio (CAMILA BRADALISE)
Mulheres rompem o silêncio e denunciam situações de abuso sexual, num movimento que
ultrapassa o limite das redes sociais
EM CINCO dias, foram 82 mil relatos curtos, surpreendentes e revoltantes. Motivadas pela campanha
“primeiro assédio”, criada por uma ONG em resposta a comentários abusivos sobre uma participante de 12
anos do reality culinário “Masterchef Junior”, da Band, usuárias do Twitter compartilharam suas histórias,
muitas delas pela primeira vez depois de décadas, entre os dias 21 e 25 de outubro. Mas o movimento que
tomou as redes sociais há duas semanas claramente não se limita a elas. Canais oficiais de denúncia,
como a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) e o serviço de SMS do Metrô de São Paulo,
registraram aumentos significativos nos atendimentos de 2014 para cá (leia no quadro ao lado).
Especialistas apontam ainda que há mais registros de casos de violência contra a mulher principalmente
porque as vítimas se sentem encorajadas para falar agora. A ligação entre a movimentação na internet e
as estatísticas se tornou evidente nos últimos dias: silenciar os abusos deixou de ser a primeira opção.
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“Há um aumento de políticas públicas para que as queixas possam ser feitas, desde o trabalho de
assistência social que acolhe as mulheres até mudanças na própria legislação, como no caso da Lei Maria
da Penha”, afirma a socióloga Jacqueline Pitanguy, membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher,
ligado ao Ministério da Justiça. Ana Gabriela Mendes Braga, professora de direito penal da Universidade
Estadual de São Paulo (Unesp), também acredita que a população feminina está mais consciente, apesar
de a legislação de amparo às vítimas não ter reduzido o número de casos. “Em se tratando de comunicar o
problema, está havendo um suporte maior.” Professora da Universidade de São Paulo (USP) e fundadora
do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero, Eva Blay considera que falar
publicamente e em conjunto também é fundamental para o que a ideia da naturalidade do assédio seja
quebrada. “Somos assediadas desde crianças e mal falamos sobre isso. Agora, quando uma mulher apoia
a outra, nos encorajamos a reclamar. ”
As três pessoas que aparecem nas fotos desta reportagem afirmam que foi justamente a comoção
coletiva, iniciada pela ONG Think Olga, que as fizeram falar publicamente sobre seus primeiros assédios.
A designer e ilustradora Bruna Carvalho, 31 anos, até então só havia contado à mãe, aos 7 anos, que um
homem em um carro se aproximou dela enquanto se masturbava. “Nunca mais falamos sobre isso”, diz. A
professora universitária Renata Gomes, 40 anos, relatou que, aos 12, um sujeito a seguiu também
enquanto se masturbava e que falou sobre isso pela primeira vez só 20 anos depois. Aos 15, um grupo de
homens em um utilitário se aproximou dela, a agarrou e a ofendeu. “Tenho esperança que, com a
campanha, muitas pessoas identifiquem um assédio que sofreram e nem se deram conta.” Já a estudante
Jennifer Tainara Ribeiro dos Santos, 17 anos, viveu a violência dentro de casa. “Tinha 6 anos, o primo do
meu pai mostrou o pênis e pediu para eu fazer sexo oral em troca de um doce.” Mas outra experiência de
abuso viria acontecer com Jennifer, como no caso de tantas outras brasileiras, anos depois. Há quatro
meses, foi estuprada por um homem que a fez descer de um ônibus no caminho para casa. “Minha
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situação psicológica foi se agravando, entrei em depressão e tentei suicídio”, diz. Dias depois, ao passar
mal, um médico lhe pediu um exame de gravidez, que deu positivo. Optou pelo aborto legal, válido em
casos de estupro. Conta que ainda hoje tem pesadelos e faz acompanhamento psiquiátrico.
Se nesses últimos dias percebe-se um avanço na luta contra a violência feminina, ainda há muitos
focos de retrocesso, inclusive na Câmara. Aprovado na quarta-feira 21 pela Comissão de Cidadania e
Justiça (CCJ), o projeto de lei 5069/13, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é visto como
um vergonhoso recuo ao exigir que a vítima faça um exame de corpo de delito para comprovar o abuso. “A
legislação que está em vigor hoje respeita os direitos humanos e a saúde pública. Mudar isso tornará o
caminho ainda mais difícil para a mulher, que terá vergonha e medo de ir a uma delegacia falar sobre a
violência que sofreu. É um passo para trás em relação ao que já foi garantido”, afirma Nadine Gasman,
representante da ONU Mulheres Brasil.
CAMILA BRADALISE é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista ISTO É, Novembro de 2015.
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Este livro é para o que nasce (JEAN WYLLYS)
Público aqui, no meu Blog, o prefácio generosamente escrito por Jean Wyllys para o meu livro
“Como Conversar Com Um Fascista” (ed. Record.) – Márcia Tiburi.
ALGUNS dizem que a história de um povo ou
nação tem um movimento pendular; outros dizem
que ela se move numa espiral, ora ascendente ora
descendente (confesso que eu prefiro esta segunda
alegoria). Qualquer que seja o movimento dessa
história, ideias que estiveram encarnadas em
pessoas e episódios que fizeram sofrer indivíduos
e/ou coletivos costumam retornar como fantasmas
ou assombrações desejando reencarnar. Este
retorno exige a evocação de poderosos espectros
que possam combater e espantar esses fantasmas,
como em Hamlet, de William Shakespeare.
A maioria da população brasileira está há
décadas alijada do direito a uma educação de
qualidade que lhe faça cidadã com capacidade de
pensamento crítico e de reconhecimento da
diversidade cultural e humana. A ampliação do
acesso ao sistema formal de educação – incluindo aí
o ensino superior –, sobretudo na era Lula, não
significou acesso a uma educação de qualidade.
Muitas “universidades” e faculdades, principalmente
privadas, têm diplomado analfabetos funcionais* por
estabelecerem com os alunos uma relação pautada
no direito do consumidor.
Mais de 70% dos brasileiros não leem livros. A
maioria se informa apenas por tevês e rádios, que,
pela própria dinâmica da comunicação de massa,
não aprofundam as questões de interesse público e
divulgam as informações de acordo com interesses
políticos e financeiros de seus concessionários ou
administradores. Ao mesmo tempo, e graças à inclusão via consumo de bens materiais garantida pelas
políticas sociais da assim chamada “Era Lula”, parte expressiva e crescente dessa maioria plugou-se na
internet – um dilúvio de informações falsas e verdadeiras nem sempre fáceis de distinguir para alguém
sem repertório cultural ou habilidade em interpretar texto – e se organizou em redes sociais digitais por
meio de novas tecnologias da comunicação e da informação, como os smartphones.
Ora, isso só poderia levar esse contingente a aderir aos discursos demagógicos e manipuladores que
interpelam preconceitos e sensos comuns históricos e propõem soluções fáceis, mas mentirosas e/ou
autoritárias para as questões complexas que nos envolvem diariamente, como a criminalidade e a
violência urbanas, as desigualdades social e de gênero, as tensões raciais, a diversidade de orientação
sexual e identidade de gênero, a intolerância religiosa, a mobilidade urbana, os conflitos agrários e os
desastres ambientais. Essa situação acrescida da lógica egoísta – “farinha pouca, meu pirão primeiro” –
que as crises econômicas e/ou financeiras como a que estamos vivendo costumam trazer são provas
irrefutáveis do retorno e reencarnação de um fantasma perigoso chamado fascismo.
Diante desse mal, há que se evocar espectros que possam exorcizá-lo. A filosofia e as ciências
humanas não podem, portanto, abrir mão da responsabilidade de evocarem a razão iluminista, o
conhecimento científico, a honestidade intelectual, as liberdades civis e a democracia. É o que faz a
filósofa Márcia Tiburi neste Como conversar com um fascista? – Reflexões sobre o cotidiano autoritário
brasileiro, num texto que impressiona pela combinação da profundidade e sofisticação intelectuais com
uma enorme generosidade com o leitor que não compartilha de seu repertório cultural. Portanto, este livro
é para o que nasce!
Preocupada com o fascismo que vem afetando a política brasileira nos últimos cinco anos e ciente de
que este costuma prescrever a eliminação simbólica e/ou física dos “inimigos” que constrói como forma de
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se “justificar”, Márcia Tiburi propõe o diálogo como forma de resistência à banalização do mal a que
assistimos atônitos, indiferentes ou indignados, ou para a qual damos nossa contribuição, seja em forma
de postagens ou comentários no Facebook, seja em ações concretas contra o outro (como, por exemplo,
chutar e insultar dois garotos negros rendidos pela polícia apenas porque envolvidos numa briga de
colegiais que assustou frequentadores de um shopping de luxo).
A filósofa judia Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” quando analisou o julgamento
de Eichmann, um dos nazista levados ao tribunal. Com esta expressão, a filósofa se referia ao mal que
não é enraizado (que não é “radical”, para usar a expressão de Kant) nem praticado como atitude
deliberadamente maligna. A banalização do mal é feita pelo ser humano comum que não se responsabiliza
pelo que faz de ruim ou acha que o que faz de ruim não tem consequências para os outros; não reflete,
não pensa. Arendt se referiu a Eichmann como uma pessoa tomada pelo “vazio do pensamento”; como um
imbecil que não pensava; que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência – e que, por tudo
isso, banalizava o mal que praticava. A banalidade do mal pode, portanto, ser feita por qualquer pessoa
carente de pensamento crítico e, por isso, insensível à dor do outro e às consequências de seus atos.
O fascista é aquele que banaliza o mal. Para Márcia Tiburi, ele é burro na medida em que não acessa
o campo do outro porque lhe falta conhecimento e imaginação para tal. A burrice é o cancelamento do
processo de conhecimento e de imaginação. Nesse sentido – e para usar as palavras da própria filósofa –
“o fascismo é a máscara mortuária do conhecimento”. Outra aspecto desse mal apontado por Tiburi é o
analfabetismo político. O dramaturgo Bertolt Brecht afirmou, num texto memorável, que “o pior analfabeto
é o analfabeto político”. Concordo com esta afirmação desde o momento em que a conheci, já consciente
de que eu era um “animal político”, para citar a expressão de Aristóteles. Porém, porque os tempos eram
outros (e, naqueles tempos, o dramaturgo alemão sequer sonhava com as transformações sociais,
culturais e tecnológicas de que somos testemunhas, promotores e produtos),
Jack e Dino Chapman
Brecht definia o analfabeto político como aquele que “não ouve, não fala, nem participa dos
acontecimentos políticos”; aquele que “é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a
política”. Dessa definição brechtiana do analfabeto político, a única característica que sobrevive aos dias
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atuais é o proclamado e contraditório ódio à política, analisado por Tiburi com acuidade e sem
condescendências nas páginas seguintes.
“O que leva um indivíduo a reunir-se em um coletivo sem pensar com cuidado crítico nas causas e
consequências dos seus atos configura aquilo que chamamos de analfabetismo político. Mas, no caso dos
personagens jovens que surgem atualmente, líderes do fascistoide Movimento Brasil Livre, está em jogo a
forma mais perversa de analfabetismo político. Aquele de quem foi manipulado desde cedo e não teve
chance de pensar de modo autocrítico porque sua formação foi, no sentido político, ‘deformação’, a
interrupção da capacidade de pensar, de refletir e de discernir”, argumenta.
Mas, sem discordar de Tiburi e apenas dando minha modesta contribuição para a sua excelente e
necessária reflexão, digo que, por causa das transformações sociais, culturais e tecnológicas que
experimentamos, o “analfabeto político” dos dias atuais é bem diferente daquele dos tempos de Brecht. O
analfabeto político da atualidade fala e participa dos acontecimentos político mesmo renunciando à tarefa
de se informar melhor sobre eles ou partindo de preconceitos, boatos ou mentiras descaradas sobre tais
acontecimentos.
O analfabeto político da contemporaneidade – ao contrário daquele dos tempos de Brecht – participa
dos acontecimentos políticos “opinando” sobre eles nas redes sociais digitais sem qualquer cuidado crítico.
Eu poderia recorrer a muitos exemplos do atual comportamento do “analfabeto político”, mas, para
encurtar este prefácio, já que o que interessa é mesmo o texto de Márcia Tiburi, vou me restringir a uma
das muitas estupidezes escritas em minha página no Facebook por ocasião da aprovação do Marco Civil
da Internet: “O marco servil [sic] vai acabar [sic] com o facebook e traze [sic] o comunismo vai manda [sic]
mata [sic] todo mundo começando por você seu viado filho da puta [sic]”.
Este comentário é um exemplo do analfabetismo político contemporâneo, mas é também o sintoma de
uma ameaça à democracia e à vida com pensamento: a maioria dos “analfabetos políticos” que
vociferaram nas redes sociais digitais, principalmente a maioria daqueles que fazem menção ao
“comunismo” ou ao “socialismo”, deixaram claro quais as fontes de suas afirmações acerca do
acontecimento em questão: os colunistas da revista marrom semanal; o senil reacionário que se diz
“filósofo”; e a família de parlamentares (deputado federal, deputado estadual e vereador) que parasita o
poder público para difamar adversários e estimular o fascismo. Nesse sentido e apesar da virulência e
arrogância com que afirma sua ignorância, o “analfabeto político” é uma vítima daquele que Brecht
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considera “o pior de todos os bandidos”: o político vigarista, desonesto intelectualmente, corrupto e lacaio
das grandes corporações.
Portanto, é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha
acesso a educação de qualidade e às artes, em especial às artes vivas, com destaque para o teatro. É
preciso insistir no diálogo com o fascista. Mas isso é possível? Como conversar com um fascista? Leia
este livro e você terá as repostas.
* De acordo com pesquisa realizada pelos ministérios da Educação e da Cultura para a construção do
Plano Nacional do Livro e da Leitura, 38% dos estudantes universitários brasileiros foram avaliados em
2011 apenas como alfabetizados funcionais (níveis rudimentar e básico); este número atingia 23% dos
universitários em 2001. O número de universitários plenamente alfabetizados, por outro lado, declinou de
76% em 2001 para 62% em 2011. Certamente a ausência da competência plena de leitura prejudica o
desempenho dos estudantes brasileiros em todas as áreas de conhecimento, indicando a necessidade
clara da intensificação de medidas que priorizem o acesso à leitura plena em todos os níveis como uma
das formas mais consistentes de apoiar a melhoria da qualidade da educação em nosso País.
JEAN WYLLYS é Jornalista, escritor, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, professor de Teoria da
Comunicação da Universidade Veiga da Almeida e deputado federal pelo Psol- RJ e Deputado Federal pelo PSOL do Rio de
Janeiro. Este texto é o prefácio do livro recente da filósofa Márcia Tiburi “Como Conversar Com Um Fascista”, e foi divulgado do
blog da autora. Revista CULT, Novembro de 2015.
Jovens precisam dormir mais (MICHELE MULLER)
Atenta à saúde dos estudantes, a Associação Americana de Pediatria passou a recomendar que
escolas iniciem somente após as 8h30min, como possível prevenção ao risco de depressão na
adolescência.
NOVO estudo feito por uma equipe de pesquisadores da Universidade do Texas sugere que a
privação do sono pode estar entre os principais fatores de risco de depressão entre adolescentes. De
acordo com a pesquisa, publicada na edição de julho do Jornal Sleep, da Sociedade de Pesquisa do Sono,
os jovens que dormem seis horas ou menos têm três vezes mais chances de ter depressão que aqueles
que garantem o mínimo de nove horas diárias de sono. A pesquisa, liderada pelo médico e professor de
Ciências Comportamentais Robert Roberts, investigou os hábitos de 4.175 adolescentes durante um mês
e acompanhou seu comportamento quatro anos depois. Esse foi o primeiro estudo a mostrar que existe
um efeito recíproco resultante da relação entre a quantidade de horas dormidas e a depressão.
Se a questão é tão significativa quanto sugerem os pesquisadores, a incidência de depressão deve
ser inversamente proporcional ao número de horas que se dorme. E tudo indica que isso está
acontecendo. De acordo com pesquisa realizada por uma equipe da Universidade Columbia e publicada
em 2013 no Jornal Oficial da Sociedade Americana de Pediatria, o tempo de sono entre adolescentes foi
reduzido no período entre 1991 e 2012. A análise de dados de 270 mil jovens americanos mostrou que o
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grupo que afirma dormir menos de sete horas aumentou de forma contínua nesse período de 20 anos. A
maior diferença foi observada entre jovens de 15 anos: em 2012, 37% reportaram dormir menos de sete
horas por noite, contra 28% em 1991.
Com isso é possível concluir que mais de um terço dos adolescentes dorme no mínimo duas horas
menos que o recomendado para a idade. No Brasil, a realidade não parece muito diferente. No início
desse ano, o Instituto de Pesquisa e Orientação da Mente apontou que 88% dos 1.830 entrevistados não
consideram seu sono satisfatório. Tanto os brasileiros quanto os americanos concluíram que os aparelhos
eletrônicos estão entre os grandes vilões do sono. Os pesquisadores do Texas frisaram que o uso de
mídias sociais e o aumento da demanda de estudos e da quantidade de atividades extracurriculares
também podem contribuir para a queda na quantidade de horas dormidas.
Atenta à necessidade de garantir as nove ou mais horas de sono entre adolescentes, a Sociedade
Americana de Pediatria publicou um novo estatuto, no ano passado, recomendando que as escolas
iniciem as aulas sempre depois das 8h30min. De acordo com a entidade, dessa forma os horários
acadêmicos são alinhados ao ritmo circadiano do sono dos adolescentes. Portanto, não apenas
compromissos e eletrônicos mantêm os adolescentes acordados: seu ciclo biológico é diferente do de
crianças pequenas, sendo muito mais difícil, nessa fase, dormir e acordar cedo.
No entanto, o sistema escolar brasileiro está longe de reconhecer a importância da causa que os
pediatras americanos defendem. Aqui, crianças pequenas são privadas do importante soninho da tarde,
enquanto pré-adolescentes são arrancados da cama geralmente por volta das seis da manhã. Vão à
escola sonolentos e no período em que deveriam estar estudando ficam livres para passear em shoppings
e brincar no celular. Se nosso sistema educacional considerasse a saúde e o ritmo biológico dos
estudantes como fatores que superam em importância a praticidade que os horários atuais representam
para muitos pais e escolas, iria garantir mais disposição física e mental dos adolescentes, reduzindo as
chances de depressão. Mais que isso: poderia provocar uma melhora no rendimento acadêmico dos
alunos.
Hoje sabemos que uma boa noite de sono é fundamental para a consolidação da memória e, como
consequência, para o sucesso na aprendizagem. As habilidades motoras tendem a se aprimorar em até 20%
em uma única noite de sono
Hoje sabemos que uma boa noite de sono é fundamental para a consolidação da memória e, como
consequência, para o sucesso na aprendizagem. A cada ano surgem novas pesquisas reafirmando a
importância do sono para o bom desenvolvimento cognitivo. Recentemente, neurocientistas da
Universidade de Nova York (NYU) comprovaram, em estudos com ratos, que durante o sono profundo, ou
ciclo de ondas lentas (slow wage sleep), as habilidades aprendidas durante o dia são “ensaiadas”
repetidamente. Essa neurorrepresentação das memórias em replay é fundamental para o fortalecimento
das conexões sinápticas e, assim, para a consolidação da aprendizagem. Existem muitas evidências de
que o sono é vital para a formação de vários tipos de memória. De acordo com Penelope Lewis, autora de
The Secret World of Sleep (O Mundo Secreto do Sono), habilidades motoras tendem a se aprimorar em
até 20% em uma única noite de sono.
Assim como é importante lembrar, é necessário esquecer. Não queremos saturar o cérebro com
informações sem importância e é enquanto dormimos, mais especificamente no estágio de ondas lentas,
que ocorre essa “limpeza” de dados processados durante o dia. Ao enfraquecer as conexões não
significativas, o sono mantém a capacidade de armazenamento do cérebro, fundamental para as funções
cognitivas.
Enquanto o sistema educacional brasileiro não considera uma adaptação de horários, o que podemos
fazer é evitar, à noite, os estímulos que comprovadamente afastam os adolescentes da cama. Somente
uma reorganização da rotina familiar pode garantir o mínimo de sono necessário para um melhor
desenvolvimento cognitivo e social nessa fase em que a saúde mental é tão frequentemente abalada.
MICHELE MULLER é jornalista, esporádica esta publicação, com especialização em Neurociência Cognitiva e autora do blog:
http://neurocienciasesaude.blogspot.com.br. Revista PSIQUE, Novembro de 2015.
Minhas experiências com a verdade (LÍLIAN GRAZIANO)
Em um mundo onde a palavra parece perder a importância, o exercício da autenticidade pode ser
uma vantagem competitiva
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TODA PESSOA que escreve (e sobretudo lê) certamente já
passou pela experiência de se deparar com um texto, às vezes
apenas uma única frase, e lamentar-se de não ter sido sua autora.
Isso aconteceu comigo inúmeras vezes, mas desta vez foi um título
que me arrebatou: Minhas Experiências com a Verdade. Nada mais
nada menos que a biografia de Gandhi. Pudesse eu escrever uma
autobiografia, não haveria título melhor. De fato, “Minhas
experiências com a verdade” poderia ser o título da autobiografia de
qualquer pessoa que possui a autenticidade como uma de suas
forças pessoais.
Considerada na Antiguidade grega como uma característica
sagrada, a autenticidade era o principal critério a ser levado em conta na formação do homem-excelência
e, durante certo período, também foi condição essencial na outorga do título de cidadão na sociedade
helênica. Nessa época, todo jovem que passasse pelo sistema educacional arcaico da Paideia deveria
fazer o solene juramento a Eros: “Nada dirás ou farás que não seja em nome de Eros”. Mas qual seria a
relação de tal juramento com a autenticidade? Para respondermos a essa pergunta precisamos lembrar
que para o grego antigo qualquer coisa seria considerada sagrada do ponto de vista de Eros (ou seja, do
ponto de vista erótico) se revelasse a verdade do ser. Vale dizer também que, nesse sentido, o conceito
arcaico de prostituição em muito se diferia do seu significado atual, na medida em que correspondia ao ato
de se fazer qualquer coisa que não revelasse a verdade do ser, ou seja, em termos mais heidegerianos,
qualquer coisa que ocultasse ou impedisse a manifestação da exata correspondência entre essência e
aparência. Sim, porque nessa época (quem diria?) a autenticidade era erótica.
Quando Atenas passou a oferecer o título de cidadão a qualquer sujeito que lutasse em seu nome e
voltasse vivo, deu-se o início do fim de toda uma cultura que primava pela excelência do caráter. Mas
ainda assim a deterioração da autenticidade na cultura ocidental se deu lentamente. Ainda no século XIX,
propriedades eram negociadas no que se costumava chamar de “fio do bigode”, ou seja, na simples
palavra dos envolvidos.
São as palavras líquidas que tornam imperativo que qualquer contato no escritório seja formalizado por um
e-mail. Estamos perdendo a capacidade de confiar nas pessoas, deixando de ouvi-las com atenção
Concordo com o sociólogo Zygmunt Bauman, que afirma vivermos hoje os “tempos líquidos”, ou seja,
uma sociedade do descartável na qual nada é feito para durar. Contudo, creio que mais grave do que o
tempo líquido de Bauman (ou talvez até mesmo como consequência dele) seja o que chamo de palavras
líquidas. Palavras esvaziadas de sentido, esvaziadas de verdade, palavras que mais escondem do que
revelam, palavras que o vento leva, como afirma o dito popular.
São as palavras líquidas que tornam imperativo que qualquer contato no escritório seja formalizado
por um e-mail. Estamos perdendo a capacidade de confiar nas pessoas, deixando de ouvi-las com
atenção porque, afinal de contas, tudo será registrado por escrito para consulta posterior. E porque tudo
será registrado, apenas o registrado se torna real. E, assim, a palavra se liquefaz, tornando-se dependente
da escrita e dos contratos que jazem num mar de firmas reconhecidas.
É nesse contexto que os autênticos se sobressaem. Adoradores da antiga arte de fazer valer a sua
palavra, mostram- se como são, vivenciam seus valores e fazem o que dizem tanto quanto o que assinam.
Eis uma excelente vantagem competitiva! Mas não nos deixemos levar por exageros. Talvez a primeira
lição que uma pessoa autêntica deva aprender seja a de diferenciar sinceridade de “sincericídio”. Em
minha autobiografia imaginária esse certamente seria um longo
LÍLIAN GRAZIANO é psicóloga e doutora em Psicologia pela USP, com curso de extensão em Virtudes e Forças Pessoais pelo
VIA Institute on Character, EUA. É professora universitária e diretora do Instituto de Psicologia Positiva e Comportamento, onde
oferece atendimento clínico, consultoria empresarial e cursos na área. [email protected]ítulo. Revista
PSIQUE, Novembro de 2015.
Na terra de Vlad (LUIZ FELIPE PONDÉ)
OS JOVENS romenos sabem que o socialismo é uma mentira, coisa que os nossos não sabem. Vou
embora para a Romênia. Que dá vontade, dá. O país é lindo, os bárbaros da indústria do turismo ainda
não chegaram lá (é assim que o filósofo romeno Emil Cioran, radicado em Paris, referia-se ao turismo), a
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comida é maravilhosa e as mulheres, um encanto. Carregam aquele sorriso doce e generoso que a
maioria esmagadora de nossas mulheres perdeu, porque o rosto foi tragado pelo "rancor biopolítico".
A terra de Vlad Tepes (pronuncia-se "tzepesh" e significa "empalador") tem o gosto de terras ainda
não "civilizadas". Por exemplo: lá, nossa paranoia com tabaco é quase inexistente. Para um apreciador de
charutos cubanos como eu, é um paraíso poder fumar em paz, tomando um aperitivo à mesa. Aliás, um
parêntese. Pousando no Brasil, tomo conhecimento da mais nova moda ridícula em saúde: bacon e
salame causam câncer? Daqui a pouco algum prefeito autoritário vai nos proibir de comer bacon e salame,
e vão espancar nas ruas pessoas com bacon e salame nas mãos.
O grande Chesterton, intelectual inglês do começo do século 20, bem tinha razão quando dizia que
parar de crer em Deus podia deixar as pessoas meio idiotas, porque iriam passar a crer em qualquer
bobagem como história, ciência, natureza e política. A capacidade contemporânea de "crendices
científicas" ultrapassa de longe a crença muito mais saudável em "las brujas". Minha avó, uma das
primeiras "suffragettes" do Brasil (protocolou seu primeiro pedido de direito ao voto feminino em 1927),
sábia e discreta como as avós "antigas" eram, dizia que boato causava câncer. Sei que as chatinhas de
plantão devem estar chocadas com a ideia de que corre sangue nobre (o sangue de uma das primeiras
suffragettes do Brasil) em minhas veias. Mas a vida é mesmo cheia de surpresas, não? Só espíritos
grosseiros acham que "entendem" o mundo.
Vlad, que viveu no século 15, é um herói nacional romeno, por isso, apesar de os romenos ganharem
dólares com o Conde Drácula, criado por Bram Stoker no final do século 19, eles odeiam o que fizeram
com seu "empalador" de turcos e bandidos comuns. Na história da Romênia, Vlad é conhecido pela sua
crueldade na resistência às invasões turcas otomanas.
Para muitos, ele deveria ser visto como um defensor medieval da cristandade. O título "Drácula", dado
por Bram Stoker, tem raiz na sua história verdadeira: seu pai fora membro de uma ordem de místicos
guerreiros cujo símbolo era um dragão ("drak" em romeno). Seu filho Vlad, então, recebeu o título de "filho
do dragão", Drácula. Interessante observar que a palavra "drak" em romeno evoluiu ao longo dos anos e
agora significa "satanás". Bram Stoker não estava de todo enganado...
Os romenos são mesmo um povo místico. A crença nos "strigoi" (o vampiro sendo um deles), uma
espécie de alma penada, produz um sentimento de que o mundo é habitado por forças invisíveis,
passionais e inteligentes, sempre meio incontroláveis. Cioran dizia que seu povo era fatalista, corajoso e
cético para com as "invenções modernas". O senso de humor romeno é marcante. Você pode, por
exemplo, topar com fotos enormes de mulheres lindas em banheiros masculinos em meio aos Cárpatos.
Detalhe delicado que lembra aos homens a beleza da vida mesmo em momentos improváveis.
Mas falemos de coisas mais "sérias" (não na minha opinião). Outra coisa que encanta nos romenos
(em particular nos jovens) é sua saúde mental: sabem que o socialismo é coisa de mentiroso, corrupto e
autoritário, coisa que nossos jovens, coitados, submetidos a tortura mental já no ensino médio e no Enem,
ainda não descobriram.
Às vezes penso que teria sido melhor se os falsos guerrilheiros da democracia da "luta armada"
durante a ditadura tivessem vencido (a "luta armada" nunca foi uma luta pela liberdade, mas sim uma luta
por outra forma de ditadura, a soviética). Se nossos comunistas tivessem vencido, teríamos virado uma
ditadura como Cuba, mas, hoje, talvez, estivéssemos curados, como os jovens romenos estão. Você
consegue imaginar uma aula de história em que se ensine história, e não alguma bobagem marxista?
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Novembro de 2015.
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Maturidade em falta (ROSELY SAYÃO)
O ENEM passou, os vestibulares passarão e muitos pais irão respirar aliviados. Muitos deles mal
sabem que um caminho bem mais tortuoso que o anterior poderá começar. A título de ilustração, vamos
ver o exemplo de Cláudia, que sempre foi uma excelente aluna: estudiosa, comprometida, nunca deu
trabalho aos pais. Almejava cursar uma graduação em uma universidade concorrida e se empenhou muito
para tanto.
Entrou de primeira. No primeiro mês de aulas ficou muito animada, mas logo em seguida passou a
duvidar da escolha feita. Antes de finalizar o primeiro semestre, desistiu do curso e voltou a fazer cursinho.
Hoje, já está em seu terceiro curso universitário e continua insatisfeita. Seus pais não sabem o que fazer.
Paulo nunca se comprometeu muito com os estudos. Levou a escola sempre no limite: repetiu o primeiro
ano do ensino médio e só terminou essa etapa escolar graças ao empenho de seus pais na contratação
de professores particulares. Não queria fazer faculdade. Seus pais insistiram, e prestou um vestibular só
para ver como era. Passou. Dizia aos pais que estava cursando, mas nem aparecia na universidade.
Hoje, passa o tempo convivendo com os amigos e indo a baladas. Seus pais se sentem reféns da
situação. Esses dois jovens, que representam muitos outros, têm em comum uma família em boa situação
socioeconômica e pais que, apesar de não concordarem com a vida que os filhos levam, não encontraram
ainda uma maneira de agir principalmente porque os filhos se dizem adultos e rejeitam a interferência dos
pais. O que é ser adulto, afinal? Ter mais de 18, 21 anos? Não! Ser adulto é ter maturidade, fazer as
próprias escolhas na vida e arcar com elas. Esses jovens citados hesitam ao fazer suas escolhas e não
arcam com a própria vida: seus pais é que fazem isso. São adolescentes, independentemente da idade.
Permanecem sob a tutela econômica dos pais, que não têm coragem de retirá-la. Jovens que levam
esse tipo de vida precisam ainda de seus pais: estes, precisam dar um empurrão no filho para precipitá-lo
na maturidade. E, para tanto, eles precisam sentir necessidade disso. Você já se deu conta, caro leitor, de
que criamos os filhos hoje sempre a evitar que eles sintam necessidades? Estamos quase sempre a nos
antecipar às necessidades deles: antes que eles queiram, queremos por eles e damos a eles.
Isso faz com que eles tenham uma visão bem equivocada da vida: acreditam que não precisam
batalhar para viver, que outros farão isso por eles. E esses outros são seus pais, não é verdade? Uma
garota de 22 anos, que vive uma situação semelhante à dos exemplos citados anteriormente, foi
interpelada pelos pais sobre como viveria quando eles não estivessem mais presentes. A resposta dela
assustou seus pais: "Vou viver da herança que vocês me deixarem".
A situação é mais preocupante do que muitos pais imaginam. Muitos jovens vivem às custas de seus
pais. Já outros vivem por seus pais - há poucos dias, um deles me disse: "Eu preciso ir bem no Enem, não
posso decepcionar meus pais". Perguntei se ele queria, tanto quanto seus pais, fazer a faculdade, e a
resposta que ele deu foi: "Não sei, nunca parei para pensar nisso." Precisamos ajudá-los a crescer, não
precisamos?
ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no
ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Outubro de 2015.
A felicidade é deprimente (CONTARDO CALLIGARIS)
É POSSÍVEL que a depressão seja o mal da nossa época. Ela já foi imensamente popular no
passado. Por exemplo, os românticos (sobretudo os artistas) achavam que ser langoroso e triste talvez
fosse o único jeito autêntico de ser fascinante e profundo. Em 1859, Baudelaire escrevia à sua mãe: "O
que sinto é um imenso desânimo, uma sensação de isolamento insuportável, o medo constante de um
vago infortúnio, uma desconfiança completa de minhas próprias forças, uma ausência total de desejos,
uma impossibilidade de encontrar uma diversão qualquer".
Agora, Baudelaire poderia procurar alívio nas drogas, mas ele e seus contemporâneos não teriam
trocado sua infelicidade pelo sorriso estereotipado das nossas fotos das férias. Para um romântico, a
felicidade contente era quase sempre a marca de um espírito simplório e desinteressante. Enfim, diferente
dos românticos, o deprimido contemporâneo não curte sua fossa: ao contrário, ele quer se desfazer desse
afeto, que não lhe parece ter um grande charme.
Alguns suspeitam que a depressão contemporânea seja uma invenção. Uma vez achado um remédio
possível, sempre é preciso propagandear o transtorno que o tal remédio poderia curar. Nessa ótica, a
depressão é um mercado maravilhoso, pois o transtorno é fácil de ser confundido com estados de espírito
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muito comuns: a simples tristeza, o sentimento de inadequação, um luto que dura um pouco mais do que
desejaríamos etc. De qualquer forma, o extraordinário sucesso da depressão e dos antidepressivos não
existiria se nossa cultura não atribuísse um valor especial à felicidade (da qual a depressão nos privaria).
Ou seja, ficamos tristes de estarmos tristes porque gostaríamos muito de sermos felizes.
Coexistem, na nossa época, dois fenômenos aparentemente contraditórios: a depressão e a
valorização da felicidade. Será que nossa tristeza, então, não poderia ser um efeito do valor excessivo que
atribuímos à felicidade? Quem sabe a tristeza contemporânea seja uma espécie de decepção"¦ Em agosto
de 2011, I. B. Mauss e outros publicaram em "Emotion" uma pesquisa com o título: "Será que a procura da
felicidade faz as pessoas infelizes?" (migre.me/rWgNC). Eles recorreram a uma medida da valorização da
felicidade pelos indivíduos e, em pesquisas com duas amostras de mulheres (uma que valorizava mais a
felicidade e a outra, menos), comprovaram o óbvio: sobretudo em situações positivas (por exemplo, diante
de boas notícias), as pessoas que perseguem a felicidade ficam sempre particularmente decepcionadas.
Numa das pesquisas, eles induziram a valorização da felicidade: manipularam uma das amostras
propondo a leitura de um falso artigo de jornal anunciando que a felicidade cura o câncer, faz viver mais
tempo, aumenta a potência sexual –em suma, todas as trivialidades nunca comprovadas, mas que
povoam as páginas da grande imprensa. Depois disso, diante de boas notícias, as mulheres que tinham
lido o artigo ficaram bem menos felizes do que as que não tinham sido induzidas a valorizar especialmente
a felicidade. Conclusão: na população em geral, a valorização cultural da felicidade pode ser
contraprodutiva.
Mais recentemente, duas pesquisas foram muito além e mostraram que a valorização da felicidade
pode ser causa de verdadeiros transtornos. A primeira, de B. Q. Ford e outros, no "Journal of Social and
Clinical Psychology", descobriu que a procura desesperada da felicidade constitui um fator de risco para
sintomas e diagnósticos de depressão (migre.me/rWhcK). A pesquisa conclui que o valor cultural atribuído
à felicidade leva a consequências sérias em saúde mental. Uma grande valorização da felicidade, no
contexto do Ocidente, é um componente da depressão. E uma intervenção cognitiva que diminua o valor
atribuído à felicidade poderia melhorar o desfecho de uma depressão. Ou seja, o que escrevo
regularmente contra o ideal de felicidade talvez melhore o humor de alguém. Fico feliz.
Enfim, em 2015, uma pesquisa de Ford, Mauss e Gruber, em "Emotion" (migre.me/rWhp4), mostra
que a valorização da felicidade é relacionada ao risco e ao diagnóstico de transtorno bipolar. Conclusão:
cuidado, nossos ideais emocionais (tipo: o ideal de sermos felizes) têm uma função crítica na nossa saúde
mental. Como escreveu o grande John Stuart Mill, em 1873: Só são felizes os que perseguem outra coisa
do que sua própria felicidade.
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Outubro de 2015.
Os suplícios da carne (DRAUZIO VARELLA)
A CARNE vermelha é o suspeito habitual. Volta e meia surgem inquéritos populacionais que a
acusam de provocar ataques cardíacos, derrames cerebrais, câncer e outros achaques menos populares.
Com o tempo, a análise crítica desses estudos contesta essas acusações, e o assunto sobrevive apenas
no lixo que se amontoa na internet. Ao constatar que os cientistas se contradizem, a população não sabe o
que pensar.
Um relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde), divulgado nesta semana, joga mais lenha
nessa fogueira. Depois de avaliar mais de 800 trabalhos publicados, um painel de 22 especialistas da Iarc
(Agência Internacional de Pesquisas em Câncer) ouvidos pela OMS concluiu que o consumo de carnes
processadas – salsicha, linguiça, bacon, salame, presunto, mortadela – está associado a um pequeno
aumento no risco de câncer de cólon e reto. E, em menor grau ainda, ao risco de câncer de próstata e de
pâncreas.
Como consequência, a carne processada foi colocada no Grupo 1, categoria que reúne fatores em
relação aos quais há "evidências suficientes" de que podem causar câncer. Pertencem a esse grupo
tabaco, asbesto, álcool, radiações solares e poluição. Quanto à carne vermelha –caracterizada como a
musculatura de bois, carneiros, porcos, cabritos e outros–, o painel foi bem mais cauteloso: trata-se de um
alimento "provavelmente" carcinogênico, conclusão baseada em "evidências limitadas". A agência afirmou
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categoricamente que as carnes processadas, o cigarro, o álcool e os demais componentes do Grupo 1 não
são farinha do mesmo saco: "Isso NÃO quer dizer que esses fatores de risco sejam igualmente perigosos".
Lógico que não são. O cigarro aumenta 20 vezes o risco de câncer de pulmão e causa 1 milhão de
mortes anuais por câncer no mundo. Ao consumo excessivo de álcool são atribuídas 600 mil mortes por
ano; aos efeitos da poluição 200 mil. E ao consumo de carnes processadas? Segundo o relatório, o risco
aumenta 18% para cada 50 gramas ingeridas diariamente. Segundo as estimativas mais recentes do
Global Burden of Disease Project, dietas ricas em carnes processadas seriam responsáveis por 34 mil
mortes anuais por câncer, entre os 7 bilhões de habitantes do planeta.
Veja o caso dos Estados Unidos, país com uma das maiores incidências de câncer de cólon e reto e
taxas mais elevadas de consumo per capita de carnes processadas. A probabilidade de um americano
desenvolver esse tipo de câncer no decorrer da vida é estimada em 5%. Se ingerir 50 gramas de carne
processada todos os dias, o aumento de 18% faria o risco crescer para 5,9%. Se comer 100 gramas
diárias, acrescentará mais 18% aos 5,9%, ou seja, passará a correr risco de 6,9%.
Submeter carne a altas temperaturas, ao contato direto com as chamas, com o calor das chapas e do
óleo fervente ou à defumação facilita a formação de certas aminas e hidrocarbonetos aromáticos
reconhecidamente carcinogênicos há muitos anos. A classificação da Iarc se refere apenas à qualidade
dos dados acumulados, não à magnitude do risco. Em outras palavras, parece haver evidências sólidas de
que dietas ricas em carnes processadas estejam associadas a um pequeno aumento da probabilidade de
desenvolver câncer de cólon e reto, mas calcular o risco de cada um de nós é impossível.
Digo parece, porque não existe consenso entre os epidemiologistas. Não houve unanimidade sequer
entre os 22 especialistas do painel da Iarc: sete deles se abstiveram de votar a favor das conclusões por
não estarem convencidos da qualidade das evidências apresentadas ou por não concordarem com elas. É
possível que o consumo exagerado de carne seja um dos múltiplos fatores para explicar a prevalência de
câncer de intestino nos Estados Unidos, na comunidade europeia e na Austrália, mas o efeito é pequeno.
Na Inglaterra, por exemplo, não há evidências concretas de que os vegetarianos tenham risco mais baixo
desse tipo de câncer.
E você, leitor? Se quiser reduzir o risco de câncer e de outras doenças, não fume de jeito nenhum,
beba pouco, faça exercícios, não engorde, coma quatro ou cinco porções de frutas e vegetais todos dias e
não fuja dos prazeres da carne, sem exageros.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Outubro de 2015.
“O progresso é impossível sem mudança. Aqueles que não conseguem mudar as suas
mentes não conseguem mudar nada.”
George BERNARD SHAW – Irlanda [1856 / 1950] – Sociólogo, Escritor, Dramaturgo e Crítico
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Tirinhas acessadas no dia 06/02/2012, no site www.malvados.com.br
1. O TEXTO DISSERTATIVO
Dissertação é o gênero de produção através do qual expomos um ponto de vista crítico, por meio de
argumentações que o comprovem, a partir da análise de um determinado assunto.
Os elementos básicos para concepção de um texto dissertativo são:
Tema: o assunto sobre o qual se escreve.
Ponto de vista: a posição que se assume diante do tema.
Argumentação: a fundamentação do posicionamento.
À defesa do ponto de vista, à organização dos motivos que o justificam, à exposição dos fundamentos em que uma
posição está baseada, chamamos de argumentação. Defender uma opinião com argumentos coerentes e precisos é o
aspecto mais importante do texto dissertativo. Além da argumentação articulada, a dissertação deve apresentar também
uma linguagem clara e uma estruturação lógica, com suas respectivas divisões internas: introdução, desenvolvimentos e
conclusão.
1.1.1. Planejamento de um texto dissertativo – parte I
Para se elaborar uma dissertação de vestibular, o aluno deve, antes de começar a escrever, planejar
cuidadosamente o texto. O planejamento da dissertação deve seguir rigorosamente os seguintes
aspectos:
1) Ler toda proposta (isso inclui todas as instruções, textos de apoio e proposta de redação) e marcar
informações significativas para produção do texto;
2) Interpretar o tema denotativamente (definir o sentido do tema, ou seja, alcançar com inteligência a
intenção do autor, partindo das palavras-chave, elaborando perguntas relacionadas ao tema) ou
conotativamente (compreender o significado das palavras usadas em sentido figurado);
3) Delimitar a ideia apresentada pelo tema: perceber, exatamente, o que está sendo pedido com o tema
de redação.
4) 4. Estabelecer um esquema ou estratégia de abordagem da situação - decidir os passos e caminhos
a serem percorridos.
5) Formular a resposta na linguagem verbal ou simbólica adequada à situação, atentando, para o
vocabulário e terminologia técnica apropriada.
O tipo de resposta mais adequada, portanto, deve ser construída a partir de uma estrutura bem
“amarrada”, ou seja, o parágrafo dissertativo.
1.1.2. Planejamento de um texto dissertativo – parte II
Após este primeiro contato com a proposta, o redator deve partir para o momento crucial: o processo
de produção.
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Este passo, numa lógica de planejamento mais sofisticada, têm três partes: a identificação, a investigação
e a organização.
1. Identificação: é o momento em que se identifica exatamente o que a proposta pede ao redator;
2. Investigação: é a etapa em que se pensa os argumentos, exemplos, recursos possíveis de serem
relacionados aos pontos identificados na etapa anterior.
3. Organização: agora sim, após estes dois primeiros passos é que se deve dividir o texto em
introdução, desenvolvimentos e conclusão.
2. PARTES DA DISSERTAÇÃO
2.1. Introdução
O primeiro parágrafo da dissertação deve conter a informação do que será argumentado e/ou
discutido no desenvolvimento.
A introdução deve ser elaborada em um parágrafo de aproximadamente cinco (05) linhas, só em um
parágrafo, nunca mais de um parágrafo.
Tudo o que for citado na introdução deve ser discutido no desenvolvimento; o que não foi citado na
introdução não deve ser discutido no desenvolvimento.
A introdução é uma espécie de índice do desenvolvimento. Nela haverá um roteiro expresso do que
será debatido durante o texto, ou seja, o parágrafo introdutório será composto pelo Tópico Frasal (tese 1),
um aspecto a ser fundamentado no D1 (tese 2) e outro a ser fundamentado no D2 (tese 3); se houver a
necessidade de serem desenvolvidas mais ideias, outras teses poderão ser elaboradas, mas, obviamente,
estas terão se ser relatadas na introdução.
2.2. Desenvolvimentos
É a redação propriamente dita. É onde os argumentos devem ser discutidos.
Cada argumento deve ser discutido em apenas um parágrafo. Um argumento nunca deve ultrapassar
um parágrafo só e, em um mesmo parágrafo, não se devem discutir dois argumentos. Os assuntos a
serem inclusos nos desenvolvimentos devem ser importantes para a sociedade de um modo geral. Os
assuntos pessoais, ou muito próximos dos acontecimentos cotidianos, devem ser evitados. Por isso, a
pessoalidade no texto deve ser evitada.
Tenha sempre em mente que o examinador de sua dissertação provavelmente seja uma pessoa culta,
que lê bons jornais e revistas e tem bastante conhecimento geral, portanto não generalize.
O desenvolvimento deve ser elaborado em três (03) parágrafos de aproximadamente cinco (05) linhas
cada um, ou em dois (02) parágrafos de aproximadamente oito (08) linhas cada um.
2.3. Conclusão
A conclusão é o encerramento da dissertação, portanto, nunca apresente informações novas nela;
se ainda há argumentos a serem discutidos, não inicie a conclusão.
Procure terminar a redação com conclusões consistentes, e não com evasivas.
Este parágrafo deve concluir toda a redação, e não apenas o argumento do último desenvolvimento.
A conclusão deve ser elaborada em um parágrafo de aproximadamente (05) linhas; só em um
parágrafo, nunca mais do que um parágrafo.
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Obs.: Apesar de a conclusão ser o encerramento da redação, ela já deve estar praticamente
preparada no momento de escrevê-la. Quando fizer o planejamento, antes de começar a redação,
pergunte-se: “A que conclusão quero chegar com os argumentos que apresentarei?”. A partir da
resposta, componha sua conclusão.
2.4. Temas para produção de textos dissertativos
Tema 01 UFBA 2009 B.I. (adaptada)
INSTRUÇÕES:
 Seu texto deve ser escrito na modalidade padrão da língua portuguesa.
 O texto com até 7 (sete) linhas escritas será considerado texto em branco.
 Seu texto dissertativo-argumentativo deve ter entre 25 e 30 linhas de extensão;
 Utilize os textos de apoio como material de pesquisa, e não como uma imposição de ideais a serem
utilizadas no texto.
 Construa um título criativo para seu texto.
TEXTO I
Diante do número significativo de pessoas que acompanham a maior competição esportiva mundial,
as Olimpíadas, e dos progressivos investimentos no mundo do espetáculo, fica a pergunta: qual o legado
dos eventos esportivos para o desenvolvimento humano? Poderíamos dizer que a “olympiada” é o tempo
de formação de uma cultura que dá sentido aos Jogos – a cultura esportiva. Para o barão Pierre de
Coubertin, o renascimento dos Jogos modernos está vinculado à difusão do esporte moderno, que nasceu
em meados do século XIX, nas escolas inglesas e tinha fins educativos, morais e associativos: naquele
amanhecer da globalização, a cultura esportiva fertilizou a formação e a delimitação de novas redes
sociais, aproximando pessoas e provocando conexões, atuando na mesma esteira que as ferrovias, o
telégrafo, as feiras universais e os congressos científicos e literários: “As pessoas se misturaram,
conheceram-se melhor [...] e a humanidade passou a viver uma nova existência”, dizia Coubertin. [...]
Desde a profissionalização do esporte e sua vinculação a um estilo de vida, a cultura da prática
esportiva foi se atrofiando na mesma proporção em que o consumo dos espetáculos foi crescendo: “ser
esportivo” tornou-se um símbolo do capital. Assim, dentro do espírito capitalista, as Olimpíadas deixam de
ser um intervalo para a formação da cultura da prática esportiva para ser o intervalo da formação do
consumidor de espetáculos. Isto é, o esporte é um fenômeno que espelha o desenvolvimento econômico
muito mais do que o desenvolvimento humano.
TERRA, V. Esporte e desenvolvimento humano. Folha de S. Paulo, São Paulo, 4 fev. 2008. Opinião, p. A3. Adaptado.
TEXTO II
O papel que o atleta desempenha e as expectativas que a sociedade tem dele estão relacionados com
a conquista de recordes, vitórias, triunfos, sempre com muita luta e honestidade. Esse rol de conquistas é
o desejo de muitos atletas e da população média. É possível dizer que a superação se traduz na
manutenção do desejo, na esperança de sua realização e na ação para a sua viabilização, e é esse
conjunto de atitudes que levará o atleta a superar-se, cumprindo a função social de elemento de projeção
por parte daqueles que buscam realizar esse tipo de sonho. Nesse sentido, o atleta seria uma pessoa que
é capaz de “perder melhor”, visto que o ideal olímpico valoriza mais a participação do que a vitória. Porém,
é desejável que as derrotas surgidas da confrontação esportiva não sejam irreparáveis, mas superáveis
com a mesma vontade e desejo de luta que faz do atleta um herói. Ao atleta, é necessário ser capaz e
conviver e entender que, no esporte, sempre haverá a dualidade: em alguns momentos, o prestígio baixo,
a lesão, a derrota, a falta de patrocínio e, em outros, a glória produzida pela vitória. A interiorização desse
preceito cabe não só aos atletas que a qualquer preço procuram atingir o topo, mas ao próprio público, aos
dirigentes e patrocinadores que, pelas suas exigências — implícitas ou não —, contribuem para que o
esporte, e não somente o esportista, tenha a sua imagem denegrida. Numa época em que a valorização
dos resultados sufoca os seres humanos, a aceitação de limites individuais é a maior prova de superação
que um indivíduo pode proporcionar a si próprio.
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RUBIO, K.; SILVA, M. L. Superação no esporte. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto. [Lisboa], v. 3, n. 3, 2003. p. 76. Disponível em:
<http://www.google.com.br> Acesso em: 14 jul. 2008.
TEXTO III
Nunca pensei que teríamos — de uma só vez — uma discussão nacional para reformar aeroportos,
melhorar a infraestrutura hoteleira, acelerar obras de mobilidade urbana e construir ou renovar 12 estádios
com padrão de qualidade internacional. Mas é isso que está acontecendo. Por causa da Copa do Mundo
da Fifa. Isso já é legado e está por toda a parte. Mais trabalho para a população (só nos estádios, são
quase 30 mil novos empregos), capacitação profissional, aceleração de obras públicas que talvez só
acontecessem daqui a alguns anos, melhorias dos centros de treinamento (CT), entre tantos outros
progressos. Vejo isso nas visitas e na mídia. Mas, infelizmente, vejo também uma parte que prefere
diminuir esse legado. Dizem que os estádios recebem dinheiro público. Verdade. Até porque a maioria
deles pertence aos Estados. Mas isso é parte de um investimento que já traz frutos. Sem estádios não há
Copa. E sem Copa, como seria?
RONALDO. Copa já é legado. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 fev. 2013. Opinião, p.A2. Adaptado.
TEXTO IV
Disponível em: < http://blogdotarso.com/2011/10/25/charges-ongs-esportivas/>. Acesso em: 01 out. 2013.
Com base na leitura dos textos motivadores seguintes e nos conhecimentos construídos ao longo da sua
formação, redija um texto dissertativo-argumentativo em norma-padrão da língua portuguesa sobre o tema:
A IMPORTÂNCIA SOCIOCULTURAL E ECONÔMICA DO ESPORTE PARA O INDIVÍDUO E PARA O
PAÍS, apresentando proposta de conscientização social que respeite os direitos humanos. Selecione,
organize e relacione, de forma coerente e coesa, argumentos e fatos para defender o seu ponto de vista.
6.5. Defeitos a serem evitados em uma dissertação
Existem certas falhas que dificultam a elaboração de um texto adequado. Vejamos, agora, os casos
mais frequentes de erros que tiram o brilho de uma redação.
1. Evite incluir-se na redação
- Dissertar é analisar um assunto proposto de modo impessoal e com total objetividade.
“Todos nós, apreensivos, observamos que o mundo moderno caminha para o caos. Vemos que a
confusão, o desentendimento entre habitantes metropolitanos, os conflitos entre as nações e a total
iminência de uma guerra atômica. Eu vejo por mim mesmo. Mal tenho tempo de dormir... “
2. Evite usar expressões vulgares ou coloquialismos
- A redação não é discussão entre amigos.
“O maior problema da sociedade é que quando se fala das mulheres os homens caem matando.”
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3. Evite repetição excessiva de palavras
- A repetição de vocábulo deduz a pobreza de vocabulário, além de certa preguiça mental. Quando
você constatar que repetiu várias vezes a mesma palavra, procure substituí-la por um sinônimo.
“Os empresários têm encontrado certos problemas para encontrar mão-de-obra especializada
nesses últimos meses. O problema da mão-de-obra é consequência de um problema maior: os altos
níveis de constatados há algum tempo atrás. Enfrentando problemas para conseguir emprego nas
fábricas a que estavam acostumadas, dedicaram-se a outras atividades, criando, para as indústrias, o
problema de não encontrar pessoas acostumadas a função específica. Demorará ainda algum tempo
para que este problema seja solucionado.”
4. Evite abreviações
“É imprescindível p/ que se melhore esta situação, tb, um melhor ponto de vista a ser explorado. ”
5. Evite o uso excessivo do “que”; o tão falado “queísmo”.
- O uso excessivo do que é um ato quase maquinal do aluno
“O acontecido que não foi investigado era muito importante. Tanto que no momento que se foi
abordado tal assunto, todos questionaram que havia possibilidade de modificação. Além de que os
outros interessados que não compareceram a reunião não opinaram sobre o que queriam”.
6. Evite linguagem prolixa
- É o tipo de linguagem desenvolvida através de termos e expressões supérfluas, como as
digressões, períodos extensos e emaranhados, além de palavras extremamente carregadas e em
desuso. O contrário é concisão, que consiste em dizer muito com poucas palavras; com justa economia
de linguagem limita-se o número de palavras ao necessário e suficiente.
“Irrefutavelmente, constitui-se de caráter peremptório tal referência à temática abrupta e hedionda.
Entretanto, é insofismável refutar quais sistemáticas propriamente ditas e nunca esquecidas serão
atribuídas aos melhoramentos substancias das pautas para os referidos compêndios previamente
estabelecidos”
7. Evite propagar doutrina religiosa
“Em se tratando da violência, somente Jesus poderá dar um jeito nisso. Sem a presença do
altíssimo, nunca se estará devidamente protegido de tamanha mazela e desgraça social, ou seja, a
banalização da vida.”
8. Evite chavões, frases feitas, termos batidos
- Denota a ausência de originalidade, deficiência vocabular, falta de imaginação e, principalmente, de
bom gosto.
“Nos píncaros da glória”, “Subir nos degraus da glória”, “Desde os primórdios da humanidade”,
“Encerrar com chave de ouro”, “A esperança é a última que morre”, “Atualmente”, “Conclui-se que o
homem tem que ter consciência”.
9. Evite utilizar provérbio ou dito popular
- Utilizar este tipo de recurso empobrece o texto, evidenciando uma carência de lastro para produção
do texto.
“É muito comum, nos dias de hoje, encontrar-se inúmeras mazelas sócias perto de casa. Os filhos
estão submetidos a esta miséria, podendo, assim, desvirtuar filhos de famílias respeitosas e bem
estruturadas. Por isso, quem se mistura com porcos, farelos come.”
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10. Evite elaborar períodos excessivamente longos
- Os períodos muito longos tornam o estilo monótono, cansativo e provocam a maioria dos erros de
concordâncias, dada a costumeira distância entre sujeito e verbo. Além disso, aumenta
consideravelmente a possibilidade de não se fazer entender no texto.
11. Evite escrever de modo ilegível
- Escreva com a máxima legibilidade. Procure colocar-se no lugar do examinador que corrige
centenas de redações num tempo determinado e ainda se vê obrigado a “decifrar hieróglifos”
6.6. Mais temas para produção de textos dissertativos
Tema 02 - UFBA 2001
Agora, o que nenhum arranha-céu poderá ter, e as casas antigas tinham, é esse ar humano, esse
modo comunicativo, essa expressão de gentileza que enchiam de mensagens amáveis as ruas de outrora.
(...) Afinal, tudo serão arranha-céus. (Ninguém mais quer ser como é: todos querem ser como os outros
são.)”
MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 21 e 23. Casas amáveis.
“...o artesão destaca-se da engrenagem porque produz sob medida, individualiza, resiste à
padronização. E na corrente do consumo as variantes do padrão médio devem ser ignoradas, em favor do
trabalho em série. Para a indústria farmacêutica não há doentes: existem apenas doenças”.
PORTELLA, Eduardo. Vanguarda e cultura de massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. p. 46.
“A cultura e a civilização, Elas que se danem ou não / Somente me interessam, contanto que me
deixem meu licor de jenipapo / O pão das noites de São João.”
GÓES, Fred de. Gilberto Gil: seleção de textos, notas, estudos biográfico,
histórico e crítico... São Paulo: Abril Educação, 1982. p. 32. (Literatura comentada
Considere o teor dos trechos acima e desenvolva o tema:
A INDIVIDUALIDADE E A SOCIEDADE DE CONSUMO
Tema 03 - UnB 2012.2
No Renascimento, as filosofias humanistas tenderam a proclamar a superioridade do homem em
relação ao reino da natureza; na Modernidade, essa interpretação adquiriu maior complexidade, à medida
que a condição biológica humana foi sendo admitida e que a própria natureza passou a ser concebida
como um fenômeno em permanente transformação.
Sandra C. A. Pelegrini. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. In: Revista
Bras. Hist., vol. 26, n.º 51, São Paulo, Universidade Estadual de Maringá, jan.-jun./2006
Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que eu quero me suprime
Do que por não saber ainda não quis
Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão de semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
homem pedra planta bicho flor
Arnaldo Antunes. O silêncio (fragmento).
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Abel Silva e Sueli Costa. Jura secreta (fragmento).
Antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
Os jovens de hoje já foram acusados de tudo:
distraídos, superficiais e até egoístas, mas, aos
poucos, estão provocando uma revolução silenciosa,
levando a sociedade a um novo estágio, que será
muito diferente do que conhecemos.
Internet: <revistagalileu.globo.com> (com adaptações)
Considerando os excertos e as imagens acima redija um texto expositivo-argumentativo sobre o tema a
seguir:
JOVENS DE HOJE: APRENDIZES DA PALAVRA E DO SILÊNCIO
- Ao elaborar o seu texto, explicite como a juventude atual lida com a palavra e com o silêncio na
construção de seus valores e de sua identidade.
Tema 04 - UNIFESP
O americano David Livingstone Smith acostumou-se a polêmicas ao defender suas ideias. Afinal,
propalar que o ser humano é mentiroso por natureza e que a mentira é útil à sociedade vai contra o senso
comum. (...) Ele defende que o mundo seria um caos se todos decidissem falar a verdade. (...) Smith
afirma que somos programados para enganar desde os primórdios da humanidade. Seja para nos
proteger, seja para levar vantagem. Quem mente com desenvoltura,
diz ele, pode até sobressair entre os demais. (...)
PINHEIRO, Daniela. Revista Veja, 18/10/2006
Com base no comentário da jornalista, escreva um texto dissertativo, de 25 a 30 linhas, em que você se
posicione quanto às ideias polêmicas de Smith de que a mentira é necessária, e o mundo seria um
caos se todos fossem verdadeiros uns com outros.
Não esqueça que seu texto:
- deve ter um título; deve ser escrito em norma culta; não deve ser escrito em forma de poema ou
narrativa.
Tema 05 - UFG 2012 (adaptada)
Qualidade de vida - "É o conjunto de condições objetivas presentes em uma determinada área e da atitude
subjetiva dos indivíduos moradores nessa área, frente a essas condições" (Hornback et alli, 1974).
Qualidade de vida - "São aqueles aspectos que se referem às condições gerais da vida individual e
coletiva: habitação, saúde, educação, cultura, lazer, alimentação, etc. O conceito se refere, principalmente,
aos aspectos de bem-estar social que podem ser instrumentados mediante o desenvolvimento da
infraestrutura e do equipamento dos centros de população, isto é, dos suportes materiais do bem-estar"
(SAHOP, 1978).
Qualidade de vida - "É a resultante da saúde de uma pessoa (avaliada objetiva ou intersubjetivamente) e
do sentimento (subjetivo) da satisfação. A saúde depende dos processos internos de uma pessoa e do
grau de cobertura de suas necessidades, e a satisfação depende dos processos internos e do grau de
cobertura dos desejos e aspirações" (Gallopin, 1981).
Disponível em: <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/mlateral/glossario/T_Desenvol.htm>. Acesso em 03 dez. 2010.
Capitalismo e qualidade de vida
De fato, os tempos mudaram. A busca pelo que se entende como qualidade de vida na época dos
nossos avós se restringia bastante em ter um bom emprego e uma casa; o restante vinha por conta dos
amigos, da soneca no domingo depois do almoço, das confraternizações de fim de ano, enfim, das coisas
que realmente importavam naquele contexto. Obviamente existiam vontades, porém não eram tão
determinantes a ponto de mudar radicalmente o modo de vida das pessoas. Mas o que de fato causou
essa abrupta mudança na maneira de pensar o modo de viver a vida? Essa questão se aprofunda mais
quando analisamos que a sociedade capitalista na qual vivemos está constantemente produzindo novas
necessidades, associando-as ao bem-estar e à felicidade. A propaganda agressiva foi desenvolvida para
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manter a "máquina'' funcionando, ou seja, o capitalismo necessita de lucros para continuar existindo. Disso
pode surgir uma possível explicação: que a simplicidade de antigamente foi substituída por uma
necessidade sem fim de consumir sempre. Tudo isso acaba por gerar uma insatisfação, uma angústia
incontrolável, que faz com que as pessoas busquem desesperadamente algo que melhore sua vida.
Disponível em: <http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/30/imprime181711.asp>. Acesso em 30 nov. 2010
A qualidade de vida ataca novamente - João Ubaldo Ribeiro
Claro, eu sabia que não ia durar muito. Há bastante tempo minha qualidade de vida tem sido de
baixíssimo nível e, como se sabe, é impossível sobreviver hoje em dia sem cuidar da qualidade de vida.
Do contrário, o sujeito morre depois de ler as seções de saúde dos jornais, tamanho é o terrorismo que
fazem em relação à qualidade de vida. Devia haver um aviso nessas seções, advertindo que sua leitura
contumaz leva a todo tipo de doença imaginável.
Minha qualidade de vida, sou obrigado a reconhecer, está um lixo. Não caminho no calçadão, não
jogo nem peteca, não frequento academia e não sigo dieta. Pelo contrário, encaro tudo o que faz mal
numa boa e soube que a Associação Brasileira de Fabricantes de Biscoitos Recheados planeja me
homenagear (aceito, mas quero minha parte em dinheiro, ou então em sorvete). Ou seja, minha qualidade
de vida causa grande pena e preocupação entre meus amigos e a pressão começa a exercer seus efeitos
– começo a convencer-me de que ninguém pode viver assim com esta minha péssima qualidade de vida, é
necessário fazer alguma coisa urgente. Volto ao regime que já me prescreveram. É preferível evitar o sal.
Conservas, nem pensar. Frituras são incogitáveis. Proteína animal, só um peitinho de frango ou um
peixinho, com cuidado para o primeiro não estar entupido de hormônios e o segundo não ter mais mercúrio
do que termômetro de rinoceronte. Doce, só se você for maluco. Além dos triglicerídeos, diabetes certa. E,
finalmente, como se sabe, nada disso adianta coisa alguma para a qualidade de vida, se não for
acompanhado escrupulosamente por um programa de atividade física.
Não, meu destino é o calçadão. Só falta ele, para completar minha qualidade de vida. Minhas
tentativas anteriores foram com certeza prejudicadas pela má vontade e pelas vicissitudes enfrentadas, a
maior das quais era o capenguinha, que doravante passarei a ignorar e caminharei altivamente, no meu
próprio ritmo quelônio. Já devia ter começado, como estava previsto, na segunda-feira passada. Não
comecei. Criei um apego mórbido à minha terrível qualidade de vida atual e me sinto bem melhor, embora
saiba que falsamente, sentado aqui, escrevendo ou lendo um livro, do que andando no calçadão.
Disponível em: <http://arquivoetc.blogspot.com/2005/12/joo-ubaldo-ribeiro-qualidade-de-vida.html>. Acesso em 30 nov. 2010. [Adaptado]
O conceito qualidade de vida foi usado pela primeira vez pelo presidente dos Estados Unidos, Lyndon
Johnson, em 1964, quando este declarou: “os objetivos não podem ser medidos através do balanço dos
bancos. Eles só podem ser medidos através da qualidade de vida que proporcionam às pessoas.” Aqui
Lyndon Johnson referiuse pois à qualidade de vida em termos econômicos. Continuando a progredir no
tempo verificamos que os estudiosos foram refletindo sobre o conceito de qualidade de vida e a partir dos
anos 80 considerou-se que este envolvia diferentes perspectivas, entre elas a biológica; psicológica;
cultural; e econômica, ou seja, o conceito era multidimensional. No entanto, só na década de 90 se chegou
à conclusão acerca da multidimencionalidade e também da subjetividade deste conceito, uma vez que,
cada indivíduo avalia sua qualidade de vida de forma pessoal.
Disponível em: <www.porto.ucp.pt/lusobrasileiro/actas/Carla%20Leal.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2010. [Adaptado]
Escreva um texto dissertativo-argumentativo, discutindo a produção de necessidades associadas ao
bem-estar, à harmonia e ao equilíbrio como um anseio pessoal e/ou como uma imposição social
para o alcance da qualidade de vida. Defenda seu ponto de vista, apresentando argumentos que o
sustentem e que possam refutar outros pontos de vista.
Tema 06
Com base na leitura dos textos motivadores seguintes e nos conhecimentos construídos ao longo da sua
formação, redija um texto dissertativo-argumentativo em norma-padrão da língua portuguesa sobre o tema:
A AUTONOMIA DOS ALUNOS NO ESPAÇO ESCOLAR, apresentando proposta de conscientização
social que respeite os direitos humanos. Selecione, organize e relacione, de forma coerente e coesa,
argumentos e fatos para defender o seu ponto de vista.
Texto 01
Significado de autonomia
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1 capacidade de se autogovernar. [...]
1.4 direito de um indivíduo tomar decisões livremente; liberdade, independência moral ou intelectual.
HOUAISS, Antônio. Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Versão eletrônica.).
Texto 02
É com ela, a autonomia, penosamente construindo-se, que a liberdade vai preenchendo o “espaço”
antes “habitado” por sua dependência. Sua autonomia que se funda na responsabilidade que vai sendo
assumida.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Texto 03
Relação entre educação e sociedade
Apesar de hoje haver toda uma discussão em torno dos meios alternativos de educação, em nossa
sociedade a escola ainda é vista como a melhor forma de se obter conhecimento e estágio obrigatório
para ascensão social. Ela está estreitamente ligada à nossa cultura, regida por uma estrutura semelhante
à da própria sociedade. Percebemos esta ligação ao observarmos a existência de um sistema hierárquico
disciplinador, com organização seriada e com discriminação por séries.
A escola, com toda sua autoridade consegue transformar seus “subordinados” (alunos) em sujeitos
passivos. Ela consegue impor suas ideias sem contestações, ensinando às crianças desde o princípio a
absorver e repetir suas lições, tão bem que se tornam incapazes de pensar coisas diferentes. Tornam-se
ecos das receitas ensinadas e aprendidas. Tornam-se incapazes de dizer o diferente (Rubem Alves).
WERRI, Ana Paula Salvador; RUIZ, Adriano Rodrigues. “Autonomia como objetivo na educação”. Revista Urutágua. Maringá, ano I, n.2,
jul. 2001. Disponível em: <www.urutagua.uem.br//02autonomia.htm>.
Texto 04
Educador português conta como é a Escola da Ponte, em que não há turmas, e diz que quem quer
inovar deve ter mais interrogações que certezas
A [Escola da] Ponte [em Portugal] não segue um sistema baseado em seriação ou ciclos e seus
professores não são responsáveis por uma disciplina ou por uma turma específicas. As crianças e os
adolescentes que lá estudam [...] definem quais são suas áreas de interesse e desenvolvem projetos de
pesquisa, tanto em grupo como individuais.
MARANGON, Cristiane. “José Pacheco e a Escola da Ponte”. Revista Nova Escola. São Paulo: Abril. Disponível em: <http://
revistaescola.abril.com.br/formacao/formacao-inicial/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtml>.
Texto 05
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram.
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Editora 247, 2003.
Texto 06
Autonomia do educando na escola: um tema negligenciado
Na escola tradicional está muito bem assentado que a situação de ensino se dê na forma de um
professor comunicando-se, numa sala de aula, com uma turma de alunos sentados em suas carteiras
enfileiradas, durante praticamente todo o período de aula. [...]
No entanto, quando se trata da medida da participação, é preciso um cuidado maior para não se cair
nem na restrição desmedida, sob o pretexto de que as crianças não sabem o que querem, nem no mero
espontaneismo, sob a alegação de que não se deve inibir nenhum desejo das crianças. No primeiro caso
se nega a subjetividade do educando, no segundo se o abandona à própria sorte. O que se precisa
ponderar é que, se, por um lado, a autonomia não pode ser outorgada, mas se desenvolve com a
participação do próprio educando, por outro lado, ela não nasce do nada, mas exige a mediação do
educador.
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Módulo I
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PARO, Vitor Henrique. “Autonomia do educando na escola fundamental: um tema negligenciado”. Educar em revista. Curitiba, n. 41, p. 199-200,
jul./set. 2011. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/er/n41/13.pdf>.
Tema 07
Texto 01
Disponível em: http://jasielbotelho.blogspot.com.br/2008_11_01_archive.html. Acesso em 04 jun. 2012.
Texto 02
Hoje, quem começa a carreira numa empresa, não sabe onde ela se encerrará. O capital, por seu
turno, somente permanece em determinado local enquanto isso for conveniente aos investidores. É o que
Zygmunt Bauman denomina de “mundo do capitalismo leve”, associado à ideia de liquidez e à
possibilidade, como ocorre com os líquidos, de uma rápida acomodação das pessoas e das coisas aos
mais diversos encaixes. Uma sociedade imediatista, em que o tempo importa mais do que o espaço
ocupado, mesmo porque esse espaço será preenchido apenas transitoriamente.
A modernidade fluída, apoiada em táticas pré-determinadas e solidificadas, não comporta tradições
ideológicas. Ao contrário, poucas coisas são pré-determinadas e, menos ainda, irrevogáveis, bem como
poucas derrotas são definitivas e, raríssimos contratempos, irreversíveis; em contrapartida, nenhuma
vitória é, tampouco, final. Tomese como exemplo entre nós, brasileiros, o futebol. Há poucos anos, um
jogador parecia trazer estampado na própria pele o distintivo de seu clube. Na atualidade, de acordo com
a melhor proposta, transfere-se para qualquer parte do mundo, disposto a enfrentar, sem nenhum
constrangimento, o time de seu próprio país de origem. Joga onde lhe pagarem mais. É o efeito do
individualismo, outra marca da modernidade fluida.
CONTE, Christiany Pegorari; LOR, Encarnacion Alfonso; MARIGNONI, Fábio Antônio. Modernidade Líquida: análise sobre o consumismo e
seus impactos na Sociedade da Informação. Disponível em
http://www2.oabsp.org.br/asp/comissoes/sociedade_informacao/artigos/modernidade_liquida.pdf. Acesso em 04 de Jun 2012.
Texto 03
Em Assim falou Zaratrusta, Nietzsche profetiza que somente um tipo de homem é capaz de livrar-se
das garras dos tempos modernos. Consolidifica, então, o conceito central da filosofia nietzscheniana: o
conceito de super-homem. Porém, para que o homem alcance tal façanha, de acordo com Nietzsche, é
necessário tornar-se uma espécie de ermitão, viver anos e anos nas montanhas para, desse modo, buscar
a reflexão dos re: repensar, refletir e redirecionar sua conduta sócio-cultural-econômica e até espiritual,
quem sabe.
Para elaborar uma equação desse problema, com a pretensão de ter uma resposta para isso, o
homem não necessariamente precisa tornar-se um ser introspectivo no seu mais alto grau e viver isolado,
boa parte da vida, para se reencontrar. Pelo contrário. O próprio ambiente midiático deve, com todas as
suas armas de aprisionamento, servir como suporte ao super-homem de Nietzsche. O homem, contudo,
ainda permanece refém desse meio e, por conseguinte, acostumou-se a resolver problemas com base em
clicks e com base na velocidade do provedor. E é justamente sobre esse ponto que o sociólogo polonês
Zygmunt Bauman discute em seu livro Amor Líquido, publicado no Brasil pela Zahar, em 2004.
A cultura consumista do amor, então, serve de cenário para o segundo capítulo Dentro e fora da caixa
de ferramentas da sociedade. O sentimento do imediatismo oferece consequências à “líquida, consumista
e individualizada sociedade moderna”. O resultado de intensificação da velocidade globalizante é
pontificada por Bauman (2004) na sentença: “a solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo
triunfo do mercado consumidor” [...]
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Intensifica-se, de maneira avassaladora, a substituição de contatos físicos. Tudo acontece hoje
somente àqueles que estão conectados. O resultado não pode ser pior e está traduzido no subtítulo do
estudo de Bauman (2004): “a fragilidade dos laços humanos”. A partir do momento em que os verdadeiros
cidadãos perceberem o tamanho do labirinto onde se encontram e se mobilizarem para solucionar o
problema é que se dará o primeiro passo rumo à socialização humana. Senão, mesmo com a capacidade
do homem em se adaptar aos imbróglios, a sociedade continuará correndo atrás do próprio prejuízo. Tudo
isso nos remete ao pensamento de Antonio Gramsci (ano): “sou um pessimista pela inteligência, mas um
otimista por desejo”.
FERNANDES, José Marcos Henriques. A fragilidade dos laços humanos. A OBRA: BAUMAN, Zygmunt.
Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2004. Disponível em:
http://site.unitau.br/scripts/prppg/humanas/download/Humanas%202005%202/Pdf/9%BA%20art..pdf. Acesso em 04 jun. 2012.
Texto 04
Já sei namorar
Já sei beijar de língua
Agora só me resta sonhar
Já sei onde ir
Já sei onde ficar
Agora só me falta sair
Não tenho paciência pra televisão
Eu não sou audiência para a solidão
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo me quer bem
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo é meu também [...]
Os Tribalistas. Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes
PROPOSTA:
A cultura pós-moderna, assim como atinge outros setores da vida em sociedade, atinge, também, a
construção dos afetos. A relatividade das relações e como hoje elas são voláteis alteram a composição
dos relacionamentos e seus formatos. Baseando-se nisso, construa um texto dissertativo sobre a
influência dos valores pós-modernos nos formatos afetivos contemporâneos.
OBSERVAÇÕES:
- Construa argumentos e utilize exemplos que ajudem a fundamentar seu ponto de vista;
- Reflita a temática relacionando-a com o mundo atual e os símbolos utilizados pela juventude para
construir os novos valores dos relacionamentos;
- O papel da tecnologia e seus recursos na interação afetiva da atualidade: suas consequências positivas
ou não;
- Elabore propostas de intervenção social para a situação, pensando como este contexto interfere
socialmente na convivência em sociedade
Tema 08
Texto 01
“Vivemos numa cultura do estupro que atribui a culpa à vítima. Sabemos disso independentemente
dos dados da pesquisa”, afirma Lola Aronovich, criadora do blog feminista Escreva Lola Escreva e
professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Faz parte da cultura do estupro, segundo ela, dizer
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Módulo I
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que é paranoia feminista a realidade violenta e machista do dia a dia. Cultura do estupro é rir de piadas
como: “Homem que estupra mulher feia não merece cadeia, e sim um abraço”. Cultura do estupro é tolerar
a ação dos encoxadores, que mantêm o hobby perverso de assediar sexualmente mulheres no transporte
público lotado e trocam dicas sobre o assunto no Facebook. Cultura do estupro é vender camisetas que
dizem que a “fórmula do amor” é embebedar mulheres para conseguir sexo sem resistência. Cultura de
estupro são anúncios de preservativos que afirmam que sexo sem consentimento queima mais calorias ou
comerciais de cerveja com cantadas e passadas de mão em corpos femininos quase nus.
Para piorar, boa parte das pessoas não faz ideia do que seja estupro. Até 2009, a legislação brasileira
só considerava como estupro atos forçados de penetração vaginal. Hoje, a classificação é mais
abrangente e inclui qualquer ato libidinoso forçado com alguém. “Durante a campanha, soube de mulher
que sofreu abuso pelo pai durante toda a infância. O curioso de sua história é que o pai não faz ideia de
que abusou sexualmente da filha: para ele, como não havia penetração, não havia estupro”, afirma Nana.
Além de culpar a vítima, o senso comum tem uma visão distorcida do estupro. “Ele não acontece só num
beco escuro à noite, entre um psicopata e uma mulher que, pelas roupas, ‘estava pedindo’”, diz Lola. Mais
de 70% das vítimas são crianças ou adolescentes. Na grande maioria dos casos, o estupro ocorre em
casa e a vítima conhece o agressor.
Disponível em: <http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/04/nem-elas-nem-bninguem-mereceb.html>. Acesso em 06 abr. 2014.
Texto 02
No Rio, todo mundo achava maneiro que os caras tirassem a roupa nas festas moderninhas que rolam
na cidade. Bastou uma garota fazer o mesmo para a patrulha aparecer. Homem pelado é liberdade.
Homem pelado é transgressor. Para a patrulha, mulheres incluídas, mulher pelada é "desnecessário".
Mulher pelada "quer aparecer". Pela lógica, merece ser estuprada. Ela e aquela nudez que dá na sua cara.
Ela e aquela bunda dura, aquele peitinho. Ela e aquele corpo, que no fundo você queria que fosse seu.
Mas que raiva é essa? Vem da vida, vem da frustração. Gente que morre de medo de qualquer coisa
que ameace a sua vidinha pão com ovo. Qualquer coisa que ande, rebole e chame a atenção. Se
acontece, querem sangue. Querem vingança. Querem que a vagabunda seja punida por ser livre, por
vestir o que quer, por ser o que ela quer. E se a maioria das mulheres diz que a culpa é das mulheres,
quem são os homens para discordar delas?
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2014/04/1435068-o-estupro-alheio-e-a-vinganca-de-muitasmulheres.shtml>. Acesso em 06 abr. 2014.
Texto 03
Uma questão relevante, o direito ao aborto, foi praticamente excluída do horizonte do viável, devido a
uma manipulação propagandística nas últimas eleições presidenciais. Pior, cresce a ideia de que certas
mulheres são culpadas por excitarem homens sexualmente, o que justificaria, pelo menos em parte, as
agressões de que são vítimas. No Brasil, muitos acreditam que pode ser atacada uma mulher que se veste
de modo provocante, segundo pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Na Arábia
Saudita, país que crucifica e degola seus presos, a culpa é das mulheres que se maquiam: 86,5% dos
homens acham isso (sério, veja em tinyurl.com/mjdwfql).
Deixando claro: há mulheres, sim, que têm prazer em excitar um desejo sexual e, depois, têm novo
prazer em não o satisfazer. Essa não é uma conduta elogiável - mas não autoriza ninguém a estuprá-las
ou sequer assediá-las. Podemos discutir o que leva uma mulher a ser "allumeuse", aquela que acende o
desejo só pelo gosto de acender. Faz parte do debate sobre a dificuldade atual com os laços humanos.
Mas entender o narcisismo não é justificar a agressão. Se um homem se sente provocado, que se
controle.
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/159840-o-ovo-da-serpente.shtml>.
Acesso em 06 abr. 2014.
Texto 04
No Brasil, mudanças no aparato institucional já foram feitas. A legislação foi mudada com a Lei Maria
da Penha e a de notificação compulsória. Já contamos com delegacias especiais para atender as
mulheres agredidas. Existem em número crescente serviços que dão assistência às que sofrem violências.
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A reação imediata de mulheres pelo país afora aos resultados da pesquisa do Ipea que revelou que um
quarto da população acha que a mulher que exibe seu corpo merece ser atacada, afirmando publicamente
que seu modo de vestir é uma escolha livre e não a justificativa para o estupro, demonstra o quanto estão
mais conscientes e organizadas. De fato, há também associações mais ou menos informais de proteção
interna ao gênero funcionando há tempos, embora timidamente.
Mas a aplicação de leis e políticas para mulheres em todo o país é irregular e, principalmente,
persistem preconceitos e covardias. Falta assegurar que a intolerância à violência contra as mulheres,
duplamente covarde, chegue a todos os rincões e, sobretudo, nos corações e mentes de homens jovens
instilando-lhes a vergonha de agir violentamente contra as mais desprotegidas entre as mulheres. Os
programas de prevenção primária que levem em conta a desigualdade de gênero ainda são poucos. Como
afirmou Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU: "Peço aos governos que aproveitem as ideias e a
liderança dos jovens para nos ajudar a pôr fim a essa violência pandêmica. Só então teremos um mundo
mais justo, pacífico e equitativo".
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/159841-reacao-consciente.shtml>. Acesso em 06 abr. 2014.
TEMA DE REDAÇÃO:
Com base na leitura dos excertos apresentados, em seus conhecimentos e suas reflexões acerca do
assunto, além dos aspectos listados e escreva um texto dissertativo-argumentativo em norma-padrão
da língua portuguesa sobre o tema: a construção da dúbia imagem feminina na
contemporaneidade e suas conexões com a violência e o machismo. Apresente uma proposta
de intervenção social que respeite os direitos humanos. Selecione, organize e relacione, de forma
coerente e coesa, argumentos e fatos para defender o seu ponto de vista.
4) Textos informativos
Um basta ao assédio (CAMILA BRADALISE)
Mulheres rompem o silêncio e denunciam situações de abuso sexual, num movimento que
ultrapassa o limite das redes sociais
EM CINCO dias, foram 82 mil relatos curtos, surpreendentes e revoltantes. Motivadas pela campanha
“primeiro assédio”, criada por uma ONG em resposta a comentários abusivos sobre uma participante de 12
anos do reality culinário “Masterchef Junior”, da Band, usuárias do Twitter compartilharam suas histórias,
muitas delas pela primeira vez depois de décadas, entre os dias 21 e 25 de outubro. Mas o movimento que
tomou as redes sociais há duas semanas claramente não se limita a elas. Canais oficiais de denúncia,
como a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) e o serviço de SMS do Metrô de São Paulo,
registraram aumentos significativos nos atendimentos de 2014 para cá (leia no quadro ao lado).
Especialistas apontam ainda que há mais registros de casos de violência contra a mulher principalmente
porque as vítimas se sentem encorajadas para falar agora. A ligação entre a movimentação na internet e
as estatísticas se tornou evidente nos últimos dias: silenciar os abusos deixou de ser a primeira opção.
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“Há um aumento de políticas públicas para que as queixas possam ser feitas, desde o trabalho de
assistência social que acolhe as mulheres até mudanças na própria legislação, como no caso da Lei Maria
da Penha”, afirma a socióloga Jacqueline Pitanguy, membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher,
ligado ao Ministério da Justiça. Ana Gabriela Mendes Braga, professora de direito penal da Universidade
Estadual de São Paulo (Unesp), também acredita que a população feminina está mais consciente, apesar
de a legislação de amparo às vítimas não ter reduzido o número de casos. “Em se tratando de comunicar o
problema, está havendo um suporte maior.” Professora da Universidade de São Paulo (USP) e fundadora
do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero, Eva Blay considera que falar
publicamente e em conjunto também é fundamental para o que a ideia da naturalidade do assédio seja
quebrada. “Somos assediadas desde crianças e mal falamos sobre isso. Agora, quando uma mulher apoia
a outra, nos encorajamos a reclamar.”
As três pessoas que aparecem nas fotos desta reportagem afirmam que foi justamente a comoção
coletiva, iniciada pela ONG Think Olga, que as fizeram falar publicamente sobre seus primeiros assédios.
A designer e ilustradora Bruna Carvalho, 31 anos, até então só havia contado à mãe, aos 7 anos, que um
homem em um carro se aproximou dela enquanto se masturbava. “Nunca mais falamos sobre isso”, diz. A
professora universitária Renata Gomes, 40 anos, relatou que, aos 12, um sujeito a seguiu também
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enquanto se masturbava e que falou sobre isso pela primeira vez só 20 anos depois. Aos 15, um grupo de
homens em um utilitário se aproximou dela, a agarrou e a ofendeu. “Tenho esperança que, com a
campanha, muitas pessoas identifiquem um assédio que sofreram e nem se deram conta.” Já a estudante
Jennifer Tainara Ribeiro dos Santos, 17 anos, viveu a violência dentro de casa. “Tinha 6 anos, o primo do
meu pai mostrou o pênis e pediu para eu fazer sexo oral em troca de um doce.” Mas outra experiência de
abuso viria acontecer com Jennifer, como no caso de tantas outras brasileiras, anos depois. Há quatro
meses, foi estuprada por um homem que a fez descer de um ônibus no caminho para casa. “Minha
situação psicológica foi se agravando, entrei em depressão e tentei suicídio”, diz. Dias depois, ao passar
mal, um médico lhe pediu um exame de gravidez, que deu positivo. Optou pelo aborto legal, válido em
casos de estupro. Conta que ainda hoje tem pesadelos e faz acompanhamento psiquiátrico.
Se nesses últimos dias percebe-se um avanço na luta contra a violência feminina, ainda há muitos
focos de retrocesso, inclusive na Câmara. Aprovado na quarta-feira 21 pela Comissão de Cidadania e
Justiça (CCJ), o projeto de lei 5069/13, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é visto como
um vergonhoso recuo ao exigir que a vítima faça um exame de corpo de delito para comprovar o abuso. “A
legislação que está em vigor hoje respeita os direitos humanos e a saúde pública. Mudar isso tornará o
caminho ainda mais difícil para a mulher, que terá vergonha e medo de ir a uma delegacia falar sobre a
violência que sofreu. É um passo para trás em relação ao que já foi garantido”, afirma Nadine Gasman,
representante da ONU Mulheres Brasil.
CAMILA BRADALISE é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista ISTO É, Novembro de 2015.
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A Cracolândia, um potente conector urbano (TANIELE RUI e FÁBIO MALLART)
As disputas que a área movimenta nas agendas das políticas municipais, estaduais e federais, as
lutas no campo jurídico e os embates incessantes entre os diferentes saberes da saúde pública
evidenciam que a Cracolândia se configurou, nos últimos anos, como um potente conector urbano,
no qual se cruzam múltiplas linhas
VINTE E NOVE de abril de 2015, 7h30. Antes de chegar à Rua Helvétia, região central da capital
paulista, ao lado da praça recém-“revitalizada” pela Porto Seguro, é notável a presença de dezenas de
soldados da Guarda Civil Metropolitana, em especial da Inspetoria Regional de Operações Especiais
(Iope), a tropa de choque da GCM. Viaturas da Polícia Militar passam pela região em alta velocidade.
No fluxo, como é conhecida a cena de uso e comércio de crack, tudo acontece normalmente: a venda de
cachimbos, o uso do crack, os afetos entre os casais, as conversas entre os parceiros, as discussões, as
negociações, as solidariedades diversas e as tentativas de se proteger do asfalto e do sol, improvisando
tapetes e tetos.
Na tenda do programa De Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, a presença de uma infinidade
de agentes estatais, dos mais diversos escalões, das mais diversas secretarias: os jalecos brancos,
vermelhos, azuis e verdes, azuis e brancos se misturam às fardas, algumas delas repletas de medalhas e
condecorações. Assistentes sociais, agentes de saúde, militantes, pesquisadores, comerciantes,
moradores da região, usuários de crack, lideranças locais, integrantes da Secretaria de Direitos Humanos,
inclusive o próprio secretário Eduardo Suplicy, religiosos – católicos, batistas e neopentecostais –,
trabalhadores do comércio de drogas, funcionários do programa Recomeço (do governo do estado de São
Paulo), jornalistas, enfim, uma infinidade de atores sociais dos mais diversos saberes e poderes estão
presentes no cenário. Isso sem contar as conexões que – via telefones celulares – interligam esse
pequeno recorte do espaço urbano, praticamente uma rua, a outros cantos da cidade. Ao mesmo tempo
que agentes estatais estão conectados com o prefeito Fernando Haddad, lideranças locais
estão sintonizadas com seus parceiros, situados fora da região conhecida como Cracolândia. Linhas de
força, que conectam múltiplos espaços urbanos.
Por volta das 9h30, as barracas dos usuários começam a ser retiradas da Rua Helvétia, sendo
deslocadas para a Rua Dino Bueno, a poucos passos de distância do local anterior. O objetivo da ação:
remover barracas e carroças do espaço público, cadastrar novos usuários no programa e, não menos
importante, possibilitar que a Porto Seguro entregue seu projeto de praça finalizado. Assistentes sociais
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cadastram usuários às pressas. O fluxo, sob orientações de lideranças locais, também conhecidas
como disciplinas, se desloca rapidamente, arrastando tudo aquilo que o constitui, inclusive as barracas e
as carroças. Novo impasse: é preciso retirar barracas e carroças da Rua Dino Bueno, que agora está
totalmente interditada. Os ânimos se exaltam. Uma mulher que teve a carroça retirada observa: “A
prefeitura pegou minha carroça e não me deu nenhuma advertência, não me explicou por que estava
tirando; então, posso concluir que ela me roubou, né?”. A tensão aumenta progressivamente. Por volta das
12h, chegam Alexandre de Moraes, secretário estadual de Segurança Pública, e Haddad. A decisão sobre
o que fazer com os usuários de crack e, principalmente, com suas barracas e carroças mobiliza instâncias
governamentais do mais alto escalão.
Ao mesmo tempo que as autoridades dialogam entre si, uma jovem vaga pela região. Parece procurar
algo no chão, deixado para trás pelo próprio deslocamento do fluxo. Talvez, uma moeda de R$ 1. Talvez,
uma ínfima lasca de crack. Sem planos, foi trazida na noite anterior pelo companheiro e igualmente
deixada para trás. J. P., que saiu de um presídio no interior paulista, chegou há quatro dias. Para ele,
assim como para muitos outros de nossos interlocutores, a Cracolândia oferece oportunidades para
conseguir algum dinheiro que, no seu caso, será gasto na compra de uma passagem de ônibus para sua
cidade natal, mas também alguma informação, alguma ajuda, alguma recepção. No período da tarde, por
volta das 15h, ouve-se o barulho de tiros em meio ao fluxo, resultado de uma ação desastrosa de policiais
à paisana. Duas pessoas são baleadas, novos atores entram em cena: policiais da Força Tática da PM,
balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo. Ativistas articulados em torno do padre Júlio Lancellotti
denunciam a arbitrariedade policial e a especulação imobiliária na região.
Ímã paulistano
Ao longo de todo o dia, inúmeros personagens passaram por ali, retrato condensado e ampliado do
que acontece todos os dias, tal como um instante fotográfico que compõe um filme que se desenrola ano
após ano. É por esse motivo que muitos dos que ali estão – não importam os motivos – se referem à
Cracolândia como ímã, em que se cruzam vários atores que transitam pelo e a partir do local. Trata-se de
um emaranhado urbano, novelo intrincado de trajetórias, histórias e múltiplos percursos, que se torna mais
complexo a cada dia.
Já faz tempo, portanto, que aos pesquisadores nenhuma ideia parece ser mais errônea que a de
“gueto” com “lógicas próprias” para apreender a dinâmica do local. Já faz tempo também que se sabe que
essa dinâmica não se resume apenas à compra e ao uso de crack. Ao contrário, é cada vez mais evidente
que essa região de São Paulo, ou melhor, esse pequeno recorte do espaço urbano, conecta, faz circular e
movimentar pessoas, espaços, histórias, discursos, empresas, valores, práticas, políticas governamentais
e criminais, e muito dinheiro.
Contudo, é hora de observar que nem sempre as coisas se passaram assim; o que hoje ocorre é
desdobramento de uma história urbana. A região foi se reconfigurando no correr de aproximadamente
duas décadas pelas imediações de uma série de bairros da região central, entre os quais Luz, Santa
Ifigênia e Campos Elíseos. Há, frequentemente, uma narrativa comum que a associa diretamente a espaço
de uso de crack e sua formação à Boca do Lixo – como era chamado pejorativamente o local, marcado por
atividades de boêmia, prostituição e vários ilegalismos, entre meados dos anos 1950 e fim da década de
1980. Sem necessariamente discordar dessa narrativa, vale salientar que ainda há elementos importantes
a serem perspectivados no passado, entre eles o fato instigante de que um dos primeiros locais marcados
pelo consumo de crack na cidade foi a região de São Mateus, periferia leste de São Paulo, no início dos
anos 1990. Além disso, as primeiras menções à Cracolândia no noticiário paulista faziam referência ao
local como espaço de produção e venda, não de uso, de crack. Esses elementos importantes mostram
que, em primeiro lugar, a Cracolândia nasceu conectada, de um lado, às dinâmicas mais amplas de gestão
da violência e do tráfico de drogas na cidade de São Paulo.
A entrada do crack nas periferias, em especial em São Mateus, foi seguida de uma série de
assassinatos de usuários da droga, que, à época, foram as vítimas preferenciais daqueles que arbitravam
sobre a vida e a morte nas áreas periféricas. Portanto, não é exagero supor que, nesse período, o
deslocamento espacial de consumidores de crack das periferias para o centro adveio do fato de que estes
procuravam fugir de assassinatos e retaliações.1 Vale notar que, atualmente, o fluxo periferias-centro
segue outra lógica, distinta daquela do início dos anos 1990, afinal, a possibilidade de ser morto em tais
bairros periféricos é menor, em decorrência da gestão da violência praticada por integrantes do Primeiro
Comando da Capital (PCC), que, entre outras consequências, contribuiu para a queda dos homicídios na
cidade. Ao que parece, outro dispositivo de gestão foi acionado: a prática de interditar consumidores
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indesejados, isto é, não vender para aqueles que desenvolvem usos considerados abusivos e
problemáticos da droga.2
Portanto, se por um lado a região conhecida como Cracolândia encontra-se conectada às dinâmicas
mais amplas da gestão da violência e do comércio de drogas na cidade de São Paulo, por outro articula-se
também com as inúmeras transformações urbanas desencadeadas por gestões municipais e estaduais de
diversos partidos, ao longo das últimas duas décadas. Tais transformações tanto expandiram as
centralidades da metrópole, depreciando simbólica e materialmente esse “centro antigo”, quanto,
recentemente, o fizeram alvo de projetos urbanísticos, como o engavetado Nova Luz, atualizando
localmente práticas de enobrecimento e recomposição do uso social desse espaço.
A Operação Sufoco, de 2012, que pretendeu expulsar os usuários de crack da região provocando
muita “dor e sofrimento”, sem dúvida, é um ponto de inflexão para compreender as novas configurações do
local. Essa intervenção, ao acionar a violência contra os ocupantes do local, também fez emergir uma
disputa inédita em torno das formas de solucionar ou lidar com a “questão” da Cracolândia, alterando o
campo de poder e conflitos, originando nova correlação de forças, bem como as condições de
possibilidade para a emergência de outras formas de gestão do espaço urbano e da população nessa
territorialidade móvel ao longo do espaço e do tempo.3
As disputas que a área movimenta nas agendas das políticas municipais, estaduais e federais, as
lutas no campo jurídico e os embates incessantes entre os diferentes saberes da saúde pública
evidenciam que a Cracolândia se configurou, nos últimos anos, como um potente conector urbano – um
ponto de gravitação – no qual se cruzam múltiplas linhas de força, de intensidades e velocidades variadas.
Trata-se de um ponto nevrálgico do urbano, espaço estratégico de entrecruzamento de uma infinidade de
agentes governamentais, de atores do chamado Terceiro Setor, de ativistas e militantes, de vários atores
religiosos, sejam eles católicos, batistas ou neopentecostais, e de participantes do “crime” conectados a
outras regiões da cidade. Ímã, ela congrega uma diversidade de atores que transitam pelo local ou mesmo
vivem e trabalham na região e, portanto, uma pluralidade de trajetórias, circuitos e percursos urbanos que,
como linhas de força, conectam a Cracolândia à cidade.4
Ano a ano, mais e mais poderosa
A depender da perspectiva, e como poucas pesquisas sobre a área vêm atentando, desse pequeno
recorte do espaço urbano conhecido como Cracolândia – que muitas vezes se reduz a uma única rua – é
possível acionar reflexões variadas sobre políticas governamentais, redução de danos, cosmopolítica
batista, conversões religiosas, prisões, comunidades terapêuticas, periferias, albergues, ocupações,
acesso à justiça, repressão e arbitrariedade policial, PCC, usos da cidade, interações entre citadinos,
interesse imobiliário e humanitário, processos de subjetivação existencial dos mais marginalizados da
cidade. Nada, portanto, mais descontextualizado do que a insistência do poder público em realizar ações
apenas locais. Conectora do urbano, da Cracolândia se depreendem questões sensíveis, portanto, que
explodem com visões estanques sobre a localidade e a observam não como uma “ilha impenetrável” na
região central de São Paulo, mas como ponto de gravitação de onde se vislumbra a cidade. Por isso, a
Cracolândia persiste, ano a ano, mais e mais poderosa.
Sua força reside principalmente na insistência e na resistência de usuários de crack, ex-presidiários,
prostitutas, alcoólatras, adolescentes infratores e moradores de rua, entre outros que são vistos, tratados e
classificados apenas como dejetos sociais, em permanecer no espaço, em existir, a despeito das variadas
iniciativas que visam retirá-los de lá ou mesmo eliminá-los, seja sob a lógica da punição, repressão e
controle – cujo principal exemplo é a utilização do mecanismo da prisão provisória –, seja sob a lógica da
assistência, saúde e cuidado. Esse embate é cotidiano e tem sua evidência performada todos os dias às
oito da manhã, às três da tarde ou às sete da noite. Pois todos os dias, nessas três ocasiões, a
municipalidade os importuna com a limpeza das ruas do entorno utilizando jatos de água, até quando
chove, e retirando seus pertences – na maioria das vezes à força, com tapas, chutes e socos –, que são
depositados em um caminhão por homens da guarda municipal que, muitas vezes, utilizam máscaras e
luvas nessa cruzada diária.
Do mesmo modo, todos os dias, três vezes por dia, as pessoas que ali estão se movimentam
orquestradamente, sempre com novos utensílios e objetos, sempre encontrando formas de se proteger do
asfalto molhado e do sol cortante. As pessoas que ali estão resistem existindo juntas, se acumulando aos
seus objetos, como que zombando do incrível aparato mobilizado para higienizá-las, docilizá-las, eliminálas e geri-las, permanecendo vivas no coração da metrópole.
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1 Mais amplamente, a década de 1990, dos anos de redemocratização, reestruturação produtiva,
abertura econômica e expansão de mercados, inclusive os ilícitos, é a mesma que ficou
conhecida pelo recrudescimento dos índices de crime violento, isto é, de morte matada, na
cidade de São Paulo. Para muitos moradores de bairros periféricos, esse período é lembrado
como “a época das guerras”. Ver Gabriel Feltran, “Crime que produz governo, governo que
produz crime”, Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v.6, n.2, p.232-255, 2012.
2 Sobre a questão do consumo de drogas no que se refere às políticas do PCC, ver Karina Biondi,
“Consumo de drogas na política do PCC”, Coletivo DAR, 14 mar. 2011. Disponível em:
http://coletivodar.org/2011/03/cartas-na-mesa-consumo-de-drogas-na-politica-do-pcc/.
3 Mais informações, cf. Taniele Rui, “Depois da ‘Operação Sufoco’: sobre espetáculo policial,
cobertura midiática e direitos na ‘Cracolândia paulistana’”, Contemporânea – Revista de
Sociologia da UFSCar, v.3, p. 287-310, 2013.
4 Parte dessa reflexão acerca da Cracolândia como potente conector urbano está sendo
desenvolvida no âmbito do Projeto Temático Fapesp 2014-2018: A gestão do conflito na
produção da cidade contemporânea: a experiência paulista, sob coordenação da professora
Vera da Silva Telles (Departamento de Sociologia, USP).
TANIELE RUI e FÁBIO MALLART: *Taniele Rui é pós-doutoranda do Núcleo de Etnografias Urbanas do Cebrap e autora do livro
Nas tramas do crack: etnografia da abjeção (Terceiro Nome/Fapesp, 2014); e Fábio Mallart é doutorando em Sociologia pela USP
(bolsista Fapesp) e autor do livro Cadeias dominadas: a Fundação Casa, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos
(Terceiro Nome/Fapesp, 2014). Jornal LE MODE DIPLOMATIQE BRASIL, Novembro de 2015.
Na terra de Vlad (LUIZ FELIPE PONDÉ)
OS JOVENS romenos sabem que o socialismo é uma mentira, coisa que os nossos não sabem. Vou
embora para a Romênia. Que dá vontade, dá. O país é lindo, os bárbaros da indústria do turismo ainda
não chegaram lá (é assim que o filósofo romeno Emil Cioran, radicado em Paris, referia-se ao turismo), a
comida é maravilhosa e as mulheres, um encanto. Carregam aquele sorriso doce e generoso que a
maioria esmagadora de nossas mulheres perdeu, porque o rosto foi tragado pelo "rancor biopolítico".
A terra de Vlad Tepes (pronuncia-se "tzepesh" e significa "empalador") tem o gosto de terras ainda
não "civilizadas". Por exemplo: lá, nossa paranoia com tabaco é quase inexistente. Para um apreciador de
charutos cubanos como eu, é um paraíso poder fumar em paz, tomando um aperitivo à mesa. Aliás, um
parêntese. Pousando no Brasil, tomo conhecimento da mais nova moda ridícula em saúde: bacon e
salame causam câncer? Daqui a pouco algum prefeito autoritário vai nos proibir de comer bacon e salame,
e vão espancar nas ruas pessoas com bacon e salame nas mãos.
O grande Chesterton, intelectual inglês do começo do século 20, bem tinha razão quando dizia que
parar de crer em Deus podia deixar as pessoas meio idiotas, porque iriam passar a crer em qualquer
bobagem como história, ciência, natureza e política. A capacidade contemporânea de "crendices
científicas" ultrapassa de longe a crença muito mais saudável em "las brujas". Minha avó, uma das
primeiras "suffragettes" do Brasil (protocolou seu primeiro pedido de direito ao voto feminino em 1927),
sábia e discreta como as avós "antigas" eram, dizia que boato causava câncer. Sei que as chatinhas de
plantão devem estar chocadas com a ideia de que corre sangue nobre (o sangue de uma das primeiras
suffragettes do Brasil) em minhas veias. Mas a vida é mesmo cheia de surpresas, não? Só espíritos
grosseiros acham que "entendem" o mundo.
Vlad, que viveu no século 15, é um herói nacional romeno, por isso, apesar de os romenos ganharem
dólares com o Conde Drácula, criado por Bram Stoker no final do século 19, eles odeiam o que fizeram
com seu "empalador" de turcos e bandidos comuns. Na história da Romênia, Vlad é conhecido pela sua
crueldade na resistência às invasões turcas otomanas.
Para muitos, ele deveria ser visto como um defensor medieval da cristandade. O título "Drácula", dado
por Bram Stoker, tem raiz na sua história verdadeira: seu pai fora membro de uma ordem de místicos
guerreiros cujo símbolo era um dragão ("drak" em romeno). Seu filho Vlad, então, recebeu o título de "filho
do dragão", Drácula. Interessante observar que a palavra "drak" em romeno evoluiu ao longo dos anos e
agora significa "satanás". Bram Stoker não estava de todo enganado...
Os romenos são mesmo um povo místico. A crença nos "strigoi" (o vampiro sendo um deles), uma
espécie de alma penada, produz um sentimento de que o mundo é habitado por forças invisíveis,
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passionais e inteligentes, sempre meio incontroláveis. Cioran dizia que seu povo era fatalista, corajoso e
cético para com as "invenções modernas". O senso de humor romeno é marcante. Você pode, por
exemplo, topar com fotos enormes de mulheres lindas em banheiros masculinos em meio aos Cárpatos.
Detalhe delicado que lembra aos homens a beleza da vida mesmo em momentos improváveis.
Mas falemos de coisas mais "sérias" (não na minha opinião). Outra coisa que encanta nos romenos
(em particular nos jovens) é sua saúde mental: sabem que o socialismo é coisa de mentiroso, corrupto e
autoritário, coisa que nossos jovens, coitados, submetidos a tortura mental já no ensino médio e no Enem,
ainda não descobriram.
Às vezes penso que teria sido melhor se os falsos guerrilheiros da democracia da "luta armada"
durante a ditadura tivessem vencido (a "luta armada" nunca foi uma luta pela liberdade, mas sim uma luta
por outra forma de ditadura, a soviética). Se nossos comunistas tivessem vencido, teríamos virado uma
ditadura como Cuba, mas, hoje, talvez, estivéssemos curados, como os jovens romenos estão. Você
consegue imaginar uma aula de história em que se ensine história, e não alguma bobagem marxista?
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Novembro de 2015.
Este livro é para o que nasce (JEAN WYLLYS)
Público aqui, no meu Blog, o prefácio generosamente escrito por Jean Wyllys para o meu livro
“Como Conversar Com Um Fascista” (ed. Record.) – Márcia Tiburi.
ALGUNS dizem que a história de um povo ou nação tem
um movimento pendular; outros dizem que ela se move numa
espiral, ora ascendente ora descendente (confesso que eu
prefiro esta segunda alegoria). Qualquer que seja o movimento
dessa história, ideias que estiveram encarnadas em pessoas e
episódios que fizeram sofrer indivíduos e/ou coletivos
costumam retornar como fantasmas ou assombrações
desejando reencarnar. Este retorno exige a evocação de
poderosos espectros que possam combater e espantar esses
fantasmas, como em Hamlet, de William Shakespeare.
A maioria da população brasileira está há décadas alijada
do direito a uma educação de qualidade que lhe faça cidadã
com capacidade de pensamento crítico e de reconhecimento
da diversidade cultural e humana. A ampliação do acesso ao
sistema formal de educação – incluindo aí o ensino superior –,
sobretudo na era Lula, não significou acesso a uma educação
de qualidade. Muitas “universidades” e faculdades,
principalmente
privadas,
têm
diplomado analfabetos
funcionais* por estabelecerem com os alunos uma relação
pautada no direito do consumidor.
Mais de 70% dos brasileiros não leem livros. A maioria se
informa apenas por tevês e rádios, que, pela própria dinâmica
da comunicação de massa, não aprofundam as questões de
interesse público e divulgam as informações de acordo com
interesses políticos e financeiros de seus concessionários ou administradores. Ao mesmo tempo, e graças
à inclusão via consumo de bens materiais garantida pelas políticas sociais da assim chamada “Era Lula”,
parte expressiva e crescente dessa maioria plugou-se na internet – um dilúvio de informações falsas e
verdadeiras nem sempre fáceis de distinguir para alguém sem repertório cultural ou habilidade em
interpretar texto – e se organizou em redes sociais digitais por meio de novas tecnologias da comunicação
e da informação, como os smartphones.
Ora, isso só poderia levar esse contingente a aderir aos discursos demagógicos e manipuladores que
interpelam preconceitos e sensos comuns históricos e propõem soluções fáceis, mas mentirosas e/ou
autoritárias para as questões complexas que nos envolvem diariamente, como a criminalidade e a
violência urbanas, as desigualdades social e de gênero, as tensões raciais, a diversidade de orientação
sexual e identidade de gênero, a intolerância religiosa, a mobilidade urbana, os conflitos agrários e os
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desastres ambientais. Essa situação acrescida da lógica egoísta – “farinha pouca, meu pirão primeiro” –
que as crises econômicas e/ou financeiras como a que estamos vivendo costumam trazer são provas
irrefutáveis do retorno e reencarnação de um fantasma perigoso chamado fascismo.
Diante desse mal, há que se evocar espectros que possam exorcizá-lo. A filosofia e as ciências
humanas não podem, portanto, abrir mão da responsabilidade de evocarem a razão iluminista, o
conhecimento científico, a honestidade intelectual, as liberdades civis e a democracia. É o que faz a
filósofa Márcia Tiburi neste Como conversar com um fascista? – Reflexões sobre o cotidiano autoritário
brasileiro, num texto que impressiona pela combinação da profundidade e sofisticação intelectuais com
uma enorme generosidade com o leitor que não compartilha de seu repertório cultural. Portanto, este livro
é para o que nasce!
Preocupada com o fascismo que vem afetando a política brasileira nos últimos cinco anos e ciente de
que este costuma prescrever a eliminação simbólica e/ou física dos “inimigos” que constrói como forma de
se “justificar”, Márcia Tiburi propõe o diálogo como forma de resistência à banalização do mal a que
assistimos atônitos, indiferentes ou indignados, ou para a qual damos nossa contribuição, seja em forma
de postagens ou comentários no Facebook, seja em ações concretas contra o outro (como, por exemplo,
chutar e insultar dois garotos negros rendidos pela polícia apenas porque envolvidos numa briga de
colegiais que assustou frequentadores de um shopping de luxo).
A filósofa judia Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” quando analisou o julgamento
de Eichmann, um dos nazista levados ao tribunal. Com esta expressão, a filósofa se referia ao mal que
não é enraizado (que não é “radical”, para usar a expressão de Kant) nem praticado como atitude
deliberadamente maligna. A banalização do mal é feita pelo ser humano comum que não se responsabiliza
pelo que faz de ruim ou acha que o que faz de ruim não tem consequências para os outros; não reflete,
não pensa. Arendt se referiu a Eichmann como uma pessoa tomada pelo “vazio do pensamento”; como um
imbecil que não pensava; que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência – e que, por tudo
isso, banalizava o mal que praticava. A banalidade do mal pode, portanto, ser feita por qualquer pessoa
carente de pensamento crítico e, por isso, insensível à dor do outro e às consequências de seus atos.
O fascista é aquele que banaliza o mal. Para Márcia Tiburi, ele é burro na medida em que não acessa
o campo do outro porque lhe falta conhecimento e imaginação para tal. A burrice é o cancelamento do
processo de conhecimento e de imaginação. Nesse sentido – e para usar as palavras da própria filósofa –
“o fascismo é a máscara mortuária do conhecimento”. Outro aspecto desse mal apontado por Tiburi é o
analfabetismo político. O dramaturgo Bertolt Brecht afirmou, num texto memorável, que “o pior analfabeto
é o analfabeto político”. Concordo com esta afirmação desde o momento em que a conheci, já consciente
de que eu era um “animal político”, para citar a expressão de Aristóteles. Porém, porque os tempos eram
outros (e, naqueles tempos, o dramaturgo alemão sequer sonhava com as transformações sociais,
culturais e tecnológicas de que somos testemunhas, promotores e produtos),
Jack e Dino Chapman
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Brecht definia o analfabeto político como aquele que “não ouve, não fala, nem participa dos
acontecimentos políticos”; aquele que “é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a
política”. Dessa definição brechtiana do analfabeto político, a única característica que sobrevive aos dias
atuais é o proclamado e contraditório ódio à política, analisado por Tiburi com acuidade e sem
condescendências nas páginas seguintes.
“O que leva um indivíduo a reunir-se em um coletivo sem pensar com cuidado crítico nas causas e
consequências dos seus atos configura aquilo que chamamos de analfabetismo político. Mas, no caso dos
personagens jovens que surgem atualmente, líderes do fascistoide Movimento Brasil Livre, está em jogo a
forma mais perversa de analfabetismo político. Aquele de quem foi manipulado desde cedo e não teve
chance de pensar de modo autocrítico porque sua formação foi, no sentido político, ‘de-formação’, a
interrupção da capacidade de pensar, de refletir e de discernir”, argumenta.
Mas, sem discordar de Tiburi e apenas dando minha modesta contribuição para a sua excelente e
necessária reflexão, digo que, por causa das transformações sociais, culturais e tecnológicas que
experimentamos, o “analfabeto político” dos dias atuais é bem diferente daquele dos tempos de Brecht. O
analfabeto político da atualidade fala e participa dos acontecimentos político mesmo renunciando à tarefa
de se informar melhor sobre eles ou partindo de preconceitos, boatos ou mentiras descaradas sobre tais
acontecimentos.
O analfabeto político da contemporaneidade – ao contrário daquele dos tempos de Brecht – participa
dos acontecimentos políticos “opinando” sobre eles nas redes sociais digitais sem qualquer cuidado crítico.
Eu poderia recorrer a muitos exemplos do atual comportamento do “analfabeto político”, mas, para
encurtar este prefácio, já que o que interessa é mesmo o texto de Márcia Tiburi, vou me restringir a uma
das muitas estupidezes escritas em minha página no Facebook por ocasião da aprovação do Marco Civil
da Internet: “O marco servil [sic] vai acabar [sic] com o facebook e traze [sic] o comunismo vai manda [sic]
mata [sic] todo mundo começando por você seu viado filho da puta [sic]”.
Este comentário é um exemplo do analfabetismo político contemporâneo, mas é também o sintoma de
uma ameaça à democracia e à vida com pensamento: a maioria dos “analfabetos políticos” que
vociferaram nas redes sociais digitais, principalmente a maioria daqueles que fazem menção ao
“comunismo” ou ao “socialismo”, deixaram claro quais as fontes de suas afirmações acerca do
acontecimento em questão: os colunistas da revista marrom semanal; o senil reacionário que se diz
“filósofo”; e a família de parlamentares (deputado federal, deputado estadual e vereador) que parasita o
poder público para difamar adversários e estimular o fascismo. Nesse sentido e apesar da virulência e
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arrogância com que afirma sua ignorância, o “analfabeto político” é uma vítima daquele que Brecht
considera “o pior de todos os bandidos”: o político vigarista, desonesto intelectualmente, corrupto e lacaio
das grandes corporações.
Portanto, é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha
acesso a educação de qualidade e às artes, em especial às artes vivas, com destaque para o teatro. É
preciso insistir no diálogo com o fascista. Mas isso é possível? Como conversar com um fascista? Leia
este livro e você terá as repostas.
* De acordo com pesquisa realizada pelos ministérios da Educação e da Cultura para a construção do
Plano Nacional do Livro e da Leitura, 38% dos estudantes universitários brasileiros foram avaliados em
2011 apenas como alfabetizados funcionais (níveis rudimentar e básico); este número atingia 23% dos
universitários em 2001. O número de universitários plenamente alfabetizados, por outro lado, declinou de
76% em 2001 para 62% em 2011. Certamente a ausência da competência plena de leitura prejudica o
desempenho dos estudantes brasileiros em todas as áreas de conhecimento, indicando a necessidade
clara da intensificação de medidas que priorizem o acesso à leitura plena em todos os níveis como uma
das formas mais consistentes de apoiar a melhoria da qualidade da educação em nosso País.
JEAN WYLLYS é Jornalista, escritor, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, professor de Teoria da
Comunicação da Universidade Veiga da Almeida e deputado federal pelo Psol- RJ e Deputado Federal pelo PSOL do Rio de
Janeiro. Este texto é o prefácio do livro recente da filósofa Márcia Tiburi “Como Conversar Com Um Fascista”, e foi divulgado do
blog da autora. Revista CULT, Novembro de 2015.
Jovens precisam dormir mais (MICHELE MULLER)
Atenta à saúde dos estudantes, a Associação Americana de Pediatria passou a recomendar que
escolas iniciem somente após as 8h30, como possível prevenção ao risco de depressão na
adolescência
NOVO estudo feito por uma equipe de pesquisadores da Universidade do Texas sugere que a
privação do sono pode estar entre os principais fatores de risco de depressão entre adolescentes. De
acordo com a pesquisa, publicada na edição de julho do Jornal Sleep, da Sociedade de Pesquisa do Sono,
os jovens que dormem seis horas ou menos têm três vezes mais chances de ter depressão que aqueles
que garantem o mínimo de nove horas diárias de sono. A pesquisa, liderada pelo médico e professor de
Ciências Comportamentais Robert Roberts, investigou os hábitos de 4.175 adolescentes durante um mês
e acompanhou seu comportamento quatro anos depois. Esse foi o primeiro estudo a mostrar que existe
um efeito recíproco resultante da relação entre a quantidade de horas dormidas e a depressão.
Se a questão é tão significativa quanto sugerem os pesquisadores, a incidência de depressão deve
ser inversamente proporcional ao número de horas que se dorme. E tudo indica que isso está
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acontecendo. De acordo com pesquisa realizada por uma equipe da Universidade Columbia e publicada
em 2013 no Jornal Oficial da Sociedade Americana de Pediatria, o tempo de sono entre adolescentes foi
reduzido no período entre 1991 e 2012. A análise de dados de 270 mil jovens americanos mostrou que o
grupo que afirma dormir menos de sete horas aumentou de forma contínua nesse período de 20 anos. A
maior diferença foi observada entre jovens de 15 anos: em 2012, 37% reportaram dormir menos de sete
horas por noite, contra 28% em 1991.
Com isso é possível concluir que mais de um terço dos adolescentes dorme no mínimo duas horas
menos que o recomendado para a idade. No Brasil, a realidade não parece muito diferente. No início
desse ano, o Instituto de Pesquisa e Orientação da Mente apontou que 88% dos 1.830 entrevistados não
consideram seu sono satisfatório. Tanto os brasileiros quanto os americanos concluíram que os aparelhos
eletrônicos estão entre os grandes vilões do sono. Os pesquisadores do Texas frisaram que o uso de
mídias sociais e o aumento da demanda de estudos e da quantidade de atividades extracurriculares
também podem contribuir para a queda na quantidade de horas dormidas.
Atenta à necessidade de garantir as nove ou mais horas de sono entre adolescentes, a Sociedade
Americana de Pediatria publicou um novo estatuto, no ano passado, recomendando que as escolas
iniciem as aulas sempre depois das 8h30. De acordo com a entidade, dessa forma os horários acadêmicos
são alinhados ao ritmo circadiano do sono dos adolescentes. Portanto, não apenas compromissos e
eletrônicos mantêm os adolescentes acordados: seu ciclo biológico é diferente do de crianças pequenas,
sendo muito mais difícil, nessa fase, dormir e acordar cedo.
No entanto, o sistema escolar brasileiro está longe de reconhecer a importância da causa que os
pediatras americanos defendem. Aqui, crianças pequenas são privadas do importante soninho da tarde,
enquanto pré-adolescentes são arrancados da cama geralmente por volta das seis da manhã. Vão à
escola sonolentos e no período em que deveriam estar estudando ficam livres para passear em shoppings
e brincar no celular. Se nosso sistema educacional considerasse a saúde e o ritmo biológico dos
estudantes como fatores que superam em importância a praticidade que os horários atuais representam
para muitos pais e escolas, iria garantir mais disposição física e mental dos adolescentes, reduzindo as
chances de depressão. Mais que isso: poderia provocar uma melhora no rendimento acadêmico dos
alunos.
Hoje sabemos que uma boa noite de sono é fundamental para a consolidação da memória e, como
consequência, para o sucesso na aprendizagem. As habilidades motoras tendem a se aprimorar em
até 20% em
uma única noite de sono
Hoje sabemos que uma boa noite de sono é fundamental para a consolidação da memória e, como
consequência, para o sucesso na aprendizagem. A cada ano surgem novas pesquisas reafirmando a
importância do sono para o bom desenvolvimento cognitivo. Recentemente, neurocientistas da
Universidade de Nova York (NYU) comprovaram, em estudos com ratos, que durante o sono profundo, ou
ciclo de ondas lentas (slow wage sleep), as habilidades aprendidas durante o dia são “ensaiadas”
repetidamente. Essa neurorrepresentação das memórias em replay é fundamental para o fortalecimento
das conexões sinápticas e, assim, para a consolidação da aprendizagem. Existem muitas evidências de
que o sono é vital para a formação de vários tipos de memória. De acordo com Penelope Lewis, autora de
The Secret World of Sleep (O Mundo Secreto do Sono), habilidades motoras tendem a se aprimorar em
até 20% em uma única noite de sono.
Assim como é importante lembrar, é necessário esquecer. Não queremos saturar o cérebro com
informações sem importância e é enquanto dormimos, mais especificamente no estágio de ondas lentas,
que ocorre essa “limpeza” de dados processados durante o dia. Ao enfraquecer as conexões não
significativas, o sono mantém a capacidade de armazenamento do cérebro, fundamental para as funções
cognitivas.
Enquanto o sistema educacional brasileiro não considera uma adaptação de horários, o que podemos
fazer é evitar, à noite, os estímulos que comprovadamente afastam os adolescentes da cama. Somente
uma reorganização da rotina familiar pode garantir o mínimo de sono necessário para um melhor
desenvolvimento cognitivo e social nessa fase em que a saúde mental é tão frequentemente abalada.
MICHELE MULLER é jornalista, esporádica esta publicação, com especialização em Neurociência Cognitiva e autora do blog:
http://neurocienciasesaude.blogspot.com.br. Revista PSIQUE, Novembro de 2015.
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Minhas experiências com a verdade (LÍLIAN GRAZIANO)
Em um mundo onde a palavra parece perder a importância, o exercício da autenticidade pode ser
uma vantagem competitiva
TODA PESSOA que escreve (e sobretudo lê) certamente já passou pela experiência de se deparar
com um texto, às vezes apenas uma única frase, e lamentar-se de não ter sido sua autora. Isso aconteceu
comigo inúmeras vezes, mas desta vez foi um título que me arrebatou: Minhas Experiências com a
Verdade. Nada mais nada menos que a biografia de Gandhi. Pudesse eu escrever uma autobiografia, não
haveria título melhor. De fato, “Minhas experiências com a verdade” poderia ser o título da autobiografia de
qualquer pessoa que possui a autenticidade como uma de suas forças pessoais.
Considerada na Antiguidade grega como uma característica sagrada, a autenticidade era o principal
critério a ser levado em conta na formação do homem-excelência e, durante certo período, também foi
condição essencial na outorga do título de cidadão na sociedade helênica. Nessa época, todo jovem que
passasse pelo sistema educacional arcaico da Paideia deveria fazer o solene juramento a Eros: “Nada
dirás ou farás que não seja em nome de Eros”. Mas qual seria a relação de tal juramento com a
autenticidade? Para respondermos a essa pergunta precisamos lembrar que para o grego antigo qualquer
coisa seria considerada sagrada do ponto de vista de Eros (ou seja, do ponto de vista erótico) se revelasse
a verdade do ser. Vale dizer também que, nesse sentido, o conceito arcaico de prostituição em muito se
diferia do seu significado atual, na medida em que correspondia ao ato de se fazer qualquer coisa que não
revelasse a verdade do ser, ou seja, em termos mais heidegerianos, qualquer coisa que ocultasse ou
impedisse a manifestação da exata correspondência entre essência e aparência. Sim, porque nessa época
(quem diria?) a autenticidade era erótica.
Quando Atenas passou a oferecer o título de cidadão a qualquer sujeito que lutasse em seu nome e
voltasse vivo, deu-se o início do fim de toda uma cultura que primava pela excelência do caráter. Mas
ainda assim a deterioração da autenticidade na cultura ocidental se deu lentamente. Ainda no século XIX ,
propriedades eram negociadas no que se costumava chamar de “fio do bigode”, ou seja, na simples
palavra dos envolvidos.
São as palavras líquidas que tornam imperativo que qualquer contato no escritório seja formalizado
por um email. Estamos perdendo a capacidade de confiar nas pessoas, deixando de ouvi-las com
atenção
Concordo com o sociólogo Zygmunt Bauman, que afirma vivermos hoje os “tempos líquidos”, ou seja,
uma sociedade do descartável na qual nada é feito para durar. Contudo, creio que mais grave do que o
tempo líquido de Bauman (ou talvez até mesmo como consequência dele) seja o que chamo de palavras
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líquidas. Palavras esvaziadas de sentido, esvaziadas de verdade, palavras que mais escondem do que
revelam, palavras que o vento leva, como afirma o dito popular.
São as palavras líquidas que tornam imperativo que qualquer contato no escritório seja formalizado
por um email. Estamos perdendo a capacidade de confiar nas pessoas, deixando de ouvi-las com atenção
porque, afinal de contas, tudo será registrado por escrito para consulta posterior. E porque tudo será
registrado, apenas o registrado se torna real. E, assim, a palavra se liquefaz, tornando-se dependente da
escrita e dos contratos que jazem num mar de firmas reconhecidas.
É nesse contexto que os autênticos se sobressaem. Adoradores da antiga arte de fazer valer a sua
palavra, mostram- se como são, vivenciam seus valores e fazem o que dizem tanto quanto o que assinam.
Eis uma excelente vantagem competitiva! Mas não nos deixemos levar por exageros. Talvez a primeira
lição que uma pessoa autêntica deva aprender seja a de diferenciar sinceridade de “sincericídio”. Em
minha autobiografia imaginária esse certamente seria um longo
LÍLIAN GRAZIANO é psicóloga e doutora em Psicologia pela USP, com curso de extensão em Virtudes e Forças Pessoais pelo
VIA Institute on Character, EUA. É professora universitária e diretora do Instituto de Psicologia Positiva e Comportamento, onde
oferece atendimento clínico, consultoria empresarial e cursos na área. [email protected]ítulo. Revista
PSIQUE, Novembro de 2015.
Maturidade em falta (ROSELY SAYÃO)
O ENEM passou, os vestibulares passarão e muitos pais irão respirar aliviados. Muitos deles mal
sabem que um caminho bem mais tortuoso que o anterior poderá começar. A título de ilustração, vamos
ver o exemplo de Cláudia, que sempre foi uma excelente aluna: estudiosa, comprometida, nunca deu
trabalho aos pais. Almejava cursar uma graduação em uma universidade concorrida e se empenhou muito
para tanto.
Entrou de primeira. No primeiro mês de aulas ficou muito animada, mas logo em seguida passou a
duvidar da escolha feita. Antes de finalizar o primeiro semestre, desistiu do curso e voltou a fazer cursinho.
Hoje, já está em seu terceiro curso universitário e continua insatisfeita. Seus pais não sabem o que fazer.
Paulo nunca se comprometeu muito com os estudos. Levou a escola sempre no limite: repetiu o primeiro
ano do ensino médio e só terminou essa etapa escolar graças ao empenho de seus pais na contratação
de professores particulares. Não queria fazer faculdade. Seus pais insistiram, e prestou um vestibular só
para ver como era. Passou. Dizia aos pais que estava cursando, mas nem aparecia na universidade.
Hoje, passa o tempo convivendo com os amigos e indo a baladas. Seus pais se sentem reféns da
situação. Esses dois jovens, que representam muitos outros, têm em comum uma família em boa situação
socioeconômica e pais que, apesar de não concordarem com a vida que os filhos levam, não encontraram
ainda uma maneira de agir principalmente porque os filhos se dizem adultos e rejeitam a interferência dos
pais. O que é ser adulto, afinal? Ter mais de 18, 21 anos? Não! Ser adulto é ter maturidade, fazer as
próprias escolhas na vida e arcar com elas. Esses jovens citados hesitam ao fazer suas escolhas e não
arcam com a própria vida: seus pais é que fazem isso. São adolescentes, independentemente da idade.
Permanecem sob a tutela econômica dos pais, que não têm coragem de retirá-la. Jovens que levam
esse tipo de vida precisam ainda de seus pais: estes, precisam dar um empurrão no filho para precipitá-lo
na maturidade. E, para tanto, eles precisam sentir necessidade disso. Você já se deu conta, caro leitor, de
que criamos os filhos hoje sempre a evitar que eles sintam necessidades? Estamos quase sempre a nos
antecipar às necessidades deles: antes que eles queiram, queremos por eles e damos a eles.
Isso faz com que eles tenham uma visão bem equivocada da vida: acreditam que não precisam
batalhar para viver, que outros farão isso por eles. E esses outros são seus pais, não é verdade? Uma
garota de 22 anos, que vive uma situação semelhante à dos exemplos citados anteriormente, foi
interpelada pelos pais sobre como viveria quando eles não estivessem mais presentes. A resposta dela
assustou seus pais: "Vou viver da herança que vocês me deixarem".
A situação é mais preocupante do que muitos pais imaginam. Muitos jovens vivem às custas de seus
pais. Já outros vivem por seus pais - há poucos dias, um deles me disse: "Eu preciso ir bem no Enem, não
posso decepcionar meus pais". Perguntei se ele queria, tanto quanto seus pais, fazer a faculdade, e a
resposta que ele deu foi: "Não sei, nunca parei para pensar nisso." Precisamos ajudá-los a crescer, não
precisamos?
ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no
ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Outubro de 2015.
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A felicidade é deprimente (CONTARDO CALLIGARIS)
É POSSÍVEL que a depressão seja o mal da nossa época. Ela já foi imensamente popular no
passado. Por exemplo, os românticos (sobretudo os artistas) achavam que ser langoroso e triste talvez
fosse o único jeito autêntico de ser fascinante e profundo. Em 1859, Baudelaire escrevia à sua mãe: "O
que sinto é um imenso desânimo, uma sensação de isolamento insuportável, o medo constante de um
vago infortúnio, uma desconfiança completa de minhas próprias forças, uma ausência total de desejos,
uma impossibilidade de encontrar uma diversão qualquer".
Agora, Baudelaire poderia procurar alívio nas drogas, mas ele e seus contemporâneos não teriam
trocado sua infelicidade pelo sorriso estereotipado das nossas fotos das férias. Para um romântico, a
felicidade contente era quase sempre a marca de um espírito simplório e desinteressante. Enfim, diferente
dos românticos, o deprimido contemporâneo não curte sua fossa: ao contrário, ele quer se desfazer desse
afeto, que não lhe parece ter um grande charme.
Alguns suspeitam que a depressão contemporânea seja uma invenção. Uma vez achado um remédio
possível, sempre é preciso propagandear o transtorno que o tal remédio poderia curar. Nessa ótica, a
depressão é um mercado maravilhoso, pois o transtorno é fácil de ser confundido com estados de espírito
muito comuns: a simples tristeza, o sentimento de inadequação, um luto que dura um pouco mais do que
desejaríamos etc. De qualquer forma, o extraordinário sucesso da depressão e dos antidepressivos não
existiria se nossa cultura não atribuísse um valor especial à felicidade (da qual a depressão nos privaria).
Ou seja, ficamos tristes de estarmos tristes porque gostaríamos muito de sermos felizes.
Coexistem, na nossa época, dois fenômenos aparentemente contraditórios: a depressão e a
valorização da felicidade. Será que nossa tristeza, então, não poderia ser um efeito do valor excessivo que
atribuímos à felicidade? Quem sabe a tristeza contemporânea seja uma espécie de decepção"¦ Em agosto
de 2011, I. B. Mauss e outros publicaram em "Emotion" uma pesquisa com o título: "Será que a procura da
felicidade faz as pessoas infelizes?" (migre.me/rWgNC). Eles recorreram a uma medida da valorização da
felicidade pelos indivíduos e, em pesquisas com duas amostras de mulheres (uma que valorizava mais a
felicidade e a outra, menos), comprovaram o óbvio: sobretudo em situações positivas (por exemplo, diante
de boas notícias), as pessoas que perseguem a felicidade ficam sempre particularmente decepcionadas.
Numa das pesquisas, eles induziram a valorização da felicidade: manipularam uma das amostras
propondo a leitura de um falso artigo de jornal anunciando que a felicidade cura o câncer, faz viver mais
tempo, aumenta a potência sexual –em suma, todas as trivialidades nunca comprovadas, mas que
povoam as páginas da grande imprensa. Depois disso, diante de boas notícias, as mulheres que tinham
lido o artigo ficaram bem menos felizes do que as que não tinham sido induzidas a valorizar especialmente
a felicidade. Conclusão: na população em geral, a valorização cultural da felicidade pode ser
contraprodutiva.
Mais recentemente, duas pesquisas foram muito além e mostraram que a valorização da felicidade
pode ser causa de verdadeiros transtornos. A primeira, de B. Q. Ford e outros, no "Journal of Social and
Clinical Psychology", descobriu que a procura desesperada da felicidade constitui um fator de risco para
sintomas e diagnósticos de depressão (migre.me/rWhcK). A pesquisa conclui que o valor cultural atribuído
à felicidade leva a consequências sérias em saúde mental. Uma grande valorização da felicidade, no
contexto do Ocidente, é um componente da depressão. E uma intervenção cognitiva que diminua o valor
atribuído à felicidade poderia melhorar o desfecho de uma depressão. Ou seja, o que escrevo
regularmente contra o ideal de felicidade talvez melhore o humor de alguém. Fico feliz.
Enfim, em 2015, uma pesquisa de Ford, Mauss e Gruber, em "Emotion" (migre.me/rWhp4), mostra
que a valorização da felicidade é relacionada ao risco e ao diagnóstico de transtorno bipolar. Conclusão:
cuidado, nossos ideais emocionais (tipo: o ideal de sermos felizes) têm uma função crítica na nossa saúde
mental. Como escreveu o grande John Stuart Mill, em 1873: Só são felizes os que perseguem outra coisa
do que sua própria felicidade.
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Outubro de 2015.
Os suplícios da carne (DRAUZIO VARELLA)
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VILAS
A CARNE vermelha é o suspeito habitual. Volta e meia surgem inquéritos populacionais que a
acusam de provocar ataques cardíacos, derrames cerebrais, câncer e outros achaques menos populares.
Com o tempo, a análise crítica desses estudos contesta essas acusações, e o assunto sobrevive apenas
no lixo que se amontoa na internet. Ao constatar que os cientistas se contradizem, a população não sabe o
que pensar.
Um relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde), divulgado nesta semana, joga mais lenha
nessa fogueira. Depois de avaliar mais de 800 trabalhos publicados, um painel de 22 especialistas da Iarc
(Agência Internacional de Pesquisas em Câncer) ouvidos pela OMS concluiu que o consumo de carnes
processadas – salsicha, linguiça, bacon, salame, presunto, mortadela – está associado a um pequeno
aumento no risco de câncer de cólon e reto. E, em menor grau ainda, ao risco de câncer de próstata e de
pâncreas.
Como consequência, a carne processada foi colocada no Grupo 1, categoria que reúne fatores em
relação aos quais há "evidências suficientes" de que podem causar câncer. Pertencem a esse grupo
tabaco, asbesto, álcool, radiações solares e poluição. Quanto à carne vermelha –caracterizada como a
musculatura de bois, carneiros, porcos, cabritos e outros–, o painel foi bem mais cauteloso: trata-se de um
alimento "provavelmente" carcinogênico, conclusão baseada em "evidências limitadas". A agência afirmou
categoricamente que as carnes processadas, o cigarro, o álcool e os demais componentes do Grupo 1 não
são farinha do mesmo saco: "Isso NÃO quer dizer que esses fatores de risco sejam igualmente perigosos".
Lógico que não são. O cigarro aumenta 20 vezes o risco de câncer de pulmão e causa 1 milhão de
mortes anuais por câncer no mundo. Ao consumo excessivo de álcool são atribuídas 600 mil mortes por
ano; aos efeitos da poluição 200 mil. E ao consumo de carnes processadas? Segundo o relatório, o risco
aumenta 18% para cada 50 gramas ingeridas diariamente. Segundo as estimativas mais recentes do
Global Burden of Disease Project, dietas ricas em carnes processadas seriam responsáveis por 34 mil
mortes anuais por câncer, entre os 7 bilhões de habitantes do planeta.
Veja o caso dos Estados Unidos, país com uma das maiores incidências de câncer de cólon e reto e
taxas mais elevadas de consumo per capita de carnes processadas. A probabilidade de um americano
desenvolver esse tipo de câncer no decorrer da vida é estimada em 5%. Se ingerir 50 gramas de carne
processada todos os dias, o aumento de 18% faria o risco crescer para 5,9%. Se comer 100 gramas
diárias, acrescentará mais 18% aos 5,9%, ou seja, passará a correr risco de 6,9%.
Submeter carne a altas temperaturas, ao contato direto com as chamas, com o calor das chapas e do
óleo fervente ou à defumação facilita a formação de certas aminas e hidrocarbonetos aromáticos
reconhecidamente carcinogênicos há muitos anos. A classificação da Iarc se refere apenas à qualidade
dos dados acumulados, não à magnitude do risco. Em outras palavras, parece haver evidências sólidas de
que dietas ricas em carnes processadas estejam associadas a um pequeno aumento da probabilidade de
desenvolver câncer de cólon e reto, mas calcular o risco de cada um de nós é impossível.
Digo parece, porque não existe consenso entre os epidemiologistas. Não houve unanimidade sequer
entre os 22 especialistas do painel da Iarc: sete deles se abstiveram de votar a favor das conclusões por
não estarem convencidos da qualidade das evidências apresentadas ou por não concordarem com elas. É
possível que o consumo exagerado de carne seja um dos múltiplos fatores para explicar a prevalência de
câncer de intestino nos Estados Unidos, na comunidade europeia e na Austrália, mas o efeito é pequeno.
Na Inglaterra, por exemplo, não há evidências concretas de que os vegetarianos tenham risco mais baixo
desse tipo de câncer.
E você, leitor? Se quiser reduzir o risco de câncer e de outras doenças, não fume de jeito nenhum,
beba pouco, faça exercícios, não engorde, coma quatro ou cinco porções de frutas e vegetais todos dias e
não fuja dos prazeres da carne, sem exageros.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Outubro de 2015.
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Ideologias atrapalham a educação? Sim (FERNANDO SCHÜLER)
É inaceitável que uma prova apresente como fato apenas a opinião do autor. Impor sua visão de
mundo é uma covardia dos professores que o fazem
RESOLVI conferir por conta própria. O país anda
meio nervoso, pensei cá comigo, vai que haja certo
exagero neste barulho todo em função da
“ideologização” da prova do Enem. Lá fui eu, lembrar
os velhos tempos de professor de cursinho prévestibular (faz tempo...) e fazer a prova. Concentrei-me
na prova de “Humanidades e suas tecnologias”, e fui
de espírito aberto. Nada de procurar pelo em casca de
ovo. O resultado foi o seguinte: das 45 questões, 11
me pareceram claramente ideológicas. Um punhado
de lugares-comuns feitos de citações de Paulo Freire,
David Harvey, Slavoj Zizek, além de artigos opiniáticos
em revistas como Caros Amigos e Diplomatique.org.
Haver 25% em questões ideológicas não é
propriamente uma tragédia, e seguramente não foi a
primeira vez que aconteceu. Mas é inaceitável. Por óbvio, 100% desses 25% pendiam para o lado das
ideias do partido do governo. Dito isso, deixo claro que acharia igualmente patético se houvesse 25% de
questões ideológicas com sinal invertido. Mas ninguém precisa se preocupar com isso. Não encontrei
nenhuma. Para ser claro: ao criticar o viés ideológico, em uma prova, não estou sugerindo nada parecido
com a existência de uma verdade histórica. Estou calejado demais para acreditar nessas coisas. Penso
que é possível, sim, certo cuidado acadêmico. O respeito a fontes, a análise ponderada dos argumentos e
das séries estatísticas.
Sigo o caminho de Max Weber, em seu memorável discurso sobre a “Ciência como vocação”, na
Universidade de Munique, em 1917, para quem a sala de aula jamais deveria abrigar o “profeta” e o
“demagogo”. Que a ciência perseguisse um tipo especial de neutralidade: quanto à oferta do “sentido”. O
sentido pertence ao indivíduo, em última instância. O professor que não use sua posição de poder para
impor visões de mundo aos alunos. Fazer isso não passa de ato de covardia.
O truque mais comum de quem defende a ideologização do ensino é dizer que, no final das contas,
tudo é ideologia. Isso simplesmente não é verdade. O que há, por exemplo, de ideológico em mostrar
imagens de um calendário medieval, como faz a questão 5, e perguntar sobre a concepção de tempo que
elas expressam? Trata-se simplesmente de um exercício de interpretação histórica. Bem elaborado, digase de passagem.
O caráter ideológico da prova não está em citar Milton Santos, dizendo que a globalização é perversa
e geradora de desemprego. O problema é a “naturalização” da afirmação: apresentar como um fato aquilo
que é apenas a opinião política do autor. Algo próximo a um valor, no sentido weberiano. E isso,
infelizmente, é o que se passou na prova do Enem.
Outro dado inquietante é perceber uma prova feita a partir de citações de segunda mão, retiradas da
internet ou de livros de claríssimo viés político, sem referência a fontes (confiáveis ou não). É o caso da
questão 20, em que Zizek refere-se a um “fato” cuja única “comprovação” é a própria falação de Zizek. No
livro mencionado, ele não revela sua fonte. Não tenho a menor ideia se o evento citado é ou não
verdadeiro. Imagino que nem os autores da pergunta. Eles parecem simplesmente acreditar em Zizek. E
isso não pode ocorrer em uma prova oficial como o Enem.
Há uma série de questões simplesmente mal formuladas. Exemplo: a questão 34 traz um misterioso
texto, do site Diplomatique.org, tratando da proibição de um “aplicativo de compartilhamento de carros”
(seria o Uber?) na Alemanha e de serviços “americanos” de informática (o Google? O Outlook?) pelo
governo chinês. Com base nessas menções, pergunta-se qual é a preocupação dos países com a
“espionagem”, obrigando o pobre aluno a marcar a resposta “segurança de dados”. Tentei entender que
relação poderia haver entre algo como o Uber e a segurança de dados, na internet, mas logo desisti.
Sobre a polêmica questão acerca do “conceito de mulher”, tenho uma opinião eventualmente distinta
da maioria dos críticos do exame. Não a coloquei na minha lista de questões ideológicas. Não o fiz
exatamente por ela não “naturalizar” a posição de Simone de Beauvoir.
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O texto, retirado do livro Segundo sexo, diz que o “feminino” surge como o “produto intermediário entre
o macho e o castrado”. Ok, a frase é esquisita. Daria boas discussões, talvez uma boa performance, ou
quem sabe não signifique coisa nenhuma. Mas é a opinião de Beauvoir. Qualquer aluno mais esperto
marcaria a opção “c”. Mesmo sem ter (como eu, reconheço) a mais remota ideia do que venha a ser essa
meia distância entre o macho e o castrado.
Em resumo, penso que o Inep, responsável pela avaliação, e o Ministério da Educação deveriam rever
o modo de elaboração da prova. Não acredito, sinceramente, que os profissionais do Inep, a começar pelo
seu presidente, desejassem fazer uma prova ideológica ou de menor qualidade. Acho apenas que as
coisas por vezes saem do controle. E é preciso verificar o que está acontecendo.
Não me alinho entre aqueles que imaginam existir uma guerra do fim do mundo no Brasil. Erros como
esse foram cometidos, igualmente, em outros governos. Haja vista a proliferação de livros didáticos
perversamente ideológicos, ao estilo dos Nova história crítica e História e vida integrada, que já
circulavam, com a chancela do MEC, muito antes do atual governo. E acho que seria igualmente ruim,
para o Brasil, se algum grupo ideologicamente oposto ao atual resolvesse “dar o troco”, uma vez no poder,
produzindo uma educação politicamente orientada do seu próprio jeito.
Há um bocado de gente boa, na Academia Brasileira, querendo ajudar. Preocupada com o rigor
acadêmico. Disposta a não se deixar levar por pequenos apetites políticos e ideológicos, e fazer uma
prova que dê orgulho ao Brasil. Que sirva de referência a nossos professores e estudantes. Que acabe, de
uma vez por todas, com esse contínuo exercício de “simulação intelectual”, segundo o qual nossos
estudantes devem imaginar qual a melhor resposta “de esquerda” para cada pergunta de um exame
público.
FERNANDO SCHÜLER é Cientista Político, doutor em filosofia (UFRGS), professor do Insper, titular da cátedra Insper palavra
Aberta e curador do Projeto Fronteira do Pensamento. Revista ÉPOCA, Novembro de 2015.
Ideologias atrapalham a educação? Não
Há ideologia na educação, como sempre houve. A diferença entre hoje e o passado é que agora
somos convidados a pensar sobre ela
O ENEM deste ano reservou um “generoso espaço
para tópicos e autores caros à esquerda”, dizem os críticos
liberais. Para os calculistas, 31% dos autores da prova de
humanas (7,8% da prova total) jogam no time da esquerda.
Para os puristas, 31% é demais. A educação deveria, para
eles, ter por objeto saberes constituídos e laicos,
consensualmente científicos e universalmente acessíveis,
neutros do ponto de vista ideológico. Nossas crianças não
devem ser dirigidas ou doutrinadas para orientações de
mundo particulares, seja de direita, seja de esquerda. Essa
atitude presume que sabemos reconhecer facilmente o que
é uma ideologia e o que é neutralidade na ciência.
É possível contar mentiras dizendo apenas a verdade.
Ainda que os números, eles mesmos, não mintam jamais,
somos nós que escolhemos quais são os números que
contam. Se 31% da prova é de esquerda, isso significa que
69% é de direita? Nesse caso, temos claro desequilíbrio e flagrante parcialidade. Pelo princípio de
neutralidade matemática, faltaram ainda 19% para que a esquerda tivesse seus justos 50% do Enem.
Não obstante, podemos prescindir de qualquer contabilidade desse tipo. Primeiro porque os autores
não são em si ideológicos ou neutros. Um Slavoj Zizek por dois Edmund Burke? Que dizer de um
pensador como Jesus Cristo? Ele está na direita com a Renovação Carismática ou na esquerda com a
Teologia da Libertação? E os que viraram casaca?
Na juventude libertários, na maturidade liberais e na velhice colaboracionistas nazifascistas? Fazer o
mapa da ideologia já presume uma geografia ideológica. Ela fica ainda mais ridícula se ignoramos que o
trabalho crítico é justamente a construção e a desconstrução dessas fixações imaginárias. Ajudar nossos
alunos a tomar posição diante da ideologia é muito melhor do que querer protegê-los dela. Para isso, eles
devem mostrar ser capazes de analisar textos, conceitos e discursos com os critérios de rigor que são os
das ciências humanas.
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O leitor se insurgirá: mas nem tudo é esquerda ou direita. Há os neutros e os sem partido. Portanto,
nosso problema é reconhecer a fronteira entre política e ideologia, os gostos humanos e os fatos. O
argumento de que o Inep devia buscar uma neutralidade ideológica representa um erro de conceito. Há
muito tempo não se considera mais que podemos distinguir conteúdos ideológicos, politicamente
tendenciosos, de sua contrapartida científica, neutra e factual. A ideologia está nas articulações, nas
relações, no recorte dos fatos, na escolha dos números, nunca apenas nos autores brutos ou em suas
escolas de pensamento. Toda definição de ideologia é ela mesma ideológica.
As ciências humanas caracterizam-se por assumir isso como traço imanente de seu objeto. Não
estudamos apenas fenômenos, mas as interpretações que fazemos deles. Nesta época de crescente
oferta de informação, torna-se crucial desenvolver, em nossos alunos, a capacidade para operar
criticamente com interpretações. O truque básico, contra o qual eles devem estar advertidos, é a crença na
existência de discursos neutros, imparciais e científicos, que se destacam angelicalmente de todos os
interesses humanos. Esse é o sonho de toda ideologia: infiltrar interesses políticos como se fossem fatos.
A esquerda tende a politizar os fatos, enquanto a direita tende a despolitizá-los. A esquerda dirá que a
direita faz política por baixo dos panos (é o conceito clássico de ideologia), enquanto a direita dirá que a
esquerda torna políticos assuntos técnicos (é o conceito ofensivo de ideologia, aquela que corrompe,
seduz e manipula). Resultado: há mais ideologia no Enem do que se pode imaginar, nos pesos das
provas, nos conteúdos e nos temas. A boa novidade neste ano é que a prova fez transparecer e colocou
isso em discussão.
A ingenuidade que move os que querem a política fora da educação é imaginar que essa petição, ela
mesma, não é parte de uma política. Uma política que trata o conhecimento de maneira simplória, pois não
lida com o fato de que o que há para ser lido e compreendido é a diversidade e o conflito de opiniões.
Disso decorre o quadro atual de entendimento médio do debate público no Brasil. Pensamos por filiação
simples, presumindo que educar é impor conteúdos que os alunos devem repetir, para reproduzir o mundo
como ele é. Depois, esperamos que as novas gerações tragam soluções para os problemas que nós não
conseguimos resolver. É desleal: propor uma prova insossa ideologicamente e depois exigir deles
alternativas para nossa falta de imaginação política e cognitiva.
Nunca deveríamos pensar a ideologia como inclusão das ideias e autores, mas a partir da articulação
de suas ideias em contexto. Nesse caso, todas as questões do Enem 2015 exigiam interpretação de
textos, ou domínio de conceitos, critérios de rigor em ciências humanas. Bizarro que a direita pregue a
suspensão da oposição entre direita e esquerda para recorrer a ela quando considera estar perdendo
(como na prova do Enem 2015).
Desconhecer a diferença entre militância e manipulação com a crítica de conceitos e o estudo de
textos é inaceitável para quem quer tratar de educação. O tema da redação do Enem foi a violência contra
a mulher. Se o equívoco anterior era considerar que alguém é um autor de esquerda, antes de ser
pensador ou cientista, o erro subsequente é deslocar esse raciocínio para temas. Como se os temas
sociais fossem propriedade da esquerda.
A avaliação não é uma competição para hierarquizar vencedores e perdedores. Seu propósito não é
aumentar o ressentimento social ou gerar métricas. A avaliação é um momento de aprendizagem, e a
prova tem um sentido pedagógico. Ela instrui o aluno. Ela o convida a pensar, dirigidamente, sobre um
problema. A escolha do tema não é a determinação anódina de um tópico. A violência contra a mulher é
um desses problemas que carecem de visibilidade. É um tema que incomoda porque não sabemos bem
como falar sobre ele, ou seja, uma escolha acertada para provocar alunos aderidos à servidão curricular e
desacomodar os “entendidos em educação” que tirariam nota vermelha no Enem deste ano.
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER é psicanalista, professor titular de psicologia da Universidade de São Paulo. É autor da Mal
Estar, sofrimento e sintoma (Ed. Boitempo, 2015) e Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (Annablume, 2012, Prêmio
Jabuti). Revista ÉPOCA, Novembro de 2015.
Perdeu, Playboy (MALU FONTES)
PARA todas as coisas que acontecem na vida e no mundo há uma causa, principalmente para as
mudanças. Atribuindo a causa de sua decisão à internet, uma célebre e ousada senhorinha americana
anunciou essa semana que vai mudar o comportamento que sempre lhe caracterizou e do qual sobreviveu
esse tempo todo: vai parar de tirar fotos nua e vai vestir a roupa.
Ninguém tem mais interesse em mulher nua impressa em papel depois que a internet passou a
proporcionar a qualquer um, e de graça, terabytes de genitálias femininas, na maioria das vezes em ação,
com movimentos que fazem as fotos de nu frontal da Playboy parecerem literalmente um catecismo cristão
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pudico liberado no jardim de infância. A nudez da Playboy perdeu a disputa para o pornô, o soft pornô e
para as xereselfies na web. Até em listas de redes sociais de família, caem, aqui e acolá, geralmente por
engano, vídeos pornôs que fazem perversos corarem. Nesses casos, todo mundo finge que não vê, claro.
Nascida em 1953, com o então ícone mor do fetiche sexual na capa, Marilyn Monroe, a Playboy
americana não vai mais publicar fotos de mulheres nuas. Marcou até data para vestir a roupa: março de
2016. A primeira reação dos consumidores clássicos da revista deve ter sido equivalente à de um amante
de churrasco sendo informado de que as churrascarias não mais oferecerão carnes em seus cardápios.
Sim, a comparação pode ser grosseira e parecer besuntada de machismo. Mas, vamos combinar: a
Playboy nunca teve o feminismo como parceiro. Aliás, sempre foi simultaneamente execrada pelos
conservadores, por expor as vergonhas das mulheres, e odiada pelas feministas, para quem a publicação
sempre foi o suprassumo da objetificação das mulheres. Uma vitrine típica do mercado da carne feminina.
Photoshop
Por enquanto, a edição brasileira da revista, que completou 40 anos em 2015, ainda não sabe o que
fará com as genitálias das mulheres a partir da decisão da matriarca americana. Por lá já se anunciou que,
diante do desgaste da nudez, domesticada à exaustão na web, a aposta para a sobrevivência serão os
ensaios fotográficos sensuais, com as mulheres fazendo mais o tipo pinups contemporâneas em vez de
Evas datadas. Se assim for, as fotografias da Playboy serão uma coisa mais próxima do sexy style que
marca o cobiçado Calendário Pirelli, um produto editorial do qual muita gente fala, mas que pouca gente
conhece.
Se a versão brasileira seguir os passos da homônima americana, algumas perguntas gritam por
respostas: onde as ex-BBBs irão faturar um plus financeiro ao sair da “Casa” e onde esticarão um tiquinho
mais os 15 minutos de fama? Onde o estilo do unhão da mão de formato quadrado e esmalte à
francesinha vai continuar influenciando pedidos às manicures? Será a crise da tonalidade renda dos
esmaltes. E, mais importante: onde os especialistas em photoshop de vagina encontrarão emprego?
Podem procurar: a maioria das moças que passaram pelas páginas da revista não passou incólume
pela ação dos editores de imagem de genitálias. Estes muitas vezes produziram imagens que remetem a
aberrações anatômicas, como se a natureza tivesse gerado mulheres sem fendas em recônditos do corpo
onde elas são normalíssimas e, claro, biologicamente e sexualmente necessárias. Aliás, como pode a
neoimprensa nunca ter inventado o posto de crítico de photoshop de genitália feminina, diante das
borragens genitais tantas publicadas na Playboy?
MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA, jornalista e professora de Jornalismo da mesma Universidade. Jornal
CORREIO, Outubro de 2015.
A dupla jornada das mulheres (CARLA SABRINA FAVARO)
A articulação entre o trabalho remunerado e o doméstico ainda é ponto de tensão na vida das
mulheres brasileiras
O SÉCULO XX e o começo do XXI testemunharam o avanço de mudanças profundas na vida das
brasileiras. O aumento de sua escolaridade, a entrada e permanência no mercado de trabalho, a
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diminuição do tamanho das famílias e o aumento dos domicílios chefiados por mulheres são algumas das
alterações mais significativas na condição feminina nas últimas décadas.
Diante desse quadro, um dos maiores pontos de tensão na vida dessas mulheres é a articulação entre
o trabalho remunerado (produtivo) e o trabalho doméstico (reprodutivo). De maneira geral, o pensamento
social brasileiro no que diz respeito à formação das famílias e à posição das mulheres na sociedade foi
fundamentado em torno, primeiro, da ideia da casa-grande e da senzala. Havia um grande patriarca e
vários dependentes em torno dele, inclusive escravos, com as mulheres livres totalmente reclusas à vida
doméstica e dependentes de pais, irmãos e maridos, e as escravas fazendo todo o trabalho reprodutivo.
Em um segundo momento, surge a ênfase em um modelo nuclear de família, no qual o homem seria o
chefe do domicílio, encarregado de sustentar a família, enquanto a mulher (dona de casa) cuidaria do lar e
seus membros.
Entretanto, esse último padrão pode ser entendido mais como um modelo ideal de comportamento do
que propriamente uma regra, já que o número de exceções, principalmente nas camadas populares, é
bastante significativo, com forte recorrência ao trabalho feminino.
SOMENTE A PARTIR DE 1970, COM O DESENVOLVIMENTO DOS ESTUDOS A PARTIR DA
PERSPECTIVA FEMINISTA, O TRABALHO DOMÉSTICO E O REMUNERADO FORAM CONECTADOS.
Esses estudos foram fundamentais para desnaturalizar a ideia de que o trabalho remunerado deve ser
estritamente associado aos homens, enquanto o doméstico é função feminina. Foi também nesse período
que a renda do trabalho feminino passou a ser parte fundamental do orçamento doméstico, não só das
classes populares. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) para o
Brasil, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho saltou de 32,9% para 52,7%, entre 1981 e
2009.
Essa mudança considerável aconteceu na esteira do processo de industrialização, com suas
transformações na estrutura produtiva do País, resultando, entre outras, na urbanização e nas quedas das
taxas de fecundidade e consequente diminuição no tamanho das famílias, por outro. É, portanto, no
interior de um grande processo de mudança na sociedade brasileira que se deu a inserção das mulheres
no mercado de trabalho.
Tal inserção, porém, acontece de maneira bem diferente entre os sexos. Diferentemente do trabalho
masculino – atrelado às forças do mercado e ao nível de desenvolvimento da sociedade –, o feminino
possui uma dinâmica mais complexa, pois costuma entrelaçar-se à posição que a mulher ocupa em sua
família e à classe social a qual pertence seu grupo doméstico.
O TRABALHO FEMININO EXTRAPOLA O NÍVEL INDIVIDUAL, PRINCIPALMENTE DAS MULHERES
CASADAS OU VIVENDO EM UNIÃO CONSENSUAL, ESTANDO ASSOCIADO AO CURSO DE VIDA
FAMILIAR.
O patriarcalismo da sociedade brasileira ainda se faz presente na medida em que grande parte das
mulheres exerce sua vida profissional com uma carga simbólica de culpa considerável, por conta da
distância cotidiana dos seus filhos e das responsabilidades domésticas, enquanto que, para os homens,
esse tipo de dilema nunca foi posto.
Durante muito tempo, o trabalho doméstico foi considerado um “não trabalho”, já que se referia à
esfera reprodutiva da vida social. E é neste contexto que os conflitos na tentativa de articulação entre o
trabalho doméstico e o remunerado se desenvolvem, enquanto as mulheres avançaram no mercado de
trabalho, a contrapartida masculina na esfera doméstica caminha a passos bem mais lentos.
SEGUNDO DADOS DA PNAD DE 2009, ENQUANTO AS MULHERES CASADAS OU VIVENDO EM
UNIÃO CONSENSUAL, PROVEDORAS DO DOMICÍLIO OU NÃO, GASTAVAM EM MÉDIA 30 HORAS
SEMANAIS NOS AFAZERES DOMÉSTICOS, ESSE NÚMERO CAÍA PARA PERTO DE 12 HORAS, NO
CASO DOS HOMENS.
Esses dados mostram que ainda há muito que se fazer para que esta diferença entre homens e
mulheres diminua. Esta é, atualmente, uma das grandes reivindicações femininas. Ainda está muito
presente no imaginário popular a ideia de que o homem pode ser um auxiliar das mulheres nos afazeres
domésticos, quando já se sabe que o mais eficiente seria a parceria entre o casal e o compartilhamento
das tarefas. É nesse contexto que surgem diversas queixas das mulheres empregadas que têm de lidar
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com duplas jornadas de trabalho, como mostra a pesquisa “Trabalho remunerado e trabalho doméstico:
uma tensão permanente”, da Agência Patrícia Galvão.
A PESQUISA MOSTRA COMO AS MULHERES SE RESSENTEM DE FALTA DE TEMPO PARA
CUIDAR DE SI OU PARA SE DEDICAR A ATIVIDADES MAIS PRAZEROSAS.
O trabalho remunerado é bastante importante na vida das mulheres entrevistadas, o grande problema
é a sobrecarga quando se tem de fazer a maior parte da articulação com o trabalho doméstico. Há outro
lado bastante complexo que envolve o trabalho doméstico no Brasil: o emprego doméstico remunerado.
Para entendê-lo, é preciso levar em consideração três variáveis: gênero, classe social e etnia. São,
em sua maioria, mulheres negras, com baixa escolaridade e pobres. Nesse sentido, é possível afirmar que
o trabalho doméstico remunerado pode ser uma boa medida para se verificar as desigualdades que
estruturam a sociedade brasileira.
VÁRIOS ESTUDOS JÁ MOSTRARAM QUE ESSA ATIVIDADE POSSUI UMA RELAÇÃO ESTREITA
COM A ESCRAVIDÃO.
Por isso, durante muito tempo, o emprego doméstico foi desqualificado, já que não exigiria estudo ou
preparação para o seu desempenho e ficando completamente a cargo das mulheres. Outro ponto
importante nessa equação consiste no fato de envolver, dentro de um domicílio, dois tipos de relação: a
profissional e a familiar.
Geralmente quando se quer mostrar a proximidade entre patrões e empregadas domésticas, estas
últimas são referidas como se fossem “da família”. O grande problema reside no fato de mascarar a
posição hierárquica que as empregadas ocupam, geralmente inferior, mascarando também as
desigualdades neste tipo de relação e sua recorrência na sociedade brasileira.
Por outro lado, sabe-se que o trabalho doméstico remunerado possui as maiores taxas de
informalidade e rotatividade. A legislação que regulamenta a atividade ainda é relativamente recente,
reunidas principalmente na chamada PEC das Domésticas. Diante do quadro esboçado até aqui, é
possível perceber que ainda há grandes desafios para as mulheres quanto à articulação entre o trabalho
doméstico e o remunerado. As mulheres avançaram no mercado de trabalho, universo inicialmente
masculino.
A partir daí, adquiriram um maior empoderamento nas suas relações familiares e conjugais.
Entretanto, ainda esbarram na impossibilidade de compartilhar as responsabilidades do trabalho
reprodutivo e do cuidado da família.
CARLA SABRINA FAVARO é doutora em Demografia pelo IFCH/Unicamp. Revista CARTA NA ESCOLA, Outubro de 2015.
Reflexos da obsolescência programada
(LUCIANA GOULART PENTEADO E JULIANA
FONTÃO LOPES CORRÊA MEYER)
COMO se sabe, o desgaste natural do produto e a necessidade de sua substituição no decorrer do
tempo são normais. Antigamente, a substituição do produto por outro da mesma espécie ocorria em
período muito superior ao que ocorre hoje em dia. Os produtos eram fabricados para durarem muito tempo
e, a preocupação naquela época, girava em torno da qualidade e durabilidade. Nos dias atuais, contudo,
cada vez mais os produtos são planejados e produzidos para terem uma vida útil mais curta.
Tal prática é o que chamamos de obsolescência programada. Especificamente, o que significa? A
obsolescência programada, também chamada de obsolescência planejada, nada mais é do que a redução
deliberada e voluntária do tempo de vida útil de um produto, a fim de que seja efetivada a sua recompra.
Essa prática foi criada para enfrentar a crise de 1929. Com a crise, os fabricantes de bens duráveis
perceberam que os produtos com durabilidade muito extensa desfavoreciam a economia, pois reduziam o
consumo.
Com isso, havia um número muito elevado de produtos estocados, sem falar do desemprego. Assim,
decidiram os fabricantes, de forma voluntária e estratégica, reduzir o ciclo de vida útil dos produtos para
aumentar o consumo. Sendo assim, houve o incremento das oportunidades de emprego, especialmente
nos setores de desenvolvimento, planejamento, produção e marketing. Além disso, a obsolescência
programada, em razão dos avanços tecnológicos, fez com que as empresas passassem a fabricar
produtos que apresentassem maior versatilidade, funcionalidade e inovação. Por outro lado, tal prática
também trouxe o aumento desordenado do lixo.
Apesar de muito criticada, a obsolescência programada é um meio de manter a economia aquecida,
com maior enriquecimento de diversos setores do mercado e o aumento da geração de emprego. Por
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outro lado, não se pode negar, a formação de resíduos sólidos cresceu significativamente, indo de
encontro aos princípios norteadores do Direito Ambiental, especialmente no que diz respeito ao
desenvolvimento sustentável. Por esta e outras razões, em 02/08/2010, foi instituída a Política Nacional de
Resíduos Sólidos, tornando-se uma obrigação legal dos fabricantes a produção de bens providos de
qualidade e durabilidade, bem como o desenvolvimento de um sistema de logística reversa, visando a
minimizar o volume de resíduos sólidos.
Além da geração desordenada de lixo, outra crítica que se direciona à obsolescência programada diz
respeito à proteção dos direitos do consumidor. Muitos entendem que esta prática seria ilegal, pois afronta
princípios básicos da legislação consumerista, tais como transparência das informações, durabilidade dos
produtos, oferta de componentes e peças de reposição, bem como publicidade enganosa ou abusiva.
A jurisprudência ainda é muito tímida a respeito. Sobre o tema, merece leitura o recurso especial nº
984.106/SC de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, que trata do assunto e cita exemplos de
obsolescência programada: reduzida vida útil de componentes eletrônicos com o estratégico
inflacionamento desses componentes, tornando mais vantajosa a recompra; incompatibilidade entre
componentes antigos e novos, impondo atualizar por completo o produto (software); lançamento de nova
linha, cessando antecipadamente a fabricação de insumos ou peças de reposição à antiga.
Em termos de legislação sobre o tema, o avanço também é modesto. Existem alguns projetos de lei
(PL 5367/2013 e PL 32/2015) que não objetivam, nem de longe, resolver a questão. De outra parte, há
uma proposta interessante que foi apresentada recentemente pelo ministro Luis Felipe Salomão, que visa
à realização de alterações significativas no CDC. A proposta consiste na obrigação dos fornecedores de
indicar o tempo de vida útil nos produtos e prevê punição aos que praticarem a obsolescência
programada, mas sem limitar a evolução tecnológica.
Nesse contexto, considerando os avanços tecnológicos e o aquecimento da economia, a proibição da
obsolescência, sem dúvida, pode caracterizar um retrocesso no tempo. Assim, parece-nos essencial o
desenvolvimento de políticas públicas que garantam um meio ambiente equilibrado, bem como a
conscientização do mercado de consumo de que, em um mundo com recursos finitos e sem solução
adequada para os resíduos sólidos, até a própria obsolescência programada terá data para morrer.
LUCIANA GOULART PENTEADO, 48, e JULIANA FONTÃO LOPES CORRÊA MEYER, 38, são sócias de Demarest Advogados.
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Outubro de 2015.
Enem, instrumento de cidadania (FRANCISCO SOARES)
NOS PRIMEIROS seis meses de 2015, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência
do governo federal registrou 179 relatos diários de agressão contra as mulheres. Foram mais de 32 mil
ligações de todas as 27 unidades da federação, envolvendo 55% dos municípios brasileiros.
Recente pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revela que, entre 2001 e 2011,
o Brasil registrou mais de 50 mil mortes de mulheres por agressões. Muitos desses crimes foram
cometidos por homens com quem as vítimas tinham ou tiveram vínculo afetivo. Os dados mostram que,
apesar dos avanços alcançados pela Lei Maria da Penha, uma cultura de violência contra as mulheres
está ainda muito presente em nosso país. Diante disso, a discussão da "persistência da violência contra a
mulher na sociedade brasileira" é necessária e oportuna. Por isso, foi justamente esse o tema da redação
do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2015. A escolha segue a direção de temas de anos
anteriores: "publicidade infantil em questão no Brasil" (2014) e "os efeitos da implantação da Lei Seca no
Brasil" (2013).
Ao colocar tais questões para a reflexão dos mais de 7,7 milhões de inscritos no Enem, o Inep
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) contribui para que os jovens que
aspiram a uma vaga nas universidades brasileiras reflitam e posicionem-se. A discussão em torno do tema
da redação do Enem não se encerra com o término das provas. Ele torna-se assunto de debate nos
diversos grupos sociais envolvidos com o exame, tais como grupos familiares, sistemas educacionais,
veículos de comunicação, governo e movimentos sociais.
Em relação ao tema deste ano, pode-se buscar os motivos da persistência das agressões contra
mulheres, apesar das leis já aprovadas e do protagonismo feminino em nossa sociedade em várias áreas.
Por exemplo, 60% dos participantes do Enem são mulheres. A elaboração de propostas de redação para
os exames do Inep segue uma metodologia colegiada. Docentes de universidades, que assessoram o
órgão na produção dos testes, submetem assuntos inéditos e pertinentes à temática de ordem política,
social, cultural ou científica. Esses professores, pertencentes a diversas áreas do conhecimento,
colaboram com distintas opiniões sobre o mesmo tema. Os assuntos escolhidos devem possibilitar ao
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estudante produzir um texto em prosa, do tipo dissertativo argumentativo. O Enem não é apenas o grande
caminho de oportunidades para o acesso à educação superior no Brasil. Pelo tema da redação, ele
estimula a reflexão em torno de assuntos fundamentais para a consolidação da democracia e para o
aprimoramento da cidadania.
O próprio fato de que alguns sustentem que o tema da redação do Enem deste ano seria inadequado
ou pouco importante mostra, infelizmente, que ainda não chegamos a um respeito unânime aos direitos
das mulheres. Levando 7 milhões de candidatos e dezenas de milhões de brasileiros a discutir violência e
liberdade, o Ministério da Educação contribui para que este assunto seja, sim, priorizado no debate e na
ação dos nossos cidadãos. Isso também é educar.
FRANCISCO SOARES, 64, é presidente do Inep e professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Jornal FOLHA DE SÃO
PAULO, Novembro de 2015.
Por quem os sinos dobram? (LEANDRO KARNAL)
A MORTE é poderosa. Ela também assusta. Em primeiro lugar, pelo óbvio: ela é universal e inevitável.
É o conceito final e, por isso mesmo, evitamos seu contato até no nome. Dizer Dia de Finados já parece
uma mistura de português antigo e eufemismo. Os mexicanos vão direto ao ponto: Día de los Muertos.
Em segundo lugar, a morte produz arte. Duas das sete maravilhas do mundo antigo são monumentos
funerários: as pirâmides do Egito e o túmulo do rei Mausolo em Halicarnasso, que deu origem ao nome
mausoléu. Ainda que democrática e igualitária em si, a morte produz desigualdades estéticas e de poder.
A Capela dos Ossos, em Évora (Portugal), choca a sensibilidade contemporânea, mas foi pensada para
ser uma lembrança religiosa e moral. "Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos."
Em terceiro lugar, a morte está associada à fé. Grande parte das religiões orbita em torno do nosso
fim ou do anseio de imortalidade. Na hora extrema, jainistas da Índia podem optar por uma morte pública e
quase teatral. Para católicos, são José (padroeiro da boa morte) se oferece à alma devota como guia
seguro. Todo o cristianismo foi fundado em torno de dois conceitos ligados à morte: Jesus morreu pela
humanidade e, ressuscitando, venceu a morte. Judeus consideram uma ação positiva pertencer à Chevra
Kadisha (sociedade sagrada), que prepara o corpo e ampara a família. Espíritas preferem o verbo
desencarnar. Islâmicos insistem na igualdade de todos em túmulos sem ornamentos e, por vezes, até sem
nome.
Por fim, a morte é uma grande inquietação filosófica. Albert Camus pensou na morte como o
"momento absurdo" na sua análise do mito de Sísifo. O texto foi escrito em pleno horror da Segunda
Guerra. A morte do filósofo Sócrates é retratada pelo pintor Jacques-Louis David com a dignidade
neoclássica do momento que deu significado para toda uma vida. Para o filósofo, a aceitação tranquila da
morte era o sinal de que havia sido coerente. Para nós que somos menos do que Sócrates, o extremo da
pobreza é não ter "onde cair morto". Morrer é o símbolo de toda a vida.
O conceito, porém, continua incômodo. Nos meios urbanos ocidentais, a morte foi afastada da vista
pública. Não se vela mais em casa o corpo de entes queridos. Há uma tanatofobia, um horror à morte,
entre nós. A morte tornou-se mais asséptica. Foi isolada em hospitais. Quando ocorre em acidente público,
corpos devem ser imediatamente cobertos. A morte incomoda. Basta começar a tocar nela e todos sentem
um vago mal-estar. Quase todos preferem trocar de assunto.
Alguns de nós foram criados em hábitos mais antigos, como visitar cemitérios no Dia de Finados. Os
jovens de hoje raramente o fazem. Os jovens não querem ir a enterros. Estão longe da morte e
manifestam pouca preocupação com ela.
Nós, mais velhos, também não gostaríamos de ir. A força da obrigação e do hábito nos arrastam.
Talvez por isto tenhamos raiva da frase clássica de um adolescente ao ser convidado a um velório: "Não
gosto". Como também não gostamos, nos irritamos com a frase que desnuda, sem culpa, nossa
resistência. Por que vamos? Em parte porque somos menos livres do que os mais jovens. Talvez porque
sejamos mais solidários. Mas, em parte também, porque temos uma ideia da finitude e da dor do luto. Ir a
túmulos é um rito de religação. Visitamos mortos por causa de nós, vivos. Nós, os ossos que lá estaremos,
ainda temos carne e sangue e ainda choramos.
O Dia de Finados é o dia dos vivos, da fila que continua andando, das duas questões que nos abalam:
o quanto sinto falta de quem se foi e o quanto temo ir. O vazio da morte está impactando quem vive. Os
sinos dobram por nós, como o título que tomei emprestado a Hemingway. Ouvi-los é estar vivo. Quando eu
parar de escutá-los isso não terá mais importância. O Dia de Finados é nosso, dos que ainda podem ler
este texto. Repousemos em paz.
LEANDRO KARNAL, 52, é historiador e professor da Unicamp e autor de "Pecar e Perdoar" (ed. Nova Fronteira). Jornal FOLHA
DE SÃO PAULO, Novembro de 2015.
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