em PDF - Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
Transcrição
em PDF - Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
Cadernos de Psicanálise – SPCRJ SOLIDÃO 1 SPCRJ - Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro CPFJ 42.132.233.0001/98 Rua Saturnino de Brito, 79 - Jardim Botânico - Rio de Janeiro - RJ CEP 22470-030 - Tel./Fax: (21) 2239-9848 / (21) 2512-2265 [email protected]; www.spcrj.org.br Biblioteca: [email protected] Cadernos de Psicanálise / Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de janeiro v. 1, n.1 (1982). - Rio de Janeiro: A Sociedade. 1982 v. 23, n. 26, 2007 Anual O título não foi editado em: 1989, 1993 e 1997 ISSN 0103-4251 1. Psicanálise - Periódicos. I. Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro CDD 159.964.2 (05) Biblioteca: Carmem Moretzsohn Rocha CRB - 7/1008 Indexada nas bases de dados: * LILACS: Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (BIREME) * INDEX Psi Periódicos (BVS-Psi) - www.bvs-psi.org.br * Psyc INF: American Psychological Association Avaliação CAPES/ ANPEPP 2004-2005: Nacional A - 88 DISPONÍVEL NAS BIBLIOTECAS DA REDE DE BIBLIOTECAS NA ÁREA DE PSICOLOGIA - REBAP: 2 Cadernos de Psicanálise – SPCRJ Sociedade de Pisicanálise da Cidade do Rio de Janeiro v. 23 n. 26 2007 ISSN 0103-4251 Cad. Psicanál.- SPCRJ Rio de Janeiro v. 23 n. 26 2007 3 Comissão Editorial Carla Pepe Ribeiro de Souza, Eliane Segabinazi Moreira, José Francisco da Gama e Silva, Maria Cecília Figueiró Silveira, Maria Helena Lara de Vasconcellos, Norma de Miranda Alonso, Suely Figueiredo Marques Editora-Responsável Maria Helena Lara de Vasconcellos Conselho Consultivo Alfredo Naffah Neto Psicanalista; Prof. do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica/PUC-SP Jeferson Machado Pinto Psicanalista; Prof. do Depto. de Psicologia/ UFMG; Prof. dos Programas de Pós-Grad. em Psicologia e Filosofia/UFMG Ana Maria Rudge Psicanalista/SPID; Profa. Graduação e Pós-Grad. do Depto. de Psicologia/ PUC-Rio; Pesquisadora CNPq e Membro da Assoc. Univ. de Pesq. em Psicopatol. Fundamental Julio Verztman Psicanalista; Psiquiatra/IPUB-UFRJ; Prof. Programa de Pós-Grad. em Psiquiatria e Saúde Mental (PROPSAM-IPUB-UFRJ); Coord. do Núcleo de Estudos em Psicanal. Clínica da Contemporaneidade (NEPECC). Bernardo Tanis Psicanalista; Doutor em Psicol. Clínica//PUC-SP; Membro da SBPSP e dos Deptos. de Psicanálise e Psicanálise da Criança do Inst. Sedes Sapientiae; Diretor de Comunidade e Cultura da FEPAL Karla Patrícia Holanda Martins Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ Prof. Titular /UNIFOR-Ceará Daniel Kupermann Psicanalista; Mestre em Psicologia Cínica/ /PUC-Rio; Doutor em Teoria Psicanalítica/ /UFRJ; Prof. do Depto. de Psicologia Clínica/USP David Epelbaum Zimerman Médico Psiquiatra; Membro Efetivo e Psicanalista Didata/SPPA; Psicoterapeuta de grupo. Ex-presidente da Soc. de Psiquiatria/RS Esther Perelberg Kullock Psicanalista; Membro Titular e Supervisora/SPCRJ 4 Maria Silvia G. Fernández Hanna Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ; Membro Aderente/EBP-RJ Neyza Prochet Psicanalista; Membro Efetivo/CPRJ; Doutora em Psicologia Clínica/USP-SP. Rachel Sztajnberg Psicanalista; Membro Efetivo e Supervisora/ SPCRJ Regina Helena Landim Psicanalista; Membro Aderente e Supervisora/SPCRJ Conselho Diretor - Gestão 2006-2008 Presidente Suely Figueiredo Marques Vice Presidente Paulo César Nogueira Junqueira Secretária Administrativa Cristiane Dib El-Khouri Secretário de Finanças Marcia Souza Leal de Meirelles Secretária de Divulgação Denise Obraczka Diretora Técnica Rachel Sztajnberg Vice Diretora Técnica Regina Helena Landim Coordenadora da Comissão Científica e de Ensino (CCE) Neda Maria Braga de Matos Coordenadora da Comissão de Admissão e Acompanhamento (CAA) Ana Cristina Moreira de Sousa Pinna Coordenador da Comissão de Publicação e Biblioteca Maria Helena Lara de Vasconcellos Coordenadora da Comissão Ética Francis Kiperman Diretora Clínica Lindinaura Canosa Vice Diretora Clínica 5 6 SUMÁRIO Editorial,15 Tema em debate - SOLIDÃO Caminhos e descaminhos da solidão, 19-34 Núcleo de Piera Aulagnier – SPCRJ Trate-me como um cachorro, 35-51 Elisa Maria de Ulhôa Cintra Don Juan e o engano da lista, 53-67 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas Os novos modelos da consciência, 69-90 Ronaldo Lima Lins Entrevista Adélia Prado, 91-97 Comissão Editorial Artigos Pequeno ensaio metapsicológico sobre a solidão e suas implicações, 99-118 Alexandre Abranches Jordão Amarás a teu próximo como a ti esmo: amor ou gozo?, 1197 142 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações do símbolo, 143-161 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Ponde Dor e esperança: duas faces da solidão, 163-180 Issa Damous Em nome da solidão: a capacidade de estar só como forma de amadurecimento de si, 181-194 Karla Patrícia Holanda Martins e Maria Regina Maciel Quem conta um conto promove um encontro, 195-214 Neysa Prochet A solidão na obra de Edward Hopper, 215-231 Renata Mattos de Azevedo Dominação e crueldade: articulações e distinções, 233-257 Suelena Werneck Pereira Resenhas Os circuitos da solidão, 259-268 Bernardo Tanis Eliane Segabinazi Moreira Elas não sabem o que dizem. Virginia Woolf, as mulheres 8 e a psicanálise, 269-273 Maud Mannoni Carla Pepe de Souza Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades, 275-279 Rossano Cabral Lima Maria Helena Lara de Vasconcellos Normas para o envio de artigos, 281-286 9 10 SUMMARY Editorial,15 Subject on debate - SOLITUDE The pleasures and pains of loneliness, 19-34 Núcleo de Piera Aulagnier – SPCRJ Treat me like a dog. Or as soon as possible, 35-51 Elisa Maria de Ulhôa Cintra Don Juan and de list misinformation, 53-67 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas New models of consciousness, 69-90 Ronaldo Lima Lins Interview Adélia Prado, 91-97 Comissão Editorial Papers Short metapsychological essay on loneliness and its implications, 99-118 Alexandre Abranches Jordão Thou shalt love thy neighbour as thyself: love or 11 jouissance?, 119-142 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa The construction of psychic frontiers and the foundations of the symbol, 143-161 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Ponde Pain and hope: two faces of lonelyness, 163-180 Issa Damous In the name of solitude: de capacity of being alone as a way of growing up, 181-194 Karla Patrícia Holanda Martins e Maria Regina Maciel Psychoanalisis and storytelling: a shared experience in search of one’s own history, 195-214 Neysa Prochet Solitude in the work of Edward Hopper – Considerations on subjectivity and emptiness in the light of psychoanalysis, 215-231 Renata Mattos de Azevedo Instinct to master and cruelty: articulations and distinctions, 233-257 Suelena Werneck Pereira Book reviews 12 The ways of solitude: between clinical treatment and culture, 259-268 Bernardo Tanis Eliane Segabinazi Moreira They do not know what they say. Virginia Woolf, women and psychoanaysis, 269-273 Maud Mannoni Carla Pepe de Souza Are we all unattentive? TDA/H and the constitution of bioidentities, 275-279 Rossano Cabral Lima Maria Helena Lara de Vasconcellos Rules for submission of papers, 281-286 13 14 Editorial Cadernos de Psicanálise – SPCRJ pretende sempre se constituir como um chamado, uma convocação amigável para o Debate, a troca entre os saberes, o compartilhar de reflexões que nos levem a buscar novos olhares nos caminhos já percorridos. ‘Psicanálise’ com maiúscula mesmo, como uma “entidade” para além das conjecturas e dos princípios abstratos, que se personifique no encontro da sessão analítica, como o terceiro que se cria para mobilizar e dar voz à construção co-narrativa que se desenvolve na sala de análise: esse entre-lugar entre o imaginário e a realidade onde se pretende que o paciente-analisando, perante o olhar ativo e fiador do paciente-analista, caminhe, com relativa segurança, ao encontro do si-mesmo. O sujeito que somente ele pode ser. A escolha temática para o Debate deste volume, de 2007, embora aponte para o singular do sujeito em seu estado de Solidão, ao mesmo tempo chama para o aspecto plural da questão: solidão ou solidões? Nossos debatedores, entre a psicanálise e a literatura – essa via magna de narrativizar as relações humanas - abrem caminhos para este convite à visitação das solidões. A solidão desamparada do bebê desde o nascimento, em busca da re-unicidade perdida com o outroprotetor; o triunfo maníaco e solitário do Don Juan descartando onipotentemente em sua propalada lista de mulheres a angústia do corte narcísico irreparável; a separatividade necessária ao ser que, sem prescindir da presença constituinte do outro, reivindica Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 15-16, 2007 15 poder estar como só em companhia para estar consigo mesmo; a voz solitária do intelectual pós-moderno que, individualizando-se pela via do pensar, na ausência do ouvinte disponível angustia-se ao risco iminente de perder-se falando ao vazio. Portas abertas ao diálogo, percorremos em companhia de nossos articulistas e dos autores resenhados por algumas das tantas maneiras de estar só – manifestas ou oclusas, temidas ou buscadas; angústia para uns, para outros, refúgio; ou mesmo a condição última do contato com o Ser dentro do indivíduo. Solidões angustiadas de não se encontrar o si mesmo no desvario acelerado da contemporaneidade quando a estabilidade dos contornos sócio-culturais têm uma plasticidade caleidoscópica. Solidões constituintes como recurso imperativo de preservação do self invadido quer pelas exigências pulsionais quer pelas sociais, impondo o ritmo cibernético das economias voláteis e das identidades digitais. Outros artigos ou livros resenhados, embora não diretamente atrelados ao tema da Solidão, nos remetem a questões da atualidade cujas contribuições certamente poderão subsidiar a discussão e as tentativas de compreensão das solidões – as de sempre e aquelas do agora – do analista, e do analisando. A edição de mais este volume dos Cadernos de Psicanálise – SPCRJ é produto solidário da SPCRJ, através de sua Comissão Editorial e acompanhada pelos colaboradores de seu Conselho Consultivo, para manter e mobilizar o diálogo analítico, em seu esforço permanente de promover novas trilhas de articulação entre a teoria, a técnica e a clínica, no intuito de que os sentidos, revisados, mantenham vivo e atual o exercício da Psicanálise. Carla Pepe Ribeiro de Souza Eliane Segabinazi Moreira 16 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 15-16, 2007 Tema em debate – SOLIDÃO Caminhos e descaminhos da solidão Núcleo de Piera Aulagnier – SPCRJ Trate-me como um cachorro Elisa Maria de Ulhôa Cintra Don Juan e o engano da lista Luiz Alberto Pinheiro de Freitas Os novos modelos da consciência Ronaldo Lima Lins Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 17 18 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 artigo Caminhos e descaminhos da solidão The pleasures and pains of loneliness Núcleo Piera Aulagnier / SPCRJ Resumo Este trabalho aborda a constituição do sujeito perpassada pela solidão. Tem como referências teóricas Freud, Lacan e as contribuições de Piera Aulagnier. Pensa a solidão como um sentimento que acompanha a angústia do nascimento, levando o sujeito a buscar sempre a unidade perdida. Aponta para os caminhos e descaminhos que o sujeito pode tomar para administrá-la. A criatividade, a produção de obras de arte e a literatura numa relação saudável com o outro, ou em contrapartida, a droga, a paixão, a loucura e a morte. Palavras chave: solidão, angústia. * Maria Pompea Ferreira Carneiro (Coordenadora do Núcleo; Membro Titular e Supervisora/SPCRJ), Francis Kiperman (Membro Efetivo/SPCRJ), Helena Maria Roquette Pinto (Psicanalista/SPCRJ), Henriette Sigres (Psicanalista/SPCRJ), Herminia Couceiro Marins (Membro Efetivo /SPCRJ), Maria da Conceição da Silva Garcia das Neves (Membro Efetivo/SPCRJ), Maria Dalva da Silva Ramos de Oliveira (Membro Efetivo/SPCRJ), Maria Regina Miranda Ewald (Membro Efetivo/SPCRJ), Paulete Frajhof (Psicanalista), Vânia Maria da Costa Jovine (Membro Associado/SPCRJ), Vera Maria Podcameni (Psicanalista), Vitória Carvalho Magalhães (Psicanalista/ SPCRJ), Wanda Pinho (Psicóloga Clínica com formação psicanalítica/SPCRJ). Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 19 alimento que já não é instantâneo, pelo aconchego de um corpo que o ampare, por um afeto que lhe garanta a energia necessária para prosseguir essa luta pela vida que se inicia. O grito inaugural é um grito de vida e de dor. Dor da castração, dor da solidão. Seus recursos são parcos: apenas um pequenino corpo desamparado com um equipamento sensorial. Através dele, capta os estímulos do mundo que o cerca: a luz, o calor, os cheiros, os sons. Uma voz revestida de afeto que penetre em seus ouvidos lhe sugere uma ponte. Talvez a ponte para reencontrar a unidade perdida. Na experiência da primeira mamada, boca unida ao seio como um prolongamento dos corpos, a ilusão de novamente ser Um. Mas jamais como antes. O bebê tem que sugar para sorver o alimento que o seio lhe oferece. Sua vida agora, apesar da extrema dependência, lhe fará exigências para ser mantida. Descobre nesta atividade um algo que dependerá apenas dele. Nunca mais 20 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 Abstract This work aims at discussing how the subject constitution is affected by loneliness. The theoretical references come from the works of Freud and Lacan, as well as contributions from Piera Aulagnier’s. The discussion refers to loneliness as a feeling comencing with childbirth, the anguish that impels the individual to continuously seek for the “lost oneness” and the pleasures and pains of the individual according to his maneuvers to manage it. Creativity, art and literature production can take place upon healthy relationships; otherwise, drug abuse, passion, insanity or death might be the outcome. Keywords: loneliness, anguish. debate Caminhos e descaminhos da solidão. The pleasures and pains of loneliness Núcleo Piera Aulagnier / SPCRJ Não importa qual seja o cenário. Uma choupana, um vão de ponte, ou uma sala com a mais requintada tecnologia. O momento inaugural da vida de um ser humano é marcado por uma cratera, de onde emanará um sentimento que o acompanhará por toda a sua existência: o sentimento da solidão. Expulso do ventre materno que lhe proporcionava as condições de vida sem esforço, encontra-se só, tendo que lutar pela sobrevivência. Precisa buscar o ar para seus pulmões, clama pelo Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 21 Núcleo Piera Aulagnier Uma voz penetrando em seus ouvidos aponta para uma via de acesso ao outro. Via que vai tornando-se cada vez mais preciosa. Quanto mais avança e penetra no universo da linguagem, mais se utiliza dela. São as raízes da comunicação pela linguagem. Via repleta de emaranhados e de riscos. Mas é através dela que o sujeito humano se insere no seu grupo social, sentindo-se integrado nele. O discurso do porta-voz, atuando no inicio da vida como uma prótese, interpretando o mundo para ele, e ele para o mundo, contém para a criança postulados plenos de certezas. Seu processo identificatório é no início amparado neste discurso inaugural. Sendo falado pelo outro, não possuindo ainda uma fala própria, nada duvida, nada questiona. Mas a dura realidade, sempre o colocando à prova, vem mostrando que assim, nesta dependência absoluta, não alcançará sua existência. É preciso lutar sempre, e a luta é sem trégua. Assim nos diz a Canção do Tamoio (Natalícia)1 “Não chores, meu filho; Não chores que a vida É luta renhida: Viver é lutar. A vida é combate, Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos, Só pode exaltar”. Mas não luta em vão, pois das batalhas ganhas surgem novas conquistas, ampliando seu universo psíquico. A emergência de um Eu que já vinha se esboçando traz consigo um novo recurso: a capacidade de produzir pensamentos. Já existe algo nele que não vem do outro, e que ele produz na intimidade de sua solidão. Pode usá-lo como quiser. Com 22 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 debate será como antes. A esses primeiros encontros de corpos, que quando bem integrados oferecem uma satisfação quase plena, seguem-se novas separações, e de novo o bebê estará só. Mas, sentidos em alerta, ele tudo capta. Tudo capta e tudo registra. É correto em seus registros, impressos em seu corpo. O teor dos afetos que acompanha o seio que o envolve, o sentimento contido na voz que o acalanta. Amor, ódio, inquietação e paz. A voz transmite, o gesto transmite, o olhar transmite. E o bebê capta e registra. Se em seu registro o saldo é positivo, se as marcas são mais de prazer do que de dor, percebe que ao estar só pode evocá-las, inventá-las ou auto engendrá-las. Tornando seu mundo mais povoado de boas experiências, não se sente tão só. Seu pequenino corpo vai se tornando uma imensa biblioteca arcaica, como os pictogramas impressos em pedra, onde ele, apenas ele, terá acesso a seu tesouro particular. Estas marcas gravadas podem ser despertas pelas mais sutis sensações, e o conduzirão ao seu mundo mais profundo. São marcas que darão um significado à sua linguagem. São também elas que pontilharão o mapa de seu corpo erógeno. A partir delas, as fantasias que povoam nosso imaginário se constituem. Elas serão o seu núcleo. Mais tarde, ouvirá ou lerá de seus semelhantes muitas e muitas histórias. Mas, de sua própria história, apenas ele será o narrador ou o escritor autêntico, pois os subsídios que lhe darão autenticidade serão retirados de sua biblioteca arcaica. Dos outros ouvirá trechos de sua pré-história e antecipações de seu futuro forjado no desejo dos pais. Mais tarde, se vencer a luta e se tornar um sujeito autônomo, fará suas retificações no texto, adquirindo a própria escrita. O desejo de restaurar a unidade perdida nunca cessa. Sua busca contínua vai acompanhá-lo em toda sua trajetória pela vida. 1 DIAS, 1851. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 23 Núcleo Piera Aulagnier algo perdido e que, em contrapartida, lhe acena para uma porta libertadora. É a fonte de onde emanará a produção dos objetos que povoarão seu mundo secreto: o brincar só, o encantamento da boneca e do carrinho são fontes de prazer que fortificarão sua caminhada pela autonomia. Quantas crianças saudáveis costumam fechar a porta do quarto nestes momentos. Basta saber que existe alguém por perto e que não estão abandonadas nem desamparadas. Este brincar sozinho, tão rico em suas produções, é o que aduba o solo em que mais tarde brotarão os devaneios do adulto, o nosso sonhar acordado sabendo que é sonho, e aqueles que têm o talento da arte e da escrita lá encontrarão subsídios para suas obras. Solo que pode tornar-se a maior fonte de riqueza se bem adubado. Mas esses são momentos de trégua. A luta pelo viver, pelo ser, pelo advir, pela autonomia, não é tarefa fácil. Ainda em muito dependerá do outro, para levar avante a dura tarefa de viver. Mesmo havendo êxito, ainda assim os laços da dependência não se desfazem por completo. Ao longo da vida, precisamos de afeto, de reconhecimento e de troca. Nos sentimos sós e buscamos o outro. A luta travada entre essas forças contraditórias, o necessitar estar só e o buscar a comunhão com o outro se desenrola nas profundezas da condição humana. Esta dor pode ser fonte inesgotável das mais ricas criações, e pode também levar o sujeito aos descaminhos da loucura e da morte, como nos testemunha Clarice Lispector nas vivências expressas em suas obras. É preciso ter conquistado o universo das identificações simbólicas da linguagem, enquanto referências, para descermos a esses subterrâneos sem nos perdermos nele: “A solidão, a mesma que existe em cada um me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? Senão o de criar as próprias realidades?”·2 24 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 debate suas produções, pode criar seu mundo secreto, suas fantasias, comunicar, ou não, o que está pensando. Nesta nova atividade psíquica descobre um prazer que o acenará com uma liberdade e certa garantia de que a luta por um lugar no mundo, como um sujeito diferenciado, não será em vão. Pequenina vitória em sua condição de desamparo e ainda tão dependente do outro! Ela representa a entrada no universo da linguagem: único caminho para chegar a vir a ser como indivíduo autônomo, conquistando sua singularidade. Se no decorrer da batalha o sujeito é abatido pelo outro, ou se por algum motivo não é forte o suficiente para lutar, assistimos a uma catástrofe. Aprisionado num discurso sem autenticidade, permanecendo capaz apenas de repetir uma fala, nunca atingindo a plenitude do seu ser. O espaço onde deveria existir o Eu da linguagem é ocupado por uma sombra falada, que seguirá impedindo-o de ter uma fala própria, expressão de seus pensamentos autônomos. Buscar um espaço para existir como pessoa singular exige uma renúncia: a de abrir mão do desejo de se alienar no outro, embarcando na ilusão de fusão. Permanecer no outro como igual o levaria a uma anulação e a um esmagamento de si próprio (Aulagnier, 1978). É preciso continuar a luta contra suas tendências contraditórias e contra o outro, que o deseja muitas vezes como uma cópia ou eco de seus pensamentos e de seus desejos. Uma mãe submetida à castração, à interdição do incesto, direciona seu desejo para além do filho, visando um terceiro, abrindo mão do filho como objeto fálico, e permitindo a este vir a se constituir como um ser separado dela. Isto não anula, entretanto, o inevitável sentimento de solidão, tão doído, que o inquieta e o impulsiona numa busca constante de 2 LISPECTOR, 1978. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 25 Núcleo Piera Aulagnier Angústia do nascimento e angústia de morte ligadas por uma ponte indissolúvel. Nesta ponte, transcorre nossa vida. Marcado pela ambivalência, o sujeito se vê condenado, para continuar vivo, a investir no sentido de refazer os laços para ultrapassar sua solidão, e a libertar-se deles para existir. Nesta emaranhada trilha, em busca do prazer e na fuga da dor, tecemos nossos laços amorosos. Freud, no Mal Estar da Civilização, atenta para a ambivalência que habita em nossa busca de felicidade. “Nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o objeto amado ou o seu amor”.4 Se o Eu não se garante no fio do equilíbrio, pode afundarse no abismo da paixão. Muda a qualidade de seu investimento, transformando o objeto de prazer em objeto de necessidade, cuja satisfação se torna vital, impedindo o Eu de qualquer possibilidade no registro da escolha. O Eu é invadido pela sensação de necessidade. O objeto da paixão é capaz de servir a dois senhores: Eros e a Tanatos. Aliança arriscada, que muitas vezes pode levar a um mergulho na morte. Na luta pela individuação, o Eu perde a batalha, sucumbindo ao Eu do outro, sendo tomado por ele. Werther, personagem de Goethe, escrevia a um amigo sobre sua dor diante da paixão impossível por Carlota: “Oh! Guilherme! O abrigo solitário de uma cela, o cilício e um cinto de tortura seriam para mim a maior das venturas comparados aos tormentos infernais que me dilaceram a alma. Adeus! Para todas essas misérias só vejo um termo: a morte”.5 A intensa dor da solidão sentida pela perda do objeto amado, perda real ou imaginária, traz a vivência da dor do irrecuperável. Freud, em seu texto “Luto e melancolia”, faz uma diferen3 Ibidem, p.15. 26 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 debate Raízes semoventes que estão plantadas ou a raiz de um dente? Pois também eu solto as minhas amarras: mato o que me perturba e o bom e o ruim me perturbam, eu vou definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.3 A solidão de Clarice era povoada de fantasmas. Mergulhando em sua angústia, dissecava-a, transitando nos mais tortuosos labirintos de seu sofrimento. Procurava em sua escrita uma saída, algo que povoasse sua imensa cratera, como personagens que lhe estendessem a mão na difícil travessia. Quando a lemos, sentimos essa mão estendida nos conduzindo às profundezas. Clarice lidava com a solidão compartilhando-a com objetos que ela própria criava, fazendo jorrar uma fonte de angústia transmutada. Em seu conto “A procura de uma dignidade”, descreve a solidão angustiada de uma senhora num Maracanã vazio, perdida num emaranhado de labirintos, em busca de algumas pessoas que não se encontravam lá. Sozinha, alienada da realidade, não encontrava a saída, pois não tinha respostas para o porquê de estar lá, nem o porquê de sua existência. A resposta estaria no mergulho mais profundo e irrevogável da solidão da morte. Uma morte antecipada como única saída do labirinto. Em busca de sua dignidade, a única porta de saída que a personagem encontrou foi a morte. O que Clarice nos deixa como legado é a oferta de uma companhia que aplaca e enriquece o nosso estar só. Angústia não se compartilha. A dor da falta é solitária. Cada qual carrega a sua. 4 5 FREUD, (1929-[1930]), 1981 p. 3029. GOETHE, J. W., 1993, p. 81. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 27 Núcleo Piera Aulagnier em toda relação amorosa, nos faz reviver o horror da castração. Toda escolha amorosa é narcisíca, como já dizia Freud. O processo se inicia no nascimento, quanto o infans normalmente vem ocupar o lugar de falo imaginário da mãe. Narcisismo primário: “Sua majestade o bebê” (Freud, 1914). No seu desenvolvimento, deixará de ser o falo para que, na fase edípica, através da castração, possa a vir a tê-lo - ou não. Mas esta experiência de ser objeto de desejo do outro ficará marcada para sempre no inconsciente, sendo revivida ilusoriamente nos encontros amorosos. Acreditamos ser objeto do desejo do outro, assim como também o outro é objeto do nosso desejo. O amor demanda e exige reciprocidade. Com ele tentamos driblar nossa falta e a solidão que nos habita. É através do outro que o sujeito se vê como amado, o que dará consistência à sua imagem egóica. A construção do objeto em torno do vazio pulsional permite um ancoramento na busca incessante do desejo de um objeto absoluto. A libido investida – pulsão de vida – freia o movimento da pulsão de morte, a qual visa o gozo mortífero. Ao perder-se o objeto, perde-se também temporariamente esta proteção contra o caos pulsional. O processo de luto nos afronta de forma inexorável com a nossa solidão; caiu a vestimenta, ficou o vazio, ficou o sofrimento. É preciso desinvestir cada representação, retirar o excesso de afeto a ela vinculado (processo árduo e difícil), realocar o afeto entre as outras representações egóicas, para depois vir a reinvestir em novos objetos. O amado se torna uma lembrança saudosa como tantas outras. Referindo-se à melancolia, Freud reconhece a contribuição de Abraham nos casos da identificação melancólica, quando 6 NASIO, J.D. 1997, p.58. 28 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 debate ciação entre o luto normal, o patológico e a melancolia. Um dos aspectos apontados é que no luto o sujeito sabe quem perdeu, enquanto na melancolia, o sujeito pode saber quem, mas não sabe o que perdeu, com o desaparecimento do objeto - uma diferenciação que irá adquirir novos contornos no decorrer de sua obra. Para a psicanálise não se trata só da pessoa amada mas, principalmente – se não exclusivamente - da representação psíquica inconsciente que temos da perda: “Não tem dor sem o eu, mas a dor está no isso”.6 Ou seja, em todas as perdas amorosas, não sabemos o que perdemos ao perder o ser amado. A razão da dor está dentro de nós, e não fora. A partir de Freud, o que caracteriza a sexualidade humana é a falta de objeto. Para ele, a pulsão não tem objeto próprio, é indiferente, pode ser qualquer um. O que significa dizer que o objeto enquanto tal tem que ser continuamente construído, mas não de forma completa. Portanto, todo encontro é sempre um reencontro ou um desencontro: a busca de um objeto supostamente perdido e condenado ao fracasso (Freud, 1905). A construção do objeto, sua representação psíquica, se dá no decorrer da infância, através dos discursos parentais que inscrevem seu filho em uma linhagem familiar, e em seu meio sócio-cultural (Freud, 1937). Destes discursos, permeados por seus desejos, desejos estes que os próprios pais ignoram, a criança irá privilegiar traços simbólicos associados a imagens, ou não, que serão seus substratos identificatórios e, ao mesmo tempo, os alicerces inconscientes de sua construção fantasmática de objeto. Destes traços fálicos, investidos libidinalmente, o sujeito tece a vestimenta que recobre o ser amado, recobrimento que sempre deixa comparecer um pouco o vazio pulsional que ele comporta, sendo através deste que a diferença e o desejo do próprio amado irão advir. Esta diferença, este desencontro, gera raiva e frustração; e, estando presente Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 29 Núcleo Piera Aulagnier e mais prolongada a sua absorção, mais ele caminha no risco da própria destruição física, psíquica e social. O ataque ao pensamento é o recurso mais eficaz para anestesiar a angústia da separação. É através dele que a dúvida se instala abalando as certezas que a fala do outro garantiam. A atividade do pensamento abre um espaço e impulsiona o Eu para uma possibilidade de existência enquanto sujeito singular, diferenciado e solitário. A diferença que comparece através da linguagem trabalha impedindo o desejo do sujeito na busca da fusão de antanho. Mas o universo da linguagem não consegue abarcar as vivências humanas mais submersas na profundidade da cratera. Há sempre uma parte que a palavra não alcança. E é aí, nesta parte em que a palavra silencia, que reside nosso ser mais autêntico. Num fundo desconhecido: parte nossa que nos assombra, nos surpreende, nos faz sentirmos estranhos a nós mesmos. Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidade do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo. 8 A psicose é a possibilidade de se perder na escuridão da cratera. Cortados os laços com a realidade, o psicótico produz seus delírios na tentativa desesperada de sobrevivência psíquica. Na conquista do pensamento autônomo como fonte libertadora do 7 FREUD, 1981, p.2095. 30 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 debate este faz a conexão entre o narcisismo e a fase oral canibalística da libido. Ou seja: a escolha que se faz, como toda escolha amorosa, é narcísica: a pessoa busca fora de si alguém que seja grandioso, à sua imagem e semelhança (Eu ideal). O melancólico não pode perder. Há aqui uma regressão da libido ao mecanismo antropofágico. O eu do melancólico é canibal, põe o inimigo para dentro recusando a perda, recusando a castração. Sendo sua escolha narcisíca muito mais ambivalente do que a maioria das escolhas objetais, em virtude da regressão, perde o amor e se enche de ódio. O complexo melancólico, se levado ao extremo, leva à tragédia: a desfusão pulsional. Acarretaria no desligamento de toda e qualquer representação possível. O objeto é incorporado ao eu, sendo tratado de forma sádica pela consciência crítica. Freud diz: “A sombra do objeto recai sobre o eu”7. Assim, o suicídio do melancólico é pensado como uma morte infligida ao objeto incorporado ao eu. Encontramos também nos dependentes de drogas, na batalha entre Eros e Tanatos, a vitória de Tanatos. Durante o tempo de ação da maioria dos alucinógenos, o impulso sexual permanece em repouso. O Eu experimenta um gozo provocado por um conjunto de percepções sensoriais, de representações, de produção de imagens, e vive um estado que Piera Aulagnier denomina sensoriedade pensada (Aulagnier, 1985): uma realidade pensada e percebida como totalmente adequada às percepções criadas pelo pensamento. Estabelece-se um compromisso entre a necessidade de pensar e o desejo de reduzir ao silêncio a própria atividade do pensamento. Mas, se através do uso da droga o sujeito pode anestesiar totalmente a dor da falta, convertendo o pensado, o percebido, o representado, na fonte de um prazer tão intenso quanto exclusivo, o Eu não consegue, todavia, eliminar a consciência de que, quanto maior 8 LISPECTOR, 1978, p. 13. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 31 Núcleo Piera Aulagnier mas o barulho que de tão estridente ensurdece a alma. O prazer solitário e único de se extasiar diante das obras de um pintor, é hoje atropelado pelas multidões que se aglomeram nas galerias, obedecendo às ordens inquestionáveis de um comando que indica de fora o que é para ser visto e admirado. Não é mais o desejo que move a busca, mas um objeto fabricado que cria a demanda. A direção da busca da fusão com o outro, que tem como metáfora o ventre materno, muda sua direção e parte em busca de um objeto que o funda com a multidão. Se o objeto não é possuído, sente-se a angústia que a diferença faz emergir. Corpos iguais, mentes iguais, gostos iguais. Caminhamos para a massificação, onde o indivíduo se perde e está cada vez mais só. A postura ética da sociedade consumista se contrapõe à ética da psicanálise. A psicanálise não oferece objeto. Quando o analista consegue ocupar pontualmente o lugar solitário que sua função lhe impõe, sem interferir com o seu ser, deixando aflorar o não-ser, permite o surgimento do sujeito no paciente. O paciente fala... e fala mais... Entregue à sua livre associação, reencontrando através dos seus novos ditos as próprias raízes. Referências individuais, solitárias, bebendo da seiva das suas raízes, cria a sua própria ficção, se liberando das fixações que o aprisionavam. Este caminho solitário percorrido pelo paciente, acompanhado pela solidão do analista, é a única possibilidade de se lidar com a solidão humana sem se mergulhar no tormento da impotência. O desprazer da solidão, do sofrimento, se ameniza na liberdade que nos é trazida pelo ainda não sabido, pelo possível de ser construído. Construções em análise. Maria Pompea Ferreira Carneiro 9 Idem, 1974, p. 18. 32 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 debate sujeito, a batalha foi perdida. Fica aprisionado no labirinto onde as portas só dão acesso ao interior. Perde-se a porta de saída. Na impossibilidade de construir uma fantasia, o vínculo se estabelece através do delírio, único recurso que lhe resta como uma tentativa de sua inserção no mundo. Por não ter as bases referenciais que o sustentem, o psicótico naufraga no não ser, se perdendo nos labirintos da vida, como a personagem de Clarice. Enquanto Clarice, pela mediação da palavra, podia falar da morte sem morrer, falar da angústia sem a ela sucumbir, falar do não ser a partir do ser, sua personagem no conto, depauperada em seu ser, sem identificações que a sustentassem, desprovida do recurso simbólico da palavra como mediadora “interrompe sua vida com uma mudez estraçalhante”9. A morte se faz presente. Clarice, em seu ato criativo, recorre a recursos mais profundos e íntimos de seu ser, à sua fonte-biblioteca arcaica, ao não sabido que se impõe. Assim como na musica, ela vai, ela vai... se impõe ao compositor que acompanha a melodia cuja fonte ignora. No romance, os personagens se desenvolvem por si, eles vão... Eles vão... à revelia do escritor e o surpreendem; sua fonte é o não saber. Se o artista não resiste ao seu próprio não sabido e deixa fluir, a sua obra se converte em arte. O mesmo não se pode dizer do que acontece, em grande parte, neste mundo em que hoje vivemos. Vivemos numa sociedade que lida com a solidão criando objetos que visam tamponá-la, obscurecendo de forma concreta seus anseios autênticos. Como sons que são produzidos tão acima de nossa capacidade de processá-los por nossa sensibilidade auditiva, que se espalham em vibrações por todo nosso corpo. Não mais uma sinfonia que através dos nossos ouvidos penetra em nossa alma e nos coloca em comunhão com o universo, na experiência de um prazer etéreo, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 33 Núcleo Piera Aulagnier Nueva, 1981. p. 3365-3377 (cuarta ed., 3). GOETHE, J. Werther. tradução de João Teodoro Monteiro, Lisboa: Guimarães Ed., 1993. LISPECTOR, C. Um sopro de vida: Pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. _____. Onde estiveste de noite? Rio de Janeiro: Artenova, 1974. NASIO, J.D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. debate Trate-me como um cachorro. Ou assim que for possível. Treat me like a dog. Or as soon as possible. Elisa Maria de Ulhôa Cintra* Resumo O artigo realiza uma reflexão sobre a capacidade para estar só enfatizando as condições que favorecem a construção de tal capacidade. Partindo do paradoxo de que para estar só, é preciso estar na companhia de alguém, proposto por Winnicott , a autora percorre as idéias de elaboração da posição depressiva (Klein), resolução do Complexo de Édipo (Freud), necessidade de fazer o luto dos primeiros amores (Britton) e o desejo de ter mente própria (Caper). Palavras chave: solidão, posição depressiva, Klein, Winnicott, Britton, Caper. 34 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007 R. Marques de São Vicente, 300 Gávea - Rio de Janeiro - RJ 22451-040 Fone (21) 2511-0507 Tramitação: Recebido em: 14.06.2007. Aprovado em: 15.08.2007. [email protected] Referências AULAGNIER, P. A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1978. ______. Destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1985. COUTINHO JORGE, M. A. Fundamentos da psicanálise - de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. DIAS, G. Canção do Tamoio (Natalícia) - Últimos cantos. Poesias americanas. 1851. Disponível em http://www.ufrgs.br/proin/ versao_1/exilio/index02.html. Acessado em 06/06/07. FREUD, S. (1905). Tres ensayos para una teoria sexual. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. p. 1169-1237 (cuarta ed., 2 ). _____. (1914). Introduccion al narcisismo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. p. 2017-2033 (cuarta ed., 2). _____. (1915 [1917]). Duelo y melancolia. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981 (cuarta ed., 2), p. 2091-2100. _____. (1929-[1930]). El malestar en la cultura. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. p. 3017-3067 (cuarta ed., 3). _____. (1937). Construcciones en psicoanálisis. Madrid: Biblioteca * Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora da mesma instituição e co-autora (com Luiz Cláudio Figueiredo) do livro Melanie Klein: estilo e pensamento (São Paulo: Escuta, 2004). Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 35 pode conhecer. Trata-se de restaurar a capacidade para estar só na companhia de alguém1, para entrar em contato consigo e com o outro, sem cair nesta deliciosa tentação de “virar uma só coisa” com a outra pessoa. Tal aventura pede que se entre em um estado não instrumental e não focado e receptivo às sensações, memórias e desejos presentes e passados, mas sem prender-se a nenhum deles. A meta é atravessar a realidade psíquica sensorial em direção a este lugar “sem memória e sem desejo” de que nos fala Bion, lugar muito remoto onde são engendrados os sonhos e a vida psíquica. No caminho até lá é preciso criar um espaço transicional, 36 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 Abstract The paper is about the ability to be alone in the presence of someone. It gives emphasis to the above paradox and its origin in early development, as stated by Winnicott. It points to the links between a growing sense of separateness and autonomy as an effect of a successful elaboration of depressive anxieties (Klein), the resolution of the Oedipus Complex (Freud), the need to work through the depressive position (Britton) and the desire to have a mind of one´s own (Caper). Key words: solitude, depressive position, Klein, Winnicott, Britton, Caper. debate Trate-me como um cachorro. Ou assim que for possível. Treat me like a dog. Or as soon as possible. Elisa Maria de Ulhôa Cintra “Afinal, não seria o caso de o paciente vir para a análise a fim de reconstituir sua solidão por meio do outro, a solidão que só ele pode conhecer?”. Adam Phillips, 1993. Um paciente vem experimentar esta curiosa solidão “a dois” de uma análise para reconstituir um universo que só ele 1 Winnicott escreveu sobre o tema em “A capacidade para estar só” de 1958. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 37 Elisa Maria de Ulhôa Cintra ordenado e vital, que adquirimos a capacidade para estar só, na presença de alguém.2 Talvez a primeira solidão que alguém viva em sua infância seja a de habitar um corpo e uma história de maneira única e intransferível. Ao mesmo tempo, aprende a falar e a se comunicar com os outros que parecem entendê-lo, grande parte do tempo. Durante a vida desenvolve uma relação de maior ou menor intimidade com o seu corpo e com seus amores, ódios, desconfianças, certezas, culpas, perdões. Há momentos em que mergulha na sensação da mais profunda incomunicabilidade e todas as palavras são inúteis; parecem provocar mais barulho do que entendimento. Então o encontro analítico convida o paciente a deitar-se no divã, a abandonar as regras habituais do convívio social e a entregar-se ao livre fluxo de suas associações. A sua posição – deitado no divã – olhando na direção deste lugar imprevisível para onde suas palavras o conduzem em uma espécie de viagem – ou vertigem- no tempo e no espaço, tudo isto transforma o divã em um veículo mágico, uma cama voadora como as que aparecem nos sonhos e nos quadros de Frida Kahlo. O convite assemelha-se mais a torná-lo um flanneur que vagueia, à deriva, em uma cidade desconhecida deixando para trás o roteiro habitual que o leva de casa a algum lugar conhecido, e a experimentar novos caminhos, novas vias de acesso. Enquanto isto o analista permanece silencioso e em reserva, fica sempre um ou dois passos atrás, lembrando que muito daquela história já ficou para trás, que será preciso deixar para trás o passado, deixá-lo passar. Ele convida ao abandono das certezas, das grandes verdades. Está sempre um pouco incrédulo, com aquela cara de paisagem silenciosa que escuta e está sempre indagando: Em termos kleinianos isto significa uma introjeção segura do bom objeto, que como veremos adiante é muito diferente da presença, que não se deixa introjetar nem assimilar, do objeto ideal, que permanece como um enclave insolúvel. 2 38 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 debate um playground onde o brincar mútuo descobrirá nexos e ligações entre sensações atuais e estímulos passados, entre elementos do sonho e da vigília, de dentro e de fora, de si e do outro. Em seu texto “A capacidade para estar só” (1958), Winnicott evoca estes momentos de contato e silêncio que um paciente vive durante a análise. Talvez tenha sido a primeira vez na vida em que conseguiu ficar realmente só, sem sentir-se isolado ou fechado em si mesmo; a sensação é de uma intimidade prazerosa, uma capacidade de ocupar-se com suas próprias coisas, com seu mundo de objetos internos, com aquilo que pode absorvê-lo e apaixoná-lo mais profundamente. Uma criança mergulhada em seu brincar talvez tenha sido a primeira aparição do fenômeno. Se hoje perguntássemos a Winnicott “você considera a capacidade para estar só um critério de fim de análise?”, com certeza teria respondido “sim”, pois algo aparentemente tão corriqueiro exige um grau de autonomia e de desenvolvimento do sentimento de si e do outro que só se atinge depois de uma grande amplidão da vivência materna primária bem elaborada. Este foi o percurso de Winnicott: pensar as raízes desta capacidade, suas condições de possibilidade. A capacidade para estar só enraíza-se, pois, na primeira relação com a mãe, e depara-nos com o paradoxo de que estar só exige a presença, a companhia relaxada de alguém, ali ao lado, à nossa disposição. Quando sabemos que alguém está por perto, ausentemente disponível, alguém com quem podemos entrar em contato a qualquer momento, seja na realidade exterior, seja na realidade virtual de nosso mundo interior, e quando este último parece ser formado por seres bem vivos, vozes do passado e do presente que se encontram em relativa harmonia, formando um espaço de convivência que se parece mais a um cosmos do que a um caos – é justamente aí e então –, ou seja a partir deste mundo interno relativamente Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 39 Elisa Maria de Ulhôa Cintra esquecer, e só então, possa tornar-se realidade psíquica. Digamos que deixar-se negar e interiorizar-se são duas formas diferentes de falar do mesmo fenômeno. Assim também, apenas a presença humana capaz de desaparecer sem ausentar-se completamente, poderá tornar-se voz, nome, figura e memória assimilados pelo sujeito nascente, sob a forma de cimento e tijolos de uma nova subjetividade. Nosso destino é mesmo interiorizar as experiências significativas: “Nossa vida transcorre em metamorfose: sempre decrescendo, o exterior desaparece” (Rilke, 1922) e o progresso da vida obriga a reconstruir um mundo de objetos internos vivos, integrados e humanizados. São principalmente os cuidados maternos de sustentar e acalentar e a função paterna de separar e discriminar que precisam tornar-se ausentemente disponíveis, para que se possa viver em paz e tornar-se uma nova pessoa. O simples ato de ir dormir, de deixar-se adormecer - nos braços de Morfeu, desde a mitologia grega, lembram-nos - só é possível nos braços de alguém, nos braços visíveis ou invisíveis que mimetizam o colo aconchegante dos primeiros tempos. E ainda mais que adormecer, despertar exige estar nos braços de alguém; senão como encarar esse insuportável mundo real a cada manhã? Mais uma vez retorna o paradoxo de que estar só exige a presença real ou interiorizada de alguém capaz de segurar, cuidar, escutar. Mas conviver no dia-a-dia exige também a capacidade para estar só. Alguém me conta sentir grande necessidade de ficar ao lado da namorada em estado de tranqüila indiferença, e como é muito difícil que entenda o seu desejo, dirige a ela um apelo extremo e ao mesmo tempo simples: “trate-me como um cachorro, e voltarei a falar com você assim que me for possível”. É o pedido de ser deixado de lado, 3 4 Bollas, 1999, p. 12. Ver o texto de André Green, 1997. 40 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 debate Será? - implantando pequenos hiatos de dúvida nas crenças mais certeiras. Ele está imóvel, é verdade, mas sua imobilidade sensóriomotora é o próprio esforço de transformar toda a turbulência de sua vida psíquica em estado de abertura e escuta. Gosto de pensar que o analista quer se converter em abertura e enraizamento. Ele se prende ao que há de mais insólito: o fluxo e o dinamismo do outro, sem deixar de acompanhar, à distância, o seu próprio ritmo flutuante. Além de Winnicott, um outro analista, Christopher Bollas, afirmou que “cada encontro com um paciente envia-me profundamente a mim mesmo, a uma área de solidão essencial regida por leis inaudíveis de densa complexidade mental”. 3 Na sessão de análise, o próprio fato de estarmos sós, assim no plural revela uma comunidade invisível, um estar-só bem acompanhado. Tudo isto começa com a qualidade da presença materna capaz de criar um ambiente de confiança e segurança que dá a liberdade de brincar, inventar e expressar-se corporal e verbalmente, mas que se mantém em reserva, não-invasiva, em um silêncio tranqüilo, criando o que foi chamado de um espaço potencial. Este é um estado de solidão diferente do desamparo e do isolamento. Winnicott conta-nos que muitas vezes, ao estar diante de um problema difícil, recolhia-se a um espaço interior que chamava de “meu clube”, um lugar de intimidade e interlocução. Para um inglês, a idéia de pertencer a um clube de peers, ou pares, é a realização acabada do ideal de convivência pacífica e fecunda que este analista tanto praticou. Ter instalado dentro de si presenças humanas confiáveis sob a forma de um ambiente ou um “clima” amistoso exige a negação de presenças plenas, invasivas e barulhentas. A intuição do negativo4, um elemento presente no pensamento de Winnicott, e que foi trazido à tona por André Green, afirma a possibilidade de que a realidade, em sua plenitude sensorial, se deixe negar e Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 41 Elisa Maria de Ulhôa Cintra E faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez Atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, Vamos dormir. Coisas prateadas espocam: Somos noivo e noiva. Na verdade, a capacidade para estar só na presença de alguém retoma o enigma do relacionamento entre as pessoas e a história de como cada um constrói o seu caminho de acesso até o outro, seu “próximo” (seu “nebenmensch” em Freud), tão familiar e tão estrangeiro... Quanta proximidade e quanta distância é preciso haver entre eu e outro para que exista amor e intimidade, reconhecimento e autorização entre as partes, ainda que esteja sempre rondando o risco de se ficar excessivamente dependente e dominado pelo outro? Ou ainda, como construir um mundo interno que torne possível reconhecer os outros sem se sentir por eles ameaçado, desautorizado, submetido, violentado, invadido ou ignorado? Como não ceder ao desejo de controlar ou possuir? Um ambiente humano pacífico e pais que puderam autorizarse um ao outro, favorecem a interiorização de figuras femininas e masculinas que mantém entre si contato e diferenciação. Cria-se uma tensão mínima que significa união, e ao mesmo tempo separação e cada um dos pólos – o masculino e o feminino – pode coexistir com o outro, sem anulação mútua. Por outro lado, um ambiente de desprezo, rivalidade, agressão e abandono irá favorecer a interiorização de um mundo caótico onde os personagens se atacam ou desprezam, e é muito freqüente que o masculino se torne despótico e autoritário, dirigindo-se contra o feminino desprezado; ou o in5 O poema se chama “Casamento” e está no livro A terra de Santa Cruz (1991). 42 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 debate brincando sozinho com seus pensamentos, de ter sua presença plena de certa forma negada, mas sem ausentar-se completamente. Não se trata, pois, de nenhum apelo masoquista para ser mal tratado, mas a necessidade de ser deixado em contacto com a sua animalidade mais pura, mergulhado em uma existência anterior ao universo verbal. E, além disto, é o convite de que ela venha juntar-se a ele no mesmo estado de tranqüila indiferença a toda manifestação explícita de amor ou consideração. É preciso suportar o sentimento de exclusão de uma parte da vida psíquica do outro, deixá-lo estar com o seu mundo de objetos internos que são desconhecidos e devem continuar a sê-lo. E sentir-se livre para excluir o outro, sem alimentar aquela culpa doentia que exige tudo dividir e participar. Em um curto poema5, Adélia Prado descreve um casal que depois de anos de convivência encontra-se neste estado de comunhão silenciosa, implícita: Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, Ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, De vez em quando os cotovelos se esbarram, Ele fala coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” Freud descrevia uma fantasia universal na infância, dos pais em uma relação sexual sadomasoquista (1905). 7 Melanie Klein, por sua vez deu a este tipo de fantasia o nome de “figura dos pais combinados” que se torna muito ameaçadora e persecutória, pois eles formam uma espécie de “gangue” contra o filho, que não pode mais contar com a proteção de um dos pais em momentos de agressividade do outro, ficando à mercê da violência parental combinada contra ele. A criança sente que estão todos contra ela. 6 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 43 Elisa Maria de Ulhôa Cintra que se possa estar só na presença de alguém. Elaborar a posição depressiva é separar-se da simbiose originária e das demandas de amor mais violentas e thanáticas, moderando-as e erotizando-as, para que possam preservar a independência do outro amado e o projeto de emergir como um novo sujeito, pois o risco é sempre cair nos pólos extremos: ou fundir-se irremediavelmente às pessoas queridas e não nascer psiquicamente ou, para se defender desta espécie de morte psíquica, ignorar as pessoas e destruir seu valor, de maneira que passam a não ter mais nenhuma existência significativa - mas aí então, também não será possível subjetivar-se: ter-se-á destruído os tijolos vivos e a argamassa que podiam vir a ser alguém. Muito cedo, Melanie Klein deu-se conta de que era preciso fazer um luto e uma ressurreição dos primeiros amores, para se chegar a nascer psiquicamente. Este processo de luto e separação presente na posição depressiva é semelhante à elaboração do complexo de Édipo, através do complexo de castração, tal como havia sido descrito por Freud. Ronald Britton, um neo kleiniano, chega a afirmar que: “resolvemos o complexo de Édipo elaborando a posição depressiva e resolvemos a posição depressiva elaborando o Complexo de Édipo, que nenhum dos dois é jamais terminado e que ambos tem que ser trabalhados em cada nova situação de vida”(Britton, p.53). Por que cada nova situação de vida e cada porção de seu próprio self requer, para surgir, tanto luto? É preciso matar os “deuses” da infância e a criança magnífica que parece perfeita e absoluta, ao lado dos pais, em uma tríade narcísica. É o abandono das necessidades mais absolutas de ser amado, e das representações mais idealizadas ou denegridas de si, e dos outros personagens edípicos, os pais e os irmãos. O desejo de ser tudo para alguém, mantendo com ele um 44 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 debate verso disto. As figuras de homem e mulher se combinam de forma sadomasoquista6, criando uma figura dos pais combinados7, onde não há nem diferenciação nem união. Estas fantasias primitivas surgem em cada nova criança que vem ao mundo e dão expressão à sua vida sexual e à sua destrutividade; elas vão sendo forjadas em uma combinação única, que reúne as influências do ambiente e as reações de cada um ao mundo de acontecimentos significativos de sua história. Tornar-se um novo sujeito é fazer-se herdeiro de tudo o que o ambiente oferece, inclusive de aspectos indigestos da vida sexual e da destrutividade parental. Às vezes, o que “o ambiente oferece” são formas muito idealizadas de perfeição e de poder que entram na composição do mundo interno sob a forma de objetos ideais, para o bem e para o mal. A criança pode sentir-se ou bem excluída e perseguida, “estão todos contra ela”, ou bem invadida de forma absoluta e mortífera, e o desamparo e a ameaça tornam-se muito grandes. Ou então ela pode, imaginariamente, formar uma dupla, ou um trio, com um dos pais, ou um dos irmãos “contra o mundo”. Nesses casos há sempre uma confusão de identidades, e os aspectos mais grandiosos ou ameaçadores das pessoas entram em combinação com essas mesmas tendências da criança, criando objetos internos ideais e violentos. Neste caso, fazerse herdeiro é conseguir ultrapassar estas figuras internas grandiosas e cheias de arbítrio, dissolvendo-as e modificando-as. Melanie Klein propunha que o desenvolvimento de uma nova subjetividade dependia da elaboração da posição depressiva e da introjeção do objeto bom, sobretudo durante os cinco primeiros anos de vida, embora isto devesse ser retomado ao longo de toda a vida em um contínuo processo de reconstrução de si mesmo. Vejamos o que significam estas teorias – elaborar a posição depressiva e introjetar o objeto bom – pois isto nos levará a compreender o mundo interno que precisa ser constituído, para Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 45 Elisa Maria de Ulhôa Cintra precisam ser desembaraçados para que se possa ter uma “mente própria”. 8 Em contraste com os objetos ideais, o objeto simplesmente bom nasce de uma experiência diferente da paixão sem medida, da ilusão de tudo ser que se torna tão absoluta a ponto de negar os aspectos miúdos e corriqueiros da experiência de amar. O objeto “suficientemente bom” corresponde à elaboração do Édipo e da posição depressiva. Ele é tanto a origem, quanto a meta da capacidade para estar só. O objeto bom é o nome de uma experiência de prazer, acolhimento e segurança. Ele é a presença residual de um dinamismo relacional, a memória de que no início havia ali duas pessoas, uma delas tinha necessidade de algo que a ela foi entregue pela outra pessoa, por quem a primeira sente gratidão. Aqui há uma diferenciação e uma aliança maiores entre o masculino e o feminino, o parental e o filial. O objeto bom é um nome, com a propriedade que os nomes têm de nos transportar de um lugar para outro. Pensando sobre isto compreendo melhor a insistência de Lacan sobre a metáfora paterna, o “nome do pai”. O significante ser pai é o que nos transporta para um outro lugar, para a dimensão simbólica, metaforizante. A experiência imediata é lançada para novos sentidos potenciais. O nome é algo que nos transporta. Quais são as funções do pai? Interdição, regulação, mediação. Proteger, dar segurança, prover, criar e distribuir os bens necessários à vida, como em uma obra de arquitetura primitiva que transporta água de longe para mais perto, que inventa instrumentos para canalizar, construir, suprir.9 Não é difícil lembrar dos deslocamentos criativos de um poema, ou da ficção inspirada, capaz de renomear e ressignificar um mundo de fatos insignificantes ou paralisantes. 8 Ver Caper, 2002. 46 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 debate estado de fascinação passional tem que ser deixado para trás para se aceitar uma relação em que os parceiros têm vidas e prazeres próprios, independentes um do outro. Será preciso desembaraçar-se destes nós originários. Digamos que os momentos mais narcísicos, que precisam ser deixados para trás ,envolvem relações mútuas de fascinação e dependência, tanto entre duas como entre três pessoas – são as díades ou tríades narcísicas, tão intensas quanto aprisionadoras, constituindo o que podemos chamar de um objeto bom ideal – magnífico e absoluto, mas que rapidamente se torna ameaçador e persecutório, pois estabelece um padrão muito elevado de perfeição e exigência. O chamado “objeto bom ideal” é a construção monstruosa de um dinamismo que reúne tudo que há de mais passional em nossa demanda de amor, amalgamado ao que há de mais primitivo e absoluto na demanda de amor do outro: o resultado é uma fascinação recíproca. As díades acontecem quando vivemos a fantasia de plenitude a dois e a tríade mais primitiva é aquela que formamos com o casal parental – mas há nisto sempre uma grande dose de indiferenciação entre homem e mulher, filhos e pais, sexo e ternura, ou seja: confusão entre identidades sexuais e gerações. De um lado, um sexual separado de ternura e do outro lado, uma ternura dessexualizada, pois o estado narcísico também dá origem a oposições radicais em que um pólo tem que anular e recusar o outro. Vêem-se por esta descrição que estes “bons objetos ideais” são nós indiferenciados de desejos e exigências de perfeição, que Há um filme “O despertar de uma paixão” que se passa na China em uma localidade rural onde uma epidemia de cólera mata grande parte da população e quase toda a água está contaminada, até que um jovem médico inglês que tenta combater a epidemia e projeta uma obra arquitetônica simples, feita com hastes de bambu para transportar água não contaminada para o vilarejo. 10 Ver Totem e tabu de Sigmund Freud (1913). 9 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 47 Elisa Maria de Ulhôa Cintra mente “a seu dispor”, atento a seus mínimos movimentos internos – sejam medos ou desejos – e pronto a suavizá-los ou atendê-los, sem descanso e sem demora. Qual é a maior aspiração do narcisismo patológico? Encontrar aquela alma gêmea completamente transparente que em nada se diferencia de mim, que nada esconde, nada retém para si. É, portanto, uma exigência de equiparação, de que não haja nenhuma diferença significativa entre eu e o “outro”. Que “outro”? A alteridade precisa ser abolida. Ou então, que esta alma gêmea seja como o gênio da lâmpada de Aladim, que transforma em ordens todos os meus desejos. É o desejo de empatia absoluta, cumplicidade, solidariedade total por parte do outro, independente do que eu tenha feito ou dito. É o movimento que leva um paciente a apropriar-se daquilo que lhe foi dito pelo analista tornando-o, imediatamente, algo seu, por um processo de indiferenciação, por um desejo de ser igual, de ser um com o “outro”. E além das demandas narcísicas mais absolutas, o que significa este desejo de ter “mente própria”, de que nos fala Caper? Trata-se do desejo de separar-se do outro, entrar em contato com a solidão que só cada um de nós poderá conhecer, de reencontrar a paixão por seus objetos internos. Envolve re-descobrir o prazer de cuidar de si e de responsabilizar-se por sua própria felicidade antes de cobrar isto do mundo; exige, pois, sair de um universo mágico. Leva a perceber o outro como alguém separado de mim e a manter um relacionamento diferente da fusão narcísica, embora guardando espaço para a empatia, a possibilidade de comunicação, para os aspectos mais saudáveis do narcisismo. Os afetos aí suscitados são complexos e há a dor de perceber que o outro me exclui, que ele tem vida própria, que não se torna nunca completamente transparente e acessível a mim, mas pensa por conta própria e move-se independentemente de meu controle e do meu desejo. Corresponde a um desejo de autonomia e de liberdade que convive lado a lado com a aspiração narcísica de ser reconhecido, 48 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 debate O objeto suficientemente bom é um memorial, é um rumor de distâncias atravessadas. No eco, na distância de ser lembrado, ele será assimilado, dando a ser uma nova pessoa. Ele ainda vai ser. Talvez seja esta sua maior virtude: o seu tempo futuro e o seu desejo de alterar-se, de tornar-se outro, diferenciar-se. Em contraste com isto, o pai da horda primitiva10 é uma explosão de poder arbitrário e egoísmo. Imagino o pai cruel da horda primitiva como um grande bloco de granito ocupando o interior da nova subjetividade, como um enclave indissolúvel. Ao construir sua nova “casa”, o jovem arquiteto, incapaz de remover aquela imensa rocha de granito não tem outra saída senão deixá-la por ali ocupando espaço vital da sala de visitas, ou do quarto de dormir e, um pouco sufocado, constrói as paredes de si em torno deste grande obstáculo inamovível. Ao contrário disto, o bom objeto origina as fundações estáveis e sutis de uma nova subjetividade, mas encontra-se tão dissolvido no solo do novo sujeito que ninguém mais pode enxergá-lo com nitidez. O enclave insolúvel do objeto ideal revela que, incorporado, dificilmente pode ser introjetado e integrado ao eu nascente, e permanece como um modelo a imitar ou a contrariar, uma voz que julga e condena, tirando toda a luz, como Freud descreveu em um tom trágico: “a sombra do objeto caiu sobre o eu”. Em uma análise, o analista torna-se receptivo às projeções e às demandas infantis do paciente, deixa-se embaraçar nelas para, mais tarde, desembaraçar-se através de suas interpretações e de sua paixão por conhecer o funcionamento daquela pessoa, tanto em suas necessidades mais profundamente narcísicas quanto em seu desejo de ter “mente própria”. Quais são as primeiras? O narcisismo saudável é o desejo de pertencer, de união, de ser compreendido, amado e reconhecido. Torna-se patológico quando se deseja ser plenamente compreendido e que o outro possa estar ali completa- Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 49 Elisa Maria de Ulhôa Cintra Tudo isto para combater a tentação maior de um dia querer ser tudo o que o seu cachorro pensa que você é. Elisa Maria de Ulhôa Cintra Rua Alcides Pertiga, 65 Cerqueira César - São Paulo – SP 05413-100 Fone: (11) 3086-4016 e-mail: [email protected] Referências BION, W. (1967) Notas sobre memória e desejo. In: SPILLIUS, E.B. (Ed.). Melanie Klein Hoje – desenvolvimento da teoria e da técnica. v. 2. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1990. BOLLAS, C. The mistery of things. London and New York: Routledge, 1999. BRITTON, R. Crença e imaginação. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2003. CAPER, R. Tendo mente própria. Uma visão kleiniana do self e do objeto. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2002. FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7). ______. (1913) Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (ESB, 13). ______. (1924) A dissolução do complexo de Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (ESB, 19). GREEN, A. (1997) The intuition of the negative in playing and reality. In: KOHON, G. (Org) The dead mother. Londres: Routled- 50 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 debate de pertencer e igualar-se. O analista se propõe a conhecer e nomear estes diferentes desejos e demandas, a construir pontes e nexos entre eles para que, envolvendo-se no jogo, o paciente acabe por transportar sentidos das nascentes mais férteis até os lugares mais secos e abandonados. Ora, toda vez que, na convivência miúda do dia-a-dia, alguém pode se esquecer de si e deixar-se esquecer por parte do outro, converte-se, ele também, em algo assimilável, nutriente. O mesmo processo de conjunções e disjunções, de mortes e renascimentos que descrevemos acima, estará acontecendo ou sendo retomado quando se pode estar assim: só, na presença de alguém. É a difícil arte de tratar e ser tratado como um cachorro. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 35-51, 2007 51 52 ge, 1999, p. 205-221. KLEIN, M. (1952) Algumas conclusões teóricas relativas à vida dos bebês. In.. Inveja e Gratidão e outros trabalhos 1946-1963.. Rio de Janeiro: Imago, 1996 ( Obras completas de Melanie Klein, 3). PHILLIPS, A. Beijo, cócegas e tédio. O inexplorado à luz da psicanálise. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. PRADO, A. terra de Santa Cruz. In: Poesia Reunida. São Paulo: Ed. Siciliano, 1991. RILKE, R. M. As elegias de Duino. Trad. Dora Ferreira da Silva. Porto Alegre: Ed. Globo, 1984. WINNICOTT, D. W. (1958) A capacidade para estar só. In: O ambiente e os processos de Maturação – estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. debate Psicanálise e literatura – Don Juan e o engano da lista Psychoanalysis and literature – Don Juan and the list misinformation Luiz Alberto Pinheiro de Freitas* *Membro Psicanalista/SPID; Mestre e Doutor em Psicologia Clínica/PUC-Rio;Pósdoutorado em Ciência da Literatura /UFRJ; Magister em Prevención y Asistencia de lãs Drogadependencias/Universidad del Salvador, B. Aires; Master em Drogadependencia/ Universidad de Deusto-Bilbao; Autor de Freud e Machado de Assis – Uma interseção entre psicanálise e literatura, Rio de Janeiro: Mauad, 2001; entre outros. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 53 Como não posso desempenhar o papel de amante por causa da minha deformidade, serei o vilão, conspirarei, assassinarei, e farei tudo o que quiser. Essa motivação frívola só sufocaria qualquer sentimento de simpatia 54 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 Resumo Este trabalho pretende exemplificar como se pode fazer psicanálise em extensão, assinalando as possibilidades de uma interseção entre a psicanálise e a literatura. Através da análise do personagem Don Juan, poder-se-á mostrar, utilizando-se os conceitos psicanalíticos, o caráter universalizante do personagem, na medida em que é um personagem permanente – repetição inconsciente de uma forma de ser na cultura. Palavras chave: psicanálise, literatura, Freud, Dom Juan. Abstract This work aims at illustrating how one can make psychoanalysis in extension, pointing out to the possibilities of an intersection between psychoanalysis and literature. Through the analysis of the Dom Juan character, one can show, in the light of psychoanalytical concepts, the universal nature of said character, as far as it is a permanent character – an unconscious repetition of a cultural form of being. Keywords: psychoanalysis, literature, Freud, Dom Juan. debate Psicanálise e literatura - Dom Juan e o engano da lista Psychoanalisis and literature – Don Juan and the list misinformation Luiz Alberto Pinheiro de Freitas Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 55 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas (1916) a respeito de Ricardo III, poderíamos dizer que Dom Juan é uma ampliação do que encontramos em nós mesmos. Vital Brazil, em 1992, afirmava que na nossa cultura havia personagens que seriam representantes, inicialmente, de uma forma de ser num determinado contexto sócio-histórico, no entanto, com o decorrer do tempo, eles se mantiveram e passaram a ser não só representativos daquela cultura, mas ganharam uma dimensão universal. Esses personagens seriam permanentes, representativos de certas matrizes da subjetividade, não se situariam mais em um determinado tempo, - poderiam ser representantes de qualquer tempo. A obra da qual se retira um personagem permanente inscreveu-se, ao longo dos anos, no que Bakhtin (1970) chamou de a “grande temporalidade” (p. 364). Um texto literário permite que se utilizem os conceitos da psicanálise para: “interpretar, dar sentido à sempre errante linguagem do desejo inconsciente, fornecer alguma inteligibilidade ao que surge como absurdo, como irrepresentável...” (Freitas, 2001, p. 43). A interpretação de um personagem é sempre uma forma que tem aquele que se utiliza da psicanálise, de enriquecer a obra e a cultura em que ela está inserida, ampliando assim o alcance da mesma ao produzir efeitos de sublimação. Uma interpretação que será sempre parcial e que não esgota outras possibilidades interpretativas. Das centenas de dom juans criados a partir da concepção de Tirso de Molina, há mais dois que se tornaram significativos: o de Molière (1977) e o de Lorenzo da Ponte (1787). Dos três textos, retiramos para exame algo que ganha certa dimensão, na medida em que funciona como um processo evolutivo que chega a um ápice – a lista de mulheres seduzidas. No libreto de Lorenzo da Ponte encontra-se a impressionante cifra de 2.065 encontros amorosos. A idéia da lista já se descortinava no texto espanhol 56 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 debate no auditório, se não fosse um pano de fundo para algo muito mais grave. Do contrário, a peça seria psicologicamente impossível, pois o escritor deve saber como nos fornecer antecedentes secretos que despertem simpatia pelo seu herói, a fim de que possamos admirar sua ousadia e desembaraço sem protesto interior; e essa simpatia só pode basear-se na compreensão ou no sentimento de uma possível solidariedade interior em relação a ele. (...) Ricardo é uma ampliação do que encontramos em nós mesmos. [Referencia feita por Freud à obra de Shakespeare, Ricardo III], (1916, p. 355). Desde que Tirso de Molina, pseudônimo do Frei espanhol Gabriel Telez, editou, em Barcelona, no ano de 1630, a peça teatral El Burlador de Sevilla, o herói Dom Juan corre mundo. É tal o sucesso, que inúmeros outros escritores aventuraram-se, com o decorrer dos anos e dos séculos, a promover alterações no texto original. A impressão causada pela peça só pode ser verdadeiramente explicada pelo fato das peripécias de Dom Juan produzirem um prazer que “procede de uma liberação de tensões em nossas mentes” (Freud, 1908 [1907], p. 158). A atividade dom juanesca consegue, através da pena do frei mercedário, gerar sentimentos de simpatia e magnanimidade, ou seja: “A verdadeira ars poética está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa” (Freud, 1908 [1907], p. 158) em relação às atuações perversas do herói. Essa superação só é possível na medida em que o escritor desvia-nos de qualquer reflexão crítica, e nos leva, de forma inconsciente, a um apaixonamento pelo herói, produzindo assim, intensos efeitos de identificação que remontam ao século XVII. Parafraseando Freud Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 57 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas El tiempo la desterró a Vejel. Don Juan Irá morir. ¿Constanza? Mota Es lástima vella lampiña de frente e ceja. Llámale el portugués vieja, y ella imagina que bella. Don Juan Sí, que velha en portugués suena vieja en castellano. ¿Y Teodora? Mota Este verano Se escapó del mal francés por un río de sudores; y está tan tierna y reciente, que anteayer me arrojó un diente envuelto entre muchas flores. Don Juan ¿Julia, la del Candilejo? Mota Ya con sus afeites lucha. Don Juan ¿Véndese siempre por trucha? Mota Ya se da por abadejo. Don Juan El barrio de Cantarranas ¿tiene buena población? Mota 58 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 debate Catalinón Al fin ¿pretendes gozar a Tisbea? Don Juan Si burlar es hábito antiguo mío, ¿qué me preguntas, sabiendo mi condición? (Molina, p. 164). Depreende-se que, sendo um hábito antigo, deve haver uma longa lista de mulheres enganadas. Mais adiante, Tirso apresenta outra passagem na qual Dom Juan e o Marquês de La Mota comentam sobre várias mulheres, cortesãs conhecidas de ambos. Don Juan ¿Qué hay de Sevilla? Mota Está ya toda esta corte mudada. Don Juan ¿Mujeres? Mota Cosa juzgada. Don Juan ¿Inés? Mota A Vejel se va. Don Juan Buen lugar para vivir la que tan dama nació. Mota Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 59 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas aventuras tivessem uma impressionante marca, a qual deveria continuar sendo ampliada. Leporello Madamina, il catalogo è questo delle belle che amó il padron mio: un catalogo gli è che ho fatt’io observate, legette con me. In Italia seicento e quaranta, in Almagna duecento e trentuna, cento in Francia in Turchia novantuna, ma in Ispagna son già mille e tre (cena 5, ato I, p. 7). Utilizamo-nos do recorte da lista para podermos dizer alguma coisa sobre o que faz com que o herói Dom Juan toque, de forma intensa, a sensualidade humana ao longo dos séculos, inscrevendose desta forma na “grande temporalidade” bakhtiniana. Dom Juan é o homem que pretende ser o maior burlador da Espanha, quiçá, do mundo. Na sua obstinação pela conquista e pelo desprezo do objeto conquistado ele diz: Sevilla a voces me llama El Burlador, y el mayor gusto que en mí puede haber es burlar una mujer y dejarla sin honor (Molina, p. 172). Há que se perguntar o que faz com que este homem ganhe tal dimensão, o que será que ele apresenta e que nos toca de forma tão intensa, a ponto de ser objeto não só de inúmeras refundições, bem como objeto dos mais intensos estudos literários, sociológicos, psicológicos etc.? 60 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 debate Ranas las más dellas son. ¿Y viven las dos hermanas? Mota Y la mona de Tolú de su madre Celestina que les enseña dotrina. Don Juan ¡Oh, vieja de Bercebú! ¿Cómo la mayor está? Mota Blanca, sin blanca nimguna; tiene un santo a quien ayuna. Don Juan ¿Agora en vigilias da? Mota Es firme y santa mujer. Don Juan ¿Y esotra? Mota Mejor principio Tiene; no desecha ripio (p. 170-1). Ou também na passagem seguinte de Molina: Catalinón Guárdense todos de un hombre que a las mujeres engaña, y es el burlador de España (p. 175). Se Tirso de Molina trouxe a questão das várias mulheres seduzidas – hábito antigo de Don Juan -, Molière modifica o nome do criado de Don Juan para Leporello e trás a questão da lista: “Se eu te fizesse a lista de todas com quem casou aqui, ali e acolá, olha, você ia ter que tomar nota o dia inteiro” (p. 8-9). Lorenzo da Ponte deu números, fazendo com que as Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 61 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas é por acaso que não se fala na mãe de Dom Juan. “... nada nos é dito da mãe de Dom Juan, e é possível supor que o absoluto dessa beleza que o mantém permanentemente excitado é ela, em última instância: originária, inacessível, interdita” (p. 235). Pode-se também lembrar que as passagens em que Molina apresenta o pai, o é como alguém com muito pouca ascendência sobre o filho. A mãe, presença ausente, deixa implícita a Medusa terrorífica que o Dom Juan-Perseu tem que, a todo momento, decapitar com a sua espada-pênis. Dom Juan é espada! A lista dom juanesca apresenta um outro aspecto que nos faz pensar: quando Leporello fala sobre o assunto, seja em Molière ou na ópera de Mozart é para desestimular uma reivindicação feminina, no entanto, e a clínica com os homens nos mostra isso: qualquer listagem de mulheres é para ser apresentada a outros homens. É para que o dono da lista exiba-se narcisicamente frente não às mulheres, mas ao universo masculino. Pode-se entrever a ponta da lista quando um homem sente um “prazer segundo” ao alardear ao amigo sua última conquista. A série da conquista é utilizada como uma insígnia narcísica; e tanto maior será a insígnia quanto mais, no imaginário social, a mulher for desejada; pois a passagem dom juanesca também pretende despertar admiração e inveja. E mais inveja ainda pode despertar, se aquele que se exibe disser que “ela quer, mas eu não, é só sexo”. A mulher, a quem qualquer um, do nobre ao pobre, foi em algum momento da vida submisso, pelo menos por tê-lo parido, torna-se uma figura cujo registro da referência do dar a vida faz com que os homens tentem “denegar” sua importância. O poder fálico do Dom Juan “estaria destinado a servir de contrapeso ao poder de uma mãe inominável” (p. 235). As listas formais, e na maioria das vezes informais, correm entre os homens, desde os encontros de adolescentes até os grupos da senescência. Discutem, normalmente de forma depreciativa, 62 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 debate Mas o que faz correr Dom Juan? O que procura ele? E, reciprocamente, para sua infelicidade e abandono, o que atrai para ele as mulheres? Por fim, o que reúne em torno de Dom Juan esses homens que se imaginam, se desejam, se comportam como se fosse ele? (Kristeva, 1983, p. 226). A terceira pergunta feita por Julia Kristeva pode nos levar, através da análise do porquê do catálogo, a uma das pontas do leque de possibilidades do conflito homem- mulher. O catálogo de Lorenzo Da Ponte ou a lista de Molière são como as provas, o registro das seduções. Elas podem ser reduzidas a números, já que El Burlador de Sevilla nada mais pretende do que a conquista. É gozar e fugir. Após o intercurso, o herói quer uma outra, uma nova; é a possibilidade da permanente mudança de objeto o que atrai, já que o objeto não é para ser mantido – vai ser apenas um número na lista. A lista, como prova, a lista como burocracia, como representante da institucionalização das relações afetivas. As mulheres como membros de uma série (Sartre, 1963). Kristeva nos fala que: “Por mais malicioso que seja o prazer dessa conta, ele não capitaliza no limite mais que o sadismo de reduzir a números as possuídas de uma paixão que, para o Senhor, não é uma conta mas um jogo” (p. 227). Todavia, é exatamente a questão de quantas e quantas vezes esse Senhor dá provas do não querer, do não precisar manter o objeto. A lista funciona como um atestado do engodo da plenitude, pois na posição “divina” não há que se considerar um outro desejante. Não há “o outro” de Deus. E, é essa posição divina do herói que vai produzir intensos efeitos identificatórios. Ser um Dom Juan, para um homem, é sentir-se, in extremis, não necessitado da mulher, poder negar esse histórico da vinculação materna – não Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 63 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas o reconheça como tal! ...os homens, nas suas disputas pelos objetos sexuais disponíveis, sempre encontram fórmulas para se pavonearem uns diante dos outros. Nessa permanente competição fálica, o valor de cada um é dado pelo número de mulheres a que tem acesso sexual. (...). Nas suas disputas fálicas, os homens tem um prazer incomensurável, um segundo gozo, que é o de poder despertar a inveja do outro pelas mulheres que desfruta. (...). Por vezes é necessário ir mais longe, chegar até a confissão, nomear a mulher, fazer o outro imaginar a cena e deliciar-se com a inveja (Freitas, p. 112). Freud, em 1937, numa nota de pé de página, chamava atenção para o que Adler denominou “protesto masculino”, ou seja, o medo que os homens têm de se sentirem submetidos a outro homem. ... tais homens com freqüência demonstram uma atitude masoquista – um estado que equivale a servidão – para com as mulheres. O que eles rejeitam não é a passividade em geral, mas a passividade para com um homem. Em outras palavras, o ‘protesto masculino’, de fato, nada mais é do que ansiedade de castração ( p. 287). Na nota citada, ele não deixa de fazer referência a uma possibilidade de servidão para com as mulheres, ou seja, essa permanente depreciação da mulher transformada em mero elemento de uma série, nada mais seria do que uma denegação da importância da mulher, tanto que a lista também assinala quantas mulheres são necessárias para que o homem possa manter permanentemente aplacada sua ansiedade de castração. 64 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 debate sobre as mulheres com as quais fizeram sexo. O dom juanismo é, prioritariamente, uma demonstração de potência para os outros homens, não para as mulheres – em princípio, um homem que teve muitas mulheres é, entre os homens, muito mais valorizado do que aquele que teve poucas. A lista numerosa é um belo phalus a ser apresentado. Uma extensa lista é um cartel que o coloca, em relação ao protesto masculino freudiano, como alguém que não se submete. Esse dar provas de independência frente à mulher e, conseqüentemente, aos homens, faz com que esse homem possa ser visto como um semideus, como alguém que não precisa de ninguém; por isso pode se dar ao luxo de gozar indefinidamente – na posição divina não se sofre por amor, não há luto a ser elaborado. A dor pela perda do objeto amado é um dos maiores sofrimentos a que nos condenou a mãe Natureza. “Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga” disse Machado de Assis (1881) no delírio de Brás Cubas (p. 422). Tirso de Molina faz a correção, tira a parte inimiga e produz um homem que não necessita de mulher, independente da mulher, todavia, o lado sádico do herói aponta para a denegação da mulher. O texto correu mundo, foi alterado, aumentado, recriado, no entanto, continua a atrair, notadamente aos homens, que se sentem lisongeados com a alcunha de dom juans em virtude da identificação com este que, só utiliza as mulheres para gozar e apregoar, aos sete ventos, o quanto lhe agrada ser temido por elas e admirado pelos homens. Uma tal “independência” é para ser desejada, e no íntimo de um homem, quem sabe não palpita este desejo impossível de liberdade. A posição divina, onipotente, só se consegue através das artes, e a literatura é uma das mais propícias a este tipo de fantasia - poder dizer, sem rodeios, que o que mais gosta é enganar uma mulher e deixá-la sem honra, e que o mundo Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 65 Luiz Alberto Pinheiro de Freitas O herói nos faz sonhar com um mundo libidinoso, sem censuras, sem interditos sexuais. É o homem que valoriza um erotismo amoral, um homem da conquista sem a posse, um homem a quem, em matéria de mulher, a auto-censura é bastante leniente. Don Juan inverte a máxima Machadiana de que “O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado” (Machado de Assis, 1891, p. 579). Ao contrário, ele é a favor da maior divulgação possível do pecado. Ele quer que todos saibam que ele é, entre todos, o maior sedutor, o maior burlador de mulheres. No tocante ao aspecto erótico ele não teme nada. Tal poder fez seduzir muitos leitores, produzindo identificações que o levaram à categoria de personagem permanente, e ao qual sempre podemos voltar em busca de referencias as matrizes da subjetividade. Ele ganha uma posição de personagem permanente, pois pode condensar valores, denotar o complexo, o diferente e o plural, uma condensação que visa atribuir algum sentido à história do ser humano. Dom Juan é um exemplo consistente dos desejos inconfessáveis que perpassam o homem, e indica uma matriz de origem da própria cultura. Luiz Alberto Pinheiro de Freitas Av. Ataulfo de Paiva 135/1313 Leblon – Rio de Janeiro – RJ fone: (21) 2239-2446 e-mail: [email protected] Referências BAKHTIN, M. (1970). Os estudos literários hoje. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FREITAS, L. A. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. FREUD, S. (1908 [1907]). Escritores criativos e devaneio. Rio 66 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 debate Dom Juan é um personagem que produz o devaneio do homem “livre” da mulher, livre das tormentas da rejeição, livre do permanente mal-entendido entre os sexos. Dom Juan é o homem de apenas um encontro, e nesse encontro ele vive o seu triunfo narcísico para, no momento seguinte, incrementar a certeza da possibilidade de viver uma solidão sem sofrimentos. Ele segue só; a mulher denegada enquanto objeto de amor serve apenas como alimento dionisíaco. “...as mulheres não são, contudo, objetos: pré-objetos, elas passam de interdito não à divinização, como já se disse, mas servem à glória do próprio sedutor” (Kristeva, p. 237). Dom Juan surge como o cavaleiro solitário, um homem a quem o investimento afetivo nas mulheres se esvai num átimo. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007 67 68 debate Os novos modelos de consciência New models of consciousness Ronaldo Lima Lins* Resumo Os caminhos da pós-modernidade e a instalação social de novos modelos de consciência. O estado de dilaceramento da individualidade e a solidão do intelectual, diante da impossibilidade de interferir. A liberdade posta numa camisade-força. Palavras-chave: lógica aristotélica, consciência, liberdade, novos condicionantes históricos, papel do intelectual. Abstract New models of consciousness as a consequence of postmodernity culture. The broke- mind state of individuality and the writer’s state of solitude facing his impossibility of interfere in this process. Freedom put into a straitjacket. Key words: Aristotle’s logic, consciousness, liberty, new historical paragons, the intellectual role. * Professor Titular de Teoria da Literatura e Diretor da Faculdade de Letras da UFRJ; autor de diversas obras publicadas, entre romances e ensaios, sendo A indiferença pósmoderna. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006, a mais recente. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 69 70 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate Os novos modelos da consciência. New models of consciousness. Ronaldo Lima Lins ‘À quel moment avez-vous commencé à écrire?’ demandaiton à un viel homme, assis à sa table de travail. ‘Depuis que le livre s’ouvrit au livre’ , fut sa réponse. Jabès, Edmond. Le livre du partage.1 A importância da lógica predicativa aristotélica na construção do pensamento ocidental e no enfrentamento dos desafios que surgiram do ponto de vista da organização social mostra-se indiscutível. Só há pouco tempo, em termos históricos, a filosofia começou a se interrogar se estava, diante dela, frente a uma verdade absoluta. A indagação já contestava um status quo no qual a argumentação obedecia a um encadeamento de rigidez suspeita. Por tal modelo de consciência, não havia como romper com os elos da opressão. O que sempre acontecera justificava o acontecido e sua continuação. Ainda que a Revolução francesa, assumindo o critério da razão como guia das decisões, representasse uma reviravolta, um basta nos hábitos consagrados pelo antigo regime (eles considerados retrógrados e injustos), retomou, mais do que JABÈS, Edmond, Le livre du partage. Paris: Gallimard, 1987, pág. 11. “Em que momento começou a escrever ?” – perguntava-se a um velho, sentado em sua mesa de trabalho”. “Desde que o livro se abriu para o livro”, foi a sua resposta. (Versão nossa.) 1 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 71 Ronaldo Lima Lins e por métodos de apropriação, de valores mais humanos, capazes de oferecer uma defesa real contra os desafios da natureza e suas violências. A mola do lucro e a obsessão pela idéia do progresso, por seu turno, voltaram-se contra os manifestos do marxismo, organizando-se com as armas do poder e da ideologia em defesa do regime. Nova contradição. Aproveitando os ensinamentos de Hegel, Marx fizera de sua filosofia o combustível volátil da inspiração revolucionária com vistas a uma sociedade que trocasse a divisão de classes pelo comunismo. Agora, não havia unicamente a lógica predicativa aristotélica para nos orientar. Uma verdade dominante podia se desfazer em minutos, derrubada pela contradição e seus efeitos. Sob a opressão, o indivíduo tinha como imaginar alternativas, em vez de chorar as mágoas do destino e entregar-se a ele. Hegel pensara na dialética para decifrar os alicerces do processo. Marx agregara a meta da síntese ao duplo da tese e da antítese, com ênfase na emancipação dos oprimidos. Travava-se uma discussão lá onde o poder de abstração dos homens faz e desfaz. Não se parou para constatar que, ao nível da individualidade, a lógica aristotélica permanecia válida, como uma lei intransponível. Quando se atirava no universo dos sonhos, a pessoa encontrava, então, modos de libertar-se, mas, na circularidade do cotidiano nada disso se confirmava. Causa e efeito, os dois gêmeos, continuavam governando os homens em cada um dos seus movimentos: na hora de ir para o trabalho, de receber o salário, de enfrentar a fome, a dor, a doença, a competição, os inimigos etc. Estava-se entre duas esferas: a do encadeamento e a da contradição, como se nos fosse possível conviver com duas verdades e submeter-nos a ambas não obstante o absurdo. Mas o que é a consciência, de que modo a vemos? “Ele a comia com os olhos”. Esta frase e 72 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate inovou, o que os gregos haviam criado e Aristóteles sistematizara e explicara. Ao entendimento humano qualquer outra fórmula chocava-se contra os fatos e devia ser descartada. Para que uma verdade se firmasse, cumpria que uma corrente de elos articulados se realizasse, sem que nada, no processo, chegasse a quebrá-la. Observado esse pressuposto, acreditava-se que não havia motivos de desconfiança. Mesmo assim, a Revolução e as inaugurações que ocasionou puseram em curso, tudo virando de cabeça para baixo, a presença da contradição. Aos que a testemunharam, a impressão que se ficava era de uma realidade em negativo, algo que enfatizava e enfeitava a beleza da contradição. Em quase todos os segmentos da vida comunitária instalara-se um espetáculo de convivências impossíveis: a nobreza e a burguesia; o rico e o despossuído; o dinheiro e o desprendimento; o sucesso e o insucesso – tudo constituindo ingredientes num caldeirão em estado de fervura. O surgimento de uma novidade não eliminava, por assim dizer, o antigo e o tradicional. O próprio burguês, antes tão antagônico, embora exibindo prudência e contra os excessos, começou a encontrar qualidades positivas na velha e gasta aristocracia e a sonhar com elas, acalentando o desejo de absorvê-las e incorporálas entre as suas características. Outras contradições se abriram: o patrão e o operário. Aqui a convivência se provava implícita aos modos de existência econômica. A premissa da unidade, consolidada por séculos pela visão teológica, projeto que pressupunha uma redenção nesta vida ou depois da morte, caía por terra para só se levantar no interior das utopias políticas. Marx veio com as suas teses para lutar contra as injustiças e difundir a proposta de uma retomada de um resíduo do passado: a hipótese da totalidade integrada e coerente posta adiante. O devaneio se justificava por intermédio de uma leitura da história pela qual se sugeria o abandono, pela pressão dos interesses Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 73 Ronaldo Lima Lins pois ela me escapa e me repele e eu não posso mais nela me perder assim como ela não pode se diluir em mim: fora dela, fora de mim. Não está aqui, nesta descrição, o reconhecimento de suas exigências e pressentimentos?(Idem) Sartre acrescenta que, de fato, sabíamos de antemão que a árvore não se achava em nós, que nós não podíamos fazê-la entrar em nossos estômagos sombrios e que o conhecimento não podia, sem desonestidade, comparar-se à posse. A liberdade entrava, enfim, no terreno da consciência, depois de atravessar um longo percurso que se iniciara nas discussões políticas. Todos os regimes, uma vez estabelecidos, se esforçaram (e provavelmente se esforçam) em atingir a esfera do saber e associar-se a ela se possível com tal perícia que ambos se identifiquem e se misturem. A modernidade ocidental não escapou do fenômeno. A iniciativa de Sartre pressupõe uma alternativa – e resulta, com certeza, da ausência de uma dominação unipolar. A possibilidade de manter em curso interpretações díspares dos eventos criava aberturas que chegaram ao centro da filosofia e das idéias que desenvolvera em torno da noção de consciência. (...) se, por impossível, alguém entrasse numa consciência, seria apanhado por um turbilhão e rejeitado para fora, perto da árvore, na poeira, porque a consciência não tem “dentro”; ela é apenas o fora dela mesma e é esta fuga absoluta, esta recusa em ser substância que a constituem como consciência. Imagine-se agora uma sucessão ligada a explosões que 2 SARTRE, Jean-Paul. Situation philosophiques. Paris: Gallimard/Tel, 1998, pág. 9. Esta e todas as demais citações do mesmo livro, aqui presentes, estão em versão 74 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate muitos outros sinais marcam a ilusão comum do realismo e do idealismo, segundo a qual conhecer é comer. A filosofia francesa depois de cem anos de academicismo, ainda se encontra no mesmo patamar. 2 Sartre realizará um esforço no sentido de desembaraçar essas categorias (do conhecimento e da consciência) de seus antigos elos. Ele desejava diagnosticar outros meios que possibilitassem o saber, entendendo que o papel da consciência sofrera modificações e não poderia mais funcionar segundo os modelos anteriores. Procura pistas na fenomenologia de Husserl. O que é uma mesa, uma rocha, uma casa? Uma certa reunião de ‘conteúdos de consciência’, uma ordem de tais conteúdos. Ó filosofia alimentar! Nada parece, no entanto, mais evidente: a mesa não é o conteúdo atual da minha percepção, a minha percepção não é o estado presente da minha consciência?(Idem) A simples investigação assinala o estágio em que nos encontrávamos no decorrer do século XX com relação às formas de compreensão. Tudo acontecera rapidamente – e a reflexão filosófica não movera ainda as suas engrenagens com velocidade para digerir os fatos. Conhecer é ‘estourar em direção a’, arrancarse à úmida intimidade gástrica para infiltrarse lá, além de si, em direção ao que não é o si, lá, perto da árvore e, no entanto, fora dela, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 75 Ronaldo Lima Lins serem adquiridos e usados pelos próprios interessados, ainda que isso se dê no interior de um aparato cada vez maior de alienação. Dali por diante, o conceito adquiriu uma fisionomia confusa e difícil de entender. Um dos problemas do registro em que nos metemos diz respeito ao tipo de liberdade à qual nos referimos. Ele serve a interesses, é claro. Também se presta a erupções, surpreendendo às vezes, onde não se esperava que irrompessem. É estranho falar assim porque se toca numa espécie de estado de anomia estrutural dentro do modo de organização, como se este, controlando tudo, deixasse qualquer coisa de fora, incapaz de atingi-lo. Ou então, como se, na ordem, houvesse, por definição, algo como uma contrapartida, uma contradição de base, transformando o positivo em negativo. Isso se verifica no esforço de racionalização em cuja perfeição pipocam impurezas e ervas daninhas. Zygmunt Bauman assinala como uma fragilidade da razão o desejo de esmagamento contra o que lhe escapa, impedindo que a natureza se realize dentro de sua vocação. O lixo doméstico produzido pelos seres humanos, agora acrescentado ao lixo industrial, escapa ao esforço de reciclagem, cada vez maior, e aponta para a hipocrisia da modernidade em sua obsessão por limpeza. Com tudo isso, não se valorizam, quando se manifestam, as demonstrações de resistência aos abraços da repressão e aguardamos uma tomada de consciência da opinião pública a qual agora, para conseguir mudanças, deve mudar ela própria, ao contrário do passado. Liberdade, a grande descoberta do século XVIII, permanece um ideal, senão a buscar, sem dúvida a orientar os movimentos. A simples menção do conceito, em certas situações, provoca SARTRE, Jean-Paul. « Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl : l’intentionalité ». idem, pág. 10. 3 76 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate nos arrancam de nós próprios, que não deixam mesmo a um “nós próprios” o lazer de se formar por trás deles, mas que nos atiram ao contrário além deles, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas. 3 É assim que a consciência, na leitura que Sartre realiza do pensamento de Husserl, vira, como sua condição sine qua non “consciência de alguma coisa”. A dedução comporta uma importância capital, dentro da situação de hoje, exatamente porque, por um lado, supomos que somos capazes de defender a consciência e, por outro, sentimo-nos absorvidos por forças que, apoderando-se da nossa vontade, levam até a idéia de consciência e a engolem. Assim, como num passe de mágica, a liberdade que prezáramos desaparece. A ideologia dominante não perde tempo. A teia de relações em torno do conceito de lucro (visto como bom, ao qual devemos perseguir porque luta contra a preguiça e a favor do progresso) sacode a sociedade quase sem deixar áreas intocadas. Da pequena tribo que habita a floresta às gangues que se movimentam nos meios urbanos das grandes metrópoles, tudo se encadeia e justifica no roteiro do que passamos a denominar de neoliberalismo. É difícil, nesse panorama, assegurar as conquistas daquilo a que um dia chamamos liberdade. O sistema faz dela um patrimônio seu, desde que não termine por colocá-lo em risco. E também não se pergunta que liberdade é essa, a sua. Sente-se que uma violência de base se mistura à época, por meio de homologias que, com efeito, sem dar a impressão de revelá-la, tocam nas molas da ideologia. O primeiro passo, em semelhante direção, consistiu em desvalorizar a categoria de indivíduo, instância cujo domínio, para que a manipulação da opinião se consumasse, dependeu do desenvolvimento tecnológico e da introdução no comércio de mecanismos de autocontrole a Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 77 Ronaldo Lima Lins ou erupções lhe revelam a existência, negada, a cada instância, pelo discurso oficial ou reduzida a problemas localizados, quando se somam a um conjunto ou à malha da ordem constituída. Para romper com o véu que se nos interpõe e olhar de frente, para entender o fenômeno, parece útil que nos aproximemos de um pensamento capaz de proceder a uma leitura alternativa dos eventos. O ensaio da crítica literária, relegado a um segundo plano, dentro do quadro hegemônico, possui um papel, desde que deixe de se resumir a um jogo de dândis desocupados para traduzir, ao contrário, a seriedade dos testemunhos. Saliente-se que a literatura sempre caminhou com autonomia – ou não caminhou, impondo-se com a agilidade com a qual se representa. Trata-se de uma autonomia que ultrapassa a concepção do autor ou suas opiniões. É como o conservadorismo de Balzac não impediu a denúncia da sociedade burguesa e suas anomalias. Que o escritor não esteja consciente do rumo não oferece empecilho para que a narrativa encontre o seu caminho. Nessas horas é quando a crítica cresce de importância. Ela pode efetuar um trabalho que a filosofia não efetuou. Sartre é um bom exemplo, enquanto ficcionista, contista, teatrólogo, com os subsídios que procurava na composição do tecido filosófico – e vice-versa, fazendo dela modos de desdobrar reflexões e afinar o saber em relação ao meio. Descobrir contradições é um passo, mas não o único para chegar ao mecanismo da opressão em escala industrial. As próprias contradições se encaixam num conjunto que, por seu turno, não se limita a um poder superior. Tem a ver com a liberdade e as formas como ela se apresenta no interior da sociedade. O próprio Sartre, preocupado com a noção de consciência e interessado em desvendar as redes de alienação, assinala como um sinal de alerta a inexistência de uma liberdade única, como se representasse uma entidade específica. 78 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate terremotos. Todos falam em nome dela, inclusive os regimes autoritários. Em nome da liberdade, sustentam-se prisões e doutrinas irregulares de detenção que agem por sobre os códigos da justiça. A observação comporta um caráter literário, na medida em que a forma de expressão transita nos espaços do devaneio e a eficiência do que contém em termos de crítica liga-se à dificuldade, aceita pela época, com que nos conduzimos previamente. É uma particularidade da criação a necessidade de expandir-se com total desembaraço. No interior de uma opção política favorável à circulação de mercadorias, a livre circulação das idéias precisava surgir como uma seqüela. É como se explica a vasta produção de pensamento e de invenções artísticas ocorridas nos últimos duzentos anos. Explica-se, além disso, a face contraditória, sempre repetida, entre aquilo que se afirmava, como discurso oficial, e aquilo que se vivia e que se traduziu nas artes. Ao otimismo que se exibia quanto às energias postas em prática no exercício da condução das coisas, contrapuseram-se as sombras e a exibição do sofrimento. A consciência possui um ritmo e demora em se dar conta da contrariedade contestatária. Pior ainda quando as compensações se acham ao alcance. Na África do Sul, muitos anos de opressão, amadurecendo lentamente, como um abscesso, resultaram numa declaração de independência, não só do país (que já não dependia de laços coloniais), mas da maioria africana contra a minoria branca e européia. A liberdade era um patrimônio privativo de alguns, dos poucos segmentos que seguravam as rédeas do poder. Reclamavase por ela como um clamor internacional contra a violência da injustiça. Estamos, hoje, numa situação de normalidade aparente, lá ou no resto do mundo, assentada sobre um vulcão. Os acidentes 4 SARTRE. Jean-Paul. « La liberté cartésienne », idem, pág. 61. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 79 Ronaldo Lima Lins qual as nossas escolhas recaem justamente sobre graus e áreas de liberdade e que tenhamos aberto mão de outros. Mesmo os pobres compram, ao contrário do passado, quando a pobreza implicava numa vida de contenção e precariedade. O crédito impulsionou o capitalismo inclusive de nações emergentes. O problema está na realidade do poder de compra, no que uns possuem e outros não, na sociedade diversificada e desigual entendida como a única que fomos capazes de desenvolver. Em que tem relevância, para as nossas reflexões sobre cultura, a existência da liberdade fatiada? Ajuda a compreender o funcionamento da consciência. Saber que alguém se mostra livre numa esfera e oprimido em outra, saber que aceitamos um benefício em troca de um malefício, compõe um quadro dentro do qual precisamos nos situar. A liberdade que desenvolvemos se liga a ações voluntárias. É da alçada do indivíduo a escolha dos seus movimentos, dos desejos que deve satisfazer, dos livros que lhe convém ler, dos candidatos em quem votar para ocupar cargos públicos. A consciência em Sartre não pode se mostrar interessada. No relacionamento que trava com o conhecimento, cumpre que permaneça de fora. Não há consciência dentro de um processo, exatamente porque a visão do mundo que se elabora então se mistura inevitavelmente com a dinâmica dos fatos. É o que explica que os períodos decorrem primeiro para que somente em seguida possamos avaliá-los e detectar suas causas. E como estar de fora? A literatura é um modo de estar dentro ou fora? Não espanta que desde o século XIX a narrativa na qual nos tornamos mestres utiliza um observador que ocupa a posição de neutralidade. Foi a fórmula encontrada para que não se deixasse contaminar pelos acontecimentos descritos e que comunicasse ao 80 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate Existem muitas liberdades, umas dentro de outras, umas fora, independentes, agressivas, ambiciosas. Diz ele: “É uma coisa, com efeito, experimentar que se é livre no plano da ação, do empreendimento social ou político, da criação nas artes, e uma outra coisa experimentar a liberdade no ato de compreender e de descobrir” 4. E acrescenta, explicando-se melhor: Um Richelieu, um Vicente de Paula, um Corneille teriam tido, se houvessem sido metafísicos, certas coisas a nos dizer sobre a liberdade, porque a tomaram por uma ponta, um momento no qual ela se manifesta por um acontecimento absoluto, pela aparição do novo, poema ou instituição, num mundo que não a demanda nem a recusa (Idem). Há instantes ou situações nos quais o sentimento de opressão é tal que nos fica a impressão de uma vigilância sobre os nossos passos, ações ou movimentos. Em outros, dá-se o inverso. O fato de nos ser possível entrar numa loja e comprar (a característica da sociedade de consumo) garante uma idéia de liberdade que antes não se difundia. O mercado de facilidades torna irrelevante que, em compensação, as pressões se exerçam localizadas, pressões que aumentam até em função da aparente possibilidade de expressar-se, quando, na verdade, o que é possível e o que não é depende de regras e normas constituídas. No auge do totalitarismo, houve produção literária e artística, ainda que semelhante produção se afine e cresça quando se respira independência e autonomia no plano individual. Não se descarta a hipótese de que nos encontremos num período histórico no Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 81 Ronaldo Lima Lins Entende-se que uma coisa contamine a outra e que transfiramos o interesse de uma mercadoria para outra com a mesma velocidade com que nos chocam as informações de depravação na crônica do cotidiano da vida urbana. Uma guerra é uma anomalia, não obstante o caráter peculiar que guarda, presente em todos os períodos da história entre os meios de afirmação de um povo sobre os outros. As guerras de hoje parecem, no entanto, travadas em fronts ao mesmo tempo distantes e próximos nos quais o inimigo nem sempre é o estrangeiro. Quando a ameaça mora ao lado, fala a nossa língua, cruza os nossos passos quase todos os dias ou se deixa observar na sua miséria, o combate assume uma feição distinta. Por baixo da paz (já que não se trava um conflito declarado), fervilham rancores permanentemente à espreita, à procura de uma brecha para emergir. Assaltos, estupros, crimes sofisticados não alimentam apenas as páginas da imprensa policial. Povoam a mente como fantasmas e oferecem matéria para a literatura. Ocupam lugar no sensacionalismo da mídia, cuja sede de assuntos que apelem ao clamor geral se revela insaciável. Boa parcela da produção artística em curso (erudita ou popular) recolhe da violência os seus temas, numa inversão das funções da narrativa. O hábito de ver as imagens daquilo que, em outros termos, seria uma tragédia, não denuncia. Insensibiliza. O espectador se surpreende às vezes com sono diante de corpos estraçalhados, dormindo quando mais deveria ficar em vigília. O que representa isso? É manifestação de liberdade? Por qual viés entra nos escaninhos da normalidade? Como vivemos num cerco que dá a impressão de se fechar, sufocando-nos aos poucos, claro que, além da produção sensacionalista, voltada para os lucros, uma, realmente séria, não pode deixar de tocar no assunto. O brilhantismo de Kafka, instalando o absurdo na superfície ingênua do cotidiano sem 82 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate leitor o esforço de isenção. Feito o levantamento, não é impossível que um diagnóstico de conteúdo moral surja como se, sem ele, não houvesse como concluir a história. Mas também é verdade que, forçando-se a ficar de fora, o autor aumente os recursos aos quais pode recorrer para analisar o material da composição ficcional. A posição de fora do narrador independente e neutro, que opta por privilegiar a isenção, criou espaço em nossa compreensão para o salto seguinte: a desobrigação moral, graças à qual qualquer coisa, pessoa ou situação, entra no espaço literário, inclusive a perversão. A perversão representa, aliás, uma das obsessões do nosso tempo. Adquiriu-se um interesse particular por ela. Protegidos pelo véu da imaginação, gostamos de acompanhar como age e quais os estragos que realiza. Aprendemos que, querendo ou não, integra as características da natureza humana. Por um desvio de atenção, o aumento de prestígio que sofreu, cada vez mais presente no cinema ou na literatura, aponta para um traço intrigante, uma significação em nossa forma de estar no mundo. Como surgiu na modernidade, com Sade, antes quase inexistindo, ausente dos fenômenos sociais, pode não ser exagero associar uma coisa e outra. Há anomalias constituintes do progresso científico, a não ser que não consideremos perversas as armas de destruição em massa aperfeiçoadas pelos Estados Unidos no final da II Grande Guerra e depois partilhadas pelo clube fechado (mas cada vez mais aberto) do poderio nuclear. Há também, embora nem sempre as consideremos como tais, anomalias no plano social, às quais nos habituamos como males temporários ou frutos de crise econômica, muito mais do que como opções ou especificidades de um regime. Há anomalias de visão moral. Não nos esqueçamos que, na sociedade burguesa, pela necessidade de revolucionar os costumes por influência de pressões econômicas, opiniões e conceitos tiveram de se adaptar às novidades, até assumi-las como aceitáveis ou boas. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 83 Ronaldo Lima Lins ou da ausência dele, é que possui um pé na existência material e outro no mundo do espírito. Extrai a substância de uma e a forma da segunda. Pode expor e conceituar. Novamente estamos com Sartre quando diz que “o intelectual é aquele que se mete onde não é chamado”. Um cientista, na sua bancada, preocupa-se com o avanço do saber. Enquanto isso, o intelectual, posto em outra esfera, julga e critica o uso de suas descobertas, o aspecto moral do que traz para a humanidade. Pode fazê-lo porque se mete onde não é chamado. Não importa que não possua a vocação de administrar; na política do governo, freqüentemente mostrou-se um fracasso. Com a transferência de um status para outro, abriu mão do principal dos seus poderes, o de ficar de fora. Nada disso invalida a justiça de suas observações. O autor de A náusea não ocupou cargos, não se contradisse e levou a militância até o fim, intensificando-a nos últimos anos de vida, quando já sofria de cegueira e não podia escrever. Encontrou nela um projeto. Conservou liberdade e a consciência, de acordo com as suas convicções. Um intelectual que governa já não é um intelectual. Passou à condição de governante, de gestor, de administrador. (...) todo homem é projeto: criador, porque inventa o que já é, a partir do que ainda não é, sábio, uma vez que não realiza sem determinar com certeza as possibilidades que permitem levar adiante o empreendimento, pesquisador e contestatário (porque o fim posto indica esquematicamente os seus meios, na medida em que ele é ele mesmo abstrato deve buscar os meios concretos, o que quer dizer precisar por eles o fim e enriquecê-lo às vezes desviando-o. Isto significa que coloca em questão o fim pelos meios e reciprocamente 84 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate sobressaltos, abriu caminho para situações literárias nas quais a convivência se situa entre o natural e a anormalidade. A noção de que nos enxergamos num furacão, sem avaliar a extensão do fato, como se a catástrofe só atingisse os outros, assinala o realismo (sem neo-realismo) da época. Muito cedo, Sartre observou o impacto de certos contextos sobre a linguagem. Estava perto da ocupação da França pelos alemães para lembrar que a inversão toma conta às vezes da palavra, de tal maneira que, de repente, paz pode significar beligerância e vice-versa. É, afirma ele, uma doença que atinge a capacidade da fala. Liberdade passa a querer dizer opressão, e socialismo regime de desigualdade social. Por causa disso, não devemos confiar no que ouvimos sem reservas, porque, de outro modo, entenderemos trabalhadores como vagabundos; professores como ignorantes ou preguiçosos; saúde como enfermidade ou doentia obsessão; e literatura como passa-tempo. Na obra de John Coetzee, os nomes dados às coisas não se revestem de camuflagens. Ali se acha a perversão, a paz que é uma guerra, o amor que é insensibilidade, a sexualidade que não é prazer. Nada se coloca como figuração ou enfeite. Também não se insinua uma revolta vazia, sem direção e sem inimigo distinguível. O inimigo somos nós: nós e nossa história, o mundo legado pelos nossos antepassados, implicando como coniventes todos os que fecharam os olhos para as anomalias, ou se beneficiaram com elas, supondo, quem sabe, que os descendentes conseguiriam corrigilas. Não se trata da possibilidade de substituir uma coisa por outra, as modificações de superfície eternizam os problemas, sem atingi-los. A vantagem da posição do escritor, diferente daquela do ser vivo, de carne e osso, submetido às contingências do poder 5 SARTRE, Jean-Paul. “Les intelectuels”, idem, pág. 221. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 85 Ronaldo Lima Lins seriedade não se afasta desta posição de meio, nem lá, nem cá, para conservar a segurança e a lucidez na discussão. É preciso admitir que se trata de uma opção excepcional, mesmo no ambiente intelectual. Daí a ocorrência histórica da cooptação, transformando opositores com nomes respeitáveis em adeptos – e desmoralizando-os, como aconteceu no nazismo. É, igualmente, a razão que leva muitos governos a procurar cercar-se de gente com a qual tenha como incorporar e absorver prestígio, um prestígio, no caso, tomado por empréstimo. O reinado de Luiz Napoleão oferece um exemplo da estratégia que, no entanto, não se esgota nele. Na democracia burguesa também há fenômenos semelhantes. A ligação de intelectuais com um partido, seu desligamento, ou a ausência dos mesmos dá a idéia de fortalecer ou enfraquecer os governantes junto à opinião geral. A rigor, uma legenda com listas de assinaturas desses nomes, consagrados nas áreas da cultura, faz imaginar que o público, menos atento para a inteligência das ações, entenda que acertou ou que errou. As ditaduras não se mostram imunes a tais fatores. Desanimam quando se anuncia a dissidência e a discordância de artistas e escritores; registram mais à vontade o dissabor quando se trata de políticos, porque estes disputam o poder e não existem para concordar, ainda que possam pesar. Verificou-se isso quando da existência da União Soviética, país que conjugou a tomada de poder e o apoio de intelectuais e que aos poucos se afastou deles, até cair no isolamento de uma estrutura burocrática, quase apática no fim, quando, sob a administração de Gorbatchev, desabou como um fruto maduro que já não se sustenta e não segura no pé. Segundo Sartre, é preciso uma sociedade dilacerada para que se conheça o personagem do intelectual. Com efeito, do século XVIII para cá, a produção cultural cresceu a olhos vistos, se comparada com épocas anteriores. O balanço que realizou dá conta 86 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate até que o fim se torne unidade integrante dos meios utilizados). 5 Ao alcançar este ponto, acrescenta, cumpre decidir se “vale a pena”, isto é, se o fim integrante visado do ponto de vista global da vida, merece a amplitude das transformações energéticas que a realizarão ou se o ganho justifica o dispêndio de energia. Na maioria das vezes, é verdade, a consciência não trabalha com tal lucidez para que a decisão se cumpra. Não há a dose conveniente de interesse. Preocupados muito mais com a sobrevivência do que com a qualidade dela, somos levados através de escolhas que jamais formulamos. Mais tarde, despertamos. Não nos sentimos responsáveis porque intimamente obedecemos ao que parecia um chamado natural e não paramos para pensar se devíamos ou não concordar. Outras vezes, agimos numa direção sem a energia para discordar ou até discordando, mas passivamente. Contudo, a sociedade dos homens dispõe de sabedoria para separar da massa quem aceita fazer o papel do intelectual, estar dentro da conjuntura e fora dela. Quem assiste a um debate no parlamento, pesando e acompanhando o que chamam de “contraditório” pode imaginar que a burguesia institucionalizou a figura que aqui se desenha. É um engano. Não se deve confundir retórica com busca da verdade. A política constitui uma tarefa de negociação. Está, portanto, comprometida até a raiz dos cabelos em cada frase e em cada argumento adotado. Por isso nos surpreendemos com freqüência com a incoerência dos representantes em quem votamos, decidindo a despeito dos seus representados ou contra eles. A identidade de perfil com os intelectuais, com relação aos políticos profissionais, não se confirma. Como só dispomos de uma vida, cabe-nos ter com ela um cuidado de polidor de lentes. Quem encara a liberdade com Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 87 Ronaldo Lima Lins corações. A história criou condicionantes novos e o pensamento não digeriu os fatos a ponto de traduzi-los em conceitos. A confusão se estabelece. A filosofia, este ramo do conhecimento que construiu uma dinâmica própria, movimenta-se como uma engrenagem não azeitada ou se instala num quadrilátero de conclusões fáceis absolutamente não-convincentes. Não significa que a mola da procura haja falido, que estejamos entregues a um vôo cego, sem radar. Como situar a questão? Quando se começou a falar na morte da filosofia, isso não se verificava porque aquele tipo de aptidão desaparecera ou sofria de anemia diante dos acontecimentos. Também não significava que o dilaceramento em pauta houvesse desaparecido ou que houvéssemos aprendido a costurar os retalhos dos nossos sentimentos e das nossas insatisfações. Significava, antes, que o dilaceramento, ao contrário, se acentuara e engolira boa parte da nossa capacidade de pensar, tontos que nos achávamos ainda por aquilo que caíra sobre nós. Nem por isso a criatividade desaparecera. Ela prossegue no seu trabalho de pesquisa, pondo a vida em forma e nela cavando sulcos profundos que falam sobre o dilaceramento. É claro que, diferentemente da época de Sartre, o intelectual dos nossos dias parece falar para si mesmo ou para uma ausência de ouvintes. O que diz não afeta a estrutura de poder. No estado de liberdade aparente mais ou menos generalizado há lugar para tudo, para o sim e para o não. A angústia aumenta em função disso, mas o debate culto fica relegado aos bolsões de discussão onde qualquer idéia é válida, até os limites do absurdo. Um dos grandes perigos que o intelectual deve evitar, se quer avançar no seu empreendimento, é de universalizar com excessiva rapidez. Vi alguns que, apressados em passar para o universal, condenavam, durante a guerra da Argélia, os atentados terroristas argelinos no 88 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 debate de uma posição de antagonismo explicita entre o que se esperava que acontecesse e o que existia na prática das coisas. Por alguma razão, continuamos lendo estes autores com prazer e assistimos aos novos obedecendo à mesma sistemática. A resistência persiste assim, por uma condição sine qua non do sistema. Pelo fato de ser dilacerado, produz o intelectual e acirra a tarefa da crítica. Pouco adianta se gosta ou não de sua presença e do que normalmente diz. Permanecem ligados por cordões umbilicais. O máximo que se pode fazer quanto a isso é contratar essas pessoas e dirigir os seus talentos extraordinários para que funcionem a favor, a reboque da ideologia dominante. É o que ocorre, por exemplo, com os publicitários. Alguns, talentosíssimos, acomodam-se com o retorno financeiro que lhes proporciona a profissão e passam a vida usando a mentira como ganha-pão, sentando-se, constrangedoramente, na poltrona apertada da designação de artista. Viraram a vocação de cabeça para baixo e só lhes resta engordar bebendo chope. Não é todo mundo, entretanto, que encarna esse papel. Há aqueles que, ainda que o desejassem, não conseguiriam. Vieram ao mundo com outra função e se mostram dispostos a assumi-la não importam as conseqüências. Estes não teriam como existir num contexto de harmonia e respeito humano. A constatação de Sartre vê o intelectual como um produto histórico. Nesse sentido, acrescenta, nenhuma sociedade pode queixar-se de seus intelectuais sem se acusar a si mesma, pois só dispõe daqueles que fez. Dizer que o intelectual e a sociedade dilacerada caminham juntos é o mesmo que dizer que, de certa maneira, ainda que isso não se torne evidente, os homens, sentindo que necessitam saídas, não abandonam a busca. Em certos instantes, o cerco é de tal ordem que ficamos com a impressão de um estado de inércia generalizado, implantado nos 6 SARTRE, Jean-Paul. “ Plaidoyer pour les intellectuels “ , idem, pág. 242. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 89 mesmo nível da repressão francesa. Era o protótipo da falsa universalidade burguesa. Cumpria compreender, ao contrário, que a 90 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 69-90, 2007 Entrevista Adélia Prado Realizada por e-mail pela Equipe da Comissão Editorial em julho de 2007. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 91-97, 2007 91 92 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 91-97, 2007 entrevista Entrevista com Adélia Prado C. E. - O poeta, no ato de criação, poderia ser definido como alguém que é tomado por uma súbita inspiração, vinda de uma outra “cena” ou , ao contrário, como um artesão das palavras e das imagens? Dito de outro modo: um poema ( o seu em especial ) é resultante de um processo subliminar ou fruto de uma vontade e de um trabalho conscientes? Fale-nos um pouco sobre o seu processo criativo. Por exemplo, como se dá a gestação de um poema seu? Como se relaciona com sua criação artística? De onde ela emana? A. P. - O verdadeiro poeta é mais que um artesão. Deve criar e cria, rigorosamente falando, não do fruto de sua vontade, mas de uma vontade que se manifesta nele como inspiração. Caso contrário, ele seria um deus. A arte nasce no brejo do inconsciente. Não sei falar de processo criativo. C. E. - Para Freud, a obra literária, assim como o devaneio, é vista como uma continuação, no adulto, do brincar infantil. O escritor criativo, assim como a criança, cria com sua obra um mundo próprio, povoando-o de personagens e de uma narrativa capaz de satisfazer seus mais íntimos desejos. Dessa perspectiva, qual a importância que atribuiria às primeiras experiências da infância e da adolescência sobre seu trabalho? Suas raízes – a vida em Divinópolis, a religiosidade - teriam uma influência diferencial na escolha de seus temas e em seu olhar sobre as realidades? A.P. - A infância, feliz ou não, é a ‘Macondo’ de cada um. É nela que ganhamos a primeira ótica do mundo. Todo autor registra na sua obra os sinais de sua experiência. Neste sentido, até ficção Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 91-97, 2007 93 Adélia Prado sua arte, ou apenas uma circunstância? Como é possível equacionar o papel de intelectual, mãe, esposa e dona-de-casa? A. P. - Mas eu não sou intelectual, por isso não preciso equacionar. C. E. - O seu trabalho poético ( em prosa e verso) traz dois vértices muito fortes: da religiosidade profunda de quem conhece minuciosamente a doutrina Católica e a pratica com fervor e a da sensualidade de quem experimenta sua feminilidade. Como se conciliam em sua obra literária essas dimensões: a mística e a erótica? A seu ver, existe uma literatura propriamente feminina? Como esta se distinguiria de uma literatura tout court? E o feminismo? Seria uma dicotomia ou uma face do feminino? A. P. - Se prestarmos atenção, veremos que a expressão de toda experiência mística é vazada em linguagem poética. Erótica e mística não necessitam conciliação. Como braços do mesmo rio, nascem do mesmo lugar onde nascem corpo e alma. Nada mais encarnado, erótico que o texto religioso inspirado. A mística é a carne fremente em contato com Deus. Clarice Lispector falou e disse: “ E foi tão corpo que foi puro espírito.” Literatura feminina deve ser horrível. Existem sim textos escritos por mulheres que, às vezes, como os escritos pelos homens, são literatura de verdade. C. E. - A experiência poética é um momento de encontro ou de solidão? É uma invocação ao Pai como prece, busca de conforto, de entendimento, de nomeação dos desconcertos da alma, ou inspiração - um arrebatamento que toma emprestada a alma do artista para que o Divino se manifeste? A. P. - É comunhão, encontro, alegria, gratidão pela gratuidade de perceber e, às vezes, até comunicar a beleza que te é dada. Pura graça! C. E. - É sabido que muitos escritores/ poetas atravessam, por vezes, tempos de estiagem que podem ser bastante prolongados. Se a arte é uma necessidade de expressão do Eu mais profundo, 94 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 91-97, 2007 entrevista científica é autobiográfica. Não se escolhe isto ou aquilo por acaso. Mas, uma obra é boa ou má, não por seu registro histórico, temas, assunto, enredo, mas pela qualidade. Arte é forma, beleza pura, falando do feio, do bonito, do bom, do mau, do amor, da dor, da vida, da morte, não importa. Não é ‘o quê’, mas ‘o como’. C. E. - Embora a literatura - especialmente a poesia - se constitua em patrimônio cultural na humanidade, não é fácil publicar nem atingir o mercado de forma significativa, ou até mesmo lucrativa. Sua obra, no entanto, logo encantou tanto a crítica especializada quanto o público leigo em todo o Brasil, e também no exterior. Como é essa experiência de ser admirada, inclusive por personalidades da literatura nacional do porte de nosso poeta Carlos Drumond de Andrade? Ser uma Grande entre os Grandes certamente interfere em sua vida pessoal: que estratégias precisou desenvolver para articular esses dois mundos - da Adélia Luzia e da Adélia Prado? A. P. - Uma estratégia é fazer entrevistas por e-mail. Não posso fazer como os políticos que dizem: como Adélia Luzia, faço assim e, como Adélia Prado, faço assado. Faço assim e assado, sem divisão. Quanto à língua, o que a empobrece é a incúria das escolas, onde se deveria formar o leitor, o consumidor de livros e de toda e qualquer arte. Não estimula o pensamento crítico nem apresenta nossa literatura como um valor em si, mas como matéria de vestibular. Vivam as exceções. Existem e podemos encontrálas como escolas vivas, muitas no interior do país, protegidas do falso moderno. C. E. - Os temas com os quais trabalha revelam muito do cotidiano e do sensível mais imediato, retratando prazeres simples como o ato de limpar um peixe ao lado do homem amado... De que modo esses temas chegam a ganhar vida e ressonância em sua escrita? O seu cotidiano em particular – a vida numa cidade interiorana como Divinópolis - é o fundamental em sua criação, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 91-97, 2007 95 Adélia Prado almejam forma e significado. O que motivou Deus a criar o mundo, sendo Ele onipotente, onisciente, onipresente, absoluto? A. P. - Merquior falou muito bem. Talvez discutíssemos um pouco quando ele menciona a razão. Não posso respondê-la, porque não sei e não se pode saber. Meu caminho é o da fé que carrego como diz belamente São Paulo “em vaso de barro”. Não quero pensar Deus, mas experimentá-Lo. Esta sua pergunta me deixou do tamanho de um grão de arroz, do bem pequeno e quebradinho. C. E. - O relato bíblico pode ser visto como uma mitologia cujo objetivo é conferir sentido, significado e história aos mistérios de nossa existência? Ao absurdo de nossa ambivalência, ao amor e ao ódio destrutivo? A. P. - Sim. C.P. - O nada existe? O caos deriva do nada concedendo possibilidades de forma, de narrativa? O artista, sendo filho de Deus, feito à sua imagem e semelhança, também cria mundos possíveis por meio da palavra. Qual o sentimento da Adélia-poeta após a composição de um poema? A. P. - A primeira parte não sei responder. A segunda: De pura alegria, dá vontade de comer, dançar, celebrar com as pessoas. C. E. - É difícil imaginar a vida desprovida de emoções – inclusive as tristezas e sofrimentos que fazem parte de nosso cotidiano, às vezes de modo surpreendente. A capacidade individual de pensar, elaborar, agir - a seu ver - pode influenciar no rumo e na tonalidade como essas emoções irão interferir em nossas vidas? Qual o papel de interferência da poesia – expressão estética da emoção – neste processo? Para alguns seus escritos têm sempre um tom de calmaria. Esta é a forma que encontrou de confortar a própria alma – como quem se entrega no divã com Deus - e de compartilhar, generosamente, esses “diálogos” com seus leitores? Seus poemas são preces a Deus ou conversinhas de confissionário? A. P. - A poesia conforta, não porque a escrevo, mas porque 96 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 91-97, 2007 entrevista como entende esses tempos de silêncio da alma? São tempos de angústia inominável ou de recolhimento e calmaria? A. P. - Todos provamos, o poeta também, angústia, deserto, sensação de finitude, extrema pobreza e impotência. Nós, criaturas todas passamos pela desolação que o grande místico São João da Cruz chama “a noite escura da alma”. Não é um sofrimento escolhido, pertence à condição humana. É um tempo de expiação que, se soubermos aceitar crescemos na consciência. É um tempo que prepara alvoradas e se pode bendizê-lo. C. E. - Freud tratou a religião como uma ilusão escapista; um jeito de invocar a proteção do Pai, (“Quero minha mãe!”) perante o desamparo humano sob as forças da natureza e do inconsciente, que não oferecem a certeza das garantias. Ao mesmo tempo, ele reconhecia na arte uma forma genuína de sublimação. Para quem vive a religiosidade com tanta devoção e a arte com tanta inspiração, como pensar isto? A produção literária ofereceria uma forma de resgatar a esperança e o sentido da vida quando esta nos parece sem sentido? A. P. - A poesia é a beleza que convoca a beleza maior, convoca sua fonte. Conforta, dá esperança, consola e oferece o transcendente onde experimentamos um sentido. C. E. - José Guilherme Merquior escreveu que poema é o pulso emocional de uma razão que enfrenta o mundo (interior / exterior) disposto a extrair dele um significado. Trata-se de uma emoção pensada, de um feixe de emoções não organizadas que Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 91-97, 2007 97 98 ela própria é um oráculo divino, só a letra é minha. O mistério de Deus elimina a possibilidade de uma domesticação d’Ele, como sugere a pergunta. A poesia é prece, porque é religiosa, fale ou não de Deus, falando com Ele ou com as criaturas. Conversinhas de confessionário? Queimaria todos os meus livros se me convencesse deste horror. Artigos Pequeno ensaio metapsicológico sobre a solidão e suas implicações Alexandre Abranches Jordão Amarás a teu próximo como a ti esmo: amor ou gozo? Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações do símbolo Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Ponde Dor e esperança: duas faces da solidão Issa Damous In the name of solitude: a capacidade de estar só como forma de amadurecimento de si Karla Patrícia Holanda Mar- Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 99 possíveis implicações clínicas e sociais da solidão baseado nas considerações de Winnicott, Klein e Ferenczi. O artigo faz um apanhado, a partir dos autores citados, na tentativa de fazê-los dialogar e formar uma visão panorâmica sobre o tema da solidão para a psicanálise. Ao final, propõe sua especial aplicabilidade às chamadas ‘novas subjetividades’ ou ‘sujeitos pós-modernos’. Palavras-chave: Capacidade de estar só, sentimento de solidão, desintrincação pulsional, defesa. 100 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 tins e Maria Regina Maciel Quem conta um conto promove um encontro Neysa Prochet A solidão na obra de Edward Hopper Renata Mattos de Azevedo Dominação e crueldade: articulações e distinções Suelena Werneck Pereira artigo Pequeno ensaio metapsicológico sobre a solidão e suas implicações Short metapsychological essay on loneliness and its implications Alexandre Abranches Jordão* Resumo Pequeno ensaio sobre os aspectos metapsicológicos e as * Membro associado/ SPCRJ;Doutor em Teoria Psicanalítica-UFRJ, Professor/ pesquisador FAPERJ/UFRJ. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 101 psicanalítica da solidão acontecem no final dos anos 50 do século passado, na Inglaterra. Dois expoentes maiores da Psicanálise inglesa, M. Klein e D.W. Winnicott, dedicam ao tema duas importantes palestras, que posteriormente alcançarão sua forma definitiva em texto. Não falam exatamente da mesma coisa e partem notadamente de pontos de vista diferentes mas que, por isso mesmo, tornam-se complementares devido não somente às particularidades de cada autor e de como isso influencia sua exposição – em especial o fato de Winnicott não trabalhar com a noção de pulsão de 102 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 Abstract Short essay on metapsychological aspects of loneliness and its possible clinical and social implications based on the contributions of Winnicott, Klein and Ferenczi. The article gathers different views from the authors above, in an attempt to make them dialogue among themselves and to form a panoramic view of the loneliness issue for Psychoanalysis. At last, it outlines the particularity of ist implications to the so called ‘new subjectivities’ or ‘post-modern subjects’. Key-words: Capacity to be alone, loneliness feeling, instinctual diffusion, defense. artigo Pequeno ensaio metapsicológico sobre a solidão e suas implicações1 Short metapsychological essay on loneliness and its implications Alexandre Abranches Jordão Duas das mais importantes contribuições a uma abordagem 1 O presente artigo se beneficia de questões e reflexões atinentes à pesquisa “Construção de conceitos metapsicológicos para as novas subjetividades”, desenvolvida pelo autor no Instituto de Psicologia da UFRJ com apoio financeiro da FAPERJ e ainda em andamento. À FAPERJ e ao IP/UFRJ, o reconhecimento e os agradecimentos devidos. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 103 Alexandre Abranches Jordão sozinho” – e aqui temos uma questão importante que envolve a tradução para o português: ao contrário da língua inglesa, em que um único verbo designa características perenes tanto quanto estados transitórios (o que de resto acontece na grande maioria das outras línguas vivas européias, com exceção, além do português, do espanhol), em nossa língua dispomos de dois verbos distintos e autônomos, ‘ser’ e ‘estar’. É importante ter isso em mente ao se refletir sobre o tema a partir desses autores, pois há uma dubiedade interessante que se perde na tradução e que, na verdade, muito mais que produzir confusão ou imprecisão, colabora para a profundidade e o alcance de suas reflexões. Voltemos a Winnicott. Os três momentos da afirmação “eu sou/estou sozinho” são: 1) o termo ‘eu’, o indivíduo constituído em unidade; 2) ‘eu sou/estou’, um “estágio no crescimento individual” (id.) em que o indivíduo além de já ter forma e unidade, tem vida, é capaz de ação e existência (que a própria regência do verbo indica) - tal estágio ainda não requer da criança que se dê conta da presença da mãe como uma pessoa total, mas só é possível “porque existe um ambiente que é protetor” (id., p. 33); 3) finalmente, o terceiro estágio: [...]‘eu sou/estou sozinho’ é um desenvolvimento do ‘eu sou/estou’, que depende da percepção do infant da existência continuada de uma mãe confiável cuja confiabilidade torna possível ao infant ser/estar sozinho e desfrutar de ser/estar sozinho por um período limitado (id.). 2 Grifo do autor. 104 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 artigo morte –, mas também, e principalmente, em razão dos diferentes enfoques que cada um dará ao assunto: Winnicott (1958, p. 29) apresenta uma nova consideração teórica em que aborda “um dos mais importantes sinais de maturidade no desenvolvimento emocional”, a capacidade de estar só; Melanie Klein (1975, p. 133), por sua vez, busca “investigar a fonte do sentimento de solidão”. Ao exame comparativo de ambos os textos, uma constatação se impõe: mais ainda que simplesmente complementares, trata-se aqui de duas faces de uma mesma moeda, não sendo excessivo afirmar que as considerações de um carecem – quase demandam – das formulações do outro para ganharem seu pleno sentido e alcance. Pois, se a capacidade de estar só denota saúde e desenvolvimento emocional primitivo adequado (nos termos de Winnicott), ela só é possível se não for assaltada pelo sentimento de solidão, como dele trata M. Klein. Além disso, e principalmente, as implicações clínicas e sociais são imediatas e fundamentais. Em 24 de julho de 1957, Winnicott faz um pronunciamento na Sociedade Britânica de Psicanálise com o título “A capacidade de estar só”. De uma maneira geral, interessa a ele apresentar ao público uma experiência de solidão que se faz na presença de outra pessoa – com as imediatas analogias com o ambiente clínico. Esta se ancora, fundamentalmente, na capacidade de lançar mão da companhia dessa outra pessoa como ego auxiliar, repetindo uma experiência anterior, dos primórdios da organização psíquica, quando “a imaturidade do ego é naturalmente compensada por um apoio egóico por parte da mãe. Com o passar do tempo, o indivíduo introjeta a mãe ego-auxiliar e dessa forma torna-se capaz de estar só sem uma referência freqüente à mãe ou a um símbolo materno” (op.cit., p. 32)2. Essa capacidade passa por três momentos cruciais no seu estabelecimento, que Winnicott reúne na frase “eu sou/estou Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 105 Alexandre Abranches Jordão tanto dos perigos de autodestruição quanto da destruição do objeto. Acontece que, em Klein, devido mesmo à sua maior ênfase na dicotomia pulsional de base – que não está presente em Winnicott –, o ego “que existe e atua desde o nascimento”, encontra-se desde o princípio “dominado pelos mecanismos de divisão”, o que faz com que, nos seus estágios mais primitivos, “a parte boa do ego e o objeto bom” sejam protegidos por mecanismos de cisão de ambos em partes boas e más. Os mecanismos de divisão constituem, portanto, as bases de uma relativa segurança egóica, num período em que o ego ainda é muito frágil e precário e, assim sendo, a promoção da integração não deixa de ser ameaçadora e “difícil de aceitar”. De uma maneira geral, o sentimento de solidão estará sempre mais presente quanto maior forem as dificuldades na integração. Ocorre que: “a integração plena e permanente nunca é possível ... o completo entendimento e aceitação de nossas emoções, fantasias e ansiedades não são possíveis e isto perdura como fator importante na solidão”(id, p. 137) . Depois de examinar alguns fatores que ajudariam a mitigar a solidão – como a internalização estável do seio bom, que diminuiria a severidade do superego; a “diminuição da onipotência que surge com o progresso da integração” (id., p. 150); ou uma relação afetiva satisfatória com o primeiro objeto, que torna possível dar a receber amor e daí extrair prazer – Melanie Klein chega, no final do artigo, às considerações de maior importância clínica e para as reflexões desse artigo: a solidão inconsciente. Apesar desses fatores do desenvolvimento poderem mitigar o sentimento de solidão, não conseguem eliminá-lo completamente, podendo mesmo ser utilizados como defesas. E aí está a questão: “Quando tais defesas são muito intensas e se reforçam mutuamente, a solidão amiúde não chega a ser experimentada conscientemente” (id., p. 152). Contra essa solidão inconsciente, armam-se defesas as mais diversas. Klein cita algumas: a extrema dependência de crianças 106 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 artigo É significativo o fato de que, nessa palestra, como que preparando o caminho para a exposição destes três momentos, Winnicott lance mão de M. Klein. Após alertar a platéia sobre essa manobra, afirma ele (em termos reconhecidamente kleinianos): “A capacidade de ser/estar só depende da existência de um objeto bom na realidade psíquica do indivíduo” (id., p. 31-2). Uma primeira versão de “O sentimento de solidão”, ainda abreviada, foi apresentada por M. Klein no 21º Congresso Internacional de Psicanálise de Copenhague, em 1959; só após a morte da autora é que esta alcançou publicação. Klein (1975) dedica-se especificamente a algo que é experimentado por todos, mas que pode ser muito mais intenso em quadros de organização psíquica mais precária. Para ela, interessa averiguar “o sentimento íntimo de solidão – o sentimento de estar só independentemente de circunstâncias externas, de sentir-se solitário mesmo quando entre amigos ou recebendo amor”. Ela busca investigar de onde brota tal sentimento ou “estado de solidão interna” e é incisiva: “...resulta do anseio onipresente de um estado perfeito inatingível”(id., p. 133). Klein encontra as bases para tal solidão interna nas angústias paranóides e depressivas, presentes em todos nós como resquício das angústias da primeira infância, e que podem apresentar-se de forma exacerbada quando os processos de integração não alcançaram um abrandamento consistente dos mecanismos de divisão. A integração tem por conseqüência a neutralização temporária da insegurança oriunda da própria dualidade pulsional, mas exatamente por ser temporária, exige do ego que tente entrar em acordo com os impulsos agressivos, tornando-os menos intensos e ameaçadores. Assim como em Winnicott encontramos uma tendência à integração, em Klein já há também, “desde o início da vida” (id., p. 134), um impulso nesse sentido. No entanto, o próprio desenvolvimento do ego serve como motor da integração por seu efeito mitigador Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 107 Alexandre Abranches Jordão é para a existência de uma dimensão da solidão que pode se achar tão entranhada em extratos primitivos da organização psíquica que acaba determinando a própria constelação psíquica do sujeito. Solidão num tal nível que exige que contra ela se erijam defesas que acabam moldando o ego e definindo sua própria capacidade de lidar com as demandas das diferentes instâncias, da realidade externa e da cultura. Além disso, e especialmente, ela deixa claro que, em algum nível, essa solidão estará sempre presente, pois é a própria contra-face do processo de integração, jamais plenamente alcançado. Isso é de importância crucial em Klein porque significa dizer que o projeto de integração absoluta é narcisicamente impossível, que há no próprio ego forças contrárias ao seu estabelecimento, pois os processos de divisão não deixam jamais de representar uma forma primitiva de defesa do ego. Ainda que ela derive a cisão da dualidade pulsional, o que está em jogo fundamentalmente é um antagonismo narcísico: se por um lado a maior integração do ego o protege (e ao objeto), por outro o ameaça, pois torna menos eficaz um recurso defensivo primitivo de uso franqueado até então. Há impulsos destrutivos que se voltam tanto contra o ego quanto contra o objeto e os mecanismos de divisão funcionam de modo a diminuir os perigos que aqueles apresentam. Podemos encontrar em Ferenczi as bases de uma ponte possível entre as concepções de Klein e Winnicott sobre a solidão. Se representássemos graficamente em termos lineares as concepções desses dois últimos como os extremos opostos de uma mesma questão, poderíamos dizer que Ferenczi, quase vinte anos antes, já havia fornecido um esboço de articulação entre esses extremos, apontando que – se concordarmos com ele – tais abordagens devem mesmo ser tomadas como complementares. Ferenczi não trata da solidão em seus escritos, porém, num 108 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 artigo pequenas em relação à mãe (a dependência tornando-se um modelo vida afora); o anseio de independência, que também pode ter esse uso; a idealização do passado nos mais velhos, bem como do futuro nos mais jovens; a valorização dos outros e do êxito; uma capacidade exagerada de esperar pelo que se deseja, que pode levar a um otimismo exacerbado; e finalmente, a negação da solidão. Essas manifestações não são necessariamente defesas contra a solidão, mas podem assumir essa função. Tal consideração vale também para as circunstâncias externas que, certamente, podem diminuir ou aumentar o sentimento de solidão. Acontece que “ele nunca pode ser completamente eliminado, porque a tendência para a integração, assim como o pesar experimentado nesse processo, brotam de fontes internas que continuam operantes pela vida a fora” (id., p. 156). Não é preciso concordar com a teorização kleiniana para perceber o alcance dessas reflexões. Independentemente de endossarmos ou não seus pressupostos teóricos, o que Klein aponta Desde o início do relacionamento com Ferenczi, Freud aponta um excessivo desejo de curar no colega húngaro e tenta estimulá-lo a assumir uma postura mais indiferente. Como se pode comprovar na correspondência entre os dois, Freud interessava-se muito mais pelo que o paciente pudesse ensiná-lo em termos de organização e funcionamento psíquicos do que pela cura ou pela eliminação do sintoma. Além disso, vê na relativa indiferença do analista um importante ditame técnico adquirido através da experiência clínica. Diz Freud: “Certamente, a indiferença com relação a meus pacientes é um aspecto de meu aprendizado” (carta 22 F) ou ainda “Não se deixe abalar pelo insucesso no caso da paranóia da Sra. Marton. Sucesso não será possível alcançar nesse caso, mas nós precisamos dessas análises para finalmente chegar à compreensão de todas as neuroses” (carta 6 F). Essa postura de Freud, que o discípulo acatará inicialmente, provocará em Ferenczi um profundo desconforto que será finalmente manifestado no “Diário clínico” (p.ex., a anotação 140 n, de 12 de junho de 1932) que contém os registros e comentários privados dos seus últimos meses de trabalho. Apesar dos conselhos de Freud, Ferenczi nunca esmoreceu e jamais abandonou sua preocupação com o aprimoramento do trabalho do psicanalista. 3 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 109 Alexandre Abranches Jordão fruto da desintrincação pulsional que, direcionada ao objeto, dará caráter de realidade ao mesmo. Ferenczi propõe como que uma atualização da visão freudiana dos dois princípios do funcionamento psíquico sob a luz da nova teoria pulsional: “Gostaríamos apenas de acrescentar que a ambivalência de que acabamos de falar, isto é, a desintrincação pulsional, é imprescindível para uma percepção de objeto” (id., p. 285)4. A ambivalência seria, acima de tudo, uma defesa contra o reconhecimento do mundo objetivo – note-se aqui uma importante ressonância com Klein. Mas uma nova intrincação pulsional deve se produzir para que o uso defensivo da ambivalência seja ultrapassado: [..]a ambivalência testemunha um reconhecimento da existência das coisas, nem por isso temos acesso ao que se chama visão objetiva. [...] Para chegar à objetividade é preciso que as pulsões liberadas sejam inibidas, isto é, que se unam novamente entre si, uma nova intrincação pulsional deve se produzir uma vez completado o reconhecimento (id., p. 286). Caso o ambiente seja excessivamente hostil, a morte pode concretamente ocorrer e, mesmo quando não ocorre, o sujeito não escapa ileso: “Queria apenas indicar a probabilidade do fato de que crianças acolhidas com rudeza e sem gentileza morrem fácil e voluntariamente ... ou, se escapam, fica-lhes um certo pessimismo e desgosto pela vida” (Ferenczi, 1929, p. 315). Nesses casos o ego é levado a tentar acertar o jogo de alguma forma, e uma das ferramentas empregadas nessa tentativa é o que Ferenczi denomina de “precoce ruminação”, um ensejo de “explicar o ódio e a impaciência de sua mãe”, o que ele compara a um amadurecimento forçado e traumático do ego (id.). 4 Grifo do autor 110 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 artigo ensaio extremamente impactante e fundamentalmente clínico, ele parte da pulsão de morte para propor um novo entendimento sobre fenômenos observados em certos pacientes, em particular, os “casos difíceis”. Ferenczi é um autor extremamente criativo e inovador. Clínico admiravelmente dedicado e particularmente sensível ao sofrimento de seus pacientes, lançou-se incansavelmente na busca de novas ferramentas clínicas e metapsicológicas que pudessem auxiliar e potencializar o trabalho terapêutico do psicanalista – sendo até mesmo repreendido por Freud a esse respeito3. Pois bem, nesse ensaio de 1929, intitulado “A criança mal-acolhida e sua pulsão de morte”, ele se dedica a averiguar as conexões entre determinados fenômenos clínicos e as experiências mais precoces de seus pacientes para chegar à seguinte conclusão: bebês que não contam com um acolhimento adequado (amoroso e terno) no início da vida não são capazes de barrar os efeitos autodestrutivos da pulsão de morte e carregam as conseqüências disso pelo resto da vida. O não-acolhimento causaria um trauma tão precoce que impossibilitaria que as forças reunidas sob o nome de pulsões de vida conseguissem guiar a destrutividade para fora, sobrepujando aquelas da pulsão de morte. Sem um ambiente que introduza e estimule “impulsões de vida positivas” (Ferenczi, 1929, p. 317), o recém-nascido ficaria abandonado ao livre curso da pulsão de morte, contando somente com um ego ainda muito precoce e precariamente estruturado para lhe fazer frente. Ocorreria, assim, uma separação entre as duas modalidades pulsionais básicas – na segunda teoria pulsional freudiana – e as pulsões de vida e de morte passariam a agir de maneira independente uma da outra. Ferenczi (1926, p. 284) chama esse fenômeno de separação das pulsões de “desintrincação pulsional”, que não possui um caráter traumático inerente, muito pelo contrário: é a própria ambivalência, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 111 Alexandre Abranches Jordão imediatas, mas também pode servir de referencial teórico auxiliar na compreensão das chamadas novas subjetividades. Na clínica, mais importante que os fenômenos corriqueiros de isolamento, resistência ou transferência negativa, os três autores trabalhados neste artigo apontam para modalidades de aparição da solidão que vêm de fontes tão primitivas e arcaicas que não são acessíveis ao sujeito e podem mesmo impedir qualquer trabalho psicanalítico. O fazem porque impedem, no nível mais elementar e primário, que o sujeito possa se relacionar com intimidade, confiança e entrega; é essa a questão fundamental. Na clínica, acontece de nos depararmos com pacientes em que uma solidão defensiva impossibilita o trabalho clínico porque impede o próprio estabelecimento da transferência. Winnicott ressalta a positividade da capacidade de estar só. Faz isso descrevendo pormenorizadamente os percalços no caminho da sua aquisição e reconhece nessa capacidade um “fenômeno altamente sofisticado” e difícil de ser conquistado, sinônimo de maturidade emocional, mas que, diríamos nós, raramente se vê. Klein traz à tona um “sentimento íntimo de solidão” que pode ser mesmo inconsciente, que invade todas as experiências afetivas do sujeito no seu nível mais primário, que leva à produção de um verdadeiro arsenal defensivo contra algo que, irrecorrivelmente instaurado em cada um de nós, sempre nos acompanhará, em maior ou menor grau. Ferenczi tenta pensar a inacessibilidade desses sujeitos às abordagens terapêuticas em termos de um trauma excessivamente precoce que termina por impedir, ou pelo menos atrapalhar consideravelmente, que se façam investimentos objetais consistentes. Se aqui ele se aproxima de Klein, ao considerar que tais impedimentos se devem às dificuldades do recém-nascido no trato com a pulsão de morte, vai também em direção a Winnicott 5 A esse respeito, ver JORDÃO, 2002. 112 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 artigo As conseqüências de um trauma tão precoce ficarão ainda mais evidentes em textos posteriores de Ferenczi, no que ficará conhecido como sua Teoria do Trauma. Como conseqüência de um acolhimento hostil, alguns traços psíquicos e de personalidade se impõem e podem ser facilmente identificados: “tendências de autodestruição inconsciente”, “pessimismo moral e filosófico, ceticismo e desconfiança”, alcoolismo, impotência, “diminuição do prazer de viver” e finalmente, e de certa maneira sintetizando as anteriores, “desgosto pela vida” (ibid.). É importante ressaltar as semelhanças entre a organização psíquica resultante do trauma na concepção ferencziana e o falso self patológico de Winnicott5. Mas, no que toca especificamente ao tema aqui desenvolvido, o mais importante e revelador é que o próprio Winnicott, ao abordar o tema da solidão, também enfatize a necessidade da intrincação pulsional. Tomando a cena primária e a relação edípica triádica como paradigmas para examinar a capacidade de estar só diante de outra pessoa, afirma ele: Ter a capacidade de estar só nessas circunstâncias implica a maturidade do desenvolvimento erótico, uma potência genital ou a aceitação feminina correspondente; implica fusão dos impulsos e idéias agressivos, e implica uma tolerância à ambivalência... (op.cit., p. 31). O que fica dessas considerações tem aplicações clínicas Não desenvolveremos o tema das novas subjetividades aqui e também nos escusaremos de uma atenção maior aos conceitos e noções envolvidos. São vários os autores que têm se dedicado tanto à exposição e discussão detalhadas das novas características subjetivas da atualidade quanto aos seus efeitos sociais e psíquicos. Disso trataremos no artigo “Novas subjetividades: Narcisismo defensivo” in Cadernos de Psicanálise – CPRJ, 2007, no prelo. 6 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 113 Alexandre Abranches Jordão mos a busca desesperada por novos objetos, seremos assaltados por uma solidão insuportável, um sentimento equivalente à morte subjetiva. Isso nos leva a pensar que essa solidão que se revela na pausa do frenesi consumista pode não estar no final, mas sim no princípio; pode não ser conseqüência, mas fundamento primitivo de quem somos nós hoje em dia. A solidão não seria, pois, o resultado último do ritmo frenético ou da exacerbação do individualismo que caracterizam os nossos dias, mas sim um elemento primeiro nessa cadeia, que acaba exigindo e produzindo organizações psíquicas particulares e fundamentalmente diferentes do modelo histérico, referência freudiana maior – por isso seus reflexos na clínica são tão presentes, particularmente identificáveis nas especificidades das transferências com as quais lidamos hoje. Mas, não somente aí. Assim como o fenômeno transferencial não se restringe ao ambiente analítico, os efeitos da solidão tomada nesses termos se fazem visíveis cotidianamente, como o atestam o próprio individualismo e o ritmo acelerado das coisas hoje. Bauman (op.cit.) chama a atenção para a extrema dificuldade que as pessoas, de uma maneira geral, têm encontrado para se envolverem em relacionamentos significativos e duradouros e, por outro lado, da insatisfação e do vazio afetivo que essa dinâmica amorosa provoca. Sabemos disso nos nossos consultórios e ali também nos deparamos com o quanto os investimentos mais duradouros podem ser experimentados como aprisionamento e marasmo angustiantes. Ehrenberg (2000), por sua vez, encontra na depressão e no sentimento de insuficiência as marcas maiores dos indivíduos e da sociedade atuais. De certa maneira, ambos apontam para formas do sentimento de solidão que se manifestam na vida cotidiana das pessoas dos nossos dias, nós mesmos. É também por Dufour (2005, p. 14) fala mesmo de um “enfraquecimento e até alteração da função simbólica”. 7 114 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 artigo ao entender que tais dificuldades são oriundas de traumas infantis relacionados a uma inadequação do ambiente às suas necessidades afetivas. Ao propor que tanto os momentos iniciais da vida quanto a análise desses pacientes devam passar necessariamente pelas questões do tato e da ternura, Ferenczi aproxima-se ainda mais do que Winnicott irá propor posteriormente. Para finalizar, uma proposta: à aplicabilidade de tais considerações sobre a solidão não se restringem aos fenômenos clínicos sobre os quais elas lançam luz e onde sem dúvida encontram emprego imediato, mas podem ser usadas numa abordagem atual das chamadas novas subjetividades6. A título de ilustração desse destino possível, tomemos o exame realizado por Bauman dos laços afetivos nos dias atuais. Para Bauman (2004, p. 29), o que caracteriza os envolvimentos afetivos hoje é o padrão de descartabilidade e virtualidade dos relacionamentos. É preciso descartá-los, defensivamente diríamos, pois “‘estar num relacionamento’ significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente”. Para esse sociólogo, tornamo-nos órfãos e fomos destituídos daquilo que nos definiu como sujeitos no que chamaremos de modernidade psicanalítica: o desejo. Não somos mais sujeitos do desejo, somos consumidores impulsivos que precisam manter a velocidade das trocas (de objetos, parceiros, imagens etc.) para assim nos sentirmos vivos e pertencentes a alguma coisa. Para que isso seja possível, é necessária certa redução da capacidade simbólica7 de modo que tudo possa ser intercambiável, em que cada objeto tenha seu valor reduzido à abstração matemática na qual se pode sempre trocar seis por meia dúzia. As cores e a relevância conferidas ao objeto pelo afeto passam a ter prazo de validade, tornando-se obsoletas na razão direta da velocidade do aparecimento de novos objetos. Parece que se pararmos, se diminuirmos o ritmo ou interromper- Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 115 Alexandre Abranches Jordão se trata, portanto. Falar de solidão primária ou originária não significa, em absoluto, afirmar uma anterioridade cronológica em relação ao acolhimento, ou qualquer coisa do tipo. Não cabe aqui estabelecer anterioridade e posterioridade entre esses elementos, mas sim constatar sua íntima conexão e determinismo mútuo. Podemos também abrir mão do raciocínio causal, velho vício metafísico, pois o que é prioritário é reconhecer que as vivências precoces fornecem os pilares sobre os quais o psiquismo e todas as suas operações e mecanismos vão se alicerçar. A rigor, dentro dos limites da reflexão aqui proposta, pouco importa se a origem da cadeia é identificada na pulsão ou no ambiente, desde que pensemos de uma maneira mais ampla e compreendamos que é o fator narcísico, das fundações do psiquismo, que está em jogo e é de seus primórdios que tratamos aqui. O sentimento de solidão que se manifesta aparentemente como efeito das organizações e normas sociais atuais seria, portanto, o efeito mais palatável dos fracassos das defesas erigidas contra uma solidão mais primitiva e insuperável. Finalmente, se foi essa última o motor das defesas que contra ela se armaram, pode-se pensar que as conformações sociais, econômicas, políticas, culturais e familiares atuais também encontraram aí um importante agente para seu estabelecimento – há vários outros, sem dúvida – em que a própria velocidade das trocas, a fragilidades dos vínculos e a maleabilidade dos investimentos, tomadas como defesas, implicam inapelavelmente o sujeito na constituição da sociedade e de si mesmo - se bem que inconscientemente. Os sujeitos, as novas subjetividades, não são frutos exclusivos das mudanças sócio-culturais, são também desencadeadores dessas mudanças. Não cabe, pois, atribuir unicamente às novas regras e modalidades de organização social, cultural e econômica – esta 116 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 artigo isso que podemos usar a própria solidão, agora tomada em outro nível e em termos metapsicológicos, para nos aproximarmos dessas novas subjetividades que habitam o século XXI. Não são exclusivamente sujeitos das novas gerações, muito pelo contrário. É preciso nos implicarmos e percebermos que, de alguma forma, em maior ou menor grau, todos nós – ou a maioria absoluta de nós – funcionamos segundo os registros que esses autores, e vários outros não citados aqui, identificam como característicos das novas subjetividades. Afirmar isso não é dizer que as organizações psíquicas clássicas não existam mais, pois que nossa experiência nos informa do contrário, mas sim constatar que, por mais que ainda possamos encontrá-las, elas se tornam cada vez mais escassas. É muito raro nos depararmos com casos de histeria de conversão hoje em dia, assim como se constata amiúde que as questões relativas ao recalcamento da sexualidade estão cada vez menos presentes nos consultórios. Outro dado clínico: os pacientes já não associam com tanta facilidade; o mais comum é mesmo uma extrema inibição da capacidade associativa, que acaba, mal ou bem, se desenvolvendo bastante durante a análise. Mas novos elementos subjetivos e afetivos têm ganhado destaque nessas análises, que apontam para novas modalidades de organização psíquica. Falamos então da solidão que estaria na origem e que, tomada nesses termos, pode se constituir em instrumento privilegiado na abordagem atual das nossas particularidades subjetivas. Solidão originária que leva ao acionamento inexorável de mecanismos de defesa muito primitivos na tentativa infrutífera de produzir sua anulação ou diminuir sua intensidade, o que acaba por torná-la mais presente. Há aqui uma importante aproximação possível com outro paradoxo tão caro à psicanálise, o de Édipo, que ao tentar fugir de seu destino parricida e incestuoso, lança-se na fuga desenfreada que o levará ao trágico assassinato do pai e culminará na união com sua mãe. É da própria incontornável dialética subjetiva que Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 117 Alexandre Abranches Jordão _____. (1929) A criança mal-acolhida e sua pulsão de morte. In: _____ Escritos Psicanalíticos 1909-1933. Rio de Janeiro: Taurus/ Timbre, s.d. p. 313-317. _____. (1932) Diário Clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990. FREUD, S.; FERENCZI, S.(1908-1911) Correspondência. Rio de Janeiro: Imago, 1994, vol. 1, tomo I. JORDÃO, A. Narcisismo: do ressentimento à certeza de si. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) - Rio de Janeiro: UFRJ, 2002, inédita. KLEIN, M. Sobre o sentimento de solidão. In: _____. O sentimento de solidão. 2 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1975, 2ª ed., p133-156. WINNICOTT, D. W. (1958), “The capacity to be alone. In: _____. The maturational processes and the facilitating environment: studies in the theory of emotional development. Madison (EUA): International University Press, 1996, p.29-36. artigo ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’: amor ou gozo? ‘Thou shalt love thy neighbour as thyself’: love or jouissance ? 118 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa* Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007 última tem merecido especial atenção atualmente – o papel de agentes das transformações que se constatam no nível subjetivo. É preciso também examinar o quanto as novas constelações psíquicas são determinantes dos novos usos e costumes sociais, ainda que – e principalmente, no que toca à Psicanálise – a nível inconsciente. Temos aqui uma ferramenta preciosa para esse fim. Alexandre Abranches Jordão Rua Araucária, 114/302 Jardim Botânico – Rio de Janeiro 22461-160 Tel 2266-0909 [email protected] Tramitação: Recebido em: 27 de junho de 2007. Aprovado em: 15de agosto de 2007. Referências BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. DUFOUR, D.-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2005. EHRENBERG, A. La fatigue d’être soi: dépression et société. Paris: Odile Jacob, 2000. FERENCZI, S. (1926) O problema da afirmação do desprazer (progresso no conhecimento do sentido de realidade). In: _____. Escritos Psicanalíticos 1909-1933. Rio de Janeiro: Taurus/Timbre, 1988. s.d., p.281-291. *Psicanalista; Mestre em Filosofia e Ética da Saúde Mental pela University of Warwick (UK). Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 119 jouissance ? Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa Supereu e o seu caráter paradoxal em Freud Freud (1913), quando introduz o mito do assassinato do pai da horda primeva pelos filhos, nos diz que com a morte do pai os 120 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 Resumo O artigo aborda a problemática do caráter paradoxal da noção de supereu, já introduzido por Freud na psicanálise em relação ao mandamento do amor ao próximo. Argumenta que esse mandamento visa regular o caráter radicalmente mal do homem com o próximo e indica nessa direção, o lugar central conferido ao caráter paradoxal do supereu no exercício desse mandamento do amor ao próximo que desemboca no gozo e não no amor. Palavras-chave: Supereu, lei, próximo, gozo, amor. Abstract This article discusses the paradoxical nature of superego notion already introduced by Freud in psychoanalysis in its relationship to the commandment to love one’s neighbour as oneself. The author argues that this commandment constitutes a moral law itself which purpose is to regulate the very evil character of man and the relationship between men and their neighbours, as well as it points to the central place given to superego in the exercise of this commandment in so far as it is jouissance and not love that comes. Key words: Superego, law, neighbour, jouissance, love. Artigo ‘Amarás a teu Próximo como a ti Mesmo’: Amor ou Gozo? ‘Thou shalt love thy neighbour as thyself’: love or Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 121 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa na melancolia ocorrem como um caminho indireto pelo qual o sujeito vinga-se do objeto original abandonado e tortura o ente amado através de sua doença, não precisando, dessa forma, ser deliberadamente hostil para com ele. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação. (FREUD, 1917, p. 254-55). Então de acordo com Freud, a análise da melancolia clareia a natureza do suicídio na medida em que mostra, a partir de então, que o ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto. Se puder tratar a si mesmo como um objeto. Um grande diferencial no tocante à abordagem freudiana do supereu é marcado quando, em 1919, Freud se propõe a estudar a origem das perversões sexuais, tendo como ponto de partida uma fantasia que insiste na neurose - a saber, presenciar como ‘se bate numa criança’. Fantasia neurótica fundamental que introduz um a-mais de prazer sexual. Fantasia que pode ser inconfessável, e se o sujeito no percurso de análise vier a confessá-la, somente o fará acompanhada de muita vergonha e culpa. Nesse momento da elaboração freudiana podemos situar a instância censora operando como instância crítica e cruel que submete o sujeito a um gozo masoquista que se pode obter da fantasia masoquista de ser castigado pelo pai. 122 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo filhos, ao invés de acessarem ao gozo interditado pelo pai, introjetam o pai morto. Com isso, deixa-nos entrever nesse momento de seu percurso, mesmo sem ainda o articular como tal, a origem do supereu na medida em que ele nos propõe o sentimento de culpa como provindo da agressividade recalcada. O sentimento de culpa remontando à morte do pai primevo e, por conseguinte, ao recalque do desejo primordial fundado na proibição do incesto e do parricídio, ao recuo diante do acesso ao gozo. Em 1914, ainda sem ter formulado tal noção de supereu, Freud detecta a presença de um agente psíquico especial que realizaria a tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do ideal do eu. E, que a partir disso, caberia então a esse agente psíquico especial observar constantemente o eu real, medindo-o por aquele, ideal. Freud (1915) nos introduz agora à pulsão ressaltando fundamentalmente o vaivém em que esta se estrutura: ver e ser visto, atormentar e ser atormentado. Com isso, desde o começo, Freud nos apresenta como assentado que parte alguma desse percurso pode ser separada de seu vaivém, de sua reversão fundamental, do caráter circular do percurso da pulsão (Lacan, 1964, p.168). Na sua 26a conferência Freud (1916-1917) situa a instância do supereu como “censor” e, por ora, se refere a essa instância como consciência moral. Freud (1917) prossegue em sua referência a um agente psíquico especial, propondo que na melancolia a referida instância julga o eu como se fosse um objeto - a saber, o objeto abandonado. Daí Freud aborda o conflito entre o eu, enquanto alterado pela identificação com o objeto perdido, e a atividade crítica do eu, entrando o ódio em ação de tal forma que esse agente especial abuse, degrade, faça o objeto sofrer e tire satisfação sádica do seu sofrimento. Portanto, para Freud, a auto-tortura ou a autopunição Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 123 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em um estranho anunciador da morte (Freud, 1919a, p.252). A duplicidade da imagem no duplo, é produto da duplicidade imaginária: de um lado a lei do Pai que pacifica, do outro, falha dessa mesma lei, falha que gera violência e desafio e que acaba se voltando contra o próprio sujeito. Rota aberta da instância mortífera do masoquismo que, como posição estrutural, marca o prelúdio do “além do prazer” como conjunção de masoquismo, pulsão de morte e instância crítica” (Ambertín, 2003, p.97). Em 1920, Freud, no que se vê forçado a reconhecer que há um além do princípio do prazer - o castigo masoquista -, introduzindo a noção da pulsão de morte, coloca, a partir desse momento de corte, a censura referida com o além do princípio do prazer. Censura antes já referida ao traumático. A inércia da fantasia masoquista sustentando a compulsão à repetição, o retorno do traumático, do intramitável. Freud (1921) também nos apresenta a bela metáfora tomada de empréstimo de Schopenhauer dos porcos-espinhos para ilustrar a insuportabilidade de uma relação íntima do sujeito com o outro. A insuportabilidade dos espinhos vindo como uma resposta à insuportabilidade do frio vem apontar que o encontro completo com o outro seria o encontro com o outro insuportável e, por isso, impossível – demandando, dessa maneira, uma distância moderada da qual fala Freud a partir de Schopenhauer: “Os espinhos podem ser assimilados à Instância Crítica operando, submetendo o sujeito aos outros, e também o sitiando de forma masoquista contra si mesmo” (Ambertín, 2003, p.99). No entanto, Freud (1923) amplia um pouco o campo de 124 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo A fantasia de espancamento é chave e fundamento para prosseguir com o que começa a se tornar insistente a partir dos textos de 1915. O “supereu como herdeiro do complexo de Édipo” aludirá uma herança que, como se adverte em ‘Uma criança é espancada”, deve ser pesquisada em sua tramitação e não em seu resultado final. Herdeiro de feridas de amor, ódio e temor. Herdeiro que no eco da voz insta contra si mesmo como remanescente de um gozo masoquista (Ambertín, 2003, p.95). No que Freud desconstrói a fantasia ‘Uma criança é espancada’ em três fases, sendo a primeira “O pai bate numa criança que eu odeio” e a segunda “Sou espancado pelo pai” e a terceira “Batese numa criança”, Freud aponta, de um lado, o desejo inconsciente do sujeito causado por esse objeto inerte da fantasia. E de outro lado, o gozo que é o que está para além do desejo e do princípio do prazer, que se localiza nas vicissitudes da pulsão. Freud (1919a), na mesma linha de desenvolvimento, refere-se a essa instância crítica que tem a função de observar e de criticar o eu e de exercer uma censura dentro da mente dizendo tratar-se do fenômeno do duplo na relação do supereu com o eu. Freud conceitua o estranho como o que retorna espectralmente como anunciador da morte. Freud diz que o duplo é uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, apontando para o narcisismo primário - a saber, o Eu ideal rebelde à castração. Um estádio em que o duplo tinha um aspecto mais amistoso. No entanto, o duplo converte-se num objeto de terror (Freud, 1919, p.254). Nesse momento, Freud situa o supereu ainda como instância censora neste “retorno do superado”, mais ligado ao pulsional que ao inconsciente (Ambertín, 2003, p.96). Nesse sentido, Freud diz que aquilo (o duplo) depois Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 125 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa quanto mais é rigorosamente seguida, mais tortura o sujeito. Pois o supereu é um comando que se serve da lei moral e empurra o sujeito para ir além da moral, e marca uma impossibilidade do seu comando para o sujeito. Eis, portanto, o paradoxo do supereu que captura o sujeito como presa de um gozo masoquista. Em 1924, em ‘O problema econômico do masoquismo’ Freud introduz a noção de masoquismo primário que faz do supereu uma posição estrutural da subjetividade (Ambertín, 2003). Freud, aqui, aborda a noção da renúncia pulsional em nome da virtude, formulando que o sujeito, no que renuncia ao gozo de sua satisfações pulsionais, passa a gozar ou tirar satisfações das suas insatisfações pulsionais. Segundo Freud, a consciência moral torna-se tanto mais severa e melindrosa quanto mais o sujeito renunciar a agredir os outros, na medida em que o sujeito passa a gozar, a se satisfazer nas queixas, nas interdições e nos sintomas. Mal-estar na civilização: comando paradoxal do supereu e o mandamento do amor ao próximo em Freud Freud (1930) nos propõe que o estabelecimento do supereu ocorre não somente pelo medo de uma autoridade externa, mas também quando essa autoridade crítica, proibidora e punitiva antes externa é internalizada, com isso desaparecendo a distinção entre fazer algo mau e desejar fazê-lo, já que nem mesmo os pensamentos podem ser escondidos do supereu. Freud, então entrando no campo da ética, desvela o paradoxo colocado pelo supereu, na medida em que, de acordo com ele, sua crueldade e vigilância é diretamente proporcional à virtude e a moralidade do sujeito. O supereu como instância proibidora e ao mesmo tempo representante do gozo proibido é plenamente articulado nesse momento de sua elaboração. Por um lado, para Freud, a severidade e a agressividade do supereu devem ser entendidas como uma 126 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo ação da psicanálise quando propõe que o mecanismo presente na melancolia, isto é, a identificação com o objeto perdido, não se restringe à melancolia, mas é de ocorrência bastante geral; e sugere que essas identificações regressivas são, em grande medida, a base do que descrevemos como o “caráter” de uma pessoa. Postula também que as mais antigas dessas identificações regressivas, a saber, as derivadas da dissolução do complexo de Édipo, vêm ocupar uma posição especial, e constituem o núcleo do supereu. Dessa maneira, nesse momento de elaboração, passa a conotar a instância crítica como sendo imperativa e cruel. De acordo com Freud nesse momento de sua elaboração, enquanto que o eu é essencialmente o representante da realidade, o supereu contrasta-se com ele, como representante do id. O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure com o preceito: você deveria ser assim (como seu pai)! Ela também compreende a proibição: você não pode ser assim (como seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele! (FREUD, 1923, p.47). Em “O ego e o id “ Freud começa a rascunhar conceitos que já denunciam “O mal-estar na civilização” no sentido de conceituar o isso como totalmente amoral, o eu se esforçando em ser moral, o supereu podendo ser hipermoral, ou seja, empurrando o sujeito para ir além da moral; e então se tornando tão cruel quanto só ele pode ser. Do ponto de vista econômico, a moral que atua no supereu, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 127 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa nossa própria agressividade para com ele. (FREUD, 1930, p.133). No ‘Mal estar na civilização’, Freud introduz como acréscimo em relação a ‘Totem e tabu’, no tocante ao supereu o seguinte: enquanto que em ‘Totem e tabu’ o sentimento de culpa coincidia com o remorso, na medida em que constituia a conseqüência de um ato de agressão que fora executado, a saber, o assassinato do pai, a instituição da autoridade interna, o supereu, fez com que a diferença entre uma agressão pretendida e uma agressão de fato executada perdesse sua força. Nessa linha de direção Freud nos escreve o ‘O mal estar na civilização’ para reivindicar que o desenvolvimento da civilização impõe renúncias pulsionais ao sujeito, na medida em que impõe grandes sacrifícios, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade com o seu próximo; e que essas renúncias pulsionais criam o supereu e esse, por sua vez, cria mais renúncias pulsionais, resultando na intensificação do sentimento de culpa. Esse é o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização e o mais importante problema no desenvolvimento da civilização. Freud nos diz, nesse mesmo trabalho, que para atingir seus objetivos de cercear as pulsões agressivas do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas, a civilização emprega métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade. Daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo. Mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. (FREUD, 1930, p.117). Assim Freud parece sugerir que o mandamento do amor ao próximo constitui-se em um método empregado pela civilização 128 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo continuação da severidade e da agressividade da autoridade externa à qual sucedeu e que, em parte, substituiu. Originalmente, bastava renunciar-se às próprias satisfações pulsionais para não perder o amor de uma autoridade externa e com isso nenhum sentimento de culpa permaneceria. No entanto, no tocante ao medo do supereu, o caso é diferente. A renúncia pulsional não basta, havendo exigência, necessidade de punição pela persistência do desejo, que não pode ser escondido do supereu. O resultado é que, a despeito da renúncia pulsional efetuada, ocorre um sentimento de culpa. Por outro lado, Freud sugere a afirmativa paradoxal de que o suepereu é o resultado da renúncia pulsional na medida em que a renúncia pulsional cria o supereu e esse, por sua vez, exige mais renúncias pulsionais. O que Freud propõe de enlace para esses dois aspectos do supereu referidos é que a criança, através da identificação, incorpora a si a autoridade que a impede de ter suas primeiras e mais importantes satisfações. Transforma-a em seu supereu, que entra na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer contra ele, o eu da criança assume o papel da autoridade a ser atacada. Assim, a severidade original do supereu não representa tanto a severidade atribuída ao objeto, e sim nossa própria agressividade para com ele, como já delineado em “Luto e melancolia”. O relacionamento entre o supereu e o ego constitui um retorno deformado por um desejo, dos relacionamentos reais existentes entre, o ego, ainda individido, e um objeto externo. Isso também é típico. A diferença essencial, porém, é que a severidade original do supereu não representa – ou não representa tanto – a severidade que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui. Representa antes, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 129 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa maldade profunda que habita no próximo. Mas daí ela (a maldade) habita também em mim; e o que me é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo, que é o do meu gozo, do qual não ouso me aproximar, pois assim que me aproximo surge essa insondável agressividade diante da qual eu recuo - que retorno contra mim - e que vem, no lugar mesmo da lei esvanecida (a lei do pai) dar seu peso ao que me impede de transpor os limites que me separam do campo da Coisa, do campo do inominável do desejo radical (LACAN, 1959, p.227-228). Lacan chama o gozo do próximo como gozo nocivo, gozo maligno e ele diz que é esse gozo que se propõe como o verdadeiro problema para o nosso amor (LACAN, 1959, p.229). O que faz Lacan chamar esse gozo de nocivo e maligno é o paradoxo desse mandamento supereuóico do amor ao próximo na medida em que ele desemboca no gozo e não no amor, porque era gozo desde o início e não se sabia tal. O amor, para se constituir, precisa da renúncia a esse gozo nocivo e com isso temos a incompatibilidade entre amor e gozo. Lacan nos diz que só o amor-sublimação permite ao gozo condescender ao desejo (Lacan, 1962-1963, p.199) e parece apontar com esse aforismo sobre o amor que só a partir do amor feito causa, é possível negociar com o desejo e o gozo (Ambertín, 2003, p.331). Lacan, a partir de Freud e Heidegger, chama esse objeto (o próximo), aparecendo em sua alteridade de radicalmente estranho, de a Coisa, de “das Ding’’. Por isso a proximidade maciça desse objeto aparecendo em sua alteridade absoluta – meu semelhante e radicalmente outro – pode me dar horror – certa ultrapassagem do sinal da angústia (FREUD, 1926), (LACAN, 1962a). Na própria medida em que o outro é precisamente o próximo, o próximo sou eu mesmo e eu sou irreconhecível. A economia do supereu que Freud havia delimitado é rea- 130 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo para estabelecer limites para as pulsões agressivas, para incitar as renúncias pulsionais requeridas para o desenvolvimento da civilização. Por conseguinte, o mandamento do amor ao próximo confere tirania ao supereu na medida em que ele, constituído pela renúncia pulsional, exige mais e mais renúncias pulsionais. Contribuições lacanianas quanto ao caráter paradoxal do mandamento do amor ao próximo conferido pela instância paradoxal do supereu No ‘Mal estar na civilização’ Freud se horroriza diante do mandamento do amor ao próximo. Por conseguinte, Freud ressalta o lado exorbitante desse mandamento com a seguinte argumentação: em primeiro lugar, o próximo é um ser malvado; em segundo lugar, o seu amor é algo precioso que ele não vai dá-lo inteiramente a cada um que se apresente como sendo o que é, só porque ele se aproximou. A partir disso Freud faz observações sobre o que vale a pena ser amado. Entretanto, segundo Lacan (1959), o que Freud elude é que talvez seja justamente ao tomar essa via que percamos o acesso ao gozo. É da natureza do bem ser altruísta, mas o amor ao próximo não é isso. Freud faz com que se perceba isso, sem articulá-lo plenamente. Assim, Freud diz que esse mandamento é arrogante, já que nos solicita usar o nosso amor indistintamente e para quem não merece. Lacan não nega o que está em Freud e diz outra coisa que não está em Freud, a saber, que neste mandamento está em questão não só o próximo, mas a si mesmo. Segundo Lacan, o fundamento do recuo de Freud diante do mandamento do amor ao próximo se dá porque, a cada vez que Freud se detém, como que horrorizado diante da conseqüência do mandamento do amor ao próximo, o que surge é a presença dessa Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 131 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa mento, apoderar-se de suas posses, humilhálo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo (FREUD, 1930, p.116). Acerca do que estamos tratando, é importante nos referirmos nesse momento ao que significa o ‘prazer’ em Freud. Como bem observa Lacan (1959), toda a apologia do bem do homem desde a origem do pensamento moral e ético foi feita em função do índice do prazer. O moralista tradicional tenta persuadir-nos de que o prazer é um bem, que a via do bem nos é traçada pelo prazer. Entretanto, podemos dizer que o termo ‘prazer’ em Freud, o ‘Princípio do prazer’ é concebido de modo radicalmente diferente do prazer concebido pela moral tradicional. Desde antes das formulações extremas do ‘Mais além do princípio do prazer’ (FREUD, 1920), na sua primeira formulação do princípio do prazer como princípio de desprazer ou do menos padecer (FREUD, 1895), é possível ver com clareza já aí essa formulação comportando um para além. Mas que é feito justamente para nos manter aquém. O princípio do prazer, nesse momento de sua elaboração, regula a busca do objeto tratando-se de reencontrá-lo na medida em que ele é perdido desde sempre, mas impondo-lhe rodeios que conservam sua distância em relação ao seu fim. Em outras palavras, o sujeito busca o objeto que lhe falta, mas não deseja encontrá-lo. O encontro completo com o outro seria o encontro com o outro insuportável, e logo, impossível. O desejo é um movimento de busca desse objeto e o amor vem significar esse movimento (Lacan, 1962-1963). “A originalidade do Entwurf provém da noção dos trilhamentos que comandam a repartição dos investimentos libidinais de tal maneira que certo nível não seja ultrapassado, para além do qual a excitação é insuportável para o sujeito.” (LACAN, 1959, p.271). Assim, o emprego do bem, por Freud, é no sentido de que ele nos mantém afastados de nosso gozo. “O que é o gozo? Aqui ele se reduz a 132 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo firmada em Lacan (1959-1960) na medida em que, quanto mais sacrifícios se lhe oferecem, mais exigente ele advém. Ao se referir ao célebre Luto e melancolia Lacan diz que, dado o que Freud nos afirma acerca do objeto incorporado de que é um objeto que não se deseja (o pai), mas com o qual tanto nos importamos em nosso luto, não lhe prestamos unicamente louvores. Talvez as recriminações que lhe fazemos sejam o motivo de o incorporarmos, para sermos tão malvados conosco mesmos quanto fomos com ele. (Lacan, 1959-1960, p. 368). Em Televisão, Lacan (1973) diz que o supereu é estrutural, que ele não é efeito da civilização, mas, mal-estar (sinto-mal) na civilização. Desta forma, seguindo Lacan (1959) Freud nos escreve o ‘Mal estar na civilização’ para nos dizer que o gozo é um mal porque ele comporta o mal do próximo. Nesse referido texto, Freud desvela o mal radical que habita no homem na medida que naturalmente ele tende à maldade, à agressão, à destruição, e portanto, também à crueldade. O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consenti- Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 133 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa Para Kant a vontade é moral quando suas ações são regidas por imperativos categóricos e não por imperativos hipotéticos, como a punição da lei. O imperativo categórico pode ser assim enunciado: “Age de tal modo que o motivo que te levou a agir possa tornar-se lei universal”. Kant faz em sua crítica uma apologia da felicidade no bem. Em contrapartida, um certo Marquês de Sade nos mostra qual mundo, paradoxalmente, é concebível quando se pretende eliminar dos critérios da ação moral um elemento sentimental como Kant o fez, como um mundo sadista é concebível, mesmo que ele seja o avesso e a caricatura do mundo kantiano. Sade reinvindica em sua obra - que é um legado sobre a apologia da ‘felicidade no mal’ - o direito ao gozo, a liberdade de desejar, contrapondo à noção de bem: algo como uma possibilidade de se ficar bem no mal (LACAN, 1959-1960). Sade nos propõe, como máxima universal de nossa conduta, o direito de gozar do outro, a submissão do outro aos caprichos perversos que regem o direito ao gozo, a liberdade de desejar. A soberania do desejo perverso, reduzindo o outro, quem quer que seja, ao lugar de vítima a ser pura e simplesmente instrumento de nosso prazer. Sade exalta o ateísmo e preconiza o contrário de todas as leis do Decálogo. Faz uma apologia eloqüente do adultério, do incesto, do crime, da desonestidade; de tudo o que a lei moral constituiu até então como o mínimo vital para uma vida moral, viável e coerente. Justifica eloquentemente ponto por ponto o derrubamento dos imperativos fundamentais da lei moral, a substituição da primazia das virtudes pela primazia dos vícios, da obscenidade e da degeneração. Através do seu legado, podemos detectar as extremidades 134 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo ser apenas uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve para nada. O superego é o imperativo do gozo - Goza!” (Lacan, 1972-1973, p.11). No entanto, a subversão da noção de prazer não foi inaugurada por Freud e sim por Sade (1795), que antecipa Freud no tocante ao catálago das perversões, mas, cujo ponto decisivo é Kant (1788) que é o primeiro a positivar o mal na filosofia – o mal não como ausência do bem (LACAN, 1962, p.776). Kant chegou a postular a predisposição para o mal, mas não o mal como constitutivo do sujeito, das ações humanas, como Freud o faz. Kant com Sade Kant propõe um fundamento categórico e universal para a ação moral. Trabalhando com o peso da lei formulada por ele como razão prática, como impondo-se para além de todo sentimento, de todo afeto patológico; ou seja, em termos puros de razão, sem nenhum motivo pessoal. O essencial de todo valor moral das ações consiste em que a lei moral determina imediatamente a vontade. Se a determinação da vontade se produz em conformidade com a lei moral, mas somente por intermédio de um sentimento, seja de que espécie for, que seja necessário pressupor para que esse sentimento se torne um princípio de determinação suficiente para a vontade, não ocorrendo por conseguinte, a ação exclusivamente por amor à lei, então a ação encerrará, certamente, um caráter legal, mas não um caráter moral (KANT, 1788, p. 82). Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 135 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa Segundo Lacan, é a lei moral (que inclui o mandamento do amor ao próximo), na medida em que é a Lei que vêm para assegurar a distância do sujeito à Coisa, que faz o desejo do sujeito desejo de morte, na medida em que, em relação a essa lei, a Coisa adquire um caráter hiperbólico. A relação entre a Coisa e a Lei não poderia ser melhor definida do que nesses termos. É aqui que a retomaremos. A relação dialética do desejo com a Lei faz nosso desejo não arder senão numa relação com a Lei, pelo qual ele se torne desejo de morte. É somente pelo fato da Lei que o pecado, hamartia, o que em grego quer dizer falta (manque), e não-participação à Coisa adquire um caráter desmesurado, hiperbólico (LACAN, 1959-1960, p.106). Então, com o desejo do pai fazendo a lei, Desejo/ Lei constituise em uma barreira que obstrui o acesso à Coisa e o supereu parece surgir como resto- objeto a - do que franqueia essa barreira (Ambertín, 2003, p.306), como resíduo da operação de degradação da lei do pai. Segundo Lacan (1953-1954), o supereu tem uma relação com a lei, e ao mesmo tempo, é uma lei insensata, de caráter cego, de puro imperativo, de simples tirania que chega até a ser o desconhecimento da lei. Com isso, Lacan parece sugerir que não há supereu sem a lei da linguagem, mesmo que ele atue como o próprio avesso da lei. Lacan (1955) se refere ao supereu como uma figura obscena e feroz cujo imperativo aflora da malha rompida da cadeia simbólica. Lacan (1959-1960) distingue supereu de consciência moral, definindo a segunda apenas como uma exteriorização articulada do primeiro. Diz que a opressão insensata do supereu permanece 136 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo aonde chega o homem do prazer – a transposição dos limites para além dos quais se situa o campo do desejo de morte, do gozo de destruição, da Coisa inassimilável - pois que o extremo do prazer força o acesso à Coisa e o sujeito não submete seu desejo à lei do Outro. É essa a filosofia de Sade: uma apologia da transgressão de todos os limites humanos - quando se avança na direção desse vazio central “das Ding”, lugar de acesso ao gozo, o corpo do próximo se despedaça (LACAN, 1959-1960).. Contudo Kant, mesmo rejeitando qualquer elemento sentimental dos critérios da ação moral, admite a própria dor do sujeito como um correlato sentimental da lei moral em sua pureza. Portanto, podemos constatar a priori que a lei moral enquanto princípio de determinação da vontade, deve, por prejudicar todas as inclinações, produzir um sentimento ao qual podemos chamar dor; e aqui temos agora o primeiro e, talvez, também o único caso em que podemos determinar por conceitos a priori a relação de um conhecimento (neste caso, o conhecimento de uma razão pura prática) com o sentimento do prazer ou do desprazer (KANT, 1788, p.83). Considerações finais Se a dor é o que essencialmente existe em Sade, no horizonte da transgressão de todos os limites humanos, atingindo absolutamente das Ding, Kant tem a mesma opinião de Sade e a dor de outrem e a dor própria do sujeito são, no caso, apenas uma só e a mesma coisa. Nós não podemos suportar o extremo do prazer, no que ele consiste em forçar o acesso à Coisa (LACAN, 1959-1960, p.102). Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 137 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa que a resistência ao mandamento do amor ao próximo e a resistência que se exerce para entravar seu acesso ao gozo são uma única e mesma coisa. (LACAN, 1959, p.236-237). Isso porque, de acordo com o que Freud nos ensinou, no que o sujeito recua diante de seu gozo, diante dessa insondável agressividade como os filhos no mito do pai da horda primeira, essa agressividade retorna contra ele, e vem no lugar da lei esvanecida dar seu peso ao que faz fronteira no limite da Coisa, ao que o impede de atravessá-lo. Pois a energia do supereu provém da agressividade que o sujeito volta contra si mesmo. Logo, amar seu próximo como a si mesmo pode ser a via mais cruel na medida em que participa de não sei qual crueldade intolerável. (LACAN, 1959, p.237). Lacan (1964) definindo o desejo do analista face ao desejo de morte, como um desejo de obter diferença absoluta, um desejo não circunscrito na repetição trágica, adverte para o campo do desejo puro na sua dimensão de economia de sacrifício que reporta a um uso perverso da castração. Nesse sentido, a lei moral em Kan,t no que dá no supereu, no que desemboca no sacrifício, é o desejo em estado puro. O desejo em estado puro, desejo de morte, aponta para duas vertentes: a vertente do desejo perverso e a vertente tirânica do supereu. O sentimento de culpa representa o mal-estar da civilização porque a exigência cultural é que o sujeito ceda no que tange a seu desejo. Pode conservar seu sintoma como satisfação substitutiva desde que se abstenha de agredir os outros, isto é, gozar do semelhante. (Goldenberg, 1994). O mandamento do amor ao próximo constitui-se em um mandamento supereuóico, e por conseguinte, traz em sua estrutura o caráter de uma lei insensata que o comando do supereu evoca, conduzindo o sujeito até mesmo a desconhecer essa lei, mantendo a proximidade da Coisa que essa lei moral e religiosa visava afastar. Por constituir-se em um mandamento supereuóico, esse mandamen138 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo na raíz dos imperativos motivados da consciência moral (Lacan, 1948, p.119) e sugere que no supereu trata-se do dever para além da obrigação. Em 1960 encontramos introduzido na teoria lacaniana que o supereu como Real é a voz, a saber, uma das formas do objeto a (Ambertín, 2003, p.307). O mesmo acontece com a lei moral, e pela mesma razão que nos faz caminhar da linguagem para a fala. E descobrir que o supereu, em seu imperativo íntimo, é de fato “a voz da consciência”, isto é, antes de mais nada uma voz, bastante vocal, e sem maior autoridade senão a de ser uma voz grossa: a voz sobre a qual pelo menos um texto da bíblia, nos diz que ela se fez ouvir pelo povo aglomerado em torno do Sinai, não sem que esse artifício sugira que, em sua enunciação, ela lhe devolveu seu próprio rumor, nem por isso sendo menos necessárias as Tábuas da Lei para conhecer seu enunciado” (Lacan, 1960, p. 691). Lacan (1963) diz que através da voz - esse objeto caído do órgão da fala - o Outro está no lugar onde isso fala... Apontando para uma subversão da lei moral Lacan propõe algo que parece um paradoxo, ou seja, que o recuo diante do ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ é a mesma coisa que a barreira diante do gozo, e não seu contrário. Em outras palavras, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 139 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa Tramitação: Recebido em: 08.05.2007 Aprovado em: 15.08.2007 Rua Oscar Vidal 71/901 Centro – Juiz de Fora – M.G. Fone: (32) 3236-9016 36025-350 [email protected] Referências AMBERTÍN, M. G. As vozes do supereu na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. Caxias do Sul: EDUCS, 2003. FREUD, S. (1895) Projeto para uma psicologia científica Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 333-345. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1). _____. (1913). Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11162. (ESB, 13). _____. (1914). Sobre o narcisismo uma introdução. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 75-110. (ESB, 14). _____. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 115-144. (ESB, 14). _____.(1916-1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise (parte III). Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 251-476. (ESB, 16). _____.(1917). Luto e melancolia. v.14. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 243-264. (ESB, 14). _____. (1919). O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 233270. (ESB, 17). _____. (1919). ‘Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 191-218 (ESB, 17). _____. (1920). Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-76 (ESB, 18). 140 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 artigo to mantém-se sob o império da pulsão de morte, que silenciosamente amarra o sujeito em uma posição masoquista, que, é importante dizer, é estrutural, quando o sujeito recua diante da agressividade que concerne ao gozar de seu próximo. No que cede de seu desejo, sob o imperativo do dever moral, o sujeito se apreende como presa de um gozo masoquista advindo do redirecionamento da pulsão destrutiva contra si mesmo; redirecionamento que se dá a partir do caráter circular da pulsão destrutiva, do vaivém em que a pulsão destrutiva se estrutura, da sua reversão fundamental. A psicanálise desvela que o gozo como mal constitutivo do sujeito, das ações humanas – o mal radical em Freud, que o surgimento do mandamento moral e religioso ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ visa manter distância - não é, de maneira nenhuma afastado, pois o sujeito goza mesmo assim. Goza nas insatisfações, nas privações e interdições que essa lei moral e religiosa institui. Goza nas queixas que as insatisfações pulsionais introduzem. O mandamento moral e religioso do amor ao próximo, que visa em sua natureza afastar o gozo maligno pela via do amor, desemboca paradoxalmente no gozo, no sacrifício, no desejo em estado puro. Por isso a lei moral e religiosa por si só é ineficaz, paradoxal e desumana. Não opera afastando a crueldade que concerne ao real da relação do homem com o seu próximo. É justamente porque se trata de um mal-estar estrutural, que a psicanálise pode se inscrever nessa hiância colocada pelo paradoxo dessa lei moral e religiosa visando constituir uma clínica em que o sujeito comprometido com o seu desejo, assumindo responsabilidades e fazendo ato na vida, possa advir lá onde o isso freudiano estava, posicionando-se melhor diante do outro e de si mesmo. Mas não sem pagar o preço de certa perda de gozo. Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 141 Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa _____. (1963). Os nomes do pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. _____. (1964). O seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. _____. (1972-1973). O seminário. Livro XX. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. _____. (1973). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. SADE, M.. Os 120 dias de sodoma, ou, a escola da libertinagem. São Paulo: Iluminuras, 2006. SADE, M.. (1795). Justine, philosophy in the bedroom, & other writings. New York: Grove Press, 1995. 142 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007 _____. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77-154 (ESB, 18). _____. (1923). O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 1372 (ESB, 19). _____. (1924). O problema econômico do masoquismo. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 173-188 (ESB, 19). _____. (1926). Inibição, sintoma e ansiedade. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 79-169 (ESB, 20). _____. (1930). Mal estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 65-148 (ESB, 21). GOLDENBERG, R. Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Editora Agalma, 1994. KANT, I. (1788).Crítica da razão prática. São Paulo: Martin Claret, 2006. LACAN, J. (1948) A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. _____. (1953-1954). O seminário: livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _____. (1955). A coisa freudiana. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. _____. (1959) O seminário. livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. _____. (1960a). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. _____.(1962). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. _____. (1962a) O seminário. Livro X. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. *Membro associado/SPCRJ; Mestre em Psicologia Clínica/PUC-Rio. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 143 precursors are in the early intersubjective experiences that permit the construction of psychic frontiers, which are the foundations for the development of the symbolic capacity. Keywords: Symbolism; object relationships; depressive position; psychic frontiers. artigo 144 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações do símbolo The construction of psychic frontiers and the foundations of the symbol Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé* Resumo A origem do pensar e de todo funcionamento psíquico está no processo de transformação das experiências sensoriais e emocionais, que dominam o início da vida, em símbolos. O símbolo é a unidade elementar que forma o tecido da fantasia e estabelece a relação com o mundo de significados compartilhados. Seus precursores encontram-se nas experiências intersubjetivas iniciais que permitem a constituição das fronteiras psíquicas fundamentais para o desenvolvimento da capacidade de simbolizar. Palavras-chave: Simbolismo, relações de objeto, posição depressiva, fronteiras psíquicas. Abstract The origins of thinking and of psychic functioning are in the process of transforming the sensory and emotional experiences that dominate early life, into symbols. The symbol is the elementary unit that constructs the base of fantasy and permits the child’s entry into the social/ cultural world. Their Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 145 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé Os símbolos e as equações simbólicas As descobertas psicanalíticas sobre o simbolismo e sobre a fantasia inconsciente foram interdependentes e correlacionadas desde o início. No artigo “A natureza e a função da fantasia” (1952), Susan Isaacs discute e amplia o conceito de fantasia inconsciente e esta passa a ser entendida como o conteúdo primário dos processos mentais inconscientes, ou seja, “o corolário mental, o representante psíquico das pulsões”. As raízes desta concepção de fantasia inconsciente podem ser identificadas no capítulo 7 da “Interpretação dos sonhos”, quando Freud descreve o processo primitivo pelo qual surge o desejo. Ao defrontar-se com as excitações produzidas pelas “necessidades” internas, o bebê busca descarga no movimento como forma de expressão emocional, que pode ser exemplificada pelo bebê faminto que grita e dá pontapés. No entanto, a mudança neste estado só ocorre quando há a percepção da experiência de satisfação. Freud afirma que: Em decorrência do vínculo estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade for despertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que procurará reinvestir a imagem mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação da satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo.” (Freud, 1900, p. 595). Ao descrever o surgimento do desejo, descreve a transformação de uma necessidade exclusivamente somática para sua inscrição na dimensão psíquica. Freud afirma que “o pensamento não passa do substituto de um desejo alucinatório” (Ibidem), e 146 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações do símbolo The construction of psychic frontiers and the foundations of the symbol Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé Introdução No bebê recém nascido não há uma vivência psíquica de distinção clara entre seu próprio corpo e o de sua mãe. Esta distinção, não apenas entre corpos, mas também entre psique e soma vai ocorrendo a cada minuto de interação entre mãe e bebê. O tema da constituição das fronteiras psíquicas, a partir das experiências sensoriais e emocionais primitivas, remete ao período do narcisismo primário. Em “Sobre o narcisismo” (1914), Freud afirma que: Uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. As pulsões auto-eróticas, contudo, estão ali desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo (Idem, p.93). Este trabalho tem como objetivo discutir algumas hipóteses sobre as experiências precoces que geram as ações psíquicas necessárias para a constituição das fronteiras psíquicas (internas e externas) que caracterizam o narcisismo primário e permitem a emergência dos símbolos. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 147 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé vinculadas à experiência sensorial. De acordo com Ernest Jones (1916), o símbolo é infinito e encontra-se nos gestos, palavras, e em todas as atividades humanas, mas seu conteúdo é restrito às fantasias primitivas que se originam na dimensão somática. Baseada em grande parte da teoria de Jones sobre o simbolismo, Melanie Klein criou uma abordagem nova sobre o tema. De acordo com Cintra e Figueiredo, no pensamento kleiniano: As sensações corporais são muito importantes na formação do tecido da fantasia: ela é a configuração psíquica das mais arcaicas sensações e sentimentos, é o lugar no qual se constitui a mais profunda imagem inconsciente do corpo (2004, p. 151). Nesta perspectiva, a fantasia é compreendida como “o vínculo que existe entre o impulso do id e o mecanismo do ego, o meio pelo qual um se transforma no outro” (Isaacs, pg. 119). Assim, os primeiros processos mentais, ou seja, os representantes psíquicos dos impulsos amorosos e destrutivos constituem os primórdios da fantasia. Se a fantasia é a linguagem das moções pulsionais primárias, pode-se supor que a fantasia participa do desenvolvimento inicial do ego, não apenas com relação ao id, mas também, em sua relação com a realidade, apoiando a comprovação da mesma, assim como o desenvolvimento do conhecimento do mundo externo. Hanna Segal (1955), em “Notas sobre a formação de símbolos”, a partir dos alicerces teóricos kleinianos, desenvolve uma teoria sobre a formação de símbolos na qual articula os aspectos pré-simbólicos e simbólicos às posições esquizo-paranóide e depressiva, respectivamente. Tal como desenvolve S. Langer sobre a participação de três elementos para o uso de símbolos (2004, p. 70), 148 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo assim, localizam-se neste momento, os primórdios da fantasia e da vida mental. A relação entre as fantasias inconscientes e o simbolismo evoca o tema da própria constituição do domínio psíquico. Segundo Isaacs, não há impulso, necessidade ou resposta pulsionais que não sejam vivenciadas como fantasia inconsciente. Isaacs afirma que no início da vida do bebê, as fantasias são construídas em conjunção com os investimentos em certas zonas corporais e estão ativas na mente do bebê muito antes do desenvolvimento da linguagem. E mesmo na vida adulta, as fantasias continuam operando independentemente das palavras, no entanto, “o pensamento de realidade não pode operar sem a concorrência e apoio de fantasias inconscientes” (Isaacs, 1954, p. 124). Esta idéia liga-se à concepção de Ferenczi sobre a identificação primária como precursora do simbolismo, ou seja, o processo em que o bebê tenta redescobrir em todos os objetos, os seus próprios órgãos e seu funcionamento. Em “Ontogênese dos símbolos”, ele afirma que: Assim se estabelecem às relações profundas, persistentes a vida inteira, entre o corpo humano e o mundo dos objetos, a que chamamos relações simbólicas. Nesse estágio, a criança só vê no mundo reproduções de sua corporalidade e, por outro lado, aprende a figurar por meio de seu corpo toda a diversidade do mundo externo. (Ferenczi, 1992, p. 105) É nesta rede de equivalências que surgirão os primeiros elos simbólicos que vão formar a primeira trama do “tecido” da fantasia; e, apenas desta forma, é que o bebê pode deslocar o interesse de seu próprio corpo para o mundo externo. Assim, essas identificações primárias consistem nas unidades elementares de todas as fantasias inconscientes que estão sempre arcaicamente Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 149 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé Quando perguntado sobre o motivo que o levou a parar, respondeu violentamente: “Você espera que eu me masturbe em público?”. Um segundo paciente neurótico, atendido no consultório, relatou ter sonhado que tocava violino em público, o que representava fantasias masturbatórias. No entanto, estas fantasias não interferiam no ato sublimatório de tocar violino, como ocorria no primeiro caso. Para o paciente psicótico, o violino é o pênis e tocar em público é masturbar-se; e para o paciente neurótico o símbolo representa o objeto, mas não está equacionado a ele. Segundo Segal, a capacidade de simbolizar e, portanto, de executar uma reparação simbólica e mental é uma conseqüência da elaboração da posição depressiva: Na posição depressiva o ego passa a se preocupar cada vez mais em salvar o objeto de sua agressão e possessividade. Esta situação é um estímulo poderoso para a criação de símbolos. O símbolo é necessário para deslocar a agressividade do objeto original e, desta forma, diminuir a culpa e o medo da perda. (Segal, 1981, pg. 173). Considerando que para se formar símbolos devem-se preservar a distinção entre o símbolo e aquilo que é simbolizado, a diferenciação gradual entre self e objeto torna-se um dos pilares para a formação de símbolos. Caper afirma que “deve haver, progressivamente, desde o nascimento, um direcionamento para a realidade, no sentido de um contato com um objeto diferente do self, e com um self diferente do objeto” (2002, p. 112). A confusão prolongada entre self e objeto tem efeito tão catastrófico para formação de símbolos quanto a precoce consciência de diferenciação. Por este motivo, discutiremos algumas hipóteses sobre as expe- 150 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo Segal afirma que a simbolização consiste em uma relação entre três termos: a coisa simbolizada, aquilo que funciona como um símbolo e a pessoa para quem um representa o outro. Ou seja, o simbolismo seria uma relação entre o ego, o objeto e o símbolo, originando-se simultaneamente às relações de objeto e transformando-se de acordo com as alterações nas características e funções das relações entre o ego e os objetos. “A formação simbólica corresponde a uma atividade do ego tentando lidar com as ansiedades mobilizadas pela sua relação com o objeto”. (Segal, 1955, pg.170). Hanna Segal, a partir da teoria kleiniana das posições esquizo-paranóide e depressiva, procura discriminar a qualidade dos símbolos que compõem os sintomas, dos símbolos presentes nos sonhos, pensamento verbal e atividades criativas. Distingue dois tipos de simbolização: a equação simbólica e a representação simbólica. Segundo Segal, as primeiras projeções e identificações, que constituem as primeiras relações de objeto, coincidem com o início do processo de formação de símbolos. Estes primeiros símbolos são sentidos pelo bebê como sendo o próprio objeto original correspondendo a “equações simbólicas” e às bases do pensamento esquizofrênico. Em termos afetivos, a equação simbólica é usada para negar a ausência do objeto ideal ou para controlar um objeto sentido como persecutório. O símbolo propriamente dito, segundo Segal, representa o objeto ao invés de ser confundido com este. Para isso, é preciso que a diferenciação entre ego e objeto tenha se efetuado, processo que se dá através das relações de objeto características da posição depressiva. Para ilustrar a diferença entre a formação e o uso de símbolos motivados por ansiedades esquizo-paranóides ou motivados por ansiedades depressivas, Segal relata dois fragmentos de casos clínicos. No primeiro exemplo, um paciente psicótico internado, desde o desencadeamento de uma crise, parou de tocar violino. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 151 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé obscurecida pelo uso intenso da identificação projetiva. Este período de não-diferenciação implica na pressuposição de que a personalidade não existe como um todo no início. Ou seja, de acordo com Esther Bick, a experiência é vivida pelo bebê como partes não conectadas entre si e, portanto devem ser mantidas unidas por algo que exerça esta função. A pele é sentida como determinando este limite: Mas esta função interna de conter as partes do self depende, inicialmente, da introjeção de um objeto externo, sentido como capaz de cumprir esta função. Mais tarde, a identificação com esta função do objeto substitui o estado nãointegrado e dá origem à fantasia de espaços internos e externos. (Bick, 1967). Estas experiências, segundo Bick, se dão no contexto da amamentação, cujo “objeto ótimo é o mamilo na boca, a mãe que segura a criança, fala com ela e tem um cheiro familiar” (Idem). O conjunto destas experiências sensoriais facilitará o processo de introjeção desta função continente, a qual é sentida concretamente como uma pele que irá conter o ego e o objeto. Frances Tustin compreendeu os estados primitivos da vida psíquica, a partir de seu trabalho com adultos e crianças autistas. Identificou também em adultos neuróticos, áreas da personalidade denominadas “cápsulas autistas”. Estes pacientes, segundo ela, apesar de manterem certo grau de adaptação, conviviam com um “senso tênue de existência”, caracterizado por uma sensação de “irrealidade” Tustin afirma que: “O termo “imagem” para esses estados primitivos é um pouco inapropriado uma vez que a criança, neste estágio, é incapaz de imaginar. Esses estados primitivos parecem ser um repertório de sensações relativamente descoordenadas que são mais sentidas que imaginadas” (Tustin, 1990). 1 152 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo riências sensoriais primitivas que contribuem para a constituição das fronteiras psíquicas e, consequentemente, para a formação de símbolos. As experiências sensoriais iniciais Esther Bick e Frances Tustin contribuíram para a compreensão do processo de constituição das fronteiras psíquicas, a partir das experiências sensoriais que ocorrem nas relações de objeto primordiais. A noção das sensações corporais como constitutivas do ego em seu início estava presente desde os primórdios da psicanálise, segundo Freud: O ego é primeiro e a cima de tudo, um ego corporal, ou seja, o ego deriva das sensações corporais, principalmente, das que se originam da superfície do corpo. Ele pode ser encarado como uma projeção mental da superfície do corpo, além de representar as superfícies do aparelho mental (Freud, 1923, p. 39). O trabalho de Esther Bick aponta para uma fase ainda mais primitiva no desenvolvimento que a posição esquizo-paranóide, desenvolvida por Klein, na qual poderíamos identificar as origens da concepção de espaço interno e externo. A autora propõe a existência de experiências de não-diferenciação entre o ego incipiente e o objeto, que antecederiam as experiências de cisão primária da posição esquizo-paranóide. Afirma que apenas a partir destas experiências podem-se imaginar as operações de cisão descritas por Melanie Klein, já que estas pressupõem uma precária diferenciação entre ego e objeto predominantemente Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 153 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé riais primitivas desenvolvidos por Esther Bick e Frances Tustin repercutiram para a concepção de Thomas Ogden de uma “posição autística-contígua”. Ogden afirma que o conceito de “posição autística-contígua” (1989), consiste em uma organização psicológica mais primitiva do que a posição esquizo-paranóide e depressiva elaboradas por Melanie Klein e têm em comum com estas, o fato de se referirem a “posições” mais do que a etapas no desenvolvimento. Tal como as organizações psicológicas esquizo-paranóide e depressiva, a posição autística-contígua define-se por determinados tipos de ansiedade, formas de defesa e tipos específicos de relações de objeto. Todas possuem uma relação dialética entre si, ou seja, nenhuma delas ocorre isoladamente, mas, criam-se, preservam-se e negam-se umas às outras. No entanto, há momentos no desenvolvimento normal em que uma delas torna-se preponderante sobre as outras. Assim, a posição autistíca-contígua também se faz presente de forma dialética, como mais uma dimensão da experiência, e assim: O modo autístico-contíguo é um modo présimbólico de gerar experiência, preponderantemente sensorial, que provê um bom grau de vinculação da experiência humana e o início do sentimento de lugar onde se produz essa experiência (Ogden, 1989, pg. 341). Segundo Ogden, a palavra “autística” foi escolhida, pois ele identificou nas formas patológicas de autismo uma “versão hipertrofiada dos tipos de defesa, formas de atribuir sentido à experiência e modos de relações objetais característicos da organização autística-contígua normal” (1989, p.343). Afirma que esta escolha não se refere a um sistema psicológico patológico fechado, como pode subentender-se do termo autismo. Por este motivo acrescentou o termo “contíguo”, pois, significa a antítese desta idéia de isolamento e desconexão e, aponta, sim, para 154 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo e de que “a vida seria apenas um sonho” (Tustin, 1990). Ao discutir sobre os estágios primitivos do desenvolvimento, Tustin afirma que a primeira “imagem”1 corporal proprioceptiva define-se por ser de natureza fluida, e que o papel que estas primeiras sensações desempenham para o estabelecimento de um senso de existência é fundamental para um senso de “eu”. Sendo assim, a princípio, antes mesmo da experiência de sentir-se contido pela pele, o “eu sentido” é experimentado em termos de líquidos e gases. Esta hipótese foi construída a partir do relato de pacientes adultos que utilizaram imagens de suas experiências posteriores de fala para comunicar sensações e estados corporais primordiais não verbais. Segundo a autora, “não é surpreendente já que os bebês recémnascidos emergem de um meio líquido e sua primeira alimentação e excreção estão associadas com gases e líquidos” (Tustin, 1990). Citando Spitz, salienta que é como se o recém-nascido tivesse que fazer uma adaptação de ser uma criatura da água para ser um habitante da terra seca. No entanto, em seus estados fluidos, são dominados por terrores fantasísticos e inomináveis que podem ser equacionados ao temor de explodir ou vazar através de buracos. Nestes momentos de terror, os “objetos-sensação” assumem a função defensiva de bloquear os buracos através dos quais o “eu sentido” pode vazar ou irromper. No entanto, tal como na experiência de constituição da “função continente da pele” descrita por Esther Bick, as identificações com situações externas reguladoras (ou seja, os cuidados fisiológicos e afetivos) permitem a constituição da representação de um “sistema de canos”. Os cuidados maternos criariam o sentido de ser capaz de controlar o fluxo de fluidos corporais e, assim, tornam-se um dos precursores de uma consciência transitória de “eu” e “não-eu”. Todos estes desenvolvimentos sobre as experiências senso- Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 155 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé “elementos beta”, “elementos alfa” e a “função alfa”. Estes correspondem a conceitos chave para uma articulação psicanalítica sobre a constituição intersubjetiva da capacidade simbólica. Pode-se inferir, desde a inauguração da psicanálise com Freud, o quanto as interações precoces são fundamentais para a constituição do sujeito. Apesar de Freud tratar muitas vezes de processos que dão à impressão de ocorrerem numa dimensão intrapsíquica, em outros aspectos percebe-se o quanto para ele, o outro já ocupava lugar fundamental na constituição subjetiva. No tema das identificações primárias, Freud (1923, p. 42) admite que na fase oral primitiva, o investimento objetal e a identificação são indistinguíveis. Afirma que o processo em que um investimento objetal tem que ser abandonado, e assim se transforma em investimento narcísico - pois o objeto perdido aloja-se então dentro do ego - é um processo muito freqüente nas fases primitivas do desenvolvimento. Ou seja, o caráter do ego é constituído por este precipitado de investimentos objetais abandonados. Bion investigou os processos elementares de formação dos pensamentos e de um “aparelho para pensá-los”, a partir dos mecanismos de” identificação projetiva” que se dá na relação mãebebê. O conceito de “identificação projetiva” foi desenvolvido por Melanie Klein e nomeado desta forma pela primeira vez em “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides” (1946): Consiste na fantasia primitiva de expulsão de substâncias perigosas do self para dentro da mãe. Junto com os excrementos nocivos, expelidos com ódio, partes excindidas do ego são também projetadas na mãe ou, para dentro da mãe (M. Klein, 1946, p. 27). 156 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo a idéia de superfícies que se tocam. Desta forma, este conceito de posição autística-contígua implica a idéia de algum tipo de relacionalidade desde o início. São estas experiências sensoriais de contiguidade da superfície da pele, por exemplo, da face do bebê ao tocar o seio da mãe, que produzem os rudimentos da experiência do self. Apesar de o autismo patológico ser considerado um reino assimbólico, o modo autísticocontíguo normal é “pré-simbólico”, já que as unidades fundamentalmente sensoriais da experiência que estão sendo organizadas são preparatórias para a criação de símbolos mediados pela experiência do fenômeno transicional (Ogden, 1989, p. 348). A organização e significação destas “unidades fundamentalmente sensoriais da experiência” ocorre através da função materna composta pelos cuidados fisiológicos e engajamento afetivo. W. R. Bion conceituou como capacidade de rêverie esta função que permite a transformação das experiências sensoriais e emocionais, em experiências que possam ser significadas e, portanto, contidas psiquicamente. O processo de transformação das experiências sensoriais em símbolos: a função alfa Após a discussão sobre a constituição das fronteiras psíquicas no contexto das relações de objeto iniciais, o campo para a discussão sobre a emergência dos símbolos se faz presente. Dicutiremos, assim, alguns dos conceitos que compõem a “teoria do pensar” desenvolvida por W. R. Bion: a capacidade de rêverie, os Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 157 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé isto é, de modo a fazer com que o bebê sinta estar recebendo de volta a sua própria personalidade amedrontada, mas de uma forma tolerável – os temores passam a ser manejáveis pela personalidade do bebê. (Bion, 1994, p. 132). A capacidade de simbolização, de pensamentos oníricos, de estar consciente ou inconsciente, e de memória são fatores da função alfa. Assim, o conjunto dos traços mnêmicos é transformado, pelo sistema simbólico da mãe, em linguagem, e a gênese de toda a abstração consiste, também, em um fator da função alfa. Bion delineou a idéia de uma “tela alfa” na qual os elementos alfa podem combinar-se uns com os outros em um composto de elementos alfa interligados. Uma espécie de barreira de contato que separa o consciente do inconsciente, enquanto, ao mesmo tempo, permite algum tipo de contato entre os dois. Caper sugere uma semelhança entre esta barreira de contato e a idéia de Hanna Segal sobre a capacidade de formar símbolos: “Se a função simbólica estiver intacta, pode-se fazer um contato simbólico consciente com o próprio inconsciente, enquanto o inconsciente em si permanece inconsciente.” (Caper, 2002). As impressões sensoriais não-transformadas que, comumente são evacuadas através da identificação projetiva para a mente do analista, no contexto da clínica, são nomeadas por Bion de elementos beta. Caracterizam-se por sua condição concreta e, assim, mantém as impressões sensoriais, da relação com as experiências emocionais, análogas às impressões sensoriais advindas da relação com os objetos concretos. Caper (2002) sugere duas diferenças principais entre elementos alfa e elementos beta: A primeira é que os elementos alfa são capazes de conduzir e de transmitir significado, 158 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo Este mecanismo foi concebido como característico da posição esquizo-paranóide. Refere-se tanto a uma defesa frente à percepção prematura da diferenciação entre o eu e o outro e frente à impossibilidade de reconhecer partes do próprio self, quanto a um processo normal de estabelecer uma comunicação com o objeto, mesmo que ainda numa dimensão de relação de objeto parcial. A teoria bioniana sobre as origens do pensar articula o processo que se dá nas relações precoces entre a mãe e o bebê e que, através da identificação projetiva, transforma as experiências sensoriais e emocionais gradativamente em elementos alfa, ou seja, possibilitando assim que estas se tornem mentalizadas. Bion postulou o conceito de função-alfa como uma função da personalidade que opera sobre as impressões sensoriais e as experiências emocionais, transformando-as em elementos alfa. No início da vida, esta função é exercida pela “capacidade da mãe de estar aberta às projeções-necessidades do bebê” (Grinberg e cols, 1973, p. 78), a capacidade de rêverie. Através desta, ela nomeia e dá forma as vivências do bebê por meio da sua interpretação dos estados internos deste. A consciência depende da função alfa, pois é esta que torna o self capaz de estar consciente de si a partir da experiência de si. Para que ocorra o desenvolvimento de uma função alfa, Bion propõe ser necessário que se estabeleça entre mãe e bebê, um relacionamento no qual seja possível a identificação projetiva normal: Isto significa que o bebê possa despertar na mãe sentimentos dos quais deseja se livrar, tais como o temor de morte, por exemplo. Se o bebê sente que está morrendo, ele pode despertar na mãe o medo de que ele esteja morrendo. A mãe equilibrada consegue aceitar esse temor e agir terapeuticamente, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 159 Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé enquanto os elementos beta, não. A segunda é que, enquanto os elementos alfa podem ser coesos ou se ligar uns aos outros, os elementos beta não podem ligar-se uns aos outros, nem a qualquer outra coisa” (p. 190) Em sua clínica, Bion percebe como muitas vezes, alguns pacientes necessitam que o analista suporte determinados estados emocionais, alocando nestes, partes não reconhecidas de seu próprio self. Neste momento, a função do analista se assemelha a função materna que ele nomeou como função de “rêverie”. Ou seja, o analista irá conter e transformar as partes cindidas e projetadas pelo paciente para dentro dele (analista), tal como a mãe que pode conter as crises e excitações de seu bebê, metabolizá-las e transformá-las em experiências suportáveis. No momento apropriado, o analista oferecerá estes elementos, transformados em imagens ou palavras para a compreensão emocional do paciente. Conclusão O funcionamento psíquico que emerge das experiências corporais e de um mundo de sensações foi foco de estudo de alguns autores pós-freudianos. Alguns fatores serão motores para a constituição deste psiquismo, tal como as frustrações fisiológicas e a ansiedade, que impulsionam o bebê no sentido de uma busca de substitutos para o objeto original e de uma exploração do mundo a sua volta. O simbolismo se constitui a partir das identificações primárias que a criança faz entre os órgãos de seu corpo e seu funcionamento com os objetos à sua volta e, assim, com base no erotismo corporal há um investimento libidinal em direção ao mundo e seus objetos. No decorrer deste processo, distinções entre realidade externa e 160 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 artigo realidade interna, e entre self e objeto deve ter ocorrido, permitindo a estruturação de fronteiras psíquicas. Este é um processo que se dá no contexto intersubjetivo no qual o afeto possui papel fundamental. Apenas na presença de um interlocutor atento, interessado e sintonizado emocionalmente, o bebê pode estabelecer um vínculo baseado no afeto, que servirá como ponte para a emergência de um senso de eu e de outro e para a construção de um mundo de significados compartilhados. Uma relação inicial, de engajamento afetivo, onde o bebê possa alocar suas angústias no cuidador que seja capaz de tolerálas, metabolizá-las e devolvê-las transformadas e significadas, consiste no processo que permite a constituição das fundações do aparelho psíquico. O funcionamento psíquico, neste referencial, é definido como a capacidade de transformar experiências sensoriais e emocionais em símbolos. A simbolização torna-se, então, a capacidade fundamental que permite ao sujeito usar a experiência para aprender sobre si e sobre o mundo, e compartilhá-las com outros. Tramitação: Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Ponde Av. Rodrigo Otávio, 165/203 Gávea – Rio de Janeiro – RJ 22450-060 fone: (21) 2294-7960 e-mail: [email protected] Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007 161 162 Recebido em: 30.06.2007 Aprovado em: 15.08.2007 Referências: BICK, E. A experiência da pele em relações de objeto arcaicas. In: SPILLIUS, E. .B. (Ed.). Desenvolvimento da teoria e da técnica. Rio de Janeiro: Imago, 1991. v. 1., p. 194-198. BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Título orig. Second thoughts. CAPER, R. Tendo mente própria. Rio de Janeiro: Imago, 2002. CINTRA, E. M. de U.; FIGUEIREDO, L. C. Melanie Klein: Estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004. FERENCZI, S. Ontogênese dos símbolos. In:_____. Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 105-108 (Obras Completas). FREUD, S. (1900-1901). A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5). ______ .(1923). O Ego e o Id. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (ESB, 19). ______. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (ESB, 14). GRINBERG, L.; SOR, D.; BIANCHEDI, E. Introdução às idéias de Bion. Rio de Janeiro: Imago, 1973. JONES, E. The theory of symbolism. In:_____ Papers on psychoanalysis, 1916. KLEIN, M. (1930). A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In: _____.Amor, culpa e reparação. Rio * Psicanalista; Doutoranda em Psicologia Clínica PUC-Rio; Mestre em Psicologia Clínica/ PUC-Rio; Especialista em Saúde Mental IPUB/UFRJ; Psicóloga SMS-RJ. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 163 das dificuldades de separação do objeto primário e da conseqüente incapacidade para estar só. A segunda ressalta a esperança que resulta da experiência paradoxal de estar só na presença do objeto. Green e Winnicott são os autores que balizam esta discussão. Palavras-chave: capacidade para estar só; relações precoces; depressão; casos-limite. Abstract Pain and hope are presented in this paper as two possible outcomes of loneliness, according to the early experiences with the primary object. The analysis of pain begins from 164 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 de Janeiro: Imago, 1996, p. 249-264. _____. (1946). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In: _____. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 17-43. OGDEN, T. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. PONDÉ, C. A. Os precursores intersubjetivos do símbolo no processo de constituição subjetiva. 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) - PUC-Rio, 2007. SEGAL, H. Notas sobre a formação de símbolos. In: SPILLIUS, E.B. (Ed.). Desenvolvimento da teoria e da técnica. Rio de Janeiro: Imago, 1991. v. 1. p. 167-184. TUSTIN, F. O desenvolvimento do “Eu”. In: _____. Barreiras autistas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990, p. 174-190. artigo Dor e esperança: duas faces da solidão a partir da experiência precoce com o objeto primário Pain and hope: two sides of loneliness as a result of the early experiences with the primary object Issa Damous* Resumo Este artigo propõe a dor e a esperança como duas possibilidades para a solidão, conforme as experiências precoces com o objeto primário. A primeira ressalta um aspecto patológico a partir de uma certa tendência atual a psicopatologizar a solidão, sobretudo como depressão. Discute-se esse aspecto principalmente na problemática dos casos-limite em função Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 165 Issa Damous nos casos-limite com referência, sobretudo, às conseqüências dolorosas que decorrem das dificuldades de separação do objeto primário, do objeto que não é esquecido como absolutamente necessário (Green, 1975, 1977, 1986,1988). O segundo caminho de discussão diz respeito à esperança e assume um aspecto positivo à medida que faz referência à experiência paradoxal de estar só na presença do objeto, possibilitando naturalmente uma vida genuína e espontânea (Winnicott, 1958). Introdução Verifica-se atualmente uma grande facilidade com que a solidão é nomeada como depressão pelas pessoas que buscam tratamento na área psi. Normalmente psiquiatrizando as suas queixas e atestando uma expectativa por uma conduta medicalizante para as suas dores psíquicas, e até para as suas dores físicas, como nos casos de fibromialgia, os deprimidos vêm sendo a tônica do momento. A escuta clínica dos pacientes no cenário contemporâneo vem testemunhando queixas bastante sofridas a respeito de si mesmos ou das crianças e adolescentes pelos quais são responsáveis. Em geral, eles pedem ajuda para um “nervoso” e “agitação”, referindo-se ao que se passa com eles fazendo menção a uma série de sintomatologias. Entre os exemplos mais comuns dos sintomas enunciados está a insônia, o choro freqüente e aparentemente sem motivo, a impaciência e irritabilidade, o medo de estar com um número maior de pessoas, o desânimo, “cismas” com perseguição, e alguns outros. Além disso, é comum verificar que os pacientes chegam com uma queixa já psiquiatrizada, ou seja, uma queixa que já vêm circunscrita por um diagnóstico: hiperatividade, síndrome do pânico, fobia, depressão, esquizofrenia, etc. Não obstante as diferentes categorizações nosográficas, a depressão é o diagnóstico mais utilizado pelos pacientes para fa166 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 artigo the nowadays tendency to a pathological behavior towards loneliness, especially as depression. This discussion outlines pr particularly borderline patients because of their difficulty in separating from the primary object and their consequent incapacity to be alone. Hope, the other possible outcome studied, is linked to the paradoxical experience of being alone in the presence of the primary object. Green and Winnicott are the main authors referred to in this paper. Keywords: capacity to be alone; early experiences; depression; borderline patients. artigo Dor e esperança: duas faces da solidão a partir da experiência precoce com o objeto primário Pain and hope: two sides of loneliness as a result of the early experiences with the primary object Issa Damous Tomemos inicialmente a palavra ‘solidão’ no dicionário Aurélio (1993). Lá encontramos o seguinte significado: “Estado de quem se acha ou vive só” (Ibid, p. 511). Daí percebermos uma série de derivações que podem ser desdobradas no campo da psicanálise. Por hora, no entanto, nossa proposta será formular dois caminhos de discussão. A partir de uma inquietação com certa psicopatologização da solidão na contemporaneidade, principalmente como depressão, o primeiro caminho proposto diz respeito à uma face patológica da solidão. A depressão, nesse viés, é problematizada Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 167 Issa Damous que consagra o prazer e que, da maneira mais imperiosa, busca suprimir a dor, sem deixar tempo nem espaço para interrogar-se acerca dos meios e dos custos das ações que se realizam na busca dessas metas” (Ibid, p.96). Garcia e Coutinho (2004), ocupando-se dos rumos do individualismo e do desamparo do sujeito contemporâneo, sinalizam como a sociedade de consumo cultua a liberdade individual, e estimula o prazer constante e irrestrito, o que, é claro, não se dá sem conseqüências para o psiquismo. Ehrenberg (1998) vai justamente sinalizar que, paradoxalmente, a experiência psíquica frente a isso será de insuficiência e fracasso. O que acontece hoje, tanto na clínica quanto na cultura de modo mais amplo, parece ser exatamente uma exigência para tão logo diagnosticar a dor e, de preferência, medicalizá-la, aplacando rapidamente o que faz sofrer, e proporcionando felicidade e bem-estar, como se algo diferente disso fosse estar fadado ao fracasso e, portanto, fora da ordem social contemporânea. Nesse contexto, estar só ou viver só na atualidade, ou seja, estar atravessado pela experiência subjetiva de solidão, é estar deprimido. Longe de qualquer possibilidade de uma conotação positiva, a solidão assume a face de um mal dolorido que beira o desespero. Depressão na discussão dos casos-limite: uma face da solidão na contemporaneidade Como o diagnóstico da moda, a depressão vem sendo referida com expressiva facilidade. É de modo muito natural que as pessoas se dizem deprimidas, e que também os profissionais de saúde diagnosticam seus pacientes como deprimidos, além de, na maioria das vezes, lhes recomendarem medicamentos 168 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 artigo zer referência aos seus problemas. Chegando para uma primeira consulta com uma subjetivação nula ou praticamente inexistente acerca do que os faz sofrer, eles anunciam que “sentem” depressão, que “estão” deprimidos, ou que “são” deprimidos, e que precisam de um remédio para “conseguir continuar a vida”, na maioria das vezes não se dando o trabalho de questionar, minimamente, o que os deixa assim. Desse modo, além da sintomatologia, seja ela qual for, e do respectivo diagnóstico, freqüentemente a depressão, os pacientes anunciam também uma terapêutica: a medicalização. A solicitação dos pacientes por uma medicalização, em muitos casos, já vem sendo mantida há alguns anos, sem que ocorra da parte deles uma problematização da necessidade de sua continuação, ou de que uma determinada prescrição medicamentosa possa ser reavaliada, reduzida, alterada e quiçá retirada. É claro que há diferenças a serem consideradas segundo o adoecimento psíquico em questão, mas de modo geral, prevalece a expectativa dos pacientes por uma conduta medicalizante para as suas queixas proferidas, isto é, uma resposta rápida ao sofrimento, o que muito parece preso a um binômio queixa-conduta. Ampliando-se o campo dessa discussão para a cultura contemporânea, verifica-se que a lógica do binômio queixa-conduta também parece desenhar a forma básica de comportamento das pessoas, o que não se refere necessariamente a uma expectativa por prescrições de psicofármacos, mas a uma necessidade de respostas rápidas para o que os incomoda. É nessa perspectiva que Mayer (2001), psicanalista entre muitos outros, que se ocupa do que é próprio ao contemporâneo, circunscreve a sociedade atual como uma sociedade de consumo, sinalizando como as significações e os valores predominantes da cultura privilegiam os objetos às palavras, as ações aos pensamentos, e a satisfação imediata à espera. O autor indica a cultura contemporânea como “uma cultura Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 169 Issa Damous adiante, a expectativa é por uma conduta medicalizante. Trazendo para o campo da psicanálise a intolerância da cultura atual a uma dor de cabeça ou à perda de alguém, e até mesmo à paralisia por não saber que caminho seguir, em que se verifica tão logo um diagnóstico, a medicalização do sofrimento - e assim uma desimplicação de qualquer possibilidade de subjetivação -, encontra-se um indivíduo bastante “preocupado em retirar de si a essência de todo conflito” (Roudinesco, 2000: 19). Em vez de um sujeito do inconsciente, atormentado pelo desejo e pela proibição, o indivíduo contemporâneo deprimido parece buscar na droga, na religião, no culto ao corpo perfeito, na medicalização de sua dor, não tanto uma formação de compromisso e mais uma felicidade da qual está, na verdade, sempre aquém. O que é ainda pior, é que ele dificilmente associa essa busca a uma causalidade psíquica oriunda do inconsciente, dificultando sobremaneira um tratamento psicanalítico. De fato, muitos desses pacientes parecem até mesmo arredios à relação analítica, à interpretação e ao próprio método da associação livre, tornando inclusive questionável se a concepção freudiana de um conflito como núcleo normativo da formação subjetiva seria uma perspectiva adequada para a compreensão de todos os casos de depressão. De modo geral, a problemática neurótica freudiana privilegia a concepção de conflitos intrapsíquicos atrelados à angústia de castração, tendo o processo de recalcamento como o mecanismo psíquico defensivo. Todavia, segundo Pinheiro (2001), há casos de depressão que parecem sinalizar certa distância desta problemática e uma propensão muito maior às subjetividades melancólicas. Para a autora, a construção fantasmática melancólica não tem movimento, “é uma imagem parada e os personagens são anônimos” (Ibid, 77), pois na melancolia, a sombra do objeto recai sobre o ego e ele deixa de ser um precipitado de identificações para se tornar uma 170 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 artigo antidepressivos (Rêgo Barros, in Coser, 2003). Trata-se de algo que se estende tanto para uma população sócio-economica menos favorecida, quanto para uma população mais bem favorecida, e que atravessa tanto os consultórios da rede pública de saúde quanto os consultórios privados. Em ambas as esferas, é possível encontrar pessoas envolvidas com algum tipo de tratamento psíquico por depressão. Isso leva Roudinesco (2000) a situá-la como “a epidemia psíquica das sociedades democráticas” (Ibid, p. 17). É verdade que atualmente muitas informações sobre a depressão circulam na mídia, certamente aumentando o campo de conhecimento das pessoas quanto aos sinais de riscos desse tipo de adoecimento psíquico, e facilitando para elas a realização de um autodiagnóstico. No entanto, à medida que isso produz uma popularização do saber, produz também uma necessidade de nomear, a partir desse saber, o que poderiam ser sofrimentos da vida cotidiana. Desse modo, as pessoas não ficam mais tristes porque se sentem sozinhas e abandonadas, porque perderam um emprego, ou porque um ente querido faleceu, ou porque se separaram de seus companheiros, ou porque estão envelhecendo. Ou até ficam, mas nomeiam esse sentimento como depressão, e fazem questão de que seja assim. E a depressão desse modo diagnosticada, seja pelas próprias pessoas ou pelos profissionais de saúde de diferentes especialidades que as acompanham, é o passaporte para o ingresso na saúde mental, e, muito provavelmente, para a medicalização do sofrimento psíquico. A questão se agrava ainda mais quando o que se apresenta é o quadro de pane psíquica que se descreveria pela paralisação de qualquer componente afetivo, dor ou sofrimento, mecanismo de descatexia radical, melhor identificado, segundo Green (1975, 1977), como depressão primária, na verdade, bastante peculiar aos casos-limite. Também nesse caso, que será destrinchado mais Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 171 Issa Damous sérios problemas de vinculação e desvinculação, forte sensação de irrealidade e repetidas atuações autodestrutivas, aliadas a uma sensação de tédio, vazio e solidão, o que naturalmente é passível de ser nomeado como depressão. Sobre as dificuldades de separação nos casos-limite: a impossibilidade de estar só Green, autor bastante dedicado ao estudo dos casos-limite, aborda, entre outros recortes, as dificuldades ocasionadas pela difícil experiência de separação do objeto primário que esses pacientes enfrentaram em períodos muito precoces de sua existência. Para o autor, esta questão gira em torno do tempo e de uma distância insuficiente eu-objeto no contexto mais precoce da experiência psíquica. Retomando Winnicott, Green (1986) indica a necessidade de um tempo exato para que seja atendida pelo ambiente a demanda de satisfação do bebê: “Quando esse tempo é reduzido a nada pela mãe que atende imediatamente às necessidades do bebê (ou as antecipa), ela o priva da habilidade de elaborar. Se, ao contrário, sua resposta ultrapassa certo limite, isso engendra reações catastróficas no bebê” (Ibid, p. 21), e insere o seu psiquismo ainda primitivo no campo das experiências de desintegração. Assim, o tempo de responder ao bebê deve ser cuidadosa e suficientemente manejado para que se configure no psiquismo, quer a possibilidade de condescender à ação do processo psíquico secundário em oposição à tendência à descarga do processo psíquico primário (Freud), quer a possibilidade de tolerar a ausência da mãe (Winnicott), isto é, atividades psíquicas muito mais complexas. As falhas ou inadequações nesse tempo de resposta são experimentadas pelo bebê como intrusão e/ou abandono, perturbações a que ele terá que reagir, interrompendo a sua experiência 172 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 artigo cópia do objeto (Freud, 1917[1915]). O que se verifica na sociedade de consumo de hoje, segundo ela, é que em vez de ser como um modelo objetal, e assim estar mais propenso ao modelo neurótico de funcionamento psíquico, a necessidade maior é de ter objetos para ser uma imagem, o que acaba produzindo uma propensão maior ao modelo melancólico. Pinheiro acredita que isso ocorre em função, principalmente, o fato de a sociedade de consumo proporcionar poucas alternativas para ancoragem das fantasias e para construção de ideais menos opressores do que aqueles que são ditados pelo consumo de objetos. Logo, se ter o objeto é ser, tal como sugere Pinheiro, então a lógica que passa a orientar as pessoas na cultura contemporânea é o aprisionamento ao objeto, sem que possa haver uma separação dele. Isto implica, é claro, na impossibilidade de elaborar um luto por um objeto que, na verdade, não é perdido. Trata-se por isso de um modelo melancólico colocado na base das organizações psíquicas depressivas. Ora, não seria possível também dizer que seria essa justamente a problemática no cerne dos casos-limite? Nela, o objeto primário está presente o tempo todo, seja por sua intrusão, ou sua inacessibilidade e indiferença, ou mesmo por uma alternância entre estes extremos, o que sinaliza uma experiência ruim de separação desse objeto além de uma série de prejuízos subseqüentes na constituição subjetiva (Damous, 2006). A experiência limítrofe é atravessada pelo que se poderia chamar de um luto primário nunca elaborado, estando por isso atrelada, sobretudo, às angústias de intrusão e/ou abandono. Não obstante, essa experiência ocasiona ainda prejuízos na constituição do vazio psíquico necessário para o favorecimento dos processos de simbolização, e estruturação adequada das fronteiras psíquicas e das fronteiras entre si mesmo e os objetos (Green, 1977). Conseqüentemente, a problemática dos casos-limite, leva os pacientes aí submersos a vivenciarem intensa instabilidade mental, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 173 Issa Damous A inexistência de um espaço de ausência na psique, em função de um objeto intrusivo ou inacessível, produz então conseqüências desastrosas para o desenvolvimento psíquico como um todo. Green verifica prejuízos até mesmo na atividade do pensar, pois sobrevém o sentimento de um buraco na atividade mental, uma espécie de oco psíquico, caracterizado por uma incapacidade de se concentrar e de recordar, induzindo a uma espécie de pensamento compulsivo ou ruminação de pensamentos. Em geral, dois extremos marcam os mecanismos de defesa adotados pelos casos-limite (Green, 1975). Um deles é a normalidade social e o outro é a regressão fusional (ou dependência objetal). Para situar o primeiro extremo, Green inspira-se na descrição de Joyce McDougall (1978) sobre o antianalisando na qual o início do processo analítico fracassa mesmo numa situação analítica assumida. Os objetos deste tipo de paciente estão mumificados, paralisados em sua atividade e sem conseguir sequer atrair a sua curiosidade, ou seja, o investimento objetal não encontra uma reciprocidade do sujeito. No segundo pólo, o da regressão fusional, verifica-se a exigência da capacidade afetiva e empática do objeto, assim como a dependência das próprias funções mentais do objeto. Dentro destes dois extremos transitam pelo menos quatro categorias fundamentais de defesa. Especialmente duas delas são “mecanismos de curto-circuito psíquico” (Green, 1975, p.45). Trata-se da exclusão somática, em que o conflito sai da esfera psíquica e é atuado dentro ou no próprio corpo através de somatizações, e da expulsão pela via da ação, em que o conflito também sai da esfera psíquica para ser atuado fora (em contrapartida à atuação dentro que ocorre nas somatizações). O efeito destes mecanismos é de uma “cegueira psíquica”, em que, tal como afirma Green (Ibid): “O paciente se eclipsa diante de sua realidade psíquica, quer das fontes somáticas de seu impulso, quer de seu ponto de 174 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 artigo de continuidade do ser. No entanto, a pior dificuldade para a psique é que os excessos do objeto comprometem enormemente a constituição de uma ausência na psique, ou do que se poderia chamar de espaço psíquico pessoal, e principalmente os processos de simbolização que daí derivam. Vejamos melhor do que se trata. De acordo com Green (1988), ao longo do processo de constituição psíquica, o objeto primário deve paradoxalmente estimular o movimento pulsional do bebê e dar contorno às pulsões, contendo-as. Nesse percurso, é extremamente importante que o objeto possa deixar-se esquecer como objeto constituinte da estrutura psíquica, isto é, que seja uma presença ausente. Trata-se na verdade do que o autor considera um dos aspectos estruturantes do trabalho do negativo que se opera na psique. Quando essa experiência não ocorre, o objeto perverte a sua função paradoxal provocando o que se chama de angústia de separação, pois ele fica presente o tempo todo, por excesso de presença ou de ausência, o que no fundo é a mesma coisa. À medida então que o objeto não é esquecido, o que é experimentado é ausência de ausência, ou excesso de presença, e o que se sucede é “uma espécie de coalescência entre o objeto e a pulsão; e o objeto, em vez de tornar a pulsão mais tolerável, é o que a torna mais intolerável - sem solução, sem compromisso” (Ibid, p. 387). Desse modo, o objeto inadequado não gera representação, prejudica os processos simbólicos de forma geral e favorece todas as formas de desenlace extra-representativos: actings out, condutas perversas, toxicomanias, depressões, psicossomatoses. Adentramos consequentemente no âmbito da dialética expulsiva, no contexto da analidade primária, em que o objeto não pode ser engolido ou cuspido, ficando, portanto entalado, obstipado (Figueiredo e Cintra, 2004), sem possibilidade de separação. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 175 Issa Damous pela pulsão de morte. Daí podemos depreender como os casos-limite estão amalgamados na sua possibilidade de estar no mundo às inadequações das experiências psíquicas mais precoces com o objeto primário insuficientemente bom – aquele que, por sua presença intrusiva ou inacessível, não permitiu-se apagar pelo trabalho do negativo. As dificuldades de separação do objeto primário não permitem, portanto, colorir positivamente a experiência de solidão. Esta se traduz para os casos-limite como uma dor silenciosa, aproximando-os de uma normalidade social, ou como uma dor turbulenta, aproximando-os da regressão fusional. De todo modo, o que vigora nesses casos é a dor da impossibilidade de constituir-se como um eu mais ou menos delimitado e diferenciado no mundo, de ser si-mesmo, e, em última instância, na dor da impossibilidade de estar só. Em contrapartida, como poderíamos pensar numa experiência de solidão efetivamente positiva? Esperança: uma outra face para a solidão Winnicott nos afirma que é preciso ter capacidade para ficar só e que esse “é um dos sinais mais importantes do amadurecimento do desenvolvimento emocional” (Winnicott, 1958, p. 31). Ficar só, segundo ele, é uma habilidade que precisa ser desenvolvida e que se refere fundamentalmente a uma sofisticação cuja base é a experiência precoce de estar só na presença de alguém. Estar, portanto, confinado solitariamente não implica necessariamente, em ser capaz de estar só. Pode-se ler em Winnicott pelo menos dois momentos da solidão em seu aspecto positivo: aquela mais sofisticada que acontece num nível maturacional já desenvolvido, cujas relações se estabelecem já numa triangulação, e aquela menos sofisticada, 176 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 artigo entrada na realidade externa, evitando os processos intermediários de elaboração”. A cegueira psíquica diz respeito à localização das causas de um sofrimento psíquico fora da vida anímica, seja no corpo ou no mundo externo, sem que exista um sujeito capaz de se responsabilizar por estas causas ou se engajar em suas conseqüências. Por isso mesmo alguns autores chegam a denominar estes casos sob o termo patologia do ato, sendo as compulsões a forma mais nítida como aparecem na atualidade (Gondar, 2001). Sendo assim, não é possível um contato autêntico com a realidade psíquica desse sujeito eclipsado, pois tanto as suas somatizações quanto as necessidades de atuações ficam supercatexizadas. Green (1977) esclarece que mesmo as fantasias, sonhos e palavras podem assumir a função da ação, pois o que não é tolerado em última instância é a suspensão da experiência. Esta não pode ser interrompida em razão destes pacientes acreditarem que “nenhuma criação, nenhum conhecimento pode emergir sem a experiência. A suspensão é equiparada à inércia” (Ibid,p. 82), o que terminantemente não é tolerado por eles. Os outros dois mecanismos de defesa apontados por Green “são mecanismos psíquicos básicos” (Green, 1975, p. 45) que incluem a clivagem, responsável pela divisão psíquica que torna inacessível uma parte da realidade psíquica (uma condição para a formação de um duplo na psique), e a descatexia radical ou depressão primária, uma tendência de fato radical para o estado zero, à indiferença, isto é, uma tendência que não está nem mesmo à serviço de um egoísmo, mas de uma falta de empatia pelo objeto e de um interesse do próprio ego nele mesmo, podendo restar apenas “um anseio por desaparecer: ser atraído para a morte e para o Nada” (Green, 1986, p.13). O resultado é um espaço pessoal encapsulado, um self silencioso, aspirando a não-ser, atrelado ao domínio de um narcisismo negativo, ferido, doído, catexizado fundamentalmente Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 177 Issa Damous que a compreensão de si mesmo como eu estou só decorre já de um sentimento estabelecido de eu, ou seja, um eu sou. O sentimento de ser é um nível de crescimento emocional em que a integração do indivíduo como uma unidade que contém um mundo interno diferenciado do mundo externo já é um fato. Nos primórdios do eu sou, diz Winnicott, “o indivíduo é, por assim dizer, cru, não defendido, vulnerável, potencialmente paranóide” (Ibid, p.35) e por isso precisa do ambiente protetor, disponível e consistente, em toda sua suficiência, adaptado às suas necessidades, o que naturalmente também implica em falhas. Onde podemos dizer que, além do ponto de vista do bebê em que estar só na presença da mãe implica em não perceber a mãe que está presente, do ponto de vista da mãe, é necessário que ela permita ao bebê não ser percebida, ou seja, que ela suporte não ser percebida. É essa perspectiva da experiência, no decorrer do processo maturacional, que proporciona o estabelecimento de um meio interno, de um sentimento de eu, no qual a presença real do objeto pode ser então dispensada. O objeto primário absolutamente necessário num primeiro momento pode ser finalmente esquecido. Para Winnicott, o fato de que um bebê conseguiu estar só na presença do objeto nos momentos mais arcaicos da sua existência, e por um grande número de vezes, significa que está dada “a base para uma vida que tem realidade em vez de futulidade” (Ibid, p. 36), pois, ademais, o indivíduo estará constantemente capacitado para redescobrir o que ele chama de impulso pessoal. Estar só na presença de alguém, portanto, como uma primeira experiência paradoxal é absolutamente benéfico para a constituição subjetiva saudável. Marca especificamente a esperança de uma vida genuína em toda a sua potencialidade. Issa Damous 178 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 artigo mais primitiva, mas nem por isso menos importante, e, muito pelo contrário, é essencial para o que virá depois. Estar só nesse nível mais primitivo do desenvolvimento emocional implica em estar só, como lactente, na presença de alguém. Trata-se de uma experiência de ausência em presença que evoca a experiência paradoxal fundante da constituição subjetiva. A discussão de Winnicott sobre esta questão gira no âmbito das relações de objeto anaclíticas, em termos do ele chama de ego relatedness, ou seja, no âmbito da pulsão de auto-conservação, cuja relação se dá com base no cuidado parental, no apoio que esse cuidado oferece. Esse é um tipo muito especial de relação e bastante valorizado dentro do escopo teórico-clínico winnicottiano. Implica numa provisão ambiental que oferece um holding confiante e consistente, suficientemente bom e capaz, por isso mesmo, de operar como facilitador do longo percurso do desenvolvimento e amadurecimento emocional do bebê. No contexto ego relatedness de relação, a presença do objeto é importante para o bebê pois supõe-se que esteja suficientemente adaptado às suas necessidades, disponível consistentemente inclusive para os impulsos do id e proporcionando assim a experiência de continuidade do ser. O oposto disto seria o bebê precisar reagir às contingências externas e tensionar, desfavorecendo, portanto, a expressão do gesto espontâneo, isto é, prejudicando uma verdadeira experiência pessoal. Para Winnicott, a descoberta de uma vida pessoal própria ocorre justamente na presença do objeto. É desse modo que a criança poderá relaxar, estar não integrada e até devanear. Há que se ressaltar ainda o aspecto precioso para Winnicott de Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 179 Issa Damous 180 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007 Tramitação: Recebido em: 30.06.2007 Aprovado em: 15. 08.2007 R. Visconde de Pirajá, 04/ sl. 507. Ipanema – Rio de Janeiro – RJ 22410-001 fone (1) 2267-3058 e-mail: [email protected] COSER, O. Depressão: Clínica, crítica e ética. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. DAMOUS, I. Os casos-limite e as falhas ambientais precoces. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia clínica) – PUC-Rio, 2006. EHRENBERG, A. (1998). Introduction. L’individu souverain ou le retour de la nervosité. In:____ La fatigue d’être soi: dépression et societé. Paris: Odile Jacob, p.9-23, 2000. FIGUEIREDO, L. C. e CINTRA, E. Lendo André Green: o trabalho do negativo e o paciente limite. In: Cardoso, M. (org.) Limites. São Paulo: Escuta, p.13-58, 2004. FREUD, S. (1917[1915]). Luto e melancolia. Rio de janeiro: Imago, 1996. p.249-263 (Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 14). GARCIA, C. e COUTINHO, L. Os novos rumos do individualismo e o desamparo do sujeito contemporâneo. Psychê, ano VIII, nº 13. São Paulo, p.125-140, 2004. GONDAR, J. (2001) Sobre as compulsões e o dispositivo analítico. Revista Agora: estudos em teoria psicanalítica. Pós-graduação em *Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ, Professora Titular da Universidade de Fortaleza. ** Psicanalista; Doutora em Saúde Coletiva /IMS/UERJ; Professora Adjunta da Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 181 Em nome da solidão: a capacidade de estar só como expressão do amadurecimento de si In the name of solitude: the capacity of being alone as 182 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 teoria psicanalítica / UFRJ. Vol. IV, nº 2. Rio de Janeiro: ContraCapa, julho-dezembro, p.25-35, 2001. GREEN, A. (1986) Introdução. In:_____. Sobre a loucura pessoal. Trad. Carlos Alberto Pavanelli. Rio de Janeiro: Imago, p.9-22, 1988. _____. (1975) O conceito do fronteiriço. In:_____. Sobre a loucura pessoal. Trad. Carlos Alberto Pavanelli. Rio de Janeiro: Imago, p.66-89, 1988. _____. (1977) O analista, a simbolização e a ausência no contexto analítico. In: _____. Sobre a loucura pessoal. Trad. Carlos Alberto Pavanelli. Rio de Janeiro: Imago, p.36-65, 1988. ______. (1988) Seminario sobre el trabajo de lo negativo. In:_____. El trabajo de lo negativo. Buenos Aires: Amorrortu editores, p.386392,1995. MAYER, H. (2001) Passagem ao ato, clínica psicanalítica e contemporaneidade. In: Cardoso, M. (org.) Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: NAU Editora: FAPERJ, p.81-101, 2001. McDOUGALL, J. (1978) O antianalisando em análise. In:_____. Em defesa de uma certa anormalidade. Teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, p.83-97, 1983. PINHEIRO, T. Narcisismo, sexualidade e morte. In: Cardoso, M. (org.) Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: NAU Editora, FAPERJ, p.69-79, 2001. ROUDINESCO, E. (1999) Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2000. WINNICOTT, D. (1958) A capacidade para estar só. In:_____. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Trad. Irineo C. Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, p.31-37, 1983. artigo Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 183 Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel Em nome da solidão: a capacidade de estar só como expressão do amadurecimento de si In the name of solitude: the capacity of being alone as a way of growing-up Karla Patricia Holanda Martins Maria Regina Maciel Discutiremos o tema da solidão associando-a ao amadurecimento de si que resguarda um espaço privado na presença do outro. Esta vertente pode ser sustentada a partir do conceito de Winnicott – “capacidade de estar só” – em que o self, elemento dinâmico da cultura, pode estar com o outro sem ser invadido, numa comunicação sensível. O autor pressupõe condições fundamentais para o amadurecimento, entre as quais a experiência de continuidade vivida pelo bebê no momento de dependência absoluta, momento em que as fronteiras entre o eu e o não-eu estão diluídas. Ou seja, inicialmente o bebê é com o outro e processualmente ele vai conquistando a capacidade de estar só. Winnicott enfatiza uma onipotência narcísica que é fundamental para a experiência de ilusão presente, por exemplo, na brincadeira. O brincar está ligado a uma experiência ilusória que vai da onipotência ao jogo compartilhado. Vale lembrar que sua teoria prioriza tanto uma concepção de desenvolvimento ou integração do self quanto uma concepção de fusão originária, na qual não existe ainda um eu e um não-eu. Não estamos, portanto, aqui nos referindo a uma concepção 184 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 artigo a way of growing-up Karla Patrícia Holanda Martins* Maria Regina Maciel** Resumo O presente artigo se fundamenta na concepção da capacidade de estar só winnicotiana. Propõe discutir a solidão, fruto do que poderíamos denominar, ainda nesta perspectiva, de “amadurecimento de si”. Pensar a presença da solidão no setting analítico e alguns dos possíveis manejos transferenciais, assim como discutir a solidão no contexto da cultura, são pontos centrais deste artigo. Palavras-chaves: solidão, “amadurecimento de si”, transferência, brincar, cultura Abstract The present work is based on the idea of solitude developed by Winnicott. Its aim is to discuss the idea of solitude as a result of what could be called “growing up”. To think the presence of solitude in the analytic setting and some possible ways of dealing with transference, as well as to discuss the solitude in context of culture, are the main aspects of the current article. Key-words: solitude, growing up, transference, playing, culture artigo Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 185 Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel psicanalítica, tentar resgatar uma comunicação sensível que remete à não-integração inicial relativa a este primeiro momento em que a relação eu/não-eu confunde limites e linhas de demarcação. Isto traz repercussões clínicas que, de certa forma já estavam indicadas nos textos de Freud. Referências à clínica: solidão e medo do colapso Freud, nos seus artigos sobre a técnica, propõe uma virada no trabalho com a resistência do paciente. A transferência é colocada no centro do trabalho de manejo do analista e da produção de novos sentidos do analisante. Recomendações explícitas: as regras não antecedem ao jogo, cada um decidirá, a cada jogada, o próximo lance. Assim, a transferência pode ser pensada como um espaço intermediário de circulação dos objetos criados pelo paciente na relação com o analista, espaço da brincadeira, o playgroud (Freud, 1914, p.201). Aqui aprendemos que o brincar está na raiz da temporalidade em jogo no processo de subjetivação: a transferência poderia se apresentar numa aliança com as experiências do sentir e da criação, mas poderia também resvalar para os domínios da morte e do vazio. O manejo do analista seria fundamental na escolha do destino do “circuito pulsional”. Em “Recordar, repetir e elaborar” (1914), um texto sobre a compreensão do tempo para comunicar algo ao analisante, Freud nos alerta que a condição número um para uma experiência não-intrusiva na análise é o respeito ao tempo de elaboração (ducharbeiten) do paciente. Com Winnicott aprendemos a radicalidade do respeito à não-comunicação, sob pena de violar o ser com seus segredos e silêncios. Freud (1912b) recomenda que o analista seja “opaco aos pacientes e, como um espelho, não mostre nada além do que 186 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 artigo tradicional de jogo que supõe regras e convenções; regras que apontam para um terceiro ou uma ordem simbólica pré-existente intermediando a relação entre os sujeitos. Na perspectiva winnicotiana, o self pode brincar sem ser invadido por regras. Pode haver aí uma comunicação anterior à comunicação por símbolos. Sua concepção de brincadeira supõe uma comunicação que remete à natureza do corpo, da sensibilidade e da poesia. Entendemos que o self na teoria de Winnicott (1958) nos leva a pensar que o indivíduo pode ser com o outro, e, neste aspecto, podemos pensar a solidão com um olhar mais “positivo” do que quando associada a um isolamento - fruto do medo de uma possível desintegração de ego. O essencial da teoria winnicotiana é apontar para o fato de que, se o bebê tiver a experiência de continuidade do sentimento de ser, pode experimentar a não-integração inicial – no qual não se tem fronteiras delimitadas entre eu e não-eu – num movimento criativo. Por outro lado, se não tiver essa experiência, devido à ameaça de invasão ou ao abandono, poderá ocorrer, por defesa, uma experiência de fechamento sobre si mesmo. No caso da primeira possibilidade, podemos estar frente ao outro em silêncio, sem negá-lo. O self pode reconhecer a dependência sem negar sua autonomia, “já que a dependência é um fato da vida” (Winnicott, 1994, p.71). O self é incomunicável e, como já afirmado, elemento dinâmico da cultura. Referimo-nos a uma possibilidade de brincadeira que antecede a instauração do espaço interno-espaço externo, brincadeira na qual as fronteiras são tênues. Isto porque o que há neste momento é um vislumbre de alteridade. Esta brincadeira pode enriquecer o self que, por seu turno, pode vivenciar experiências criativas. Nesta concepção, a alteridade pode ir se instalando processualmente, sem uma demarcação rígida. Acreditamos, desta forma, que cabe, por exemplo, à clínica Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 187 Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel morte, no medo da loucura e do vazio. Ao longo do trabalho com esses pacientes, caberia ao analista permitir, por exemplo, que o vazio – neste texto considerado por Winnicott como sinônimo de “nada acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido” (1994[1963b], p.75) – seja vivenciado como possibilidade de se transformar em algo positivo, criativo. Afinal, o vazio, segundo o autor, pode ser tomado também enquanto “um pré-requisito para o desejo de receber algo dentro de si” (idem, ibidem). De forma a ilustrar que a experiência da não-integração nem sempre é utilizada adequadamente no setting analítico, Winnicott descreve o caso de uma jovem paciente que “deitava-se inutilmente no divã e tudo que podia fazer era dizer: ‘Nada está acontecendo nesta análise’” (p.75). Em alguns momentos da clínica nos deparamos com a recusa de determinados pacientes de utilizarem o divã, sob a alegação do medo da solidão ali experimentado. Como dito anteriormente, é necessário que o analista compreenda o tempo de cada paciente. Levando-se em consideração esta variável, pode-se indagar sobre o papel do rosto do analista na elaboração criativa deste momento de encontro com o temor do colapso. Winnicott nos diz que quando a criança olha o rosto da mãe, o que normalmente o bebê vê é ele mesmo. É estabelecida assim uma continuidade entre a apercepção criativa – registro de uma troca sensível com a mãe – e a percepção, como se o bebê assim dissesse: “Quando olho, sou visto; logo, existo. Posso agora me permitir olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a minha apercepção e também percebo. Na verdade, protejo-me de não ver o que ali não está para ser visto (a menos que esteja cansado)” (1975[1967a], p.157). Mas pode também acontecer que a mãe reflita apenas seu próprio humor ou, pior ainda, a rigidez de suas próprias defesas. Assim muitos bebês têm uma longa experiência de não receber de volta o que estão dando; experiência que se 188 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 artigo lhe é mostrado” (p.157). No texto “O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”, Winnicott nos propõe o rosto como metáfora da presença de uma alteridade criativa. Neste ponto podemos indicar que com sua obra fica definitivamente claro que o analista terá um papel ativo na criação dos novos sentidos. Guardadas as diferenças de ambas as proposições, insistiremos nestas duas metáforas para pensar no papel de rosto do analista no percurso de uma análise, sem nos esquecermos que “a significação do espelho real está principalmente em seu sentido figurativo” (Winnicott, 1975 [1967a], p.162). No texto “O medo do colapso” (Breakdown) (1963b), Winnicott apresenta algumas variantes na clínica das agonias primitivas de determinados pacientes, entre elas: a perda da capacidade de relacionar-se com os objetos, do senso do real, do conluio psicossomático, do retorno a um estado não-integrado e da queda. Neste texto nos adverte que não são todos os pacientes que sentem o medo do colapso. O colapso se acha relacionado às experiências passadas do indivíduo e aos caprichos do ambiente. Os pacientes não se queixam deste medo desde o início do tratamento até que se estabeleça a dependência. É nesta área que os fracassos do analista desencadeiam o medo, posto que o ego pode se organizar contra a sua própria precariedade, mas não consegue se organizar contra o fracasso ambiental. Deste modo o medo clínico do colapso é um medo que já foi experienciado. Mesmo considerando que em alguns momentos precisa se dizer isto ao paciente, a experiência original da agonia primitiva só pode cair no passado (ser integrada) com a condição de que o ego possa reuni-la dentro de sua própria e atual experiência temporal, fato que dependerá do bom desempenho do analista. Em outras palavras, o analista pode levar o paciente a experimentar a não-integração sem que isto desencadeie o medo da desintegração. O medo do colapso encontra correspondentes no medo da Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 189 Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel contexto da regressão em que o divã é o analista (grifos do autor, 2000 [1954], p.385). O trânsito criativo entre a representação e o ser, implicados também no uso deste, depende das possibilidades do paciente de estar só; do contrário, a solidão ali experimentada remeterá o sujeito ao medo do colapso, ao isolamento, ao medo de se perder. Em outras palavras, quando a capacidade de estar só ainda não foi construída, a insistência do analista em ‘ausentarse’ pode violar a necessidade do paciente de reservar uma área de segredo e, deste modo, “subitamente nos tornamos não-eu para o paciente, e então sabemos demasiado, e ficamos perigosos porque estamos demasiado próximos na comunicação com o núcleo central quieto e silencioso” (1983 [1963a], p.172). Também em 1963, Winnicott faz uma descrição clínica da experiência de uma paciente sua que, na infância, teria tido o seu caderno secreto violado por sua mãe. Toma este exemplo como ilustração de um tempo de amadurecimento desta paciente quando ocorre um sofisticado jogo de esconder: “é uma alegria estar escondido mas um desastre não ser achado” (op. cit., p.169, grifos do autor). Em outras palavras, há um self que remete à solidão essencial do sujeito que, se por um lado, necessita permanecer incomunicável, por outro, precisa ser reconhecido. Na rica manutenção dos seus paradoxos, encontramos na obra winnicottiana a proposição de que na mesma área em que são vividos os equívocos e as falhas do analista o paciente é apresentado às qualidades do objeto. Se o analista sobrevive, pode obter êxito mesmo quando falha. Progressivamente, a dependência pode se tornar um fato de vida. O modelo clínico de Winnicott segue o processo de amadurecimento por ele proposto: da dependência absoluta à independência, evoluindo do manejo para a apresentação de objeto. Deste modo, afirma: 190 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 artigo traduz em vazio enquanto um dos possíveis nomes da solidão. Winnicott conclui: “Eles olham e não vêem a si mesmos” (op. cit., p. 154). Embora os bebês procurem outras maneiras de obter de volta algo de si mesmos, a ausência da troca significativa atrofia a capacidade criativa do bebê e ele se acostuma com a idéia de que o que é visto é o rosto da mãe, não é um espelho. Assim, a percepção toma o lugar da apercepção – toma o lugar do que poderia ser uma comunicação sensível e silenciosa entre ambos; neste caso, ao invés de usufruir da experiência de sentir-se real, tornando-se espontâneo, o bebê se preocupará em conhecer o objeto e pensar acerca das suas ações. Assim, alguns destes sujeitos constroem estratégias intermediárias; por exemplo, não abandonam a esperança e passam a estudar o objeto na tentativa de predizê-lo (estudam os seus movimentos, humores, etc.), fazem tudo o que é possível para torná-lo significativo, o que não ocorreria se este apenas pudesse ser sentido; “(...) estudam as variáveis feições maternas, numa tentativa de predizer o humor da mãe, exatamente como todos estudamos o tempo” (op. cit., p.155). Deste modo, o bebê aprende a fazer uma previsão, afastando-se do contato com suas necessidades e da espontaneidade; uma previsibilidade que é precária e que força o bebê aos limites da sua capacidade de permitir acontecimentos. Assim elegendo uma defesa ao caos, organizará uma retirada e não mais olhará, “exceto para perceber como defesa” (idem, ibdem). Poder-se-ia, neste ponto, indagar se nestes momentos a insistência do uso do divã funcionaria apenas como signo da rigidez do rosto-analista – caprichos do ambiente - ao invés de funcionar como espelho, condição da instauração de processos criativos. No texto “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico” (1954), Winnicott faz uma importante referência ao uso do divã em dois diferentes contextos: em situações em que o divã pode, nos sonhos e nos pensamentos do paciente, representar o analista, seu corpo, seus braços, mãos, etc.; e no Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 191 Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel mitaria uma estrutura psíquica, afirmação esta de conseqüências significativas para o manejo analítico e para a concepção de cultura. A solidão e a cultura As reflexões acerca da possibilidade de experimentar a solidão sem isolamento têm fortes implicações tanto para a clínica psicanalítica quanto para a compreensão das relações entre os modos de subjetivação e a cultura. Terminaremos este artigo explorando as relações entre a solidão do ser e a contenção advinda do ambiente suficientemente bom. A contenção é apresentada progressivamente e estabelece relação com o ser. Em outras palavras, é suposto aqui um outro que não vem em oposição assimétrica, mas que dá forma ao ímpeto da criança. Afinal, como já afirmamos no início deste texto, o self é dinâmico e potencialmente criativo. Assim, necessita resguardar um espaço em que não seja “invadido” pela cultura. No texto “A localização da experiência cultural” encontramos a afirmação de que a cultura não é só aquilo a que nos subordinamos. Afinal, também não criamos sem ela. Em suas palavras: “A integração entre a originalidade e a aceitação da tradição como base da inventividade parece-me apenas mais um exemplo, e um exemplo emocionante, da ação recíproca entre separação e união” (Winnicott, 1975 [1967b], p. 138). Phillips desenvolve a noção de cultura em Winnicott, ao dizer que: Nos escritos de Winnicott, a cultura pode facilitar o crescimento, como a mãe; [...] o homem só pode encontrar-se na relação 192 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 artigo Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado do complexo de rosto que reflete o que há para ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar no meu trabalho, tendo em mente que, se o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá o seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se para relaxamento (1975 [1967a], p.161). Seus textos nos alertam para trabalhar, além da narratividade, a sensibilidade. Uma sensibilidade criativa. O silêncio - do paciente ou do analista - por exemplo, pode dizer respeito a uma relação que é condição de possibilidade da existência de um self criativo. Esta valorização de um estado fusional, próprio da onipotência narcísica, junto com um limite necessário, mas que se dê aos poucos, estão inteiramente associados às noções de “experiências de desilusionamento” e de “processo de integração do ser”. Entendemos que a idéia de integração propõe que a mente humana organiza-se aos poucos. Podemos dizer que integração se refere ao processo de integrar certas experiências à personalização – experiências temporais, de limites corporais, enfim, experiências que o bebê vai tendo ao ser cuidado pela mãe e outros. A integração vem de uma não-integração primária. Por seu turno, a personalização existe quando uma psique habita o soma, o que significa que “o bebê passa a sentir que seu corpo constituise nele mesmo (o bebê) e/ou que seu sentimento de self centra-se no interior de seu próprio corpo” (Abram, 2000, p. 138). Há aqui uma noção de processo e não de momento diante do qual se deliCad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 193 Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel quando esta experiência pode fazer aliança com a espontaneidade experimentada numa relação criativa. Se, por um lado, há uma espécie de solidão inerente ao self que não se comunica, por outro, a solidão fruto de um amadurecimento de si, depende que o agir humano, construído nas relações de reciprocidade do eu com o outro, seja reconhecido na cultura no qual se insere. Em outros termos, a solidão conforme compreendida neste trabalho não compartilha de um sentimento de isolamento, muitas vezes avassalador. A solidão aqui é uma expressão do amadurecimento de si. É uma conquista. Karla Patrícia Holanda Matins Rua Pascoal de Castro Alves, 1044 Papicu - Fortaleza- CE 60175-575 Fone (85) 88989678 e-mail: [email protected] Maria Regina Maciel Rua Visconde de Pirajá 3/804 194 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007 com os outros e na independência ganha mediante o reconhecimento da dependência. [...] para Winnicott o homem seria um animal dependente, para o qual o desenvolvimento – a única ‘coisa dada’ de sua existência – era a tentativa de tornar-se ‘isolado sem ser insulado’ (Phillips, 1988, p. 7). Podemos dizer que o sentimento importante do sujeito para com a cultura e para com o outro que o impede de sucumbir à desintegração é o de responsabilidade, que vai se tecendo com a contínua “sobrevivência” da mãe aos impulsos da criança. Quais conseqüências trazem essas afirmações? Primeiro: a relação com a cultura não depende de nada transcendente ao próprio homem, e sim é fruto de interações concretas entre ambos. Segundo: não depende tampouco de um único momento estruturante, posto ser uma relação que se dá num processo. Por fim, não há um movimento em si contrário do indivíduo para a cultura e vice-versa. Ter atingido o status de um self unitário não significa que o processo de integração chegou ao fim. Este fim do fluxo só se dá na morte. Afinal, o crescimento emocional ocorre através de idas e vindas incessantes. Qualquer estágio do desenvolvimento é alcançado e perdido inúmeras vezes; idas e vindas testemunhadas na clínica. Da mesma forma, é importante ressaltar que a independência almejada, nunca é absoluta. O indivíduo sadio nunca passa da dependência absoluta para o isolamento. Ele se relaciona de tal modo com o ambiente que ambos se tornam interdependentes. No texto foram ressaltadas as possibilidades da solidão, * Psicanalista; Membro Efetivo/CPRJ; Professora: Doutora em Psicologia Clínica/USP-SP. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 195 Ipanema – Rio de Janeiro – RJ 22410-001 fone (21) 22878155 e-mail: [email protected] Tramitação: Recebido em: 30.06.2007 196 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 Aprovado em: 15.08.2007 Referências: ABRAM, J. A linguagem de Winnicot: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000. FREUD, Sigmund (1912a). A dinâmica da transferência. Rio de Janeiro: Imago, 1984. p. 131-143 (Edição standard brasileira das obras completas, 14). _____. (1912b). Recomendações aos médicos que exercem psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1984. p. 147-159 (ESB, 14). _____. Recordar, repetir e elaborar. Rio de Janeiro: Imago, 1984. p. 191-203 (ESB, 14). PHILLIPS, A. Winnicott. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1988. WINNICOTT, D. W. (1954). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico. In: Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000. _____. (1958). A capacidade para estar só. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983, p. 31-37. _____. (1963a) Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983, p. 163-174. _____. (1967a). O papel de espelho da mãe e a da família no desenvolvimento infantil In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 153-162. _____. (1967b) A localização da experiência cultural. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 133-152. _____. (1963b). O medo do colapso (breakdown). In: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 197 Neysa Prochet artigo Quem Conta um Conto Promove um Encontro. Psychoanalysis and storytelling: a shared experience in search of one’s own history Neysa Prochet* Resumo Enfatizamos a importância dos trânsitos emocionais decorrentes das narrativas apresentadas no setting, tanto pessoais como da cultura, e também sua capacidade de evocar imagens mentais no narrador e no ouvinte, no curso da relação analítica. As histórias e imagens a elas relacionadas permitem o acolhimento de uma integralidade sensorial da experiência relatada e oferecem uma moldura cognitiva e afetiva para que uma experiência sem palavras possa ser nomeada e compartilhada. Palavras-chave: clínica psicanalítica, , literatura, narrativa, espaço potencial, Winnicott. Abstract We emphasize the importance of the current emotional traffics derived from the narratives (not only personal ones but also cultural narratives) created into the clinical setting, its effects in the analytic relationship and also its capacity of evoking mental images in both analyst and patient. The 198 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo stories and its images permit a sensorial integrality of the related experience and they offer a cognitive and affective frame that allows to name and share a wordless experience. Key-words: Psychoanalytical clinic,literature, narrative; potential space, Winnicott. artigo Quem Conta um Conto Promove um Encontro. Psychoanalysis and storytelling: a shared experience in search of one’s own history Neysa Prochet Há histórias de todas as espécies. Algumas nascem ao serem contadas; sua substância é a linguagem e, antes que alguém as ponha em palavras, são apenas uma emoção, um capricho da mente, uma imagem ou uma reminiscência intangível. Outras chegam completas, como maçãs, e podem repetir-se até o infinito sem risco de ter seu sentido alterado. [...] E há histórias secretas que permanecem ocultas nas sombras da memória. [...] Por vezes, para exorcizar os demônios de uma recordação, é necessário contá-la como um conto. (Allende, 1991, p.189). Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 199 Neysa Prochet Prólogo Tadeu e os elefantes Tadeu nunca achou estranho morar com um elefante. Estranhos eram seu pai e sua mãe. Cada um de um jeito, mas definitivamente estranhos. A mãe era clara e quente, sufocante mesmo. Tadeu a via se afligir com qualquer coisinha, lendo livros, procurando médicos, comparando opiniões, cheia de cuidados, cerceando-o com recomendações. Aquilo o incomodava tanto quanto a pata do elefante que cismava em pousar no seu peito, quase sempre. O elefante, um intrometido, adorava os medos da mãe. Bastava ela começar a falar, que o elefante vinha ouvir, aboletado nele. Tadeu ficava imaginando que morrer de todas as doenças inventadas pela mãe ao menos o livrariam daquele elefante gordão sentado sobre ele. Noutro dia, há poucas semanas, a mãe o mandara, por nada, dormir de dia. Precisava repousar, dissera, parecia doente. Doente nada. Cansado do paquiderme e das doenças assombradas respondera na hora: - “Quem está cansado, não estou cansado. Se está cansada, descansa você, mãe”. Ficara por dois dias sem ver desenho na TV, de castigo no quarto. Ele e o chato do elefante. A lista de “nãos” da mãe parecia encher o mundo: “Não brinque na chuva, não tire a camisa, não ande descalço, não coma chiclete; onde já se viu, menino, não fale nome feio! É por isso que não gosto de ver você brincando com esses meninos na rua. E não amole seu pai- está cansado. Jurandir, olha o menino, dê um pouco de atenção, o menino precisa”. Pensar no pai fazia o elefante vir, célere, aboletar-se sobre os ombros do menino, esmagando-o. Não amolar o pai? Como, se tudo o que fazia parecia incomodá-lo? Um gesto descuidado era motivo para ser repreendido, mandado embora para dormir ou 200 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo brincar no quarto. Se a mãe era clara, quase demais, sujeitando-o a uma afeição abrasadora, Jurandir pertencia à frialdade das sombras e ao escuro do quase inexistente. O elefante se espalhava, amassando-o por inteiro. Tadeu afugentava o paquiderme, correndo, pulando, mexendo em tudo, subindo nos móveis, qualquer coisa que tirasse o bicho de cima. Quanto mais corria, mais ouvia: - “Vai para o quarto, Tadeu”. O elefante pulava de novo sobre Tadeu. Tadeu ia, os pés arrastando no chão, a bagunça da sala escorrendo para dentro, o elefante cinzento e gigantesco sobre ele. Essa criança está com um problema, afligia-se Dona Marta. Será de cabeça, pensava alto, será herança dos pais, pensava, baixinho a mãe de Tadeu. Ela é a mãe, sim, mãe não é a que cria e que cuida? E se a mãe que gerou - sabe tão pouco, morreu de parto - tinha algum problema genético, ou foi no parto, e eu não sei? E o pai, quem foi - sei tão pouco - bebia, usava droga, tinha doença no sangue? E se pedirem exames? E se eu precisar contar? Marta estivera casada por anos, sem engravidar; quase quarenta. Tentara tudo, queria um bebê, seu bebê; queria vê-lo crescer, receber os beijos e carinhos que sonhara, escassos desde muito. Jurandir era bom marido, não podia se queixar: respeitoso, atencioso nos deveres de chefe da casa. Mas era distante, cada vez mais fechado. Marta queria desejo; respeito era pouco - tanto amor desperdiçado... Um dia, foi a Providência Divina, Marta tinha certeza; a cunhada comentara a morte de uma vizinha da mãe – eclampsia. Moça nova, coitadinha; o bebê sem pai, a família humilde, o que será da criança? Ela não pensara duas vezes. É minha, a criança. Foi lá, e buscou o bebê que São Judas lhe dera, pelas novenas re1 http://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 201 Neysa Prochet zadas. Foi no impulso, acreditando trazer alegria para os dois, um elo a remendar a aliança frágil, um filho para herdar o nome do pai. A reação do marido, pálido e imóvel diante do drama contado, foi um choque para ela. Não tinha ele bom coração? Não aceitara, já, a idéia da adoção? Não via que o santo lhes dera o milagre pedido, sem filas, demoras e burocracia? Jurandir parecera a ponto de explodir, negar, expulsar os dois de casa, mulher e bebê. Meu São Judas, rezara, fazei com que ele permita, não me tire a graça concedida. O protetor das causas impossíveis fizera mais um milagre. Jurandir calara o quase dito, apenas dissera faça o que achar melhor. Ela fez. Registrou e batizou o milagre com o nome do santo. Criou e cuidou com amor feroz, indiferente à indiferença do marido. Nunca vira nele um gesto de carinho que não fosse obrigado e contrafeito. Ela falava, pedia, amor de pai faz falta. Nada. Ela amaria por dois, jurara. Pegava-o olhando o menino, por vezes, imerso em si, num jeito estranho. Devia gostar, não queria é dar o braço a torcer, deve ser isso. Não sei o que se passa na cabeça desse homem, mas meu filho fica, murmurava, rebelde. Marta nem notava o gesto inconsciente, quase costumeiro, de esfregar o peito com a mão como a tentar aliviar um peso dele. Jurandir percebia, é claro, o olhar intrigado da mulher, seu incômodo. Reconhecia a aflição de Tadeu. Identificava os sinais de sua própria angústia, o suor frio que lhe arrepiava a nuca acompanhado de uma onda gigantesca de náusea. Será que ela desconfia, perguntava-se. Depois de tantos anos, tem horas que acho que vou explodir, confessar. De todas as coincidências possíveis, o impossível. Cristina, moça nova, brejeira, trabalhando na expedição, indo e vindo com aquelas pernas morenas, as trancinhas no cabelo, ele num casamento sólido, sem ardor e sem desejo, exaurido das técnicas 202 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo e tentativas de fertilização, o termômetro, o coito programado, monitorado, o choro depois da decepção mensal, reprodutor ou homem, indagara-se tantas vezes. As pernas de Cris e a monotonia. A gravidez - ironia máxima. A angústia dos meses passando, a barriga crescendo, o medo aumentando, o que fazer, meu Deus? A morte no parto trouxera horror, culpa e o alívio. Ninguém o conhecia, pareciam não saber o nome do pai. Cris esperara que a situação se resolvesse com o nascimento da criança. Jurandir esperara, como ela. A moça morrera e a situação se resolvera, parecia-lhe. Tinha pensado, no pânico e na confusão imediatos, mandar um dinheiro bom para a família dela, pagar as contas, arranjar um jeito de prover sem aparecer. No meio de tudo, a mão do acaso: a mulher do cunhado, a ousadia da própria mulher na ânsia de filhos. Calara. O segredo o paralisara, impedindo-o de qualquer gesto de amor, sufocando qualquer emoção que o denunciasse. O peito doía-lhe quase o tempo todo. Ignorando-se uns aos outros, elefantes passeiam pela casa de Tadeu. Capítulo 1 Entre a Psicanálise e a Literatura, a busca. ... nós inventamos nossas lembranças, o que é o mesmo que dizer que inventamos a nós mesmos, porque nossa identidade reside na memória, no relato de nossa biografia. Portanto, poderíamos deduzir que os seres humanos são, acima de tudo, romancistas, autores de um romance único cuja escrita dura toda a existência e no qual assumimos o lugar de Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 203 Neysa Prochet protagonistas. (Montero, 2004, p.8) Que diferenças existiriam entre um texto literário e um texto psicanalítico? No site Wikipedia1 , uma das fontes de pesquisa mais utilizadas na internet, a descrição do verbete ‘literatura’ enfatiza predominantemente a ligação entre literatura e estética, discriminando o texto literário de outras produções através da qualidade da repercussão subjetiva, de seu valor enquanto produtor de uma experiência emocional no receptor. O próprio texto assinala tratarse de um parâmetro altamente instável, que pouco nos auxilia a estabelecer discriminações significativas, e um segundo parâmetro é, então, oferecido: no texto literário haveria o predomínio de uma linguagem conotativa ou metafórica, singularizada, enquanto que o texto científico implicaria numa preocupação maior com o sentido denotativo dos termos, ancorados numa conceituação previamente estabelecida e com relativa independência do contexto específico onde este foi utilizado. O texto científico seria, então, por estes princípios, um texto que fosse capaz de ser mais amplo que o singular e também que pudesse abranger uma idéia e/ou experiência independente da qualidade emocional despertada pela mesma. Mas, e a Psicanálise? Como escrever um texto científico psicanalítico que possa abranger uma experiência independente da qualidade emocional que tal experiência possa despertar? Como proceder se, ao nos debruçarmos sobre o psiquismo de uma pessoa usamos o nosso próprio psiquismo como porta de acesso ao reconhecimento deste outro? Se este é nosso instru2 É imperioso enfatizar que amoroso, neste caso, não é atender ou responder à demanda propriamente dita ou ao desejo do paciente, nem se trata de ser sedução ou complacência. Ser amoroso é reconhecer estas demandas como legítimas. 204 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo mento de trabalho, o que é totalmente externo daquilo é que apreendido a partir de nossa subjetividade? Embora a Ciência seja um esforço criado pelo homem para evitar a arbitrariedade dos desejos de cada um, ela não está acima daqueles a criaram e é impossível alienar a produção de conhecimento da subjetividade do sujeito que a produz. Mannoni (1988) assinala que “em toda compreensão do outro, de fato, é também um vestígio de nós mesmos que encontramos” (p.8) Assim, quando falamos do psiquismo de uma pessoa nós o fazemos através de nosso próprio psiquismo, psiquismo que é, ao mesmo tempo, nosso objeto de estudo e é, igualmente, o objeto que viabiliza este estudo. Tadeu e os elefantes não é um trabalho científico e não é um relato de caso. No entanto, acredito que também pode ser. Não o é no sentido de uma descrição isenta e literal dos acontecimentos, independente de sua qualidade emocional, mas, pode sê-lo justamente por ser descritivo da experiência emocional vivida numa relação transferencial analítica. As lembranças geradoras do conto não foram baseadas em nomes, numa anamnese cuidadosa, nos sintomas descritos ou na hipótese diagnóstica formulada. Elas vieram das impressões afetivas registradas na escuta analítica, na apreensão de uma imobilidade no viver, de um ambiente de opressão, da profunda angústia e segredo que tornavam quase nulas as perspectivas de um devir. A Psicanálise, mais, talvez, do que qualquer outro campo, aponta criticamente para um dos pilares do pensamento moderno ocidental – a dicotomização, um modo de pensar onde o paradoxo não encontra lugar. Contrapomos cultura e natureza, consciente e inconsciente, interno e externo, arte e ciência, alma e corpo, mente e cérebro, razão e loucura, sonho e realidade. As raízes da clínica psicanalítica e da literatura são as mesmas – o viver, suas vicissitudes, seus enigmas, a busca de uma transcendência, de superação Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 205 Neysa Prochet e conservação de um sentido no existir. Talvez não seja necessária uma escolha entre um campo e outro, mas acolher na Psicanálise e, em especial na clínica psicanalítica, o enriquecimento inestimável que as contribuições da Literatura possam nos oferecer. Reconhecer que as diferenças maiores não residem em seu objeto, mas no modo como este pode ser descrito. Os elefantes surgiram quando a analista buscava oferecer uma interpretação que fosse capaz de abarcar e relacionar não só as sensações físicas de Tadeu como as qualidades emocionais do ambiente em que este vivia. Ela disse ao menino que sentia um peso enorme nele, como se uma pata de elefante estivesse pousada em seu peito, não lhe deixando respirar e que, talvez, ele corresse tanto e nunca ficasse quieto para tentar se livrar do danado do elefante e de seu peso sobre seu coração. Tadeu acolheu de pronto a imagem proposta, aliviado por ter reconhecida sua angústia, enfim representada, e só então passível de ser enfrentada. Tadeu buscava um olhar amoroso2 , que pudesse identificar algo, um afeto que o vinculasse a si mesmo, a seu próprio corpo e ao meio no qual ele estivesse. Era uma necessidade à qual ele precisava ter atendida para, só então, poder (re) estabelecer uma relação de confiabilidade na experiência. Os elefantes saíram do peito de Tadeu para as páginas de um conto. Capítulo 2 As Narrativas Clínicas Entendemos que a Psicanálise pode ser descrita como uma maneira de contar histórias, a história da vida de uma pessoa. Costumamos perguntar a nossos pacientes: - O que pode me contar sobre você? Contamos histórias sobre a vida que vivemos, sobre 206 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo as pessoas a quem amamos, perdemos ou nos fizeram sofrer. Contamos sobre os lugares onde que fomos e sobre aqueles onde que desejamos ir; sobre os saberes que aprendemos e sobre o que não sabemos; e contamos também sobre o que nos foi contado por um outro. Somos quem somos pelos que lembramos de nós e pelo que podemos contar. Contamos, acima de tudo, para procurar e criar sentidos - não um sentido de verdade propriamente dito - mas um sentido pessoal acerca do que foi vivido. Contar é uma experiência de criação e transformação. Na clínica, denomino como “contar” o que Ferro (2000) define como narração: Falo daquela maneira de o analista estar na sessão quando ele participa com o paciente da construção de um significado de forma altamente dialógica, sem grandes censuras interpretativas. Como se analista e paciente construíssem juntos uma pièce teatral e, no interior dela os enredos crescem e, se articulam e se desenvolvem às vezes de forma imprevisíveis e impensáveis para os dois co-narradores, sem que exista entre eles um depositário forte de uma verdade pré-constituída. Nesta forma de proceder, a transformação co-narrativa, ou mesmo a co-narração transformativa, toma o lugar da interpretação (p.17-18). Na escuta clínica, apreendemos diversos níveis de narrativa naquilo que nos é contado: De modo geral, reconhecemos um ní- Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 207 Neysa Prochet vel linear e aparente e um outro nível, relacionado ao que chamo de histórias secretas, expressão bem descrita por Isabel Allende (1981) na epígrafe deste trabalho. Histórias que foram vividas, mas nunca puderam ser contadas porque, de alguma forma, não foi possível sua inscrição no psiquismo da pessoa. Para contá-las, recorremos a sonhos, personagens míticos ou da cultura ou, ainda, àqueles criados na própria relação terapêutica. Buscamos auxílio nos contos de fadas, em todas as histórias já contadas no universo da Literatura, tudo aquilo que puder ser utilizado como recurso de intermediação para o resgate de histórias expressas através dos sintomas, da dor e dos pesadelos. Todas têm a ver com acontecimentos extraordinários que ocorrem além da “realidade real” e que, quando desveladas podem conduzir a uma experiencia de transformação no protagonista. Nelas, ao serem contadas, encontramos um sabor de descoberta, de insubordinação a uma ordem ou forma estabelecida, onde algo novo, surpreendente, irrompe, alterando relações e conduzindo a novas interações. O trabalho clínico com crianças tem me ensinado a não desconsiderar imagens mentais que porventura possam surgir ao longo das sessões, por mais inusitadas que sejam. Quando, na sessão analítica, há a evocação de uma imagem mental no analista relativa a um conto de fadas ou mesmo a criação de um personagem, esta não poderia ser oriunda de uma comunicação além da linguagem, resultante das impressões visuais produzidas na psique do interlocutor? Não seria uma oportunidade ímpar poder fazer uso de objetos da cultura que possam ser transicionalmente continentes de obscuridades presentes na narrativa clínica? Cada gesto humano é uma comunicação que aumenta, A origem etimológica de história nos indica ser a palavra derivada do grego “historía” que significa aprendizagem ou saber por meio da pergunta, do registro e da narrativa. 3 208 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo amplia, esconde ou reduz aquilo que é contado. As histórias que ouvimos de nossos pacientes, de nossos amigos, a nossa própria história, falam de outras histórias que precisam ser contadas. A experiência analítica parece-me, às vezes, com a reconstrução de um romance, cujas páginas desfolharam, ficando perdidas, embaralhadas, parcialmente manchadas e difíceis de decifrar. Buscamos reunir os relatos, a partir dos últimos parágrafos escritos, a fim de escrever e reescrever uma história pessoal. É um processo que precisa de um tempo e um lugar para acontecer, artigos de luxo em nossos dias de instantaneidades, localizações e tempos reduzidos, mas sem o qual a construção de um eu real se torna impossível. Assim como o objeto transicional, um conto ou um personagem pode ser criado para que seja possível uma passagem de um estado para outro, um instrumento de mediação para que as mudanças inerentes ao processo de desenvolvimento possam ocorrer de forma menos traumática. A figurabilidade, oferecida pelas imagens suscitadas tanto na mente do analista quanto do paciente, permite a sugestão de uma forma, uma sustentação psíquica que não passa pela via da elaboração simbólica, o que é extremamente útil na clínica contemporânea tão carente de uma rede de simbolizações sustentadoras. Se tomadas como elementos transicionais - ampliadoras do espaço potencial – e, se não forem tratadas de forma literal nem impostas ao paciente, estas historias podem funcionar como mediadoras de um encontro no campo transferencial. Ferro (2000) debruça-se sobre a Psicanálise compreendendo-a como literatura a partir das narrativas realizadas nela, e como terapia, a partir da técnica e dos recursos utilizados para compreender e minorar o sofrimento humano. Na introdução da obra citada, escrita por Franco Borgogno(2000), este enfatiza os “trânsitos emocio4 N.A. - Eu diria qualquer obra criativa. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 209 Neysa Prochet nais e ideativos da dupla envolvida” (p.13) no processo analítico, citando, a seguir, Ferenczi (Ferro, 2000) que, numa carta a Freud, em 14 de outubro de 1909 diz que “os próprios pensamentos conscientes e inconscientes produzem impressões visuais na psique de outra pessoa.” (p.13). Reforço, pois, a idéia de que, assim como no sonho e no brincar, as histórias também pertencem ao campo da transicionalidade. São reais, mas não são a realidade. São suficientemente próximas da segunda, mas protegidas pelos mesmos mecanismos que regem o sonho: condensações, deslocamentos e o uso abundante de simbolismo e/ou analogias. Freud (1900) aponta que, em todos os sonhos, há a busca da realização de um desejo. Na criação de um conto, abre-se um campo possível de realização de um desejo e na comunicação de uma necessidade. Se Freud enfatiza a busca da realização de um desejo que é expresso simbolicamente pelo conteúdo do material, Hanna Segal (1993) assinala que Se há na arte satisfação de desejo – e deve haver, já que há satisfação de desejo em todas as atividades humanas – não se trata de uma simples satisfação onipotente de um desejo libidinal ou agressivo. Trata-se de uma satisfação do desejo de elaborar um problema de um modo particular, e não do que se entende por satisfação de desejo, ou seja, onipotência. ( p.90) A autora descreve brilhantemente o que desejo enfatizar neste trabalho e que ocorre tanto nos processos oníricos como, de forma análoga, na criação narrativa: sem negar o caráter de satisfação pulsional enfatizado por Freud, aponta-nos a necessidade humana de expressar e comunicar sua própria história3 . 210 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo No artigo sobre Dostoievisk, Freud (1928) assinala que o escritor buscou, tanto em seu sintoma como em sua obra, a realização de seus desejos parricidas. Não tenho como objetivo analisar as interpretações dadas por Freud ao enredo ou aos personagens, mas meramente enfatizar o valor comunicacional de um sofrimento, seja ele pela via do sonho, sintoma ou obra literária. Igualmente, num dos casos mais famosos de Freud, o Homem dos Lobos, Freud (1913) demonstra o uso de Serguei da estrutura do conto de fadas dos sete cabritinhos como base para a construção onírica das angústias ligadas às fantasias sexuais associadas ao coito parental. Segal (1993), ao analisar Freud e a arte, sugere leituras diferentes das indicadas usualmente num trabalho sobre arte ou literatura e apresenta uma perspectiva original sobre o trabalho criativo. Para ela, o artista, em verdade, não se afasta nunca da realidade, contrariando a posição freudiana em O escritor criativo e seus devaneios (1908). Segundo a autora, o criador não busca soluções fáceis ou de satisfação onipotente do desejo pela negação externa das realidades externa e psíquica. Ela enfatiza que a busca de um artista ou de um criador é a verdade psíquica. Para fundamentar suas idéias, Segal nos traz o texto freudiano O Moisés de Michelangelo (1914). Farei uma citação mais longa de trechos deste trabalho, por considerá-lo essencial para a discussão do tema apresentado: [...] as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreende-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. [...] Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 211 Neysa Prochet Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta (p.253). [...] na verdade, alguém que escreva sobre estética já descobriu ser esse estado de perplexidade intelectual condição necessária para que uma obra de arte4 atinja seus maiores efeitos. A meu ver, o que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-nos compreendê-la. Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; o que ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar (p.254). Ao buscar apreender a constelação mental mencionada por Freud, considero ser mais profícuo abdicar do uso de uma linguagem simbólica e recorrer à perspectiva analógica para a leitura das histórias e personagens presentes nas narrativas clínicas. A linguagem analógica é caracteristicamente ambígua e imprecisa e, neste tipo de compreensão, abrimos mão do caráter determinista e preciso do símbolo para ir ao encontro de uma relação de significação que será estabelecida no momento em que a história for contada. Ao tomarmos os relatos dentro do campo da transicionalidade (Winnicott, 1978), o que interessa não é o relato em si ou sua interpretação simbólica como as descritas por Bettelheim(1980) e outros, mas o uso que a pessoa pode fazer deste relato, algo que pertence à realidade externa e que se torna, pelo próprio uso, um 212 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 artigo mediador para a conquista de um sentido pessoal. Muitas vezes, os fatos rememorados não conseguem adquirir um sentido que seja acessível como algo ocorrido na própria história, se miscigenados com outras histórias, sem palavras e representações, aspectos “secretos” para si mesmos. Buscamos, então, propiciar ao paciente condições de maior flexibilidade e liberdade de comunicação entre os diversos aspectos de si mesmo e tentamos apresentar uma pluralidade de perspectivas, para que ele possa criar aquela que lhe permita uma maior integração. Busatto (2003) enfatiza que o mais significativo nesta situação não é o trabalho interpretativo, mas “possibilitar ao ouvinte criar sua própria história” (p.52). Acredito que, mais do que pensamentos, as imagens produzidas pelos contos e histórias relacionam-se a “estados de ser”, expressão usada por Bollas (1992) para designar fragmentos psíquicos não representados que irrompem em qualquer momento de vida, não necessariamente naturais da infância primitiva. Desta forma, se a fala de um paciente nos conduz fortemente a uma imagem ou uma história, é possível que esta nos tenha sido comunicada através de evocações afetivas e culturais compartilhadas por ambos – um encontro psíquico que irá permitir uma comunicação mais profunda. O mesmo se passa quando um paciente nos traz um conto ou uma história. E, seguindo esta hipótese, talvez seja possível apresentá-la a ele, como um brinquedo ou como a espátula oferecida por Winnicott (1941), algo que pode vir a ser encontrado ou não, usado ou não, tornado pessoal e singular ou simplesmente ignorado. Nas histórias criadas, nas histórias emprestadas da cultura, nas histórias recriadas na situação analítica, buscamos estabelecer ligações entre as diversas experiências vividas ao longo do tempo. Há experiências, de ordem tal, que necessitam serem vividas externamente, antes de serem incorporadas como pertencentes ao Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 213 Neyza Prochet Eu. Borgogno ( Ferro, 2000) usa a expressão “espaço inicial de hospitalidade psíquica” (p.14) ao referir-se à qualidade curativa oferecida pelas histórias, um espaço no qual haverá sustentação e 214 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007 mobilidades suficientes para que os processos de amadurecimento e integração possam ocorrer. A possibilidade de fazer uso da herança cultural, vivendo-a no pleno sentido da palavra, utilizando-se de seus referentes para a construção de um sentimento de ser integrado, permite uma aproximação frutífera entre a vida cotidiana e a experiência analítica. Com freqüência encontro, na narrativa de meus pacientes, outras narrativas oriundas do mundo externo – relatos de filmes, capítulos de novelas, personagens em quadrinhos, obras literárias, seriados de TV. Se usadas a serviço da sustentação de um senso de continuidade, oferecem um tipo de intervenção que amplia significações e a construção de uma história pessoal. Epílogo Uma história será sempre nova, dependendo de quem a contou e de quem a ouve, resgatando a possibilidade de uma releitura do que foi contado. Um conto se torna cada vez mais rico e vivo se pudermos nele atualizar gestos, paralisados na estereotipia da repetição não reflexiva. É apenas assim que faz sentido o mundo da cultura, quando o vivemos de forma tal, que seja possível decantar uma experiência dele, expressar um gesto que, ao mesmo tempo em que o supera, o acolhe, para então, da massa de sensações, fragmentos de discurso, intensidades de sentimentos, encontrar e construir uma história pessoal. Somos todos contadores de histórias. Não há um contador de histórias sem história ou uma história sem seu contador. E não há nem um nem outro se não houver uma platéia a quem esta história * Psicóloga Clínica/UFF; Especialista em Psicanálise e Laço Social/UFF; Mestre em Cognição e Linguagem /UENF; Doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise /UERJ. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 215 completas de Sigmund Freud, 4). _____. (1908) O Escritor Criativo e Seus Devaneios. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (ESB, 9). _____. (1913) A ocorrência, em sonhos, de material oriundo de contos de fadas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (ESB, 12). _____. (1914) O Moisés de Michelangelo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (ESB, 13). _____. (1928) Dostoievisk e o parricídio. Rio de Janeiro: Imago, 216 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 for dirigida. Como é comum entre os contadores e sua audiência, contamos um conto que, mesmo tendo sido contado inúmeras vezes, pelo próprio ato de contar, é recriado, a cada vez, em um novo conto. Contamos contos para contar-nos quem somos. Neysa Prochet Rua Dona Mariana, 22, apto 304 Botafogo – Rio de Janeiro - RJ 22280-020 fone: (21) 2286-3999 e-mail: [email protected] Tramitação: Recebido em: 30.06.2007 Aprovado em: 15.08.2007 Referências ALLENDE, I. Contos de Eva Luna. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand do Brasil, 1991. BETTELHEIM, B. Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BOLLAS, C. A Sombra do Objeto: Psicanálise do Conhecido Não-Pensado. Rio de Janeiro: Imago, 1992. BORGOGNO, F. Introdução. In: FERRO, A. A Psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de Janeiro, Imago, 2000. BUSATTO, C. Contar e Encantar: Pequenos Segredos da Narrativa. Petrópolis, RJ, Vozes 2003. FERRO, A. A Psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de Janeiro: Imago, 2000. FREUD, S. (1900). A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 217 Renata Mattos de Azevedo maneira pela qual ele compõe os elementos dos quadros e trabalha com a luz. Seus quadros nos dariam a ver nosso próprio vazio constitutivo. Palavras-chave: Solidão, psicanálise, obra de arte, pintura, Edward Hopper. Abstract This paper calls for a reflection on solitude based on the work of the north-american painter Edward Hopper, studying the relation of the subject with the other as an equal and the Other as a radical difference. There are some qualities in his paintings that reveal loneliness in his figures, scenarios and scenes as well as in the way the artist composes the elements of his works and deals with light. His paintings would transmit us the emptiness of our own constitution. Keywords: Solitude, psychoanalysis, work of art, Edward Hopper. artigo A solidão na obra de Edward Hopper – Reflexões sobre o sujeito e o vazio segundo a psicanálise Solitude in the work of Edward Hopper – Reflections on the subject and the emptiness in the light of psychoanalysis Renata Mattos de Azevedo 218 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 artigo 1976. (ESB, 21). MANNONI, M. De um impossível a outro. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. MONTERO, R. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. SEGAL, H. Sonho, fantasia e arte. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993. WINNICOTT, D.W.. Observação de Bebês numa Situação Padronizada (1941). In:_____. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro, Imago, 2000. _____. Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais. In:_____. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975. artigo A solidão na obra de Edward Hopper – Reflexões sobre o sujeito e o vazio segundo a psicanálise Solitude in the work of Edward Hopper – Reflections on the subject and the emptiness in the light of psychoanalysis Renata Mattos de Azevedo* Resumo Este trabalho pretende refletir sobre a solidão, pelo viés da relação do sujeito com o outro semelhante e com o Outro enquanto alteridade radical, a partir da obra do pintor norte-americano Edward Hopper. Na pintura deste artista, destacam-se características que revelam uma solidão tanto em suas personagens e cenários quanto na Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 219 Renata Mattos de Azevedo se com poucas ou nenhuma. Críticos e biógrafos do pintor são unânimes em destacar tal característica de sua obra, e, segundo Lloyd Goodrich (1993, p. 105), Hopper admitia a presença da solidão em sua obra, negando, todavia, que fosse intencional, chegando a se aborrecer com a ênfase dada a este ponto. Diante disso, me pergunto: O que na obra de Hopper nos dá condições de destacar a solidão como central? E o que seus quadros podem nos ajudar a pensar a solidão no humano a partir da perspectiva psicanalítica, em especial a freudiana e a lacaniana? Com estes pontos em mente, procurarei desenvolver este trabalho. A pintura de Edward Hopper e a arte pela perspectiva psicanalítica Nascido em Nova York em 1882, vindo a falecer em 1967, Hopper é considerado um pintor realista, sem passar, contudo, por uma imitação da realidade. A aproximação com o realismo vem do modo de retratar personagens e cenários com grande proximidade a como eles se apresentam a nós no cotidiano, não tendo o autor se afiliado a tendências da arte moderna que visavam distorcer o que é visto e apresentar novas configurações formais. A arte de Hopper, de acordo com Goodrich (Ibid.: 97), deve ser entendida como um “novo realismo”, apresentando-se quase como oposta às principais correntes do modernismo, já que há nela: “no lugar de subjetividade, um novo tipo de objetividade; no lugar de abstração, uma arte puramente representacional; no lugar de influências internacionais, uma arte baseada na vida americana”. O que este autor destacou como uma nova objetividade foi denominado por outro estudioso de Hopper, Wieland Schmied (1995 p. 45), baseando-se na expressão cunhada pelo pintor alemão Max Beckmann, de “objetividade transcendental”. Isto na medida 1 Em especial na aula de 16 de novembro de 1966 do seminário inédito A lógica da 220 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 artigo Introdução Há pouco mais de um ano, fiz uma viagem de ônibus, com trajeto conhecido e rotineiro, procedimentos sem grandes surpresas, e, dentre os demais passageiros, um casal me chamou fortemente a atenção, chegando a causar certo estranhamento. A princípio, não soube dizer sequer se eram um casal, visto que estavam sentados em assentos distantes; somente quando mudaram de lugar, sem pronunciar uma palavra, trocando escassos olhares e se dirigindo para um mesmo ponto, pude confirmar que estavam juntos, o que as alianças também atestavam. O que de mais peculiar havia neles era que pareciam uma pintura de Edward Hopper, dividindo um mesmo espaço, e mesmo uma vida, porém, estando ambos solitários, silenciosos; ao mesmo tempo distantes e próximos, compartilhando solidões. A atmosfera da cena era similar ao quadro Cape Cod Evening, de 1939, no qual vemos um casal em silêncio e um cachorro em estado de alerta, os três em uma paisagem que mescla um bosque que se estende quase como para além dos limites da tela e uma casa de dois andares iluminada pelo sol e pela grama amarelada que a rodeia. Apesar de estarem silenciosos, parece haver entre eles um forte laço que os une. O que também encontramos em pinturas como Room in New York (1932), Second story sunlight (1966), Sunlight on Brownstones (1956), e Sea watchers (1952). Na obra de Hopper é visível e recorrente a incidência da solidão, não apenas em quadros nos quais há figuras humanas, sozinhas ou em pequenos grupos (ainda que aparentando estar só neles), surgindo mesmo quando o artista pinta cenários naturais, urbanos, ou o interior vazio de quartos, residências e lugares destinados à reunião de pessoas e que, no entanto, encontramEsta é um espaço topológico obtido através da junção das extremidades de uma fita, após se ter feito nela uma torção de meia volta, fazendo com que, ao percorrermos por sua superfície, não haja mais frente e verso, exterior ou interior. 2 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 221 Renata Mattos de Azevedo com grande freqüência em relação ao enquadramento de cenas, inteiras ou em parte, em janelas. Estas surgem marcando ou um limite entre interior e exterior ou emoldurando uma cena da qual participamos como expectadores. Devido a isto, Hopper chegou a ser denominado por Schmied (Op. cit: 68) como voyer, com o quê discordo. A pintura de Hopper nos oferece momentos do cotidiano a partir de um ponto de vista distanciado, o que faz com que possamos ocupar este lugar de alguém que observa uma determinada cena e nos identificar com ela pela familiaridade a qual nos remete. Em artigo que aborda a questão da travessia da fantasia associada à arte, Marco Antonio Coutinho Jorge (2006, p. 74; grifos do autor) analisa a pintura de Hopper, destacando a insistência da “solidão do sujeito situado na margem, no umbral, no limiar em relação ao real”. Dentre os pontos que o autor destaca nas obras deste pintor, estão as janelas, e a respeito delas Jorge (Ibid., p. 75) nos lembra que Lacan as utilizou para metaforizar a fantasia como janela para o real. Para Lacan1, a fantasia é tomada como uma montagem entre o simbólico e o imaginário que constituiria a realidade psíquica do sujeito e que teria a função de mediar o encontro deste com o real. Podemos, com isso, pensar que as janelas na obra de Hopper, além de nos direcionar o olhar para um ponto que o pintor, por limitá-lo, nos conduz, indica-nos ainda esta tensão entre o sujeito e o real, à qual a fantasia vem fazer frente de modo a oferecer ao sujeito condições de lidar com ele. É interessante destacar que o próprio Hopper (apud Goodrich, op. cit., p. 105), ao falar sobre esta temática, diz sobre a possibilidade que as janelas abrem para experimentarmos a sensação simultânea de interior e exterior de uma construção. Ao que, acrescento, 222 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 artigo em que, apesar de uma aparente objetividade, encontramos em suas telas algo que evoca sentimentos e sensações que não nos são óbvios em um primeiro olhar. Ou seja, pela estética, somos levados a algo que não se encontra aparentemente em primeiro plano na obra. Com Lacan (1959-1960/1997, p. 121), aprendemos que a obra de arte tem como uma de suas funções contornar a ausência de das Ding, a Coisa, apontando para a sua incidência. Este é o objeto real destacado por Freud (1950[1985]/1990, p. 451) como excluído do juízo quando da constituição do sujeito. Ou seja, das Ding é perdido desde sempre, e, por sua perda, organiza a linguagem, o simbólico e o inconsciente, possibilitando o advento do sujeito enquanto tal. O movimento do desejo do sujeito é instaurado na busca deste objeto, todavia, sua apreensão é impossível. Ainda assim, a arte oferece a possibilidade de se contornar pulsionalmente este vazio estrutural de nossa constituição, oferecendo aos sujeitos um novo objeto que nele atuará como causa de desejo. A Coisa aparecerá na arte de forma velada (Lacan, op. cit., p. 148), porém, revelando sua incidência por seus efeitos. Se essa função é comum a toda obra de arte, entendo que é assim a maneira como Hopper transmite isto em suas telas passa pelas temáticas com as quais trabalha, nas quais se destaca um forte vazio, e também pelos recursos estéticos e técnicos por ele escolhidos nestas composições. Sobre este último aspecto ocorre, de um modo geral, uma predominância de retas e figuras geométricas, preferencialmente retângulos em sentido horizontal ou grandes blocos colocados verticalmente, em destaque pela incidência de luz ou por cores que as diferenciam. O uso de curvas e objetos circulares é pequeno e pontual, e, quando aparecem, em pouco suaviza a quase aspereza das formas restantes. Estas características, de acordo com Goodrich (Op. cit.: 141), produzem uma limitação espacial em suas obras, o que, em algumas, chega a ter uma função mais específica, conforme vemos Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 223 Renata Mattos de Azevedo de alguma forma, travadas. Ou seja, não se trata, portanto, de uma mudez, e sim de uma imobilidade, que, contudo não se confunde com paralisia. Trata-se de personagens unidas por uma ligação distante, ou, se preferirmos, uma proximidade afastada, como se estivessem voltadas, cada uma, para experiências singulares de confronto com o real, ou ainda sob efeitos destas, e “sabendo” (sem saber) que isto diz respeito a todos nós. Para Jorge (Op. cit.. p. 74), “Hopper pinta o mundo com uma acentuada frieza e seus personagens parecem estar absortos por uma espécie de falta de sentido”. A hipótese deste psicanalista (Ibid., p. 75) passa pelo entendimento de que eles estão “possuídos por uma certa solenidade que contrasta com a cena cotidiana: eles parecem viver num momento de epifania, de revelação. E esta revelação parece ser a mesma com a qual o sujeito se depara na travessia da fantasia: não há relação sexual (grifos do autor)”. Desta maneira, a obra de Hopper nos apresentaria um momento muito específico e fugaz no qual o sujeito poderia vislumbrar que há em si e naquilo que está ao seu redor uma falta fundamental que diz da impossibilidade de completude e de uma satisfação plena. Estas personagens pintadas por Hopper teriam tido a revelação de que todo encontro no mundo humano é sempre faltoso, ou, como nos diz Lacan (1964/1998, p. 57), é sempre da ordem de tiquê, encontro com o real traumático e inassimilável. É para um encontro como este, com nossa divisão estrutural, que a arte de Hopper nos leva. A diferença consiste, no entanto, em que ela nos é apresentada revestida pela linguagem e pelos elementos pictóricos, ou seja, por recursos simbólicos que fazem com que possamos, após o impacto que estas obras nos causam, lhes dar sentidos. Segundo Sherry Marker (1990, p. 65), grande parte dos quadros de Hopper apresenta duas espécies de momentos: “o mo- 224 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 artigo esta fala pode ser remetida ao modo como a psicanálise entende o sujeito e seu exterior, em uma continuidade específica, similar à fita de Moëbius2. Lacan (1962-1963/2005, p. 109) trabalhou com a figura da fita de Moëbius para abordar a relação do sujeito com o objeto a, objeto causa de desejo (Ibid.: 115), que cai como resto da operação de constituição do sujeito no campo do Outro, entendido como campo da linguagem. Será este objeto que estará presente na fórmula lacaniana da fantasia, escrevendo através de uma frase, como nos ensina Freud (1919/1990ª\, p. 225), a articulação entre o sujeito e este objeto que poderia satisfazer a pulsão, e construindo uma cena que se coloca frente ao real. Ou seja, diante do impossível de se simbolizar e do não-sentido, tem-se a linguagem e sua gramática junto a uma encenação imaginaria; em outras palavras, a fantasia, a “outra cena” (Lacan, 1964/1998, p. 58) do inconsciente. Ainda pensando em como Hopper nos transmite este real em suas telas, volto-me agora para aquilo que ele retrata. As cenas pintadas por Hopper têm sua tônica no cotidiano da vida urbana, nos afazeres com os quais lidamos em nossas vidas, o que as torna, em um primeiro momento, bastante familiares. Entretanto, há nelas algo que passa por um estranhamento, evidenciando algo que escapa e que nos toca, algo que, nos diria Freud (1919/1990b, p. 306) pôde vir à tona do inconsciente. Estas situações, comuns a todos nós, se mostram enigmáticas por destacar certa imobilidade em suas personagens, quando elas estão presentes, ou mesmo nas paisagens. Podemos dizer que há nestas cenas pintadas em cores tão densas, por vezes cortadas por fortes feixes de luz, um silêncio que nos inunda, silêncio real e impactante. Não é que a fala nunca esteja ali presente ou indicada. Quadros como Chop Suey (1929), Hotel Lobby (1943), Conference at night (1949), Four lane road (1956), e Summer evening (1947) nos apresentam situações nas quais conversas estão sendo, Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 225 Renata Mattos de Azevedo a ter para o sujeito função de causa de desejo. Hopper, solidão e psicanálise Há nas obras de Hopper, como anteriormente destacado, um vazio marcante, seja pelo silêncio em suas personagens, seja pelas paisagens amplas e com poucos elementos, ou pelas construções arquitetônicas apresentadas sozinhas em meio de elementos da natureza. Por estas características, ao nos deparamos com sua pintura, é usual sermos tocados pela solidão que este pintor consegue nos transmitir. O que estudiosos de Hopper destacam em seus quadros como representações da “solidão da situação humana na modernidade” (Schmied, op. cit., p. 15) - como “formas da isolação e impersonalidade humana que acompanhou o [...] invencível progresso e expansão” (Marker, op. cit., p. 6), ou como “retratos de uma civilização moderna cujos efeitos são a solidão e a incomunicabilidade” - à luz da psicanálise é possível propor que se trata de uma condição própria do humano. De certa forma, esta ligação entre a obra de Hopper e a nossa condição enquanto sujeitos é realçada também pelos autores não-psicanalistas a quem recorremos neste estudo. Lyons (Op. cit.: XIV) considera que “a habilidade de Hopper em nos assegurar que nós não estamos sozinhos em nossa solidão, e que talvez possamos encontrar ainda redenção na luz do sol, pode ser capaz de explicar o tremendo, tantas vezes indefinível, apelo que sua arte ainda nos reserva”. A chave para o entendimento da solidão pela perspectiva psicanalítica encontra-se na base da constituição do sujeito. Entre o bebê e o outro será estabelecida uma relação através da qual, pelos cuidados da mãe ou daquele que ocupará esse lugar para o 226 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 artigo mento em que algo desconhecido está prestes a acontecer, como em Room in New York, e o momento que parece congelado, como em Nighthawks”. Podemos caminhar mais nesta idéia e dizer que Hopper captura aquilo que, em nosso cotidiano, nos surpreende, que destoa e escapa ao sentido. Na experiência aparentemente mais corriqueira, ele consegue capturar o real, nos chamando a nos colocarmos ali como sujeitos, em nossas posições singulares. Há, assim, um não saber que se demonstra nestas cenas aparentemente comuns, criando um fino limiar entre o familiar e o estranho, tal qual Freud (1919/1990b, p. 306) destacou. Com isto, somos colocados exatamente neste limite ao contemplarmos o que sua obra nos oferece, velando e revelando a estrutura de nosso desejo e de nós mesmos. Laurence Debecque-Michel (1992, p. 7) também ressalta esta peculiaridade da obra de Hopper, definindo-a como um paradoxo que, nas palavras do autor, consiste em passar “da extrema banalidade do sujeito à inquietante estranheza que se liberta, impressão que não resulta de uma clínica fria e distanciada sobre a solidão existencial de uma civilização, mas de uma maneira de tratar o espaço”. Mais do que uma representação da solidão, Hopper, por seu estilo e maneira peculiar de pintar e lidar com o espaço e com os elementos que compõem suas obras, nos passa uma tensão que nos faz perceber o furo que há em toda imagem, em toda cena, e que remete ao vazio de onde emergimos. O ordinário, em suas telas, se torna extraordinário, como nos aponta Debrah Lyons (1995: XI) ao dizer que nelas encontramos as “experiências ordinárias de nossas vidas individuais elevadas a algo épico e atemporal”. Diante desta afirmativa, não podemos deixar de lembrar que Lacan (1962-1963/1997, p. 140-141) afirma que na arte, pela sublimação, o objeto é elevado “à dignidade de Coisa”, deixando de ser tomado pelo plano imaginário, e passando Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 227 Renata Mattos de Azevedo O primeiro, o outro com a minúsculo, é o outro imaginário, a alteridade em espelho, que nos faz depender da forma de nosso semelhante. O segundo, o Outro absoluto, é aquele ao qual nós nos dirigimos para além desse semelhante, aquele que somos forçados a admitir para além da relação da miragem, aquele que aceita ou que se recusa na nossa presença, aquele que na ocasião nos engana, aquele ao qual sempre nos endereçamos (1955-1956/2002, p. 286-287). Esta temática, em Lacan (1949/1998, p. 97), ganhará destaque pelo estudo do Estágio do Espelho. O autor sustenta que a identificação com uma imagem unificada do corpo, antes sentido como fragmentado, se dará neste processo quando do encontro do bebê, entre os 6 e 18 meses de vida, com um espelho, contando com a confirmação do olhar e da fala do adulto cuidador. Ocorrerá a constituição do eu, e do não-eu, sobrando um resto, o objeto a, que fará com que a imagem nunca seja completa ou totalizante e que o bebê possa, assim, se constituir como sujeito falante e desejante, que será marcado pelo movimento de reencontrar este objeto que lhe falta. Com o outro, o sujeito estabelecerá um laço que passará pelo imaginário e pela função do eu, e haverá em ambos um mesmo vazio constitutivo, tendo em vista que se encontram no mesmo campo. Já entre sujeito e Outro o laço será de outra ordem, apontando para o ponto de furo real que organiza estes dois campos distintos. O sujeito se endereçará e dirigirá ao Outro visando nele encontrar aquilo que supostamente o completaria, o objeto desde sempre perdido, porém, por também haver um vazio no Outro e pela impossibilidade de se obter tal objeto, o que o sujeito encontrará 228 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 artigo infans, este poderá passar a sujeito do inconsciente, sendo também estabelecida a função do eu. Na obra freudiana, apesar de não encontrarmos considerações especificamente tratando do tema da solidão, temos importantes pistas para refletirmos sobre ele. Ao estudar a relação entre mãe e bebê, a partir da delimitação do Complexo de Nebenmensch (próximo ou semelhante), Freud (1950[1895]/1990, p. 447) aborda a instauração do psiquismo através do contato deste com o outro e seu desejo. Diante do desamparo estrutural do bebê, o próximo assegurador, a mãe ou algum outro adulto que poderá ocupar esta função, interpretará seus movimentos como apelo e demanda, lhe oferecendo algo, por uma ação específica, para sua satisfação. É o que Freud (Ibid.: 433) denominou de experiência alucinatória de satisfação. Neste ato, ocorrerá a inscrição de traços e marcas (sonoras, visuais, perceptivas) através da incidência das representações de desejo (Wunschvortellungen) do outro cuidador, sustentados pela fala e pelo olhar deste e pela ação do bebê de estabelecer e manter este laço. Haverá, ainda, a constituição da realidade psíquica pela introjeção do que é prazeroso e familiar e pela expulsão do que é estranho e hostil, ou seja, das Ding, o objeto absoluto. Simultaneamente, tem-se a delimitação de sujeito, objeto, outro, e, podemos dizer com Lacan, (1964/1998, p. 99), Outro, como alteridade radical. Na psicanálise lacaniana, Outro e sujeito são pensados de forma moebiana, em uma circularidade (Ibid., p. 196) que, entretanto, é assimétrica. Há, portanto, já em Freud e mais explicitamente em Lacan, a distinção entre o semelhante e o campo a partir do qual tanto este quando o sujeito se constituem. Lacan os denominará de outro e Outro, uma vez que: Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 229 Renata Mattos de Azevedo sujeito através da reprodução, pela linguagem, da situação vivida. Ao mesmo tempo, ele nos oferece uma forma de entender que, ao introjetar a falta, a ausência que o corte da separação marca, o sujeito poderá alternar esta ausência com a presença do outro e, assim, não congelar em sua solidão e sua condição de sujeito dividido. Mais que isso, essa falta, por ser o vazio de das Ding, perdido para que um sujeito pudesse advir, poderá ser contornada pulsionalmente como no caso da sublimação, fazendo com que o sujeito possa se endereçar ao Outro. Cabe destacar que a sublimação em Lacan não é apenas um destino pulsional que explica as criações artísticas, ela é uma condição fundamental para todos os sujeitos. Isto uma vez que a sublimação, “ao produzir-se no lugar da Coisa, que também é o da pulsão de morte, [...] manifesta a própria estrutura do desejo, que é movimento enquanto tal, em que o desejo é sempre desejo de ‘outra coisa’”, como nos diz a psicanalista Doris Rinaldi (1996: 123). Se pensarmos, portanto, a solidão com estas coordenadas, perceberemos que ela é uma condição estrutural de nós humanos, associada ao desamparo e mal-estar sobre os quais Freud nos fala, e que Lacan nos aponta ao dizer de um vazio na constituição do sujeito. É por este vazio que fazemos laço com nossos semelhantes e nos dirigimos ao Outro. Diante dele, podemos dar diferentes respostas, o que diferenciaria, por exemplo, uma solidão marcada por uma angústia e pelo sofrimento de perda, como nos casos de depressão, ou uma solidão que não passa por estes eixos de tristeza e desolamento, como em grande parte da obra de Hopper. Proponho que, na pintura de Hopper, o que se evidencia é uma solidão esvaziada de sentidos, uma solidão que passa por uma experiência singular e solitária do sujeito diante do real que, entretanto, não o impossibilita de investir libidinalmente em objetos e fazer vínculos com os demais sujeitos. Hopper oferece ao nosso olhar o vazio característico de nossa condição humana, e, ao nos 230 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 artigo será a sua própria divisão. Freud (1950[1985]/1990, p. 431) nos fala de um desamparo estrutural e de um mal-estar constitutivo que marca a condição do sujeito (Freud, 1930[1929]/1990: 160), efeitos tanto do recalque originário quanto do processo de castração. É preciso, com isso, estabelecer um corte entre o bebê e a mãe para que o sujeito possa surgir, o que é traumático para este. Ao separar-se do Outro, o sujeito encontrar-se-á em um estado de solidão radical, precisando estabelecer uma forma de elaborar esta falta, ainda que não de modo completo e definitivo, para poder fazer laços com os outros sujeitos. Ao trazer considerações sobre a repetição da experiência traumática da separação na brincadeira do fort-da de seu pequeno neto de 18 meses de idade, Freud (1920/2006, p. 141-142) apresenta um modelo para pensarmos como ocorre a elaboração de algo doloroso para um Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007 231 232 encontramos com suas telas, a solidão de suas cenas e personagens nos aponta para este vazio de uma maneira peculiar, nos chamando a surgir como sujeitos, tocados por habitar em nós uma solidão. E se digo “uma” e não “a” solidão é devido ao fato de que, a partir deste ponto estrutural em nós, cada um dará sentidos e tecerá histórias próprias, a partir de nossas posições singulares. A solidão que encontramos na obra de Hopper é, de fato a nossa própria, como também afirma Debecque-Michel: Hopper não procura fazer esquecer que a pintura é, igual ao teatro, um artifício, uma reconstrução, um mise en scène de elementos sobretudo subjetivos. O sentimento de solidão que atribuímos existir em seus personagens é na maior parte do tempo apenas o nosso, nós que somos espectadores de uma peça aparentemente simples e familiar, mas que não demora em se mostrar estranha e impenetrável. O espaço sutilmente distorcido ou contraditório que temos sob os olhos pode apenas nos deixar a meio caminho, em uma apreensão perturbada do tempo e do espaço, e em uma tensão que se aproxima à do desejo(Op. cit., p. 41-42) Certa vez, Hopper foi perguntado pelo escritor Brian O’Doherty sobre o que ele estaria procurando em seus quadros, mais especificamente naqueles fortemente marcados por um vazio, como em Sun in an empty room, de 1963. Em resposta, Hopper (apud Goddrich, op. cit.: 151) disse: “I’m looking after me” (Estou me procurando). Podemos, com esta frase, pensar, assim, que, diante da pintura de Hopper, nos é possível ter a experiência de * Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 233 Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 73-171. (ESB, 21). GOODRICH, L. Edward Hopper. New York: Harry N. Abrams Inc., 1993. LACAN, J. (1955-1956). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 367 p. _____. (1959-1960). O seminário: livro 7: a ética da psicanálise. 234 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 encontrar mais do que esperávamos, e surgir, ainda que pontualmente, como sujeito do inconsciente, com tudo o que isso implica; ou seja, como nossa divisão, nosso desejo, nosso vazio, e, também, nossa solidão. Tramitação: Recebido em: 26.06.2007 Aprovado em: 15.08.2007 Renata Mattos de Azevedo Rua Tamoios, 200. São Francisco – Niterói – RJ 24360-380 fone (21) 2710-0804 e-mail: [email protected] Referências: DEBECQUE-MICHEL, L. Hopper. Paris: Hazan, 1992. FREUD, S. (1950 [1895]) Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p.385-529. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1). _____. (1919). “Uma criança é espancada” – Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. In: _____. Uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1990a. p. 221253 (ESB, 17). _____. (1919). O estranho. In: _____. Uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1990b. p. 273-318. (ESB, 17). _____. (1920). Além do princípio de prazer. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Vol. 2. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2006. p. 123-198. _____. (1930[1929]). O mal-estar na civilização. In: _____. O futuro de uma ilusão, Mal-estar na civilização e outros trabalhos. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 235 Suelena Werneck Pereira Dominação e crueldade: articulações e distinções Instinct to master and cruelty: articulations and distinctions Suelena Werneck Pereira* Resumo: O objetivo desse ensaio é o de trabalhar as articulações, aproximações e diferenças entre os campos da pulsão de dominação e da qualidade humana da crueldade e seu estado afetivo. Tomando a pulsão de morte como fio condutor e o texto freudiano como o território a ser percorrido, procuramos entender de que forma os dois registros teóricos se apresentam e se de fato podemos articulá-los. Palavras-chave: Pulsão de dominação, pulsão de morte, intricação das pulsões, crueldade. Abstract: The purpose of this essay is to explore the articulations, approximations and differences that may exist between the register of the instinct to master and the human quality of cruelty and its affective state. Considering the death instinct as a guiding line and the Freudian text as the territory to be examined, we tried to understand in which way the two theoretical fields are presented and if one can effectively articulate them. Key-words: Instinct to master, death instinct, fusion of he instincts, cruelty. artigo 236 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997. 397 p. _____. (1961-1962). O seminario: livro 9: la identificación. Inédito. _____. (1966-1967) O seminário: livro 14: la lógica del fantasma. Inédito. _____. (1962-1963). O seminário: livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 367 p. _____. (1964). O seminário: livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 269 p. _____. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: _____. Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 96103. LYONS, D.; WEINBERG, A. D. (Org.) Edward Hopper and the american imagination. New York: Whitney Museum of American Art, 1995. 252 p. JORGE, M. A. C. Arte e travessia da fantasia. In: RIVERA, T.; SAFATLE, V. (Org.). Sobre arte e psicanálise. São Paulo: Escuta, 2006. P. 61-78 MARKER, S. Edward Hopper. New York: Crescent Books, 1990. RINALDI, D. A ética da diferença – Um debate entre psicanálise e antropologia. Rio de Janeiro: EdUERJ, Jorge Zahar Ed., 1996. SCHMIED, W. Edward Hopper – Portraits of America. Munich/ New York: Prestel – Verlang, 1995. 126 p. artigo 1 2 FREUD, (1895[1894, p. 110. FREUD, 1914, p. 82. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 237 Suelena Werneck Pereira O termo usado por Freud evoca sempre alguma violência e refere-se a tomar um objeto externo para si à força. Die macht, em alemão, raiz do termo adotado, denota o poder, o império, implicando a idéia de apropriação pela força. A diferença semântica entre dominação e domínio fica mais patente em alemão: domínio está ligado ao verbo bewältigen, usado para designar o controle que o sujeito tem sobre as próprias capacidades ou tendências internas. Bewältigung, traduzido por maîtrise, em francês, designa o fato de alguém se tornar senhor de uma excitação, seja ela pulsional, seja de fonte externa. Podemos então dizer que se dominação dirige-se sempre a um objeto externo ao sujeito, domínio serve para falar do si-mesmo-próprio. A questão da tradução também se fez notar em relação à dominação; em francês, Bemächtigungstrieb é geralmente traduzida por emprise, relacionada a entreprendre, que significa, originariamente, pegar com a mão, agarrar. Da mesma forma que o vocábulo em português, tem também o sentido de autoridade, de império, influência, ascendência. Há três dimensões semânticas do termo emprise; uma delas, e a que diz respeito mais diretamente àquilo que pretendemos trabalhar, e também a mais antiga, evoca a idéia de captura, de presa ou ainda de arresto. Em linguagem jurídica, designava a ação de tomar terrenos por expropriação, resultando de um atentado contra a propriedade privada. No nível interpessoal, tratar-se-ia de uma ação de apropriação por ‘des-possessão’ do outro. Um confisco, uma violência infligida e suportada, que traz prejuízo ao outro, que assim vê reduzida sua liberdade. O Vocabulário de Psicanálise, de 1967, traz a primeira reflexão moderna sobre o termo, marcando seu reaparecimento Idem, 1915, p. 115. Idem, 1920, p. 31. 5 DERRIDA, 2000, p. 48. 6 Ibid, p. 16. 3 4 238 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo Dominação e crueldade: articulações e distinções Instinct to matter and cruelty: articulations and distinctions Suelena Werneck Pereira Curioso o destino que o conceito de pulsão de dominação teve no corpo da teoria psicanalítica. A crueldade, como expressão de um estado afetivo do homem, como uma sua característica e capacidade, ou mesmo condição, aparece entrelaçada com o campo da dominação e do domínio; crueldade e pulsão de dominação estão sempre muito próximas no registro da metapsicologia. Sabemos que tanto domínio quanto dominação derivam do verbo dominar, que significa ter autoridade ou poder sobre, assim como conter, reprimir. Dominar, por sua vez, se relaciona com a idéia de senhor, de dono. Em português, ‘dominação’ e ‘domínio’ são praticamente sinônimos e apontam para o exercício do poder sobre indivíduos e grupos. Dominar também aceita o sentido figurado de apossar-se moral e psicologicamente de alguém, no contexto de se apoderar de um outro. O termo que Freud usou para designar aquilo que em português convencionou-se chamar de pulsão de dominação, Bemächtigungstrieb, talvez fosse mais bem traduzido por pulsão de apoderamento, já que o verbo [sich] bemächtigen, reflexivo, significa apoderar-se de. A idéia de poder está implícita no verbo dominar e acaba-se por adotar o termo cujo uso é o mais freqüente. DOREY, 1981, p. 113. DENIS, 1997, p. 26. 9 BERGERET, 2000, p. 25. 7 8 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 239 Suelena Werneck Pereira sobretudo como um meio que recebeu o encargo de dominar excitações que, em caso contrário, provocariam sensações penosas ou afetos patogênicos” 2 . Constatamos que o verbo bewältigen é uma palavra do mesmo grupo semântico de Gewalt, violência, força. Uma situação fora de controle, uma vez dominada {bewältigt}, pode sempre retornar ao estado anterior, o domínio não implica um controle total e completo. Em Pulsões e destinos de pulsão, Freud escreve que podemos atribuir “ao sistema nervoso o encargo (dito em termos gerais) de dominar os estímulos {Reizbewältigen}” 3. Dentro do mesmo enfoque, Freud escreve, em Além do princípio de prazer, que os sonhos da neurose traumática “tentam recuperar o domínio sobre o estímulo por meio de um desenvolvimento de angústia”. 4 Até esse momento, prossegue, o aparato anímico teria a tarefa prévia de dominar ou ligar a excitação, confirmando a idéia de que dominar os estímulos é ligá-los. Segundo Derrida, existe, indissociável do conceito de Bewältigung, que ele traduz como exercício do poder, da dominação ou da posse, movimento de apropriação, o conceito de pulsão de poder, isto é, da habilitação, aquilo que está por trás do ‘eu posso’. Essa pulsão de poder anunciaria, sem dúvida, um dos lugares de articulação do discurso psicanalítico freudiano com as questões jurídicas e políticas em geral 5. Apesar de os dois termos em questão serem praticamente sinônimos na língua portuguesa, consideramos que existe uma analogia e uma diferença entre dominação do objeto – à qual diz respeito especificamente a pulsão de dominação – e domínio da excitação. No mesmo texto acima citado, o Além do princípio de prazer, Freud, para explicar a repetição da brincadeira infantil do fort-da, assim como os sonhos da neurose traumática, sugere que podemos atribuir “esse afã a uma pulsão de dominação, que atuaria com independência de a lembrança em si mesma ser prazerosa 240 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo na metapsicologia psicanalítica. Mas é somente em 1981, com o número 24 da Nouvelle Revue de Psychanalyse, que o interesse em torno do conceito é definitivamente relançado. Por que será que a pulsão de dominação caiu no esquecimento, em um verdadeiro ostracismo teórico? Alguns autores consideram que o conceito é ambíguo e encontra-se em um impasse no plano conceitual: essas características seriam devidas ao fato de Freud ter apresentado a pulsão de dominação em três tempos e em três registros teóricos: no primeiro, a dominação seria a finalidade de uma pulsão específica, não-sexual; no segundo, vincula-a ao sadomasoquismo; no terceiro, a dominação seria uma expressão da pulsão de morte. Antes do advento da pulsão de morte no campo conceitual, as pulsões sádicas se alinhavam confortavelmente entre as pulsões do eu, se aproximando das pulsões de dominação sem propósito libidinal. O fato de alguém se assenhorear da excitação corresponde ao fato de ligá-la psiquicamente. Essa função de dominar o afluxo de energia que chega ao aparelho psíquico, ligando a energia até então em estado livre, é uma tarefa primordial do aparelho e está em um além do princípio do prazer. Constitui uma atividade do aparelho que, mesmo sem ser contraditória com o princípio de prazer, é anterior e independente dele. Essa função opera como um ato preparatório ao exercício do princípio de prazer. Verificamos que o termo Bewältigung aparece tão cedo quanto em um texto de 1895, sob sua forma verbal, referindo-se à prática do coitus reservatus, fato que “influencia perturbando a prontidão para a relação sexual, pois introduz outra tarefa psíquica, uma tarefa que distrai, junto com a de dominar {bewältigen} o afeto sexual” 1. No artigo sobre o narcisismo, encontramos a mesma idéia no trecho em que se lê que “entendemos nosso aparato anímico 10 FREUD, 1905, p. 175. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 241 Suelena Werneck Pereira prazer. Até 1920, a noção apontava para uma pulsão autônoma, não-sexual, apenas secundariamente ligada à sexualidade, sempre dirigida para o exterior, relacionada com a agressividade e que constituiria o único elemento presente na crueldade originária infantil. Seu objetivo é o de apoderar-se dos objetos. Freud considerava que com o desenvolvimento infantil, a pulsão de dominação se misturava com as pulsões sexuais, dando a estas certa parcela de agressividade. Ao examinar as origens do sadismo, aponta para a dominação como um componente agressivo da pulsão sexual. Este componente não é sádico em si mesmo: acontece que, para assegurar um domínio – Überwältigung - do objeto, um simples pedido não é suficiente. Não basta a demanda, não são bastantes o recrutamento, o aliciamento: é preciso certa força para agarrar o objeto, mantê-lo preso, para que ele possa servir à satisfação. Satisfação de quê? Nesse momento da teoria, à satisfação da função vital. É um despotismo no qual Freud vê uma necessidade biológica. Desse modo, o conceito apresentaria uma posição que podemos considerar como instável, entre pulsão sexual e pulsão de autoconservação. É como se a dominação, sendo uma qualidade do sexual, visasse impor as soluções da autoconservação à turbulência do sexual. Freud sublinha uma característica: a dominação é um ato sem má intenção. A própria crueldade, que ele vincula estreitamente com a dominação, não é, inicialmente, uma disposição má, ela não busca o sofrimento do outro. Isso só tem início com o sadismo, onde finalmente se inaugura o prazer com a maldade, com o fazer sofrer o objeto. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde a pulsão de dominação é pela primeira vez mencionada, a gênese da crueldade infantil é reconduzida a uma pulsão de dominação, sem 11 Ibid, p. 144. 242 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo ou não” 6. A dominação do objeto, no caso, seria correspondente à ligação entre a recordação traumática e a energia que a investe, no sentido de domínio que acabamos de mencionar. Trabalhamos com a idéia de ser a pulsão de dominação um dos derivados das pulsões de morte; o termo designa uma modalidade e uma proporcionalidade de mescla pulsional específicas. Visa sempre um objeto e sua meta é ditada pela presença inequívoca das pulsões de morte, o que lhe dá seu colorido característico. Apresenta-se sob diversas formas, entre elas a necessidade de controle, as condutas tirânicas, a vontade de poder. Há grandes dificuldades em circunscrever o conceito e os enfoques variam grandemente. Alguns autores consideram o maior problema a tendência a aproximar a pulsão de dominação à ação da pulsão de morte, o que tornaria o conceito dificilmente utilizável7; outros chegam a propor que, para fugir das ambigüidades e escapar, ao mesmo tempo de um enfoque puramente fenomenológico da questão, devemos dissociar inteiramente a pulsão de dominação de sua referência à pulsão de morte8. Temos ainda outra posição, a que apresenta a pulsão de dominação como uma pulsão completamente à parte, tanto da sexualidade como da pulsão de morte, como uma das pulsões fundamentais9. Como toda pulsão, a de dominação fala de uma atividade, de um pôr em movimento uma tendência do aparelho, de caráter propriamente pulsional e esforçante. Freud efetivamente liga, de forma estreita, dominação e agressividade. Não deu a esse conceito o desenvolvimento que mereceria uma noção central de sua teoria; tampouco seus discípulos mais próximos o elaboraram suficientemente. Poderia parecer que o destino da noção de pulsão de dominação estaria definitivamente selado: ficaria em estado de esboço. A noção de dominação tem, em Freud, basicamente duas concepções, uma antes e outra depois de Além do princípio de Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 243 Suelena Werneck Pereira época anterior à genitalidade. Compreende que a pulsão de dominação, em sua essência pulsional, é irrefreável, não conhece inibição por parte de uma capacidade de sentir pena ou comiseração, sendo violenta e até destrutiva, mesmo não tendo a destruição como meta primeira. A pulsão se apresentaria, então, em sua totalidade. Só depois, por identificação com o sofrimento do outro – tese semelhante à apresentada como explicação à aparentemente absurda meta pulsional de obter prazer infligindo sadicamente dor ao objeto -, o sujeito poderia colocar limites à sua crueldade. Nesse ponto de sua formulação teórica, postulava que as moções cruéis fluíam de fontes na realidade independentes da sexualidade, mas que ambas poderiam entrar em conexão precocemente devido à proximidade de suas origens. “Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas é-nos ensinado, acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana” 11. Afirma, entretanto, que a agressão mesclada à pulsão sexual seria um resto de desejos canibalísticos, com uma co-participação do aparelho de dominação que atenderia à satisfação de outra grande necessidade, ontogeneticamente mais antiga, ou seja, de uma função vital. Ainda nos Três ensaios, a musculatura é indicada como suporte da pulsão de dominação. O apoderar-se do objeto pode ocorrer tomando-se o objeto com as mãos ou mesmo incorporandoo. Esta mão, parte do corpo encarregada da dominação, já encerra, nas atividades masturbatórias da infância, um objeto que é sexual, o órgão erógeno. Mesmo que originariamente a dominação tenha se destacado da meta sexual, com ela se envolve rapidamente. A ação da mão faz prever a tomada do objeto sexual. Já podemos observar o vínculo entre a pulsão de dominação e a polaridade masculino-feminino e, sobretudo, ao seu antecedente pré-genital: a questão da atividade e da passividade. As diferenças de conduta se anexam às diferenças sexuais. Nesta postulação da polaridade atividade/passividade para a segunda fase pré-genital, a sádico244 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo a finalidade de infligir dor ao objeto. Na verdade, o sofrimento do outro não era simplesmente levado em conta. Já que este não é visado, podemos deduzir que a dominação é uma atitude anterior tanto ao surgimento da piedade quanto do sadismo propriamente dito, sendo, nessa acepção, independente da sexualidade. A dor do outro, entretanto, nada impede. Apesar de o sujeito ignorar o mal, seus atos são sem piedade – sentimento que ele desconhece – e sem pudor. Aquilo que chamamos crueldade é, na verdade, aos olhos do outro, o efeito de uma indiferença da pulsão de dominação à visão do sofrimento do objeto. A crueldade se nomeia pelo olhar alheio: ela nada mais é que a constatação objetiva dos efeitos da pulsão de dominação sobre o objeto mas não é, ainda, um modo de gozo sexual. Desse modo, a pulsão de dominação não pode ser distinguida das pulsões de autoconservação: no mínimo, poderá se alinhar entre elas. Ela assegura, ao dominar e manter o objeto, para dele dispor, o desempenho de uma função vital; esta é uma função que não possui uma ligação intrínseca com a sexualidade, podendo, entretanto, ser colocada a serviço desta. A crueldade decorre do fato de a pulsão de dominação não parar diante da visão da dor causada ao objeto; é um momento sem piedade por pura ignorância da idéia de ‘mal’. Poderíamos sugerir a seguinte progressão: dominação sem gozo mas também sem limites – crueldade como efeito, uma constatação objetiva dos fatos, mas ainda sem prazer sexual – sadismo, onde o prazer é obtido aliado à maldade e ao sofrimento infligido ao objeto. Na parte 4 do segundo dos Três ensaios, Freud escreve que se desenvolvem, na criança, independentemente das outras práticas sexuais ligadas às zonas erógenas, os componentes cruéis da pulsão sexual. A capacidade de se compadecer se desenvolve mais tarde e a crueldade é perfeitamente natural no caráter infantil10. Entretanto, supõe que a moção cruel surja na vida sexual em uma Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 245 Suelena Werneck Pereira ao serviço da função sexual. Desse modo, não só a crueldade aparece sexualizada como também a pulsão de dominação, em um segundo tempo de sua teorização. Entretanto, o aspecto não-sexual da dominação volta a ser apontado em Totem e tabu, também de 1913, onde se lê que o tabu, o toque físico proibido, não deve ser entendido num sentido exclusivamente sexual, mas sim no sentido mais geral de atacar, de obter o controle, de auto-afirmar-se. Desde 1910, no trabalho sobre Leonardo da Vinci, Freud em uma discussão acerca da sublimação, toma como ponto de partida a questão da investigação sexual infantil e a pulsão de saber, vista como correspondendo, já ali, por um lado a uma maneira sublimada da pulsão de dominação, e por outro, trabalhando com a energia da pulsão de ver. Tomando a teoria ali exposta, vemos que a pulsão de saber está indexada à investigação sexual infantil. Esta, conduzida pela pulsão de investigar, tivera seus afetos domesticados, submetidos, a paixão se transformara em esforço de saber. Entretanto, pulsão de saber não é o mesmo que pulsão de investigar: é antes de onde deriva o próprio investigar. Como já mencionamos, a pulsão de saber não é um componente pulsional subordinado exclusivamente à sexualidade: implica um modo sublimado da dominação, por sua vez originariamente não-sexual, e que trabalharia reforçada pela energia do desejo de ver, este já definitivamente sexual. Lembramos que o que tínhamos na época como não-sexual era o campo da autoconservação. Essas pulsões, logo chamadas de pulsões do eu, possuíam, conforme a teoria, uma energia própria não-sexual, o interesse: emanavam do eu e atendiam às necessidades de manutenção do indivíduo. Freud também postulava que o ódio, sentimento humano inequívoco, mas de gênese enigmática, teria origem na luta que o eu travava para escapar das ameaças do mundo externo, hostil, prodigador de estímulos: essa luta era operada, inicialmente pela musculatura. Dessa luta deriva- 246 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo anal, a atividade coincidiria com o sadismo e a passividade com o erotismo anal. Atribui a cada uma das pulsões parciais correspondentes uma fonte distinta: a pulsão de dominação na musculatura e o erotismo na mucosa anal. Assim constatamos que a relação entre dominação e analidade desde cedo se encontra presente nas elaborações de Freud. Assim como a dominação é considerada como um componente da pulsão sexual que trabalha com relativa independência das zonas erógenas e se volta para um objeto estranho ao eu, o mesmo vale para outras pulsões parciais que, imediatamente, buscam um objeto fora do próprio sujeito não sendo, desde o início, auto-eróticas: trata-se da pulsão de ver e de se exibir e da crueldade. Freud é obrigado a admitir que, desde cedo, há, na criança, uma escolha de objeto, com afetos poderosos. Este objeto é ‘produzido’ por essas pulsões parciais, contingente que é, e estas não prescindem dele e são objetais por ‘natureza’. Mesmo que inicialmente desprovidas de uma meta sexual em si, são elas que apontam à sexualidade seus objetos. Mais uma vez, e até esse momento, esse grupo de pulsões se aproxima teoricamente das pulsões de autoconservação. Num conjunto de textos contemporâneos aos primeiros acréscimos aos Três ensaios, conhecidos como Contribuições à psicologia do amor, Freud também atribui às pulsões de autoconservação a tarefa de apontar os objetos às pulsões sexuais. Numa modificação aos Três ensaios, de 1915, Freud, que antes afirmara que essas pulsões – de ver, de se exibir e a crueldade – estavam fora da sexualidade, agora as coloca fora apenas da genitalidade. A idéia do suporte muscular para a pulsão de dominação é mantida e se reapresenta diversas vezes. Em um texto de 1913, A predisposição à neurose obsessiva, Freud aproxima a pulsão de dominação, que ele denomina ‘comum’, da noção de sadismo, sobretudo quando ela é encontrada Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 247 Suelena Werneck Pereira obtenção de prazer, na última a meta é a de apoderar-se do objeto, mantê-lo para dele fazer uso, sem o objetivo de fazê-lo sofrer nem extrair dessa atividade necessariamente um gozo. São as pulsões de autoconservação as que apontam o objeto, o designando para as pulsões sexuais, função atribuída, depois do advento da segunda teoria pulsional, às pulsões derivadas das pulsões de morte. Para sermos mais precisos, seria exatamente o sadismo aquele que abre o caminho dos investimentos objetais, lançando em direção dos objetos o primeiro amálgama das pulsões de morte e Eros, na tentativa de possibilitar a vida do eu. Nesse segundo tempo da teoria da pulsão de dominação, esta, antes não-sexual, quando ao serviço da sexualidade passaria a constituir o sadismo. Nessa acepção, a pulsão de dominação se aproxima do conceito que virá a ser produzido, o de pulsão de morte. As zonas erógenas são lugares designados como passagens pelas funções vitais. O funcionamento vital, das pulsões de autoconservação, é transposto, do interior, pela sexualidade que insiste incansavelmente, senhor inexorável. A função vital exige que o objeto seja capturado, que seja mantido nessa condição, e é a pulsão de dominação a que desempenha essa tarefa, agarrando o objeto para que seja consumido, sem fim sexual. Esse mesmo objeto se tornará, pela subversão imposta pela sexualidade, por esse transbordamento da sexualidade entendido como a noção de apoio, o objeto sexual. Essa comunidade de tarefa é uma solução da autoconservação imposta à turbulência do sexual. Dominar o objeto com a finalidade de fazer cessar a fonte de estímulo é propriamente o papel primeiro da pulsão de dominação. Depois de 1920, a questão de uma pulsão de dominação específica coloca-se, para Freud, de forma bem diferente: ele agora a vincula à pulsão de morte, que lhe dá suporte e origem. A pulsão de dominação acaba por perder sua característica inicial de autonomia e passa a ser considerada como um derivado das pulsões 248 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo ria a pulsão de dominação, própria do eu. Já que a pulsão de saber é aqui considerada como um derivado sublimado, intelectualizado da pulsão de dominação, nos atrevemos a estender ao campo da teoria a expressão popular que afirma que saber é poder. Nesse momento teórico, o sadismo é compreendido como derivando da pulsão não-sexual de estender a dominação sobre o objeto, sem busca de prazer. Entre essa dominação, autoconservadora, de adaptação ao mundo externo, e o sadomasoquismo, sexual, há uma relação de apoio e é desse sadomasoquismo sublimado que deriva a pulsão de saber, tendo percorrido o mesmo caminho em direção oposta. A pulsão sexual de ver e ser visto se apóia na atividade não-sexual de ver, uma das pulsões parciais desde o início objetais. A atividade de ver comporta dois aspectos: um não-sexual, autoconservador, que serve à orientação do sujeito no mundo, fora de qualquer questão de prazer sexual: deriva do tocar, é uma extensão do tatear, explicação que se liga à teoria freudiana da percepção, que fala de uma espécie de emissão de tentáculos perceptivos que fazem uma coleta de amostras no mundo externo, para melhor nele se situar. O outro aspecto é sexual, num movimento de apoio no primeiro, e, através da emergência de uma simbolização sexual, se torna representativo, se torna a interiorização de uma cena. Podemos então dizer que a pulsão de saber comporta dominação e energia da visão, uma e outra se reencontrando na interiorização. Interiorizar é igualmente dominar, é ligar a uma representação. Freud considera que, com respeito à pulsão de saber, podemos dizer que ela pode substituir diretamente o sadismo no mecanismo da neurose obsessiva já que ela é uma ramificação sublimada da pulsão de dominação, presente de forma inconteste nesta afecção. Entretanto, como sabemos, sadismo e pulsão de dominação diferem quanto às suas metas: se no primeiro o alvo primordial é a Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 249 Suelena Werneck Pereira si-mesmo e assim desaparecer. O objeto perde seu estatuto e passa a fazer parte do sujeito; o intuito é o de fazer desaparecer o objeto, cujo surgimento foi motivo de angústia para o sujeito. A dominação pressupõe um desenvolvimento, um progresso na organização tanto libidinal quanto egóica. Mesmo na versão mais atenuada protagonizada pela dominação, haverá o uso da força e da violência, sinal inequívoco do predomínio das pulsões de morte nessa mistura pulsional. Se a pulsão de dominação surge, no texto, aliada à crueldade e ao sadismo, se desenvolve no sentido do uso da força para a subjugação do objeto. O prazer está nisso, com a conseqüente manutenção do objeto como tal, e não em sua simples destruição. Testa-se a potência de conquistar, o poder de submeter e para que isso se dê é preciso preservar o objeto. Houve certo amansamento, certa domesticação das pulsões de morte pela ação de Eros e aquelas passam a se satisfazer com resultados menos brutais e imediatos. A fase anal-sádica da evolução libidinal se caracteriza por uma organização da libido sob o primado da zona erógena anal; a relação de objeto está vinculada à função da defecação, com seu duplo movimento expulsão/retenção. Aqui se afirma o sadomasoquismo em relação com o desenvolvimento do domínio muscular e aqui se define a dominação do objeto, do exercício de poder sobre ele, seu controle. O controle se apresenta, na vida, sob a forma da avareza, da meticulosidade, da tentativa de tudo submeter, até mesmo os sentimentos do objeto. O fator mais pregnante passa a ser a retenção: se na oralidade todo prazer é contingente – a atividade introjetiva, típica, só está limitada pelas possibilidades de investimento libidinal, constituindo um universo aberto e sem limites – e passivo, na analidade se constroem as bases das faculdades de controle, cujo protótipo seria a retenção das fezes visando um prazer maior ao expulsá-las. 250 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo de morte, uma atividade destas ao serviço da função sexual. A gênese do sadismo é descrita como uma derivação, para o objeto, da pulsão de morte que visa, num primeiro momento, destruir o si-mesmo: a pulsão sádica passa a ser vista, inicialmente, como a pulsão de morte repelida do eu, expulsa, para que o eu possa sobreviver. Assim, a meta do sadismo se apresenta mais vinculada à destruição do que à dominação, permitindo uma distinção entre esses derivados. Entretanto, lingüisticamente, o conceito mantémse no campo semântico da violência, de um ato violento, o de apoderar-se pela força. Na fase da organização oral da libido, a dominação no amor coincide com a destruição do objeto, com seu aniquilamento, de acordo com a idéia de que possuir, dominar o objeto é o mesmo que incorporá-lo. Mais tarde, a pulsão sádica se separa e quando se chega ao primado da genitalidade, assume a função de dominar o objeto sexual, na medida em que o exige a realização do ato sexual. Vista sob esse prisma, parece-nos que de fato a pulsão de dominação aceita mais que uma definição, assumindo os revestimentos psíquicos da fase à qual está vinculada, assim perdendo sua especificidade metapsicológica. Entretanto, dominar o objeto não implica sempre destruí-lo; na fase oral canibalística, não havia outra maneira de possuir o objeto a não ser incorporando-o e isso significa sua destruição. Mas não estamos propriamente no terreno da dominação que só se apresentará mais tarde, mediante a habilidade de preensão, do uso da musculatura, principalmente a das mãos, e da capacidade de reter, antes ausente. O sentido próprio de dominar o objeto está ausente na modalidade incorporativa; não se trata disso e sim simplesmente de, devorando o objeto, fazê-lo penetrar no 12 DERRIDA, Op. cit., p. 14. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 251 Suelena Werneck Pereira mais do aspecto propriamente sexual do sadismo. Sua sedução assume o valor de uma fascinação, toda sua estratégia consiste em hastear o desejo erótico que o caracteriza, ao mesmo tempo em que tenta produzir no outro um desejo equivalente. O perverso procura obter de seu parceiro a aquiescência à sua exigência, a completa adesão às suas propostas, a resposta mais adequada à sua demanda que faça emergir, no outro, um desejo complementar ao seu. O outro, assim sugado, subtraído de seu desejo próprio, se vê negado na própria singularidade de seu desejo, em sua alteridade. O universo do obsessivo é totalitário: ele recorre à força, à tirania, à subjugação. A pulsão de dominação se expressa nele também como uma vontade de poder, o que faz dele um tirano. Esse poder, o obsessivo o exerce através de um controle permanente e repetidas intrusões no território do outro. Sob a dominância das pulsões de morte, presentes de forma maciça na sua dominação, o obsessivo pretende fixar, petrificar o que é vivo. No campo da idealidade, pretende criar um mundo perfeito, sem falhas, que muito se assemelha à quietude da morte. O domínio sobre o outro aparece sempre que existe uma relação de autoridade. Ele precisa imperiosamente exercer uma dominação absoluta sobre o outro; esta é uma questão de vida ou morte. Seu poder é, por isso, um poder mortífero; o obsessivo vampiriza seu interlocutor no afã de tornar quieta a turbulência da vida, capaz de imprevistos. Quando o outro resiste, o obsessivo usa sua destrutividade, pura e simplesmente, destrutividade essa que, mitigada, pretendia satisfazer-se na e com a dominação. Há sempre uma ameaça de ‘nadificação’ do outro. O essencial nesse movimento é a idéia de apropriação do outro, com a conseqüente expropriação de seu desejo, uma ação de embargo, de confisco da alteridade, bem no sentido arcaico 13 Ibid, p. 10. 252 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo A fase oral se caracteriza por uma impotência: o sujeito está privado não apenas de um prazer que possua uma qualidade específica como é afetado em sua integridade narcísica. No momento do fortalecimento de seu aparelho motor e do controle, cada vez mais apurado, de seus esfíncteres, a criança poderá obter prazer com seu corpo, prazer que ela mesma proporciona, através do movimento de retenção e de expulsão. O prazer anal tira suas características precisamente do fato de que esta é uma área fechada e seria obtido de acordo a uma modalidade autônoma, em si mesmo, e sem o auxílio de um outro. Isso põe fim à dependência obrigatória, ao desvalimento completo. O controle do objeto vale para o sujeito o restabelecimento da integridade narcísica que lhe fora negada no estágio oral. O anal se coloca diante de seu objeto, conquistando, assim, sua unicidade e também sua autonomia em relação a este. Introduz, desse modo, entre ele mesmo e seu objeto, uma instância até então completamente desconsiderada pela oralidade: a realidade. Ele não só se separa de seu objeto, que ele tenta controlar, como se opõe a ele. Esse objeto já é simbólico, precisa ser acompanhado da palavra. A pulsão de dominação já está implicada na produção do simbólico ao se distinguir sujeito de objeto, ao mantê-lo como tal e a sofrer com a possibilidade de perdê-lo. À diferença da oralidade, que tenta fazer desaparecer o objeto e assim apagar o desconforto da diferença e da separação, a analidade lida com a falta e a ausência. Manter o objeto, e perto de si, significa já poder considerar a distância e a falta. A afecção típica dessa analidade retentiva é a neurose obsessiva; a dominação é um de seus traços distintivos. A dominação do obsessivo se dá no registro do poder e na ordem do dever, diferentemente da dominação do perverso, esta no registro do erótico e usando como principal instrumento a sedução. A dominação do perverso, por essa ênfase no erótico, se aproxima Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 253 Suelena Werneck Pereira nidade, ruindade, maldade violenta. Etimologicamente, deriva do latim crudos, palavra que designa o que contém sangue, sangrento, ensangüentado, cru; contempla também o sentido de algo que não sofreu atenuação civilizatória, bárbaro, primitivo. Podemos também definir cruel como aquele a quem apraz derramar sangue, causar dor, aquele que gosta de fazer o mal, atormentar, maltratar. A presença do prazer é uma constante nas definições de crueldade, aproximando-a do sentido do sadismo. Em alemão, a palavra comumente usada é Grausamkeit e seu adjetivo, grausam. Podemos vincular crueldade a sua ascendência latina, ou seja, a uma história do sangue derramado, do crime de sangue; ou fazê-la derivar de outras etimologias, em que o derramamento de sangue não está implicado, como na palavra alemã, mas sim o sentido do desejo de fazer ou de se fazer sofrer por sofrer, para obter um prazer psíquico com o mal pelo mal, ou seja, para usufruir o mal radical. Em ambos os casos, a crueldade seria difícil de se determinar ou delimitar, como nos ensina Derrida13. Podese cessar a crueldade sangrenta mas uma crueldade psíquica será sempre suprida pela invenção de novos recursos: seria um estado da alma. Ao recorrer à palavra Grausamkeit, Freud a reinscreve numa lógica psicanalítica de pulsões de destruição, por sua vez indissociáveis da pulsão de morte. A crueldade seria inerente ao ethos, seu aparecimento é contíguo ao convívio com o outro, no duro processo de domesticação das pulsões. Em 1905, em seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud começa a circunscrever teoricamente o terreno da crueldade, vinculando-a à pulsão de dominação. Além disso, destaca-se o fato de existir prazer na dor, na humilhação e na sujeição infligidas ao outro. A crueldade, essa ‘pulsão’, assim como outras 14 15 NIETZSCHE, 1881/2, p. 354. DERRIDA, 1981, p. 47. 254 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo da palavra emprise, conforme mencionamos. O obsessivo não suporta no outro qualquer singularidade ou qualquer manifestação incontida de desejo erótico que o tome, por sua vez, como objeto: isso significaria perder o controle, ficar inteiramente à mercê de um desejo alheio. Diferentemente do sadomasoquismo, marcado pelo traço sexual, na obsessividade é como se não houvesse uma satisfação de natureza libidinal marcando o movimento. O ganho de prazer apresenta-se secundário, o prazer é subsidiário da finalidade primeira, a de dominar. Podemos até considerar que Eros participa, claramente, mas não sob a forma de uma ligação libidinal das pulsões de morte; é como se fosse uma ação à parte, desintricada, as duas tendências fundamentais agindo como que separadamente. A dominação do obsessivo é de e para a morte, uma morte destilada e invasiva. A ambivalência foi considerada como um exemplo privilegiado da desintricação pulsional, até mesmo de uma intricação que não se deu: na neurose obsessiva, há forças contraditórias claramente em ação, o que aponta para sua ambivalência essencial, sua dificuldade básica de integrar as moções amorosas com as destrutivas, estas de exagerada intensidade e configuração ditada pela violenta regressão. Derrida se pergunta sobre a existência de uma crueldade inerente à pulsão de poder ou de dominação soberana, tradução que propõe para a Bemächtigungstrieb, para além ou para aquém dos princípios, de prazer e de realidade. Poderíamos pensar num para além da própria pulsão de morte ou de dominação soberana, um para além de uma crueldade, um para além que não teria nada a ver nem com as pulsões nem com os princípios?12 A crueldade está associada, na língua corrente, a desuma- Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 255 Suelena Werneck Pereira nação. Afirma Derrida que, assim como a polaridade conservação/ destruição cruel, a que opera entre amor e ódio não deve ser julgada eticamente, não deve ser avaliada em termos de ‘o bem ou o mal’. Não temos por que avaliar a crueldade ou a soberania do ponto de vista da ética e Freud não o faz. Seria incongruente se o fizesse: tendo estabelecido que não existe vida sem a concorrência das duas forças pulsionais antagonistas, a psicanálise não pode nem deve condená-las. Temos que permanecer na neutralidade do indecidível. Freud sempre afirmou que não pode existir qualquer sentido em se pretender erradicar as pulsões de destruição, sem as quais cessaria a própria vida. Logo a seguir, nos anos de 1916 e 1917, a crueldade volta a ser entendida como um transbordamento da pulsão de dominação. Depois do surgimento da nova teoria pulsional e da nova tópica, passamos a encontrar inúmeras vezes a palavra cruel aposta ao conceito de supereu, como uma qualidade intrínseca a ele, explicável pelas condições de sua gênese. Talvez o aspecto mais brutal da crueldade seja o fato de ela desumanizar suas vítimas antes de finalmente destruí-las. A crueldade pode não levar à destruição do objeto mas está, indubitavelmente vinculada ao desejo de aniquilamento e ao ódio, colocando-se, assim, entre as mais ruidosas expressões afetivas das pulsões de morte. Sabemos que Freud sempre insistiu em dizer que não leu Nietzsche, pelo menos não o suficiente para por ele ser influenciado; entretanto, impossível não pensarmos no que o filósofo escreveu acerca da crueldade e encontrar analogias com o pensamento freudiano. Nietzsche aponta para a convergência dos aspectos ditos ‘negativos’ do homem e da força {die Macht}, presente na raiz de dominação. Considera que amor e crueldade não são contraditórios e se encontram sempre coabitando nas melhores e mais firmes na- 256 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 artigo pulsões parciais, não prescinde nunca de um objeto. Inicialmente independentes, crueldade e sexualidade rapidamente se articulam e passam a atuar na vida sexual infantil. Conforme já mencionamos, apesar de a dominação não ter como meta a dor e o sofrimento do outro, a ausência da piedade na alma infantil faz com que a crueldade se exerça sem barreiras, de forma incontrolável. Portanto, a crueldade infantil não está ligada, até esse momento da teoria, nem à compaixão nem propriamente à obtenção de prazer; ela é aquilo que é notado pelo outro no trajeto da satisfação da pulsão de dominação. A crueldade é ajuizada por um outro, geralmente um adulto, que percebe a atividade pulsional ligada à dominação sob esse viés. A livre expressão das moções cruéis vai sofrer impedimentos pela cultura, lê-se em Totem e tabu, de 1913. Entretanto, toda vez que um grupo social suprime toda e qualquer crítica às ações cruéis, recrudescem os atos de crueldade, de perfídia e de rudeza. Há uma grande diferença entre os preceitos dos povos primitivos e o cancelamento das amarras dos povos ditos civilizados: na segunda hipótese, vêm à tona sentimentos e ações que nem entre as práticas dos primitivos são encontrados. Surge aqui o paradoxo entre guerra e civilização, lei e violência. O ano é o de 1915 e em um artigo sobre a guerra e a morte Freud assevera que um Estado beligerante pratica o desrespeito, a crueldade, a destrutividade, a mentira e a fraude. A violência e a crueldade, próprias do homem e mantidas minimamente sob o controle em situações normais, se vêm completamente liberadas pela situação da guerra, onde são vistas como ações necessárias para manter a soberania de uma Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007 257 258 turezas14. A crueldade não tem nem admite contrário ou oposição, não postula conflito nem antítese, não carecendo, portanto, de nenhuma tentativa de superação. Posição semelhante assume Derrida. Freud nos fez ver que o mal existe na essência do homem sendo, portanto, diante da inelutabilidade de sua existência, irrealístico querer negá-lo ou suprimi-lo. Uma pulsão de morte irredutível a qualquer outra força parece inseparável daquilo que é, obscuramente, chamado de crueldade. Afirma que o único discurso capaz de enfrentá-la, dimensioná-la e entendê-la é justamente o discurso psicanalítico. A psicanálise seria a disciplina que poderia se voltar para o que a crueldade psíquica teria de mais próprio: é o campo em que a psicanálise se desdobra. Salienta a ocorrência da palavra crueldade sobretudo em certos textos políticos de Freud e considera que também temos que situar, ao mesmo tempo que o tema psicanalítico da soberania ou do domínio, o tema de uma pulsão de dominação, de poder ou de posse. Derrida já havia mostrado como o conceito de Bemächtigungstrieb tem um papel decisivo no texto de 1920, “para além ou para aquém dos princípios, como princípio dos princípios, sobretudo presente na ambivalência amor/ódio e no desencadeamento da crueldade que leva à hipótese de um sadismo originário”15. Convida-nos a pensar sobre esse horizonte, que lhe parece próprio à psicanálise, o da crueldade psíquica, exangue ou não necessariamente sangrenta, e sobre o prazer agudo tirado Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 259 260 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 do mal na alma. A pulsão de morte é uma das forças que regem o destino do homem; a pulsão de dominação é uma sua derivada, uma das formas de Thanatos, e está infiltrada em suas organizações e instituições sociais, como o Estado, e se exerce como crueldade e soberania. Freud aponta, em um texto sobre a guerra, de 1932, que não existe direito sem poder, como atesta o primeiro título desse texto, antes do definitivo Warum Krieg?: Recht und Gewalt, direito e violência. Estabelece, assim, a diferença entre a força necessária para a criação e a imposição da lei, e a crueldade, que pertence a outro domínio. Como exercer de forma adequada o poder sem ceder à tentação da crueldade? Compreendemos que violência e poder são duas faces de uma mesma moeda, como duas instâncias que se articulam, em constante dialética. A crueldade, entretanto, pertenceria a outro campo, àquele que escapa a qualquer tentativa de regulação, de contenção. A crueldade seria o lugar de uma radicalidade sem igual e sem possibilidade de transformação, à diferença da violência, do poder que dá lugar à lei. Freud acredita na impossibilidade de se desenraizar o ódio e as pulsões de destruição e Derrida reafirma ser uma ilusão acreditar numa erradicação possível das moções cruéis, das pulsões de dominação ou da vontade de soberania. Postula a crença de Freud no fato de a crueldade não possuir contrário: ela é ligada à essência da vida e da vontade de poder. Sendo uma crueldade irredutível, qualquer contrário apenas poderia se compor com ela. Eros é o termo que pode se opor mesmo que a crueldade não tenha fim, operando um desvio em seu destino. Freud justifica, pela vida, o amor à vida. * Mestre em Psicologia/UFRJ; Psicanalista, Membro Efetivo/SPCRJ; Professor Adjunto/UGF; Coordenadora e Docente da Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica/UGF. 1 Tanis, op.cit, p.28-28. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 261 Eliane Segabinazi Moreira Suelena Werneck Pereira Av. Epitácio Pessoa, 4000, apto. 301. Lagoa- Rio de Jeneiro – RJ 22471-003 Fone (21) 2527-5036 e-mail: [email protected] Tramitação: Recebido em: 26.06.2007 Aprovado em: 15.08.2007 Referências BERGERET, J. La violence fondamentale. Paris: Dunod, 2000. DENIS, P. Emprise et satisfaction. Les deux formants de la pulsion. Paris: Presses Universitaires de France,1997. DERRIDA, J. Spéculer – sur Freud. In: La carte postale. Paris: Aubier-Flammarion ,1981. ____. États d’âme de la psychanalyse. Adresse aux États Généraux de la Psychanalyse. Paris: Galilee, 2000. DOREY, R. La relation d’emprise. In: Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 24, automne. Paris: Gallimard, 1981. FREUD, S. (1895[1894]). Sobre la justificación de separar de la neurastenia un determinado síndrome en calidad de ‘neurosis de angustia’. Buenos Aires: Amorrortu ed., 1986 (Sigmund Freud Obras Completas, 3). _____. (1905) Tres ensayos de teoria sexual. , Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC,7). _____. (1910) Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci, Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 11). _____. (1910, 1912, 1917) Contribuciones a la psicologia del amor. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC 11). 262 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 resenhas _____. (1913) La predisposición a la neurosis obsesiva. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 12) _____. (1913[1912-1913]) Tótem y tabú. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 13). _____. (1914) Introducción del narcisismo. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 14). _____. (1915) Pulsiones y destinos de pulsión. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 14). _____. (1915a) De guerra y muerte.Temas de actualidad. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 14). _____. (1917[1916]) Conferencias de introducción al psicoanálisis. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 16) . _____. (1920) Más allá del principio de placer. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 18). _____. (1930) El malestar en la cultura. Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 21). _____. (1933[1932]) ¿Por qué la guerra? (Einstein y Freud). Buenos Aires: Ammorrortu ed. (SFOC, 22). IRMEN, F. & KOLLERT, A.M. Langenscheidts Taschenwörterbuch. München: Langenscheidts, 1995. LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1970. NIETZSCHE, F. (1881-82) Le gai savoir. Fragments inédits. Paris: Gallimard, 1967. REY-DEBOUE, J. & REY, A. (Dir.) Le nouveau Petit Robert. Paris: Dictionnaires Le Robert-VUEF, 2003. Resenhas Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 263 Eliane Segabinazi Moreira de São Paulo, nos contempla com a riqueza e sensibilidade de sua Tese de Doutoramento em Psicologia Clínica na PUC-SP - “Circuitos da Solidão” – cuja publicação ainda inclui duas excelentes apresentações de Renato Mezan, seu orientador, e Luís Cláudio Figueiredo. A força motivadora para a pesquisa ampla e profunda da solidão originou-se de sua vivência clínica com pacientes aludindo às mais diversas expressões do sentimento de solidão e isolamento. O uso transferencial da solidão, o impacto contratransferencial no analista, vão dimensionando a importância de se adentrar no estudo deste tema, que parece apontar para o binômio subjetividade-solidão, ainda carente de maior investigação psicanalítica. Tanis reconhece a necessidade de um “espírito desconstrutivo e crítico” (p.27) nos primeiros tempos deste trabalho, na medida em que analistas e psicólogos muitas vezes, “reificavam seus conceitos ou universalizavam suas teorias indiscriminadamente” ( loc.cit.). Mas o autor também advoga a necessidade, imperativa, de se estabelecer um “diálogo fecundo”1 entre conceitos e modelos epistemológicos e a prática clínica, em busca de se forjar identidades, especialmente para a Psicanálise, que possam transcender o aspecto cosmético usual das referências ao que se nomeia contemporaneidade. Nesta obra, pois, propõe-nos a com ele sermos “visitador (es) de solidões”; a também caminharmos por diferentes contextos históricoculturais e aproveitarmos, no percurso, da riqueza da Literatura – a seu ver, muito mais íntima com o campo da alma humana - como guia a nos apresentar os circuitos visitados e a contribuir com a Psicanálise. Mesmo admitindo que temos, como analistas, muito ainda a explorar metapsicologicamente a temática da solidão, Tanis proporá transitarmos por alguns de seus circuitos – “circuitos da solidão”- recuperando à lembrança alguns autores e conceitos psicanalíticos. Ao longo desta obra passearemos por Freud, Klein, 264 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 resenhas Os circuitos da solidão Bernardo Tanis Eliane Segabinazi Moreira Elas não sabem o que dizem. Virginia Woolf, as mulheres e a psicanálise. Maud Mannoni Carla Pepe de Souza Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades Rossano Cabral Lima Maria Helena Lara de Vasconcellos resenhas Circuitos da Solidão: entre a clínica e a cultura The ways of solitude: between clinical treatment and culture Bernardo Tanis. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2003. Eliane Segabinazi Moreira * Bernardo Tanis, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 265 Eliane Segabinazi Moreira uma falta de ser, pois é pelo amor que os humanos se relacionam uns com os outros” (Katz apud Tanis, p.34). Em contrapartida, os eremitas propunham o afastamento da vida mundana. Outros ainda, como os monges em suas abadias, tentariam conciliar o isolamento que purifica e possibilita a meditação, com a oração em conjunto. Gradativamente, observa Tanis, a Igreja apercebeu-se da importância no controle do grau de afastamento, no sentido de evitar diferentes riscos, inclusive as heresias. Não menos ambivalente foi o pensamento medieval acerca da solidão, que tanto podia ser objeto de suspeita como de admiração. Um ganho inicial desta viagem, certamente, é termos a solidão podendo ser contemplada com distintos olhares, não aprisionada a uma única idéia de algo ruim e aterrador. No abissal da solidão, era o eu encontrando o seu refúgio – encontrando-se. Era o eu em sua intimidade. Este seria o grande legado deixado à Modernidade: mergulhar na “solidão [... no seu] papel germinativo, produtor de subjetivação”(p.37). No começo da era da Modernidade vimos a ênfase no cultivo do eu em detrimento dos laços vinculares, bem como a progressiva separatividade entre as vidas pública e privada. Era o indivíduo descobrindo o valor da liberdade e a possibilidade de expressála em quaisquer setores de sua vida; sua maneira pessoal de relacionar-se com o Sagrado e de interpretar as palavras de Deus; sua relação com o poder político tendo a Revolução Francesa e a Independência Americana como dois grandes exemplos vão nos confirmando a transformação evidente na sociedade. A sociedade holística de até então, na qual o valor se centralizava no social, vai sendo substituída por uma “[sociedade] na qual o indivíduo como valor refunda o social” (p.19) – é o individualismo exacerbado, liberal, que, explorado pelo capitalismo levará a Modernidade à sua crise. Era a idéia de, pela ênfase no indivíduo e em sua liberdade, 2 3 “Jura Secreta”, de Sueli Costa e Abel Silva. Birman, 2000, p. 119, apud Tanis, 164. 266 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 resenhas Winnicott, Dolto, em aspectos de suas teorias vinculados à solidão; seja com a noção de desamparo ou de separação, ausência, narcisismo, identificação, dependência, capacidade de simbolização. O link que estabelece entre a teoria psicanalítica, os contos literários do século XIX tão bem escolhidos e ilustrativos ( Edgar Allan Poe, Machado de Assis, Guy de Maupassant, Henry James e Franz Kafka) e a prática clínica enfatizará, mais ainda, a necessidade da abrangência de vários saberes e compreensões a fim de tentarmos, guiados por sua pena, capturar o mais possível da vastidão polissêmica da solidão. Todas essas visitas vão se tornando muito interessantes, porque o convite do autor nos é feito numa clareza de linguagem, num roteiro tão bem planejado e exposto, que não há como recusálo. Também, em outros momentos, Tanis é pungente, como quando afirma que “[a] solidão revisitada na perspectiva deste trabalho recupera a história social encriptada no sujeito individual”(p. 10; grifos meus), dando a cada um de nós um intenso sentimento de pertencimento à humanidade, às suas criações e sofrimentos. É a solidão acompanhada de “muitos caminhantes solitários; personagens literários, autores e pacientes”(p.21). A Antiguidade é o porto do qual partimos com Tanis nesta aventura. Naquele momento histórico a solidão era ainda atrelada à dimensão espacial: estar, ou não, próximo à comunidade, à família. A ambivalência também estava presente no estado de solidão que, para alguns, como os gregos que viviam o exílio, o afastamento da polis era experimentado como punição; para outros, entretanto, como os hebreus, o deserto era, ao contrário, o lugar bíblico da revelação divina. No Cristianismo também não houve uma concepção homogênea da solidão. Santo Agostinho a recusou: “a solidão é um negativo, 4 5 Winnicott, 1958. Klein, 1940. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 267 Eliane Segabinazi Moreira vazio interior aparece como vivências alucinatórias, alteração de consciência, perturbações têmporo-espaciais. “O Horla”, de Guy de Maupassant já nos traz a experiência de um personagem frente à emergência de algo sinistro a espreitá-lo: o perigo iminente e inquietante que interrompe sua felicidade, e que nada mais é do que o outro de si mesmo. Nessa temática do duplo – o estranho de nós que nos habita e pode, a qualquer tempo, nos surpreender - o eu é invadido por angústias psicóticas que vagam, transbordam e desembocam no Horla, uma assombração que surge do interior do eu. Tanis aqui aborda o eixo solidão-narcisismo. Na solidão abissal, sem a mediação do outro, fechamo-nos e, em nossa potência narcísica, muitas vezes a maneira de encontrar alívio perante nossos Horlas será pela via da morte como única saída de libertação desse outro em nós que exerce sua saga assassina. À luz deste conto, 268 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 259-268, 2007 garantir a igualdade de direitos a todos os Homens. Se a igualdade traria o sentimento identitário, em contrapartida redundaria em crise de solidão. Neste contexto cultural viria o Romantismo fazer suas denúncias à Modernidade e mostrar que “a unicidade nos deixa irremediavelmente sós”(p.54). É a solidão em sua pungência, mostrada “na nostalgia de uma comunhão verdadeiramente autêntica com o outro”(loc.cit). E assim, guiados por Tanis, vamos nos aproximando, como herdeiros de tantas tensões históricas, do clima mais próximo àquele em que hoje vivemos. É o homem alienado, isolado nas grandes cidades que surgiram e ganharam novos projetos urbanísticos no século XIX. Nosso homem é mais um na “multidão solitária”(p.49). Neste momento Tanis se utiliza da Literatura para nos aproximar de alguns eixos de solidões com os quais nós – analistas – convivemos no dia-a-dia de nossos consultórios. “O homem na multidão”, de Edgar Allan Poe, revela a “companhia ilusória do outro”(p.73) que buscamos ao nos embrenharmos na massa humana. “O espelho”, de Machado de Assis, nos coloca em contato com Jacobina, o personagem ignorado até por seus familiares enquanto não ascende profissionalmente, mas, por outro lado, “[a nova condição de] alferes elimin[a] o homem”(p.76)... Quando sozinho e sem o olhar do outro para lhe confirmar a existência, procura-se no espelho. Precisa ser olhado e ver-se olhado, mas em lugar de sua imagem depara-se com o nada. Veste então a farda de alferes e somente assim consegue encontrar o seu reflexo. Tanis utiliza-se da falta de identidade de Jacobina para nos remeter à vivência adolescente da carência identitária em sua necessidade de buscar-se em marcas concretas de pertencimento a grupos sociais. É o que nomeia como sendo o eixo solidão-identificação, no qual uma organização precária do eu, sem a confirmação do outro, se desmantela e o *Membro Associado/SPCRJ; Especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica/UGF. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 269-273, 2007 269 Carla Pepe Ribeiro de Souza ao encontro do pensamento de Birman, quando este postula que “o Modernismo é a consciência crítica da Modernidade. Até mesmo sua autoconsciência” 3. O eu foi atravessado pelo estranho-de-simesmo, pelo pulsional que irrompe, por um contexto cultural de intensa massificação onde cada um de nós se torna só mais um – um anônimo na multidão. A solidão, desta forma, aparecendo com toda a sua força negativa: o homem em seu casulo e esvaziado de si. Fenômeno mais agravado ainda na Contemporaneidade, com a crise da família, do desenraizamento das tradições, com a cultura do narcisismo à custa, às vezes, até mesmo da violência e hostilidade extremas no alheamento ao outro, no consumo crescente de drogas, na sexualidade maníaca e maquínica. Sob a égide da Modernidade, muitos de nós, não dispondo da capacidade necessária para realizar a gestão de conflitos, entre o pulsional e o cultural, defendida por Freud em “O Mal-estar na civilização” (1930), vivem entregues à agonia da solidão-desamparo. Outros, entretanto, serão capazes de desenvolver processos sublimatórios, como a criação científica ou artística, e, assim, o estranho-de-si pode ganhar alguma configuração familiar e menos fantasmagórica na produção de teorias ou filmografia, ou literatura... Ou seja, a condição individual de trabalhar plasticamente com a pulsão pelas mais distintas vias sublimatórias em lugar de, na escassez desta condição, simplesmente buscar objetos que possam obturar a falta (Dolto). Capazes de mergulhar densamente em suas solidões, estes podem sentir-se então acompanhados por dentro, pela riqueza de seus mundos internos povoados de objetos inteiros, restaurados... vivos! Eis a solidão positiva, plena de simbolização, na qual se pode “estar a sós em companhia do outro” 4; solidão possível a partir da elaboração da posição depressiva5 na qual o reconhecimento da existência do outro e de suas qualidades podem transformar o sentimento de abandono, perseguição, ressentimento, 270 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 269-273, 2007 resenhas Tanis ilustra e conjuga a riqueza dos textos de Freud ( O Estranho), Klein ( seus estudos aprofundados sobre o mecanismo da cisão e as angústias psicóticas) e Winnicott (suas teorias sobre a integração da personalidade). Continuando a visitação pelas solidões, Tanis nos conduz ao eixo da solidão-a-dois através do conto de Henry James, “A fera na selva”, quando May aguardará até a morte pela declaração de amor de Marcher, cuja neurose o impedirá de viver o momento de pronunciar seus sentimentos pela amada. Marcher passa a vida a esperar o “momento especial para apoderar-se daquilo que [ na verdade, já] está à disposição” (p. 96). Escapa-lhe o tempo; a vida de May chega a seu fim, e só então Marcher “descobre o que [já] possuía” (loc.cit). Um amor não vivido, não enunciado, e que me faz recordar, do cancioneiro popular brasileiro, o verso duro e poético: “só uma palavra me devora: é aquela que o meu coração não diz...”2. Adiante nos encontramos, seguindo o roteiro traçado por Tanis, com outra solidão, em Franz Kafka e sua obra “A construção”. Trata-se de um personagem aprisionado na ilusão de estar conseguindo, por meio de uma construção, defender-se de todos os perigos externos. Aliena-se, solitariamente, crédulo de seu êxito, sem dar-se conta do quanto vai ficando cada vez mais à mercê de sua terrível construção fantasmática. A construção funde-se com o eu que pretendia habitá-la, como bem observa Tanis, semelhantemente a situações clínicas, quando alguns analisandos assumem por identidade justamente a doença, desenvolvida à guisa de método defensivo: é quando se dá a alienação da subjetividade na racionalidade exagerada do obsessivo, no órgão doloroso do hipocondríaco, no delírio do paranóico, nas inibições da histérica... Através da preciosa seleção ilustrativa dos contos literários Tanis constrói o desmascaramento das verdades defendidas na Modernidade: o domínio de um discurso baseado na razão e na ciência e a centralidade no eu e na consciência. Seus argumentos vão Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 269-273, 2007 271 Carla Pepe Ribeiro de Souza Referências KLEIN, M. (1940) O luto e suas relações com os estados maníacodepressivos. In. ____. Amor, ódio e reparação e outros trabalhos (1921-1945) Rio de Janeiro: Imago, 1996 ( Obras completas de Melanie Klein, 2). WINNICOTT, D.W. (1958) A capacidade de estar só. In. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. resenhas Elas não sabem o que dizem. Virginia Woolf, as mulheres e a psicanálise. They do not know what they say. Virgninia Woolf, women and psychoanalysis. Maud Mannoni; tradução, Lucy Magalhães – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, 126 p. Carla Pepe Ribeiro de Souza* Freud dizia que “os poetas e romancistas detêm o conhecimento da alma, são nossos mestres, pois beberam em fontes que nós, homens comuns, ainda não tornamos acessíveis à ciência” (Mannoni, p.9). Nesta obra M. Mannoni nos permite fazer uma viagem à história de Virginia Woolf e toda a sua luta pela presença da mulher na sociedade. Foi o amor pela escrita que uniu estas duas guerreiras Mannoni e Virginia. É pelo texto de Mannoni se pode percorrer as trilhas do desamparo de Virginia perante de uma história marcada 272 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 269-273, 2007 resenhas em gratidão e desejo de cuidar, criar, transformar e transformar-se. Como apontou Freud - fazendo alusão aos movimentos de rotação e translação do Planeta Terra - um homem com eixo próprio, em torno do qual possa ser capaz de conciliar seus movimentos: de perceber a si e também ao outro, podendo Ser – simultaneamente , solitário e solidário. O percurso investigativo pelos circuitos da solidão é denso e rico, sensível e precioso, fazendo de Bernardo Tanis um bom guia. As solidões assim re-visitadas, em diversos eixos de tensões, podem descortinar, também, diferentes possibilidades de sentido. Podemos, pois, agradecer a Tanis as luzes de sua criação e a boa companhia neste passeio. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 269-273, 2007 273 274 por perdas. Marcas que nos possibilitam um mergulho na solidão de uma era vitoriana quando Virginia lança mão da escrita para ordenar suas angústias e aflições. Cada capítulo um texto, um livro, um tema desenvolvido: é a casa que desmorona com a morte da mãe; é o corpo invadido pelo abuso; é o encontro amoroso que a faz caminhar em sua “letra”. Manonni cita Winnicott para falar do desamparo de Virginia na relação com a sua mãe, sempre ligada ao marido e às coisas da casa. Este tema, recorrente em seus livros, nos mostra como sua capacidade criativa foi fundamental para conter o medo de desabamento que a acompanhava sem a sustentação amorosa da maternagem. Pois seria exatamente neste movimento de criação – e de recriação de si-mesmo - que o sujeito precisaria estar envolvido para poder dar continuidade a seu existir. O texto de Mannoni através dos escritos de Virginia nos possibilita um passeio pelo tempo acompanhado pela psicanálise, marcando os confrontos desta com pensadores importantes e a desqualificação da mulher na época. Fala-nos, assim, ainda dos encontros e desencontros entre Virginia, Freud, Klein e Lacan. Em um “Teto todo seu” Virginia coloca claramente a questão da barreira erguida entre os sexos e é nesse momento que ela questiona Freud em relação à inferioridade da mulher ou sua própria superioridade. As primeiras conjecturas de Freud (1925-1932) acerca da questão da mulher - “O que pode levar as mulheres a desejarem homens, fazendo-as abandonar assim o seu primeiro objeto de amor? - conduzem a outra indagação: “Qual é o obstáculo que pode constituir uma transferência paterna que, tal como o refúgio edipiano arduamente conquistado, mascara a força das primeiras aspirações?” (Mannoni, p.50). * Psicanalista; membro efetivo/SPCRJ; Mestre em Psicologia Social/UGF; Docente da Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica da UGF. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007 275 Maria Helena Lara de Vasconcellos Virginia leva ao leitor feminino a possibilidade de questionamentos. Faz com que pensem que lugar ocupa esta mulher no imaginário masculino (santa e prostituta), que lugar ocupa para além da reprodutora e sobre seus direitos em relação à fecundação intelectual. Deixa clara a idéia da histeria como doença da época, ou seja, a mulher teria o direito de dispor de seu corpo como bem quiser. No livro, “Entre os Atos” Virginia aponta para a ambivalência em relação ao pai, através da fixação infantil da criança pela a mãe, chegando à fixação do pai à filha. Fixação esta que redundará na possibilidade de a menina de vir a ser mulher. Justo porque o pai interfere na relação mãe-filha é que esta tem a possibilidade de usufruir de sua ( dela própria ou do pai?) capacidade intelectual. O pai precisa ser nomeado pela mãe para que este processo ocorra: para que a figura da mãe torne-se pano de fundo e a figura do pai possa, por um tempo, emergir em primeiro plano. No capítulo cinco, Mannoni retrata, na peça teatral “O Desaparecimento da Mãe” ( quando), o mundo das aparências, da vaidade, da guerra, do fascismo e do corpo da mulher como geradora de futuros soldados, fazendo uma interlocução com os textos de Freud, “Moisés e o monoteísmo” (1939) e “Totem e Tabu” (1912-1913), onde se funda o assassinato do pai que gera a mobilização das mulheres e a culpa nos filhos que tomam o poder do pai: “É, pois sobre a restrição das pulsões que a sociedade se funda e a civilização começa. Freud descobre no Édipo, o começo, ao mesmo tempo da religião, da moral, da sociedade e da arte... e o núcleo de todas as neuroses”. (p.64) O autor trama com clareza e simplicidade os fios de pensamento de diversos autores para tecer suas próprias considerações: Bauman, Weber, Senett, Lach, Sfez, Rabinow, Ortega, Castel, Lyotard, Little, Tredgold, Strausss, Clements, Werner, Dupré, Bradley, Goldman, Lowe e Winnicott – apenas para citar alguns. 1 276 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007 resenhas A peça nos faz pensar a família, a esposa amorosa, o marido que dita as regras de boa conduta, com direito a infidelidade, evidenciando assim uma relação de amor e ódio. A mulher deve ao marido sua existência de esposa, mas nunca recebe a reverência por ser a mãe de seus filhos: “Essa anulação da mulher, condenada a não ser, sem outra razão de viver senão continuar sendo um puro objeto, “propriedade” do homem. (p.72) Prisioneira de uma época em que só o homem podia escrever, Virginia não se permitia produzir como mulher. Ela teme ser criticada pelos homens, sobretudo pelo pai. “E é verdade que a [mulher] vitoriana, caso se autorizasse a escrever, devia fazê-lo sob um pseudônimo masculino para que tivesse sua obra considerada. Ora V. Wolf, engajada no serviço da “causa” das mulheres, tem, entretanto, algum escrúpulo em indicar o lugar de onde fala. Mas é realmente a diferença que ela reivindica. Por que, na verdade, se diria da mulher bem-sucedida que sua ação ou sua obra são dignas de um homem? Dilacerada entre repressão e desvelamento de uma verdade do estar-no-mundo da mulher, “mulher em escrita”, nas palavras de Defromont, se sentiu no direito de existir?” Freud nos diz que o homem encontra a mulher apenas por três vezes: na figura da mãe, da amante e da morte. “Mas é em vão que o homem maduro procura recuperar o amor da mulher, tal como ele o recebeu primeiro da mãe: somente a terceira das mulheres do destino, a silenciosa deusa da morte, o tomará nos braços.”(p.79) Ritalina é o nome comercial do medicamento, ministrado, quase invariavelmente, aos pacientes diagnosticados em qualquer nível de gravidade. Outras drogas também são prescritas, inclusive anti-psicóticos. 2 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007 277 Maria Helena Lara de Vasconcellos não estaríamos aqui. O que importa para a criança é que sua mãe tenha um desejo fora dela, criança; é que sua mãe tenha uma razão de viver fora do lar. Essa conquista do feminismo não tem preço, tanto para o bem-estar do filho (que amará ainda mais a sua mãe, por ela não viver a sua vida através dele), quanto para o equilíbrio da mãe, cujo universo não deveria ser limitado unicamente à família nuclear.” (p.104). Cada um de nós vive na solidão. E é através da internalização das figuras parentais que teremos esta possibilidade. Virginia tenta sua travessia através da escrita, ela revisita sua relação com os pais, com as invasões, com a possibilidade de produção. Faz uma tentativa de elaboração de suas perdas; mas a força destrutiva do obscuro, do intraduzível, a faz concluir seu mergulho para sempre em suas lembranças. resenha Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades Rossano Cabral Lima. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, 161 p. Maria Helena Lara de Vasconcellos* A questão-título do livro de Rossano Cabral Lima surge a propósito de uma necessidade de entendimento deste fenômeno distúrbio de atenção com hiperatividade – que parece grassar, de forma surpreendente, em nossos dias. É crescente o número de pais de crianças atendidas em nossa clínica que nos chegam – entre surpresos e aliviados – com uma pergunta ou já um diagnóstico desta ordem 278 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007 resenhas A mãe tem como função transmitir ao filho o laço da morte com a vida. A companheira amante “vem substituir a imagem ideal da mãe da primeira infância, ela tem a obrigação de ser dócil” para não se tornar uma ameaça. “Essa ameaça pode tomar a forma, entre outras, de um obstáculo à carreira deste, quando o amor vem contrariar ou até impedir a sublimação” (p.79). Quanto à aceitação da mulher em posições de destaque, destaca sempre a postura de que elas não sabem o que dizem e aí são ditas histéricas e afastadas de qualquer função. Quando fogem ao padrão masculino e fogem às regras do jogo - “segurar a língua estão fora. Quando se considerar a conquista da mulher como uma forma de liberdade de pensamento e conquista de direitos, ai sim, serão consideradas como indivíduos e não como histéricas ou loucas. As mulheres até hoje não conquistaram seu espaço na religião. Mesmo diante de tudo isso, Mannoni finaliza dando a devida importância à mãe - mãe- -”mulher” - nem que seja para acusá-la como não sendo suficientemente boa (Winnicott), não oferecendo o seio bom (Klein), o pai presente na fala da mãe (Lacan). Se não fosse a mulher-mãe nosso primeiro objeto de amor, com certeza Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007 279 280 acerca de seus filhos. “Diagnósticos”, em grande parte dos casos, proferidos por educadores e coordenadores pedagógicos, ou mesmo pelos próprios pais, auto-orientados pelas informações adquiridas em palestras de neurologistas, neuropsicólogos e psiquiatras em campanha nas instituições de ensino de primeiro e segundo graus. Além desta peregrinação de profissionais nas escolas, nas livrarias, bancas de jornais e mesmo sites na internet proliferam livros, revistas, artigos voltados a divulgar os critérios sintomáticos do TDA/H – únicos indicadores referenciais para diagnósticos, pois, tratando-se de um transtorno funcional, não há marcadores biológicos específicos. Naturalmente que ter filhos enquadrados na materialidade categórica de um transtorno biológico acarreta ansiedade e preocupação aos pais, mas sempre mais tolerável e socialmente admissível do que as angústias suscitadas por problemas psicológicos - ainda tão impalpáveis, cercados de mistério e de preconceitos. Também para as crianças e adolescentes uma justificativa de aparência mais quantificável pode significar um abrandamento nas exigências por resultados e produtividade, e maior tolerância a desajustes e dificuldades no atendimento às expectativas familiares, escolares e sociais. Desajustes às expectativas e aos padrões sociais não são privilégio da atualidade. Mas o olhar contemporâneo de Cabral Lima, à luz de uma interessante interdisciplinaridade1 entre a psiquiatria, a neurologia, a farmacologia, a filosofia, a história, a psicologia, a psicanálise aponta para uma compreensão do TDA/H pelo viés de um deslocamento do sentido de “uma série de condutas, afetos e mal-estares humanos” (p.13), calcadas na convergência progressiva de concepções fisicalistas, direcionadas ao reducionismo biológico. Hoje, explicações psicológicas, sociológicas, pedagógicas ou oriundas da moral leiga são dispensadas Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007 281 como equivocadas e “anticientíficas”, sendo substituídas, especialmente, por outras que localizam no corpo as razões dos dissabores experimentados na vida” (Idem). A obra do autor resulta de sua preciosa investigação para titulação de mestre pelo Instituto de Medicina Social da UERJ sob orientação de Jurandir Freire Costa, que lhe atribui, com propriedade, as características do bom trabalho acadêmico: “rigor teórico, relevância cultural e escrita acessível”. É, pois com muita habilidade, que a escrita enxuta, simples e fluida de Cabral Lima nos conduz por uma retrospectiva histórica do mundo moderno e dos ideais capitalistas e de liberdade competitiva de mercado, e de como as relações do sujeito consigo mesmo e com o social vieram se re-configurando e alterando as formas de relacionamento e de inserção econômico-cultural, transformando os costumes e modos de ser e de sentir. Guiados por sua hipótese de que o TDA/H “consiste num tópico especial da tendência contemporânea para redescrever as experiências humanas tendo como referências os parâmetros corporais” (p.16) retraçamos com ele o percurso - através dos autores selecionados - em busca de configurar as matrizes culturais deste fenômeno categorizado pela psiquiatria (DSM-IV) que nasceu nos EUA, e que, desde o início dos anos 90, vem sendo apontado como a principal causa de encaminhamento de crianças a serviços especializados. Evidência deste avanço epidemiológico em proporções globalizantes é o crescimento da produção (somente no mercado americano) do metilfenidato2 - a principal droga prescrita para regular os efeitos dos TDA/H - em “700% entre 1990 e 1998, quando quase cinco milhões de pessoas – a maioria crianças – usavam o fármaco. No Brasil [...] em 2003 282 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007 foram vendidas cerca de 500 mil caixas de Ritalina. A previsão era que esse número em 2004, chegasse a 1 milhão de caixas” (p. 15). Cabral Lima problematiza esta explosão epidêmica do transtorno, a condição médica que, na atualidade, se aplica aos desvios sociais e escolares outrora nomeados como condutas infantis, mau comportamento, desinteresse, indisciplina, comportamento anti-social. Retoma, pois, as trilhas que desembocaram nesta classificação diagnóstica desde os primórdios do século 20, quando o pioneirismo do pediatra inglês George F. Still se detém em observar e descrever um grupo de crianças (meninos e meninas, na proporção de três para um) desafiadoras, impulsivas, agressivas e indisciplináveis, às quais atribuiu um defeito [genético] no controle moral (p.61), herdado de seus familiares acometidos de depressão e alcoolismo. A partir de então, o olhar sobre o mau comportamento e suas variantes veio deslizando, gradativamente, lesão cerebral mínima e a disfunção cerebral mínima, a reação hipercinética da infância e a síndrome da hiperatividade, as dificuldades de atenção e o distúrbio de déficit de atenção (DDA), apenas para citar algumas nas tentativas de compreensão e classificação daquilo que hoje, de forma combinada, vem a se constituir no TDA/H (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade). Os meios produtivos clamando por resultados a baixo custo e curto prazo e os tecnológicos propiciando a desterritorialização dos limites da informação e dos bens de consumo estariam à serviço de propiciar à questão uma visibilidade que, extrapolando o ambiente médico, alcançariam uma popularidade excessiva e duvidosa? Numa sociedade de referências em trânsito - onde, cada vez mais, se substitui a historicidade tradicional pelo imediatismo digital do aqui-e-agora - marcada, crescentemente, por relações e vínculos ( se assim se pode chamar) de caráter “... errático, com leis que mudam no decorrer do jogo e valores que se esvaziam pouco depois de se afirmarem”(p.24), o enquadramento e o controle de Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007 283 Cadernos de Psicanálise –SPCRJ O artigo, inédito, deverá ser enviado, dentro do prazo estabelecido, em envelope lacrado, endereçado a: SPCRJ/Coordenação da CPB – Cadernos de Psicanálise da SPCRJ. Rua Saturnino de Brito, 79 - Jardim Botânico - Rio de Janeiro/ RJ - CEP 22470-030 O envelope deverá conter • uma Folha de Rosto conforme descrição abaixo; • um Resumo conforme descrição abaixo; • três cópias impressas do artigo com título apenas na primeira folha e sem qualquer identificação do autor, inclusive nas páginas internas (notas de rodapé ou de fim, ou referências dentro do texto); • um CD (regravável) com três arquivos separados nomeados: Folha de Rosto:... ( nome do artigo e os dados descritos abaixo), Resumo:...(nome do artigo e os dados descritos abaixo) e Artigo: ...(nome do artigo e o artigo propriamente dito). Orientações gerais • 284 Os trabalhos devem ter no máximo 14 e no mínimo 8 laudas, formatadas em: Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007 condutas indesejáveis em pílulas pareceriam ter um apelo mercadológico promissor para além das afecções efetivamente biológicas? Além do mais, argumenta o autor, nossa interioridade subjetiva, mediante a perda em escala crescente da autoridade paterna e dos objetos identitários, estaria vivendo um processo de refiliação à comunidade do corpo e ao mito da saúde perfeita: a externalização da constituição do ser na superfície concreta e rasa do parecer: “... a superfície corporal como panacéia para a crise de identidade”(p.54). Na medida em que a tecnologia e a biologia avançam pelos mistérios da genética “... o organismo não guarda mais segredos; seus encantos anatômicos tornam-se públicos” (loc. cit), e “... nenhuma psicologia consegue fazer frente ao oferecimento do corpo como início e fim da identidade pessoal” (p.55). É o que Cabral Lima vai apontar como o processo inevitável de esvaziamento do ser e da somatização da subjetividade, na medida em que os fenômenos sociais e psíquicos passam a ser reduzidos e referenciados numa linguagem estritamente fisicalista, em prol da constituição de bioidentidades. Sem desconsiderar a importância dos avanços benéficos da psicofarmacologia no tratamento de disfunções neuro-psiquiátricas, o autor, em sua investigação, procura a certa medida entre o que seria da ordem das exigências de um suporte medicamentoso em busca do equilíbrio e da funcionalidade psíquica, e o que seria da ordem do excesso promovido pelas campanhas bio-mercadológicas. Num enfoque sóbrio de pesquisador atento aos princípios da ética e da política, as reflexões bem consubstanciadas de Rossano Cabral Lima vêm ao encontro de uma temática atual e essencial para a compreensão e a intervenção clínica de psicanalistas e profissionais de outras áreas da saúde e da educação. Normas para o envio de artigo para publicação Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007 285 entre as linhas, e 1,5 cm, para a separação das referências entre si. Exemplos: • Um autor (sobrenome em maiúsculas e prenomes, abreviados ou não, e o título grafado em itálico; o subtítulo, não. Somente a primeira letra do título em caixa alta). McDOUGALL, Joyce. As múltiplas faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes, 1997. • Dois e/ou três autores (nome e sobrenomes – abreviados ou não - dos autores, separados por ponto e vírgula): BOTELHO, J. E.; CARNEIRO, M. P. F. O estranho passageiro. In: JORNADA DE PSICANÁLISE, 5., 2002, Rio de Janeiro. O primitivo e o psiquismo. Rio de Janeiro: SPCRJ, 2002. p. 19-25. DAVIS, M.; WALLBRIDGE, D. Limite e espaço. Rio de Janeiro: Imago, 1982. 286 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007 • • • • • • papel A4, letra Times New Roman 12, espaço entre linhas 1,5 cm; margem esquerda com 3,0 cm e direita com 1,5 cm; margens superior e inferior com 2,5 cm; títulos e subtítulos em negrito, com maiúscula apenas na primeira letra ( título em inglês em negrito e itálico). A Folha de Rosto deve conter o nome do autor e sua qualificação, endereço completo, com CEP e telefone (e-mail quando houver). O Resumo deve conter apenas o título do trabalho (em português e, logo abaixo, em inglês), resumo (cerca de 5 linhas) , palavras-chave, abstract e keywords, e ainda, a data do envio do artigo. As folhas internas devem estar numeradas e sem qualquer informação que possibilite a identificação do autor; apenas a primeira folha deve conter o título do artigo. Palavras estrangeiras e tudo que se quiser destacar devem estar em itálico; nenhuma outra forma de destaque deve ser usada no corpo do texto. Devem ser utilizadas notas de rodapé, com algarismos em arábico. Citações literais, diretas, com menos de 3 linhas devem estar entre aspas, dentro do texto, e aquelas com mais de 3 linhas devem estar em outro parágrafo, com recuo de 4 cm da margem esquerda, fonte tamanho 11 e espaço simples entre linhas. Orientações quanto à forma de redação de ‘REFERÊNCIAS’ De acordo com as normas da ABNT, 2005, devem constar no final do texto, em ordem alfabética de sobrenome, com espaço simples Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 287-289, 2007 287 • Artigo em periódico científico: PARSONS, Michael. Le contre-transfert de l’nalyste sur le processus psychanalytique. Revue Française de Psychanalyse. Paris: Société Psychanalytique de Paris, n. 2, p. 385-404, avr. 2006. TOSTES, Vera Maria da C. S. A dor como um possível recurso da existência. Cadernos de Psicanálise-SPCRJ. Rio de Janeiro: SPCRJ, v. 21, n. 24, p. 233-251, 2005. NOTA: Nos artigos de Freud, Klein, Winnicott e de outros autores psicanalistas com obra extensa, seguimos um padrão especial de referência. O ano em que foi primeiramente publicado o artigo vem em seguida ao nome do autor, entre parênteses: FREUD, Sigmund (1920). Feminilidade. In: _____. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise e outros trabalhos Rio de Janeiro: Imago, 1976.p 139-165. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18). ______. (1892-1899). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. In: ______. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 243-377. (ESB, 1). Obs. Quando houver referências diversas de um mesmo autor, a coleção citada deve ser redigida por extenso apenas na primeira referência, constando, nas subseqüentes, em sua forma abreviada ( ver ex. imediatamente acima). FERENCZI, S. (1928). Elasticidade da técnica psicanalítica. In: ______. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 2536. (Obras completas, 4). 288 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 287-289, 2007 • Mais de três autores (nome apenas do primeiro autor e a expressão et al., em itálico): GREEN, André et al. A pulsão de morte. São Paulo: Escuta 1988. • Capítulo e/ou artigo de livro: BIRMAN, Joel. Uma dívida impagável. In: ARAÚJO, M. C. de; MAYA, M. C. B. B. (Org.). Neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Letter, 1992. p. 49-106. Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 287-289, 2007 289 Revisão de Texto (Português e Inglês) Maria Helena Lara de Vasconcellos Capa Nailson Santana Diagramação e arte-final Nailson Santana Editora Lidador Rua Hilário Ribeiro, 154- Pça da Bandeira - RJ Tel: (21) 2569-0594 / Fax: (21) 2204-0684 e-mail: [email protected] 290 Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 290, 2007 Assinatura Cadernos de Psicanálise - SPCRJ Nome : ................................................................................... Endereço: ............................................................................... Bairro: ............................. Cidade: ....................CEP: ............ Telefone: ................................................................................ E-mail: ................................................................................... Assinatura anual - R$ 45,00 - com porte pago Para assinar a revista CADERNOS DE PSICANÁLISE - SPCRJ, preencha uma cópia desta folha, anexa o comprovante do depósito bancário e envie para o endereço abaixo ou via fax (21) 2512 -2265. Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro Rua Saturnino de Brito, 79 - Jardim Botânico - CEP: 22470-030 Dados da conta da SPCRJ UNIBANCO (409) Agêcia 0598 c/c 100122-4 CNPJ - 42.132.233.001/98 291 292