encontros teológicos 58
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encontros teológicos 58
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC ISSN 1415-4471 www.itesc.org.br FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA Diretor: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller Vice-diretor: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Secretário: Prof. Ms. Celso Loraschi Coordenador/Departamento de Ecumenismo: Pe. Dr. Elias Wolff Coordenador/Departamento de Comunicação: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Coordenador/Departamento de Bíblia: Prof. Ms. Celso Loraschi Bibliotecária: Adriana de Mello Tomaz Secretária Acadêmica: Ana Maria Ramos Secretária Institucional: Aline Maria Pereira Assistente Administrativo: Donizeti Mendes Guimarães Recepcionista: Crisleine Daiana Radatz [Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)] CRB-14/416 Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 58, Florianópolis, 2011. Quadrimestral ISSN 1415-4471 I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05) Preço de Assinatura para o ano 2011 Contribuição a partir de R$ 40,00 Forma de Pagamento Cheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8 Correspondência e Assinatura Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC Caixa Postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC Fone/Fax: (0xx48) 3234-0400 Home Page: www.itesc.org.br E-mail: [email protected] Revisão: Pe. Ney Brasil Pereira Editoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta Projeto gráfico: Antônio Frutuoso Printed in Brasil Pede-se permuta Exchange is Requested ENCONTROS TEOLÓGICOS Revista quadrimestral fundada em 1986 Diretor: Elias Wolff Editor: Vitor Galdino Feller Redator: Ney Brasil Pereira Conselho Editorial: Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC Edinei da Rosa Cândido – ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – ITESC – Florianópolis, SC Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG José Artulino Besen – ITESC – Florianópolis, SC Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC Marlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SC Ney Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SC Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS Valter Maurício Goedert – ITESC – Florianópolis, SC Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC CoNSELHO CONSULTIVO: Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – ITESC – Florianópolis, SC Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO Luís Dietrich – ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – ITESC – Florianópolis, SC Mari Hammes – ITESC – Florianópolis, SC Marta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa. Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais. Sumário Editorial ....................................................................................................... Crise e esperança: A CF 2011 e a Igreja Samaritana Celso Loraschi.......................................................................................................... Ecologia Política Gert Schinke.............................................................................................................. Ética e Ecologia Pedro Paulo das Neves............................................................................................. Mudanças Climáticas Ir. Delci Maria Franzen............................................................................................ Bioética ambiental personalista Frei Carlos Paula de Moraes, OSM......................................................................... Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia Marcial Maçaneiro................................................................................................... Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada Luis Stadelmann, SJ.................................................................................................. Caritas in veritate Murilo S.R.Krieger, SCJ............................................................................................ Imagens e verdadeira face de Deus 7 11 25 39 51 67 77 93 107 Geraldo Maia............................................................................................................ 117 Teologia, Economia e Ecologia: Síntese da Semana Teológica realizada no ITESC nos dias 20 a 24 de setembro de 2010......................................... 131 VERBUM DOMINI: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI Entrevista com Johan Konings................................................................................. 155 Recensões...................................................................................................... 165 Crônicas........................................................................................................ 171 Índice Geral dos anos 2009 e 2010............................................................... 175 Revista Encontros Teológicos 25 anos.......................................................... 187 Editorial A Campanha da Fraternidade de 2011 volta-se novamente à temática ecológica com o tema Fraternidade e a vida no Planeta e o lema A criação geme em dores de parto (Rm 8,22). Tema e Lema da CF 2011 afirmam o valor da vida, não somente das pessoas, mas de toda a criação. De fato, não haverá sobrevivência do ser humano se o planeta não sobreviver. A Igreja, mesmo já tendo promovido Campanhas com temas ecológicos como terra, matas, água... une-se agora às preocupações que perpassam a sociedade como um todo em relação aos desequilíbrios climáticos e o aquecimento global. Tais mudanças são indiscutíveis, tanto que as pessoas já contam com a imprevisibilidade do clima e demonstram crescente temor com as intempéries climáticas. Tais atitudes resultam da assustadora intensidade de certos fenômenos como chuvas, que arrasam cidades e ceifam vidas, ou prolongadas estiagens, dentre outros fenômenos cada vez mais frequentes. Trata-se de um problema atual que diz respeito a todos. A expressão “mudanças climáticas” indica algo sério, pois se o clima continuar nessa escalada crescente de mudanças, em última análise o perigo não é somente a ocorrência de catástrofes pontuais como vemos até o momento, mas um desequilíbrio climático tal que pode vir a colocar em risco as condições para a sobrevivência da biodiversidade característica do planeta Terra. Além do mais, os que hoje mais sofrem com estas mudanças em curso e o aquecimento global são os pobres, pois acabam se instalando em locais que se tornam cada vez mais perigosos, como encostas e margens de rios. A Igreja, mesmo ainda não dispondo de uma doutrina bem estruturada sobre as questões ecológicas, a exemplo do que podemos ver no campo da Doutrina Social, mas a julgar pelos documentos do Magistério produzidos a partir da década de setenta, não esteve alheia à questão. Segundo os documentos eclesiásticos mais recentes, existe a percepção da importância e urgência do engajamento das comunidades Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 7 Editorial cristãs nos problemas dessa ordem. É o que podemos entender a partir desta afirmação encontrada no Documento de Aparecida: “A Igreja agradece a todos os que se ocupam com a defesa da vida e do ambiente. É necessário dar especial importância à mais grave destruição em curso da ecologia humana” (DAp n. 472). A Campanha da Fraternidade 2011 nos propõe a reflexão, a oração e ações concretas, com este objetivo geral: Contribuir para a conscientização das comunidades cristãs e pessoas de boa vontade sobre a gravidade do aquecimento global e das mudanças climáticas, e motivá-las a participar dos debates e ações que visam enfrentar o problema e preservar as condições de vida do planeta. Esse objetivo será atingido com a realização dos seguintes objetivos específicos: – Viabilizar meios para a formação da consciência ambiental em relação ao problema do aquecimento global, e identificar responsabilidades e implicações éticas; – Promover a discussão sobre os problemas ambientais, com foco no aquecimento global; – Mostrar a gravidade e a urgência dos problemas ambientais provocados pelo aquecimento global, e articular a realidade local e regional com o contexto nacional e planetário; – Trocar experiências e propor caminhos para a superação dos problemas ambientais, relacionados ao aquecimento global. Como estratégias que facilitam a realização desses objetivos, temos as seguintes: – Mobilizar pessoas, comunidades, Igrejas, religiões e sociedade para assumirem o protagonismo na construção de alternativas para a superação dos problemas socioambientais, decorrentes do aquecimento global. – Propor atitudes, comportamentos e práticas fundamentados em valores que tenham a vida como referência, no relacionamento com o meio ambiente; 8 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Editorial – Denunciar situações e apontar responsabilidades no que diz respeito aos problemas ambientais decorrentes do aquecimento global. Assim, a CNBB propõe que todas as pessoas de boa vontade olhem para a natureza e percebam como as mãos humanas estão contribuindo para o fenômeno do aquecimento global, com sérias ameaças para a vida em geral, e a vida humana em especial, sobretudo a dos mais pobres e vulneráveis. A presente edição da revista “Encontros Teológicos” quer dar, como o tem feito a cada ano, a sua contribuição para a vivência da Campanha. Apresenta reflexões a respeito do tema, ajudando na sua compreensão e fortalecendo as iniciativas concretas que contribuem para a prática da fraternidade e a defesa da vida no planeta. Celso Loraschi reflete sobre Crise e Esperança – a CF 2011 e a Igreja Samaritana; Pedro Paulo das Neves trata da relação entre Ética e Ecologia, mostrando que a ação do ser humano sobre o meio ambiente se constitui em matéria essencial para a ecologia; Delci Maria Franzem analisa as atuais Mudanças Climáticas, tratando do aquecimento global e suas consequências para a natureza e o ser humano; Carlos Paula de Moraes – OSM, trata da Bioética Ambiental Personalista, refletindo “sobre a relação entre antropocentrismo e personalismo cristão no atual debate de bioética ambiental”; Marcial Maçaneiro aborda o tema Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia, as religiões demonstrando “a busca da compreensão do cosmo e da natureza por parte do homo religiosus nas diferentes culturas”; Luis Stadelmann reflete sobre as Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada, o que fundamenta a fé e a ética, reveladas por Deus; Dom Murilo S.R. Krieger escreve sobre a encíclica Caritas in veritate, do papa Bento XVI, acentuando que “a caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou ... é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira”; enfim, Geraldo Maia propõe uma reflexão oportuna sobre “Imagens e verdadeira face de Deus”. Apresentamos, também: uma síntese da Semana Teológica realizada no ITESC nos dias 20 a 24 de setembro de 2010, na qual se refletiu sobre a relação entre Teologia, Economia e Ecologia; uma entrevista de Johan Konings sobre a Exortação Apostólica pós-Sinodal do papa Bento XVI, Verbum Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 9 Editorial Domini; o Indice Geral dos números 52 a 57 (2009 e 2010) da nossa revista; Recensão e Crônicas. Esperamos, assim contribuir para que os leitores de “Encontros Teológicos” possam, de fato, aprofundar o consciência da gravidade das questões climáticas atuais, e tomar atitudes concretas que contribuam para a promoção da fraternidade e da vida no planeta, como propõe a CF 2011. Pe. Elias Wolff 10 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: Este artigo tem a intenção de fazer ecoar o apelo lançado pelo Secretário Geral da CNBB, Dom Dimas Lara Barbosa, na apresentação do Texto-Base da Campanha da Fraternidade 2011 a respeito da missão da Igreja samaritana no mundo que sofre. A partir de seis palavras-chave, o autor aprofunda as reflexões em torno do tema “Fraternidade e Vida no Planeta”. Cada uma dessas palavras é fundamentada em referências bíblicas, com menção especial à parábola do samaritano, por oferecer preciosas indicações à missão da Igreja nesta situação desafiante em que se encontra a terra, casa comum de todos os povos. As “dores de parto” pelas quais passa a criação nos interpelam à cor-responsabilidade, na viva esperança de um novo mundo. A bondade de Deus reflete-se em todas as suas criaturas. Formamos um só corpo. Estamos intimamente relacionados. A vida no planeta terra está condicionada pela ação respeitosa e solidária do ser humano com todas as coisas. A Igreja samaritana testemunha a gratuidade de Deus pela prática do amor incondicional. Recria, em cada local, as condições para a vida digna sem exclusão. Abstract: The article intends to respond to the call heralded by the bishop Dimas Lara Barbosa, secretary general of the CNBB, on the occasion of the publication of the platform concerning the CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2011focusing on the task of the Church like the Good Samaritan in solidarity with the suffering world. In the light of six key-words the author delves into specific themes dealing with “Fraternity and Life on this Planet”. Each of these words is framed by biblical references, with special attention to the parable of the Good Samaritan. In this perspective worthwhile hints are offered to the mission of the Church in this challenging situation of the planet as a common place for all the peoples to live in the world. As if the earth would be suffering the pains of childbirth all the habitants are urged to exercise their responsibility to offer better conditions for a new world. The Lord’s kindness irradiates on all creatures. We are bound together as one living organism in mutual relationship and solidarity. The Church has the task to give visibility to God’s graciousness through unconditional love to Him. Thus at every place should sprout the fruits of life in dignity without restrain. Crise e esperança A CF 2011 e a Igreja Samaritana Celso Loraschi* * O autor é Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos e Professor no ITESC. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 11-24. Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana “No mundo em que vivemos, somos diariamente interpelados por tantos rostos sofredores, que clamam por nossa solidariedade. A Igreja samaritana não pode passar adiante, na presença de tantos irmãos e irmãs que dela esperam acolhida fraterna, ombro amigo, mãos generosas...”. Esse apelo encontra-se na apresentação do Texto-Base (TB) da Campanha da Fraternidade (CF) 2011, elaborado por Dom Dimas Lara Barbosa, Secretário Geral da CNBB. Inspira-se no episódio do samaritano solidário, narrado no Evangelho de Lucas (10,25-37). Funciona como fio condutor de toda a reflexão em torno do tema: “Fraternidade e Vida no Planeta”. De fato, as consequências do aquecimento global afetam a vida de multidões de pessoas no mundo inteiro. São situações que reclamam por providências imediatas. Diante da vida ameaçada, é necessário acionar a força da compaixão capaz de nos fazer abandonar projetos pessoais, para priorizar atitudes de cuidado coletivo. A ONU já promoveu 16 Conferências para as Mudanças Climáticas. A última Conferência (COP-16) se deu em Cancun, no México, nos dias 29 de novembro a 10 de dezembro de 2010, com representantes de 194 países. É impressionante como as declarações e acordos resultantes desses encontros são praticamente inócuos. De fato, constata-se que os governos das nações estão engessados aos interesses do grande capital, interesses que se alicerçam no crescimento a qualquer custo. Cancun foi a arte do possível em uma conjuntura desfavorável às propostas do movimento ecológico. A situação segue como dantes: a crise ecológica se estende rapidamente e os segmentos sociais conscientes desse fato não conseguem infletir a tendência. Enquanto isso, os responsáveis pelo sistema social resistem às mudanças indispensáveis à preservação da vida. Ainda há muita água para passar em baixo da ponte, até que sejam tomadas soluções à altura do desafio. O movimento ecológico deverá fazer prova de que é politicamente capaz de propor soluções e sensibilizar a população.1 O primeiro objetivo específico da CF 2011 expressa exatamente a intenção de “viabilizar meios para a formação da consciência ambiental...”. Une-se, assim, ao movimento ecológico mundial dinamizado por milhares de pessoas, grupos e instituições civis e religiosas. A gravidade 1 12 TARQUINIO, Tomás Togni. Cop-16-conferencia-de-cancun-um-pequeno-passoadiante, www.ecodebate.com.br. Acesso em 17 de dezembro de 2010. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Celso Loraschi da situação exige urgente tomada de posição de todas as pessoas de boa vontade. É uma questão de bom senso que implica na adoção de atitudes éticas, promotoras de condições de vida digna na casa comum de todos os povos. A Igreja, seguindo a Jesus de Nazaré, atualiza o gesto do samaritano solidário, dando prioridade ao resgate da vida ameaçada. A partir de algumas palavras-chave, queremos contribuir nesta reflexão sobre a “Fraternidade e Vida no Planeta” visando despertar a esperança militante. 1 Em dores de parto A criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus... na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto... (Rm 8,19-22). O lema escolhido pela CF 2011 aponta para uma realidade de sofrimento pela qual passa a criação. É consequência da transgressão humana descrita em Gn 3. “A queda dos seres humanos tem por conseqüência a queda de toda a criação... A relação para com ela passa a ser de exploração, fadiga e indiferença”2. No entanto, dentro do mesmo espírito em que Paulo escreveu à comunidade cristã de Roma, com a certeza da redenção trazida por Jesus Cristo, esse sofrimento é prenúncio de uma nova vida. Os seres humanos podem aguardar a libertação em atitude de viva esperança, deixando-se conduzir pelo Espírito de Deus e não pelos desejos da carne. Ele explica: “O desejo da carne é a morte, ao passo que o desejo do espírito é a vida e a paz” (Rm 8,6). No contexto atual, podemos interpretar os termos paulinos “carne” e “espírito” como duas orientações fundamentais para a nossa vida: ou seguimos o caminho da vida pela prática do amor ou seguimos o caminho da morte pela prática do egoísmo. Em outras palavras, são dois projetos que se opõem, movidos por agentes humanos com diferentes interesses. As consequências de cada um desses projetos são percebidas no cotidiano da nossa vida, desde o âmbito familiar até o global. A missão da Igreja é anunciar a Boa Notícia da vida e da paz a todos os povos. Por isso mesmo, acolhendo as dores da humanidade, 2 REIMER, Ivoni Richter. Criação e Bíblia, in “Ecologia: cuidar da vida e da integridade da criação”, Curso de Verão, Ano XX, São Paulo: CESEP e Paulus, 2005, p. 139. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 13 Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana perscruta o plano de Deus, o qual estabeleceu uma Aliança com o seu povo e comprometeu-se a cuidar dele. Deixa-se interpelar por sua Palavra e inquieta-se com a resposta que deve ser dada com toda convicção. Que me restava ainda fazer à minha vinha que não tenha feito? Por que, quando esperava que ela desse uvas boas, deu apenas uvas azedas?... Deles esperava o direito, mas o que produziram foi a transgressão; esperava a justiça, mas o que apareceu foram gritos de desespero (Is 5,4.7b). A igreja é herdeira da tradição profética. Como fez Isaías, ela não pode calar diante dos problemas que ferem a dignidade humana e de toda a criação. Preocupa-se, em primeiro lugar, com as causas do sofrimento. A principal delas é o sistema econômico atual, por ser “altamente concentrador e gerador de disparidades, quer a nível internacional, quer no interior das sociedades...” (TB, 90); caracteriza-se pela produção de bens em escala infinita, condicionando “o consumo compulsivo, inclusive de produtos supérfluos...” (TB, 25); apossa-se das fontes não renováveis oferecidas pela natureza, sem dar-se conta de que sua quantidade é limitada e, portanto, seu esgotamento com funestas consequências já se faz sentir: “destruição das florestas e da flora em geral, contaminação de solos e águas, danos à saúde humana, deterioração de edificações etc...” (TB, 34); prioriza, como acontece no Brasil com o Plano de Aceleração ao Crescimento (PAC), os projetos de grandes e pequenas hidroelétricas, ignorando “o potencial oferecido pelo nosso imenso território para a implementação e expansão da energia solar e da eólica” (TB, 41); o agronegócio “foi desenhado para os grandes produtores... desmata impiedosamente... e não tem nenhuma sensibilidade para com os pobres” (TB, 51 e 52); a biodiversidade encontra-se em processo de extinção acelerada e “a continuidade dessas situações pode significar a perda, em pouco tempo, de metade da diversidade atualmente existente, e seria um desastre de proporção inestimável” (TB, 64). Essas e várias outras advertências levantadas pelo Texto-Base, a partir de estudos especializados, revelam que a natureza com o ser humano encontra-se em situação de queda. Já não consegue defenderse. Assaltado pela força dos gananciosos, o planeta Terra mal respira o hálito de vida. Necessita da atenção e do carinho da Igreja samaritana que, por força da missão herdada de Jesus de Nazaré, volta seu olhar às vítimas deste sistema econômico globalizante que almeja unicamente o lucro; solidariza-se com as dores das populações migrantes, das famílias expropriadas de suas terras e tradições, das que sofrem as consequências 14 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Celso Loraschi da falta de água potável e de saneamento básico, das pessoas desempregadas, famintas, doentes...; denuncia as atitudes de governos e de grupos de poder que, levados pela cegueira da ambição, não se preocupam com os desdobramentos da exploração desmedida dos recursos naturais nem tampouco com a produção de alimentos para todas as pessoas. A justiça social passa a ser retórica comumente utilizada pelos defensores do progresso ilimitado, sendo que esse mesmo progresso aprofunda a injustiça. A gravidade dessa constatação torna-se ainda mais patente ao se afirmar que um bilhão de pessoas no mundo passa fome, quando está provado que não há falta de alimento. E, tristemente, constata-se que “os governos se tornam reféns dessa lógica do capital...” (TB, 90). O drama não é apenas que os recursos são limitados, e que a terra já não agüenta mais a exploração atual. O drama é que as classes dirigentes, os chefes da economia, querem uma exploração mais forte ainda e um esgotamento mais rápido dos recursos naturais. Querem o aquecimento global e as perturbações climáticas, porque não querem mudar a estrutura da economia. O drama é dirigido por criminosos que dominam os chamados governos, que na realidade não governam nada.3 Ao ler uma declaração tão contundente como esta de José Comblin, tem-se a impressão de que a vida no planeta é causa perdida. A esperança, porém, não decepciona (Rm 5,5). Jesus, ao contar a parábola do samaritano solidário, oferece ao seu interlocutor (um representante do poder oficial) a alternativa de libertar-se do sistema excludente em que está atado, para agir na defesa da vida das pessoas excluídas. Não basta saber quem é o próximo e quais são seus direitos legais. A questão de fundo é o que e como fazer: “Vai, e também tu faze o mesmo” (Lc 10, 37). Em dores de parto, assumindo “os sofrimentos do tempo presente” (Rm 8,18), a Igreja aposta na gestação de um novo modo de ser e de agir no mundo. Exerce sua missão profética de denúncia, e nos convoca à solidariedade com toda a criação. 2 Bondade da criação Quão numerosas são tuas obras, SENHOR, e todas fizeste com sabedoria! A terra está repleta das tuas criaturas (Sl 104,24) 3 COMBLIN, José. Deus e a Natureza, in: Agenda Latino-Americana 2010, São Paulo: Ave-Maria, p. 25. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 15 Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana A primeira narrativa da criação (Gn 1,1-2,4a) resgata a bondade radical de todas as coisas a partir de sua origem comum. Os autores, imbuídos de espírito contemplativo, expressam a exultação do próprio Criador, admirado com sua obra. Após cada etapa, Ele se mostra plenamente satisfeito: “Deus viu que era bom”... A Teologia da Criação nos ajuda a compreender os desígnios de Deus para suas criaturas. O universo não é fruto do acaso. É a concretização do desejo de Deus de comunicar sua própria vida. Portanto, todas as coisas mantêm uma íntima ligação com o seu Criador. São vestígios dele, expressão de sua bondade e de sua generosa criatividade. A criação guarda um sentido, obedece a um plano, como expressa o Catecismo da Igreja Católica: “Não é produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso. Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus que quis fazer as criaturas participar do seu ser, da sua sabedoria e da sua bondade” (n. 295). O plano divino, interpretado dessa maneira, orienta o ser humano a acolher com gratidão todas as demais criaturas, pois tudo provém da mesma origem e participa do mesmo destino. Deus é bom. A natureza é boa. Todas as coisas são boas. Basta pensar na beleza e importância do ar, da água, das árvores, do fogo, dos animais, dos vegetais, dos minerais, de tudo o que existe no universo... Da bondade divina recebemos também os dons da inteligência, da vontade e da liberdade, para preservar e promover a bondade de todas as criaturas. Não há argumentos que justifiquem a exploração e a destruição do que Deus nos deu para o bem de todos. “Temos muitos motivos para revalorizar a criação. Já fomos alertados com muita insistência. A terra está morrendo porque está sendo explorada de uma maneira que não consegue se recuperar. Isso constitui um desafio novo na história da humanidade”.4 Oxalá a bondade divina pulsando no coração de cada um de nós possa mover a nossa inteligência, a nossa vontade e a nossa liberdade, para abraçar este novo desafio como em dores de parto, na certeza de um mundo novo! O samaritano da parábola do Evangelho de Lucas é a própria figura de Jesus de Nazaré. Revela extrema bondade ao socorrer a natureza ferida naquele ser humano jogado à beira do caminho. Aplica seus bens e seus talentos para resgatar a vida ameaçada. O azeite e o vinho, 4 16 COMBLIN, J., op.cit., p. 26. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Celso Loraschi naquele momento, são administrados como elementos curativos segundo as propriedades inerentes, dons divinos. Também o dinheiro tem a função social de promover a saúde e salvar a vida. Ao propor o tema da “Fraternidade e Vida no Planeta” a Igreja no Brasil revela-se consciente da “gravidade dos problemas ambientais” e pretende “trocar experiências e propor caminhos para superar os problemas” (cf. objetivos específicos). No seguimento de Jesus, é nossa missão, como Igreja, acolher os gemidos da criação e envidar todos os esforços para curar-lhe as feridas e resgatar a bondade de todas as formas de vida. 3 Solidariedade cósmica Grandes são as obras do SENHOR, dignas de reflexão para quem as ama. Sua obra é esplendor e majestade, E sua justiça permanece para sempre. Ele deixou um memorial de suas maravilhas... (Sl 111,2-4). Todas as criaturas foram gestadas no útero divino. Estão intimamente ligadas umas às outras. A vida de uma depende da vida das outras. Também o ser humano foi criado junto com as demais criaturas, fazendo parte da totalidade. Após a conclusão de sua obra criadora, o relato bíblico ressalta a exclamação de Deus que contempla e integra todas as coisas: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom”. O Texto Base afirma: “Deus criou por meio de suas palavras todas as realidades, formando uma grande solidariedade cósmica” (n. 100). Formamos uma imensa comunidade planetária, interrelacionada e interdependente.5 As diferentes espécies não são criaturas autônomas. Vitalmente dependem umas das outras. Mais do que isso: há uma comunhão na diversidade. Somos UM, imagem da Trindade. Dessa forma, como num jogo complexo e completo de relações, no qual tudo é incluído, nada é negligenciado, tudo é valorizado e concatenado, resgatamos a concepção de Deus, como Deus-Comunhão... A natureza criada, todos nós, somos imagem de Deus Trindade. Constituímos um desdobramento dessa diversidade e dessa união. Uma verdadeira 5 Cf. BOFF, Leonardo. Princípio-Terra – A volta à Terra como pátria comum. São Paulo: Ática, 1995. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 17 Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana unidade na pluralidade. O mundo é assim: complexo, diverso, uno e entrelaçado. Somos espelho da Trindade. Somos Vida.6 Em todas as tradições religiosas cultiva-se a relação com Deus para perscrutar seus desígnios e realizá-los na história. O universo é um dos veículos comuns de revelação divina. O diálogo com Deus implica o diálogo com o universo. É fonte de sabedoria. Nesse processo de dialogação o ser humano foi conhecendo o mundo e, infelizmente, passou a dominá-lo ao invés de respeitá-lo. Equivocadamente aprendemos a “amar a Deus” e desrespeitar a natureza. Jesus, o samaritano solidário, é o modelo de relação íntima com o Pai e com tudo o que o rodeia. A parábola não é meramente fruto de uma imaginação fértil. É resultado de uma prática cotidiana. Junto às vítimas dos poderosos “assaltantes” das estâncias políticas, econômicas e religiosas, Jesus se movimenta dentro do Espírito que se desdobra em sensibilidade, carinho, acolhida, cuidado, perdão e todas as virtudes que o amor contém. A Igreja samaritana, no seguimento de Jesus, deixa-se conduzir pelo Espírito de Deus que liberta de toda escravidão e transforma a realidade. “Não recebestes um espírito de escravos..., mas um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abbá! Pai!” (Rm 8,15). 4 Ser humano: senhor ou mordomo? Que é o ser humano...? Tu o fizeste pouco menos do que um deus, de glória e de honra o coraste. Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos (Sl 8,6-7). Os relatos da criação situam o ser humano numa relação especial com Deus: homem e mulher foram criados à sua imagem e semelhança (cf. Gn. 1,27). Também possui uma relação íntima com a terra: foi modelado por Deus com a argila do solo (cf. Gn 2,7) e foi colocado no jardim do Éden para o cultivar e guardar (cf. Gn 2,15). Ao mesmo tempo em que o ser humano faz parte do conjunto de toda a criação, recebe de Deus uma missão: é responsável pela vida, pelo bem estar e pela integridade do conjunto das criaturas. 6 18 VIEIRA, Tarcísio Pedro. O nosso Deus: um Deus ecológico – Por uma compreensão ético-teológica da ecologia. São Paulo: Paulus, 1999, p. 21. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Celso Loraschi Muitas vezes se fez uso de textos sagrados para legitimar atitudes de apropriação e de exploração da natureza. A visão antropocêntrica, porém, deve dar lugar à biocêntrica. “O ser humano deve ser ‘mordomo da criação’. Sua tarefa fundamental deve ser a de ‘cultivar e guardar’” (TB, 217). Aos homens e mulheres, portanto, é confiada a missão de zelar pela natureza, de tal maneira que se cumpra a vocação para a qual foi criada: manifestar a glória de Deus. “O ser humano torna-se, através de sua missão, concriador com Deus”.7 A perda desse sentido leva a humanidade a desprezar a sua própria nobreza e dignidade. Estas somente serão cultivadas na medida em que todas as coisas sejam respeitadas, pois tudo é parte do todo. Deus “dotou o ser humano de uma vida profundamente ligada a ele, o Criador, e profundamente ligada às criaturas. Assim, a natureza não aparece como algo de externo ao ser humano, mas como um prolongamento dele próprio”.8 Nessa perspectiva entende-se melhor o sentido da advertência de não comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal”, pois essa atitude traria a morte (cf. Gn 2,17). “Os detentores do poder quiseram comer da árvore do bem e do mal, utilizando de modo destrutivo os bens do planeta..., conforme suas leis e critérios, sem nenhum respeito pelas normas que presidem o justo e solidário relacionamento humano com o universo” (TB, 111 e 116). Na parábola do samaritano, Jesus insere alguns personagens que revelam diferentes visões relacionadas ao próximo, e que condicionam a maneira de se comportar. Ivo Storniolo explica de forma simples e clara: São três compreensões diferentes, que condicionam o ser e o comportamento das pessoas. O ladrão acha que ‘o que é teu é meu’, e vive à espreita contínua do roubo e da exploração. O sacerdote e o levita acham que ‘o que é meu é meu’, e se fecham no que são e no que possuem, deixando que os outros ‘se virem’. Já o samaritano acha que ‘o que é meu é teu”, e reparte não só o seu coração, mas também o seu tempo e tudo o que possui”.9 7 VIEIRA, T., op. cit., p. 47s. 8 MOSER, Antônio. O problema ecológico e suas implicações éticas. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 41. 9 STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Lucas – Os pobres constroem a nova história. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 108. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 19 Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana Três personagens que sintetizam o modo de comportar-se frente aos bens que Deus nos concedeu. Duas atitudes precisam ser rechaçadas: apossar-se do que é de todos e fechar-se no seu mundo, muitas vezes legitimado por uma ideologia religiosa. Torna-se imperativo, como mordomos da criação, assumir a ética do cuidado, preservando e promovendo as condições de vida sem exclusão, para o tempo presente e para o futuro. 5 Ética do cuidado Vem, meu amado, vamos ao campo, pernoitemos nas aldeias, madruguemos pelas vinhas, vejamos se a vinha floresce, se os botões se abrem, se as romeiras florescem: lá te darei meu amor... (Ct 7,12-13). O tema “Fraternidade e Vida no Planeta” implica na adoção da ética do cuidado. É uma questão de amor e carinho com a criação. A mulher e o homem, verdadeiramente livres, assumem a responsabilidade (imperativo moral) pela vida em todas as suas formas. Vale aqui aplicar a “regra de ouro” também com relação ao cuidado com a natureza: “Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles” (Lc 6,31). O bem comum humano, também o das futuras gerações, está ligado com o bem comum da comunidade cósmica. Por isso, tudo o que existe merece viver. “Pode-se aqui falar do ‘princípio responsabilidade’ como elemento fundamental da ética...” (TB, 219). Daí a importância de amorizar os gestos cotidianos. As pequenas atitudes são importantes, pois contribuem para um novo modo de ser e de viver na casa comum: o cuidado com a água, com a comida, com a energia, com a poluição, com o lixo, com o saneamento básico... Não se busca nem se pratica a ganância, a soberba, a morte, a violência, a diferença que desvaloriza o outro ser. As diferenças que causam opressão e sofrimento são superadas, e isso vale para todas as formas de vida, porquanto Deus dá vida a todo ser vivente, respiração e tudo mais... e nele vivemos, nos movemos e existimos (At 17,25.28)10 O cuidado é intrínseco ao ser humano. Nele e por ele nos formamos, crescemos e nos realizamos. “Esta palavra, cuidado, no latim provém de ‘cura’, que se exerce mediante atitudes de amizade e amor... 10 20 REIMER, Ivoni Richter. Op. cit., p. 149. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Celso Loraschi Não é exagero dizer que o cuidado é a essência do ser humano, o cuidado inclui uma dimensão ontológica” (TB, 185). A ética ecológica possui dimensão macro-ecumênica: caracterizase pelo relacionamento aberto e respeitoso com o próximo: todas as pessoas de boa vontade, para além de sua pertença cultural ou religiosa, pois o que está em jogo é a promoção da vida em todas as suas dimensões. O próximo, porém, não é apenas o outro humano. É toda a alteridade. E, como já sabemos, a alteridade é extensão da nossa própria identidade. Formamos um corpo. Toda decisão a ser tomada deve considerar suas implicações com a totalidade desse corpo. Por isso, merece cuidado prioritário o membro que sofre. Em nossos dias, como enfatiza o Texto Base (n. 187), o próximo que clama por cuidado é o planeta terra. “Quem é o meu próximo?” Foi para responder a esta pergunta do legista que Jesus contou a parábola do samaritano solidário. E o legista parece ter entendido: “É aquele que usou de misericórdia para com ele”. A misericórdia é a bondade humana acionada em favor dos necessitados. Enquanto o levita e o sacerdote fazem-se estranhos à pessoa abandonada à beira do caminho, o samaritano faz-se próximo, usando da misericórdia. A ética do cuidado pressupõe o “princípio misericórdia”. A Igreja samaritana tem consciência dessa verdade revelada pela prática de Jesus. A misericórdia derruba preconceitos, encurta as distâncias, promove a reconciliação, vence o ódio, vê a necessidade do outro, aproxima-se, cura, liberta... 6 O sétimo dia O relato da criação culmina com o estabelecimento e a santificação do “sétimo dia”. É o momento da contemplação de toda a obra. É no sétimo dia “que o homem e a mulher vão reconhecer a realidade na qual vivem e perceber-se criação de Deus” (TB, 119). Essa concepção do sétimo dia desdobra-se na valorização da vida, não pela produtividade sem controle e sim pela reflexão, pelo discernimento, pela gratuidade, pela relação de reverência... Por isso, esse dia é santificado e abençoado. O sétimo dia, portanto, refere-se a um jeito de ser e de se relacionar com todas as coisas. O descanso não é meramente uma parada no meio do ativismo: é a oportunidade de conectar-se consigo mesmo, cultivar a integridade e sentir-se parte da totalidade. O ser humano percebe-se intimamente ligado com Deus e com as demais criaturas. “Deus liga a Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 21 Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana sua presença eterna com a sua criação transitória, está com ela e nela” (TB, 123). É uma relação de amor, de mútua acolhida, de alegria e de paz. Sim, pois o sétimo dia remete à “festa da criação. É em vista dessa festa que Deus criou o céu e a terra e tudo o que neles existe” (TB, 122). No capítulo 16 do livro do Êxodo nos deparamos com o episódio do maná e das codornizes, alimentos que Deus garantiu para o povo em caminhada pelo deserto. A própria natureza oferece cotidianamente esses alimentos, que devem ser recolhidos e partilhados conforme a necessidade de cada pessoa. No sexto dia, por ordem divina, o povo devia recolher também para o sétimo dia, pois este seria de descanso sagrado. O legítimo esforço humano para suprir suas necessidades não pode ser suplantado pela ganância. Violar o sétimo dia significa desejar o acúmulo em detrimento das relações justas e fraternas. Deus é providente, mas não tolera a acumulação. Alguns acumularam, “porém deu vermes e cheirava mal” (Ex 16,20). Sem dúvida, uma importante lição para hoje: “Provavelmente Deus perguntaria: até quando vocês vão desprezar a natureza, pela ambição de acumular e gastar, e assim, fazer apodrecer o planeta irresponsavelmente?” (TB, 135). No tempo de Jesus, o sentido original do sétimo dia fora totalmente distorcido pelo sistema legalista do Templo. Fora transformado num mecanismo de controle e de exploração sobre o povo. Jesus resgata o significado verdadeiro do sétimo dia, fazendo o bem e salvando vidas (cf. Mc 3,4). Ele é o samaritano solidário, uma pessoa capaz de sensibilidade. Dedica seu tempo prioritariamente para a libertação e a dignificação da vida. O uso do seu tempo não está impulsionado pela ótica da produção, e sim da gratuidade amorosa. A Igreja samaritana testemunha a gratuidade de Deus pela prática do amor incondicional. Recria, em cada local, as condições para a vida digna sem exclusão. “O cuidado com o ambiente pode e deve ser hoje uma resposta ao amor redentor de Deus. Com o Criador podemos e devemos ser cuidadores, ajudando a salvaguardar o direito e a dignidade de vida...” (TB, 215). 22 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Celso Loraschi Para prosseguir A Carta da Terra11, redigida por uma Comissão Internacional após um debate de 10 anos e apresentada durante a ECO-92, no Rio de Janeiro, em seu preâmbulo, adverte e desafia: Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida em que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos universais, na justiça econômica e numa cultura de paz... Cada um de nós é capaz de cooperação, de solidariedade, de carinho, de veneração, de cuidado, de relações justas e fraternas. A comunidade humana global será certamente melhor se, nas pequenas comunidades – família, rua, bairro e município –, cuidarmos de nossa casa comum com a mesma atenção e carinho com que cuidamos do nosso próprio corpo. Para isso, como alertou João Paulo II, “simplicidade, moderação e disciplina, bem como um espírito de sacrifício, precisam tornar-se parte de nossa vida cotidiana, para que não soframos todos as consequências negativas dos hábitos descuidados de alguns”.12 A esperança militante concretiza-se no amor cotidiano. O maior de todos os mandamentos se torna condição indispensável para salvar a Vida no Planeta. O imperativo de Jesus: “Vai e faze o mesmo” nos lança à prática do amor fraterno não apenas entre os humanos, mas com todas as criaturas. Esse é o caminho de redenção do mundo. O amor é o princípio que fundamenta a espiritualidade ecológica, patrimônio de todos os povos e de todas as religiões. O amor ao próximo nos leva a acolher o grito da terra, do ar, das águas, dos animais, das florestas... Somos irmãos! Somos membros de um único corpo! Aprendamos uns dos outros e salvemo-nos mutuamente! 11 Reproduzida no livro de BOFF, Leonardo. Do Iceberg à Arca de Noé – O nascimento de uma ética planetária, Rio de Janeiro: Garamond, 2002. 12 João Paulo II. Paz com Deus, Paz com toda a criação. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 23 Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana Para prosseguir, uma prece do povo indígena Ute, da América do Norte:13 Terra, ensina-me a quietude, como a relva é silenciada pela luz. Terra, ensina-me a sofrer, como as velhas pedras sofrem com a lembrança. Terra, ensina-me a humildade, como as flores são humildes em seus primórdios. Terra, ensina-me a acarinhar, como a mãe que envolve seu bebê. Terra, ensina-me a coragem, como a árvore que se eleva solitária. Terra, ensina-me a limitação, como a formiga que rasteja no solo. Terra, ensina-me a liberdade, como a águia que paira no céu. Terra, ensina-me a resignação, como as folhas que morrem no outono. Terra, ensina-me a regeneração, como a semente que brota na primavera. Terra, ensina-me a esquecer de mim mesmo, como a neve que derrete esquece sua vida. Terra, ensina-me a lembrar da bondade, como os campos áridos choram com a chuva. 13 24 Endereço do autor: Rua Maurício Spalding de Souza, 465, casa 01 Bairro Santa Mônica CEP: 88035-110 Florianópolis, SC E-mail: [email protected] Cf. NOVAK, Philip. A Sabedoria do Mundo – Textos sagrados sobre as religiões universais, Rio de Janeiro: Nova Era, 1999, p. 387. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: Análise sobre a situação ambiental no Estado de Santa Catarina; problemas e ameaças ecológicas atuais e futuras no Estado de SC; conceitos científicos ecológicos; valores filosóficos do ecologismo; importância da temática ecológica no cenário mundial; ecologia política e engajamento individual e coletivo no movimento ecológico. Abstract: The analysis of the situation concerning the environment of the State of Santa Catarina, merits the attention of the entire population because it focuses on problems and alarming implications affecting present and future conditions of life on earth. Value judgments based on philosophical principles underpinning scientific ecological issues are to be dealt with. Ecology in a world wide scope related with the political sphere and the role of the individual cannot be evaded by anyone committed to the improvement of the environment. Ecologia Política Gert Schinke* * Historiador e ecologista; Presidente-executivo do Instituto Para o Desenvolvimento de Mentalidade Marítima – INMMAR; Coordenador do MOSAL – Movimento Saneamento Alternativo; Coordenador de Formação do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis – CDHGF; membro titular do Núcleo Gestor Municipal do Plano Diretor Participativo de Florianópolis. Endereço: Rua Felipe Schmidt, 390, Sala 508, Centro, Florianópolis, SC. Contatos: (48) 8424-3060, (48) 3324-0581, à tarde. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 25-38. Ecologia Política Neste artigo pretendo discorrer sobre o panorama ambiental catarinense, apontando os principais problemas ambientais que enfrentamos no momento, assim como trazer à luz a discussão em torno de conceitos ecológicos e valores filosóficos e políticos que alimentam esse movimento social cada vez mais importante no cenário mundial. O que se observa em Santa Catarina Vivemos em um Estado muito diverso sob todos os aspectos: morfologia, geologia, hidrologia, cobertura vegetal, fauna e flora, além da diversidade étnica, resultado da ocupação humana que se deu ao longo dos últimos séculos. Isso nos indica uma riqueza ímpar, um Estado no qual podemos encontrar paisagens das mais diversas, fator de atração turística inquestionável que coloca esta região do país de forma privilegiada no cenário nacional e internacional. Esse fator, porém, também traz pesados ônus ecológicos, como veremos mais adiante ao longo do texto. Para uma análise mais acurada, ainda que ligeira, sobre os maiores problemas ecológicos estaduais, perpassarei as macro-regiões do Estado, sob essa perspectiva, procurando apenas destacar as ameaças e situações mais importantes, sem, no entanto, deixar de observar que ocorrem um sem número de outras situações que não reporto aqui, dadas as limitações do espaço dese artigo. Região Nordeste de SC Seus maiores expoentes urbanos são as cidades de Joinville e São Francisco do Sul. As maiores ameaças ecológicas na Região resultam de uma combinação de fatores, dentre os quais encontramos os seguintes: – Terminais portuários: áreas com enorme índice de poluição e imenso tráfego de cargas; – Polo industrial: geração de vários tipos de poluição e contaminação de aquíferos; – Expansão urbana caótica: infra-estrutura nas cidades e na orla marítima resultando de um processo assimétrico e irregular de ocupação do solo; – Degradação de áreas naturais: desmatamento em áreas da Mata Atlântica; ocupação de mangues; pressões intensas sobre fauna e flora endêmicas 26 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Gert Schinke Região do Vale do Itajaí Tendo como expoentes as cidades de Blumenau e Brusque, repetese o padrão verificado na região Nordeste, porém incluindo outros fatores importantes: – Polo industrial e rizicultura: atividades geradoras de intensa poluição de vários tipos e contaminação de aquíferos; – Turismo intensivo: atividade econômica de alto impacto ambiental, geradora de poluição e estimuladora de intensa especulação imobiliária; – Expansão urbana caótica: impacto na infra-estrutura das cidades que se expandem em áreas não apropriadas para ocupação urbana, fator gerador de riscos e tragédias sociais como as que assistimos nos anos recentes; – Degradação de áreas naturais: resultante da combinação dos fatores acima, gerando desmatamento e também intensas pressões sobre fauna e flora endêmicas dessa região. Região do Litoral Despontam as cidades de Itajaí, conurbação metropolitana de Florianópolis e as cidades de Tubarão e Criciúma mais ao sul, todas situadas na estreita faixa litorânea de baixa altitude que se estende até a Serra do Mar, refúgio da Mata Atlântica. – Terminais portuários: polos geradores de intensa poluição de diversos tipos, e intenso tráfego na orla marítima; – Polo industrial cerâmico, energia carbonífera e rizicultura: poluição atmosférica e contaminação de aquíferos; – Turismo intensivo: poluição de diferentes tipos e incremento da especulação imobiliária, notadamente na região metropolitana de Florianópolis; – Expansão urbana caótica: infra-estrutura nas cidades aquém das necessidades da população, com imenso déficit no saneamento básico, transportes urbanos e planejamento urbano, agravado pelo descumprimento do Estatuto da Cidade, gerando impactos ao longo de toda a orla marítima; Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 27 Ecologia Política – Degradação de áreas naturais: desmatamento e ocupação de manguezais, pântanos, restingas e dunas, além de gerar intensas pressões sobre fauna e flora endêmicas. Região do Planalto Serrano Tendo como expoente a cidade de Lages, essa região apresenta os seguintes problemas: – Monoculturas de pínus e eucaliptos, e pecuária extensiva: degradação das terras de plantio e ameaças à fauna e flora endêmicas; – Polo industrial de celulose e papel: poluição e contaminação de aquíferos; – Barragens de usinas hidrelétricas: expulsão de agricultores e inundações em enormes áreas antes ocupadas, gerando grande tensão e problemas sociais em toda a região limítrofe ao Rio Grande do Sul; – Degradação de áreas naturais: desmatamento para dar lugar às plantações de monoculturas arbóreas e pressões sobre fauna e flora endêmicas. Região do Meio Oeste Tendo a cidade de Concórdia como símbolo maior, esta região concentra o maior polo industrial de elaboração de carnes do Estado. – Polo industrial de produção de carnes: poluição atmosférica e contaminação de aquíferos; tráfego rodoviário intenso; – Expansão urbana caótica: graves problemas na infra-estrutura das cidades que sofrem com a migração interna em busca de empregos; – Degradação de áreas naturais: desmatamento; pressões sobre fauna e flora endêmicas. Região do Planalto Norte A cidade de Mafra simboliza a região, sendo que esta apresenta as seguintes características: 28 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Gert Schinke – Monoculturas de pínus e eucaliptos: degradação das terras; – Polo industrial de móveis: poluição e contaminação de aquíferos; – Degradação de áreas naturais: desmatamento e pressões sobre fauna e flora endêmicas, sendo a região do Estado que apresenta o maior índice de desmatamento nos últimos anos, fonte de enorme preocupação e geradora de intensos conflitos sociais. Região do Oeste Tem na cidade de Chapecó seu maior expoente urbano, e apresenta as seguintes características: – Polo industrial de produção de carnes: poluição e contaminação de aquíferos; geração de tráfego rodoviário intenso; – Monoculturas de soja e milho: contaminação da terra e aquíferos; – Expansão urbana caótica: impactos sobre a infra-estrutura nas cidades, notadamente na região metropolitana de Chapecó; – Degradação de áreas naturais: desmatamento e pressões sobre fauna e flora endêmicas, sendo que esta região é a que dispõe de menor índice de cobertura vegetal florestal no Estado, em função da forma de ocupação e modelo do produção agrícola baseado na monocultura e produção de carnes. Maiores ameaças na atualidade e no futuro próximo em SC A economia em nosso Estado é pautada pelo binômio CARNESTURISMO. Carnes produzidas no Oeste e Meio Oeste do Estado, basicamente voltadas para exportação, ítem no qual o estado está atualmente no topo do ranking nacional. Esse complexo agro-industrial exportador demanda um fortíssimo impacto sobre os polos escoadores da produção situados nos portos oceânicos, regiões que concentram um sem número de serviços ligados à importação-exportação. Configurou-se ao longo das últimas décadas um enorme corredor de exportação do agronegócio que inicia no extremo Oeste e chega ao litoral na forma de vários sub-corredores rodoviários, hoje totalmente insuficientes para um adequado atendimento da demanda dos imensos volumes em questão. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 29 Ecologia Política De outra parte, o lindíssimo litoral catarinense, recortado caprichosamente em centenas de baías dispersas de norte a sul, pauta o TURISMO, atividade que se expande no mundo todo e que, em nosso caso específico, atrai não somente o consumidor turista, mas principalmente enormes empreendimentos de diversos tipos voltados a atender a demanda atual e futura nesse setor – complexos hoteleiros; condomínios e prédios residenciais; resorts; marinas; complexos de entretenimento; shoppings; além da especulação imobiliária local que é retroalimentada na região onde se instalam esses empreendimentos. Não por acaso, o maior índice de multas ambientais e processos de licenciamentos questionados pelos poderes fiscalizadores das três esferas de governo são da área da construção civil, infinitamente maior em número que os do setor industrial e do agronegócio. Na região Nordeste, há a ameaça presente por parte de um novo terminal portuário, o Porto Mar Azul, em São Francisco do Sul. Já em Joinville, coerente com a característica da cidade, instala-se uma nova fábrica da General Motors, voltada para a produção interna e exportação. Embora licenciada, gerará tremendo impacto sócio-ambiental sobre toda a região, por via da atração dos empregos que gerará, mas, sobretudo, por seus efeitos poluidores sobre o solo e atmosfera em toda a região metropolitana de Joinville. No Litoral-centro do Estado, a região de Florianópolis assistiu a recente refrega em torno da instalação do Estaleiro da OSX, no município de Biguaçu. Indústria metal-mecânica pesada, que importaria a maior parte dos seus insumos para a produção de embarcações e adequação de equipamentos navais voltados à exploração do pré-sal, ela traria inúmeros impactos ecológicos, tanto na área territorial quanto marítima do seu entorno, caso viesse a ser instalada. Felizmente o movimento ecológico local comemorou a decisão do grupo empresarial em não instalar o estaleiro em Biguaçu, mas no litoral do Rio de Janeiro – Porto de Açu, localidade onde o empreendimento produzirá mais “sinergias econômicas e logísticas” (leia-se retorno financeiro), conforme divulgado pelo grupo empresarial EBX. Essa decisão, porém, não extirpou totalmente a ameaça ambiental, pois a área que acolheria o estaleiro deverá ser utilizada para um grande empreendimento imobiliário, embora gerando, sem dúvida, menor impacto ecológico que o anterior. Ainda na região de Florianópolis está em discussão a construção de um novo terminal aeroviário internacional – o novo Aeroporto Inter- 30 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Gert Schinke nacional Hercílio Luz, que destinará o atual terminal para uso exclusivo de cargas aéreas. Esse empreendimento, a ser construído dentro da Ilha de Santa Catarina, ao lado do atual terminal, é, certamente, a maior ameaça ecológica que paira sobre Florianópolis, na medida em que agravará o problema viário na capital e atrairá no seu entorno mais serviços ligados ao transporte de cargas e passageiros. Nesse sentido, embora longe de ser unânime, há uma proposta concreta, de índole popular, de se construir o “novo aeroporto internacional” na área do continente, em algum lugar ao norte da cidade de Biguaçu, com fácil acesso à BR-101, e afastado o suficiente das concentrações urbanas na capital. Ao longo de todo o litoral catarinense há, portanto, uma ameaça comum, conforme analisamos acima – os mega-empreendimentos imobiliários, sejam voltados ao turismo e negócios, sejam voltados à moradia. As consequências desse processo se fazem sentir nos inúmeros problemas de trânsito nas cidades litorâneas, na falta de saneamento básico e água potável, e de todos os demais equipamentos públicos necessários a garantir uma boa qualidade de vida para as populações. Na região Litoral-sul há a discussão em torno da instalação da “fosfateira” da VALE, no município de Anitápolis, conhecido como “fosfateira de Anitápolis”, empreendimento de altíssimo impacto ambiental que desfigurará toda uma bela região atualmente ocupada com pequenas propriedades de agricultura de subsistência e turismo ecológico. A região também agrupa um sem número de fontes de água, recurso que está cada vez mais escasso e que nos últimos anos recebe mais atenção por parte da população e das autoridades ligadas à gestão dos recursos hídricos, saneamento básico e drenagem urbana. A ligação desses fatores remete para o planejamento urbano integrado municipal e regional, assim como alerta para que as tragédias sócio-ambientais não venham a se repetir em nosso Estado. Não por acaso, a VALE insiste na concretização do seu projeto, porquanto ele atenderá a uma demanda garantida por parte do agronegócio, dependente do exterior na produção de fosfato – o item é necessário na composição do NPK, adubo básico utilizado na monocultura em grande escala que alimenta as criações para abate e posterior exportação do complexo industrial de processamento de carnes no Estado. Já nas regiões Centro Oeste e Oeste do Estado, as ameaças atuais e futuras se dão principalmente pela expansão do complexo do agronegócio, pressionando politicamente pela revisão do Código Florestal, Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 31 Ecologia Política atualmente em acirrada discussão no Congresso Nacional. O desfecho desse “cabo de força político”, polarizado entre “ruralistas” de um lado, e dos “ambientalistas”, de outro, determinará o quanto nosso Estado será futuramente agredido por via do incremento do desmatamento das áreas ainda remanescentes, ou de outra sorte, se a situação poderá ser paulatinamente estabilizada com vistas a uma melhoria das condições ecológicas regionais. A ecologia na história recente – uma síntese O surgimento da área de conhecimento “ECOLOGIA”, e do movimento ecológico que a realimenta, é a grande novidade sóciopolítico-cultural no cenário mundial a partir do pós-guerra: 2ª metade do século XX para cá. No limiar do século XXI, com a economia capitalista plenamente globalizada, combinada com a escassez iminente de recursos naturais e a ocorrência de catástrofes climáticas cada vez mais frequentes, a ecologia se destacará ainda mais na agenda política global. Dada sua importância no cenário atual, a ecologia galgou a agenda política, assumindo a forma e a estatura da moderna ECOLOGIA POLÍTICA. Atualmente, o movimento ecológico passa por uma “crise de identidade” e de rumos diante dos desafios globais, mas se liga cada vez mais com maior ênfase ao debate econômico, social e político. Assim como nos demais “movimentos sociais”, também o ecológico é dividido em distintas correntes de pensamento que se alinham, em certa medida, com as ideologias políticas mais consolidadas: liberalismo, marxismo clássico e o contemporâneo. Entre os conceitos mais importantes da ecologia “ciência” estão a ENTROPIA, a CADEIA TRÓFICA; a BIOCENOSE – EQUILÍBRIO ECOLÓGICO; o PONTO DE NÃO RETORNO; os CICLOS BIO-GEOQUÍMICOS; o ECOSSISTEMA; a RESILIÊNCIA; a DEPLEÇÃO; o AMBIENTE ECOLOGICAMENTE ESTÉRIL; o IMPACTO AMBIENTAL; a CAPACIDADE DE SUPORTE, dentre outros. Comparando sistemas organizacionais e filosóficos O estudo da ecologia ressaltou um novo olhar filosófico, ao constatar a forma como a natureza se organiza e funciona, e a forma pela 32 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Gert Schinke qual se pauta o comportamento humano na dimensão social. Abaixo, um comparativo entre as características do pensamento ecológico e o convencional: NA SOCIEDADE ATUAL Pensamento Tecnocrático Verticalidade Simplificação Uniformidade-padronização Desequilíbrios-crises X X X X X NA NATUREZA Pensamento Holístico Transversalidade Complexidade Diversidade-singularidade Homeostase-equilíbrio Complexidade como modo de organização e funcionamento Os sistemas organizacionais simples se caracterizam pelo modo binário de funcionamento, enquanto que, em outro extremo, os sistemas organizacionais complexos se caracterizam pelo modo de funcionamento em redes e nuvens. Essa relação é importante no estudo da ecologia, pois ela cruza diferentes ambientes, assim como as espécies que neles habitam, e estabelece relações extremamente complexas, muitas das quais nos fogem do controle e perfeita compreensão. Sistema simples (binário) X Sistema complexo (nuvens) O conceito filosófico de complementaridade Um dos conceitos filosóficos mais importantes para uma boa compreensão do modo de funcionamento da natureza é o da Complementaridade, que pode ser simbolicamente traduzido pela relação abaixo representada por: OU (exclusão) X E (inclusão) Ou também como: OU modo BINÁRIO raciocínio reducionista Ex.: 010011110000110 E modo MÚLTIPLO raciocínio complexo Ex.: aBxy6#k4rn0mz Esses conceitos, aparentemente simples, são fundamentais para compreendermos a máxima segundo a qual “na natureza nada se perde, tudo se transforma”. Não há, portanto, exclusão de elementos ou partes na natureza. Tudo é PERTENÇA. Todas as formas de vida têm sua deEncontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 33 Ecologia Política vida função ecológica, paradigma este que alguns sistemas teológicos também incorporam. Paradigmas filosóficos basilares da ecologia política 1 Um novo posicionamento do homem no mundo – O Pensamento Ecológico desloca o ANTROPOCENTRISMO em direção ao BIOCENTRISMO. – O valor maior é A VIDA – gera-se uma “ÉTICA ECOLÓGICA” – A VIDA sempre em primeiro lugar. – Compromisso com o DEVIR – um olhar voltado para o FUTURO, que questionará a “TESE DA INEVITABILIDADE DA DOMINAÇÃO HUMANA SOBRE O UNIVERSO”, moto ideológico propulsor do Capitalismo Globalizado. Ao mesmo tempo trará à tona o “CONFLITO GERACIONAL”, ao atribuir responsabilidades advindas das ações das gerações pregressas, assim como da atual, sobre os destinos da HUMANIDADE e da VIDA no Planeta. 2 Nova abordagem científica e filosófica – Opera a TRANSVERSALIDADE na forma de abordar os temas – “Small is beautiful”. E GOVERNANÇA DESCENTRALIZADA. – O PENSAMENTO ECOLÓGICO alimenta a COMPLEXIDADE NO PENSAR e coloca em cheque o modelo educacional vigente. 3 Uma nova visão no desenvolvimento material e social – A Ecologia Política coloca em cheque as visões econômicas hegemônicas: a ECONOMIA (em sua dimensão real) é vista como apenas um capítulo da ECOLOGIA, o que gera uma nova abordagem econômica. – A GESTÃO DO ESTADO é colocada em cheque, pois propõe uma radical DESCENTRALIZAÇÃO NA AÇÃO POLÍTICA, com ênfase na autonomia local e participação direta nas decisões. 34 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Gert Schinke – A noção da “PEGADA ECOLÓGICA” – comparação de consumo energético de consumo e de bens materiais (1 norte-americano = 10 brasileiros, por exemplo), o que provoca o surgimento de conceitos e estudos incorporando os CUSTOS AMBIENTAIS no valor dos produtos, ainda que não “ecológicos” em sua grande maioria, porém válidos no contexto atual. Uma das consequências do sistema filosófico ecológico, ao operar um novo olhar sobre o modo de desenvolvimento material e social humano, provoca um forte questionamento sobre o ARMAMENTISMO, as GUERRAS de todos os tipos, assim como as DISPUTAS BÉLICAS POR RECURSOS NATURAIS E PODER DE INFLUÊNCIA POLÍTICA de uns povos sobre outros. Não por acaso, o movimento ecológico se liga politicamente ao movimento pacifista mundial e caminha de par em par com todas as forças que lutam pela PAZ, direitos humanos e todas as formas de solidariedade. Grosso modo, poderíamos fazer a seguinte comparação entre os dois polos ideológicos que representam modos de desenvolvimento que propõem rumos diametralmente opostos – um, claramente capitalista; e outro, claramente anti-capitalista, expressos nas conhecidas fórmulas de: “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” FUKUIAMA (o fim da História e o último Homem) X DESENVOLVIMENTO “ECOLOGICAMENTE” ORIENTADO SINDAMA SHIVA, ROBERT KURTZ, NOAM CHOMSKY A discussão em torno da produção de energia é bem ilustrativa, para estabelecer a comparação entre os dois modelos de desenvolvimento acima enunciados. E, nesse contexto, o Brasil desponta com um papel fundamental, pois é possuidor de imenso potencial hidráulico, terras para produção de biocombustíveis de toda ordem, insolação em proporções tropicais e ventos virtualmente inesgotáveis, o que coloca nosso país entre os detentores dos maiores índices mundiais de energias renováveis. Paradoxal, mas não de todo incompreensível, é o discurso recorrente que diuturnamente prega a produção de cada vez mais energia, seja de fonte hidrelétrica, de biomassa, de gás, ou nuclear, esta última novamente retornando à agenda governamental. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 35 Ecologia Política A notícia abaixo desmente o argumento do maior custo das chamadas “energias alternativas”: Energia eólica já é uma das mais competitivas do Brasil Com preço médio de R$ 130,86 o MWh, fonte de energia bate até mesmo as usinas térmicas movidas a gás natural (Renée Pereira – O Estado de S.Paulo – 30.08.10). A forte disputa, verificada nos leilões promovidos pelo governo federal ultimamente, pôs a energia eólica na lista das mais competitivas do Brasil, abaixo até do custo das térmicas movidas a gás natural, de cerca de R$ 140 o megawatt/hora (MWh). Na média, o preço da energia produzida com o vento foi negociada por R$ 130,86. No leilão do ano passado, cada MWh custou em média R$ 148,39. “O resultado realmente surpreendeu a todos”, afirmou o presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Ricardo de Maya Simões. Ele acredita que há vários fatores para explicar a forte disputa verificada no leilão, que contratou 2.892 MW de capacidade, sendo 70% desse montante de energia eólica. Nosso papel pessoal e coletivo diante desse cenário No âmbito pessoal, é possível efetivar um sem número de ações, todas, porém, dependentes de uma decisão que tem como foco a diminuição de consumo energético e de bens materiais. Em suma, o abandono do “consumismo”, mecanismo ideológico/político que retroalimenta nosso sistema de produção predador. Nos dias atuais, não há como fugir dessa ATITUDE inadiável. No âmbito coletivo, o movimento ecológico oferece muitas oportunidades de ação, mediante engajamento nas inúmeras entidades que hoje existem em todos os cantos do planeta – pequenas, médias e grandes, seja orientadas para focos específicos, seja orientadas para questões mais genéricas. Entidades “guarda-chuva”, como as federações, confederações e uniões, também existem para agrupar as diferentes organizações, seja do ponto de vista territorial, seja do ponto de vista programático ou de seus objetivos. A Igreja Católica tem, no Brasil, um dos seus mais importantes pilares e, consequentemente, um papel fundamental para promover, por via da sua imensa capilaridade social, uma orientação mais clara a seus fiéis quanto aos problemas ecológicos que o país vive e que se aprofundam dia a dia. A Campanha da Fraternidade de 2011, tendo como foco o “meio ambiente”, é mais que oportuna e bem vinda. Ela ajuda o movimento 36 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Gert Schinke ecológico em sua árdua tarefa de colocar a questão ecológica como URGENTE na agenda política nacional e internacional. Referências bibliográficas ALIER, J. M.; SCHLPMANN, K. La ecologia y la economia. México: Fondo de Cultura Economica, 1991. BERTALANFFY, L. v. Teoria geral dos sistemas. 2. ed. Vozes/MEC, 1968. BOULDING, K. Ecodinamic: A new theory of societal evolution. ���� London: Sage, 1978. BROWN, L. Por uma sociedade viável. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983. CAPRA, F. et al. Gerenciamento ecológico. Guia do Instituto de Auditoria Ecológica e Negócios Sustentáveis. São Paulo: Cultrix, 1993. CAPRA, F. O ponto de mutação: A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1982. _____. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996. _____. 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Para que essa articulação seja feita de modo adequado, presisamos compreender o que significam estes termos: ética e ecologia. A ação do ser humano sobre o meio ambiente se constitui em matéria essencial para a ecologia. Daí a importância de um olhar atento ao processo do agir humano sobre a natureza e, mesmo, suas alternâncias ao longo da história humana. Segundo Michel Métayer, o atual quadro destrutivo representa um problema muito grave: talvez o mais grave dos que a humanidade teve que enfrentar até hoje. Diante da situação, humanistas e universalistas trazem à “ordem do dia” o princípio da dignidade humana e, na América Latina, acompanhamos o surgimento de uma reflexão ética socioambiental. É preciso uma postura ética que articule o social com o ambiental. Diante desse quadro, percebemos que o lugar do ser humano e de cada ser dentro da “casa comum” precisa ser revisado. Sem colocar em questão a missão do homem no conjunto da criação, constatamos o desafio de uma nova compreensão na relação entre os seres: é necessário fazer a passagem de uma compreensão onde impera o domínio, para uma compreensão dialogal e de comunhão. Abstract: The ecological dimension of our planet could be dealt with in the context of all forms of life without any recourse to ethics. We are called to focus upon ecology and taking into account concrete situations of abuse, crimes, extinction of species of both flora and fauna, pollution of air, water, and soil, etc. However, both the negative and positive aspects, good and bad, demand a deeper analysis of the relationship between ecology and ethics. What is the meaning of the concepts: ethics and ecology? The reply takes into account human action affecting the environment where ecology comes to the fore. Thus it becomes imperative to take a good look at human initiatives in the course of history. According to Michel Métayer, the general picture of destruction is rather alarming and possibly the most serious which humanity is asked to confront up till now. As a viable response to this situation humanists propose to envisage human dignity as the foremost imperative in Latin America to be fostered in circles of study in the area of ethics applied to the environment concerned with social implications. A type of dialectic is therefore presented which will bring such value judgments and their implications into the open with special emphasis on dialogue and communion. Ética e Ecologia Pedro Paulo das Neves* * O autor, Licenciado em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina, UNISUL; Bacharel em Teologia pelo Instituto Superior de Teologia de Belo Horizonte; Especializado em Teologia Bíblica pela Universidade Católica de Pelotas, RS; Mestre em Teologia pela Universidade Católica de Louvain (UCL), Bélgica , é Padre da Diocese de Tubarão e Professor no ITESC. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 39-50. Ética e Ecologia Como construir uma nova relação entre o ser humano e o ambiente, que garanta a permanência da vida em sua diversidade, sem destruir a casa comum, nem comprometer o futuro de todos os seres? Isso é, em síntese, o que se busca da relação dialógica entre ética e ecologia. Introdução Dizer algo pertinente sobre as várias crises por que passa a humanidade hoje, não é tarefa simples. Ainda mais difícil se torna, quando queremos entender os processos que conduziram a este contexto, com o objetivo de encontrar alternativas para poder fazer diferente. No que tange à crise ecológica, a maioria significativa das análises e estudos reconhece que as raízes do problema estão fincadas no tipo de relação estabelecida entre o ser humano e o ambiente natural. Por outro lado, uma abordagem histórica dessa relação desnuda as idéias, concepções e convicções, que alimentaram ações e comportamentos nos mais diferentes povos, culturas e tempos. Por isso, não podemos abordar a situação ecológica na qual se encontra nosso planeta, sem recorrer ao campo da ética. Toda a tomada de consciência ecológica vai- nos dando um diagnóstico da situação: os abusos, os crimes, a extinção de espécies, a poluição do ar, da água, do solo etc. Mas a aceitação desse fato como positivo ou negativo, bem ou mal, exige uma reflexão articulada entre ecologia e ética. As metas e valores, elaborados ao longo das gerações, que motivaram o agir das civilizações, não podem ficar esquecidos neste momento. Nosso propósito é começar a clarear um pouco o que se entende por ética e ecologia. Com o cruzamento desse instrumental, pretendemos iluminar as forças geradoras do estado atual da natureza, bem como constatar alguns esforços presentes, na prática e na teoria, que poderão somar e enriquecer toda a reflexão feita pela Campanha da Fraternidade deste ano no Brasil, que tem como lema: “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22). 1 Clareando conceitos 1.1 Ética “Assim como a palavra “moral” vem do latim, mores, a palavra “ética” vem do grego, éthos, e se refere aos costumes, à conduta da vida, às regras do comportamento. Etimologicamente ela indica a mesma realidade que a palavra moral, como esclarecem vários dicionários e como o filósofo francês Michel Serres observa em seu livro Génétique, procréation et droit, Paris, 1985”.1 1 40 DURAND, G.,La bioéthique, Cerf, Paris, 1989, p.13 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Pedro Paulo das Neves Muitos autores empregam as palavras “ética” e “moral”, uma pela outra, quase como sinônimos. Segundo Durand, a ética abrange três campos: pesquisa, sistematização e prática. 1.1.1 Pesquisa de normas ou de regras do comportamento, análise dos valores, reflexão sobre os fundamentos dos direitos ou dos valores. 1.1.2 Sistematização da reflexão. Fala-se da ética de Kant, ou de algum outro filósofo. Muitos teólogos empregaram a expressão “ética cristã”, para falar dos grandes valores evangélicos e da sua aplicação concreta na vida cotidiana dos cristãos. 1.1.3 Prática concreta e realização dos valores. Encontramos, também, não poucos autores que, com frequência, distinguem ética e moral. Assim, certos filósofos tendem a limitar a ética aos dois primeiros campos da palavra “moral”. A ética é, então, “a ciência do bem e do mal”, ou a “ciência da moral”. Ou, ainda, limita-se ao estudo dos fundamentos da moral. Além disso, a vida cotidiana confere às palavras uma história específica, que agrega a cada uma um sentido próprio. Assim, no Ocidente, onde prevaleceu o latim, difundiu-se o emprego da palavra moral. E, com a primazia cultural do cristianismo, a palavra “moral” facilmente ganhou uma conotação religiosa. Da mesma maneira, a descoberta dos filósofos gregos colocou em realce a palavra ética, com a conotação de moral não religiosa, isto é, de moral natural ou secular. Como a moral dominante no Ocidente tem sido frequentemente apresentada como um sistema de princípios imutáveis e aparentemente definidos, a palavra “moral” tomou, para muitos, um sentido conservador e fechado. Muitos têm também tomado a palavra “ética” para expressar uma pesquisa moral nova, aberta e atenta à evolução do mundo moderno. Quer se deplore ou não, essas concepções são muito espalhadas e mantêm uma indisfarçável ambiguidade.2 2 Ecologia Por “ecologia” entendemos a ciência (ramo da biologia) que estuda os seres vivos e suas interações com o meio ambiente onde vivem. Etimologicamente, a palavra ecologia deriva do grego: “oikos” = casa e “logos” = estudo. Os resultados desses estudos nos permitem o acesso a dados que revelam se os animais e os ecossistemas estão em perfeita harmonia. A ação do ser humano sobre o meio ambiente se constitui 2 Cf. ibid. p. 14 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 41 Ética e Ecologia em matéria essencial para a ecologia.3 Numa época em que o desmatamento e a extinção de várias espécies estão em andamento, o trabalho dos ecologistas e, deles, com a dimensão ética do agir humano, é de extrema importância. Através das informações, geradas pelos estudos da ecologia, o homem pode planejar ações que evitem a destruição da natureza, possibilitando um futuro melhor para a humanidade e para o conjunto do planeta. 2.1 Sinais do equilíbrio perdido Em nossos dias vemos um despertar de preocupações com o meio ambiente. Era de esperar que, com um modo de vida centrado no desenvolvimento tecnológico, onde o lucro é o critério e a meta da relação homem-natureza, cedo ou tarde as conseqüências iriam aparecer e suscitar uma nova maneira de agir. Assim sendo, não é de se surpreender diante de alguns efeitos desastrosos. O desenvolvimento industrial é freqüentemente acompanhado por uma degradação dos recursos naturais e uma acumulação de dejetos tóxicos na natureza. As emissões de CO2 na atmosfera são uma ameaça constante ao clima do planeta. Com a continuidade desse processo, marcado por ações destrutivas, milhões de espécies animais e vegetais são ameaçadas de extinção. Segundo Michel Métayer, esse quadro faz referência ao aumento de um problema muito grave: talvez o mais grave dos problemas que a humanidade teve que enfrentar até hoje4. Mas é claro que todo esse problema só veio fazer parte das reflexões em nossos dias, porque emerge de uma realidade nova que por sua vez suscita a consciência ecológica: as ações humanas, bem como suas aspirações, capacidades e projetos, devem apoiar-se numa fundamentação ética, a qual é capaz de garantir um desenvolvimento sustentável. Diante dessa emergência da consciência ecológica, temos que nos interrogar sobre nosso dever para com as gerações futuras, nossa relação com a natureza, e mesmo sobre o sentido de nossa presença sobre a terra. A redescoberta de um sentido mais profundo e mais amplo do existir impõe-se como condição para continuar vivendo. Talvez seja neste ponto que, necessariamente, a ética e a ecologia precisam se cruzar, e trazer à luz do dia um horizonte compatível com a grandeza da criação. Segundo Afonso Murad, na América Latina e no Caribe, desenvolve-se agora uma 42 3 Cf. Dicionário de Teologia Moral, Paulus, São Paulo, 2007. 4 Cf. MÉTAYER, M. La Philosophie Éthique: enjeux et débats actuels. R P. Québec, 2002, p. 258. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Pedro Paulo das Neves corrente ética socioambiental5. Dentro dessa perspectiva, podemos ouvir a condenação de uma economia centrada no mercado, destruidora das culturas dos povos, destruidora do ambiente e alimentadora da exclusão. É preciso uma postura ética que articule o social com o ambiental. Não restam dúvidas de que estamos diante do nascimento de um novo tempo. Isso não significa que tenhamos que reinventar a roda! Também não podemos ignorar a necessidade de um instrumental éticofilosófico e teológico que possa dar conta da complexidade dessa relação entre o ser humano e o meio ambiente neste novo tempo. Precisamos ir além de uma relação parasitária entre o ser humano e a natureza. Uma compreensão da criação que não pontue a necessidade de um desenvolvimento sustentável, e a construção de valores sobre os quais se possa habitar e sustentar a vida no planeta de forma solidária, carece de uma revisão. É urgente que as relações de poder e domínio fundamentadas mesmo nas páginas do Gênesis (relatos da criação) por interpretações distorcidas da Palavra de Deus, sejam substituídas desde dentro por um novo ethos capaz de portar solidariedade e paz a todos os seres e ao meio ambiente. Mas vejamos, a seguir, como, na questão ético-ecológica, paira a tentação de se condenar o que para muitos ainda não está garantido: os direitos da dignidade humana. 2.2 A questão da dignidade humana Os extremos, como a história tem mostrado, nunca foram uma boa solução para os problemas. Neste ponto, a filosofia nos situa diante de dois caminhos: Humanismo e Universalismo. 2.2.1 Humanismo: Postula o valor intrínseco da dignidade moral do ser humano, dotado de intelecto (ética filosófica-secular) e criado à imagem e semelhança de Deus (revelação ética-teológica) . 2.2.2 Universalismo: Questiona o postulado básico dos humanistas: o ser humano tem uma dignidade que lhe é própria. No dizer de Métayer, quando os universalistas reivindicam essa mesma dignidade a todos os outros seres animais e vegetais, isso implicaria em dar a eles uma dignidade moral. Sendo assim, podemos deparar-nos com duas posições diferentes em relação ao conceito de meio ambiente: No primeiro caso, protege-se o ambiente para proteger os interesses dos seres humanos, enquanto, no segundo caso, protege-se o meio ambiente por si mesmo. Ele tem um valor intrínseco.6 5 MURAD, A., in A MISSÃO EM DEBATE: Provocações à Luz de Aparecida. Col. Ecclésia-Amerindia, PAULINAS, São Paulo, 2010, p. 119. 6 Cf. Ibid., p. 259 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 43 Ética e Ecologia Aqui é importante distinguir a dignidade humana inerente ao ser humano, e a dignidade ético/moral decorrente do seu agir. Robert Andorno7, em um de seus artigos8, diz o seguinte : A noção de dignidade faz referência a uma qualidade ligada ao ser mesmo do homem, o que justifica que ela é a mesma para todos, não permitindo que haja níveis diferentes. Nesse sentido, trata-se de uma dignidade inerente e não de uma dignidade ética. Destaca-se a característica estática desta dignidade, a qual não depende de qualidade moral, ao passo que a dignidade ética é uma noção dinâmica que não se aplica ao ser da pessoa mas ao seu agir. A dignidade ética permite afirmar que um homem honesto tem “mais dignidade” que um trapaceiro... Seguindo a reflexão desse autor, podemos afirmar que o problema, manifestado na relação do ser humano com o ambiente, não pode ser atribuído ao fato de a dignidade humana lhe conferir uma qualidade que lhe é própria, e que não podemos atribuir aos outros seres. A declaração universal dos direitos humanos (1948), bem como os organismos internacionais que buscam nesse princípio fundar a defesa da vida humana, não desmerecem ou favorecem a degradação do meio natural(ambiente). O que precisamos e devemos urgentemente desenvolver é uma compreensão relacional entre o ser humano e o ambiente, que seja iluminada por um cruzamento entre ecologia e a dignidade ético-moral humana. Quando nos propusemos refletir um pouco sobre esta relação entre ética e ecologia, é claro que não pretendemos satanizar todo desenvolvimento e/ou todo e qualquer tipo de relação entre o ser humano e a natureza. Precisamos reconhecer os avanços da ciência, as descobertas portadoras de esperanças para a humanidade... Porém, os danos causados reclamam um investimento significativo para a recuperação do que foi destruído, bem como, mais prudência em relação ao futuro. Com a inegável interdependência entre a totalidade do sistema ambiental, muitas das ações do ser humano precisam ser revisadas, e o 44 7 ������������������������������������������������������������������������������� Doutor em Direito; Membro da Comissão Internacional de Bioética da UNESCO; Pesquisador do Centro Interdepartamental de Ética das Ciências (IZEW), Universidade de Tübingen, Alemanha. 8 Cf. Rubrique Éthique, março, 2005: «La notion de dignité fait référence à une qualité inséparablement liée à l’être même de l’homme, ce qui explique qu’elle soit la même pour tous et qu’elle n’admette pas de degrés. On comprend bien que ce dont il est question ici, c’est de la dignité inhérente et non pas de la dignité éthique : tandis que la première est une notion statique, puisque elle revient à tout être humain du seul fait de son existence et indépendamment des qualités morales de l’individu en question, la seconde est une notion dynamique, car elle ne s’applique pas à l’être de la personne, mais à son agir, et permet d’affirmer, par exemple, qu’un homme honnête a ‘ plus de dignité’» qu’un cambrioleur». Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Pedro Paulo das Neves agir humano em alguns aspectos precisa ser re-fundamentado. Não se trata aqui de destituir o ser humano de sua dignidade própria, que lhe confere uma responsabilidade especial e um valor singular na relação com os demais seres. Quer seja o posicionamento da filosofia humanística ou da teologia cristã, a dignidade humana não pode constituir-se em elemento de destruição de nenhuma vida e de nenhum sistema. Temos conhecimento de iniciativas por parte de alguns países, de organismos nacionais e internacionais, de conferências mundiais; estamos num tempo em que os problemas ambientais, enraizados na exploração dos recursos naturais, podem ser visualizados. Pode se dizer que esse despertar reflexivo começou a ganhar corpo já em meados do século XIX, período em que a questão ecológica passou a ocupar oficialmente lugar nas preocupações com os efeitos negativos da industrialização. Porem, é somente a partir de 1970 que a questão ecológica vai ganhar status de problema ético, relacionando o agir humano com a natureza.9 3 Diferentes modos do Agir Humano em relação ao Ambiente Para compreender a relação entre o homem e seu ambiente, e aventurar-nos em busca de um novo agir, é quase necessário um olhar panorâmico de seu processo histórico. Desde a ótica da ecologia, podemos perceber algumas etapas bem definidas, por onde vão-se sucedendo as transições no tipo de relacionamento. 3.1 Época do equilíbrio natural – Remontando ao paleolítico, encontramos uma relação equilibrada, onde o ambiente vai exercer uma forte influência sobre o homem. Com as atividades de subsistência restritas à caça e à pesca, dispondo dos recursos do fogo, vegetais e animais, o impacto do ser humano sobre o ambiente era muito reduzido. A natureza, por sua vez, era quem detinha certo controle sobre o homem. Pode-se dizer que, nesse período, a relação homem-natureza não diferia muito dos outros animais, caracterizando-se por uma dimensão biológica. O aspecto cultural, enquanto criação e invenção da mente humana, ainda não se manifestam: é um período de profunda adaptação ao ambiente natural. 3.2 Da integração com a natureza ao desequilíbrio – Segundo A. MORONI10, é no neolítico que se dá o início do desequilíbrio en Cf. MOSER, A.& SOARES, A., BIOÉTICA: Do consenso ao bom senso, VOZES, Petrópolis, 2006, p. 92 10 MORONI, A., Uma leitura dos acontecimentos históricos na relação homem-ambiente, in “Dicionário de Teologia Moral”, PAULUS, São Paulo, 1997. 9 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 45 Ética e Ecologia tre homem e ambiente. Com a escassez dos alimentos, o ser humano começa a ter os primeiros sinais de diferença e separação entre ele e a natureza. Com esse estado de consciência, tem início uma relação marcada pela descoberta do poder do homem sobre a natureza. Esta tem que produzir o alimento necessário ao seu “senhor”; desmatamentos, queimadas e o ritmo da agricultura itinerante (nomadismo), vão deixando os traços do desequilíbrio na biodiversidade; espécies animais e vegetais vão desaparecendo.11 Mesmo que com técnicas elementares, o domínio do ambiente permitiu um aumento na produção de alimentos e da população. A fixação na terra possibilitou o desenvolvimento de grupos e aldeias e, posteriormente, de cidades. Sem sombra de dúvida, a revolução urbana vai gerar uma nova mentalidade: a descoberta e o domínio de novas formas de energia (novas relações com a natureza), provenientes da utilização dos metais, foram gradativamente desenvolvendo sistemas próprios de posse e de exploração da natureza. Assim sendo, cada povo ia se tornando cada vez mais poderoso de acordo com o domínio que detinha do ambiente natural; assim poderia impor-se aos outros. Nesse período, a natureza ainda marcava boa parte do ritmo de vida das pessoas; situações de insegurança diante das catástrofes naturais, epidemias, mortalidade infantil, curta duração da vida etc. Favoreciam um sentimento de fatalismo diante do não controlável pelo homem.12 3.3 Controle da Natureza Pelo Homem (revolução industrial) – Com a industrialização, a partir do séc. XVII, a humanidade ganhou inúmeros benefícios: medicina, higiene, produção de alimentos, informação etc. Os pontos negativos não foram decorrentes do progresso em si, mas da falta de uma cultura capaz de equilibrar desenvolvimento, economia e ambiente. Alguns pontos sinalizam esse desequilíbrio: a) Homem, sujeito ativo x natureza, elemento passivo; b) Investimento elevado na produção de bens que satisfaçam necessidades criadas pelo próprio sistema de exploração de recursos naturais, a maioria das vezes visando o lucro; c) Globalização, impondo as culturas dominantes e o desaparecimento das culturas menores; d) Desenvolvimento global da tecnologia com seus impactos fortes e às vezes irreversíveis sobre o ambiente natural e humano; e) Novas fontes de energia; f) Culto ao 11 Cf. Ibid., p.278. 12 46 Ibid., p. 279. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Pedro Paulo das Neves poder, descompromissado com um desenvolvimento sustentável que garantisse a preservação da vida13. Ao dar ao ser humano a possibilidade de controle e de interferência sobre a natureza, essa etapa desconhece a presença de limites; o eu se impõe (subjetivismo) a qualquer objetividade coletiva; a busca desenfreada pela realização imediata dispensa qualquer dever e responsabilidade em relação aos outros e a outros tempos (gerações futuras) . Este é um momento da história da relação entre o ser humano e a natureza, onde é indubitável a presença de uma orientação ética de cunho utilitarista; os valores são substituídos pelos interesses; o bem e o mal, o certo e o errado, se revestem de um relativismo ético capaz de ofuscar a própria dimensão ética do agir humano. 4 Cristianismo, Ética e Ecologia: um tripé na busca do equilíbrio Muitos são os que divergem da possibilidade de colaboração do cristianismo para uma relação equilibrada entre o ser humano e o meio ambiente. Partidários da ética secular chegam mesmo a desacreditar de uma fundamentação e reflexão de fundo religioso que tenha algo a oferecer dentro de um tecido diversificado e plural da atualidade. Assim, as correntes de ética religiosa vão sendo cada vez mais reduzidas à esfera do privado, referindo-se a determinado grupo; de outro lado, vemos universalizarem-se práticas e “valores” independentes, e mesmo contrários aos princípios religiosos. O princípio da autonomia vai abrindo portas a um individualismo exacerbado, uma liberdade totalmente desconectada com a verdade, um sentido do bem utilitário que, como uma luva, se mescla com o relativismo ético. A distinção entre autonomia, heteronomia e anomia moral, talvez nos ajude a compreender melhor os prós e os contras na relação do tripé acima citado. 4.1 Quando a norma moral tem origem num outro, vem de fora , sua internalização se chama heteronomia moral (héteros, do grego=outro, nómos, nomia= lei, norma: lei de outro). As religiões e as filosofias espiritualistas partem desse princípio moral. 4.2 Bem diferente é a elaboração da norma moral exclusivamente pela razão humana, sem uma interferência vinda de fora: é a autonomia 13 Cf. CADORRE, B., L’Expérience bioéthique de la responsabilité, Louvain-La-Neuve, Artel, p. 5-6. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 47 Ética e Ecologia (autós=do grego ele mesmo, lei de si mesmo). Esta é reivindicação suprema do iluminismo e neo-iluminismo. 4.3 A ausência de norma moral, anomia, se entende como a ausência total de norma moral.14 Esses três princípios morais nos colocam diante do desafio de relacionar cristianismo, ética e ecologia. Devido a experiências errôneas do passado, a heteronomia e mesmo a teonomia, foram sendo interpretadas como supressão da liberdade humana; abrir-se ao transcendente era uma negação do intelecto humano. O caráter dinâmico e relacional da moral foi-se constituindo num conjunto de proibições, com isso conduzindo o ser humano a um fechamento sobre si e à proclamação da sua soberania sobre Deus e o mundo. A ecologia, enquanto ciência dos sistemas de vida e do ambiente natural e humano, em suas análises e demonstrações, vem justamente denunciar essa indiferença, separação e fechamento do ser humano aos demais seres do meio em que vive. Desse ponto de vista, o horizonte cristão não difere da natureza e perspectiva da ecologia: interdependência, abertura, relação, diferença, responsabilidade... O desafio está em elucidar metas e valores para levar a efeito essa relação de forma amadurecida. “O homem se torna bom, e suas ações são boas, quando estuda a ordem cósmica e nela se insere sem destoar”15. Um mínimo de ética é fundamental para assegurar a convivência dos povos, e as religiões sempre foram uma fonte ética capaz de animar valores, ditar comportamentos e construir significado para a vida da humanidade.16 Na Conferencia de Aparecida, os bispos da América Latina e do Caribe declaram, no n° 473: “A América Latina e o Caribe experimentam uma exploração irracional, que vai deixando um rastro de morte por toda a nossa região... A devastação de nossas florestas e da biodiversidade mediante uma atitude predatória e egoísta envolve a responsabilidade moral daqueles que a promovem..Colocam em risco a vida de milhões de pessoas e sobretudo do hábitat ...”17 Como podemos ver, Aparecida aponta com clareza o desequilíbrio presente na relação entre o ser humano e a natureza. As raízes desse desequilíbrio, suas conseqüências e a responsabilidade moral, são fortemente denunciadas pelo documento em vários números. Assim sendo, Murad lembra que a ecologia nos convida a uma nova percepção do lugar de 48 14 Cf. MARCHIONNI, A., Ética: A arte do Bom, VOZES, Petrópolis, 2008, p. 105 15 Ibid., p. 124. 16 Cf. BOFF, L., Cuidar da Terra, proteger a Vida, RECORD, Rio de Janeiro, 2010, p.155. 17 Documento de Aparecida, n° 473a. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Pedro Paulo das Neves cada um dos seres, nesta casa comum. Com isso, novos horizontes se abrem para o cristianismo e outras religiões.18 Nesse sentido, a teologia da criação (Gn 1 e 2) é um dos primeiros temas a serem revisados na interpretação da fundamentação bíblica. É necessário fazer a passagem da compreensão onde impera o domínio, para uma compreensão dialogal e de comunhão. Compreender a criação como fruto da ação trinitária19, obra que sai do coração de um Deus comunhão, relação, abertura, nos permitirá mais e melhor fundamentar um agir humano que leve cristianismo, ética/ moral e ecologia a um restabelecimento do equilíbrio perdido. Conclusão No presente artigo procurou-se dar um destaque especial à possibilidade e necessidade de uma cooperação entre ética e ecologia, na busca do equilíbrio relacional entre o ser humano e o meio ambiente. Uma nova compreensão de cada um dos seres, e de seus lugares na teia de relação uns com os outros, trouxe à tona os danos de uma ação desregrada e inconseqüente, levada a efeito com o processo do desenvolvimento técnico-científico. A dignidade humana, por força da reflexão (fundamentação) filosófica ou teológica, se constitui numa dimensão essencial na harmonização da vida na casa comum. Os gritos das vítimas de uma relação egoísta e destruidora vão chegando a todos os ouvidos: nacionais e internacionais; instituições seculares e religiosas. As grandes conferências mundiais sobre as questões ecológicas: Rio 92, Copenhague, Cancun etc., sentiram nitidamente a necessidade de uma ética capaz de fundamentar um novo agir, que possa conduzir a humanidade e sua relação com o ambiente para além dos interesses mesquinhos de grupos e países que não conseguem visualizar nada, e muito menos a vida, longe do horizonte mercadológico. “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22). A igreja no Brasil, através deste lema da Campanha da Fraternidade de 2011, presta ouvidos ao grito da natureza e de toda a vida. É uma escuta esperançosa, “escuta com o coração” e, ao mesmo tempo, um anúncio dos valores éticos/morais que poderão garantir a sustentabilidade da vida no planeta. Solidarizar-se com este gemido e com este choro da criação, talvez seja a atitude primeira na descoberta, acolhida e construção de uma ética da vida. 18 MURAD, A., op. cit., p. 3. 19 Cf. MOLTMANN, J., Dios en la Creación, Salamanca, Sígueme, 1997, pp. 22-26. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 49 Ética e Ecologia Bibliografia Dicionário de Teologia Moral, Paulus, São Paulo, 2007. Documento de Aparecida, 2007. DURAND, G., La bioéthique, Cerf, Paris, 1989. MÉTAYER, M., La Philosophie Éthique : enjeux et débats actuels, R. P. Québec, 2002. MURAD, A., in A MISSÃO EM DEBATE : Provocações à Luz de Aparecida, Col. Ecclésia-Amerindia, PAULINAS, São Paulo, 2010. MOSER, A.& SOARES, A., BIOÉTICA: Do consenso ao bom senso. VOZES, Petrópolis,2006. MORONI, A., Uma Leitura dos Acontecimentos Históricos da relação homem-ambiente, in Dicionário de Teologia Moral, PAULUS, São Paulo. 1997. CADORRE, B., L’Expérience bioéthique de la responsabilité, LouvainLa-Neuve, Artel, 1994. MARCHIONNI, A., Ética : A arte do Bom, VOZES, Petrópolis, 2008. BOFF, L., Cuidar da Terra, proteger a Vida, RECORD, Rio de Janeiro, 2010. MOLTMANN, J., Dios en la Creación, Salamanca, Sígueme, 1997. Endereço do Autor: Rua Dep Antônio Edu Vieira, 1524 Caixa postal, 5073 Pantanal 88040-970 Florianópolis, SC E-mail: [email protected] 50 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: Enchentes, deslizamentos, secas, tornados, furacões. Eventos climáticos não são novidades, mas a frequência entre eles tem aumentado, assim como sua potência e isso se deve às mudanças do clima. A falta de ação política, a desinformação da população, bem como um modelo de desenvolvimento com índices de consumo exagerado e níveis de pobreza extremos torna as consequências desses fenômenos mais graves. Um mundo que carece de ética ambiental deteriora as bases da vida, nas suas diferentes formas. Nesse contexto, apresentam-se desafios para as ciências, também para a teologia, na busca de uma nova espiritualidade na relação do ser humano com a Criação. Abstract: Floods, mud slides, dry seasons, tornados, and hurricanes are well known phenomena in nature. However, their impact on the climate and the resulting havoc in wide areas have recently on a world wide scale. The lack of a concentrated effort by the government of various countries, the disregard of supplying the citizens with needed information, the option of a model of development with high indices of consumer-goods with no regard to aggravated levels of poverty are leading to severe consequences of all these phenomena. One reminder of a menacing situation awaiting the world which disregards ethics concerning the environment needed to protect the very bases of life in all the different forms. In this context science and theology are faced with challenges to search for new tasks and create conditions for spiritual life in relationship with the human being and the Creation. Mudanças Climáticas Ir. Delci Maria Franzen* * Religiosa da Congregação das Irmãs de Santa Catarina, VM. Pós Graduação em Teologia e Ministérios pela Universidade Mc Cormick de Chicago, EUA. Assessora da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz/ CNBB, fone (61) 8111-1285. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 51-66. Mudanças climáticas “Antes que seja tarde demais, precisamos fazer escolhas corajosas, que possam restabelecer uma forte aliança entre o homem e a Terra”1. Introdução Em meio à perplexidade e a imensa solidariedade do povo brasileiro diante da maior tragédia climática que o país já enfrentou, apresentamos alguns conceitos e reflexões sobre as mudanças do clima que atingem o Planeta. Chuvas despencaram em volume espantoso sobre áreas do Sudeste, fazendo mais de 800 mortos só na região serrana do Rio de Janeiro. Nos primeiros dias de janeiro, também na Austrália, viveu-se a maior enxurrada em 120 anos. Depois de Angra dos Reis e de Santa Catarina, nos anos passados, surge a pergunta que não quer calar: Serão eventos isolados, ou fatos de uma tragédia já anunciada? Os cientistas estão avisando há tempo que os fenômenos naturais, que sempre estiveram conosco, como tempestades e secas, vão acontecer com mais frequência e com mais intensidade. Se as cidades não estão preparadas para o momento atual, o que se dirá do futuro que os climatologistas prenunciam. Hoje há um consenso entre as populações, tanto das regiões urbanas quanto do meio rural, de que o clima não é mais o mesmo. No ano passado, o abundante e aparentemente infinito Rio Negro, na Amazônia, enfrentou uma seca que o desfigurou. As imagens que chegavam de seu leito seco em algumas áreas eram inacreditáveis, para quem já o viu na cheia. Como outros rios amazônicos, ele tem oscilações fortes de volume de água, mas o extremo a que chegou na seca do ano passado foi impressionante. Anos atrás, uma seca na Amazônia exibiu o solo da região mais úmida do Brasil rachado, como se fosse o Nordeste. Podemos afirmar que o Brasil sofre as consequências das mudanças climáticas que atingem o Planeta e se manifestam também em muitas regiões do mundo de forma diferenciada e cada vez mais intensa. Políticas públicas integradas, redução da pobreza, planejamento urbano, fontes diversificadas de energia e preservação do meio ambiente são projetos que merecem urgência para que o país esteja preparado neste cenário climático. Resultado do aquecimento global da Terra, as mudanças do clima são pautadas exaustivamente pela mídia, mas a maioria das pessoas ainda não se deu conta da hecatombe que elas representam para todas 1 52 Papa Bento XVI, discurso em Loreto, Itália, 2007. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Delci Maria Franzen as formas de vida, inclusive a humana. Portanto, é necessário urgentemente entender o que está em jogo e tomar atitudes pessoais e políticas imediatas para tentar reverter, ou minimizar, a tragédia dantesca que a mão humana pode estar construindo. Um grande fator do aquecimento acelerado nas últimas décadas se dá em função da concentração de gás carbônico – CO2 – na atmosfera. As principais causas da emissão desses gases é a queima de combustíveis fósseis e das florestas. Diante deste fenômeno já confirmado pela ciência, a única dúvida que resta está no grau do aquecimento, com seus consequentes desdobramentos. A teoria mais comum é que o aquecimento será gradativo, podendo subir de dois a sete graus progressivamente. Cada grau já traz desdobramentos praticamente imprevisíveis. O aquecimento trará o derretimento das geleiras, aumento do nível do mar, diminuição no volume de água doce disponível, alterações no regime das chuvas, imensas dificuldades para a agricultura, fenômenos extremos como furacões, chuvas torrenciais, evaporação das águas, estiagens prolongadas, deixando em seu rastro fome, sede, miséria e milhões e milhões de mortos. Calcula-se que cerca de 1 bilhão de pessoas terão que migrar das áreas litorâneas. Países, cidades e ilhas (!) próximas ao nível do mar vão desaparecer. Regiões brasileiras, como a Amazônia, tendem a se transformar numa savana e o semi-árido em um deserto. Será uma tragédia sem precedentes na história da humanidade. A Terra já enfrentou catástrofes semelhantes, como na era em que os dinossauros foram extintos, mas o ser humano ainda não estava aqui. O acesso à água limpa e segura já é insuficiente em muitos países, também em algumas regiões brasileiras. As alterações do clima agravam essa situação pelas secas prolongadas e pela infiltração da água salgada na terra, em muitas zonas costeiras do planeta. A água é uma questão central na abordagem do aquecimento global, pois é um recurso natural primordial para o futuro da humanidade e a sobrevivência das espécies no Planeta. Por isso, a questão da água receberá um destaque neste artigo. Causas O Aquecimento global é um fenômeno climático de larga extensão: um aumento da temperatura média superficial do Planeta, que vem acontecendo de forma mais intensa nos últimos 150 anos. Entretanto, o significado desse aumento de temperatura ainda é objeto de muitos debates entre os cientistas. Causas naturais, ou antropogênicas (provocadas pelo ser humano), têm sido propostas para explicar o fenômeno. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 53 Mudanças climáticas Mesmo havendo céticos, desde o 4º Relatório do IPCC2, de fevereiro de 2007, há praticamente um consenso de que a evolução acelerada da tragédia ambiental “tem causante antropogênico”. Grande parte da comunidade científica acredita que o aumento de concentração de poluentes antropogênicos na atmosfera é causa do “efeito estufa”. A Terra recebe radiação emitida pelo Sol e devolve grande parte dela para o espaço através de radiação de calor. Os poluentes atmosféricos estão retendo uma parte dessa radiação que, em condições normais, seria refletida para o espaço. Essa parte retida causa um importante aumento do aquecimento global. Segundo dados do IPCC, a principal evidência do aquecimento global vem das medidas de temperatura de estações metereológicas em todo o globo desde 1860. Os dados mostram que o aumento médio da temperatura foi de 0.6+-0.2 graus, durante o século XX. “Os maiores aumentos foram em dois períodos: 1910 a 1945 e 1976 a 2000, que correspondem à era industrial, confirmando o aceleramento das mudanças do clima com o aumento das emissões de gases do efeito estufa”3. Efeitos Devido aos efeitos potenciais sobre a saúde humana, economia e meio ambiente, o aquecimento global tem sido fonte de grande preocupação. Algumas importantes mudanças ambientais têm sido observadas e foram ligadas ao aquecimento global. Os exemplos de evidências secundárias (diminuição da cobertura de gelo, aumento do nível do mar, mudanças dos padrões climáticos) são exemplos das consequências do aquecimento global, que podem influenciar não somente as atividades humanas mas também os ecossistemas. O aumento da temperatura global permite que um ecossistema mude; algumas espécies podem ser forçadas a sair dos seus hábitats (possibilidade de extinção) devido a mudanças nas condições, enquanto outras podem espalhar-se, invadindo outros ecossistemas. Outra grande preocupação é o “aumento do nível dos mares, que está crescendo em 0.01 a 0.02 metros por década, e em alguns países insulares no Oceano Pacífico é expressivamente preocupante, porque cedo eles estarão debaixo da água”4. O aquecimento global provoca subida 54 2 Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC). 3 Fonte: 4º Relatório do IPCC. 4 Fonte: IPCC para os dados e as publicações da grande imprensa para as percepções gerais das mudanças climáticas. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Delci Maria Franzen dos mares principalmente por causa da expansão térmica da água dos oceanos, mas alguns cientistas estão preocupados com que, no futuro, a camada de gelo polar e os glaciares derretam. Em consequência, haverá aumento do nível, em vários metros. Como o clima fica mais quente, a evaporação aumenta. Isso provoca pesados aguaceiros e mais erosão. Muitas pessoas pensam que isso poderá causar resultados mais extremos no clima, com o progressivo aquecimento global. O aquecimento global também pode apresentar efeitos menos óbvios. A Corrente do Atlântico Norte, por exemplo, é provocada por diferenças entre a temperatura entre os mares. Aparentemente ela está diminuindo, conforme as médias da temperatura global aumentam. Isso significa que áreas como a Escandinávia e a Inglaterra, que são aquecidas pela corrente, devem apresentar climas mais frios a despeito do aumento do calor global. Consequências O aquecimento global pode trazer consequências graves para todo o planeta incluindo plantas, animais e seres humanos. A retenção de calor na superfície terrestre pode influenciar fortemente o regime de chuvas e secas em várias partes do mundo, afetando plantações e florestas. Algumas florestas podem sofrer processo de desertificação, enquanto plantações podem ser destruídas por alagamentos. O resultado disso é o movimento migratório de animais e seres humanos, escassez de comida, aumento do risco de extinção de várias espécies animais e vegetais, e aumento de mortes e de destruição. Outro grande risco do aquecimento global é o derretimento das placas de gelo da Antártida. Esse derretimento já vinha acontecendo há milhares de anos, por um lento processo natural. Mas a ação do homem e o efeito estufa aceleraram o processo e o tornaram imprevisível. A calota de gelo ocidental da Antártida está derretendo a uma velocidade de 250 km cúbicos por ano. O degelo desta calota pode fazer os oceanos subirem até 4,9 metros, cobrindo vastas áreas litorâneas pelo mundo e ilhas inteiras. Os resultados também são escassez de comida, disseminação de doenças e mortes. O aquecimento global também acarreta mudanças no clima, já responsável por 150 mil mortes a cada ano em todo o mundo. Os países tropicais e pobres são os mais vulneráveis a tais efeitos. “A modificação do clima é responsável por 2,4% dos casos de diarreia e 2% dos de malária em todo o mundo. Esse quadro pode ficar ainda mais sombrio: alguns cientistas alertam que o aquecimento global pode se agravar nas Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 55 Mudanças climáticas próximas décadas e a OMS calcula que para o ano de 2030 as alterações climáticas poderão causar 300 mil mortes por ano”5. Destacando o Brasil nesse processo de mudanças das condições de vida na Terra, é preciso ter presente que não passa de ilusão a ideia de que será um país privilegiado. Por isso, junto com mudanças que ocorrerão em todas as regiões, vale destacar o que acontecerá no Nordeste, no Centro-Oeste e no Norte do país. Aumentarão sensivelmente as já altas temperaturas dessas regiões. Haverá mudanças nos regimes das chuvas e, consequentemente, no nível geral das águas, com tempos mais longos de estiagens e períodos de chuvas intensas, com ocorrências mais comuns de secas e enchentes. Junto com isso, alastrar-se-á a desertificação dos solos. Na verdade, a pesquisa mais recente indica que 50% do solo do Nordeste já se encontra em processo avançado de desertificação. O Centro-Oeste, com a derrubada de 85% da cobertura vegetal legada aos seres humanos pela história da Terra, tem como certo o agravamento da desertificação nos próximos vinte anos. A Amazônia, que já sofre os efeitos da devastação de sua floresta, enfrentará novos desafios causados pelo fim das geleiras nos picos da Cordilheira do Andes e com a diminuição ou falta das águas que correm do Cerrado para o norte do país. Impactos sociais As mudanças do clima afetam a todos, mas não da mesma forma. Sabemos que alguns são mais afetados, com menos possibilidade de escolha que outros e que, sem ação apropriada, espécies de plantas e animais, também povos e culturas, irão sofrer e morrer. É preocupante o impacto desproporcionado que as alterações climáticas provocadas pelo ser humano têm nas pessoas pobres e vulneráveis que vivem nos países em desenvolvimento. É constatado que as alterações climáticas estão prejudicando os avanços feitos na redução da pobreza e na concretização dos objetivos de desenvolvimento do milênio. Ainda que a pobreza exista independentemente das alterações do clima, elas criam um novo ciclo vicioso que rouba às pessoas em situação de pobreza a capacidade de melhorar a sua situação. Como resultado, estão mais expostas ao impacto dos desastres naturais, em que muitas pessoas perdem a vida, a maioria perde a sua casa e as suas culturas, e as fontes de água ficam contaminadas. A frequência e a intensidade 5 56 Fonte: Organização Mundial da Saúde (OMS). Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Delci Maria Franzen cada vez maiores dos desastres naturais implicam em que as populações mais pobres não tenham o tempo nem os recursos para se recuperarem adequadamente de um desastre antes que aconteça o seguinte. Muitas entidades estão conscientes da responsabilidade coletiva em relação ao perigo do clima e ao sofrimento dos que são mais atingidos e marginalizados. Os que se encontram em extrema pobreza, os deficientes, as comunidades ribeirinhas ou que vivem nas pequenas ilhas, estão sujeitos aos maiores impactos da crise climática embora sejam os que menos contribuem para a mesma. A maioria absoluta das comunidades pobres veem-se mais limitadas quando se trata de se adaptarem às alterações climáticas, uma vez que dependem mais dos métodos de cultivo tradicionais e dos sistemas locais de abastecimento de água, os quais, segundo as previsões, serão gravemente afetados. As pessoas que vivem em situações de pobreza nos países em desenvolvimento têm mostrado grande resistência e adaptação face ao impacto da variabilidade do clima sobre suas vidas e o seu sustento. No entanto, estão chegando rapidamente a um limite, a partir do qual já não poderão adaptar-se mais. Prevê-se o aumento do número de pessoas subnutridas e famintas, já que a sequência de secas e inundações afeta as colheitas, principalmente as de curto período: milho, trigo, feijão. Coloca-se em cheque a segurança alimentar. As mudanças do clima, incluindo o calor e o frio extremo, aumentam a taxa de mortalidade por doença. As doenças sensíveis ao clima, por exemplo as que se transmitem através da água ou através de vectores como os mosquitos, são algumas das causas de morte mais importantes na escala mundial: a diarreia, a malária e a subnutrição proteico-energética em conjunto, causaram mais de 5 milhões de mortes em 2006.6 A escassez de água ou alimento, e o aumento de doenças, não só representam uma crise humanitária a curto prazo, mas também um problema para o desenvolvimento a longo prazo. Como fica a questão da água Em setembro de 2010, uma resolução das Nações Unidas declarou um Direito Humano o acesso à água potável e ao saneamento básico. Segundo o documento votado pelos países-membros da ONU, na As6 Cf. Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 57 Mudanças climáticas sembleia Geral, é motivo de extrema preocupação o fato de 884 milhões de pessoas no Planeta não terem acesso à água potável. Cabe agora aos países regulamentarem esse direito em políticas públicas efetivas e investimentos adequados. Encontra-se aí um compromisso comum que Organizações de Igrejas Cristãs, como o Conselho Mundial de Igrejas e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, têm assumido como gesto concreto em defesa da vida humana e da integridade da criação. Também outras Religiões e Entidades não Governamentais têm manifestado seu apoio pela água como Direito Humano e bem público. Segundo a ONU, “mais de um sexto da população mundial, ou o equivalente a 1,1 bilhão de pessoas, não tem acesso ao fornecimento de água doce. Em 2025, cerca de 3 bilhões de pessoas viverão em países com conflito por falta de água. Desde 1950, o uso da água triplicou no mundo. A água potável salva mais vidas que todas as instituições médicas do mundo: segundo a ONU, a água contaminada causa 80% das doenças do planeta”.7 Neste cenário mundial, a América Latina é uma região muito rica em recursos hídricos, com 30% da água superficial da Terra. Apesar da abundância desses recursos hídricos, um quarto da população da América Latina e Caribe vive em regiões onde a demanda de água é maior do que a capacidade de recuperação deste recurso. O Brasil parece estar numa situação privilegiada, pois detém 11,6% da água doce superficial do mundo. Mas já enfrenta sérios problemas hídricos. Os 70 % da água disponíveis para uso estão localizados na Região Amazônica. Os 30% restantes distribuem-se desigualmente pelo País, para atender a 93% da população. Na última década, a quantidade de água distribuída aos brasileiros cresceu 30%, mas quase dobrou a proporção de água sem tratamento (de 3,9% para 7,2%) e o desperdício ainda assusta: 45% de toda a água ofertada pelos sistemas públicos. Nas cidades, os problemas de abastecimento estão diretamente relacionados ao crescimento da demanda, ao desperdício e à urbanização descontrolada – que atinge regiões de mananciais. Na zona rural, os recursos hídricos também são explorados de forma irregular, além de parte da vegetação protetora da bacia (mata ciliar) ser destruída para a realização de atividades como agricultura e pecuária. Não raramente, os 7 58 Cf. Relatório da UNESCO, Órgão da ONU para a educação e responsável pelo Programa Mundial de Avaliação Hídrica. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Delci Maria Franzen agrotóxicos e dejetos utilizados nessas atividades também acabam por poluir a água. A baixa eficiência das empresas de abastecimento se associa ao quadro de poluição: as perdas na rede de distribuição por roubos e vazamentos atingem entre 40% e 60%, além de 64% das empresas não coletarem o esgoto gerado. O saneamento básico não é implementado de forma adequada, já que 90% dos esgotos domésticos e 70% dos afluentes industriais são jogados sem tratamento nos rios, açudes e águas litorâneas, o que tem gerado um nível de degradação nunca imaginado. É necessário pensar urgentemente em alternativas, maior consciência da população no uso da água e, por parte do poder público, um maior cuidado com a questão do saneamento e abastecimento. Por exemplo, 90% das atividades modernas (!) poderiam ser realizadas com água de reúso. Além de diminuir a pressão sobre a demanda, o custo dessa água é pelo menos 50% menor do que o preço da água fornecida pelas companhias de saneamento. Apesar de não ser própria para consumo humano, poderia ser usada, entre outras atividades, nas indústrias, na lavagem de áreas públicas e nas descargas sanitárias de condomínios. Além disso, as novas construções – casas, prédios, complexos industriais – poderiam incorporar sistemas de aproveitamento da água da chuva, para os usos gerais que não o consumo humano. A crise do atual modelo de desenvolvimento São visíveis os sinais que confirmam o consenso dos cientistas em relação ao “estado do planeta Terra”. Ele realmente está em processo acelerado de aquecimento, e isso se deve à forma como os seres humanos se relacionaram e continuam relacionando-se com ele. É efeito especialmente da velocidade tomada pelo denominado “progresso econômico” nos últimos cinquenta anos. Construiu-se uma crença no crescimento econômico – o capitalismo vive da promessa de que o futuro é sempre promissor e de que o desenvolvimento econômico é inesgotável. Essa lógica econômica, vigente nos últimos 200 ou 250 anos, especialmente, desencadeou várias crises que se manifestam de forma sinérgica, mesmo se, às vezes, isso não pareça tão evidente: a crise econômica, energética, alimentar, climática, do trabalho – que necessitam ser enfrentadas simultaneamente. A ideologia presente nessas crises do atual modelo de desenvolvimento é de que a única coisa que importa é o crescimento econômico, e que o restante é secundário, não se sustenta mais. Por trás dessa ideia está a lógica de que os recursos naturais são sempre abundantes, infinitos. Não haveria por quê preocupar-se com a possibilidade de que algum Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 59 Mudanças climáticas dia se terá falta de petróleo, de carvão, de aço, de água, de energia, para alimentar a “máquina” do progresso humano. Segundo muitos analistas, a mais grave crise é a ecológica, exatamente porque ela pode dar cabo da civilização humana. A Terra já mostrou que tem condições de regeneração, coisa que nós humanos ainda não demonstramos. Iniciamos, portanto, o século XXI colocando as questões relacionadas ao meio ambiente no centro do debate. A ecologia, de oikoscasa, tornou-se um tema que nos faz saltar das particularidades destacadas a uma abordagem unitária, global, planetária. É neste tema que o mundo parece ter encontrado sua grande unidade, que exige de nós uma mudança de ponto de vista – não mais particular, mas holístico, universal, de totalidade. Descobrimos que nós – seres humanos, seres vivos e Terra – formamos um conjunto inseparável. “O destino da Terra e da humanidade coincidem: ou nos salvamos juntos ou sucumbimos juntos”.8 O que fica evidente é que o futuro da vida na Terra – especialmente da vida humana – dependerá do rumo que se der hoje ao que se denomina economia. Por essa razão, a discussão sobre os modos de produção e de consumo torna-se crucial no contexto de uma sociedade ecologicamente sustentável. O “modo de produzir” e o “modo de consumir” da sociedade mundial estão levando o planeta ao esgotamento dos recursos naturais. Por outro lado, a crise alimentar – 1 bilhão de pessoas passa fome no mundo – está ligada à crise da economia e à crise ecológica. “Presumindo que a humanidade mantenha os mesmos níveis de produção e consumo que até agora, quer dizer, que não se adapte às condições alteradas, o número de famintos na América Latina poderá aumentar em 85 milhões de pessoas, até 2080”9. No entanto, parece que o problema da fome não se deve ao excesso da população; há alimentos para todos. O problema é político, de acesso à comida. O problema está no mercado. Por outro lado, a opção pelo aumento da produção de agrocombustível compromete o uso da terra para a produção de alimentos. O agrocombustível, por sua vez, está encadeado à crise ecológica porque piora a alteração climática e promove outros efeitos negativos sobre a soberania alimentar, a biodiversidade, a contaminação de solos e água, o desmatamento de florestas e outros ecossistemas naturais. 60 8 Boff, Leonardo, Artigo no Espaço Cultural CPFL, 2010. 9 Cf. IPCC (2007): Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade, pág. 597. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Delci Maria Franzen “Permeada à crise ecológica, econômica e alimentar, encontrase a crise energética. A voracidade por energia é infinita. O modo de produção e de consumo exige e demanda muita energia – petróleo, gás, biocombustível, hidroeletricidade, energia nuclear. A maioria das matrizes energéticas são poluidoras (fósseis), perigosas (nuclear) e devastadoras do meio ambiente (hidrelétricas, agrocombustíveis), e exigem enormes investimentos”10. Percebe-se, e cada vez com maior evidência, um encadeamento das crises. Já não se pode mais dar centralidade apenas à economia para, depois, ocupar-se das outras crises. A questão central diz respeito ao esgotamento do modelo de desenvolvimento criado e incrementado na sociedade industrial, baseado em uma visão linear, progressiva, infinita e redutora de desenvolvimento, e que tem no consumo desenfreado a sua mola propulsora. A crença no crescimento econômico e sua linearidade se romperam. Compromissos políticos Já mencionamos que as alterações climáticas são mais que um problema ambiental; elas são principalmente um problema de justiça global e equidade. Os governos devem assumir políticas e compromissos que tenham efeitos locais e globais, e devem fazê-lo junto com a sociedade e as Igrejas. As mudanças climáticas são um problema que requer um esforço conjunto de todas as partes para encontrar uma solução eficaz. Os indivíduos, as comunidades, a sociedade civil, o setor privado e o Estado, todos tem o dever de aprender mais sobre o que se pode e deve fazer para enfrentar esse terrível risco para a família humana e a vida no Planeta. Para tanto, é crucial abordar as alterações climáticas numa perspectiva de desenvolvimento, centrada nas pessoas. Para o Brasil, o maior desafio é continuar o desenvolvimento sem aumentar a emissão de gases de efeito estufa. Incluir socialmente grandes segmentos da população, sem aumentar a crise do clima. Coloca-se aí o maior dos impasses: o debate e a construção de outro paradigma de desenvolvimento que seja justo, sustentável e responsável com as futuras gerações. No caso do Brasil, urge a discussão sobre tecnologia e matriz energética. Construir mecanismos que contribuam para um modelo de desenvolvimento baseado na agroecologia, numa matriz energética diversificada e descentralizada, no reconhecimento e valorização das 10 Em Busca dos Sinais dos Tempos, Editora, CNBB, 2010, p.9. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 61 Mudanças climáticas práticas tradicionais, baseadas na convivência entre produção e preservação ambiental. Para especialistas, o grande desafio do próximo governo no setor ambiental é criar uma política integrada, que possa abranger diversas áreas da gestão. “Considero uma missão sagrada do Brasil a de mostrar ao mundo que é possível um país crescer aceleradamente, sem destruir o meio ambiente.”11 É um compromisso e tanto, principalmente se levado em conta o fato de que foi Dilma a coordenadora do PAC que literalmente acelerou a destruição ambiental no país, num governo com profundas crises no IBAMA e com aprovação da Hidroelétrica de Belo Monte, na contramão de todas as reivindicações da sociedade civil organizada. A prioridade número um do novo governo deveria ser integrar efetivamente todas as suas ações ambientais e criar uma política que esteja presente em todo o planejamento. Aí entrariam não apenas os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, mas também outros setores como Ciência e Tecnologia, Minas e Energia e Desenvolvimento Social. Esse é de fato um grande desafio, que não foi assumido nos dois governos Lula, onde o que havia eram posturas antagônicas dentro da mesma gestão. O risco é o país não avançar para o grupo de nações que se deram conta de que questões ambientais não são um estorvo, e que sustentabilidade não é apenas um termo bonito para se colocar em anúncios e propagandas políticas. É fundamental, para o Brasil, promover a sustentabilidade e dignidade do desenvolvimento humano, especialmente das populações mais vulneráveis. A construção de metas e políticas, também na área da adaptação, deve passar pelos diferentes setores da economia e da execução de políticas públicas para possibilitar uma sociedade brasileira sustentável e reduzir a desigualdade social. A Política Nacional de Mudança do Clima precisa fazer a articulação entre mudança do clima e pobreza, relacionando-as com a questão da vulnerabilidade das populações. “A compreensão dos fatores sociais que contribuem para a vulnerabilidade e capacidade de adaptação de uma população reforça a responsabilidade dos governos para o desenvolvimento eficaz de medidas preparatórias para prevenir e minimizar as consequências de mudanças climáticas. A estratégia é observar os processos sociais que conduzem certa população a condições vulneráveis, 11 62 Presidente Dilma Rousseff, Discurso de posse. 1.1.2011. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Delci Maria Franzen bem como as desigualdades estruturais que são muitas vezes a raiz da vulnerabilidade social-ambiental. Ao mesmo tempo, avaliar o potencial das estratégias de enfrentamento a desastres no registro histórico das comunidades e grupos sociais”.12 Para isso, é necessário que as populações tradicionais indígenas, pescadores, quilombolas, agricultores, sentem à mesa para expor o seu conhecimento milenar na adaptação às adversidades do clima e também na sua maneira de relacionar-se com a natureza e construir sociedades baseadas no valor do bem comum, da solidariedade, e em diferentes formas de produzir e consumir. Esse conhecimento contribui para uma compreensão mais precisa de quem é vulnerável e resiliente, e como e por que são vulneráveis ou resilientes. Isso é fundamental, se políticas públicas e estratégias de desenvolvimento sustentável são desenvolvidas para promover a adaptação aos efeitos da alteração do clima. O Brasil é o quarto maior poluidor do planeta, não tanto pela queima de petróleo e combustíveis fósseis, quanto pelas queimadas das florestas. Portanto, pode contribuir com a humanidade evitando a queimada das florestas, da cana, dos campos. E diminuir a queima de fósseis também. O Brasil, que tem várias possibilidades de matrizes energéticas, que os países do Norte não têm, como a hídrica, a solar, a eólica (ventos) e a gerada a partir da biomassa, pode contribuir muito com o bem de nossa casa comum. Além de implementar as necessárias políticas nacionais, as autoridades brasileiras devem assumir o compromisso de defender ativamente no plano internacional o avanço para um acordo climático global que possa, no mínimo garantir: 1) o reconhecimento e a proteção do direito dos países em desenvolvimento a um desenvolvimento sustentável, dando prioridades às comunidades vulneráveis que vivem em situação de pobreza; 2) a provisão, por parte dos países industrializados, de um financiamento suficiente, previsível, seguro e acessível, de intercâmbio tecnológico e de desenvolvimento das capacidades – em qualquer dos casos, de uma forma que se possa medir, descrever e verificar – para apoiar e permitir os esforços de mitigação e adaptação dos países em desenvolvimento; 3) a manutenção das temperaturas médias globais da superfície terrestre o mais abaixo possível de um aumento de 2°C, em relação a níveis pré-industriais. 12 Cf. Professores do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão Ambiental da Universidade Católica de Brasília, DF. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 63 Mudanças climáticas Diante do princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada, os países industrializados devem pagar pela sua dívida ecológica e os países em desenvolvimento devem por sua vez ter planos e investimentos que sinalizem a capacidade de enfrentar as consequências das mudanças de clima que já se manifestam em diferentes setores da produção, atingindo fortemente as populações mais pobres. A solução parece estar no enfrentamento das causas sistêmicas na forma de produzir e consumir. Nesse sentido, ecoa a frase de efeito dos movimentos ambientais reunidos em Cancun, por ocasião da COP 16:” Mudemos o Sistema, não o Clima!” Cancun A 16ª Conferência das Partes (COP 16) da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática, realizada na cidade de Cancun, México, em dezembro de 2010, foi a prova de que povos de todo o planeta reconhecem a urgência do desafio da mudança climática. Ao mesmo tempo, provou mais uma vez, o “quanto é difícil chegar a um acordo mundial para um novo protocolo sobre alterações climáticas, pois envolve deliberações complexas e controversas, devido à existência de preocupações políticas e econômicas em curto prazo”13. Depois da decepção da COP 15 no final do ano passado, na capital da Dinamarca, o mundo estava precisando mais do que conversações. A população do Planeta necessita de benefícios concretos, sobretudo para as comunidades mais vulneráveis, que já estão sofrendo desastres meteorológicos. As Organizações não governamentais presentes em Cancun, salientaram que os governos atrasaram-se nas medidas para reduzir a contaminação, mas não atrasaram a mudança climática. Esperava-se que Cancun entregasse um fundo que priorizasse a adaptação e garantisse que ao menos a metade desse dinheiro fosse para enfrentar os impactos que já são inevitáveis. Este fundo, alertam algumas organizações, também poderia ser colonizado pelo setor financeiro e privado. “É claro que os países mais ricos buscam caminhos para fugir de sua obrigação 13 64 CIDSE. Rede Internacional de Agências Católicas –“Todos Juntos para a Justiça Global”: Manos Unidas, Misereor, Trôcaire, Cordaid, Fastenopfer, Cafor, SCIAF, Entraide et Fraternité, CCFD, Development and Peace, Center of Concern, Volontari nel Mondo, Fundação Evangelização e Culturas. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Delci Maria Franzen de entregar fundos públicos” para políticas de adaptação nos países em desenvolvimento. Segundo ativistas do clima, como camponeses e indígenas da América Latina e dos Estados Unidos, movimentos sociais mexicanos dos direitos humanos, e representantes de organizações como Amigos da Terra, chama a atenção na política internacional a “generosidade e presteza para colocar centenas de milhões de dólares no resgate dos sistemas financeiros”, em contraste com a “tacanhez” na hora de dispor de dinheiro para enfrentar a mudança climática. Nesse cenário das negociações governamentais, parece que há pouco a se esperar da evolução das reuniões internacionais sobre o assunto. A paralisia do sistema multilateral é deprimente. Os governos mostram-se indiferentes frente ao aquecimento do planeta e, em vez de debater sobre as mudanças de políticas necessárias para o resfriamento, debatem sobre o negócio financeiro especulativo, a nova economia verde e a privatização dos bens comuns. Há uma esperança no crescimento do movimento social que saiu fortalecido de Cancun. Toda forma de mobilização para exercer pressão sobre os líderes mundiais será de grande importância, pois somente com a participação da sociedade civil é possível mudar o rumo dos riscos que ameaçam as bases da vida no planeta. Desafios teológicos O pressuposto da Teologia é a Revelação de Deus. Uma das formas dessa revelação é a criação. A corrupção da ordem da criação e suas consequências, expostas nas crises acima evidenciadas, subverteram a ordem da criação. Essas crises não são superficiais; elas interferem na vida de milhões de seres humanos. Por trás delas estão vidas ameaçadas, vidas que não foram vividas em plenitude, e existências vividas indignamente pelas condições de risco, de vulnerabilidade e de miséria a que estão expostas. Populações inteiras, distantes da tecnologia e das alternativas de adaptação às mudanças do clima. Há mais tempo teólogos e teólogas esforçam-se por entender “este sinal dos tempos, “este decisivo ‘lugar teológico’, onde a teodiceia enfrenta a pergunta crucial: A última palavra será a da morte sobre a terra? Onde está o Deus Criador e Redentor? Onde está a possibilidade de Reconciliação que inclua todas as criaturas? Como fica a afirmação dolorosa, mas também esperançosa, de Paulo: Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 65 Mudanças climáticas A criação foi submetida à vaidade – não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu – na esperança de ela também ser liberta da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus14. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8, 20-23). Trata-se, pois, de ouvir os gritos da Terra. Mesmo em situação limite, continuam gritos nascidos de “dores de parto”, como adverte o apóstolo Paulo. E a Mãe Terra está à espera da “gloriosa manifestação dos filhos e filhas de Deus” para ser libertada. Sua libertação tem tudo a ver com a história auto-libertadora dos próprios seres humanos. É dela que são feitos, e ela é seu lugar e seu ambiente de vida (Gênesis 1 e 2). Ela foi entregue aos cuidados dos seres “feitos à imagem e semelhança de Deus”. Seu destino está, portanto, diretamente ligado ao modo de ser, de pensar e de agir das pessoas humanas. A Campanha da Fraternidade de 2011, da CNBB, com o tema Fraternidade e Vida no Planeta e com o lema “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22), tem muito a ver com este debate. Este é o tempo oportuno, até porque é urgente uma transformação no modo de a humanidade viver sua relação com a Terra, com os seres vivos, com os próprios seres humanos e com seu Deus. Não serão suficientes, por isso, reformas superficiais, mas a aventura redentora para uma nova civilização na busca do verdadeiro sentido humano. E-mail da Autora: [email protected] 14 66 Cf. Entrevista com Prof. Luis Carlos Suzin, publicada no Sítio do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), 29.1.2009. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: O presente artigo parte da realidade concreta do movimento extrativista do Alto Acre e Purus, nascido na década de 70 na Amazônia brasileira, e tentará refletir sobre a relação entre antropocentrismo e personalismo cristão no atual debate de bioética ambiental, reconhecendo a legítima autonomia da realidade criada, sem contudo diluir o sujeito moral. Para isso, se analisará o desenvolvimento do tema do meio ambiente dentro do Magistério católico, bem como a influência da Igreja no nascimento do movimento extrativista. Abstract: The article starts with the contemporary situation of exploration of extracting industries in the area of the Alto Acre and Purus. Beginning with the decade of the seventies in the Amazon region of Brazil, and rehearsing anthropological issues together with the core of religious commitment of Christianity in the dignity of the human person in relationship with bioethics and the environment, new perspectives are opening up by valuing the human person as moral authority deciding about his actions in the world. It is the task of the Magisterium of the Catholic Church to shed more light on the influence regarding economics and environment in the Amazon region. Bioética ambiental personalista Frei Carlos Paula de Moraes, OSM* * O autor tem Graduação e pós-graduação em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Teologia Moral e Master em Bioética, pelo Pontifício Ateneo Regina Apostolorum- Roma. Doutorado em Teologia Moral pela Accademia Alfonsiana de Roma. Professor dos Cursos de Psicologia e Direito – Faculdade da Amazônia Ocidental – FAAO; Filosofia e Saúde Coletiva – Universidade Federal do Acre – UFAC. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 67-76. Bioética ambiental personalista Introdução As discussões sobre o “meio ambiente” tem adquirido um status crescente nos debates mundiais sobre a sobrevivência do ser humano, questões cruciais de vida e de morte, um grito tão forte que não podemos mais ignorar. A Terra pede socorro, nossa pátria comum está revelando o que a Sagrada Escritura chama de “dores de parto, esperando a gloriosa manifestação dos filhos de Deus.” (Rm 8,19). A questão do meio ambiente hoje é tão forte como as questões sociais nas décadas 60, 70 e 80, tempos em que a Igreja foi responsáveel, na Amazônia, por uma grande contribuição ao amadurecimento no compromisso cristão no campo social e ambiental, não é indiferente o fato de Chico Mendes, um grande ícone do movimento ambiental e organizador do movimento extrativista do Acre, ter “nascido” e se fortalecido à sombra da Igreja assistida pelos freis Servos de Maria na região do Alto Acre e Purus. Dentro dessa realidade concreta, a partir da compreensão da relação entre o homem e a natureza neste movimento de caráter ambiental, buscar-se-á identificar qual visão de antropocentrismo é própria desse movimento, bem como se existiria alguma relação entre o modelo personalista cristão e o antropocentrismo do movimento extrativista do Alto Acre e Purus. O presente trabalho partindo da análise da origem do movimento extrativista, que possui uma matriz religiosa (católica) e antropocêntrica, mas que a sua vez, assumiu um caráter de defesa do meio ambiente a partir das pessoas (índios e seringueiros), defende a tese de que o antropocentrismo cristão pode oferecer as bases de uma reta compreensão da relação entre o homem e a natureza, podendo inclusive servir como via do diálogo ecumênico no Brasil, unindo as forças das várias denominações para efetivar-se uma proposta de bioética ambiental com base no personalismo ontologicamente fundado. 1 A acusação do ambientalismo norte americano Uma das acusações que o movimento ambientalista norte americano deflagrou contra o cristianismo, foi à afirmação de que este, por ser antropocêntrico, não poderia “servir” como base para uma bioética ambiental, por isso, vários autores, propuseram o abandono do antropo- 68 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Frei Carlos Paula de Moraes, OSM centrismo, caindo por vezes no nivelamento ontológico do ser humano entre os outros seres, assumindo posições do, assim chamado, ecocentrismo ou biocentrismo, visões criticadas pelo Magistério Católico por operarem a diluição do sujeito moral. Hoje na Europa, existem autores que estão concentrando suas pesquisas sobre como definir a “diferença humana”.1 2 O nascimento do movimento extrativista no Brasil A partir dos anos 70, a região amazônica do Acre vai se configurando no paraíso dos fazendeiros, para a criação de gado e especulação da terra. Esse momento é conhecido na história econômica do Acre como o momento da “pecuarização” da economia acreana.2 As terras compradas ou adquiridas por meios ilegais foram as que mais geraram conflitos. Tentavam expulsar a qualquer preço os posseiros, aqueles que não detinham o título da terra, mas habitavam nelas há décadas, geralmente índios e seringueiros, dois seguimentos historicamente rivais, que foram unidos na mesma perseguição. Inicialmente não existia nenhuma organização sindical que protegesse os seringueiros, foi nesta ocasião que a participação da Igreja Católica se fez essencial na organização dos seringueiros na luta pelos seus direitos. A Igreja apoiou o início dos primeiros sindicatos dos trabalhadores rurais em um tempo que, no Brasil, vivia-se uma ditadura militar.3 Durante a década de 70, para impedir a expulsão e o desmatamento das “colocações”, onde viviam os seringueiros, foram organizados “empates” 4, ou seja, a comunidade se colocava de braços dados e de forma 1 Luca Grion et al., La differenza umana. Riduzionismo e antiumanesimo, Ed. Scuola, Brescia 2009; Anna Maria Leonora, Etica ambientale e comportamento ecologico, Ed. Bonanno, Roma 2002; Michele Matta, “Il tema dell’ambiente in prospettiva filosofica”, em: Rivista di Scienze religiose – RSR, 46/2 (2009), pp. 315-330; Saverio Di Liso, “Ecologia e antropocentrismo”, em: RSR, 46/2 (2009), pp. 331-346; Carlo Dell’Osso, “Per una teologia ecologica. La solidarietà tra uomo e creature nei Padri della Chiesa”, em: RSR, 46/2 (2009), pp. 347-368. 2 Euderli Freire de Freitas, Análise da Ascensão da Pecuária bovina como atividade econômica nos municípios de Rio Branco, Xapuri e Brasileia de 1970- 2006..., pp. 56-62. 3 Euderli Freire de Freitas, Análise da Ascensão da Pecuária bovina como atividade econômica nos municípios de Rio Branco, Xapuri e Brasiléia de 1970- 2006. Tese licencia em Filosofia, FADISI, Rio Branco Acre 2009, pp. 30-36. 4 Flaviano Scheneider, “Seringueiros impedem que a mata se acabe sem grito”, em: O Rio Branco, Rio Branco Acre 26 de maio de 1988, p. 6. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 69 Bioética ambiental personalista pacífica entre a floresta e as motoserras para empatarem (daí o nome de empates) as derrubadas. Esse movimento foi se fortalecendo até unir num mesmo sindicado os “povos da floresta” (índios e seringueiros). A voz da Igreja era uma das poucas respeitadas, ainda que não isenta das perseguições. O crescente conflito entre os trabalhadores rurais, apoiados pela Igreja do Alto Acre e Purus, e os fazendeiros apoiados pelo governo tomou corpo e caracteres dramáticos no final da década de 80.5 Duas figuras foram essenciais para a formação das bases de uma consciência social dos cristãos do Acre nesse período, ou seja, o bispo servo de Maria Dom Giocondo Grotti, que ficou como prelado de 1963 até 1971 quando morreu vítima de um acidente áreo, sua morte chocou todo o Estado do Acre, e é ainda hoje conhecido como o “bispo dos pobres”.6 O seu sucessor foi Dom Moacyr Grechi, primeiro Servo de Maria brasileiro nomeado bispo da missão Servita na Amazônia com 36 anos de idade, ficará como bispo de Rio Branco de 1973 até 1998. Será ele, que dará continuidade, à implantação da reforma do Concílio Vaticano II na Igreja do Alto Acre e Purus.7 Dom Moacyr acompanhou todo o processo de implantação das comunidades de base no Acre. Foi das comunidades de base implantadas no Alto Acre e Purus de onde nasceu e se fortaleceu o movimento extrativista, que teve como grande representante Chico Mendes (assassinado em 1988)8 e Marina Silva, ex-ministra do meio ambiente do governo Lula e atual Senadora da república.9 As primeiras efetivas vitórias do movimento extrativista se deram no ano de 1988 com a primeira desapropriação das terras de um grande 70 5 Comitê Chico Mendes, 10 anos sem Chico Mendes (CD), a cura do Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS, Rio Branco Acre, 1998. 6 Carlos Alberto Alves de Souza, História do Acre. Novos temas, nova abordagem, Ed. Carlos A, Rio Branco 2002, p.100; Carta aberta dos Servos de Maria, Servos de Maria 75 anos na Amazônia. Salve a Selva, Ed. Ordem dos Servos de Maria, Rio de Janeiro, 1995, p. 20. 7 Dilermando Ramos Vieira, Os Servos de Maria no Brasil. Tradução de José Milanez, Ed. Ordem dos Servos de Maria, São José dos Campos, 2009, p. 216. 8 Comitê Chico Mendes, 10 anos sem Chico Mendes (CD), a cura do Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS, Rio Branco Acre, 1998. 9 Senador Tião Viana, O Acre e o Pac. Programa de aceleração do crescimento, Ed.Senado Federal, Brasília 2008; Dom Moacyr Crechi OSM, L’ultimo polmone verde, em: Corrado Corradini et al., Beati i costruttori di Pace e Giustizia, Pace e Salvaguardia del Creato, Ed. Publiprint, Verona, 1990, pp. 68-76. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Frei Carlos Paula de Moraes, OSM fazendeiro de Xapurí-Acre, Darly Alves, para a criação do primeiro assentamento extrativista no seringal Cachoeira, (Futura Reserva Chico Mendes). Nessa ocasião, Darly Alves “condenará” Chico Mendes à morte por ter perdido grande parte de suas terras.10 Com a promulgação da Constituição Federal do Brasil de 5 de outubro de 1988, que retomava o caminho da República no Brasil depois de uma ditadura militar de 1964-1985, dedicará de forma inovadora, todo um capítulo ao Meio Ambiente, impondo como obrigação da sociedade e do próprio Estado, a preservação e defesa do meio ambiente, onde se pode vislumbrar a influência do movimento extrativista na origem da legislação ambiental brasileira, já que os conflitos pela terra no Acre tinham assumido níveis dramáticos e de repercussão internacional.11 Meses após a promulgação da Constituição Federal de 1988, Chico Mendes receberá homenagens internacionais pelo seu trabalho em favor da preservação do meio ambiente. Porém, no dia 22 de dezembro de 1988, será assassinado na sua residência diante de sua esposa e filhos. O assassinato do ambientalista proporcionará o fortalecimento da onda ecológica no Brasil.12 O movimento extrativista, é também conhecido como o movimento dos “povos da floresta”, um movimento de base popular, que nasce não só em um país subdesenvolvido, mas na região amazônica, uma das regiões mais pobres do Brasil, com um caráter fortemente religioso, tendo na religião o seu apoio e respiro, e também fortemente antropocêntrico, já que a defesa do ambiente está estreitamente ligada com a defesa do homem da floresta, daí sua principal reivindicação da criação das reservas extrativistas. Origem bem diferente do movimento ambientalista norte americano da década de 60, que nasceu num contexto de crítica ao cristianismo e numa potência capitalista. O que estes dois grandes movimentos têm em comum é a consciência da necessidade de defender o meio ambiente. 10 11 Milton Claro, A Amazônia que não conhecemos, Ed. Ordem dos Servos de Maria, São Paulo 2007, pp. 57-60. Pedro Martinello, A batalha da borracha na segunda guerra mundial e suas conseqüências para o vale amazônico, Cadernos UFAC. N. 1, Série C, Ed. Universidade Federal do Acre, Rio Branco 1988. 12 Paulo Tormim Borges, Instituto básico do Direito Agrário, Ed. Saraiva, São Paulo 1998, pp. 25-40. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 71 Bioética ambiental personalista 3 A visão católica do meio ambiente A crise ecológica dentro da visão católica é vista como uma crise moral e necessita de uma conversão. O papa Paulo VI em 1972, durante a primeira conferência da ONU sobre o meio ambiente, já frisava que a pobreza é a pior forma de contaminação de um ambiente, pois gerava degradação ambiental e guerra. Esse caráter “social” do tema do meio ambiente foi desenvolvendo-se dentro do Magistério Católico, em uma linha que ligava sempre mais o ser humano como parte responsável de “cuidar” da criação. O tema sobre o empenho cristão na defesa da criação foi se afirmando progressivamente, passando pela chamada de João Paulo II à “conversão ecologia” e à “ecologia humana”, até hoje fazer parte do Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, sendo reafirmado em várias ocasiões, no magistério de Bento XVI.13 Quanto ao fundamento epistemológico da (bio)-ética ambiental, se pode inferir, da análise de alguns autores católicos, que os mesmos parecem não tratarem do estatuto epistemológico da diferença entre a ética ambiental ou bioética ambiental, pois utilizam os dois termos, às vezes, como sinônimos.14 Como formulação conceitual de bioética ambiental, o presente trabalho entende como bioética ambiental: o estudo sistemático e interdisciplinar da intervenção do homem sobre a vida animal, vegetal e dos ecossistemas, à luz dos valores éticos, quanto ao sujeito moral. Os vários temas abordados pela bioética ambiental seriam: ecologia; aquecimento global; relação cultural entre homem e natureza; religião e ambiente; desmatamento; projetos políticos de desenvolvimento e impactos ambientais; saúde e meio ambiente; lixo tóxico; biodiversidade; política alimentar e organismos geneticamente modificados; direitos dos animais, etc. 72 13 Pontificio consiglio della Giustizia e della Pace, Compendio della Dottrina Sociale della Chiesa..., n. 451-487. Quanto ao debate da legitimidade ou não de se considerar uma bioética católica, Cf. Giovanni Fornero et al., Laicità debole e laicità forte. Il contributo della bioetica al dibattito sulla laicità, Ed. Mondadori, Milano 2008. A referida obra oferece uma reflexão sobre o desenvolvimento e a legitimidade, ou não, de se considerar uma bioética católica, com base na diferenciação entre sacralidade da vida e qualidade da vida. 14 Giovanni Russo et al., Bioetica ambientale, Ed. Elle di ci, Torino 1998; Alfons Auer, Etica dell’ambiente. Il contributo teológico al dibattito ecológico, Ed. Queriniana, Brescia 1988; Elio Sgreccia et al., Etica dell’ambiente, Ed. Ucsc – Facoltá di Medicina e Chirurgia A Gemelli, Roma 1997. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Frei Carlos Paula de Moraes, OSM Os vários modelos de bioética ambiental podem ser sintetizados em três grandes linhas, como: ecocentrismo, que defende a dignidade de sujeito moral para todos os ecossistemas; o biocentrismo, que defende a dignidade de sujeito moral a todos os seres vivos, vegetais e animais; o antropocentrismo, que de certa forma, defende a primazia do ser humano sobre todas as outras espécies vivas.15 O homem precisa rever seu relacionamento com a natureza, pois o planeta já não suporta o modelo antropocêntrico capitalista, dentro do paradigma moderno, grande responsável de muitos males ambientais. Este é um dos principais deveres da bioética ambiental. Não bastam reações emotivas ou rejeição do progresso, ou até mesmo, o controle selvagem da natalidade, como tão pouco soluções tecnológicas, é necessário uma conversão radical da concepção do Ser que fundamente a consciência do sujeito moral, chamando-o para uma conversão ético-política, que firme um compromisso pessoal e estrutural, em favor de uma relação mais harmônica entre o homem e a natureza.16 4 Do “antropocentrismo” ao personalismo cristão Talvez um dos maiores desafios hoje da Igreja no campo da bioética seja a “questão antropologica” devido à pluralidade de concepções sobre o homem do nosso tempo. Não é diferente esse desafio para a questão ambiental. Tanto na bioética clínica, quanto na bioética ambiental, a diferença da base antropológica pode significar muito na execução concreta do juízo bioético.17 15 Peter Singer, Vida Ética. Os melhores ensaios. Tradução de Alice Xavier, Ed. Ediouro, Rio de Janeiro 2002 (Original: Peter Singer, Animal liberation: a new ethics for our treatment of animals, Review-Randon House, New York 1975); Barid Callicott, L’etica della terra, em: Giovanni Russo et al., Bioetica Ambientale, Ed. Elle di ci, Leumann (Torino), 1998, pp. 66-72; Arne Naess, L’armonia tra l’uomo e l’ambiente: La Deep Ecology, em: Giovanni Russo et al., Bioetica Ambientale, Ed. Elle di ci, Leumann (Torino), 1998, pp. 62-65; Baird Callicott, Modelli di Bioetica ambientale, em: Giovanni Russo et al., Bioetica Ambientale, Ed. Elle di ci, Leumann (Torino), 1998, pp. 32-61. 16 Andrea Mariani, Bioetica e teologia morale. Fondamenti per un’etica della vita, Ed. Lev, Città del Vaticano, 2003, pp. 141-149; Cnbb, Discípulos e Missionários na Amazônia, Ed. Scala, Manaus, 2007, n. 65-68; Congregazione per La Dottrina della fede, Istruzione dignitas personae su alcune questioni di bioetica, Ed. Lev, Città del Vaticano, 2008, n. 1. 17 Elio Sgreccia, La bioetica alle soglie del Duemila, em: Aldo Mazzoni et al., A sua immagine e somiglianza? Il volto dell’uomo alle soglie del 2000 – un approccio bioetico, Ed. Città Nuova, Roma, 1997, pp. 26-30. Por bioética clínica, se entende as Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 73 Bioética ambiental personalista No campo da bioética ambiental, o grande desafio da antropologia hoje é justamente a superação dialética da crítica do movimento ambientalista norte americano, que dentro de suas várias acepções e graus, nega ao homem o privilégio de ser o “único sujeito moral”. O homem tem um grau único de responsabilidade ontológica, tanto na degradação, como também no apelo para que ele mude de atitude em favor da vida do planeta, isso revela a importância ética do ser humano diante da crise ambiental também para a solução dessa questão.18 Sabe-se que o Magistério Católico não adotou explicitamente uma “formulação oficial” para o juízo bioético, mas colheu dos debates sempre a parte da dignidade da pessoa humana. No entanto, o personalismo ontologicamente fundado, é a base para muitas das conclusões que aparecem nas discussões e documentos católicos.19 Um dos manuais atuais em bioética, de filo “católico”, é na realidade um manual de bioética na visão do personalismo ontologicamente fundado.20 A pessoa é entendida como a definição de Boezio: “rationalis naturae individua substantia” (natureza racional e substância individual). Ou seja, no homem a personalidade existe na individualidade constituída de um corpo animando e estruturado de um espírito.21 Do momento da fecundação à morte, em cada situação de sofrimento ou saúde, é a pessoa humana o ponto de referência e de medida entre o lícito e ilícito. O personalismo, sem negar o componente existencial, ou a mesma capacidade de escolha, em que consiste o destino questões ligadas a ética bio-médica, já a bioética ambiental às questões ligadas ao meio ambiente. 74 18 Paolo Carlotti et al., Quale Filosofia in teologia morale? Problemi, prospettive e proposte, Ed. Las, Roma, 2003, pp. 129-139;Andrea Mariani, Bioetica e teologia morale. Fondamenti per un’etica della vita, Ed. Lev, Città del Vaticano, 2003, pp. 141-223. 19 Bento XVI, Se queres cultivar a paz, preserva a criação (Roma, 1º de janeiro de 2010), Mensagem para a celebração do dia Mundial da Paz, n.13, em: L’Osservatore Romano, Roma, 16 dezembro 2009, pp. 4-5; Comissione teológica Internazionale., Alla ricerca di un’etica universale: nuovo sguardo sulla legge naturale, Ed. Lev, Città del Vaticano, 2009, n.81. 20 Congregação Per la Dottrina della Fede, Instruzione Dignitas personae su alcune questioni di Bioetica, Ed. Lev, Città del Vaticano, 2008, n. 1, 4-5. Uma comprovação dessa realidade e o próprio manual de E. Sgreccia, o qual logo na apresentação (da edição italiana de 2003) faz sua opção clara pelo “personalismo ontologicamente fundado”, não frisando qualquer “fundamentação religiosa”. Cf. Elio Sgreccia, Manuale di bioetica. Fondamenti ed etica biomedica vol. I, Ed.Vita e pensiero, Milano, 2003. 21 J. Hervada, Introduzione critica al diritto naturale, Ed. Glf, Milano, 1990; L. Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, Ed.Glf, Torino, 1996. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Frei Carlos Paula de Moraes, OSM e o drama da pessoa, entende afirmar também, e prioritariamente, um estatuto objetivo e existencial (ontológico) da pessoa. A pessoa é antes de tudo um corpo espiritualizado, um espírito encarnado, que vale pelo que é e não somente pelas suas escolhas.22 5 Conclusão Do exposto até o presente momento se pode intuir que o foco de debate nas questões de bioética ambiental é quanto ao sujeito moral, que os vários modelos antropocêntricos, biocentricos e ecocentricos, respondem de forma diversa. O cristianismo se identificaria muito mais com uma visão antropocêntrica, entendida como personalismo ontologicamente fundado. Pois assim se preservaria o sujeito moral ao homem, com o justo reconhecimento do valor intrínseco dos seres não humanos na legítima autonomia das realidades criadas. Hoje, devido ao crescente debate sobre o meio ambiente, se faz urgente uma atenção aos desvios das propostas biocentricas e ecocentricas, que chegam a diluir o sujeito moral e criam uma verdadeira inversão do valor ontológico do ser humano, considerando-o quase como um “vírus” da natureza, como se existisse uma “luta de classes” entre homem x ambiente, no esquema marxista. Até o presente momento, muitos autores “ambientalistas” adotaram um caminho de distanciamento do antropocentrismo, tentando por vezes, superar esta visão, por acreditarem, que tal visão seria incompatível com a atual “questão ambiental”.23 De forma especial na Europa “católica” se desenvolve um debate que busca definir a “diferença humana” em relação aos outros seres, mesmo conservando uma base de compromisso pela defesa ambiental, mas sem com isso reduzir o sujeito moral. Poder-se-ia citar várias pesquisas nos campos filosóficos e teológicos neste sentido em progressivo desenvolvimento, principalmente depois da crítica do Magistério ao ecocentrismo e biocentrismo, como também à ecologia profunda. O caminho está ainda aberto e não se possui uma palavra final, mas é indicativo de 22 Carlo Caffara, La persona umana: aspetti teologici, em: Aldo Mazzoni et al., A sua Immagine e Somiglianza?..., pp. 86-89. 23 Alberto Peratoner, Quale antropocentrismo? Ripensare la persona umana in relazione all’ambiente, em: Luca Grion, La differenza umana. Riduzionismo e antiumanesimo, Ed. La Scuola, Brescia, 2009, pp. 39-48; Andrea Aguti, “La critica naturalistica della religione”, em: Luca Grion, La differenza umana...., pp.85-94. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 75 Bioética ambiental personalista um possível reorientamento do desenvolvimento do tema da bioética ambiental dentro da pesquisa teológica católica.24 Email do Autor: [email protected] 24 76 Rinaldo Fabris, “Teologia bíblica e l’etica che ne deriva”, em: Rivista de Teologia Morale – RTM, 165 (2010), pp. 11-14; Francesco Compagnoni, “La questione ambientale e i diritti umani”, em: RTM, 165 (2010), pp. 15-20; Saverio Di Liso, “Ecologia e antropocentrismo”, em: Rivista di Scienze Religiose – RSR, 46/2 (2009), pp. 331-345; Luca Grion, La differenza umana. Riduzionismo e antiumanesimo, Ed. La Scuola, Brescia, 2009. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: O autor propõe a Ética e a Epistemologia como áreas de contribuição das religiões para a ecologia. De fato, as linhas-mestras da ciência ecológica estão em plena elaboração, incluindo dados das diferentes Ciências Humanas e Naturais. Neste sentido, as religiões desenvolveram perspectivas cosmológicas e morais para compreender a condição humana e nortear nossa relação com a Terra, originando uma ética de perfil eco-religioso. Há quatro princípios de compreensão da Natureza em que religiões e ecologia podem cooperar: inteligibilidade, hermenêutica, organicidade e coesão. Palavras-chave: religiões, ecologia, conhecimento, ética. Abstract: The author presents ethics and epistemology in terms of fields which offer contributions to ecology elaborated by religions. In fact, the major themes of the study of ecology are still being worked out together with data drawn from different human and natural sciences. In this context, the wide spectrum of religions developed cosmological and moral viewpoints for a deeper understanding of human conditions and delineate our relationship with the Earth, contributing thus with special insights into an ethical profile of ecology. Four principles are involved in the understanding of nature drawing from religions and ecology which may enter into mutual co-operation: intelligibility, hermeneutics, relationship, and cohesion. Key words: religions, ecology, insight, ethics. Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia Marcial Maçaneiro* * Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Vice-diretor geral da Faculdade Dehoniana (Taubaté, SP), onde coordena o NERI – Núcleo de Estudos e Relações Interconfessionais. Editor da revista “TQ – Teologia em Questão”. Membro do GREDIRE – Grupo de reflexão em Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da CNBB. Membro da International Commission for Catholic/Pentecostal Dialogue (Santa Sé). Religioso da Congregação dos Padres do Coração de Jesus (dehoniano). O presente artigo se inspira em sua recente publicação “Religiões & Ecologia – cosmovisão, valores, tarefas” (Paulinas). Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 77-92. Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia Introdução As religiões propõem desenhos do mundo a partir de emblemas milenares e suas releituras sucessivas: criação a partir das águas primordiais, organização do caos pela ação da Divindade, harmonia de esferas celestes, analogia entre macrocosmo e microcosmo etc. Tais representações demonstram a busca de compreensão do cosmo e da natureza por parte do homo religiosus nas diferentes culturas. Daí a complexa literatura sacra, em que elementos míticos se mesclam com dados histórico-culturais, tecendo uma peculiar episteme da natureza: um saber que “religa” o biológico e o espiritual, o cotidiano e a transcendência (conforme o sentido original de religio). Nesta perspectiva, os desenhos do mundo aproximam religião e ciência em três pontos fundamentais para a Ecologia: Inteligibilidade: a convicção de que o universo é uma realidade inteligível, capaz de ser compreendida, ainda que parcial e progressivamente. Daqui provêm a classificação dos elementos naturais, a classificação das propriedades químicas e terapêuticas, a identificação dos astros e das constelações, a medição do tempo pelo ciclo lunar ou solar, a otimização das fontes e do solo, e o desenvolvimento de habilidades intelectivas e técnicas relacionadas à manutenção da vida. O conhecimento necessário para a sobrevivência foi cercado de ritualidade, porque reflete a sacralidade da vida que ele preserva. Hermenêutica: a interpretação do mundo como exercício próprio da humanidade, em busca de sentido para sua trajetória na Terra. Daqui provêm as mitologias cosmogônicas (sobre o começo e o término do universo); a cultura dos quatro elementos (água-terra-fogo-ar) relacionados aos humores da alma; a veneração de astros e potências naturais; a concepção da Terra como mãe e provedora (Ceres, Gaia, Deméter); a intuição de um sentido transcendente para o universo e a humanidade. Organicidade: a tentativa de ordenar os elementos da natureza, terrestres e siderais, ensaiando visões de conjunto que articulem o todo e as partes. Daqui provêm a compreensão do mundo como árvore sefirótica ou corpo cósmico; a concepção do corpo humano como microcosmo detalhadamente referido ao macrocosmo; a relação entre macrocosmo e microcosmo como princípio místico e terapêutico; a sacralidade dos elementos orgânicos e sua utilização ritual; as várias mitologias que associam terra e céu. 78 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Marcial Maçaneiro 1 As religiões como episteme da natureza Ao examinar os registros religiosos e científicos da compreensão humana do mundo, notamos que ambos constatam a imensidão do espaço, o curso do sol, o fascínio do fogo e a virtude das águas, relacionando as partes com o todo e mapeando o curso humano na Terra. Registros científicos e religiosos são distintos entre si, mantendo, porém, vários pontos de aproximação: – O Hinduísmo organizou o mundo em círculos concêntricos de terra, intercalados pela água, tendo ao centro o monte Meru (hoje identificado com o Himalaia). Ultrapassando os limites do planeta, podiam-se imaginar outras dimensões paralelas do universo, como ampolas flutuantes no espaço, cada uma contendo ar, solo e água. Se esse desenho funcionava para a Terra, por que não pensá-lo além dos horizontes conhecidos? – A corrente bhakti do Hinduísmo sintetiza os processos de aniquilação (Shiva) e regeneração (Vishnu) na figura do Krishna Universal: “Eu sou a meta, o sustentador, a testemunha, a morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e a aniquilação, a base de tudo, o lugar onde se descansa e a semente eterna” (Bhagavad-Gita 9,18). Krishna se oculta sob todas as formas de vida. – O Budismo herdou parte da cosmovisão hinduísta e, depois, constatou a provisoriedade de tudo o que existe. A impermanência da matéria (animal, vegetal ou mineral) revela seu devir contínuo, no compasso da criação e da aniquilação, da geração e da degeneração. Indo além da forma e da coesão energética dos corpos, o Budismo admite uma realidade última, sem forma e sem fixidez corporal – modo sereno de existir, além dos limites do espaço e do tempo. Nesse aparente “nada” estaria a verdadeira realidade das coisas, sua essência informe e livre de pretensões. Nesse nível ontológico, todos os seres vivos se irmanam na sua singela vacuidade, conexos na totalidade do universo, porque não se separam mais pela forma ou pelo corpo. – O Judaísmo expressou a organicidade do universo a partir da potência criadora da Palavra divina: ao nomear cada criatura, chamando-a à existência, Deus colocava ordem na Criação, separando-a do caos. Por sua Palavra os astros seguem sua órbita; os mares se detêm à borda dos continentes, os peixes, Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 79 Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia répteis e pássaros ocupam seu hábitat; a terra produz as colheitas; o ser humano vive. A cada aurora, a Palavra eterna de Deus convoca as criaturas e a vida se perpetua. Tudo ordenadamente, longe do abismo caótico das águas primordiais (cf. Gn 1,2). Depois, num salto cultural formidável, o Judaísmo entreviu – por trás da arquitetura do mundo – um princípio eterno, sutil, penetrante e engenhoso: a Sabedoria (Hokmá). Emanada do próprio Deus, foi ela quem presidiu a Criação do mundo na qualidade de mestre-de-obras. Ela conhece a composição, a medida, o percurso a o fim de todos os elementos. Tudo o que existe, reside nela e por ela subsiste. – Trilhando outra via especulativa, a Cabala desenhou o mundo como “árvore cósmica”, formada pelos dez Nomes excelentes de Deus: coroa (keter), sabedoria (hokmá), inteligência (biná), misericórdia (hesed), julgamento (din), beleza (tiféret), eternidade (netsá), majestade (hod), fundamento (yessod) e reinado (malkut). Esses Nomes são, ao mesmo tempo, atributos de Deus e qualidades expandidas por Ele no mundo. Logo, Criador e criatura se refletem mutuamente: quanto mais vemos o mundo refletido em Deus, mais percebemos Deus refletido no mundo (cf. Sefer Ietsira). – O Candomblé, por sua vez, representou o mundo através das forças da natureza. Cada orixá é, a seu modo, um emblema da vida em sua diversidade: águas, raios, minérios, florestas, ventos, seivas e raízes, fogo e forja. A casa dos orixás – com seus encontros e desencontros – é imagem mítica dos elementos da natureza e da tensão que os afasta e integra continuamente. Como princípio de coesão, está o axé – energia vital que reside em tudo, que circula em tudo. – No Cristianismo, os elementos telúricos, celestes e abissais da Criação encontram-se no Cristo Cósmico, formando um Corpo encabeçado pelo Logos divino (cf. Col 1,15-20). Afinal, Jesus é professado como encarnação histórica do Logos criador e reconciliador de todas as coisas que há “nos céus, na terra e sob a terra” (Fil 2,10). Este Cristo-Logos é principio e plenitude da nova criação (cf. Rm 8,19-23). – O Islam retoma a narração bíblica e organiza o mundo a partir da Palavra divina, inscrita nas criaturas. Os astros e constelações, a terra e suas colheitas, os animais e a diversidade de povos são 80 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Marcial Maçaneiro sinais (ayat) da Sabedoria do Criador. Há um profundo vínculo entre o mundo visível e o mistério invisível de Allah – pois ele revela seus atributos em analogia com o vigor e a beleza da Criação (cf. Alcorão: Sura 30,27). 2 O triálogo religiões-ciências-ecologia Como dissemos, as religiões traçaram seu desenho do mundo em resposta aos três pontos já assinalados: inteligibilidade do universo; interpretação e conhecimento humano; organicidade da natureza. A partir daí, distinguimos quatro componentes da cosmovisão religiosa que dialogam com as Ciências da Natureza e com a Ecologia, particularmente: Inteligibilidade – Desde os antigos filósofos gregos, preocupados em decifrar a natureza das coisas (physis), a ciência buscou compreender o mundo nas suas múltiplas manifestações. Do aprimoramento epistemológico surgiram novas análises e novas sínteses, levando as ciências a se classificarem de modo especialístico. Hoje, várias abordagens aproximam as especializações para compor um saber holístico. Portanto, religiões e ciências se aproximam ao admitir a possibilidade de conhecer o mundo, compondo, porém, epistemes diferenciadas. Hermenêutica – Cada desenho de mundo proposto pelas religiões é, na verdade, uma interpretação da realidade conhecida. As religiões utilizam narrativas cosmogônicas, identificam centros do mundo, organizam o caos e distinguem os elementos (água-terra-ar-fogo-éter), na tentativa de ordenar e interpretar o mundo. Ao lado de rudimentos técnicos adquiridos, surgem elementos simbólicos que indicam que o homo religiosus – à medida que se situa no mundo – busca interpretar e descrever sua ambiência vital. É nessa ambiência que o sujeito se abre à sacralidade, descobre a transcendência e cria ritos que expressam memória (relação como passado) e sentido (relação com o devir). Organicidade – Antes da cosmologia moderna e da teoria de Gaia1, as religiões ensaiaram a seu modo um esboço holístico do mundo, na dialética entre imanência e transcendência, tempo e eternidade. Esferas, labirintos, árvore sefirótica e concepção do corpo como microcosmo foram as primeiras expressões de uma percepção orgânica da natureza. É admirável o quanto as religiões enfrentaram o caos, a fragmentação e a 1 James LOVELOCK. A vingança de Gaia. São Paulo: Editora Intrínseca, 2006. Também: Gaia – Cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 81 Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia finitude, afirmando a ordem, a regeneração e a transcendência. Não só em termos nocionais, mas sensoriais, experimentadas no devir das estações, no ciclo lunar, na passem da infância à vida adulta, nas refeições ao fim das colheitas – elementos ao mesmo tempo ecológicos e litúrgicos. Coesão – Estruturada como organismo de muitas partes, a natureza é múltipla e coesa ao mesmo tempo. Algo semelhante se observa no cosmo: os astros, cometas e constelações se expandem pelo espaço sideral, mantendo-se numa cadeia energética e causal que os relaciona entre si. No sistema solar e nos ecossistemas conhecidos há vínculos que ligam partículas e corpos. Trata-se de uma coesão dinâmica e plural (e não monolítica ou estática). As religiões constataram esse fenômeno cósmico e natural, percebendo forças de coesão visíveis e invisíveis. Para os hinduístas o princípio de coesão é Brahman, sustentador de todos os seres. O Oriente elaborou também a noção do Tao: “indiferenciado, porém completo; sem forma e sem nome; fonte de todas as coisas; uno com o movimento e as mudanças na Natureza”2. Para o Judaísmo, quem sustenta o universo é a potência criadora de Deus, expressa como Sabedoria (hokmá) ou Palavra (dabar). A religião dos orixás acredita que uma energia primordial (axé) acompanhe a expansão da vida nas diversas direções (obá), como força que atravessa e une todas as coisas. Para os cristãos, a força dinamizadora e vinculante do mundo é o Espírito Divino, chamado justamente de dynamis (energia motriz) e pneuma (sopro vital). Notemos, ainda, que, no Judaísmo e no Islam, as letras do texto sagrado têm valor numérico, possibilitando uma versão matemática (e não só metafísica) do universo. 3 Religiões e epistemologia ambiental O debate sobre o conhecimento humano e os métodos científicos tem crescido na direção da chamada “epistemologia complexa”3. Nessa direção convergem os ensaios interdisciplinares, o diálogo entre Ciências Humanas e Ciências Naturais e o encontro das várias esferas de realização do humanum com seus saberes: Arte, Direito, Ética, Comunicação, Psicologia, Sociologia, Religião. Busca-se superar a fragmentação do conheci- 82 2 Jennifer OLDSTONE-MOORE. Conhecendo o taoísmo. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 22. 3 Cf. Edgar MORIN. Science avec conscience. Paris: Fayard, 1982. Dele também: O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América Publicações, 1984. Giancarlo BOCCHI; Mauro CERUTI. La sfida della complessità. Milano: Feltrinelli, 1985. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Marcial Maçaneiro mento em partes estanques, bem como corrigir certas tendências de cisão entre a humanidade e a natureza. Alguns autores, como Edgar Morin, têm feito uma revisão geral da epistemologia e suas pretensões4. A partir desse debate vão se delineando os contornos de uma epistemologia ecológica: fundamentos, métodos e imbricações da ecologia enquanto Ciência, que explicite o que sabemos (e o que não sabemos) sobre o círculo vinculante Humanidade-Natureza-Sociedade. Edgar Morin opina que “a ciência ecológica necessitará de um pensamento organizador, mas que ultrapasse os princípios da organização estritamente física”5. Outro pesquisador, Pierre Dansereau, tem reclamado a construção de uma epistemologia ecológica que inclua a ética e o princípio da síntese: “as ciências do meio-ambiente estão à procura de uma nova síntese do saber e de uma nova prescrição, cujo princípio será mais ecológico do que econômico e mais ético do que científico”6. De seu lado, Alfredo Pena-Vega assume e desenvolve as perspectivas de Edgar Morin: ele vê a Ciência Ecológica como construção e percepção complexas; um conhecimento inclusive crítico, pois coloca “em xeque” nossas coordenadas gnosiológicas, nossa delimitação das Ciências e nosso comportamento. Afinal, a concepção tecnicista do progresso e o consumismo se refletem na exploração desordenada da natureza, na produção de toneladas de lixo por hora e no acúmulo de bens nas mãos de poucos. Tudo isso é ao mesmo tempo injusto, danoso e irracional. Para consertar tal situação, projetamos uma nova gestão, a partir de um novo saber bio-ecológico. Na opinião de Alfredo Pena-Vega, os dados da biologia, psicologia e física participam da elaboração da epistemologia ecológica, desde que todos se disponham a rever seus paradigmas com disposição intelectiva e avaliação dos métodos. O autor diz também que admitir os limites do saber é uma oportunidade de conhecimento. Isso significa que o “mistério” (o ignoto, o limítrofe, o não-sabido) também constitui a realidade e as abordagens que a tentam decifrar: 4 Cf. Edgar MORIN. Introduction à la pensée complexe. Paris : ESF, 1990. Mauro CERUTI ; Giancarlo BOCCHI; Edgar MORIN. Un nouveau commencement. Paris: Seuil, 1991. 5 Alfredo PENA-VEGA. O despertar ecológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 38. 6 Pierre DANSEREAU, Ecologia humana. Apud Mauricio Andrés RIBEIRO. Ética e sustentabilidade. Em: <www.ecologizar.com.br>. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 83 Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia Lembremo-nos que a epistemologia da complexidade [aplicada à ecologia] não deve ser vista como uma espécie de catálogo no qual se acumulariam, por justaposição, todos os conhecimentos: físico, biológico, lógico, psicológico, psicanalítico etc. Ao contrário, ela deve ser considerada como um princípio de complexificação do nosso próprio conhecimento, que introduz, em todas essas consciências, a consciência das condições bio-antropológicas, socioculturais ou nosológicas do conhecimento. Em outras palavras: o conhecimento que traduz a complexidade dos fenômenos deve reconhecer a existência dos seres e interrogar-se sobre o mistério do real7. Esse “mistério do real” tem sido abordado também pelas religiões, com chaves interpretativas e narrativas próprias e, em alguns pontos, complementares. O olhar religioso vai além do empírico e se abre à intuição do mistério, acolhido como percepção de beleza, sentido e transcendência. Esses elementos se inscrevem no cosmo e são decifrados pelo espírito humano. Daqui brotam os mitos ordenadores do caos e explicadores do dinamismo da vida, e os códigos de conduta que orientam as relações entre as pessoas, delas com a divindade e, enfim, com as demais criaturas. Temos, aqui, elementos hermenêuticos (interpretação do mundo) e morais (princípios de conduta) preservados pelas religiões e ainda ativos no comportamento atual. Também Enrique Leff aponta para uma nova abordagem da natureza em que seja possível o diálogo com a religião (ao menos em nível de princípio). Mirando a uma nova epistemologia ambiental, ele cita a convergência de saberes num “sistema holístico”, e a capacidade unificadora do “pensamento simbólico”. O olhar holístico e a abordagem simbólica da realidade são características da cosmovisão religiosa, porém muitas vezes desqualificadas do ponto de vista científico. Leff propõe, então, que se reveja o que tem sido considerado “científico”, para depois rever o que seja “conhecimento”. Investiga os diferentes “saberes” e procura recuperar a dignidade epistemológica do patrimônio simbólico, mítico e ritual dos povos: O saber ambiental reconhece as identidades dos povos, suas cosmologias e saberes tradicionais, como parte de suas formas culturais de apropriação do seu patrimônio de recursos naturais. Assim, inscrevemse dentro dos interesses diversos que constituem o campo conflitivo do 7 84 Alfredo PENA-VEGA. O despertar ecológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 41. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Marcial Maçaneiro ambiental. Emergem daí novas formas de subjetividade na produção de saberes, na definição dos sentidos da existência e na qualidade de vida dos indivíduos, em diversos contextos culturais. Nesse sentido, mais que reforço da racionalidade científica prevalecente, o saber ambiental impulsiona novas estratégias conceituais para construir uma nova racionalidade social8. A busca de “novas estratégias conceituais” abre uma importante brecha de participação das religiões, com suas cosmologias e interpretações sobre o sentido da vida e o lugar do ser humano no mundo. Também o ethos e a racionalidade simbólica das religiões podem contribuir para a construção dessa “nova racionalidade social” mencionada por Henrique Leff. 4 Consolidar uma ética para a ecologia As religiões (de cunho profético, místico ou sapiencial) oferecem chaves hermenêuticas sobre o mundo e a condição humana; constroem sentido existencial; inserem o ser humano no cosmos; propõem valores e norteiam condutas. Antes da emancipação histórica da Ética, do Direito e das Artes, as religiões se ocupavam (como em parte ainda se ocupam) das esferas moral, jurídica e estética. Hoje, a sociedade se setorizou e o sujeito é nutrido por várias fontes, professando ou não um determinado credo. Contudo, as religiões não podem renunciar à sua responsabilidade pela vida, pelo mundo – que perdura, se aprimora e é convidada a reler-se no curso da História. Muitos líderes acreditam que as religiões podem ser parceiras valiosas na promoção de uma ética ecológica, de nível triplo: pessoal, comunitária e global9. Vejamos algumas posições: – A capacidade de pensar racionalmente e a capacidade de expressar-se através da fala elevam o homem acima de seus amigos mudos [os demais seres naturais]. Mas, em busca do sossego, da comodidade e da segurança, com excessiva frequência o homem emprega meios inadequados, ou mesmo brutais e 8 Enrique LEFF. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2006, p. 169. 9 Cf. Hans KÜNG. Projeto de ética mundial. São Paulo: Paulinas, 2001. Marcelo BARROS. O sonho da paz. Petrópolis: Vozes, 1995. Bernhard HAERING; Valentino SALVOLDI. Tolerância – por uma ética de solidariedade e paz. São Paulo: Paulinas, 1995. Al GORE. A Terra em balanço – ecologia e o espírito humano. São Paulo: Gaia, 2008. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 85 Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia repulsivos. Quando por motivos egoístas se cometem crueldades desumanas, quando se maltrata o próximo ou os animais, estamos diante de comportamentos inteiramente inadequados à posição e à capacidade evolutiva do homem. Infelizmente, esses comportamentos quase fazem parte da ordem do dia. Atos insensatos desse tipo apenas trazem sofrimentos para a própria pessoa e para os outros. Para nós que nascemos como seres humanos, é de vital importância exercer benevolência e realizar ações meritórias para nosso próprio proveito e para o proveito dos outros, nesta vida e em vidas futuras. [...] Aqueles que seguem a senda [do budismo] mahayana são aconselhados não somente a evitar um comportamento prejudicial, mas também a desenvolver um intenso sentido de compaixão. Isso traz consigo um grande desejo de salvar todos os seres sensíveis, de suas dores e sofrimentos (Dalai Lama – budismo)10. – Reduzir completamente a natureza a um conjunto de simples dados reais acaba por ser fonte de violência contra o meioambiente e até por motivar ações que desrespeitam a própria natureza do homem. Esta, constituída não só de matéria, mas também de espírito – e, como tal, rica de significados e de fins transcendentes a alcançar – tem um caráter normativo também para a cultura. O homem interpreta e modela o ambiente natural através da cultura, a qual, por sua vez, é orientada por meio da liberdade responsável, atenta aos ditames da lei moral. Por isso, os projetos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e a justiça entre as gerações, tendo em conta os diversos âmbitos: ecológico, jurídico, econômico, político e cultural (Papa Bento XVI – cristianismo)11. – A manutenção de um ambiente limpo é o dever cívico fundamental dos crentes que devem contribuir para o controle da poluição e para um ambiente mais saudável. O profeta [Muhammad] encorajou a plantação de árvores, a preservação e conservação de recursos, o uso cuidadoso da água e de outros recursos ambientais, e a segurança no ambiente quando ele descreveu atos como a remoção de um objeto perigoso do ca10 11 86 Dalai Lama, apud Leonardo BOFF. Princípio da compaixão e cuidado. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 59-60. BENTO XVI, encíclica Caritas in veritate, n. 48. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Marcial Maçaneiro minho das pessoas, como caridade merecedora da recompensa de Allah. Entretanto, o princípio do equilíbrio e da moderação continua a ser fundamental nos ensinamentos islâmicos. [...] Os humanos têm a vice-regência de Deus na terra (Sura 2,30). Por conseguinte, são responsáveis pela proteção e preservação daquilo que lhes foi confiado por Deus. Toda a vida deve ser respeitada, de modo que não deve haver caça, ou matança de animais ou a sua manutenção em cativeiro, para prazer e lucro. Deve evitar-se o desperdício e também o uso excessivo de recursos (Saleha Mahmud-Abedin – Islam)12. Em diálogo com as ciências, a sociedade e os governos, as religiões podem oferecer critérios de valia moral e espiritual que reeduquem as pessoas ao cuidado da natureza – dom do Criador. Sabemos que o risco de desaparecimento da vida no planeta é real e até crescente: a água escasseia, as espécies se extinguem, a poluição aumenta, a temperatura global se eleva. Além dos possíveis fatores naturais ou geológicos, tal crise tem agravantes sérios de nossa parte: exploramos sem replantar, descartamos sem reciclar, consumimos sem partilhar. Há desperdícios e má gestão em muitos setores. Tal situação nos obriga a rever nossos padrões de progresso, nossas práticas de gestão, nossos hábitos de consumo e a exclusão social decorrente. Pierre Dansereau é enfático: A maior catástrofe ecológica tem a ver com a tendência ao recolhimento no âmbito confortável da nossa própria prosperidade, através da nossa obstinação em perpetuar o elevado nível de vida que já alcançamos. Se não formos capazes de romper esta concha, de atenuar a pressão desse torno compressor e de ajudar as outras nações, estaremos – nós mesmos – simplesmente condenados! [...] Para além do progresso tecnológico e das coações econômicas, como tomar decisões que estejam à altura desse desafio moral? Pois tem-se falado muito em combater a poluição (sem rebaixar, entretanto, o nível de vida dos ricos!); e ao mesmo tempo não se tem encarado com a devida intensidade a linha de continuidade que associa a poluição à pobreza, à ignorância, à injustiça social. Um mundo realmente novo deverá ser capaz de contemplar, face a face, a necessidade de se definir a crise planetária em 12 Saleha MAHMUD-ABEDIN, apud Patrícia MISCHE; Melissa MERKLING (orgs.). Desafio para uma civilização global – diálogo de culturas e religiões. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 325. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 87 Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia suas dimensões morais, para além da análise científica e ecológica do abuso dos recursos da Terra13. A dimensão moral foi apontada também por João Paulo II, na esperança de corrigir comportamentos e consolidar uma noção de desenvolvimento integral e sustentável: O caráter moral do desenvolvimento também não pode prescindir do respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os gregos, aludindo precisamente à ordem que a distingue, chamavam de “Kosmos”. Também essas realidades exigem respeito, em virtude de três considerações sobre as quais convém refletir atentamente: – A primeira refere-se às vantagens de tomar ainda mais consciência de que não se pode, impunemente, fazer uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados (animais, plantas e elementos da natureza) como se quiser, em função das próprias exigências econômicas. Pelo contrário , é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, como é exatamente o cosmo. – A segunda consideração se fundamenta, por sua vez, na convicção – eu diria premente! – de que os recursos naturais são limitados; alguns dos quais não são nem mesmo renováveis. Usá-los como se fossem inexauríveis, com absoluto domínio, põe em perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a geração presente, mas sobretudo para as gerações futuras. – A terceira consideração se relaciona diretamente com as consequências que certo tipo de desenvolvimento tem, quanto à qualidade de vida nas áreas industrializadas. Todos nós sabemos que, como resultado direto ou indireto da industrialização, ocorre cada vez com mais frequência a contaminação do ambiente, com graves consequências para a saúde da população. Portanto, é evidente que o desenvolvimento, e a vontade de planificação que o orienta, assim como o uso dos recursos e a maneira de consumi-los, não podem estar separados do respeito das exigências morais. Uma dessas impõe limites, sem dúvida, ao uso da natureza visível. O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de “usar e abusar” ou de dispor das coisas 13 88 Pierre DANSEREAU, Ecologia humana. Apud Mauricio Andrés RIBEIRO. Ética e sustentabilidade, em <www.ecologizar.com.br>. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Marcial Maçaneiro como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio – simbolicamente expressa pela proibição de “comer o fruto de determinada árvore” (cf Gn 2,16-17) – mostra com clareza que, nas relações com a natureza, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas14. Fundamentalmente, a ética ecológica quer superar a divisão radical entre humanidade e natureza – com a primeira dominando o meio-ambiente pela crescente tecnicização; e a segunda separando-se na direção de uma preservação sem nenhuma incidência humana, como se o homem não fizesse parte, também ele, da natureza. Esta cisão conduz a extremos de mútua negação entre natureza e humanidade, esquecendo o princípio fundamental de que “todo homem está na natureza, e toda a natureza está no homem”15. Desde os anos noventa, representantes de várias religiões incluem sua assinatura à Convenção da Terra – um tratado inter-religioso para a segurança ecológica comum. Seus parâmetros servem de exemplo de como as religiões contribuem para a ética ecológica: Relação com a Terra – Todas as formas de vida são sagradas. Cada ser humano é uma parte única e integral da comunidade de vida da Terra e tem uma responsabilidade especial para cuidar da vida em todas as suas diversas formas. Por conseguinte: agiremos e viveremos de modo a preservar os processos da vida natural da Terra e a respeitar todas as espécies e os seus hábitats. Trabalharemos para evitar a degradação ecológica. Relação com os outros – Cada ser humano tem o direito a um ambiente saudável e a ter acesso aos frutos da Terra. Cada um também tem o dever contínuo de trabalhar para a realização desses direitos para as gerações presentes e futuras. Por conseguinte: interessados em que todas as pessoas tenham comida, abrigo, ar puro, água potável, educação e emprego, e tudo o que seja necessário para desfrutar de toda a dimensão dos direitos humanos – trabalharemos por um acesso mais justo aos recursos da Terra. Relação entre economia e segurança ecológica – Como a vida humana se baseia nos processos naturais da Terra, o desenvolvimento 14 JOÃO PAULO II, encíclica Sollicitudo rei socialis, n. 34. 15 Edgar Morin, apud Alfredo PENA-VEGA. O despertar ecológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 71. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 89 Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia econômico, para que seja sustentado, deve preservar os sistemas de apoio à vida da Terra. Por conseguinte: usaremos tecnologias protetoras do ambiente e promoveremos a sua disponibilidade às pessoas em todas as partes da Terra. Quando houver dúvidas sobre as consequências dos objetivos econômicos e das tecnologias sobre o ambiente, permitiremos uma margem extra para proteger a natureza. Governança e segurança ecológica – A proteção e a melhoria da vida na Terra exigem sistemas legislativos, administrativos e judiciais adequados, nos níveis local, regional, nacional e internacional. Para serem eficazes, esses sistemas precisam ter poder, ser participativos e estar baseados no acesso à informação. Por conseguinte: trabalharemos pela promulgação de leis que protejam o ambiente e promovam a sua observância através da ação educativa, política e legal. Avançaremos com políticas de prevenção, em vez de apenas reagirmos aos danos ambientais16. Notas finais Em tempos de crise ambiental – quando buscamos rever nosso lugar no planeta, na tentativa de educar ao cuidado ecológico a partir de motivações profundas – não podemos dispensar as religiões de sua contribuição: todos os saberes e âmbitos de responsabilidade humana são interpelados à cooperação interdisciplinar, internacional e interreligiosa, em benefício da vida humana e planetária. Nesse sentido, as religiões oferecem uma perspectiva de profundidade e de ética à percepção cultural, política e científica do mundo, com efeitos potencialmente benéficos: aproximação da física e da metafísica numa visão holística do mundo; integração do ignoto numa epistemologia que vai além da racionalidade instrumental; interação dos acervos técnicos e simbólicos educadores da humanidade; contribuição das religiões para uma ética planetária. Essas bases éticas e epistêmicas nos permitem tomar iniciativas mais eficazes de educação e gestão ambiental, inspirados no patrimônio das religiões. A partir daí tem-se organizado centenas de fóruns, parcerias 16 90 Convenção da Terra, apud Patrícia MISCHE; Melissa MERKLING (orgs.). Desafio para uma civilização global, op. cit., p. 454-455. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Marcial Maçaneiro e programas de ação, muitos dos quais com o apoio da UNEP – United Nations Environment Programme. Destacamos alguns: – Fórum Global de Líderes Espirituais e Governamentais sobre questões ambientais: Oxford (1988), Moscou (1990), Rio de Janeiro (1992) e Kyoto (1993). – Encontro sobre Ética Global de Cooperação das Religiões para as Questões Humanas e Ambientais: Chicago, 1993. – Seminário sobre Meio-Ambiente, Cultura e Religião: Teerã, 2001. – Simpósio Internacional sobre as Religiões e a Água: Amazonas (Brasil), 2005. – Seções do Parlamento das Religiões Mundiais sobre questões ambientais: Chicago (1993), Barcelona (1994), Melbourne (2009). Desse modo, as narrativas eco-religiosas (com seus emblemas e valores) contribuem para a epistemologia complexa de estatuto dinâmico e interdisciplinar, atenta à ética e promotora do conhecimento integral. Não são esses os componentes de uma efetiva Ecologia de Profundidade (Deep Ecology), capaz de educar consciências e motivar práticas sustentáveis? Além dos governos e dos cientistas, cabe também aos líderes religiosos – pessoal e institucionalmente – aprofundar suas perspectivas e ingressar na grande rede de iniciativas pelo bem da humanidade e da Terra. Referências BENTO XVI. Encíclica “Caritas in veritate”. São Paulo: Paulinas, 2009. BOCCHI, Giancarlo; CERUTI, Mauro. La sfida della complessità. Milano: Feltrinelli, 1985. BOFF, Leonardo. Princípio da compaixão e cuidado. Petrópolis: Vozes, 2001. CERUTI, Mauro; BOCCHI, Giancarlo; MORIN, Edgar. Un nouveau commencement. Paris: Seuil, 1991. DANSEREAU, Pierre. Ecologia humana. Apud Mauricio Andrés RIBEIRO. Ética e sustentabilidade. Disponível em: www.ecologizar.com.br. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 91 Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia GORE, Al. A Terra em balanço – ecologia e o espírito humano. São Paulo: Gaia, 2008. HAERING, Bernhard; SALVOLDI, Valentino. Tolerância – por uma ética de solidariedade e paz. São Paulo: Paulinas, 1995. JOÃO PAULO II. Encíclica “Sollicitudo rei socialis”. São Paulo: Paulinas, 1988. KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial. São Paulo: Paulinas, 2001. LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2006. LOVELOCK, James. Gaia – Cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006. MISCHE, Patricia; MERKLING, Melissa (orgs.). Desafio para uma civilização global – diálogo de culturas e religiões. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. MORIN, Edgar. Science avec conscience. Paris: Fayard, 1982. _____. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: EuropaAmérica Publicações, 1984. _____. Introduction à la pensée complexe. Paris : ESF, 1990. PENA-VEGA, Alfredo. O despertar ecológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados – Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SANTOS, Edson Fabiano dos. Religiões de matrizes africanas. Rio de Janeiro: CEAP, 2007. Endereço do Autor: Faculdade Dehoniana Caixa postal 128 12010-970 Taubaté, SP 92 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: O tema central das religiões bíblicas é a Aliança sagrada que fundamenta a fé e a ética, reveladas por Deus. Começando com a instituição da antiga Aliança no Sinai, e continuando com a nova Aliança de Jeremias, surge uma inovação com a nova e eterna Aliança de Cristo. A novidade está no Mediador divino e, na dimensão universal, com o papel da Igreja em função do Reino de Deus. O capítulo final desenvolve o assunto do meio ambiente como âmbito de convivência dos fiéis e dos cidadãos da sociedade civil num desafio de superar o indiferentismo religioso e reverter o dinamismo da violência. Abstract: The central theme of the biblical religions is the sacred covenant as the basis of faith and ethics, revealed by God. Beginning with the institution of the old covenant at Sinai and continuing with the new covenant of Jeremiah, an innovation is introduced with the new and eternal covenant of Christ. The novelty consists in the divine mediator and in the universal dimension, which is carried on by the Church due to its service for the benefit of the Kingdom of God. The final chapter develops the subject of the environment of the faithful and the citizens of civil society facing the challenge to overcome religious indifferentism and to reverse the spiral of violence. Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada Luis Stadelmann, SJ* * O autor, Doutor em Língua e Literatura Semítica, Cincinnati, e Mestre em Ciências Bíblicas, Roma, é Professor no ITESC. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 93-106. Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada Introdução Tanto o judaísmo como o cristianismo insiste seguidamente sobre o lugar central da Aliança sagrada, cuja essência constitui a religião bíblica, incorporada depois na celebração litúrgica. Nela os rituais e as instituições estão relacionados entre si e expressam a fé em Deus como Ser Absoluto pessoal, moral e exclusivo. Em outras palavras, a presença de Deus não era um assunto da categoria da universalidade das verdades e dos valores absolutos e autônomos, mas da revelação divina no contexto da religião judaico-cristã1. Os fiéis, agraciados com a relação estreita com Deus, concretizaram tal relação fundamental constitutiva na história, nos espaços diversos da vida em convivência social, e traduziram-na em variadas formas de solidariedade, em conformidade com regras morais, transmitindo-a em múltiplas estruturas religiosas, aplicando-a na organização dos habitantes, não propriamente em grupos de interesses afins e tendências homogêneas, mas em comunidade de fé e comunidade ética. Não é de admirar-se, pois, que a instituição da Aliança divina tenha inspirado o lema da “Fraternidade e Meio Ambiente”, para a vivência eclesial promovida pela Campanha da Fraternidade de 2011. O tema da ecologia é muito atual nos dias de hoje, tanto na preservação da flora e fauna, em seu habitat, como frente aos problemas causados pelo aquecimento global bem como diante da crescente demanda de energia para suprir o refluxo dos recursos naturais do modelo progressista de desenvolvimento urbano e industrializado. Não menos desafiante que a ecologia ambiental é a preocupação com a defesa da ecologia humana, gerando implicações eclesiais na integração social dos fiéis na comunidade cristã. Sua incorporação tem por finalidade o desempenho da nobre missão de se tornarem portadores dos dons salvíficos para todos os povos, e de servirem como paradigma de salvação à humanidade. Para solucionar os graves problemas do nosso tempo, propomos uma abordagem de temas relevantes da Bíblia, capazes de abrir-nos à criatividade de nossa iniciativa. 1 94 Diversos tipos de religião: 1º religiões de integração (povos primitivos, siberianos, ameríndios, indígenas brasileiros, oceânicos, australianos, africanos); 2º religiões de servidão (antigo Egito, Mesopotâmia, indo-europeus: celtas, eslavos, germanos, gregos, romanos, semitas: cananeus, antiga China, Japão, astecas, mayas, incas); 3º religiões de libertação (de Mani, gnosticismo, antiga Índia, hinduísmo, budismo, jainismo, budismo chinês, budismo japonês, budismo tibetano, confucionismo); 4º religiões de salvação (masdeísmo, judaísmo, cristianismo, islamismo). Cf. W.O. Piazza, Religiões da Humanidade, Ed. Loyola, S.Paulo, 2a. ed., 1991. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Luis Stadelmann, SJ 1 A instituição da antiga Aliança no Sinai (Ex 19-24) A “Aliança” sagrada é uma das duas colunas da religião de Israel, e tem sua origem na revelação de Deus ao Povo Eleito no monte Sinai2. Igualmente, a outra coluna é a “Eleição” divina, dando origem à comunidade consagrada a Deus: “Tu és um povo consagrado ao Senhor, teu Deus. O Senhor teu Deus te escolheu dentre todos os povos da terra para seu povo particular” (Dt 7,6). Neste texto da revelação bíblica encontramos a origem e finalidade do Povo Eleito, incumbido de servir de paradigma da atuação de Deus para outros povos: Entre as nações se comentava: “O Senhor fez por eles maravilhas”. Maravilhas o Senhor fez por nós, e ficamos jubilosos (Sl 126,2-3). No NT se alarga o âmbito da atuação de Deus para o mundo inteiro, pela colaboração dos cristãos como instrumento de mediação da salvação divina. Cabe-lhes exercer a nobre tarefa de portadores de dons salvíficos para toda a humanidade (Mt 28,19). No NT (1Cor 3,9) consta a proposta que Deus faz às comunidades de fé para cooperarem com Ele na obra da redenção3. A característica da Aliança sagrada é fundamentar a relação entre Deus e seu povo pelos laços de amizade, e não por servidão, como entre os povos pagãos em sua veneração do deus tutelar4. A finalidade da Aliança sagrada é de mediação da salvação divina dentro de dois âmbitos: na comunidade de fé e na comunidade ética. Sua vigência é perene para os fiéis do AT e do NT, mas admite uma atualização quanto ao uso dos meios, dos mediadores e das mediações na História da Salvação. Em 2 É importante notar que os livros históricos e proféticos da Bíblia mencionam as montanhas ao sul da Palestina (Sinai) como a pátria da fé em Javé; cf. E. Gerstenberger, Teologias no AT – Pluralidade e sincretismo da fé em Deus no AT. (Trd. de N. Kilpp), Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2007, p. 171. Destarte, a religião do AT foi revelada fora do território do antigo Israel. 3 A função da “Eleição” (vocação) divina na religião do Povo Eleito foi valorizada por W. Zimmerli, Grundriss der alttestamentlichen Theologie, Kohlhammer, Stuttgart, 1972, p. 35 ‘Die Erwählung Israels’, p. 35-39, mas foi descartada na teologia do AT por C. Westermann, Fundamentos da Teologia do AT, Ed. Academia Cristã, S. Paulo, 2005. 4 Entre os povos pagãos, desde a época mais remota até o presente, nunca se ouviu dizer que um deus tutelar tivesse feito uma “Aliança” com seu povo. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 95 Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada outras palavras, não basta ter fé em Deus, é importante, também, acolher os meios do encontro d’Ele conosco. É de notar que a Aliança do Sinai estava associada, posteriormente, a uma religião ligada ao nacionalismo judaico. Entretanto, não é o direito de cidadania que garante aos fiéis o benefício da Aliança sagrada, pois essa não se adquire por nascimento, nem por herança, nem por osmose, mas por um ato de adesão pessoal a Deus, a fé. Aliás, o Templo, a cidade de Jerusalém, o sacerdócio e o culto religioso, tinham função assessória para canalizar as bênçãos divinas às respectivas áreas de seu alcance. Além disso, é bom lembrar que a Aliança sagrada não se reduz a uma ideia nem é mero conteúdo conceitual, cuja relevância deixaria de ser virtual, desde que a mente humana começasse a pensar nisso. Pois a eficácia dessa Aliança torna-se atual, toda vez que for ratificada pelo sacrifício oferecido na liturgia da comunidade de fé5. 2 A instituição da nova Aliança em Jeremias (Jr 31,31-34) A inovação na instituição da Aliança sagrada pelo profeta Jeremias foi o desafio de renovar a vivência da religião javista de Israel, por ocasião da reforma deuteronomista promovida pelo rei Josias (em 622 a.C.). A situação política da Palestina estava muito conturbada por causa da queda do domínio assírio, no antigo Oriente Médio (em 627 a.C.), e a expansão do Império Babilônio para a Palestina, ameaçando a independência territorial do Reino de Judá. O avanço da hegemonia pagã representava sério perigo à sobrevivência da religião do Povo Eleito, ameaçada de ser apagada do mapa, se não pudesse integrar os fiéis do antigo Reino do Norte com os do Reino de Judá, para formarem uma frente unificada entre as forças de resistência ao culto dos outros deuses. Pois o antigo Reino do Norte de Israel foi extinto na conquista do país pelos assírios (em 721 a.C.), e grande parte da população foi exilada para Mesopotâmia e a Média6. Entretanto, essa integração só teria êxito se o princípio de coesão fosse mais abrangente e menos político, e estivesse inserido na tradição religiosa de Israel. Nessas condições, o profeta Jeremias empenhou-se 96 5 Veja-se o rito de ratificação da nova e eterna Aliança de Cristo do NT, que se celebra em cada Missa. 6 Referências à deportação e ao exílio de israelitas constam na Bíblia (2Rs 17,6; 18,11). Dez das 12 tribos do Povo de Israel deixaram de existir e se perderam nas brumas do passado. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Luis Stadelmann, SJ na busca de uma solução do dilema e encontrou na instituição da “Aliança” sagrada o dinamismo transcendente da fé, nos moldes da tradição israelita. Desde o início, a Aliança veio a ser uma das duas colunas da religião de Israel, e tem sua origem, por revelação divina, no monte Sinai. A finalidade da Aliança sagrada é de mediação da salvação divina dentro de dois âmbitos: na comunidade de fé e na comunidade ética. Sua validade é perene para os fiéis do AT e do NT. Em outras palavras, não basta ter fé em Deus: é importante, também, acolher os meios de encontro d’Ele conosco. É bom lembrar o fato de que a Aliança do Sinai foi incrementada, no período monárquico, com elementos cultuais encontrados também em religiões ligadas ao Estado. Enquanto competia ao Estado conceder o direito de cidadania aos israelitas, não cabia às instâncias do governo civil outorgar o benefício da Aliança sagrada, já que essa se adquire por um ato de fé em Deus como autor da Aliança. O teor da nova Aliança de Jeremias contém um elemento inovador, que lhe dá um dinamismo que ultrapassa a antiga: Um dia chegará – oráculo do Senhor –, quando hei de fazer uma nova Aliança com a casa de Israel e a casa de Judá. 32 Não será como a aliança que fiz com seus pais quando pela mão os peguei para tirá-los do Egito. Essa aliança eles quebraram, mas continuei senhor deles – oráculo do Senhor. 33 Esta é a aliança que farei com a casa de Israel a partir daquele dia – oráculo do Senhor: colocarei a minha lei no seu coração, vou gravá-la em seu coração; serei o Deus deles, e eles, o meu povo. 34 Ninguém mais precisará ensinar seu irmão, dizendo-lhe: “Procura conhecer o Senhor!” Do menor ao maior, todos me conhecerão – oráculo do Senhor. Já terei perdoado suas culpas; de seu pecado nunca mais me lembrarei. 31 A novidade da Aliança tem dupla dimensão, pois se trata do seu valor perene e da finalidade de substituir a antiga Aliança do Sinai. É que a antiga tornou-se ineficaz e, por isso, uma nova Aliança precisava ser estabelecida para vincular a comunidade de fé com Javé, após o desaparecimento das estruturas do Estado (Reino do Norte e do Sul), do governo monárquico de Davi, da nação (de Israel), do Templo (o santuário nacional) e da cidade de Jerusalém (a sede do governo central), após a dissolução do Reino de Judá. Doravante haveria referência a Sião, por ser o centro litúrgico e lugar do altar dos holocaustos (Jr 31,6-12): lá os sacerdotes oficiariam a liturgia sagrada, ratificando a Aliança (Jr 31,14). Encontram-se aí os elementos de uma reEncontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 97 Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada ligião viva, baseada na liturgia do sacrifício e na instituição do sacerdócio oficiando nas celebrações de ratificação da Aliança sagrada, onde a presença de Deus é atuante na comunidade de fé. A iniciativa de substituir a antiga por uma nova Aliança é de Javé e não de uma manobra política com laivos de religiosidade ou preferência humana. No futuro, Javé agirá diretamente sobre o coração do homem (Jr 31,33) sem consultar preferências pessoais nem responder a objeções de consciência. A Lei divina não será mais gravada sobre tábuas de pedra como regras extrínsecas, mas sobre o coração humano, como normas assumidas interiormente, sem que se tenha de ensinar (v.32-34). Notável é o novo conhecimento de Deus, porque está baseado na experiência do perdão dos pecados7 e na expressão do louvor de Deus. Disso resulta uma nova pedagogia de ensino, pois não se precisa de outros meios externos, como, p. ex., o ensino dos “preâmbulos da fé” ou de uma “teologia apologética” com argumentos sobre a existência de Deus (v.34). Permanecendo, todavia, completamente nacional, a religião será, pois, personalizada. Vale dizer que os fiéis estarão inspirados pela moção do Espírito de Deus que mora no coração deles. Não depende da imposição autorizada dos mestres da religião no ensino da fé em Javé. Entretanto, não se dispensa jamais o papel da comunidade de ensinar o conhecimento de Deus à luz da revelação, já que não é possível substituí-la por uma espécie de intuição humana, ou por ideias inatas surgindo espontaneamente do subconsciente. Na verdade, Deus tem muitas maneiras de manifestar-se à nossa alma, nunca, porém, por meio de veleidades da psique ou impulsos do capricho, ou ainda, por tendências sublimadas da natureza humana. A inspiração divina age sobre nossas faculdades superiores (intelecto e vontade), pois fomos criados à imagem e semelhança de Deus8. Interessa-nos também esclarecer o significado do verbo “personalizar”, porque disso depende a origem de virtualidades do tipo intimista ou da experiência pessoal, cujo epicentro se encontra na pessoa definida, em relação com a autoconsciência. Nela se manifesta a experiência da presença de Deus, através da voz da consciência, no coração do indi- 98 7 Com base na experiência de reconciliação com Deus foi instituída a “liturgia penitencial”, com seus nove elementos constitutivos, dando origem aos Salmos penitenciais, (Sl 6; 32; 38; 51; 102; 130; 143), cf. L. Stadelmann, Os Salmos: Comentário e Oração, Ed. Vozes, Petrópolis, 2001, p. 44-46. 8 Esta hendíadis associa duas dimensões de autotranscendência do homem: “imagem” (hebr.: şelem), de ordem natural, i.e. intelecto, e “semelhança” (hebr.: demut), de ordem sobrenatural, i.e. graça santificante.Daí que os seres inteligentes são dotados do amor preferencial de Deus, excluindo os seres do mundo animal que estão privados de inteligência. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Luis Stadelmann, SJ víduo (prevenindo, encorajando, inculpando ou felicitando), e através da expressão do louvor de Deus (pelas obras da criação e providência divina na História da Salvação). Essa presença divina não é genérica, como intuição a partir da doutrina da onipresença de Deus, mas resulta da vivência da fé na celebração litúrgica9. A vantagem da nova Aliança consiste em propiciar aos fiéis uma nova forma de acesso à presença de Deus junto ao povo: sem Templo, sem monte Sião, sem Jerusalém, sem o respaldo das estruturas de um Estado. Mas o que realmente importa é que deve haver uma religião com práticas específicas de adoração de Deus, sem imiscuir ritos de civismo judaico. Entretanto, essa nova Aliança precisava ser ratificada por um sacrifício oferecido num rito religioso. Por isso, em qualquer conjuntura política, social ou cultural, nunca deveria faltar o ato litúrgico da oferta do sacrifício em honra de Deus e em reconhecimento pela Aliança sagrada. Apesar da destruição do Templo pelos babilônios (em 587 a.C.), continuava o oferecimento de sacrifícios sangrentos como revela a romaria de um grupo de fiéis, sobreviventes de Israel e Judá, vindos de Siquém, Silo e Samaria, para a oblação de oferendas no altar em Jerusalém (Jr 41,5). Embora houvesse vários lugares de culto alhures, não se oferecia aí, mas somente em Sião, o sacrifício de ratificação da Aliança. 3 Nova e eterna Aliança de Cristo A dimensão universal da obra de redenção na História da Salvação exige um Mediador, que seja ao mesmo tempo Homem e Deus atuando no mundo. É preciso, porém, instaurar uma nova hermenêutica da universalidade que tenha alcance retroativo, a fim de incluir, no desígnio salvífico de Deus, todas as gerações anteriores à era cristã10. Na Carta aos Hebreus se confirma essa dimensão em termos de palavra, de verdade e mensagem de salvação: os dons salvíficos para a humanidade vêm Em virtude da nova Aliança, revelada por Jeremias, foi instituída a liturgia de “renovação da Aliança” (Sl 50; 81; 95), após o Exílio: cf. L. Stadelmann, op. cit., p. 38. 10 No Credo da Igreja Católica está incluído o artigo de fé a respeito da descida de Cristo ressuscitado à mansão dos mortos, indicando-se inclusive no texto o prazo de três dias após a morte, o sepultamento e a descida (Mc 9,31). Ora, o tríduo de eventos post mortem não se refere a um tempo intermédio (como se Jesus precisasse descansar em paz após os sofrimentos da agonia antes de ressuscitar), mas aponta para o anúncio da redenção às almas dos justos (1Pd 3,18-22). É que os frutos da redenção aplicam-se não só ao presente e ao futuro, mas também ao passado. Com efeito, o período de três dias representa, na Bíblia, um prazo salutar, haja vista o resgate do profeta Jonas do ventre da baleia após três dias (Jn 2,1.11), e a intervenção salvífica de Deus em favor dos israelitas, após três dias, como remate da invasão assíria (Os 6,3). 9 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 99 Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada através dos cristãos (Hb 11,40). Em outros termos, a entrada dos justos no céu se deve às orações, sacrifícios e vida empenhada no compromisso dos cristãos no mundo. Esta verdade não pode ser encarecida demais na abordagem das respostas plurais para o sentido da vida eterna, e precisa da contribuição da teologia para aprofundar sua repercussão na história11. O gesto culminante de todos os gestos de doação e ações salvíficas de Cristo em prol da redenção da humanidade foi o sacrifício cruento na cruz. Mas, para ter eficácia, em todas as épocas da história, era preciso que Cristo instituísse também o modo incruento do sacrifício de ratificação da Aliança. Quanto ao sacramento da Eucaristia, celebrada na Última Ceia, ressalta-se com este sacramento a participação nos dons sagrados da Aliança. São os frutos da redenção que redundam em benefício dos fiéis, em virtude dos méritos do sacrifício de Cristo. A diferença essencial entre o sacrifício e a Eucaristia defronta-se com paradoxos e surpresas que são da essência da obra de salvação. É que o sacrifício não se restringe ao aspecto negativo, nem a Eucaristia está relacionada apenas ao encontro de anseios positivos12. É só pensar quanto nos preocupa o estado de pecado e a miséria humana, e quanto se almeja o enriquecimento com os dons divinos. Na verdade, os dois elementos da instituição salvífica estão intimamente ligados, visto que é durante o sacrifício da Missa que se consagra a vítima que nós comungamos. Tal evento marcante na vida de Cristo é também o momento da confirmação do testamento sobre a redenção de toda a humanidade. É crucial para entender a importância desse evento, pois jamais se permitiu que fosse desvirtuado em mero simbolismo e fosse transmitido às gerações futuras que o converteriam em rito simbólico, senão se tornaria apenas uma referência virtual. O que se procurava implantar no cristianismo, desde o início, era o “memorial” (em grego αναμνησις − anamnesis) do sacrifício de ratificação da Aliança entre Deus e a 11 Se faltar a explicação teológica da ação retroativa da redenção cristã, surgem crenças espúrias e totalmente fictícias. Basta mencionar um dos equívocos em voga na “Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias” (mórmons), pondo em prática a crença na redenção retroativa dos antepassados entre os mórmons mediante o mero cadastramento das genealogias de famílias e indivíduos nos anais da seita, arquivados em galerias subterrâneas nas Montanhas Rochosas dos EUA. 12 100 É muito elucidativa a invocação que precede a participação na Eucaristia: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo!” Pois a miséria humana é o motivo mais forte para Cristo aproximar-se dos que precisam da salvação divina. Por isso se acrescenta o ato de fé: “serei salvo”. Trata-se da salvação e junto com este dom recebemos de Deus muitos dons que dEle pedimos (cura, ajuda, bens materiais, quando forem necessários à nossa salvação). Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Luis Stadelmann, SJ comunidade cristã. Ora, a anamnese diz respeito diretamente à glória de Deus, como Autor da Aliança, e ao mesmo tempo refere-se a Cristo como Mediador dessa Aliança13. Sempre é necessário lembrar que, desde o início da Igreja nascente, continua em vigor, entre as comunidades cristãs, a celebração da S. Missa com grande apreço pelo fruto espiritual. A razão determinante é o fato de que ali os fiéis participam de uma religião viva e, por isso, convergem com assiduidade para prestar a homenagem de louvor a Deus e haurir força, a fim de assumirem a nobre tarefa de irradiar os dons salvíficos para todos os homens. Aliás, quem não frequenta a celebração litúrgica não recebe os sacramentos, mas se beneficia de sua eficácia através dos participantes. Na verdade, a Aliança sagrada se ratifica nas comunidades cristãs da Igreja, e não de forma genérica entre os redimidos do Reino de Deus. A explicação baseia-se no princípio da visibilidade, em contraste com a vivência da fé sem religião. Pois a mediação dos dons salvíficos, e o paradigma de salvação no mundo, precisam de uma mediação visível para realizar a obra da salvação na história, isto é, a sagrada liturgia, os sacramentos, a espiritualidade cristã vivida pelos fiéis, os ministérios eclesiais. Além disso, o lugar privilegiado da presença atuante de Deus é a celebração da S. Missa, porque tanto o Autor como também o Mediador da Aliança sagrada encontram-se ali na comunidade cristã (Mt 18,20), tornando-se o sacramento central na vida das pessoas e das comunidades. A inovação na instituição da Aliança sagrada consiste na vinculação dos fiéis a Cristo, mediante a participação no sacramento da Eucaristia e não por meio da recordação de uma ideia que evoca a Última Ceia. Outro aspecto da novidade é sua duração eterna, porque os fiéis se tornam não só “filhos adotivos” em virtude da Aliança sagrada, mas também “herdeiros” e “co-herdeiros de Cristo” para sempre (Rm 8,15-17). A maneira legítima e válida de transmitir o sacramento da Eucaristia às gerações futuras, sem alteração da forma nem do conteúdo, era instituir sacerdotes ordenados pelo próprio Cristo. Esse ministério foi conferido aos doze apóstolos para exercerem o múnus sacerdotal no âmbito eclesial junto às comunidades cristãs, dando-lhes o poder de tornar presente ali a oferenda sacramental de Jesus Cristo. A própria fórmula da ordenação sacerdotal tem função litúrgica: “Fazei isto em memória de mim!” (1Cor 11,24-25). Não 13 O tema da “anamnese” é aprofundado por Joachim Jeremias que ressalta a relação com a glória de Deus, cf. Abendmahlsworte, Göttingen 1967. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 101 Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada se trata de executar meramente um rito sagrado14 como tal, que Cristo lhes mandou realizar, e sim, de celebrar o sacrifício memorial da Sexta-Feira Santa: “meu corpo que será dado por vós” e “meu sangue que será derramado por vós e por todos” (1Cor 11,24-25). É de notar o tempo do verbo no futuro, cuja tradução entrou em vigor no Concílio Vaticano II, suplantando a preferência pelo tempo presente, com base no argumento de que a ação litúrgica comemora uma ação com eficácia em todos os tempos. O Concílio visava ressaltar a atuação de Cristo dentro da História da Salvação marcada pela continuidade e descontinuidade. 4 A comunidade de fé como meio ambiente dos israelitas e cristãos A inovação da Bíblia é situar a Aliança sagrada no meio ambiente onde a comunidade de fé e a comunidade ética possam tornar visível a religião bíblica do AT e NT. É muito elucidativa a evocação das origens da fé em Javé entre os nômades semitas em contato com os trabalhadores egípcios nas jazidas de cobre na região de Timna, situada na rota das caravanas a caminho do Egito para a Arábia15. Entre os anseios de liberdade dos escravos, manifesta-se o apelo a Javé como libertador dos oprimidos. A solidariedade social entre gente oprimida passou-lhes a noção de um Deus que liberta da escravidão do Egito, e acompanha os fiéis em busca da liberdade. Existia também a estrada do mar que levava do delta do Nilo a Canaã16. Qualquer um dos caminhos oferecia grandes riscos à sobrevivência das caravanas de mercadores ou soldados marchando ao longo do mar. Mas a migração dos israelitas em busca da pátria não era uma utopia, já que fazia parte da fé na intervenção divina, pois Deus tinha “escolhido” seu povo para constituírem uma comunidade de fé por ocasião da celebração da Páscoa no Egito (Ex 12). A razão do Êxodo era dupla: a celebração da Páscoa em honra de Javé, fora do domínio de um deus pagão (Ex 5,1-3), e a libertação do Povo Eleito da escravidão (Ex 14). No caminho para a Terra Prometida, Deus realizou sua intervenção providencial em favor do seu povo por meio da proteção da vida em face da morte, em quatro situações de risco extremo: pela fome (Ex 16), pela sede (Ex 17,1-7); pelos inimigos (Ex 17,8-16), pela divisão interna 102 14 Veja-se o artigo de Jung Mo Sung, “Eucaristia: memorial ou rito sagrado”, em Convergência, Ano 43, Nº 411, Maio 2008, p.328-336. 15 Cf. E. Gerstenberger, op.cit., p. 171-177. 16 Cf. E. Zenger, O Deus da Bíblia. Estudo sobre os inícios da fé em Deus no AT, (Trd. de E.M. Pereira Glenck), Ed. Paulinas, S. Paulo 1989, p. 92-103. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Luis Stadelmann, SJ (Ex 18). Eram esses os fatores servindo de evidência e comprovação aos fiéis de que Javé era o Deus Altíssimo (‛eliôn) exercendo o poder divino (Sl 78,35), e não mera projeção das aspirações humanas. O período do duro itinerário do Êxodo, desde o Egito até a Palestina, durou quarenta anos (Nm 14,33), a duração de uma geração (Sl 95,10). O desgaste das forças vitais foi tamanho, que ninguém sobreviveu, senão os filhos da nova geração que adotaram o estilo de vida de seminômades ao entrarem na Palestina. A motivação de sua migração inspirava-se no anseio pela libertação da escravidão, buscando a liberdade do povo na Terra Prometida. Entretanto, eles eram ádvenas na Palestina, procurando o re-assentamento em meio a outras populações17. O único desafio era localizar as fontes de água às quais era facultado acesso para os novos povoados e os rebanhos. Era essa a conquista desses migrantes: terra para a convivência dos grupos sociais, e tolerância dos habitantes locais para levarem a vida sem hostilidade e agressão. Não é de admirar-se que, desde então, os israelitas evoquem os inícios de sua pátria como dádiva de Deus que lhes garantia a posse da Terra Prometida. De modo algum era isso objeto de uma utopia coletiva, e tampouco tornou-se um Éden ou Eldorado e muito menos um Shangri-lá18. Não era um reduto de seminômades ou migrantes apátridas, designados hapiru19 que defendessem, com unhas e dentes, o solo de sua conquista, mas desde sempre era dom de Deus, porque jurou dar a posse da terra a seu povo, pelo fato de ser “Terra do Senhor”, em hebr. ’ereş ’adonay (Os 9,3). A Terra Prometida era o habitat do Povo Eleito. Doravante, os israelitas tinham dois endereços: o país e a comunidade de fé. Os laços de pertença ao lugar de moradia davam-lhes sua identidade sociológica, e o direito de cidadania. Surge a pergunta pela razão de os israelitas se organizarem em tribos, clãs e famílias. A resposta é, em parte, sociológica, pelo fato de serem grupos com uma origem comum, mas com descendência de ancestrais distin17 As terras estavam ocupadas pelos amorreus, hititas, fereseus, cananeus, heveus e jebuseus (Ex 23,23), e por isso não havia uma alternativa senão infiltrar-se na região de Canaã ocupando as terras devolutas e os terrenos situados entre as áreas agrícolas e as bandas das estepes margeando o deserto. 18 A designação simbólica da Terra Prometida em termos de uma “terra que mana leite e mel” (Ex 3,8) tem o significado relacionado às condições de vida bastante precárias dando subsistência apenas a uma população de poucos habitantes e sem os recursos da agricultura, como era típico nas histórias dos Patriarcas e em épocas após a devastação pelas guerras. 19 Os hapiru eram migrantes apátridas em busca de emprego e não possuíam coesão social nem tradições religiosas, mas tinham uma analogia com esses grupos do Egito e da Mesopotâmia, cf. E. Gerstenberger, op.cit., p. 140-142. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 103 Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada tos configurando-os em unidades sociais coesas em torno de uma figura com autoridade reconhecida por todos. Era um aspecto da ecologia social que dava identidade à população israelita na Palestina. Na Bíblia acrescenta-se o fator de cunho religioso com a função de transmitir a bênção divina, significando a força da fecundidade, explicitada no Livro do Deuteronômio (Dt 28,4) em termos de bênção do ventre (filhos) e da saúde, bênção do rebanho (gado), e bênção da terra (colheita), acrescentada posteriormente, no período da vida sedentária. Havia uma norma comum para os cidadãos de exercerem uma atividade produtiva e não de mera subsistência em vista do ônus da assistência social aos membros de famílias carentes e aos deficientes. Pois o valor humanitário de uma sociedade se mede pelo auxílio aos familiares necessitados, e não meramente pela filantropia esporádica. Nos governos da Antiguidade não existia o ministério da assistência social. A divisão em tribos, clãs e famílias tinha o papel de dar o aval de pertença ao Povo Eleito somente àqueles que frequentavam o culto religioso e viviam de acordo com as exigências religiosas e éticas. A ecologia religiosa enfrentava o problema da pluralidade de deuses tutelares dos diferentes povos de Canaã, com sério perigo de contágio de suas crenças com a religião javista20. A reação não se fez esperar, pois surgiram os profetas que orientavam os israelitas na fidelidade à fé e ao desígnio de Deus na História da Salvação. O dinamismo na vivência da fé produziu a ecologia espiritual entre as comunidades de fé, perceptível ao longo dos séculos como fruto da reza dos Salmos na liturgia, e da espiritualidade vibrante na prática de uma religião viva. Para os judeus exilados em terras estrangeiras, impôs-se um novo critério de convivência desde o período do Exílio (587 a.C.). De modo algum se permitiu às comunidades seguir o lema Ubi bene, ibi patria (Cícero), visando um individualismo sem laços de pertença à família, parentela ou grupo social, à mercê de uma miscigenação sem identidade cultural e religiosa. Tampouco deveriam assumir uma atitude de rejeição exclusivista diante dos cidadãos do país, com o pretexto de criarem uma sociedade alternativa. Com efeito, a clarividência do profeta Jeremias foi providencial ao enviar uma carta aos judeus com a exortação: Construí casas e instalai-vos, plantai pomares e comei seus frutos. 6 Casaivos e gerai filhos e filhas, tomai esposas para os vossos filhos e dai as filhas em casamento, a fim de gerarem filhos e filhas; multiplicai-vos e não dimi5 20 104 Cf. E. Gerstenberger, op. cit., cap. 8.5: “A religiosidade popular” p. 309-313. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Luis Stadelmann, SJ nuais! 7 Procurai o bem-estar da cidade para onde vos deportei; rogai por ela ao Senhor, porque de seu bem-estar depende o vosso (Jr 29,5-7). Sua missão na vida era testemunhar o modus vivendi, típico dos fiéis do Povo Eleito, a fim de configurar sua inserção no mundo como paradigma de salvação para todos os povos. Era esse o lema das comunidades judaicas da diáspora (διασπορα)21. A característica de premência esteve presente desde o início da tradição bíblica, incentivando a configuração do meio ambiente segundo os parâmetros de uma ecologia abrangente de alcance pessoal e comunitária. Na atualidade, impõe-se novamente a ingente tarefa de redobrar os esforços para alcançar os objetivos autênticos e eficazes no mundo, já que forças deletérias estão atuando para transtornar o processo civilizatório dos povos por meio da destruição em massa, inspirada na violência22. Em pauta está o islamismo, inserido no rol das religiões de salvação, mas passando por uma transformação radical. É que o Islão foi sequestrado pelos grupos islâmicos fundamentalistas, deturpando-o em mera ideologia religiosa como meio de coação para mobilizar grupos fanáticos a serviço de uma causa. Os adeptos desse movimento se autodenominam como taliban, “estudantes”23, porque se concentram apenas nas passagens ultra-agressivas dos “versículos da Espada”, inseridos no Alcorão e ajuntando alguns parágrafos truncados do mesmo teor. Fora disso, os estudantes conhecem apenas uma coisa: a guerra. Imbuídos dessa mentalidade, têm diante de si o perfil de Alá como justiceiro e vingador. Os líderes são os “imames” semi-analfabetos, vindos das montanhas e infiltrando-se na cidade de Cabul, a capital de Afeganistão (em 1994)24. São esses os mestres do ensino islâmico, alterando, porém, profundamente, a própria tradição muçulmana, e mudando a religião de salvação, em religião de servidão, inspirada por uma só ideia: a ira de Alá. 21 Comunidades judaicas existiam não só na Mesopotâmia, mas também no Egito (em Elefantina), na Ásia Menor e alhures na região do Mar Mediterrâneo. Nas viagens apostólicas, Paulo Apóstolo teve inúmeros contatos com muitas comunidades judaicas. 22 A destruição das torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, em 11 de setembro 2001, ocasionou como que numa reação em cadeia outros atos terroristas pelo mundo todo. 23 O substantivo “estudante” em árabe é talib, mas no plural é taliban em “pachto”, a língua falada no Afeganistão, cujo tronco linguístico é composto de elementos semitas (árabe) e indo-iranianos (persa). Na língua persa, consta o plural do nominativo e do acusativo sempre com a mesma terminação “a”, por causa do sincretismo dos casos; não existe portanto o nominativo no plural talibun, como no árabe; cf. Roland G. Kent, Old Persian, Grammar, Texts, Lexicon, Ed. American Oriental Society, New Haven, 1961, § 254. 24 Cf. Frederick Forsyth, O Afegão, (Trd. de S. Gonçalves), Ed. Record, Rio de Janeiro – S. Paulo, 2007, p. 119. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 105 Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada A ideologia da revolta cresceu dentro do próprio país na luta contra a ocupação soviética, mas se estendeu principalmente para o Sudeste asiático e outros países, p.ex. Líbia, visando criar uma hegemonia mundial com o objetivo de acabar com a civilização ocidental e a cultura cristã. Ao fazer teologia inter-religiosa, os cristãos ficam abertos à influência de outras religiões. Isso ampliará nossos horizontes, preparando o caminho para um diálogo para dirimir as diferenças sem desconfiança e atar laços de fraternidade entre povos e culturas sob a ação de Deus. Os caminhos de encontro com Ele são dos mais variados, mas conduzem à Sua presença desde que as pessoas estejam motivadas por uma religiosidade que consegue transcender as limitações das metas intraterrenas. Conclusão O tema da Aliança sagrada é o complemento necessário à reflexão teológica da libertação, por acrescentar a “teologia do abraço” às situações de conflito. Pois opressores e oprimidos devem continuar vivendo juntos, na condição de vizinhos, e ambos precisam empenhar-se pela reconciliação. A categoria da Aliança sagrada é central nas religiões bíblicas e tem influência direta sobre o meio ambiente do mundo social. Por um lado, serve de unificação entre os fiéis sob a égide de Deus, estreitando os laços de fraternidade, e estendendo-se para a sociedade civil através de atitudes de solidariedade. Por outro lado, fora do âmbito da religião, é um pretexto para a exclusão de indivíduos e grupos sociais que não são dos “nossos”. Por isso, faltando o espírito de ecumenismo, surgem tendências de excluir os estranhos e até de abominar as diferenças. Surge então o desafio de mantermos nossa identidade em meio ao acréscimo das diferenças dos “outros”, que nos enriquecem. Num abraço mútuo, nenhum permanece o mesmo, porque os dois se engrandecem mutuamente pelo calor da presença amiga que o Espírito de Deus acalenta no coração25. Endereço do Autor: Colégio Catarinense Rua Esteves Júnior, 711 Cx. Postal 135 CEP 88015-130 Florianópolis, SC E-mail: [email protected] 25 106 O fruto da presença divina é a união fraterna sob a ação do Espírito de Deus, como ressoa no cântico: “Pois só quando vivemos unidos, é que o Espírito Santo nos vem”. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: O artigo apresenta uma síntese da terceira encíclica do papa Bento XVI, e aponta algumas de suas intuições, antes de apresentar uma breve conclusão. Na síntese, destaca-se a Introdução do documento papal, seguindo-se o conteúdo de seus capítulos: o primeiro, sobre a mensagem da Populorum Progressio, a encíclica social de Paulo VI; o segundo, sobre o desenvolvimento dos povos em nosso tempo, neste início do terceiro Milênio; o terceiro, sobre as relações entre fraternidade, desenvolvimento econômico e sociedade civil; o quarto, sobre o desenvolvimento dos povos, direitos e deveres, e o meio ambiente; o quinto, sobre a colaboração da família humana; o sexto, sobre o desenvolvimento dos povos e a técnica. Segue o que o autor chama as “intuições” da Encíclica, “verdadeira luz para nós, cristãos, e para a sociedade”. Entre elas, o fato de que, “do ponto de vista cristão, o progresso não depende só da promoção humana, do anúncio da fé e do amor de Cristo, mas, também, da esperança cristã, dom de Deus. Ela impede que nos contentemos com a construção do reino aqui e agora, e nos ajuda a reconhecer que somente em Deus se concretiza nosso desejo de felicidade”. Abstract: The paper presents a synthesis of the third of Pope Benedict XVI’s encyclicals, and points out some of its intuitions, before presenting a brief conclusion. In the synthesis, is emphasized the Introduction of the papal document, being followed by the content of its chapters: the first, about the message of Populorum Progressio, Paul VI’s social encyclical; the second, about the development of the nations in our time, in this beginning of the third Millennium; the third, about the relations between fraternity, economical development and civil society; the fourth, about the development of the peoples, rights and duties, and the environment; the fifth, about the collaboration of the human family; the sixth, about the development of the peoples and technique. Then follows what the author calls the “intuitions” of the Encyclical, “true light for us, Christians, and for society”. Among them, the fact that, “from the Christian point of view, progress depends not only from the human promotion, from the announcement of faith and love of Christ, but also from the Christian hope, gift of God. It prevents that we be satisfied with the building of the Kingdom now and here, and helps us recognizing that only in God is fulfilled our wish of happiness”. Caritas in veritate* Murilo S.R.Krieger, SCJ** * Esta apresentação da encíclica Caritas in Veritate foi feita no decorrer da Semana Teológica do ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, realizada dias 20 a 24-09-2010, com o tema geral “Teologia, Economia e Ecologia”. À apresentação, propositalmente esquemática, seguiu o diálogo e debate com os participantes. ** O autor, Arcebispo de Florianópolis, SC, até 12-01-2011, foi nessa data nomeado Arcebispo de Salvador, BA, e Primaz do Brasil. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 107-116. Caritas in veritate No dia 29 de julho de 2009, o Papa Bento XVI presenteou os bispos, presbíteros e diáconos, pessoas consagradas, fiéis leigos e todos os homens de boa vontade, com sua terceira encíclica: Caritas in veritate. Eleito a 19 de abril de 2005, tendo iniciado seu pontificado no dia 24 de abril, Bento XVI havia assinado sua primeira encíclica – Deus caritas est – poucos meses depois de sua posse (25.12.2005); a segunda – Spe salvi –, a 30 de novembro de 2007. Deus caritas est nos apresentou o centro da fé cristã; Spe salvi veio nos recordar que “é na esperança que fomos salvos”; Caritas in veritate aborda temas sociais e econômicos, procurando “aprofundar alguns aspectos do desenvolvimento integral de nossa época, à luz da caridade na verdade” (Bento XVI, Angelus, 05.07.09). Depois de apresentar uma síntese desta encíclica, apontarei algumas de suas intuições e uma breve conclusão. A) Síntese da Encíclica 1 Introdução A encíclica Caritas in veritate começa lembrando que “a caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com sua vida terrena e, sobretudo, com sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (1). “A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja” (2); ela é tudo, porque Deus é caridade; “é o dom maior que Deus concedeu aos homens” (id.). Mas a caridade deve, necessariamente, estar unida à verdade. “Sem a verdade, a caridade cai no sentimentalismo” (3). Como a justiça é o primeiro caminho da caridade, “não posso ‘dar’ ao outro do que é meu, sem antes ter-lhe dado aquilo que lhe compete por justiça” (6). “Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum” (7). Demonstramos nosso amor pelo próximo, trabalhando em prol do bem comum. O Papa Paulo VI, em 1967, ao publicar a encíclica Populorum Progressio (“a Rerum Novarum da época contemporânea”), lembrou-nos que o anúncio de Jesus Cristo “é o primeiro e o principal fator de desenvolvimento” (8). A História já nos demonstrou que, para um autêntico desenvolvimento humano, não basta a mera partilha dos bens e recursos: é necessário o amor. “A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer” ao homem e à mulher de todos os tempos (9); tem, sim, critérios que são necessários para a construção de uma sociedade que corresponda à dignidade da pessoa humana. 108 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Murilo S.R. Krieger, SCJ Cap. I – A mensagem da Populorum progressio Quarenta anos depois da publicação da Populorum progressio, Bento XVI nos recorda duas grandes verdades apresentadas pelo Papa Paulo VI naquela encíclica: 1ª) “a Igreja inteira, em todo o seu ser e agir, quando anuncia, celebra e atua na caridade, tende a promover o desenvolvimento integral do homem” – por isso, é essencial para a Igreja poder agir num regime de liberdade; 2ª ) “o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões” – por isso, “sem a perspectiva de uma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro” (11). O que se chama hoje de Doutrina Social da Igreja é fruto do que foi transmitido pelos Apóstolos aos Pais da Igreja e, depois, acolhido e aprofundado pelos pensadores cristãos (cf. 12). Essa Doutrina ilumina os novos problemas que vão aparecendo. Foi nessa linha que a Populorum progressio reafirmou a exigência imprescindível do Evangelho para a construção da sociedade segundo a liberdade e a justiça, na perspectiva de uma civilização animada pelo amor (cf. 13). O ser humano está constitutivamente inclinado para “ser mais” (14); um desenvolvimento autêntico promove todos os homens e o homem todo (cf. 18). A causa principal do subdesenvolvimento é a falta de fraternidade: “a sociedade cada vez mais globalizada nos torna vizinhos, mas não nos faz irmãos” (19). Numa sociedade sem Deus, o desenvolvimento é “desumanizado”. Cap. II – O desenvolvimento humano em nosso tempo No segundo capítulo de Caritas in veritate, Bento XVI analisa o desenvolvimento humano em nosso tempo. O objetivo exclusivo do lucro “sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e a criar pobreza” (21). São distorções do desenvolvimento: uma atividade financeira muito especulativa, os fluxos migratórios e “a exploração desregrada dos recursos da terra”. As crises nos obrigam a projetar novos caminhos: há necessidade de “uma nova síntese humanista”. Lembrava o Papa João Paulo II: “cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades” (Sollicitudo rei socialis, 1987, n. 28) e nascem novas formas de pobreza. Em nosso tempo, os problemas se multiplicam: países ricos protegem, por vezes excessivamente, suas propriedades intelectuais, especialmente no campo sanitário (cf. 22); o Estado sente-se limitado pela “crescente mobilidade dos capitais financeiros” (24); a segurança social está ameaçada pela desregulamentação do mundo do trabalho; as organizações sindicais têm dificuldade de representar os direitos dos trabalhadores; aumenta a mobilidade laborial; Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 109 Caritas in veritate o desemprego “provoca aspectos novos da irrelevância econômica do indivíduo”. Ora, não se pode perder de vista que “o primeiro capital a preservar é o homem, a pessoa, na sua integridade” (25). No plano cultural, há um duplo perigo: de um lado, o do ecletismo cultural, no qual as culturas são vistas como substancialmente equivalentes, o que favorece o relativismo; de outro, o do nivelamento cultural, isto é, a homogeneização dos estilos de vida (cf. 26). Apesar de todo o progresso alcançado pelo ser humano, paira sobre muitos países o desafio da fome, fruto não tanto da escassez de alimentos, mas da “falta de um sistema de instituições econômicas que seja capaz de garantir um acesso regular e adequado... à alimentação e à água” (27). Falta, na verdade, a consciência do respeito pela vida, manifestada, também, sob outras formas: o favorecimento do aborto e de toda uma mentalidade antinatalista, e a prática da eutanásia. Ora, “a abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento” (28). Não há desenvolvimento sem o respeito à liberdade religiosa, sem a erradicação do terrorismo e sem o cuidado com “o estado de saúde ecológica da terra”. Países que promovem o ateísmo tiram de seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenharem no desenvolvimento humano integral (cf. 29-33). Cap. III –Fraternidade, desenvolvimento econômico e sociedade civil O ser humano foi feito para o dom. A fé nos ensina, porém, que não pode ser ignorado o “pecado das origens”, que inclina o homem para o mal e o leva a errar em diversos campos, inclusive no econômico. Para que o desenvolvimento econômico, social e político seja autenticamente humano, precisa dar espaço ao “princípio da gratuidade” (34). O mercado é uma instituição econômica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores econômicos, que usam o contrato como regra de suas relações e trocam bens e serviços para satisfazer carências e desejos. Se não levar em conta a solidariedade, o mercado não poderá cumprir plenamente sua função econômica. Os pobres não podem ser considerados um fardo, mas um recurso, mesmo do ponto de vista econômico. É errado pensar que há necessidade de pobres e subdesenvolvidos para que o mercado funcione melhor. O mercado tem necessidade, sim, de “energias morais”, que supõem uma visão que vai muito além da economia (cf. 35), pois leva em conta o bem comum. Não é, pois, o mercado que é danoso, mas o ser humano, quando não lhe dá uma orientação correta. Também “nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da ativi- 110 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Murilo S.R. Krieger, SCJ dade econômica normal” (36). Cada decisão econômica tem consequências de caráter moral (cf. 37). A solidariedade consiste em que todos se sintam responsáveis por todos. Para superar o subdesenvolvimento é necessária uma “progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de atividade econômica caracterizadas por cotas de gratuidade e de comunhão” (39). A gestão de uma empresa, por exemplo, não pode levar em conta unicamente o interesse de seus proprietários, mas também o daqueles que contribuem para ela, particularmente os trabalhadores (cf. 40). O Estado tem um papel importantíssimo e imprescindível na economia, mesmo e particularmente numa economia globalizada. Por sinal, “a globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela”. O ideal é uma globalização em termos de relacionamento, comunhão e partilha (cf. 42). Cap. IV –Desenvolvimento dos povos, direitos e deveres, ambiente “A solidariedade universal é para nós não só um fato e um benefício, mas também um dever” (Paulo VI, PP, 17). Não temos apenas direitos, mas também deveres. Hoje, infelizmente, muitos querem ver seus direitos reconhecidos, mas ao mesmo tempo, direitos elementares e fundamentais são violados e negados a boa parte da humanidade (cf. 43). Aos que consideram o aumento da população como a causa principal do subdesenvolvimento, é necessário lembrar que aumentam as crises em países com uma preocupante queda da natalidade. A Igreja lembra que os direitos humanos devem ser respeitados também no uso da sexualidade. Trata-se de um campo que não pode ser reduzido a mero fato hedonista. “A abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e econômica” (44): grandes países superaram seus problemas graças à capacidade de seus habitantes. Por isso, é importante propor às novas gerações a beleza da família e do matrimônio. A economia, que é um setor da atividade humana, tem necessidade da ética para seu correto funcionamento. A Doutrina Social da Igreja, que se baseia no “princípio da centralidade da pessoa humana” (47), muito contribui para a elaboração das normas éticas nesse campo, ao lembrar duas certezas: 1ª) fomos criados à imagem e semelhança de Deus; 2ª) temos uma dignidade inviolável; por isso, as normas morais têm um valor transcendente (cf. 45). Ao lado de empresas que têm por finalidade o lucro e organizações que não buscam o lucro, estão surgindo empresas intermediárias – isto é, empresas que valorizam a economia de comunhão. Elas não excluem o lucro, mas o consideram “instrumento para realizar finalidades humanas Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 111 Caritas in veritate e sociais” (cf. 46). Além disso, fazem com que as pessoas e os povos a serem beneficiados se tornem protagonistas de seu desenvolvimento. Não se pode pensar em desenvolvimento sem levar em conta a dimensão ecológica, já que “a natureza é expressão de um desígnio de amor” (48): nesse campo, temos uma grave responsabilidade para com os pobres, as gerações futuras e toda a humanidade. O cuidado e a preservação do ambiente devem levar em consideração as “problemáticas energéticas”. Como os recursos naturais não são renováveis, os mais prejudicados são os países pobres. Eles não têm recursos para pesquisar fontes alternativas de energia, daí ser necessário que as sociedades tecnicamente avançadas diminuam o consumo energético e busquem energias alternativas (cf. 49). “Há espaço para todos nesta terra” (50). É preciso, contudo, que entreguemos às novas gerações uma terra em condições de ser habitada e cultivada. Isso exige toda uma mudança de mentalidade e, consequentemente, de estilo de vida. O ser humano precisa ser protegido de si mesmo; “requer-se uma espécie de ecologia do homem” (51). A História nos mostra que, quando os direitos humanos fundamentais não são respeitados – por exemplo: o direito à vida e à morte natural –, “a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental” (51). Cap. V – A colaboração da família humana “Uma das pobrezas mais profundas que o homem pode experimentar é a solidão” (53). Nós nos realizamos nas relações interpessoais – isto é, relacionando-nos com os outros e com Deus. Isso vale também para os povos (cf. 53). Deus é Trindade, é relação, e quer nos associar à sua realidade de comunhão. A Igreja é sinal e instrumento dessa comunhão (cf. 54). Não se pode aceitar, pois, propostas religiosas que isolam o ser humano na busca do bem-estar individual, limitando-se a satisfazer seus anseios psicológicos. O cristianismo, “religião do ‘Deus’ de rosto humano” (cf. 55), é chamado a levar Deus também para a esfera pública. Somente assim os direitos humanos serão respeitados (cf. 56). Há que se levar em conta, naturalmente, o princípio da subsidiariedade, que respeita a autonomia dos corpos intermediários – princípio que deve ser respeitado particularmente em nosso mundo globalizado (cf. 57) e estritamente ligado com o princípio da solidariedade (cf. 58). Além da colaboração econômica entre os países – levando-se sempre em conta que o recurso humano é o autêntico capital dos países mais pobres – há necessidade de uma cooperação também no campo cultural, mas no 112 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Murilo S.R. Krieger, SCJ respeito à identidade cultural de cada país. Afinal, ter uma tecnologia mais avançada não significa ter uma cultura superior (cf. 59). “Uma possibilidade de ajuda para o desenvolvimento poderia derivar da aplicação eficaz da chamada subsidiariedade fiscal, que permitiria aos cidadãos decidirem a destinação de cotas de seus impostos versados ao Estado” (60). E uma solidariedade no campo internacional poderá se expressar na ajuda para um maior acesso de todos à educação, que leve em conta a formação completa da pessoa; no incentivo ao turismo, “que pode se constituir em notável fator de desenvolvimento econômico e de crescimento cultural” (61); em uma atenção especial ao fenômeno das migrações, para “salvaguardar as exigências e os direitos da pessoas e famílias emigradas e, ao mesmo tempo, os das sociedades de chegada dos próprios emigrantes” (62); em uma “coligação mundial em favor do trabalho decente” (63), uma vez que há um nexo direto entre pobreza e desemprego; no apoio às organizações sindicais dos trabalhadores (64); em apoio a “iniciativas financeiras em que predomine a dimensão humanitária” (65); no favorecimento a microfinanciamentos; e, também, na busca de “formas novas de comercialização de produtos provenientes de áreas pobres da terra” (66). Dadas as novas formas de interdependência mundial, é urgente uma “reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitetura econômica e financeira internacional” (67), possibilitando que as nações mais pobres tenham uma voz eficaz nas decisões comuns. Urge uma verdadeira Autoridade política mundial que, reconhecida por todos, tenha um poder efetivo “para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça e o respeito dos direitos” (id.). Cap. VI – O desenvolvimento dos povos e a técnica “Ninguém plasma arbitrariamente a própria consciência, mas todos formam a própria personalidade sobre a base de uma natureza que lhe foi dada” (68). Precisamos, pois, reentrar em nós mesmos, para reconhecer as normas fundamentais da lei moral natural que Deus inscreveu em nossos corações. O desenvolvimento está unido ao progresso tecnológico; a técnica insere-se no mandato de “cultivar e guardar a terra (Gn 2,15)” (69). Mas o desenvolvimento tecnológico não torna a técnica auto-suficiente. “Quando o único critério da verdade é a eficiência e a utilidade, o desenvolvimento acaba automaticamente negado” (70). Daí a urgente necessidade de uma formação para a responsabilidade ética no uso da técnica. “O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum” (71). Já é quase impossível imaginar a existência da família humana sem os meios de comunicação social. Para que eles favoreçam a liberdade e Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 113 Caritas in veritate globalizem o desenvolvimento e a democracia para todos, é preciso que estejam centrados na promoção da dignidade das pessoas e dos povos e colocados a serviço da verdade (cf. 73). Em vários campos da vida humana, como, por exemplo, da bioética, da fecundação in vitro, da pesquisa sobre os embriões, da possibilidade da clonagem e hibridação humana, coloca-se hoje uma questão fundamental: são suficientes razões técnicas para uma tomada de decisão ou é necessário levar em conta a responsabilidade moral do homem? Diante de tais desafios, precisamos entender que razão e fé ajudam-se mutuamente e só conjuntamente salvarão o homem: “a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria onipotência, enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida concreta das pessoas” (74). Longe de Deus, o ser humano vive inquieto e está mal; a droga e o desespero comprovam isso (cf. 76). Necessitamos de olhos novos e coração novo para superar a visão materialista dos acontecimentos humanos, e entrever no desenvolvimento um “mais além” que a técnica não pode dar (77). Conclusão “Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem é. (...) Deus nos dá a força de lutar e sofrer por amor do bem comum” (78). “O desenvolvimento tem necessidade de cristãos com os braços levantados para Deus em atitude de oração” (79); cristãos convictos de que o amor cheio de verdade – caritas in veritate – não é produzido por nós, mas nos é dado por Deus (cf. 79). B) Intuições da Encíclica – Em sua primeira encíclica, Deus caritas est, sobre a teologia da caridade, Bento XVI deu indicações sobre a Doutrina Social da Igreja (n. 26-29); Caritas in veritate é um texto dedicado inteiramente a essa matéria, mas o conceito central é a caritas, entendida como amor divino manifestado em Cristo. A caridade é a fonte inspiradora do pensar e do agir cristão no mundo. Ela não pode ser reduzida a um simples querer bem ou à filantropia. – A Igreja foi constituída por Cristo para ser sacramento de salvação para todos os povos (Lumen Gentium, 1). Ela não é um agente político nem uma ONG; ela inspira, mas não faz política. Assim, a Doutrina Social da Igreja não é um “terceiro caminho”, isto é, um programa político para se atingir uma sociedade perfeita; tal Doutrina também não busca a instalação de uma teocracia, onde os princípios válidos no campo da fé devem ser aplicados no viver social. A Igreja defende, sim, a liberdade religiosa. 114 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Murilo S.R. Krieger, SCJ – Bento XVI insiste na idéia de que a Doutrina Social da Igreja é um elemento de evangelização – isto é, o anúncio de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, tem uma incidência social. Assim, de um lado ela deve ser vista sempre no contexto do Evangelho; de outro, deve-se ter consciência de que ela é tão somente um dos caminhos da evangelização – uma evangelização que a ultrapassa, pois o homem é muito mais do que um ser que vive na sociedade. – O coração da Doutrina Social da Igreja é o ser humano. Por isso, as primeiras encíclicas sociais se preocuparam com o trabalho, o justo salário, a associação dos trabalhadores etc. Mais tarde, as encíclicas sociais se voltaram para os desafios internacionais: os desequilíbrios entre países ricos e pobres, o desenvolvimento, as relações internacionais. Bento XVI procura responder a uma pergunta fundamental: que homem queremos salvar? Pode-se considerar verdadeiro desenvolvimento aquele que fecha o homem em horizontes terrenos, feito só de bem estar material e que ignora valores, particularmente aqueles que são uma resposta às interrogações mais profundas do ser humano? Pode haver verdadeiro desenvolvimento sem Deus? – O ser humano não é apenas o objetivo do processo de desenvolvimento, mas sujeito desse processo. Quem conheceu Jesus Cristo sente-se impelido a trabalhar pelo bem comum. – O “pecado das origens” impede, em muitos lugares, a construção de uma sociedade justa. Não se pode, pois, afrontar a questão social sem um referimento à questão ética. Para a construção de uma nova sociedade, para uma economia autenticamente humana e essencialmente ética, há necessidade de homens novos, impulsionados pela caridade. – A via para corrigir o rumo da globalização se apóia em uma lógica diferente da baseada nas leis da oferta e da procura. Sua sustentação é a gratidão, a responsabilidade social, a redistribuição equitativa da riqueza, a capacidade para criar novas formas de empresa. Experiências atuais em matéria de comércio justo, micro-financiamentos, economia solidária e de comunhão, nos mostram que esse caminho não só é possível, mas necessário. A globalização só modificará seu perfil através de pessoas que sejam capazes de remodelá-la. – Do ponto de vista cristão, o progresso não depende só da promoção humana, do anúncio da fé e do amor de Cristo, mas, também, da esperança cristã, dom de Deus. Ela impede que nos contentemos com a construção do reino aqui e agora, e nos Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 115 Caritas in veritate ajuda a reconhecer que somente em Deus se concretiza nosso desejo de felicidade. – Deus renova o coração do homem para que possa viver na caridade e na justiça. O cristão não se contenta em acompanhar a História ou a protestar, mas, convertido, quer transformar os acontecimentos, inclusive pela oração. C) Conclusão Caritas in veritate é uma luz para nós, cristãos, e para a sociedade. Referências ALLEN, John L. Jr. “Chaves de leitura da encíclica social de Bento XVI”. National Catholic Reporter, 02.07.2009. Tradução de Moisés Sbardelotto, site da Unisinos. BIANCHI, Enzo. “Caritas in veritate: além da lógica da troca”. In La Stampa, Turim, 12.07.2009. Tradução de Benno Dischinger, site da Unisinos. CORDES, Cardeal Paul Josef. “Intervento alla Conferenza Stampa di Presentazione dell´enciclica del Santo Padre Benedetto XVI dal titolo: Caritas in veritate. In: site do Vaticano. GUERRA LÓPEZ, Rodrigo. “Entrevista para Zenit: Caritas in veritate no atual debate filosófico-social”. In site de Zenit, 22.07.2009. IHU (Instituto Humanitas Unisinos) – On-Line. “Dossiê especial Caritas in veritate”. In site da Unisinos. SPILLER, Eduardo; BOTAS, Paulo. “Caritas in veritate: denúncia e esperança profética”. In TQ – Teologia em Questão, Taubaté, Ano VIII, 15 (2009/1), pp. 9-34. Endereço do autor (após 25/03) Avenida Cardeal da Silva, 26, Condomínio Pedra da Marca, Casa 33, Federação 40231-250 Salvador, BA 116 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo: A imagem de Deus surge das experiências humanas. A partir da educação que recebemos, especialmente na família, mas também diante de outras influências – religiosas, culturais, comunitárias etc. – criamos uma imagem de Deus. Essa imagem se manifestará no relacionamento que teremos e, de maneira muito acentuada, na educação a transmitir. “Conforme a imagem que temos, assim a atitude que adotamos”. Essas imagens podem ser consideradas reais ou distorcidas, à luz da verdadeira face de Deus. No primeiro momento, o autor expõe algumas imagens negativas de Deus, condicionadas por paradigmas culturais. Assim, navega pelos mares de uma cultura medieval, passando depois a breve análise da cultura moderna, para analisar, em seguida, a imagem de Deus naquilo que se convencionou chamar de pós-modernidade, no seu fenômeno de retorno do sagrado. No segundo momento, quer contribuir para resgatar a verdadeira face de Deus. Abstract: The image of God springs out from the human experiences. Starting from the education we received, especially in the family, but also because of other – religious, cultural, communitarian – influences, we create in ourselves an image of God. That image will be manifested in our relations and, in a very especial manner, in the education we will transmit. “According to the image we have, that will be the posture we will adopt.” Those images may be considered real or distorted, at the light of the true face of God. Firstly, the author describes some negative images of God, conditioned by cultural paradigms. In that way, he sails in the seas of a medieval culture, going then to a brief analysis of the modern culture, to examine, afterwards, the image of God in this that we convened to call the post-modernity, in its phenomenon of the return to the sacred. Finally, he wants to contribute to rescue the true face of God. Imagens e verdadeira face de Deus Geraldo Maia* * O autor é presbítero da Arquidiocese de Uberaba, Mestre em Teologia Dogmática pela FAJE-BH (2005), e doutorando em Teologia Dogmática pela PUG-Roma. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 117-130. Imagens e verdadeira face de Deus Introdução A imagem de Deus surge das experiências humanas. A partir da educação que recebemos, especialmente na família, mas também diante de outras influências – religiosas, culturais, comunitárias etc. – criamos uma imagem de Deus. Essa imagem se manifestará no relacionamento que teremos e, de maneira muito acentuada, na educação a transmitir. “Conforme a imagem que temos, assim a atitude que adotamos”1. Essas imagens podem ser consideradas reais ou distorcidas, à luz da verdadeira face de Deus. Compreendemos “a face de Deus” já como a manifestação daquilo que Deus é, na sua essência. E é na História salvífica que essa face se nos deu a revelar. A Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II, Dei Verbum, nos garante que Deus quis revelar-se naquilo que ele é em si mesmo2. K. Rahner elaborou seu mais famoso axioma sobre a Trindade baseado nesta identidade mesma de Deus, ou seja, aquilo que conseguimos captar de Deus na história salvífica é aquilo que ele é3. Procuraremos, num primeiro momento, expor algumas imagens negativas de Deus, condicionadas por paradigmas culturais. Assim, navegaremos pelos mares de uma cultura medieval, passando depois a breve análise da cultura moderna, para analisar, em seguida, a imagem de Deus naquilo que se convencionou chamar de pós-modernidade, no seu fenômeno de retorno do sagrado. No segundo momento trataremos de resgatar a verdadeira face de Deus. 118 1 F. Pires Lopes, “Imagens de Deus” [recensão da obra homônima coordenada por Jean Holm e John Bowker], Broteria 149 (1999) 494. 2 “Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido o mistério de sua vontade (cf. Ef 1,9), pelo qual os homens, por intermédio doCristo, Verbo feito carne, e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina (cf. Ef 2,18; 2Pd 1,4)”. Dei Verbum 2, in G. Alberigo; G. L. Dossetti; P. P. Joannou; C. Leonardi; P. Prodi. Conciliorum Oecumenicorum Decreta, 2. ed., Bologna, 2002, 972. 3 “Il principio che stabilisce questo collegamento tra i trattati e che presenta la Trinità come mysterium salutis per noi (nella sua realtà e non solo come dottrina), potrebbe venir così formulato: la Trinità ‘economica’ è la Trinità ‘immanente’ e viceversa”. K. Rahner, La Trinità, 4. ed., Brescia, 2008, 30. A Comissão Teológica Internacional comentou este axioma com muita propriedade: “la Trinità che si manifesta nell’economia della salvezza è la Trinità immanente; è la Trinità immanente che si comunica liberamente e a titolo gratuito nell’economia della salvezza”. Commissione Teologica Internazionale, “Teologia, cristologia, antropologia (1991)”, in Commissione Teologica Internazionale, Documenti 1969-2004, Bologna, 2006, 200. Sobre este assunto, cf. ainda: L. F. Ladaria, El Dios vivo y verdadero. El misterio de la Trinidad, Salamanca, 2005, 23-39. E ainda: L. F. Ladaria, La Trinidad misterio de comunión, 2. ed., Salamanca, 2007, 11-64. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Geraldo Maia 1 Cultura e imagem de Deus Sendo Deus ser espiritual, sentimos necessidade de representálo através de imagens. Mas Deus não se esgota na sua representação. Como tão bem expressou Tomás de Aquino, o que Deus é ultrapassa a tudo quanto possamos compreender dele4. Nesse mesmo sentido já havia expressado Agostinho de Hipona: “Pode-se dizer tudo de Deus, e nada se consegue dizer dignamente”5. Certamente era por isso que os israelitas tinham tanto escrúpulo até em pronunciar o nome de Deus. Tratava-se de um cuidado para não se cair no reducionismo. As imagens são influenciadas pela realidade histórica, social e cultural, o que chamamos de paradigma. Pensando esculpir uma imagem de Deus, colocava-se nele, muitas vezes, uma máscara que distorcia suas feições. “Para C.J.Jung, Deus é o mais forte arquétipo que existe. Quando a imagem de Deus está doente, também o ser humano fica doente. As imagens arquetípicas mexem com alguma coisa no ser humano. Elas ou confundem a psique ou trazem ordem para dentro dela.[...] Da imagem de Deus depende a imagem de si”6. Tomaremos três paradigmas clássicos que esculpiram imagens distorcidas de Deus. Poderíamos escolher outros paradigmas, mas nos restringimos a estes três considerando-os simbólicos, pois continuam, sobremaneira, influenciando a atual cultura. Convém considerar que, elegendo imagens distorcidas de Deus, não pretendemos negar a importância e os valores presentes em cada um desses paradigmas, que vêm oferecendo tantos frutos ao desenvolvimento da humanidade. Apenas ressaltamos algumas imagens com expressões negativas. 1.1 Paradigma medieval Na abordagem pré-moderna, o teocentrismo teve influência marcante e, por vezes, negativa. Tomemos uma imagem de Deus aí articulada de maneira negativa: um Deus “castigador”, “justiceiro”, “vingador”. Tratava-se do “grande olho”, do qual Sartre se lamentava mais tarde. Tem-se aí a imagem de um “deus” que está atento, vigiando as pessoas 4 Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. XII, a. 7. 5 Santo Agostinho, “Commento al Vangelo di San Giovanni”, 13,5 [tradução nossa]. 6 Anselm Grün, Se quiser experimentar Deus, 2. ed., Petrópolis, 2001, 40. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 119 Imagens e verdadeira face de Deus para puni-las após o menor deslize. A melhor expressão que traduz essa imagem é: “Se você fizer isso, ‘deus’ vai castigá-lo”. Deus aí é identificado como origem e distribuidor do mal; “deus sádico”, gerador de medo, o anti-humano. Trata-se de um “deus patrikiriarkal”: pai que é dono e senhor de tudo. É essa imagem que certa pastoral arcaica e pregações tenebrosas ensinavam, fazendo um verdadeiro terrorismo nas crianças e nos fiéis em geral. Daí a dificuldade de relacionar-se com Deus e experienciá-lo como amor, bondade, misericórdia, ternura. Essa imagem gera insegurança e angústia até hoje, obrigando as pessoas a se justificarem sempre. É traumática e desumana. Incute medo nas pessoas. Ainda é muito empregada por pais na educação de crianças. Sobre essa imagem houve a reação da filosofia moderna, desembocando no ateísmo. Certamente o indiferentismo religioso atual é fruto de uma postura diante dessa imagem incutida no inconsciente coletivo das pessoas. Afinal, não se pode levar a sério um “deus” que seja origem e dispensador do mal a seu bel prazer, como se fosse um sádico. O Concílio Vaticano II, através de sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes, apresentou lúcida intuição acerca da relação da responsabilidade dos cristãos na formação do ateísmo “na medida em que, pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião”7. 1.2 Paradigma moderno A virada antropológica marcou profundamente a abordagem moderna. A imagem de Deus aí articulada acabou por apresentar um “deus” inimigo do ser humano, que não o deixa emancipar-se. Essa imagem negativa de Deus, agora, diante do fascínio da razão humana, é desnecessária, inerte, um mero defunto velado pelo saudosismo de algumas carpideiras. Os filósofos modernos e, em especial, os “Mestres 7 120 “Por essa razão, nesta gênese do ateísmo, grande parte podem ter os crentes, enquanto, negligenciando a educação da fé, ou por uma exposição falaz da doutrina, ou por faltas na sua vida religiosa, moral e social, se poderia dizer deles que mais escondem que manifestam a face genuína de Deus e da religião”. Gaudium et Spes, 19c, in G. Alberigo; G. L. Dossetti; P. P. Joannou; C. Leonardi; P. Prodi. Conciliorum Oecumenicorum Decreta, 2. ed., 2002, 1079. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Geraldo Maia da suspeita”8, de martelo em punho, se puseram a demolir essa falsa imagem de “deus”. Descartes, através da dúvida metódica, propôs o sujeito racional: “Cogito, ergo sum”. Kant chamou o ser humano à maturidade em razão de sua racionalidade, nos altos voos do Iluminismo. Feuerbach considerou “deus” como projeção do melhor do ser humano: para que o ser humano cresça, é preciso que esse “deus” seja negado. Marx propôs a negação desse “deus” para assegurar a realização social. Freud desprezou esse “deus” para que o inconsciente realize sua libido. Nietzsche proclamou a morte de “deus” para que o ser humano realize sua vontade de poder. O ateísmo surge, assim, como “negação da negação”. Suspeita-se de um “deus” que é apresentado como rival do ser humano. Sua morte é proclamada como gesto de misericórdia pela humanidade. No afã de tirar-lhe as máscaras pré-modernas, sua imagem foi decapitada e nada mais representa para alguns. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, preconizara Dostoievski. Caiu-se no eclipse de Deus e, na sua esteira, no eclipse do humano. Eis o tempo da sociedade secularizada! A repercussão dessa demolição da imagem de Deus, que levou ao niilismo, continua a ser percebida hoje. Além do ateísmo teórico, foi gerado um ateísmo prático, que levou ao relativismo. Nessa consideração, vive-se como se Deus não existisse, especialmente se a concepção desta imagem inibe minhas atitudes antiéticas. A indiferença religiosa, que tem sido superada pelos novos anseios da pós-modernidade – retorno ao sagrado –, ainda se manifesta em variadas situações. Desconsiderase o respeito pelo semelhante por desconsiderar que ele seja “imagem e semelhança de Deus”. Afinal, a imagem de Deus foi negada. 1.3 Paradigma pós-moderno A pós-modernidade se apresenta como momento novo da civilização, portando, em suas características, luzes e sombras. Não pretendemos, aqui, reduzir todo este complexo paradigma ao negativismo, pois reconhecemos grandes valores brotados desta cultura em variados aspectos. Abordaremos, entretanto, como fizemos, nos paradigmas anteriormente visitados, uma imagem negativa de Deus, mesmo sabendo que existem imagens positivas. 8 Seguindo P. Ricoeur, por “Mestres da suspeita” entendemos Marx, Nietzsche e Freud. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 121 Imagens e verdadeira face de Deus A pós-modernidade absolutizou o subjetivismo e o domínio da emoção9. Prenhe de tecnicismo, moldou uma imagem plástica de um “deus” mágico, técnico, retribuidor. A matriz dessa imagem de Deus parte do capitalismo neoliberal: Deus é o grande dispensador das riquezas. Ele premia a uns e castiga a outros. É o retorno da antiga “teologia da retribuição”. Há um grande acento na teologia da prosperidade, resgatada hoje em certas tendências religiosas. Parte, assim, da concepção de um “deus ex machina”: resolve os impasses de forma mágica. Como nos antigos palcos de teatro, o ídolo sobe pelo alçapão, movimentado por uma engenhoca – uma máquina – e resolve a trama encenada. Trata-se da concepção de um “deus” pragmático, utilitarista, sem compromisso social efetivo. A relação humano-divina neste paradigma não permite o amor gratuito e desinteressado. “Quando usamos Deus para a defesa de algo, colocamos esse algo acima de Deus; por conseguinte, convertemolo em um ídolo”10. Além de querer que esse “deus” resolva meus problemas particulares, o “eu narcísico” procura relacionar-se com ele de forma emotiva, nas mais extravagantes manifestações, numa demonstração neurótica e, às vezes, até psicótica. A pessoa passa a querer que esse “deus” resolva seus problemas depressivos ou comportamentais. O relacionamento da pessoa com Deus assume características patológicas da mente humana. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, cria um “deus” à sua própria imagem e semelhança. Não é mais a pessoa que é chamada a fazer a vontade de Deus, mas é esse “pseudodeus” que deve fazer a vontade e os caprichos da criatura. Como se o Criador pudesse desrespeitar a liberdade finita e a própria finitude de sua criatura. Esse “deus” não existe para amar, mas para satisfazer a índole consumista da humanidade. Balanço provisório Apresentamos imagens distorcidas de Deus, em paradigmas diferenciados, segundo convicções e demandas da humanidade numa Segundo A. Giddens, não houve uma ruptura na modernidade, mas esta atingiu seu estágio mais avançado. Sua obra mais célebre sobre este assunto é: A. Giddens, Modernity and Self-Identity. Self and Society in the Late Modern Age, Cambridge, 1991. 10 J. I. González Faus e Josep Vives, Creer sólo se puede en Dios. Ensayos sobre las imágenes de Dios en el mundo actual, Santander, 1985, 43 [tradução nossa]. 9 122 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Geraldo Maia determinada época. Mesmo que não seja mais tão incisiva quanto na época pré-moderna, a imagem do “olho de Deus” continua monitorando muitas consciências, violentando a liberdade humana através de leis cegas e moralistas. Assistimos à derrocada do ateísmo teórico, proposto pela modernidade, substituído agora pela redescoberta do sagrado na pós-modernidade, mas o ateísmo prático-convencional permanece: “se Deus não realiza o que eu quero, ele não merece ser acreditado”. Urge resgatar a verdadeira face de Deus, para além das máscaras, com o intuito de representar Deus como ele realmente é: o Deus revelado em Jesus de Nazaré. “Se os cristãos estão decididos a renovar em si mesmos e na sociedade presente uma imagem sadia da Paternidade divina, eles devem detonar as perspectivas falsas que fazem com que Deus seja um tirano temível, para ser reconhecido como um Pai bom e tranquilizador”11. Somos chamados a resgatar a face de Deus, para além de nossos preconceitos, de nossas mórbidas imaginações. Acreditamos que a verdadeira face de Deus seja translúcida de ternura, amor e compaixão. Uma face solidária com o ser humano nas suas lutas de esperança e de vida, assim como Jesus Cristo nos revelou. 2 Resgate da verdadeira face de Deus A deturpação das imagens plásticas, modeladas pelas culturas em épocas diferentes, assim como foram apresentadas acima, nos interpelam e exigem um compromisso sério de superação, a partir de nossa conversão. Assim poderemos resgatar a verdadeira face de Deus. Para tanto, há que se ter sensibilidade e se deixar tocar pela revelação de um Deus que não se esgota em puras imagens, mas que se manifesta como um muito mais de plenitude. Essa revelação terá sentido se a considerarmos como iluminadora de nossas experiências humanas do divino. O deparar-se com a verdadeira face de Deus só pode acontecer a partir da experiência com Deus. E é na intimidade que ele se revela. A partir dessa experiência pessoal, somos chamados a “projetar uma imagem de Deus para a qual a liberdade e o amor não são coisas que se opõem mutuamente, uma imagem de Deus cuja grandeza não é diminu11 G. Morel, Les images de Dieu, in Dieu aujourd’hui. Semaine des Intellectuels Catholiques 1965, Paris, 1965, 193 [tradução nossa]. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 123 Imagens e verdadeira face de Deus ída pela libertação do homem, mas que precisamente nessa libertação se manifesta como grandeza”12. Deus “não se deixa encerrar na imaginação nem na linguagem humanas. Para o exprimirmos, porém, é frequente o imemorial recurso a símbolos [...]”13. Ao retirarmos as máscaras colocadas em Deus, vamos redescobrindo suas feições, mas sempre representadas por novas imagens que sejam manifestações de uma nova visão. O revelador da verdadeira face resplandecente de Deus é Jesus de Nazaré. Ele é o protótipo da relação humano-divina, pois se manifestou na intimidade com o Pai: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,10a). Através de Jesus podemos tirar as máscaras colocadas em Deus. 2.1 Criador: partilha da experiência de amor O Pai Criador, revelado em Jesus de Nazaré, não é aquele que cria o ser humano a seu serviço. Deus cria para comunicar seu amor, que não é solitário mas solidário. É um Criador que deseja partilhar, por isso cria pensando no bem da humanidade. Cria porque quer dar amor. Seu único interesse é o ser humano. Já criando, Deus chama sua criatura a participar de sua plenitude de vida. Na verdade, Deus projeta o ser humano para um “muito mais”. Criado à imagem de Deus, o ser humano é chamado a assemelhar-se a ele: é o percurso da “imago Dei” à “similitudo Dei”, como diz Ireneu de Lião. Esse percurso é o que chamamos de salvação, assim entendida como projeção para um futuro de plenitude humana na comunhão com Deus, é divinização14; é levar o ser humano à plenitude de sua humanidade, sem anular sua identidade antropológica15. Criando-nos na condição humana de finitude, Deus decide entrar em nossa história como colaborador, na luta pelo rompimento das amarras 124 12 Regina Ammicht Quinn, “Imagens de Deus. Imagens do ser humano e moral. O paradigma da sexualidade”, Concilium 279 (1996) 67. 13 F. Pires Lopes, “Imagens de Deus”, op. cit., 495. 14 Ireneu de Lião formulou seu célebre axioma que tão bem sintetiza essa ideia: “A glória de Deus é o homem que vive e a vida do homem consiste na visão de Deus” [tradução nossa]. Na versão latina, assim se lê: “gloria enim Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei”. Ireneu de Lião, Adversus Haereses IV, 20,7, in «Sources Chrétiennes» 100, Paris 1965. 15 Por tudo isso podemos afirmar com B. Sesboüé: “A concepção ireneana da liberdade humana responde às objeções admiravelmente modernas”. B. Sesboüé, Tout récapituler dans le Christ. Christologie et sotériologie d’Irénée de Lyon, Paris, 2000, 203 [tradução nossa]. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Geraldo Maia que nos tornam vulneráveis ao mal. Deus não é o distribuidor dos males, que são frutos da condição de finitude humana ou da liberdade finita da humanidade. Ele se nos apresenta como o antimal, que se põe do lado do sofredor para fortalecê-lo e ajudá-lo a se erguer de sua condição. A histórica do Primeiro Testamento revela a teimosia de um Deus apaixonado pela sua criação, que não se cansa de chamar seu povo à salvação. A história do Segundo Testamento é o testemunho do Filho que se encarna para apontar à humanidade o rosto amoroso de Deus. Foi para nos amar que Deus nos criou. Por isso ele consiste em estar amando: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Ele sofre com o nosso sofrimento e se faz solidário conosco, amando-nos e impulsionando-nos pelos caminhos da salvação. Deus não sabe e nem quer fazer outra coisa senão amar a sua criatura. 2.2 Pastor: a segurança de nossas vidas A figura do Pastor está presente em diversas abordagens bíblicas: Ez 34,11-16; Sl 22(23); Jo 10,11-18. Há um simbolismo próprio na metáfora do pastor: é o guia, o companheiro. É ele que transmite segurança e proteção ao rebanho. Cuida das ovelhas: prenhes, doentes, desviadas, filhotes. Conhece os atalhos que levam aos oásis. “As ovelhas podem não ver o pastor. Ele, então, com seu cajado, dá toques ritmados nas pedras. Transmite confiança e segurança, como quem diz: ‘Estou contigo’. As ovelhas, sob o cuidado caloroso do pastor, têm a sensação de que ‘nada lhes falta’”16. O antigo Israel viveu experiências profundas da presença de Deus em sua caminhada: êxodo, repatriamento, peregrinações. Esse povo vivenciou a presença marcante de seu Deus que nunca o abandonou, especialmente na terrível experiência do exílio da Babilônia. A metáfora do Deus/Pastor remete à certeza de que Deus não abandona seu povo. Jesus de Nazaré, o Deus humanizado, assume o pastoreio de seu povo (cf. Jo 10,11-18; Mc 6,30-44; 8,1-10; Mt 14, 13-21; 15,32-38; Lc 9,12-17; Jo 6,5-15). Assim como Deus outrora prometera cuidar, em pessoa, de seu rebanho, Jesus agora se manifesta como “o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10, 11). Ele pode ser o Pastor, porque soube ser o Cordeiro de Deus. 16 L. Boff, O Senhor é meu Pastor. Consolo divino para o desamparo humano, Rio de Janeiro, 2004, 34. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 125 Imagens e verdadeira face de Deus A vida humana é um êxodo, uma longa jornada de transcendência. Trazemos anseios de vida nova, de novas esperanças. Suspiramos por mudanças, que vão desde nossa existência pessoal até às transformações estruturais das sociedades. Gememos as dores de parto, conforme a expressão paulina (cf. Rm 8,22-23). Há, portanto, que se fazer a experiência de uma força maior em nossa vida. O Deus-Pastor nos fortalece e nos impulsiona rumo ao horizonte da libertação. 2.3 Abbá: amor de pai com ternura de mãe Através de sua intimidade com o Pai, Jesus nos revela a face de Deus que é Pai. E Pai não somente dele, mas de toda a humanidade. A palavra hebraica Abbá, “paizinho”, revela a confiança plena da criança diante da ternura do pai. A expressão supera a mentalidade de um pai todo-poderoso na sua arrogância. Desperta-nos para nova visão de Deus: amor e ternura de mãe. O Pai para Jesus é cheio de ternura, amor, misericórdia, perdão: é presença consoladora. “Em Jesus, a vivência do Pai – a vivência do Abbá – constitui o núcleo mais íntimo e original de sua personalidade. Dela, como que de um centro vital, emana para ele uma confiança sem limites que até hoje torna inconfundível sua figura. [...] Nascia da audácia da ternura e constituía o anúncio de um tempo novo: o do homem filial, porque tem a segurança de que Deus, em sua profundeza mais abissal e em sua interioridade mais entranhável, é um Deus paternal”17. A face materna de Deus precisa ser resgatada em nossas culturas. Acreditamos que ficaria bem mais próximo de nossas mentes o que seria a ternura e o carinho de Deus para com suas criaturas. A figura da mãe evoca muitas experiências de bondade e amor. O próprio texto bíblico utiliza esta metáfora em Is 49,15 e chega a comparar Deus com uma parteira (cf. Is 66,9). Sabemos ainda que o termo original, hebraico, empregado para o Espírito Santo (Ruah), é feminino. Foi traduzido para o grego no neutro (Pneuma) e se tornou o masculino latino Spiritus. Mas, na origem, era expressão feminina. Quando resgatarmos a dimensão feminina de Deus, teremos dele uma visão mais calorosa. 17 126 A. Torres Queiruga, Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação plena do humano, São Paulo, 1993, 96. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Geraldo Maia Balanço geral O caminho da experiência humana diante do Divino se inicia no querer, passa pelo buscar, exige o empenhar-se e se consolida no questionar-se. Para se chegar a esta experiência de Deus há que se fazer a experiência do desejo de infinito, de transcendência, a partir de nossa própria existência e das necessidades do mundo18. Contemplar a realidade familiar, comunitária, social, nos faz constatar uma sede de infinito. Detectamos em nós um desejo de transcendência, como capacidade de romper todos os limites, projetar-nos sempre para um mais além19. É nesse anseio que podemos intuir a presença de Deus se esforçando por demonstrar sua solidariedade com o ser humano, fortalecendo-o para que transponha os percalços da existência. Somos chamados a vivenciar essa experiência, atingindo a dimensão mais profunda do ser humano, na abertura ao Espírito. Revelação não é mágica. É autocomunicação de Deus. E Ele continua a revelar-se através dos nossos semelhantes (cf. Mt 25,40). Afinal, fomos criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Trazemos as marcas de Deus em nossa vida e podemos detectá-las nas feições de nossos semelhantes. É o rosto do outro que me interpela e me faz constatar a imagem de Deus. Contemplar o rosto do outro é contemplar a face mesma de Deus20. Levinas destaca a antropologia como o manifestar de Deus. Segundo ele, o que me constitui como eu é a alteridade: a interpelação do outro. Antes de qualquer pressuposto sobre o sujeito, está o outro que me interpela. É no rosto do outro que permanecem as pegadas do Infinito. Para se contemplar o Totalmente Outro, há que se contemplar o outro e 18 “Nosso desejo de infinito não pode ser saciado por metas finitas. [...] Se não sentimos a Deus, podemos, no entanto, entrar em contato com nosso desejo. Então nosso desejo mantém viva a pergunta por Deus. [...] Ao contemplar Deus no espelho de nossa alma, cresce em nós a intuição de quem seja esse Deus, o único a satisfazer nosso desejo”. A. Grün, Se quiser experimentar Deus, 2. ed., Petrópolis, 2001, 73s. 19 O grande teólogo K. Rahner designou esse fenômeno como o “existencial sobrenatural”. 20 “É fácil servir diretamente a Deus – essa ação não compromete ninguém. [...] Amar o próximo pobre e doente, humilhado e explorado, isso nos compromete e nos obriga a tomar posição. Só quem ama o outro ama a Deus; só quem se engaja em sua libertação é que serve ao Senhor da história [...]”. L. Boff, Tempo de transcendência. O ser humano como um Projeto Infinito, 3. ed., Rio de Janeiro, 2000, 30. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 127 Imagens e verdadeira face de Deus deixar-se fascinar por ele, que me interpela e me faz responsável. Quanto mais responsável pelo outro, mais encontro minha ipseidade21. Contemplar a face de Deus é perceber o sofrimento do outro, na compaixão, e deixar-se ser interpelado a fazer algo, buscando atitudes concretas que transformem a situação do semelhante. Daí brota a verdadeira ética numa dimensão relacional, para além de todo individualismo e de todo moralismo. É nessa dimensão que podemos compreender o Documento de Puebla quando ressalta as “feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela”, tecendo uma longa rede de feições: crianças sofridas, jovens desorientados e frustrados, indígenas e afroamericanos segregados, camponeses relegados, operários explorados, subempregados e desempregados...22. Recolhemos aqui a memória de algumas pessoas que souberam contemplar a face de Deus no rosto dos mais sofredores, a partir do olhar de compaixão e solidariedade: D. Helder Câmara, o profeta do amor e da paz; D. Luciano Mendes de Almeida, o pastor dos excluídos; D. Paulo Evaristo Arns, o cardeal dos direitos humanos; Dra. Zilda Arns, a leiga das ações sociais; Ir. Doroty, a mártir da justiça; Ir. Dulce, a irmã dos empobrecidos; Franca, a leiga consagrada das crianças da periferia; e uma multidão de bem aventurados e bem aventuradas da casa do Pai. O percurso da contemplação da face de Deus como amor nos leva a adentrar no mistério mesmo da Trindade. Sendo o amor a essência de Deus – e isso o sabemos pela sua relação com o mundo criado – o que Deus fazia “antes de criar” – se é que se pode falar de um antes e de um depois em Deus – se ainda não havia a criatura para ser amada? Deus se amava na relação das Pessoas intratrinitárias. Portanto, o conceito de Deus-amor supõe uma relação trinitária! Assim, podemos concluir com Urs von Balthasar: “Só o amor é digno de fé”23. 128 21 Cf. I. Levinas, Totalidade e Infinito, Lisboa, 1980. I. Levinas é filósofo lituano, judeu, radicado na França e falecido em 1995. Desenvolveu uma filosofia peculiar. Para além da formulação clássica da filosofia, ele parte do Talmud (interpretação dos textos judaicos revelados) para edificar uma filosofia nova. 22 Conselho Episcopal Latino-americano, Documento de Puebla. A Evangelização no presente e no futuro da América Latina, 31 a 39, 5. ed., Petrópolis, 1983, p. 70s. O Documento de Aparecida atualiza essa abordagem do rosto dos irmãos que nos interpela, cf. seu número 65. 23 Urs von Balthasar conclui, pela economia salvífica, a imanência mesma de Deus, que é amor. “Tutti gli ‘abbassamenti’ contingenti di Dio nell’economia della salvezza Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Geraldo Maia Bibliografia Alberigo, G.; Dossetti, G. L.; Joannou, P.P.; Leonardi, C.; Prodi, P. Conciliorum Oecumenicorum Decreta, 2. ed., Bologna, 2002. Ammicht Quinn, R. “Imagens de Deus, Imagens do ser humano e moral: o paradigma da sexualidade”, Concilium 279 (1996). von Balthasar, U. Teologia dei tre giorni, Brescia, 1990. Boff, L. O Senhor é meu Pastor. Consolo divino para o desamparo humano. Rio de Janeiro, 2004. _____. Tempo de transcendência: O ser humano como um Projeto Infinito. 3. ed., Rio de Janeiro, 2000. Commissione Teologica Internazionale. “Teologia, cristologia, antropologia (1991)”, in Commissione Teologica Internazionale, Documenti 1969 – 2004, Bologna, 2006. Conselho Episcopal Latino-Americano. Documento de Puebla: A Evangelização no presente e no futuro da América Latina, 5. ed., Petrópolis, 1983. _____. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, 5. ed. Brasilia; São Paulo, 2008. Giddens, A. Modernity and Self-Identity: Self and Society in the Late Modern Age, Cambridge, 1991. González Faus, J. I.; Vives, J. Creer sólo se puede en Dios: Ensayos sobre las imágenes de Dios en el mundo actual, Santander, 1985. Grün, A. Se quiser experimentar Deus. 2. ed., Petrópolis, 2001. Irinéu de Lião, Adversus Haereses IV, in «Sources Chrétiennes» 100, Édition critique par Adelin Rousseau avec la collaboration de Bertrand Hemmerdinger, Louis Doutrelau et Charles Mercier, Paris, 1965. Ladaria, L. F., El Dios vivo y verdadero: El misterio de la Trinidad, Salamanca, 2005. sono da sempre inclusi e superati nell’evento eterno dell’Amore”. U. von Balthasar, Teologia dei tre giorni, Brescia, 1990, 22. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 129 Imagens e verdadeira face de Deus ____. La Trinidad misterio de comunión, 2. ed., Salamanca, 2007. Levinas, I. Totalidade e Infinito, Lisboa, 1980. Morel, G. “Les images de Dieu”, in Dieu aujourd’hui. Semaine des Intellectuels Catholiques, Paris, 1965. Pires Lopes, F. “Imagens de Deus” [recensão da obra homônima coordenada por Jean Holm e John Bowker], Broteria 149 (1999). Rahner, K. La Trinità, 4. ed., Brescia, 2008. Santo Agostinho. “Commento al Vangelo di San Giovanni”, in Opere di Sant’Agostino, v. XXIV/1, Roma (1968). Sesboüé, B. Tout récapituler dans le Christ: Christologie et sotériologie d’Irénée de Lyon, Paris, 2000. Tomás de Aquino. Suma Teológica, vol. I, Caxias do Sul, 1980. Torres Queiruga, A. Creio em Deus Pai: O Deus de Jesus como afirmação plena do humano. São Paulo, 1993. Endereço do Autor: a/c do ITESC Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524 Pantanal 88040-001 Florianópolis, SC 130 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Teologia, Economia e Ecologia Síntese da Semana Teológica realizada no ITESC nos dias 20 a 24 de setembro de 2010 I Conferência: A encíclica Caritas in Veritate, de Bento XVI Conferencista: Texto: Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, scj, então Arcebispo Metropolitano de Florianópolis neste número de “Encontros Teológicos”, pp.107-116. II Conferencia: Questões ecológicas em Santa Catarina Conferencista: Luiz Fernando Scheibe / UFSC Debatedora: Suzana Cordeiro Trebein / FATMA Relatores: Fernando Baraúna e Wellington da Silva O Estado de Santa Catarina é formado por quatro grandes grupos de rochas: sedimentos recentes, continentais e marinhos; embasamento cristalino; rochas sedimentares Gondwânicas da Bacia do Paraná; e basaltos e outras rochas vulcânicas da formação da Serra Geral. As questões ecológicas estão muito ligadas a essa distribuição geológica do Estado. Os sedimentos recentes, continentais e marinhos, restringem-se á faixa litorânea. Os sedimentos marinhos são predominantemente depósitos de praias atuais, constituídos por areias e depósitos de mangues, mais argilosos; os continentais são depósitos aluvionares e coluviais, na base das encostas ou preenchendo os vales dos rios principais; ou ainda, depósitos de dunas, ao longo do litoral. Esses tipos de sedimentos são basicamente provenientes da erosão de rochas das serras e montanhas do Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 131-154. Teologia, economia e ecologia litoral que, pela grande quantidade de chuvas nessa região, são levadas pelos rios, depositando-se em suas margens. Esses processos, que vem ocorrendo nos milhares de anos, é que foram dando origem às grandes planícies que vemos no litoral. Esse processo continua a acontecer. A questão polêmica é que é nessas regiões que se concentra grande parte da população. Assim, o que seria um fenômeno natural, passa a ser considerado um desastre natural, já que a erosão, causada principalmente em regiões montanhosas, acaba atingindo populações e causando prejuízos. O problema não é a natureza, mas a forma como o homem ocupou essas áreas. A fim de evitar danos à população, como os que têm ocorrido recentemente no Estado, ou ao menos para minimizar os impactos dos desastres naturais, é necessário localizar e demarcar essas áreas de risco, evitando ocupações. Embasamento cristalino compreende o segundo grupo de rochas que compõem a solo catarinense. Aflora numa faixa norte-sul com largura de 50 km, desde o limite com o Paraná até a cidade de Morro da Fumaça. São rochas antigas, que sofreram grande deformação e movimento. Elas estão entre as mais antigas do Brasil, de modo especial as que se situam mais ao norte catarinense. O terceiro grupo é formado pelas rochas sedimentares Gondwânicas da Bacia do Paraná. Assim denominadas, pois são provenientes do supercontinente Gondwana, que deu origem a todos os atuais continentes, graças ao movimento das placas tectônicas. Trata-se de rochas constituídas por várias camadas, correspondendo a argilitos bem compactados que formam uma espécie de cascalho. É nelas que se encontra o carvão, resultado de florestas que foram encobertas pela água e que sofreram ação de bactérias anaeróbicas1. Hoje, ao extrair o carvão e utilizá-lo como fonte energética, estáse permitindo que todo o gás carbônico nele acumulado seja devolvido novamente à atmosfera. A questão é se a exploração carbonífera, feita 1 132 No período Permiano (entre 270 e 230 Ma), ocorreu o desenvolvimento de densas florestas que, cobertas pelas águas e submetidas à ação de bactérias anaeróbicas, à pressão e ao aumento de temperatura pelo soterramento, vieram a constituir as camadas de carvão da formação do Rio Bonito. Acredita-se que toda essa floresta encoberta pela água, há mais de duzentos milhões de anos, retirou carbono da atmosfera de forma maciça, garantindo uma atmosfera mais adequada para a vida, especialmente para os mamíferos, animais de sangue quente, que necessitam de muito oxigênio. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica pelo homem, está causando as possíveis mudanças que se observam no clima. A extração do carvão é causa de muitos problemas ecológicos, presentes no Estado catarinense. Entre eles está o problema da perita. A perita é um sulfeto de ferro presente nos rejeitos do carvão. Ao entrar em contato com a atmosfera, o sulfeto, juntando-se à água, gera ácido sulfúrico. Esse ácido acaba sendo lançado nos rios, assim como outros metais, ocasionando a contaminação das águas no sul do Estado. Esse tipo de contaminação configura um dos maiores problemas ambientais de Santa Catarina. Problema também significativo são as minas abandonadas e as imensas áreas de aterro para onde se encaminhavam os rejeitos de carvão sem quaisquer precauções. Após o período em que se originou o carvão, formou-se, nos chamados períodos Triássico e Jurássico (entre 250 e 150 Ma), um imenso deserto, conhecido no Brasil como Deserto de Botucatu, originando um pacote de arenitos porosos e permeáveis, com 100 a 200m de espessura: o atualmente famoso Aquífero Guarani2. Cerca de 180 milhões de anos atrás teve início o processo de fragmentação do Gondwana, conhecido como Tectônica de Placas. À medida que os continentes se afastavam, à razão de alguns centímetros por ano, o magma basáltico proveniente do manto da terra ia se depositando no fundo dos novos oceanos que se formavam. Esse mesmo tipo de magma penetrava pelas antigas fraturas da crosta continental, reativadas pelos movimentos tectônicos, espalhando-se então em camadas sucessivas sobre as areias do deserto de Botucatu, e formando um pacote com espessura de centenas de metros de rochas vulcânicas básicas, intermediárias e ácidas da Formação Serra Geral. Temos aqui os basaltos e outras rochas vulcânicas da formação Serra Geral, que correspondem ao quarto grupo de rochas presentes no Estado. O aquífero Guarani, que é uma reserva incomensurável de água, está protegido pelo basalto, que se encontra acima do aquífero. Trata-se do aquífero Serra Geral. É desse aquífero que provém toda a água de poços no Estado. Ele é a fonte de água mais utilizada. Mas deve-se ter precauções quanto ao seu uso. Para entender isso, veja-se onde estão as 2 Aquífero é a rocha onde há um armazenamento de água que pode ser utilizada. O Aquífero Guarani é constituído de rochas sedimentares pertencentes à Bacia Sedimentar do Paraná. Dessas rochas que compõem o aquífero, a mais importante é o Arenito Botucatu, depositado gradualmente desde cerca de 180 milhões de anos atrás. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 133 Teologia, economia e ecologia reservas de água doce no mundo: 68% está nas calotas polares, 29,9% são subterrâneas, 0,9% está em lagos e rios, e 0,9% em outras fontes. Somente 0,3% estão presentes nos rios. Mesmo assim, trata-se de muita água, e com um diferencial: renova-se constantemente pelo ciclo hidrológico. Diferentemente da água subterrânea, que não se renova com a mesma facilidade e rapidez. É grande a poluição dos rios em Santa Catarina. No sul, o problema decorre da exploração do carvão. Na região da grande Florianópolis e vale do Itajaí, deve-se ao precário sistema de saneamento básico, além dos agrotóxicos utilizados na agricultura, em regiões rurais. No centro do Estado, a poluição dos rios vem das grandes fábricas de papel/celulose. Já no oeste, são a agroindústria e a suinocultura as responsáveis pela poluição das águas fluviais. Solução existe, e ela passa pela adoção de sistemas de produção menos poluentes. Devido à poluição das águas superficiais, busca-se extrair a água subterrânea. Contudo, as águas superficiais se renovam constantemente devido às chuvas, o que não ocorre com as águas subterrâneas, que têm uma renovação lenta. A grande concentração de poços em Santa Catarina se dá na região oeste, por causa da poluição das águas fluviais. A água subterrânea é responsável por cerca de 50% do abastecimento de água nessa região. O aquífero Guarani até agora está protegido, mas com o uso constante das águas do aquífero Serra Geral, pode-se chegar à sua degradação. Para conscientizar sobre a importância e como deve ser usada essa reserva de água, está sendo desenvolvido o Projeto rede Guarani Serra geral, com seis grandes metas: hidrogeologia e recuperação ambiental; qualidade da água; políticas públicas; marco jurídico; educação e tecnologias alternativas; e coordenação da REDE. Debatedora: Susana Cordeiro Trebein – Bióloga e técnica da Fatma Apoiando-se na conferência do professor Scheibe, Susana Trebein argumentou que Santa Catarina enfrenta grandes questões ambientais e que, na base dessa realidade, está o ser humano marcado pelo imediatismo. Nosso Estado apresenta uma intensa ocupação do solo, processo iniciado com a chegada dos imigrantes europeus, no século XIX. Eles não tinham um conhecimento adequado do relevo e das condições 134 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica geográficas, ao se estabelecerem em determinadas áreas. Muito menos buscaram valorizar as contribuições das populações que aqui habitavam. A ocupação do solo se deu basicamente pela agricultura e pelo desmatamento. Atualmente, começamos a dar-nos conta de quantos problemas poderiam ter sido evitados se tivesse havido, no passado, um planejamento sustentável. Trebein não deixou de destacar alguns dos problemas ecológicos que mais preocupam nosso Estado. Entre eles: a ocupação desordenada, principalmente no litoral, a falta de saneamento básico, a agroindústria e suas consequências, o problema das minas de carvão no sul e a dificuldade de acesso a água no oeste, a ocupação desordenada do litoral catarinense. Diante desses desafios, sente-se a necessidade do zoneamento ecológico econômico, de uma maior socialização dos conhecimentos junto às populações e uma maior presença das instituições públicas. A bióloga sublinhou também as hidrelétricas e as PCHs (pequenas centrais elétricas) que estão sendo construídas, e as possíveis consequências nocivas ao ecossistema. Por fim, ela lamentou a inexistência de uma secretaria estadual do meio ambiente e dos recursos hídricos em Santa Catarina. Trata-se de um descuido com aquilo que deveria ser fundamental. Esclarecimentos do Prof. Scheibe Quanto ao problema das minas de carvão, salientado pela bióloga, Scheibe afirmou que, de fato, esse não é apenas um problema de sobrevivência, mas, sobretudo, de consumismo e acumulação. Isto se torna mais grave quando se observa a realidade dos mineiros e sua relação com as mineradoras. Os mineiros são quase comparados a materiais de consumo. Eles se aposentam aos quinze anos de trabalho. Quando já estão doentes, com as forças debilitadas, eles são aposentados e o governo passa a arcar com os custos. Lembra o professor que a questão de saúde não se restringe apenas aos mineiros, mas a toda a população, que também sofre com problemas respiratórios decorrentes da extração do carvão. Outro desafio ligado à ecologia, levantado pela técnica da Fatma, refere-se ao acesso à água em Santa Catarina, especialmente na região oeste. Scheibe argumenta que a estiagem existe, mas apenas em algumas áreas e por breves períodos. O problema é que geralmente esses períodos coincidem com os ciclos da agricultura, causando grande perda. A mesma coisa acontece com a suinocultura, que necessita de contínuo acesso à água. Para ajudar as populações a lidar com os problemas deEncontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 135 Teologia, economia e ecologia correntes da falta de água, está sendo organizado o projeto Rede Guarani Serra Geral. O professor explica que é meta dessa iniciativa induzir a um melhor aproveitamento da água, evitando sua poluição e possíveis contaminações dos aquíferos. Ele lembra também que as fezes dos suínos contaminam consideravelmente as águas. Entretanto, os coliformes fecais não sobrevivem por muito tempo. O mais alarmante são outros materiais que são expelidos junto à urina e às fezes desses animais, que afetam a saúde humana. Há locais em que o problema é tão sério, que mesmo fontes subterrâneas estão sendo contaminadas por esse tipo de resíduo animal. Mas não só a água dos rios e poços merece atenção. Há também problema na água engarrafada, quanto à sua qualidade. Em muitos casos, a água que chega às nossas torneiras pela rede de distribuição é de melhor qualidade do que as vendidas em garrafas. E, ligado à suspeita quanto à qualidade da água engarrafada, surge a o problema das garrafas PET, muitas vezes não recicladas. Observando os problemas apresentados, Scheibe adverte que o sistema montado não está voltado à sobrevivência humana. O fim último é sempre o capital, o lucro. “O capitalista não é bom. Se ele for bom, vai à falência”, afirma. Prega-se um modelo de desenvolvimento, que nada mais é que se libertar das amarras de tudo e todos à volta, saindo do ambiente restrito. A ideologia do desenvolvimento sustentável é uma incógnita: até que ponto é realmente sustentável? Desenvolvimento sustentável é uma forma de desenvolvimento que merece ser sustentável, pela sua qualidade. Por fim, ele dá seu parecer quanto ao acesso à água no oeste. Um poço atrás do outro vai provocar uma diminuição na quantidade de água nos aquíferos. Se não houver um controle, a fonte secará. Referente às hidrelétricas e PCHs, o professor usa o exemplo do Rio Uruguai, que está virando uma “escadinha”. O lago de uma barragem chega até ao da outra barragem. Esses lagos estão sendo usados para criação de outras espécies de peixes. Há assim, uma interferência biológica nos rios. Outros esclarecimentos O último momento foi aberto aos participantes da conferência. Perguntou-se ao professor se há preocupação dos órgãos públicos quanto à saúde ambiental e humana, visto o problema das minas de carvão, 136 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica destacando-se a região de Lauro Müller. Segundo o professor Scheibe, há uma tendência atual de controle por parte de órgãos ambientais. As questões, com o tempo, vão sendo atenuadas. Quanto às zonas carboníferas, houve ações contra mineradoras que foram condenadas a recuperar áreas degradadas. O meio utilizado nesse trabalho é cobrir os depósitos de resíduos do carvão com argila. O professor ressaltou que esse método vem trazendo alguns resultados na melhora da qualidade da água de alguns rios. A argila evita que a água entre em contado com o material resultante da extração do carvão, rico em metais e elementos que contaminam a água, que acabavam parando, posteriormente, nos rios. Scheibe também aproveitou o momento para chamar a atenção para a situação em que se encontram os órgãos públicos responsáveis pela fiscalização e preservação do meio ambiente. Ele ressalta o caso da Fatma, que carece da consistência necessária para atuar em todo o Estado. Faltam técnicos e há grande influência política nas decisões. O que conta é o dinheiro e o desenvolvimento. Referente à usina de fosfato em Anitápolis, aprovada inicialmente pelos órgãos competentes, Scheibe afirmou que há capacidade explorativa de fosfato na região. O problema é que o volume de resíduos seria muito grande, chegando a 92% de todo o material a ser extraído. Somente 8% são aproveitados. A produção de material estéril é muito grande. Em outras jazidas, esse material é utilizado para outros fins, o que não aconteceria no caso de Anitápolis. A sugestão da empresa que pretende explorar a área era de acumular esses estéreis em barragens no Rio Pinheiro, formando duas extensões planas. Só que a jazida fica na raiz de um antigo vulcão e está no caminho de chuvas torrenciais. A área é de extremo risco de enxurradas. Logo, as barragens colocariam a população em risco. Uma solução seria extrair e moer toda a rocha e utilizá-la para enriquecimento do solo no próprio Estado, garantindo melhor produtividade no agronegócio. Seria uma forma de exploração que não devastaria o meio ambiente e traria muitos benefícios. Outro questionamento direcionou-se para o problema do estabelecimento de limites para o uso das terras ao longo dos leitos dos rios. O professor observou que reduzir a área de proteção de trinta para cinco metros é um grande risco. Parece que só o lado econômico está sendo observado. Por fim, perguntou-se: Por que a ciência não tem alertado as populações acerca dos perigos da má relação do ser humano com o meio Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 137 Teologia, economia e ecologia ambiente? Segundo Scheibe, as pesquisas são muito recentes, a ciência não previu tal situação. Hoje existe entendimento sobre os problemas, mas o que se deve buscar mesmo são as razões, os motivos reais. Os problemas ambientais não são fruto do uso irracional dos recursos ambientais. Em cada atitude há sempre uma razão forte. A “razão” está ligada com a razão de consumo, de acúmulo... A ciência está evoluindo e mostrando muitos caminhos. A questão é que há uma indisposição para a necessária mudança radical nos hábitos de consumo. III conferencia – Análise Conjuntural da Economia Catarinense Expositor: Prof. Glauco Corte / FIESC Debatedor: Roberto Iunskovski / ITESC Relatores: Kelvin Kons e Marlon Malacoski A economia, essencial na vida humana, deve ter como referencial o ser humano. Nos últimos anos tivemos uma forte crise financeira, que abalou o panorama da economia mundial. Países como Grécia, Itália e Portugal, ainda encontram dificuldades em superar a crise. Os países desenvolvidos foram os que mais sofreram, diferentemente dos países emergentes, que tiveram até um pequeno crescimento. O Brasil se insere nesse cenário como um país emergente, sendo um dos menos afetados pela crise. Para os próximos anos, a previsão econômica é que os países desenvolvidos cresçam, mas os emergentes cresçam mais ainda. Vislumbra-se, portanto, um quadro otimista. Nosso país perde a oportunidade de poder crescer mais, devido à escassez dos investimentos públicos. O que nos ajuda muito ainda são os investimentos privados. Isso se torna um dos obstáculos maiores para o crescimento. Enquanto muitos países emergentes crescem em ritmo mais acelerado, de modo mais eficaz, por causa dos investimentos públicos, nós ainda ficamos a desejar, tendo uma infraestrutura que ainda é deficiente. Um dos fortes fatores que nos ergueram no ano passado, diante de toda a crise mundial, foi o consumo das famílias. Também os gastos do governo foram expressivos também. O mercado interno é que se manteve. O governo incentivou o consumo. O crédito tornou-se amplo, com diversas facilidades. Nenhum banco quebrou, houve participação acionária, um tanto de junções, mas nenhum problema de crédito. E isso se deve a um trabalho anterior de saneamento bancário. 138 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica O setor que mais foi atingido pela crise foi a indústria, mas que já obteve um considerável crescimento neste ano, e irá liderar o crescimento no próximo ano. Tivemos gerações de novas vagas de empregos, bom desempenho nas exportações. Mas enquanto não eliminarmos o problema da infraestrutura, não serão superados os limites do crescimento. Também irão progredir os investimentos e o consumo das famílias. Os investimentos do governo se manterão, provavelmente. Precisariam aumentar, investindo mais e melhor em infraestrutura. Atualmente, a renda das famílias retornou ao ritmo pré-crise (o mais alto patamar da última década) e, houve um aumento significativo do salário mínimo (quase 10%), que irrigou a economia. O aumento do salário mínimo último foi o dobro da inflação, aumentando o poder aquisitivo das famílias. As pessoas abaixo da linha da pobreza seriam o dobro, se não fosse esse crescimento. Houve uma mudança extraordinária na ascensão de classe das famílias: cresce a classe C (de 45 a 49%). Classes A e B (15 a 16%). As classes D e E reduziram (de 40 para 35%). Em 2005 era quase 30% de pobreza absoluta, diminuiu para 11,5%. Aumentou o emprego e o poder aquisitivo. Redução de cerca de 60% de desemprego. Santa Catarina Nosso Estado é composto de 50% de homens e 50 % de mulheres, um pouco diferente da configuração nacional, composta de 49% de homens e 51% mulheres. O Brasil corre o risco da desindustrialização precoce, mas o setor industrial ainda é o que mais emprega, seguido do de serviços. O que é mais predominante em nossa economia é a “microempresa”. Santa Catarina possui um percentual de 93% de microempresas, outros tantos de pequenas empresas, que empregam um total de 56% dos empregados. As empresas de grande porte constituem apenas 1% e empregam 25%. É necessário estarmos cientes dessa realidade, uma vez que as políticas de governo não levam em consideração essa situação: uma microempresa não tem condições de pagar um salário tão bom quanto uma grande empresa. Participação no PIB catarinense: 2003 2007 Indústria 32,88% 35,7% Agropecuária 10,82% 7,2% Comércio e serviços 56,30% 57,1% Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 139 Teologia, economia e ecologia Santa Catarina é líder nacional na produção de cebola e maçã, segundo em arroz e fumo. Terceiro em trigo e bananas. Mesmo tendo um território pequeno, dá uma contribuição expressiva. É também o segundo Estado na produção de frango. Primeiro em suíno e pescados. A atividade industrial catarinense se compõe de: 17,29% alimentos: por isso nosso crescimento não foi grande comparado ao restante; 9,76% máquinas, aparelhos e materiais elétricos; 8,69 % vestuário; 7,54% têxtil. Nota-se que é diversificada a produção. Há polos bastante distintos, característicos, mas com padrões de desenvolvimento basicamente equilibrados. Desse modo, possuímos o 2° maior PIB per capita do Brasil. Tivemos uma boa recuperação na geração de empregos. Em 2009 eram quase 30 mil. Neste ano chegamos a cerca de 85 mil. A área que mais contribuiu foi a metal-mecânica e a têxtil de vestuário. Esse crescimento de empregos pode ser considerado a melhor notícia para SC, pois o que dá dignidade para a pessoa é a carteira de trabalho assinada. Santa Catarina é o primeiro Estado brasileiro nessa relação de carteira assinada. Nas exportações estamos abaixo da média do Brasil, porque a grande maioria dos produtos que são exportados nós não produzimos, como minérios etc. Um destaque da exportação nossa é o frango e, agora, o fumo. Do fumo não somos os produtores em si, mas processadores. Já na importação, temos uma média bastante alta. Enfim, um fator importante a ser destacado e que prejudica a nossa economia é que 20% de nossa produção se perde na logística (transportes, burocracia etc.), que é o dobro do que é nos EUA. Superando problemas como esse, nosso crescimento poderá apresentar um quadro mais otimista ainda. Debate: Prof. Roberto Iunskovski: O modelo de desenvolvimento econômico e a oportunidade de acesso ao crédito por outro modelo Pensando a realidade vivida no Brasil e Santa Catarina nos últimos anos, sob a perspectiva econômica, veem-se alguns aspectos mais positivos. Entretanto, poderíamos nos questionar sobre o modelo que subjaz à ideia de crescimento econômico e que norteia a economia de nosso País e de nosso Estado. O crescimento econômico torna-se um fato em 140 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica Santa Catarina, mas tem de outro lado as suas preocupantes consequências: nosso Estado apresenta um alto índice de êxodo rural, levando a concentração da propriedade para determinados setores. A indústria do carvão acarreta consequências gravíssimas, como a poluição demasiada e os problemas sérios de saúde nos mineradores. Ainda somos um dos piores países na distribuição de renda, apesar de esse aspeto em Santa Catarina não ser tão grave. Crescimento, sim, mas a custa de quê? Um segundo ponto é a questão da crise financeira. Um dos elementos que garantiram a diminuição do seu impacto foi o consumo das famílias, e nele a questão do crédito. Hoje, alguns setores mostram o crescimento da inadimplência. Registra-se uma dificuldade de saldar essas dívidas. Dentro do crédito, temos a grande dificuldade da concentração do sistema financeiro nacional: três ou quatro grupos com quase 90% do dinheiro do Brasil. Bancos com rendimentos díspares em relação àqueles que produzem. Para financiar uma casa, fora os programas do governo, os juros dão um valor altíssimo no final das contas (quase 10%). O cooperativismo de crédito, apesar de ser pequeníssimo, já causa uma provocação nos grandes grupos. É nos últimos anos que se está recuperando: já constitui 2% dos ativos, mesmo com diversos movimentos que visam prejudicá-lo. Porque as pessoas hoje não se associam numa cooperativa, onde irão pagar menos taxas? Prof. Glauco: Visão mais otimista. A melhora da saída da pobreza foi mais pelo emprego do que pela bolsa-família. Ajudou a diminuir a desigualdade. O que faz a diferença é o emprego. Todas as ações, por isso, devem ter um destinatário: o ser humano, o trabalhador. O problema, antes, era só o devastamento. Agora, é só reflorestamento. O carvão é melhor do que há décadas atrás. É mais difícil aprovar usinas de carvão, por força dos avanços, das exigências. Os tempos mudaram. Por força das novas legislações e fiscalizações, as atividades são menos prejudiciais. A inadimplência não deve crescer, pois, se as pessoas estão empregadas, terão como saldar suas dívidas. Certamente as cooperativas de crédito devem ser mais incentivadas. Os bancos ganham demais, cobram demais. O governo não incentiva muito as cooperativas, e os grandes bancos comerciais não gostam. O problema do êxodo rural não é tão grave atualmente. Mais que o êxodo, a urbanização está chegando no campo. As cidades do interior já têm até faculdade. A taxa de desemprego Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 141 Teologia, economia e ecologia nacional que gira em torno de 8% a 10%, em Santa Catarina se constitui em torno de 7% a 8%. Hoje há falta de trabalhador em SC. Professor, o senhor lembrou que, em cinco anos, a pobreza diminuiu em Santa Catarina de 30% a 11%. Com este dado podemos afirmar que a pobreza atual é diferente da pobreza de cinco anos atrás? É “um tipo de pobreza diferente”? O pobre não mudou. Mas está reduzido em número. Os que estão ascendendo, têm um padrão de vida diferente dos dessa classe há 10 anos, com as facilidades e propagação da tecnologia, os benefícios do progresso, acesso facilitado à habitação. Sobre a configuração das exportações, suínos e fumo ainda sustentam o agricultor em suas propriedades. A Cáritas favorece a transição do cultivo do fumo para o de alimentos. Como fica essa problemática? Santa Catarina está deixando de produzir o fumo. Nossas propriedades são menores. Somos grandes exportadores do fumo, porque recebemos a matéria prima do Rio Grande do Sul, e aqui nós processamos. Quando se falou em micro e pequenos empresários, houve um “brilho nos olhos”, como uma saída econômica. O senhor visualiza uma concorrência entre a microempresa (que tem mais facilidades de impostos etc.) e a grande empresa? Não se cria uma sobrecarga de tributação nas grandes empresas? Nosso Estado é favorável ao andamento das microempresas. Elas não se afetam tanto com as grandes crises pela sua estrutura, uma vez que quase não exportam, tem menos empregados etc. Porém as políticas sobre o andamento dos empreendimentos acabam por favorecer a estagnação das microempresas. Se a microempresa avança, começa a ter maiores tributos e burocracias. Por isso preferem ficar onde estão, ou então abrem outras microempresas. O empregado negligente também se beneficia com a legislação do trabalho. Há quem “crie caso” para ser despedido e receber os benefícios. O custo desse desenvolvimento é a precarização do trabalho: os danos corporais, terceirização, desresponsabilização social e ecológica, o colapso da previdência. E quem paga a conta é o trabalhador. O que o professor tem a dizer sobre essa questão? O maior custo é o emprego. As políticas do governo e a legislação fornecem boas condições de trabalho. Por isso é importante que se 142 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica favoreça a terceirização: que a empresa se preocupe com seus objetivos finalísticos, com aquilo que é o seu específico. Diante disso é preciso haver alterações na legislação, que é antiga e acaba não acompanhando o crescimento e as mudanças na configuração da economia. Como o senhor percebe a participação da juventude no mercado de trabalho? Ela tem apresentado a qualificação necessária? Quem está concluindo a universidade tem encontrado fácil acesso ao mercado? Há um problema: não há áreas que aceitem funcionários sem qualificação profissional. Um dos recursos para ajudar nessa questão seriam as aulas profissionalizantes, ao lado das aulas normais. Empresas com programas de recrutamento, programas que viabilizem a contratação de recém-formados. Prof. Glauco, o senhor afirmou que hoje em Santa Catarina o interior está se urbanizando. Isso significa que, no panorama estadual, o êxodo rural tem diminuído? Se diminuiu, por quê? Vejamos o êxodo rural: porque tem diminuído tanto? As condições do campo são melhores: estradas, acessos asfálticos, escolas, faculdades. Os investimentos vão um pouco para o interior. Se tivéssemos mais investimentos, com aeroportos, estradas decentes etc, a população do campo aumentaria. Com uma logística que custa muito: gastos de envio, transportes e tudo o mais, as coisas demoram mais, e consequentemente saem mais caro. Na área da educação fundamental e educação profissional o quadro é ruim, o professor não é valorizado. Falamos de crescimento nas escolas, mas a educação é de péssima qualidade. IV conferência: Economia de comunhão Conferencistas: Empresário Sergio Pina Professor Mauricio Serafim – UDESC Ana Fatima Athias – Mov. Focolari Empresária Milena Cordova Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 143 Teologia, economia e ecologia V conferência – aspectos da Economia catarinense Conferencista: Debatedor: Relatores: Prof. Armando Lisboa / UFSC Jornalista Estela Benetti Nicanor Alves de Lima e Emerson Henrique Citadin. Falar numa “economia catarinense” pode ser um grande equívoco, uma ilusão. Ao olhar para os estados vizinhos, Paraná e Rio Grande do Sul, vê-se uma atividade econômica fortemente concentrada em pólos: Curitiba (Ponta Grossa); Porto Alegre (Caxias). O mesmo não ocorre em Santa Catarina. Em nosso Estado a economia está voltada para polos regionais, com suas respectivas peculiaridades: metalurgia (Joinville – Jaraguá), têxtil (Vale do Itajaí), moveleira (Planalto Norte), agroindústria (Oeste – Meio Oeste), cerâmica (Sul), prestação de serviços, turismo e tecnologia (Florianópolis). Essa é a característica de Santa Catarina: somos mais distributivos do que os Estados vizinhos. Uma economia de várias “Catarinas”, regiões relativamente independentes. Essa gama distributiva deve-se ao estilo de nossa imigração, no caso, europeia. O dinamismo de nossos imigrantes possibilitou a pulsão e diversificação da economia. No entanto, o preço foi a fragmentação cultural e regional. Não é observável em Santa Catarina uma economia que vise à unidade produtiva. Entretanto, o nosso Estado é marcado pelo macro-processo econômico. A macro esfera intervém aqui. É o que presenciamos, sobretudo, em três lugares: a desapropriação de campesinos em Imbituba, onde ocorreu a interferência e a agressão policial, envolvendo a Votorantim. Outro caso, oportuno de ser lembrado, é a instalação da mina de fosfato, em Anitápolis, e seu possível impacto ambiental. E, mais próximo de nossa realidade, o projeto de construção de um estaleiro na baía norte da ilha de Santa Catarina, pelo grupo econômico de Eike Batista. Para tanto, medidas públicas nacionais e estaduais precisam ser tomadas! No passado, assistimos à construção de uma ferrovia que originou a revolta do Contestado. A empresa Brazil Railway Company, de propriedade do estadunidense Percival Farquha, tinha o objetivo de construir uma ferrovia e, ao mesmo tempo, reivindicava a aquisição e exploração das terras vizinhas. 144 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica Temos vantagens, mas não somos um modelo próprio. O mosaico econômico catarinense é real, mas não podemos acreditar que formamos uma economia própria diante da grande economia nacional. Quando se fala em “economia catarinense”, ocultam-se esses vínculos mais amplos, enfocando apenas os elementos nossos (provincianos), e invisibilizando esse jogo maior, dentro da perspectiva de nação, a que estamos ligados. As contradições nacionais estão presentes aqui, e “Santa” Catarina não é tão santa assim. Um sonho: nossas dificuldades locais não devem impedir-nos de desejar um projeto de economia regional. Por isso, devemos ter a coragem de buscar uma integração estadual em vista da esfera nacional. No entanto, no momento presente, devemos ser realistas, pois as macrodinâmicas capitalistas são imperantes em nossas perspectivas econômicas. Em virtude dessa regionalidade, o Estado carece de personalidades políticas, de lideranças com projeção nacional: não temos representantes com força expressiva. Essa ilusão de que a diversidade configura um modelo próprio, tem-nos impedido de pensar o Brasil. Ficamos presos ao local. Desse modo, não conseguimos pensar os grandes projetos. Acreditamos possuir um modelo próprio (regionalidade), mais equilibrado; mas isso nos debilita para enfrentar os verdadeiros problemas. Em Santa Catarina não temos uma percepção de conjunto, e exogenamente somos conduzidos às praticas governamentais federais. É um consenso de quem trabalha nessa área: devemos sair dessa discussão de um “modelo catarinense”. Não há um modelo catarinense, o que existe é uma variedade regional. Intervenção de Stela Benetti A economia catarinense é um modelo dividido desde a colonização. Mas é verdade que vivenciamos uma cultura de apreço à beleza e educação, um protótipo europeu que herdamos de nossos pais. Nossas indústrias oferecem razoáveis opções de trabalho, mas ao custo de baixos salários, talvez por sermos dependentes de uma iniciativa federal. Por isso, entende-se que, no funcionalismo público, ocorre o contrário: bons salários e estabilidade de emprego. Outro aspecto curioso é o fenômeno da sazonalidade dos empregos em nossas áreas litorâneas. Muitas cidades de beira mar gerenciam seus capitais em torno dos ciclos turísticos. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 145 Teologia, economia e ecologia O caso do Grupo Votorantin e a instalação da mina de fosfato, na região de Anitápolis, têm como objetivo a administração de recursos, que possibilitem a geração de empregos diretos e indiretos; mas a fosfateira pode ocasionar a poluição daquela região. O possível estaleiro de Eike Batista talvez seja instalado no estado do Rio de Janeiro. A intenção é a construção de um estaleiro que obedeça às ordens ambientais, respeitando toda a geografia e ecossistema local. O interesse na região, por parte do grupo empresarial de Eike Batista, seria por causa da qualificação de nossa gente nas áreas de informatização de software, a tradição no ramo metal-mecânico, bem como a especialização da construção naval adquirida na região de Itajaí. A perspectiva de produção seria de seis navios por ano; e as dependências, do porto desse estaleiro, seriam utilizadas para o atracamento de navios, em vista de um turismo marítimo regional. A economia catarinense, para melhorar, precisa de investimentos na educação e, consequentemente, uma qualificação dos professores. Existem dificuldades no sistema educacional que precisam ser sanadas. Para tanto, requerem-se políticas de incentivo que valorizem o rendimento e o ingresso dos estudantes no campo universitário, a exemplo do sistema ProUni (Programa Universidade para Todos). Perguntas dos participantes Pe. Valter Maurício Goedert – As empresas devem respeitar as normas ambientais, sim. Porém, não existe indústria que não polua. Se ficarmos numa posição radical, nunca construiremos nada. O que não se pode esquecer é a preocupação com os impactos no meio ambiente. As grandes empresas devem se comprometer em afetar o menos possível. Não podemos ter uma posição radical, é necessário um jogo de cintura. Santa Catarina tem a característica da regionalidade. O que pode ser negativo, quando as regiões não se unem por um motivo maior. Prof. Armando – Não sou contra o Projeto do Estaleiro. Quero chamar a atenção sobre a existência de um bastidor nacional. Não é uma articulação casual, há um jogo por trás. Do mesmo modo, não se pode negar o impacto para a região. As mudanças afetarão radicalmente as condições de vida da região. Temos que pensar além da condição econômica. Esse é o melhor lugar? E por trás disso: em que projeto de nação apostamos, com esse modelo? 146 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica Pergunta: O modelo político catarinense de Secretarias Regionais não seria um empecilho à unidade política estadual? O caminho não seria uma maior centralização? Stela Benetti: Não acredito no modelo de descentralização como se dá aqui. O grande problema é o aumento dos gastos com o funcionalismo público. Perde-se dinheiro que se deveria aplicar em outras áreas (educação e saúde). Algo positivo das secretarias é a descentralização de algumas decisões.Seria interessante uma campanha, nos meios de comunicação, a fim de unir os catarinenses. Ao mesmo tempo em que a economia é descentralizada, outros aspectos não o são, como as Universidades públicas. Somente agora, 50 anos após sua fundação, é que a Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, avança para outras regiões. Pe. Roque Favarin: A provocação do Prof. Armando coloca em xeque o modelo de desenvolvimento atual e quem o pratica. Acreditase que “desenvolver” é sinônimo de uma indústria que se instala e gera empregos. Não se pensa nas consequências. Isso leva a pensar: o que é “desenvolvimento”? Vai beneficiar a quem? O desenvolvimento deve ser sempre da escala humana, sendo que as necessidades locais devem exigir os investimentos. Como criar uma nova sociedade? Como fazer as pessoas terem mais voz? Implicado nisso está o modo como nós consumimos as coisas. É o consumo que sustenta os grandes projetos. Prof. Armando: Caso houvesse uma real descentralização, as decisões sobre esses grandes projetos deveriam passar pelas comunidades locais, segundo o princípio da subsidiariedade. Para o corpo humano a obesidade é um problema, apenas cresce a barriga. O que estamos construindo não é para o corpo social, mas apenas para crescer a barriga. Quer dizer, os grandes projetos não são para resolver a pobreza, apenas para continuar enriquecendo a poucos. Ademar: A indústria do meio ambiente é uma das que mais crescem no Estado. Como você vê a indústria ambiental? Prof. Armando: Ecologicamente não somos uma “ilha”, estamos vinculados com a América Latina e com o mundo. O que está aqui é a macro-dinâmica. As queimadas do cerrado, no norte do país, influenciam na seca do oeste catarinense. O que me espanta é a não veiculação de muitas informações, sobretudo das queimadas. No belo modelo catarinense, Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 147 Teologia, economia e ecologia o grupo que domina a comunicação em Santa Catarina é um monopólio comunicativo, a RBS, governada por um gaúcho. Fabiana: Sofremos um problema na educação, cada vez mais voltada para a técnica. As pessoas são ensinadas a apertar botões e não conseguem discutir política. Como estamos discutindo a questão climática? As mudanças aqui? Como pensamos o modelo social? Prof. Stela: Os professores têm a liberdade de ensinar além da matéria. O que falta é o tempo para preparar as aulas, como também a remuneração adequada. Os professores deveriam orientar melhor os alunos. Prof. Dietrich: Que modelo de sociedade a gente quer? Na imprensa aparecem mais as vozes dos grandes interesses do que as das vítimas. Quem são as vítimas desse modelo de exploração? As humanas e ambientais. São essas vozes que devemos fazer ecoar. Prof. Armando: Concordo em parte com essa afirmação. Ao falar de “vitimização” podemos cair em erro, marcando uma posição polarizada. Todos somos autores (exploradores) e vítimas; somos vítimas e vitimadores. VI Conferencia: A Teologia face à Economia e seus desafios Conferencista: Debatedor: Relatores: Jung Mo Sung Pastor Renato Becker/IECLB – Joinville Armando Rafael Acquaroli e Claudemir Serafim Primeiramente, é mister situar a reflexão da economia no âmbito da teologia. A economia é uma face da Doutrina Social da Igreja, que é uma parte da Moral Social. Esta, enquanto disciplina, ainda é muito recente, dado que o primeiro livro que a aborda é de 1976. Não obstante, a separação entre teologia moral e sistemática se dá a partir de Kant. “Seguir Jesus define o cristão. Refletir sobre essa experiência é o tema central da teologia”, diz Gutierrez. Teologia é a reflexão crítica sobre os dados da fé. Hoje há um conflito entre estudantes que vêm em busca da teologia a partir de uma experiência de fé, e outros, mais interessados numa reflexão sistemática que se pretende como ciência. 148 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica Ser cristão significa seguir os passos de Jesus, o que implica um contexto de caminho. Ora, o caminho que trilhamos é perpassado de modernidade. De que modo? Antes de qualquer outra característica, é própria do mundo moderno a questão econômica. Caímos na tentação de achar que a modernidade é o que os modernos comentam a seu respeito: oposição entre fé e razão; religião é coisa de crianças, mulheres e pobres; oposição entre secular e religioso, isto é, a Igreja não tem que discutir questões políticas. O progresso é a boa nova do mercado. A modernidade liberal é o primeiro movimento que propõe uma boa nova não religiosa. Aquilo que a religião promete para depois da morte, o capitalismo liberal o realiza agora. Portanto, desloca-se o paraíso. As três formas de morte que mais se temem são estas: fome, doença, guerra. No entanto, tudo isso é solucionado pelo capitalismo. A fome é resolvida com o crescimento econômico. As doenças são curadas com o progresso da medicina e dos remédios. E as guerras são solucionadas com o movimento do capital. Por conseguinte, a modernidade capitalista tira o paraíso do céu e o foca no mundo, substituindo a Igreja pelo Mercado. Afinal, qual é a missão da Igreja? Santo Tomás de Aquino diz que sabemos mais de Deus o que Ele não é, do que o que Ele é. O que precisamos é desmascarar a idolatria, discernindo os falsos deuses modernos e apontando o Deus verdadeiro. A primeira tentação idolátrica é pensar que o deus que se tem na cabeça é o Deus verdadeiro. Weber, o filósofo do desencantamento, diz que, assim como os antigos da Grécia ofereciam sacrifícios aos seus deuses, hoje as pessoas continuam oferecendo-os a deuses impessoais. Isso significa que a razão moderna tenta racionalizar o irracional. Não é verdade que o mundo moderno perdeu o critério da verdade. Mamon é o critério universal abstrato, o dinheiro, os números, as porcentagens, as medidas, os lucros... Precisamos contrapor a isso um critério efetivo: Deus, que é amor/solidariedade e relação de comunidade. Portanto, seguir Jesus é possibilitar que as pessoas experimentem Deus na relação concreta de comunidade. A razão moderna idolatrou o deus dinheiro e com ele racionalizou o irracional. Matar milhões de pessoas para acumular riquezas é irracional. Mas, para tudo isso, buscou-se dar uma razão (razão instrumental). Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 149 Teologia, economia e ecologia Pastor Renato Becker – IECLB Ninguém pode servir a dois senhores: com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Lc 16,13). O reformador Martim Lutero tinha uma visão muito clara da realidade social de seu tempo. As grandes casas bancárias lideradas pela família “Függer” (Augsburg – Alemanha) financiavam os príncipes europeus e também as “grandes excursões” que ousavam atravessar os mares em busca da conquista dos novos tesouros, como o ouro dos Incas e dos Astecas. Lutero criticou a usura do comércio que se aninhava no “pré-capitalismo”. Cabe frisar que a usura era proibida pela lei canônica, mas a conjuntura da época facilitava essa prática que até teve bênção relativa da Igreja. A “ética empresarial” de Lutero transparece em muitos dos seus escritos. Para ele, os juros excessivos eram roubo. Ele entendia que a vontade de Deus implicava o perdão das dívidas dos pobres e necessitados; a ajuda gratuita para a resolução dos seus problemas financeiros; o empréstimo de dinheiro somente se a quantia fosse exatamente a necessária para a resolução das dificuldades. Os juros cobrados nunca deveriam ser maiores do que 6%. Claro que ninguém observava essa máxima. Os donos do dinheiro exploravam sempre de novo os empobrecidos, e Lutero entendia isso como “prática ímpia de idolatria”. Para ele, o credor era um servo do “Deus Dinheiro” e ponto final. É interessante notar que Lutero converteu uma questão ética sobre Economia em questão doutrinária, quando se pôs a explicar o Primeiro Mandamento. O que quero dizer com isso? “Eu sou o Senhor, seu Deus. Você não deve ter outros deuses além de mim” (Ex 20,2-3). É exatamente neste Mandamento que, na negação, se percebe uma clara oposição a todos os conteúdos que compõem a vida e que podem vir a ser adorados, reverenciados como “outros deuses”. É aqui que, num lugar de destaque, se mostra o “Deus Dinheiro”, o maior ídolo da terra. Lutero qualificou o comportamento econômico vigente de sua época como idolátrico. Ele entendia o “apego ao dinheiro” como o mais perigoso ídolo no lugar que, por natureza, era de Deus. Cabe frisar que os escritos mais importantes de Lutero são estruturados com base em três pensamentos neo-testamentários: 150 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica 1. É preferível dar. A proposta que Deus dá para a Comunidade é a “doação”. 2. É preferível emprestar a pedir emprestado, e isso, sem taxa de juros. 3. É preferível dar o casaco àquele que pede nossa manta. Assim Martim Lutero faz chegar a “Teologia da Justificação por Graça e fé” (somente pela graça, somente pela fé) às pessoas de senso comum. Se Deus nos dá tudo, então não nos cabe reter o que está dado para todos. VII conferência: Crítica Teológica ao neoliberalismo Conferencista: Jung Mo Sung Debatedor: Vitor Galdino Feller/ITESC Relatores: Marcelo Buss e Ederson Iarochevski VIII conferencia: Implicações Éticas sobre a Economia Conferencista: Jung Mo Sung Conclusões finais: Pe. Vilmar A. Vicente Relatores: Fernando Cargnin e Tiago Tomás Encerrando as atividades da Semana Teológica, em sua última sessão, o professor Mo Sung refletiu sobre as implicações éticas da reflexão teológica sobre a economia. Apontou alguns marcos categoriais, o modo de pensar a prática de como podemos influir, fazer a diferença na questão econômica. Eis os eixos-temáticos: complexidade, utopias e limites, níveis de ética, e o drama existencial e espiritual de quem luta e não vê mudanças. Para se poder relacionar teologia e economia, precisamos sair de uma visão analítica, onde se separam as coisas. Na visão analítica, dividese o problema no máximo número de partes possíveis, analisa-se cada uma rigorosamente, e depois se ajuntam. A sociedade é uma junção de sistemas: economia, política, cultura e religião. São coisas diferentes. A partir daí estamos acostumados a escutar que teólogo não dá palpite sobre economia e que economia não tem nada haver com religião. É assim que aprendemos a pensar, mas na vida não é assim. Nós precisamos de uma Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 151 Teologia, economia e ecologia teoria que seja capaz de dar conta disso, e a teoria que vou propor para vocês começarem a pensar é o “conceito de complexidade”. Já ouvimos falar muito em “complexidade”, e ela virou a palavra da moda. Na década de 80, quando não se sabia qual era o problema, diziase que era falta de “conscientização”. Quando não se sabia o que fazer, diziam: vamos “conscientizar”. Hoje, quando não se sabe explicar alguma coisa, diz-se: “Ah, isso é complexo”. Mas, o que é “complexo”? O termo vem da palavra latina “complexus” e significa “o que foi tecido junto”3. Há, portanto, “complexidade”, quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, político, sociológico, psicológico, afetivo, mitológico, o que, segundo o pensamento de Edgar Morin, é a religião). Tudo está misturado. Há especificidade em cada um, mas a articulação é inseparável. Há um tecido interdependente, interativo, inter-retroativo entre o objeto do conhecimento e o seu contexto, as partes do todo, o todo e as partes e as partes em si mesmas. O pensamento analítico privilegia as partes, o pensamento holístico privilegia o todo; e o pensamento hologramático propõe pensar a relação entre as partes e o todo de um modo diferente. As partes estão no todo, só que o todo também está nas partes. Como? Isso parece uma contradição lógica. Explico: vejamos o exemplo de uma célula. Ela é uma parte do corpo humano, só que essa célula contém todas as informações do corpo. Esse exemplo esclarece uma nova forma de pensar a realidade. Desse modo entendemos que a economia é uma parte da sociedade, mas todos os aspectos da sociedade estão na economia. Portanto, na economia há questões políticas, jurídicas, ecológicas e também teológicas. A teologia é uma parte do pensamento e a religião é uma parte da sociedade, e percebemos que questões econômicas estão na religião. Aqui há também questões políticas, psicológicas e sociológicas etc. Não dá para refletir as partes separadamente, se uma implica na outra. Um exemplo claro disso, e que é muito antigo, é o caso dos dez mandamentos. Os mandamentos têm como centro o quinto, “não matarás”, que por sua vez vem casado com o quarto, “honrar pai e mãe” e com o sexto, “não cometerás adultério”. Essa ligação nos prova a sua inter-relação: não podemos analisá-los como blocos separados. Dessarte, quando falamos em teologia e economia, precisamos lembrar que a teologia não pode 3 152 Definição de Edgar Morin, grande sistematizador dessa teoria. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Semana Teológica perder a especificidade de sua perspectiva teológica, mas também não pode viver como um fio isolado do mundo. Esse fio (teologia) se articula na tessitura com os outros aspectos, e isso é uma das coisas que se pode aprender com esta leitura conjugada dos dez mandamentos. O segundo eixo-temático que nos leva a refletir sobre as implicações éticas da reflexão teológica sobre economia é a questão da utopia e da ação humana. Aqui consideramos um problema sério. Falar de utopia gera mais polêmica do que falar nos dez mandamentos, pois utopia muitas vezes é entendida como algo impossível de se realizar; aquilo que ainda não tem lugar na realidade etc. Contudo, neste caminho que estamos percorrendo, “utopia” vem a ser um horizonte de perfeição. Por exemplo: um engenheiro, quando quer fabricar um motor econômico, qual é o objetivo final que ele quer alcançar? Um motor que não precise de combustível! E ele tenta construir motores que precisem cada vez menos de combustível. É a ideia da perfeição que o faz continuar tentando. Assim sendo, a utopia vem ser um horizonte de perfeição que nos dá sentido para compreender e caminhar. Se eu tenho uma utopia, eu olho para a realidade de um modo diferente: a utopia torna-se um critério para julgar o presente, olhando para o futuro. Cada utopia dá sentido para o presente e um rumo para as ações. Por isso entendemos que a “utopia do Reino de Deus” é um horizonte para nossa vida, pois todos queremos um mundo mais justo, fraterno e igualitário. O grande problema das nossas lutas é que medimos as nossas conquistas não a partir de onde saímos, mas a partir do horizonte, que nunca chega. É preciso, portanto, que haja uma mudança de mentalidade nas reflexões e no modo de conduzir as nossas ações. Para entender racionalmente isso, percebemos quatro tipos de limites que nos rodeiam e que de certa forma vão nos intimidando frente às ações. O limite técnico-operacional, por exemplo: “eu não sei falar russo, mas posso aprender”. Nós ainda não temos energia elétrica sem fio, mas podemos ter, tecnicamente falando não é impossível. Quem poderia imaginar que teríamos internet sem fio, onde em qualquer canto e lugar há pessoas se conectando? Existe outro tipo de limite que chamamos de “limite sistêmico”. Numa sociedade escravagista, é impossível que todos sejam livres. Portanto, para que todos sejam livres, é preciso superar o sistema. Existe também o limite humano-histórico, por exemplo: “eu não posso voar sem equipamento, eu não posso viver eternamente, eu não posso estar Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 153 Teologia, economia e ecologia em três lugares ao mesmo tempo”. O que nós não gostamos, quando falamos de utopia, é isso. Certas coisas nós mudamos com a evolução, outras coisas nós não conseguimos mudar. Só que entre o limite lógico e o limite da condição humana existe um espaço, e esse espaço é o espaço do desejo que transcende a nossa possibilidade. Nós somos capazes de desejar o impossível, seja para o mal, seja para o bem. O ser humano é a única espécie que é capaz de desejar o impossível, pensar além do biológico. É por isso que o ser humano pode pensar em Deus, pode pensar na vida eterna. Se conseguirmos perceber esses limites, ao discutir a partir da perspectiva ético-teológica no mundo, é preciso perceber que há níveis diferentes da ética na vida prática. Existe o nível dos princípios éticos universais, como por exemplo: “é preciso defender a vida”. Mas a vida não se defende assim. De fato, para defender a vida, a pessoa precisa ter diretrizes: defender a vida de quem? que tipo de vida? Consequentemente, são necessárias estratégias éticas, o que é o segundo nível na vida prática: temos recursos escassos, temos conhecimento escasso, tempo escasso, dinheiro escasso, pessoas em número escasso. Fazem-se necessários uma organização e um planejamento de ações. Dentro dessas estratégias éticas, precisamos descobrir quais os tipos de técnicas que temos à disposição. É o que chamamos de discernimento ético – terceiro nível da ética na vida prática. Através desses níveis da ética na vida prática, vamos percebendo que são muitos os olhares e caminhos que nos levam a determinada conquista. Entretanto, nem todos esses caminhos nos apontam seguranças. Diante da reflexão que aqui nos propomos, percebemos que existem modos diferentes de se administrar o capitalismo. E, se queremos mudanças na sociedade, precisamos começar por nós mesmos, pelos nossos desejos e nossas conquistas, nossas utopias e lutas diárias. “Não há esperança se não houver dor”! O reinado de Deus não é “uma nova sociedade”, pois ele não acontece se não somos nós que o construímos. Deus, que é Amor, “reina”, quando nós praticamos o amor solidário e a luta pela justiça nos faz tornar mais humanos. Eis a nossa vocação: tornar-nos mais humanos, porque nós amamos e somos amados por pessoas que se descobrem humanas nessa presença da Igreja, dos cristãos e das pessoas de reta vontade. 154 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 VERBUM DOMINI Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI Entrevista com Johan Konings* * O entrevistado é padre jesuíta, Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain e professor na Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus, de Belo Horizonte, autor de muitos livros e artigos na área bíblica. Ele foi um dos dois exegetas brasileiros que participaram como peritos no Sínodo de 2008. Entrevista Publicada em IHU (Unisinos), 19/12/2010. Disponível em: <http://www. ihu.unisinos.br/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&i d=39397>. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011, p. 155-164. Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI Como o senhor analisa a recente Exortação Apostólica Verbum Domini, a partir dos debates e das questões destacadas no Sínodo, em 2008? O Documento representa com bastante fidelidade o que foi dito no Sínodo, tanto nos relatórios como nas Proposições aprovadas pela Assembleia. Evidentemente, tudo passou por um amplo processo de redação e de enriquecimento, sobretudo mediante citações de documentos anteriores do Magistério, dos Santos Padres, do próprio Bento XVI. Como todos esses elementos estão identificados nas referências de fonte (nas notas de rodapé), fica fácil reconhecer os acentos próprios que o Papa houve por bem reforçar, como sejam, principalmente: o encontro pessoal com Cristo, a questão do secularismo e a dimensão da fé, ou, mais exatamente, a circularidade dos métodos histórico-crítico e teológico no estudo bíblico. E também a liturgia e a lectio divina. A Exortação também se apresenta como um aprofundamento da Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano II. Em geral, quais são as ressonâncias ou os distanciamentos entre esses dois documentos? Como o foi o Sínodo, a Exortação é uma reflexão a partir da Dei Verbum, e também da anterior Encíclica Divino Afflante Spiritu de Pio XII, 1943, e do posterior documento da Comissão Bíblica de 1993. À primeira vista, não aparecem contradições. Talvez os teólogos mais críticos descobrirão, com o tempo, diferenças de acento, mas não parece que algo de essencial esteja em jogo. Poderíamos dizer que Pio XII, o Concílio e a Comissão Bíblica estavam mais preocupados em legitimar o estudo histórico-crítico e literário, enquanto a Exortação, refletindo certamente a preocupação do próprio Papa, procura fomentar a dimensão teológico-espiritual da leitura bíblica como mensagem para a vida pessoal e comunitária hoje, sem abrir mão do estudo científico do sentido primeiro, sem o qual o sentido de atualidade não teria base. O ponto central do Sínodo foi a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Em traços gerais, como a Exortação final interpreta e atualiza o conceito “Palavra de Deus”? O que, para o teólogo, mais salta à vista é que o Documento fala da Palavra de Deus como um “acontecer” e como um “encontro“. Costumeiramente, ao ouvir o termo “Palavra de Deus”, pensamos quase 156 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Entrevista com Johan Konings automaticamente num livro, a Bíblia; e quando se diz “o Verbo de Deus”, pensamos na segunda pessoa da Santíssima Trindade, Deus Filho. Claro, tudo isso está certo, mas o Documento quer abrir nosso olhar e nosso modo de pensar para o ato, o “evento” de comunicação de si mesmo que Deus realiza para conosco, sua autocomunicação ou revelação. Esta é uma realidade maior que a Bíblia. A Bíblia faz parte da palavra de Deus e a contém de modo totalmente singular, mas não é pura e simplesmente “a Palavra de Deus”. Por outro lado, o evangelista João diz que Jesus é a Palavra de Deus em pessoa (cf o evangelho de João, especialmente Jo 1,14 e 1,16-18). E devemos completar isso pelo que diz o início da Carta aos Hebreus (Hb 1,1-2): “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho...”. Deus não é um objeto sobre o qual possamos falar como se estivesse disponível à nossa observação e elucubração. “Ninguém jamais viu Deus” (Jo 1,18; também 6,46; 1ª Carta de João 4,12). Mas “o Unigênito, que é Deus e está junto do seio do Pai, este no-lo deu a conhecer” (Jo 1,18). E esse “dar a conhecer” não é um ensinamento em forma de conceitos, dogmas ou teses, mas uma história que se narra ou se expõe, como diz o texto original de João 1,18 (exegêsato, em grego). É a história de Jesus de Nazaré. Ao narrar-se o que aconteceu em Jesus de Nazaré, conhecemos a Deus, que ninguém jamais viu. Na hora de concluir sua história na terra, Jesus dirá: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9), pois naquela hora ele vai dar sua vida por amor até o fim, e assim ele mostra Deus, pois “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Esse acontecer, em que Deus se dá a conhecer, só chega a seu pleno efeito se se torna um encontro pessoal com aquele que é sua Palavra, Jesus de Nazaré. E para isso serve como base a narrativa de sua história, enraizada na história de seu Povo, respectivamente no Novo e no Antigo Testamento. Mas para que o encontro se realize, não basta ler essas histórias. Precisa do ambiente da Tradição viva que, animada pelo Espírito de Cristo, o torna presente a nós hoje, na proclamação, na memória celebrada e na vivência de sua prática de vida. Além de ver a Palavra de Deus como evento, como acontecer, o Documento acentua também fortemente a unidade da Palavra de Deus, o que pode até ser uma chave de leitura. Pois exatamente a unidade da Palavra em suas diversas manifestações, como a descreve o conceito analógico que a primeira parte sublinha, permite ver a homogeneidade Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 157 Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI entre o sentido histórico de sua manifestação como registrada nas Escrituras, e o sentido atual hermeneuticamente desdobrado. É sempre a mesma Palavra que fala e nos convoca a dialogar. O documento também dedica um capítulo à parte para refletir sobre “a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja” (n. 29). Como o senhor analisa a hermenêutica proposta pela Exortação? O texto fica perto dos ensinamentos de Pio XII (Divino afflante Spiritu) e do Concílio Vaticano II (Dei Verbum), completados pelo documento da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993. O acento está no caráter eclesial. A oposição Tradição/Escritura parece superada, pois a Escritura é vista como parte da Tradição viva, mais especificamente, como seu momento referencial. Em torno disso, porém, há muito que esclarecer, sobretudo quanto à referência primordial em Cristo, que num certo sentido faz, do Novo, o “primeiro” Testamento. E também, quanto à relação dialética entre Tradição e Escritura, pois foi a própria Tradição viva que estabeleceu em que consiste o tesouro escriturístico... O texto vê num mesmo olhar a referência a Cristo e sua comunidade, que, guiada pelo mesmo Espírito que é o do Senhor, encontra na Escritura a Palavra de Deus que inspira a sua vida. Ora, por trás disso está um processo de “abertura do texto”, e nesta abertura a exegese histórico-literária e a hermenêutica, ou interpretação atualizante, devem dar-se as mãos. O termo “hermenêutica”, no sentido positivo, não é muito comum em documentos do Magistério supremo, mas a realidade que ele aponta não é nova. A exegese tradicional sempre privilegiou o sentido espiritual, e foi só no século XX que a Igreja católica deu um lugar oficial – e ainda assim controvertido – à exegese histórico-crítica. No futuro deverá ser aprimorada a articulação entre a exegese histórico-crítica, que investiga o que o autor quis dizer aos destinatários primeiros, e a hermenêutica, que estuda a nova abertura de sentido para cada geração, já desde o momento em que os escritos foram canonizados e interpretados em vista de seu conjunto (leitura canônica) e em vista da fé da Igreja (analogia da fé). Pouco importa que essa “leitura aberta” se chame “sentido pleno” ou “espiritual” (suscitado pelo Espírito), sempre deverá ser homogênea com o sentido original, histórico, pois senão a analogia fidei perderia seu elo primeiro. 158 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Entrevista com Johan Konings É no contexto dessas questões que se valoriza a preocupação em manter unidos os dois níveis da leitura bíblica: o nível histórico-crítico e o nível teológico (n. 34). Um não pode excluir o outro, nem devem os dois ficar justapostos, o que provocaria um dualismo insustentável (n. 35). Acertadamente, o texto relaciona isso com a problemática, mais ampla, de razão e fé (n. 36). É na perspectiva do sentido ampliado que se considera a unidade do Antigo e do Novo Testamento e a superação da “letra” (nn. 37-41). A crítica ao fundamentalismo cabe bem no quadro do Documento (n. 44), pois este, como vimos, valoriza a semântica aberta, o que o fundamentalismo nega. E é valioso o parágrafo sobre a vida cristã, especialmente dos santos, como “hermenêutica viva” da Palavra de Deus (n. 49). Outra questão levantada pela Exortação é a liturgia, já que “na ação litúrgica, a Palavra de Deus […] [se] torna operante no coração dos fiéis” (n. 52). À luz do documento, como se dá essa relação entre Palavra e liturgia? Como podemos repensar essa relação na vida da Igreja, diante dos desafios da contemporaneidade? Considerando a Igreja como “casa da Palavra”, pensa-se antes de tudo na Liturgia, âmbito privilegiado onde Deus fala hoje ao seu povo que escuta e responde. Cada ação litúrgica é impregnada da S. Escritura. O próprio Cristo está presente na sua palavra: é Ele que fala quando é lida na Igreja a S. Escritura. A Palavra de Deus permanece viva e eficaz pela ação do Espírito Santo, que sugere a cada um tudo aquilo que, na proclamação da Palavra, é dito para a assembleia inteira. E, enquanto reforça a unidade de todos, o Espírito favorece também a diversidade dos carismas e valoriza a ação multiforme. Em certo sentido, a hermenêutica da fé relativamente à S. Escritura deve ter sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é celebrada como palavra atual e viva. Dispondo a leitura da Palavra de Deus em torno do centro que é o Mistério Pascal, o ano litúrgico mostra os mistérios fundamentais da nossa fé. O texto fala muito do caráter performativo da Palavra na liturgia, tanto da Eucaristia como dos outros sacramentos. A palavra não só fala, mas age. Por isso, a liturgia da Palavra é um elemento decisivo em todos os sacramentos. Não há separação entre o que Deus diz e faz. Na ação litúrgica, sua Palavra realiza aquilo que diz. O Documento aponta dois exemplos, o sinal do Pão no capítulo 6º do Evangelho de João e a história de Emaús, em Lucas 24. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 159 Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI A Palavra de Deus, lida e proclamada na liturgia pela Igreja, conduz ao banquete da graça, a Eucaristia. Palavra e Eucaristia não podem ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da S. Escritura, e esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico. Sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a compreensão da Escritura. Em palavras mais simples: na proclamação do Evangelho (emoldurado pelas outras leituras e pelo Salmo Responsorial, que é também Palavra de Deus), Jesus diz em que consiste o Reino, o Projeto do Pai. E na consagração, celebramos a memória de como ele colocou isso na prática, dando sua vida até a morte. Palavra e ação, inseparavelmente unidas. Por isso, a principal celebração cristã tem a Mesa da Palavra e a Mesa do Pão, e pede-se que isso transpareça até na disposição arquitetônica, sendo ambas devidamente acentuadas e visualmente relacionadas entre si. Tudo isso tem consequências práticas para nossas comunidades: não é normal que – como acontece no Brasil – 70 por cento das celebrações dominicais são celebrações da Palavra sem a consagração eucarística. Isso, por falta de presbíteros. Será que não há meio de aliviar essa falta? E tem também consequências para o modo de celebrar e de assistir. Se a escuta da Palavra e a memória da Ceia da Aliança e da morte de Jesus constituem uma unidade, será que não deveria haver um pouco mais de compenetração em nossas eucaristias, músicas mais profundas, mais verdadeiramente bíblicas, cristológicas e comunitárias, menos individualismo e vedetismo, menos show? E que dizer das homilias, as quais, exatamente, deveriam mostrar a vinculação entre a palavra proclamada e o mistério celebrado, para fecundar a nossa vida e missão no dia a dia, na comunidade e no mundo? Sobretudo, a Palavra, unida à memória sacramental do gesto, deve produzir em nós o fruto da caridade, numa forma coerente com nossa contemporaneidade, inclusive, com suas dimensões políticas e sociais e – por estarmos falando a universitários – científicas, mediante o saber responsavelmente assimilado e posto a serviço da humanidade, na qual a Palavra veio morar, e da criação, que por meio dela veio a ser. Como já dizia o tema do Sínodo, a Exortação ressalta que a missão da Igreja é anunciar a palavra de Deus ao mundo. Nesse sentido, 160 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Entrevista com Johan Konings como podemos compreender o diálogo da Igreja com um mundo cada vez mais globalizado, multicultural e multirreligioso? Os primeiros cristãos consideraram o anúncio missionário como exigência da própria fé, que não pertencia a um âmbito cultural particular, mas ao da verdade, que diz respeito a todos (cf. Paulo no Areópago, At 17,16-34). Como disse o Papa certo dia, o cristão deve dizer a todos: “O Deus desconhecido mostrou-se, em pessoa, e agora está aberto o caminho para Ele. A novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento, mas num fato: Ele revelou-se” (n. 93). O dom do Espírito nos assimila a Cristo, o Enviado do Pai (Jo 20,21). Devemos descobrir a urgência e também a beleza de anunciar a Palavra para a vinda do Reino de Deus pregado por Jesus e que é sua própria pessoa. A luz de Cristo deve iluminar cada âmbito da humanidade, como palavra que desinstala, que chama à conversão e propicia o encontro com Ele, para que floresça uma humanidade nova. A globalização, característica da nossa época, permite viver em contacto mais estreito com pessoas de culturas e religiões diferentes, oportunidade providencial para promover relações de fraternidade universal e uma mentalidade que veja em Deus o fundamento de todo o bem, a fonte da vida moral e o sustentáculo do sentido de fraternidade. Lembre-se a Aliança estabelecida em Noé com toda a humanidade (Gn 9,13-16). Em muitas das grandes tradições religiosas, aparece a ligação íntima entre a relação com Deus e a ética do amor universal. Daí o respeito por todas as culturas e religiões que colaboram para isso, mas também a justa crítica quando isso não acontece – inclusive no tradicional âmbito cristão. Essa atitude positiva e ao mesmo tempo crítica se exprime, por exemplo, no parágrafo dedicado ao Islão (n. 118). Os muçulmanos reconhecem a existência de um único Deus, e sua tradição contém figuras, símbolos e temas bíblicos. Continue-se, pois, o diálogo sincero e respeitoso, fazendo votos de que se aprofundem o respeito da vida como valor fundamental, os direitos do homem e da mulher e a sua igual dignidade. Tendo em conta a distinção entre a ordem sociopolítica e a ordem religiosa, as religiões devem dar a sua contribuição para o bem comum. Quanto à cultura propriamente, quero apontar três ideias: 1) A tradição admira os artistas “enamorados da beleza”, que se deixaram inspirar pelos textos sagrados e ajudaram a tornar de Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 161 Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI algum modo perceptível no tempo e no espaço as realidades invisíveis e eternas. 2) Recomenda-se o uso inteligente dos meios de comunicação social, bem como a atenção a seu rápido desenvolvimento e diversos níveis de interação. Há que reconhecer um papel crescente à internet, que constitui um novo fórum para a voz do Evangelho. Mas não pode ficar no virtual, deve chegar ao encontro pessoal. No mundo da internet, deverá sobressair o rosto de Cristo e ouvir-se a sua voz, porque, “se não há espaço para Cristo, não há espaço para o homem”. 3) Deus comunica-se numa cultura concreta, assumindo os códigos nela inscritos. Por outro lado, a Palavra tem caráter intercultural e deve ser transmitida em culturas diferentes – evangelização das culturas –, transfigurando-as a partir de dentro. Mas a inculturação do Evangelho não deve ser confundida com adaptação superficial ou mistura sincretista; só será um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura transformada e regenerada pelo Evangelho deixar crescer em seu próprio seio as “sementes da Palavra” e produzir na sua própria tradição expressões de vida cristã que sejam originais – não simplesmente importadas do Velho Mundo. Destaca-se, no final, que o tempo atual urge “uma nova escuta da Palavra de Deus e […] uma nova evangelização” (n. 122). Como o senhor analisa esse desafio no contexto atual da Igreja brasileira, “aqui e agora”? Continua necessária a missão ad gentes, aos que não conhecem o Evangelho de Cristo. A Igreja deve ir ao encontro de todos, com a força do Espírito, e continuar profeticamente a defender o direito e a liberdade de as pessoas escutarem a Palavra de Deus, procurando os meios mais eficazes para a proclamar, mesmo sob risco de perseguição. Mas há também, nas regiões consideradas cristãs, muitos que foram “batizados, e talvez até catequizados, mas não suficientemente evangelizados”, e que têm necessidade de um novo anúncio da Palavra de Deus. Nações outrora ricas de fé e de vocações vão perdendo a própria identidade, sob a influência de uma cultura secularizada. Daí a exigência de uma nova evangelização. Os “índios” a serem evangelizados encontram-se agora na Avenida Paulista, nos Alfaville... 162 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Entrevista com Johan Konings Os horizontes imensos e a complexidade da situação presente requerem, hoje, novas modalidades para que a Palavra de Deus seja comunicada eficazmente, sob a guia do Espírito de Cristo. Ora, antes de mais nada, há a relação intrínseca entre comunicação da Palavra de Deus e testemunho cristão, pois é indispensável dar credibilidade à Palavra pelo testemunho vital. O testemunho comunica a Palavra atestada nas Escrituras, e as Escrituras explicam o testemunho que os cristãos são chamados a dar com a própria vida. E ainda, nossa responsabilidade não se limita a sugerir valores que compartilhamos; é preciso chegar ao anúncio explícito da Palavra. Não há verdadeira evangelização, se não forem proclamados o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus. A nova evangelização não se contenta, pois, com a divulgação de valores cristãos, ou com um serviço de inspiração cristã à sociedade, como fazem, por exemplo, muitas escolas ou universidades cristãs. Isso tem seu valor, mas o que é preciso mesmo é formar novos cristãos, que professem sua fé e pratiquem o que professam. Como convite à leitura, que aspectos centrais o senhor destacaria no documento, para aprofundar o diálogo entre o “Deus que fala” e o homem que responde, hoje? A Exortação preocupa-se, em primeiro lugar, em orientar o destinatário da Palavra de Deus e do testemunho eclesial para o encontro pessoal com Cristo. O conhecimento da Bíblia, sem a qual não se pode conhecer Cristo, ocupa nisso um lugar central, desde que seja abordada numa perspectiva que leve Deus à fala, numa “lectio divina”. Daí a importância da “Cristologia da Palavra” (nn. 11-13), ou seja, a exposição sobre a Palavra de Deus em Jesus Cristo como centro da teologia cristã, numa linguagem que ultrapasse o uso de conceitos “feitos e acabados”, mas possa evocar o acontecer da autocomunicação de Deus. Em conexão com isso, a hermenêutica bíblico-teológica é vista como uma circularidade entre o estudo científico-crítico do verdadeiro fato histórico e a compreensão teológica que, por força de seu objeto, recorre à analogia, ao sentido ampliado ou “pleno” daquilo que é assinalado pelo sentido histórico. Sem desistir da racionalidade científica, Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 163 Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI tal hermenêutica permite conceber significações que superam a “letra”, sem se desprender dela. Quanto à prática pastoral, deseja-se que toda a pastoral seja bíblica: se a Bíblia é o registro original e privilegiado da Palavra definitiva que Deus nos dirigiu em Jesus de Nazaré – depois de ter falado na Criação, na história do Povo de Deus e nos Profetas –, ela não pode ser confinada num setor da catequese ou da pastoral, mas deve ser a referência sempre presente de toda a pastoral. E o meio mais eficaz para isso é, certamente, a valorização da Liturgia, que toda ela é habitada pela Palavra, a ponto de se falar numa “presença real” da Palavra de Deus. Um elemento que me agradou muito é o discreto aceno ao “belo”. A Palavra de Deus é uma palavra de amor, e toda palavra de amor envolve aquele a quem se destina. Não é um comando, lei, receita, constatação ou definição. É uma palavra que mais abre do que fecha o sentido – e estas são características da arte. A Escritura narra o acontecer do amor de Deus junto a seu povo, e somos arrastados pela beleza da narração. Representa os sentimentos do piedoso no encontro com Deus, e procuramos nos identificar com quem assim reza. Narra Deus mesmo na sua manifestação definitiva em Jesus, e contemplamos no silêncio a Palavra que as palavras só podem evocar e invocar, nunca esgotar. Aí está o “Belo”, o que supera os nossos sentidos, o que nos faz ver o Deus que ninguém jamais viu. O próprio Documento, em muitas de suas páginas, brilha pela beleza e sensibilidade de suas expressões. É preciso captar essa dimensão estética para desfrutar toda a sua riqueza. E-mail do entrevistado: [email protected] 164 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Recensões VIEIRA, Paulo Leonardo Medeiros, “Deus no banco dos réus. Uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante”, Florianópolis, Ed. LEDIX, 2010, 21 x 14,5cm, 230 p. Ney Brasil Pereira* Quatro anos após lançar, pela mesma Editora, “A Fé de Pedro e a Ciência de Tomé”, volta o autor, como lemos na orelha direita da capa do novo livro, “ao centro desse borbulhante cenário de aparente contradição entre a Fé e a Ciência, a Religião e a Academia. Mais uma vez acerta na preciosa seleção de textos, experimentos e experiências, e dentre os melhores personagens da ciência apresenta ao leitor ótimas testemunhas em favor da tolerância e da não negligência da Possibilidade, enfim, a essência da própria procura de respostas pela Ciência.” O livro, que conta com a apresentação de Dom Murilo S.R. Krieger, Arcebispo de Florianópolis, e com nove páginas de Bibliografia (pp. 221-229), desenvolve-se didaticamente em 18 capítulos, cujo conteúdo coloca o leitor em dia com o momentoso assunto. Lembro-me da forte impressão que, sobre idêntico tema, causou-me a leitura do livro “O princípio de todas as coisas”, do teólogo suíço Hans Küng. Esse livro, lançado no Brasil pela editora Vozes, em 2007, e citado várias vezes por Vieira, tem como subtítulo: “Ciências naturais e religião”. Küng trata o tema de maneira mais irênica, menos combativa, não focalizando frontalmente os ataques do “ateísmo militante”. De uns anos para cá, porém, esses ataques à religião e à fé em Deus têm tomado tal vulto, longe de diminuir a intensidade, que a postura apologética de Vieira se justifica plenamente. A propósito, é sugestiva, na abertura do livro, a citação do papa Paulo VI, na sua alocução a teólogos reunidos em Roma em 1966, poucos meses após a conclusão do Concílio Vaticano II: “Estamos inteiramente persuadidos de que bispos e padres não podem mais desempenhar sua missão de iluminação e salvação do mundo moderno, se não forem capazes de apresentar, defender e explicitar as verdades da fé divina por * O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas, é Padre da arquidiocese de Florianópolis,SC e Professor no ITESC. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 165 Recensões meio de conceitos e termos mais compreensíveis para espíritos formados na cultura filosófica e científica contemporânea” (p. V). Hoje, quase 50 anos após essas palavras do Papa, quanto se tem avançado na ciência e na tecnologia! E quanto a humanidade tem continuado a debater-se, apesar do progresso técnico, com as perguntas que continuam a desafiar a mente e o coração: porque, ainda, tanta violência, tanta maldade, tanta injustiça, tanto consumismo, tanta miséria? Que nos diz a Ciência, sobre tudo isso? E que nos diz a Fé? A crença em Deus ajuda, ou, como insiste o “ateísmo militante”, atrapalha? Aqui, uma distinção, que costumo fazer e que pode ser útil, entre “Fé” e “Religião”. Sem entrar nos detalhes abordados pela Teologia Fundamental, “Fé” é obediência, pessoal, e “Religião” é instituição, coletiva. Explico-me, sintetizando. “Fé” é adesão pessoal a Deus e à sua Palavra, é obediência e confiança, é, segundo João, “a vitória que vence o mundo” (1Jo 5,4). E “Religião” é a expressão coletiva dessa Fé, expressão coletiva que se dá em dois níveis: o nível ritual, doutrinal, que distingue as várias “religiões”, e o nível ético, moral, que as une, segundo Tiago: “Religião pura e sem mancha diante do Deus e Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27). Infelizmente, as religiões, todas, são zelosas dos seus ritos e doutrinas, aliás necessários, exatamente porque expressam coletivamente a Fé, mas falham na ética, que devia ser a sua preocupação fundamental, isto é, dizem que “amam a Deus, a quem não veem, e não amam a/o irmã/o, a quem estão vendo” (cf 1Jo 4,20). Daí, desse mal-entendido, tantos crimes, tanta “guerra santa”, empreendida em nome “de Deus”. E daí também, do mesmo mal-entendido, tanta virulência do “ateísmo militante” contra Deus. Mas retornemos ao livro que nos ocupa. O simples elenco dos títulos dos 18 capítulos nos dá uma ideia da amplidão e do valor da pesquisa. Ao primeiro capítulo, programático, “Deus no banco dos réus” (pp. 15-26), segue o segundo, com o título “Os limites da Ciência” (pp. 27-40), a qual, “sem prejuízo de seus significativos avanços, ainda está longe de explicar o mundo” (p. 27). No capítulo terceiro, “Uma revisão histórica” (pp. 41-49) , o autor se detém sobre o “caso Galileu”, condenado pela Igreja em 1633, e reabilitado só mais de três séculos depois, em 1992, por João Paulo II. O capítulo quarto, “Darwin, a Igreja e a seleção das espécies” (pp. 51-57), aborda “um dos temas mais candentes na disputa entre Ciência e Fé, ou entre a religião e a academia, a saber, 166 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Recensões o que diz respeito ao evolucionismo, nos termos em que o colocou Charles Darwin” (p. 51). O tema é aprofundado no capítulo seguinte, sintetizado na pergunta do título: “São Tomás e Charles Darwin: uma parceria?” (pp.59-72) A relação entre o cérebro e o que chamamos “alma” é estudada no capítulo sexto: “Deus, a neurociência, o cérebro quântico” (pp. 7384). É provocativa a constatação inicial do autor, de que “na madrugada do novo século, a neurociência intenta demonstrar empiricamente que o espírito religioso, e mesmo a própria fé, estão sediados no cérebro, precisamente como uma máquina...” (p.73). O título que o autor dá ao capítulo sétimo, em forma de questionamento, “Fora da Ciência não há salvação?” (pp. 85-92), inspira-se no famoso axioma do bispo de Cartago, Cipriano, que, em meados do século III, lutou pela unidade da Igreja. Contra o movimento desagregador das heresias e cismas, o santo bispo insistia: “Fora da Igreja não há salvação”. Vieira demonstra que o caminho a seguir não é uma disjuntiva, “ou a Ciência ou a Igreja”, mas uma conjuntiva: cada uma no seu campo, tanto a Ciência como a Fé (a Igreja), são necessárias. O que é preciso superar, isso sim, é a utopia da “verificação de todas as teses” (título do oitavo capítulo, pp. 93-109), bem como o “nível de desinformação” (título do capítulo nono, pp. 111-121), obviamente de parte a parte, para que o debate entre Ciência e Fé, Ciência e Religião, não se torne um diálogo de surdos. No capítulo décimo, “Brasil – Estado republicano e laico” (pp. 123-131), o autor aborda o tema da separação entre Igreja e Estado, tema cuja atualidade se demonstra “pelo espaço que ocupa na mídia. Em todas as mídias, em todo o mundo” (p. 123). O tema retorna no capítulo onze “Brasil – Símbolos religiosos no espaço público” (pp. 133-138), símbolos cuja remoção é postulada pelo “ateísmo intolerante”, com base no “desgastado fundamento da separação Igreja/Estado” (p. 133). Outro tema, na crista da onda, é abordado no capítulo 12: “A cultura da morte contra a cultura da vida – Aborto, Eutanásia, Células-tronco embrionárias” (pp. 139-150). O autor começa observando que “sob o surrado argumento da laicidade, alguns intentam silenciar a Igreja sobre esses temas” (p. 139), cerceando a própria liberdade de expressão, um dos fundamentos da democracia. O capítulo treze, com o título “As alternativas” (pp. 151-161), responde aos que defendem as pesquisas em células-tronco embrionárias, aduzindo o argumento da “solidariedade humana em relação aos enfermos que depositaram nessas pesquisas todas as suas esperanças” (p.151). A resposta, “escorada em fatos”, escreve Vieira, “é realista e não menos Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 167 Recensões alvissareira: há, sim, alternativas. No plural, porque são múltiplas” (p. 151). E explica: Ao contrário do insucesso da bilionária pesquisa com células-tronco embrionárias, “grupos cada vez maiores de cientistas avançam nas pesquisas com células-tronco maduras...” (p. 151) “A herança cristã” é o título do capítulo quatorze (pp. 163-175), no qual o autor retoma um tema já desenvolvido em sua obra anterior, “A Fé de Pedro e a Ciência de Tomé”. E cita T. E. Woods: “A civilização ocidental é uma herança da Igreja Católica, verdadeira responsável por valores e instituições que fazem parte da nossa história” (p. 163). Seria desonesto, portanto, como Vieira conclui na p. 175, “arguir a ‘tese’ do Estado laico como argumento de negação da história, confundindo os conceitos de laicidade e de ateísmo, para o fim, inconfessável, de promover uma ruptura”, uma negação da evidência dos fatos, ou seja, da verdade. Explicitando essa “herança cristã”, o autor dedica o capítulo quinze à relação entre “Igreja e Universidade” (pp. 177-183), justificando, de início, que “vale um capítulo para sublinhar, no mundo do saber, o papel da Universidade e sua origem. Ora, a universidade emergiu inspirada na própria visão teísta do cristianismo, que forneceu as bases do espírito científico” (p. 177). Por isso mesmo, comenta e deplora o sintomático incidente ocorrido com Bento XVI em janeiro de 2008, quando 67 professores e uma centena de alunos da Universidade La Sapienza, de Roma, exigiram o cancelamento do convite para que o Papa falasse na abertura do ano letivo. E o autor conclui: Eles quiseram “nada menos que calar a Igreja e revogar a História. Ou vice-versa. Revogar a História para calar a Igreja” (p. 183). No capítulo dezesseis, Vieira aborda “o ateísmo militante e a origem das religiões” (pp. 185-194), comentando a posição dos que, como C. Hitchens, afirmam que elas vêm “da infância assustada e chorosa da nossa espécie”... (p. 185) Após uma bem elaborada síntese do complexo tema, o autor expõe “o alvorecer do cristianismo”, título do capítulo dezessete (pp. 195-202). Surpreendentemente, não aborda os inícios do Novo Testamento, nem focaliza a pessoa divino-humana de Jesus, mas prefere falar dos intelectuais que o reconheceram como Messias e Senhor ao longo da história. Entre eles, destaca a figura mística, quase contemporânea, de Simone Weil (1909-1943), judia e ateia até a idade adulta, como Edith Stein (1891-1942). A conversão de Simone “não foi uma mudança de religião, mas a passagem da pergunta à resposta, do anseio à revelação” (p. 197). “Segundo os críticos, a sua ‘Carta a um religioso’ pode, como símbolo, ser colocada à altura da ‘Carta ao 168 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Recensões Pai’, de Kafka. Seus biógrafos dizem que essa obra pertence ‘à série de documentos fundamentais de nossa civilização, como a Regra de São Bento, os Exercícios de Santo Inácio de Loyola, ou o Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry’” (pp. 199-200). Depois de citar um dos famosos “Pensamentos” de Pascal, o autor termina o capítulo contrapondo os muitos que são da mesma fé que o ilustre filósofo e matemático (ver a lista na p. 201), aos que “optam pela simplificação de Hitchens, Dawkins, Sagan, Crick, Atkins, Monod, Brown, para ficar com alguns dos mais badalados missionários do ateísmo. Não descobrindo Deus onde se encontra Deus, escolheram para Ele um lugar no banco dos réus” (pp. 201-202). O último capítulo, o dezoito, se apresenta como síntese de todo o livro: “Uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante” (pp. 203-219). Cito o parágrafo inicial: “Excluída a cruzada do Ateísmo militante, há em curso, por parte da Igreja e da Academia, um esforço de conciliação entre a Fé e a Razão, que, na bela alegoria com que João Paulo II inicia a encíclica Fides et Ratio, ‘constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da Verdade’” (p. 203). Entre os “novos caminhos que a filosofia e a ciência nos propõem”, Vieira sintetiza o do Metarrealismo, de Jean Guitton, e o da Hiperfísica, de Teilhard de Chardin. Quanto ao primeiro, situa-o “para além da lógica clássica, que por seu turno vai dando lugar a um modo de pensamento metalógico”, o qual “demonstra a existência de limites físicos ao conhecimento” (p. 207). Quanto à Hiperfísica de Chardin, “não é uma metafísica, mas a admirável síntese de uma visão do mundo que fica além dos dados objetivos da Ciência” (p. 211). Para Chardin, “a evolução não é apenas um princípio, doutrina ou teoria, mas um padrão necessário do pensamento humano: é condição da própria existência do universo... Ela se dá a partir da cosmogênese, em direção à geogênese, à biogênese, à antropogênese, à noogênese, para enfim culminar na Cristogênese, quando enfim todas as coisas serão instauradas em Cristo, segundo a cosmovisão de Paulo na carta aos efésios (Ef 1,10; cf pp. 215-216). No final do livro, antes da citação de Thomas Merton, o autor reafirma seu objetivo, expresso no subtítulo da obra, de apresentar “uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante” (p. 219). Qualifica-a, modestamente, “ao menos como um esboço, sem qualquer pretensão acadêmica, muito menos, dogmática” (p. 219). O tom dialogal da obra confirma que ela não tem, é verdade, “pretensão dogmática”. O fundamentado de suas afirmações, porém, todas comprovadas por abundantes e atualizadas notas bibliográficas de rodapé, confere-lhe, se não “pretensão”, em todo Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 169 Recensões caso, verdadeira dimensão acadêmica. Formulo votos para que sejam muitos os leitores, especialmente da juventude universitária, que, tendo estudado esta obra, “façam, livre e conscientemente, o seu julgamento, e proclamem o seu veredicto” (cf p. 219). E-mail do Recensor: [email protected] 170 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Crônicas Mais um ex-aluno Bispo Dom Geremias Steinmetz, ex-aluno do ITESC nos anos de 1987 a1990, foi eleito bispo de Paranavaí, PR, no dia 5-1-2011, segundo notícia no “Osservatore Romano” de 8-1 p.p., pág. 15. Nascido em 1965, foi ordenado presbítero em 9-2-1991, contando, portanto, apenas 20 anos de ministério sacerdotal. Ultimamente era Coordenador diocesano de Pastoral na sua diocese de Palmas-Francisco Beltrão, PR. Sua ordenação episcopal está marcada para o dia 25-3, sexta, e sua “tomada de posse”, em Paranavaí, será no dia 9-4, véspera do 5º domingo da Quaresma. Outros ex-alunos do ITESC ordenados Bispos: Dom Luís Carlos Eccel, atualmente bispo emérito de Caçador, SC; Dom Pedro Zilli, PIME, bispo de Bafatá, na Guiné Bissau; e Dom Mário Marquez, ofm, bispo de Joaçaba,SC. Novo Primaz do Brasil Dom Murilo S.R. Krieger, SCJ, arcebispo metropolitano de Florianópolis, e representante do Episcopado catarinense no Colegiado do ITESC, foi nomeado Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil, por ato do Santo Padre Bento XVI, segundo notícia no “Osservatore Romano” de 12-1 p.p. Dom Murilo sucederá ao Cardeal Geraldo Majela Agnello, assumindo São Salvador aos 67 anos de idade, 41 anos de padre e 25 anos de bispo. Dom Murilo foi ordenado bispo em 1985, como auxiliar de Dom Afonso, aqui em Florianópolis, tornando-se bispo diocesano de Ponta Grossa, PR, em 1991, Arcebispo de Maringá, PR, em 1997 e, finalmente, Arcebispo de Florianópolis em 2002. Aqui em Florianópolis, coordenou a realização do XV Congresso Eucarístico Nacional, em 2006, e as comemorações do centenário da diocese, em 2008. A “tomada de posse “ em Salvador, BA, será no dia 25-3, solenidade da Anunciação, às 19.00h. A Dom Murilo, com os agradecimentos do nosso Instituto Teológico pelo constante apoio e presença, os nossos votos de abençoado ministério em Salvador. Apresentação do Anuário Acadêmico 2011 Fundado pelo episcopado catarinense, a 10 de janeiro de 1973, o ITESC iniciou seu curso de teologia no mesmo ano. Por isso, enquanto Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 171 Crônicas celebramos o aniversário de 38 anos, estamos no 39º. ano de funcionamento! Apresentamos este Anuário Acadêmico, fazendo votos aos estudantes e professores e funcionários de que este seja um ano cheio de realizações. Na apresentação do anuário do ano passado dizíamos: “Nossa expectativa (!) é que, em 2011, poderemos dar início ao curso de bacharelado em teologia, já aprovado pelo MEC”. Infelizmente, isso não aconteceu. O processo é mais demorado do que se pensava. Desde outubro de 2009 encontram-se no MEC os processos de nossas duas solicitações: o credenciamento da Faculdade Católica de Santa Catarina e a autorização de seu primeiro curso, o de bacharelado em teologia. No decorrer do ano passado foram feitas as visitas dos avaliadores em vista dos dois processos. Numa graduação de 1 a 5 (um a cinco), obtivemos nota 4 (quatro) nas duas avaliações, um resultado bastante animador. Desde 31 de janeiro deste ano, nosso processo encontra-se no Conselho Nacional de Educação, para onde foi encaminhado pelo MEC com recomendação de aprovação. É a última etapa antes da assinatura das portarias (para o credenciamento da Faculdade e a autorização do curso de teologia) pelo Ministro da Educação. Se isso acontecer ainda no primeiro semestre, poderemos retomar em julho os nossos cursos de pós-graduação que, durante alguns anos, eram feitos em convênio com a Faculdade Jesuíta de Filosofia e teologia (FAJE), de Belo Horizonte-MG. No decorrer de 2011, temos tempo para ir implantando nosso Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) e encaminhando a criação dos órgãos previstos no Regimento da Faculdade. Prevê-se, assim, que em 2012 poderemos começar nosso curso de bacharelado em teologia, autorizado pelo MEC. Começamos o ano sob a luz da Palavra de Deus. Inserimo-nos no processo de recepção da Exortação Apostólica Verbum Domini, publicada pelo papa Bento XVI em 30 de setembro passado. A teologia é, por antonomásia, ciência da palavra, não de uma palavra qualquer, mas da Palavra de Deus. É ciência da fé, isto é, da resposta humana à Palavra de Deus escondida na criação, manifestada a Israel e encarnada em Jesus de Nazaré. Lembrando que o Concílio Vaticano II afirmara ser a Bíblia a alma de toda a teologia (DV 24), o papa nos indica como primeiro passo da teologia a acolhida da hermenêutica bíblica conciliar, caracterizada pelos “três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia: 1) interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto hoje se chama exegese canônica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a Igreja; 3) observar a analogia da fé. Observar, portanto, os “dois níveis 172 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Crônicas metodológicos, o histórico-crítico e o teológico (VD 34). Em seguida, o papa adverte para o perigo de fixar-se só no nível histórico-crítico, em detrimento do nível teológico: a Escritura torna-se um texto do passado, a exegese torna-se pura historiografia, cria-se uma hermenêutica secularizada, positivista, em que não há mais espaço para o mistério de Deus (VD 35). Mas uma exegese puramente espiritual ou teológica, baseada em interpretações subjetivistas ou literalistas, que não se fundamente nos avanços da razão científica, pode degenerar-se em fideísmo e tornar-se produtora dos mais diversos fundamentalismos (VD 36; 44). Como estudiosos e estudantes de teologia, cabe-nos fazer “com que o estudo da Sagrada Escritura seja verdadeiramente a alma da teologia, enquanto reconhecemos nela a Palavra que Deus hoje dirige ao mundo, à Igreja e a cada um pessoalmente”. Cabe-nos ainda “evitar o cultivo de uma noção de pesquisa científica, que se considere neutral face à Escritura”. É também necessário que, ao lado dos métodos científicos, históricos, linguísticos, “os estudantes tenham uma profunda vida espiritual, para se aperceberem de que só é possível compreender a Escritura se a viverem” (VD 47). Pondo nas mãos de Deus o passado, o presente e o futuro de cada um de nós e de nosso ITESC, da Igreja e de toda a humanidade, fazemos votos a todos – professores, alunos e funcionários – de um abençoado e proveitoso Ano Acadêmico 2011. Pe. Dr. Vitor Galdino Feller – Diretor Novo Bispo de Joaçaba No dia 19 de fevereiro p.p., na Catedral de Santa Teresinha, de Joaçaba, SC, deu início ao seu ministério episcopal naquela diocese o 4º bispo diocesano, Dom Frei Mário Marquez , da Ordem dos frades menores Capuchinhos. Natural do próprio município de Joaçaba, onde nasceu em 1952, Dom Mário cursou o último ano de Teologia no ITESC, em Florianópolis, em 1980. Ordenado presbítero na mesma Catedral de Santa Teresinha, em novembro de 1980, em 2006 foi nomeado Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Vitória, ES. Em dezembro de 2010, o papa Bento XVI transferiu-o para a sua diocese de origem, onde, na data mencionada, recebeu o báculo das mãos do metropolita de Florianópolis, Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger. Prestigiando seu ex-auxiliar, estava presente, também, o Arcebispo de Vitória, ES, Dom Luís Mancilha Vilela, com numerosa comitiva daquela Arquidiocese. Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 173 Mensagem de Bento XVI ao Presidente da CNBB, sobre a CF 2011 Ao Venerado Irmão DOM GERALDO LYRIO ROCHA Arcebispo de Mariana (MG) e Presidente da CNBB É com viva satisfação que venho unir-me, uma vez mais, a toda Igreja no Brasil que se propõe percorrer o itinerário penitencial da quaresma, em preparação para a Páscoa do Senhor Jesus, no qual se insere a Campanha da Fraternidade cujo tema neste ano é: “Fraternidade e vida no Planeta”, pedindo a mudança de mentalidade e atitudes para a salvaguarda da criação. Pensando no lema da referida Campanha, “a criação geme em dores de parto”, que faz eco às palavras de São Paulo na sua Carta aos Romanos (8,22), podemos incluir entre os motivos de tais gemidos o dano provocado na criação pelo egoísmo humano. Contudo, é igualmente verdadeiro que a “criação espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8,19). Assim como o pecado destrói a criação, esta é também restaurada quando se fazem presentes “os filhos de Deus”, cuidando do mundo para que Deus seja tudo em todos (cf. 1Co 15,28). O primeiro passo para uma reta relação com o mundo que nos circunda é justamente o reconhecimento, da parte do homem, da sua condição de criatura: o homem não é Deus, mas a Sua imagem; por isso, ele deve procurar tornar-se mais sensível à presença de Deus naquilo que está ao seu redor: em todas as criaturas e, especialmente, na pessoa humana há uma certa epifania de Deus. «Quem sabe reconhecer no cosmos os reflexos do rosto invisível do Criador, é levado a ter maior amor pelas criaturas» (Bento XVI, Homilia na Solenidade da Santíssima Mãe de Deus, 1º-01-2010). O homem só será capaz de respeitar as criaturas na medida em que tiver no seu espírito um sentido pleno da vida; caso contrário, será levado a desprezar-se a si mesmo e àquilo que o circunda, a não ter respeito pelo ambiente em que vive, pela criação. Por isso, a primeira ecologia a ser defendida é a “ecologia humana” (cf. Bento XVI, Encíclica Caritas in veritate, 51). Ou seja, sem uma clara defesa da vida humana, desde sua concepção até a morte natural; sem uma defesa da família baseada no matrimônio entre um homem e uma mulher; sem uma verdadeira defesa daqueles que são excluídos e marginalizados pela sociedade, sem esquecer, neste contexto, daqueles que perderam tudo, vítimas de desastres naturais, nunca se poderá falar de uma autêntica defesa do meio-ambiente. Recordando que o dever de cuidar do meio-ambiente é um imperativo que nasce da consciência de que Deus confia a Sua criação ao homem não para que este exerça sobre ela um domínio arbitrário, mas que a conserve e cuide como um filho cuida da herança de seu pai, e uma grande herança Deus confiou aos brasileiros, de bom grado envio-lhes uma propiciadora Bênção Apostólica. Vaticano, 16 de fevereiro de 2011 BENEDICTUS PP. XVI Envie a um amigo | Imprima esta Índice Geral INDICE GERAL dos números 52, 53 e 54 (2009/1, 2 e 3) a) Índice geral dos 3 números monográficos – No. 52 (2009/1): CF – 2009: Fraternidade e Segurança Pública - LOOZ, Márcio José, Fraternidade e segurança pública: “A paz é fruto da justiça” (Is 32,17), pp. 11-20 - DE LUCA, Clésio, Objetivo e dinâmica da Campanha da Fraternidade de 2009, pp. 21-26 - PEREIRA, Ney Brasil, Não-retaliação, perdão, amor dos inimigos: três salutares desafios do Evangelho, pp. 27-38 - RIBEIRO, Célio, Segurança pública a partir do sermão da Sexagésima, pp. 39-56 - SCHAUFFERT, Fred Harry, O comportamento social ante a segurança pública, pp. 57-70 - SCHAUFFERT, Fred Harry, Mulher, vítima de violência: o resgate da dignidade, pp. 71-84 - SILVEIRA, André Luís da, e SCHNEIDER, Rodrigo Raiser, Construindo Políticas Públicas de Segurança: uma análise criminológica brasileira, pp. 85-100 - HOFFMANN, Marcos Érico, e ZANELLI, José Carlos, Possibilidades e limitações das aprendizagens na prisão, pp. 101-11 - ROSA, Alexandre Matos, e SCHUH, Sara Maria Lemos, Do cárcere à liberdade Quando a esperança vence a exclusão, pp. 115-120 - STADELMANN, SJ, Luís, Confiança em Deus na crise, pp. 121-132 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 175 Índice Geral - PEREIRA, Reginaldo, Aparecida: a bem-aventurança do discipulado, pp. 133-146 - CARRANZA, Brenda, O Brasil, fundamentalista?, pp. 147166 - DE LUCA, Clésio, Um programa de rádio a serviço da Segurança, pp. 167-169 - BENEDET, Ronaldo, Fraternidade e segurança – Mensagem, pp. 171-172 – No. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal 2009-2010 - LIMA, Reginaldo de, Ano Sacerdotal – junho de 2009 a junho de 2010, pp. 09-20 - BESEN, José Artulino, São João Vianney, o Vigário do Bom Deus, pp. 21-36 - PEREIRA, Ney Brasil, Povo Sacerdotal, pp. 37-47 - DEBATIN, Osmar, A espiritualidade do Presbítero, pp. 49-60 - DAL’BO, Paulo, Ano Sacerdotal e a formação dos seminaristas, pp. 61-72 - FRANCISCO, Manoel João, Os ministérios em Santo Agostinho, pp. 73-100 - BESEN, José Artulino, Perfis de presbíteros missionários em Santa Catarina, pp. 101-117 - STADELMANN, SJ, Luís, O sacerdócio do reino messiânico (Sl 110), pp. 119-133 - FARIAS, Esmeraldo Barreto de, O ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo, pp. 135-150 - PEREIRA, Reginaldo, Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja, pp. 151-164 - HUMMES, Cláudio, O Ano Sacerdotal – Carta, pp. 165-166 - PEREIRA, Ney Brasil, Hino do Ano Sacerdotal – Hino e Comentário, pp. 167-171 - DREHER, Martin Norberto, SOUZA, Rogério Luís de, e OTTO, Clarícia (Orgs.), “Faces do Catolicismo” (recensão), pp. 173-177 176 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Índice Geral - IAROCHEVSKI, Ederson, BOFF, Leonardo, “Virtudes para outro mundo possível: comer e beber juntos e viver em paz” (recensão), pp. 178-183 – No. 54 (2009/3): Diaconato Permanente - GOEDERT, Valter Maurício, O Diaconato Permanente e o Mistério de Cristo, pp. 11-46 - BATTISTI, Anuar, O Diaconato Permanente no Documento de Aparecida, pp. 47-58 - TRENTIN, Avelino, Quarenta anos do Diaconato Permanente em Florianópolis, pp. 59-70 - COSTA, Odélcio Calligaris Gomes da, A mística do Diaconato Permanente, pp. 71-84 - RAMADA PIENDIBENE, Daniel, O Diaconato Permanente: vigência pastoral e fundamentos teológicos, pp. 85-112 - STADELMANN, SJ, Luís, Roteiro de atividades pastorais na Bíblia: Livros Sapienciais do AT e Diáconos no NT, pp. 113132 - LORASCHI, Celso, Os Doze e os Sete: uma abordagem de At 6,1-7, pp. 133-146 - PEREIRA, Ney Brasil, “Bíblia Sagrada Almeida Século XXI, Antigo e Novo Testamento” (recensão), pp. 147-156 - JUNKES, Lauro, MARCON, Cornélio Angelo, “Alice no poder de Asclépio, entre óvulos, embriões e fetos” (recensão), pp. 157-160 - SÁVIO, Joel, LA DUE, William J., “O guia trinitário para a Escatologia” (recensão), pp. 161-165 - BITTENCOURT, Joel Marcolino, MANZATTO, Antônio; PASSOS, João Décio; e VILLAC, Sylvia, “De esperança em esperança” (recensão), pp. 166-170 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 177 Índice Geral b) ÍNDICE GERAL dos três números monográficos de 2009, por Autor - BATTISTI, Anuar, O Diaconato Permanente no Documento de Aparecida, n. 54 (2009/3), pp. 47-58 - BENEDET, Ronaldo, Fraternidade e segurança – Mensagem, n. 52 (2009/1), pp. 171-172 - BESEN, José Artulino, São João Vianney, o Vigário do Bom Deus, n. 53 (2009/2), pp. 21-36 - BESEN, José Artulino, Perfis de presbíteros missionários em Santa Catarina, n. 53 (2009/2), pp. 101-117 - BITTENCOURT, Joel Marcolino, MANZATTO, Antônio; PASSOS, J. Décio; e VILLAC, Sylvia, “De esperança em esperança” (recensão), n. 54 (2009/3), pp. 166-170 - CARRANZA, Brenda, O Brasil, fundamentalista?, n. 52 (2009/1), pp. 147-166 - COSTA, Odélcio Calligaris Gomes da, A mística do Diaconato Permanente, n. 54 (2009/3), pp. 71-84 - DAL’BO, Paulo, Ano Sacerdotal e a formação dos seminaristas, n. 53 (2009/2), pp. 61-72 - DE LUCA, Clésio, Objetivo e dinâmica da Campanha da Fraternidade de 2009, n. 52 (2009/1), pp. 21-26 - DE LUCA, Clésio, Um programa de rádio a serviço da Segurança, n. 52 (2009/1), pp. 167-169 - DREHER, Martin Norberto, SOUZA, Rogério Luís de, e OTTO, Clarícia (Orgs.), “Faces do Catolicismo” (recensão), n. 53 (2009/2), pp. 173-177 - DEBATIN, Osmar, A espiritualidade do Presbítero, n. 53 (2009/2), pp. 49-60 - FARIAS, Esmeraldo Barreto de, O ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo, n. 53 (2009/2), pp. 135-150 - FRANCISCO, Manoel João, Os ministérios em Santo Agostinho, n. 53 (2009/2), pp. 73-100 - GOEDERT, Valter Maurício, O Diaconato Permanente e o Mistério de Cristo, n. 54 (2009/3), pp. 11-46 178 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Índice Geral - HOFFMANN, Marcos Érico, e ZANELLI, José Carlos, Possibilidades e limitações das aprendizagens na prisão, n. 52 (2009/1), pp. 101-114 - HUMMES, Cláudio, O Ano Sacerdotal – Carta, n. 53 (2009/2), pp. 165-166 - IAROCHEVSKI, Ederson, BOFF, Leonardo, “Virtudes para outro mundo possível: comer e beber juntos e viver em paz” (recensão), n. 53 (2009/2), pp. 178-183 - JUNKES, Lauro, MARCON, Cornélio Angelo, “Alice no poder de Asclépio, entre óvulos, embriões e fetos” (recensão), n. 54 (2009/3), pp. 157-160 - LIMA, Reginaldo de, Ano Sacerdotal – junho de 2009 a junho de 2010, n. 53 (2009/2), pp. 09-20 - LOOZ, Márcio José, Fraternidade e segurança pública: “A paz é fruto da justiça” (Is 32,17), n. 52 (2009/1), pp. 11-20 - LORASCHI, Celso, Os Doze e os Sete: uma abordagem de At 6,1-7, n. 54 (2009/3), pp. 133-146 - PEREIRA, Ney Brasil, Não-retaliação, perdão, amor dos inimigos: três salutares desafios do Evangelho, n. 52 (2009/1), pp. 27-38 - PEREIRA, Ney Brasil, Povo Sacerdotal, n. 53 (2009/2), pp. 37-47 - PEREIRA, Ney Brasil, Hino do Ano Sacerdotal – Hino e Comentário, n. 53 (2009/2), pp. 167-171 - PEREIRA, Ney Brasil, “Bíblia Sagrada Almeida Século XXI, Antigo e Novo Testamento (recensão), n. 54 (2009/3), pp. 147-156 - PEREIRA, Reginaldo, Aparecida: a bem-aventurança do discipulado, n. 52 (2009/1), pp. 133-146 - PEREIRA, Reginaldo, Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja, n. 53 (2009/2), pp. 151-164 - RAMADA PIENDIBENE, Daniel, O Diaconato Permanente: vigência pastoral e fundamentos teológicos, n. 54 (2009/3), pp. 85-112 - RIBEIRO, Célio, Segurança pública a partir do sermão da Sexagésima, n. 52 (2009/1), pp. 39-56 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 179 Índice Geral - ROSA, Alexandre Matos, e SCHUH, Sara Maria Lemos, Do cárcere à liberdade: Quando a esperança vence a exclusão, n. 52 (2009/1), pp. 115-120 - SÁVIO, Joel, LA DUE, William J., “O guia trinitário para a Escatologia” (recensão), n. 54 (2009/3), pp. 161-165 - SCHAUFFERT, Fred Harry, O comportamento social ante a segurança pública, n. 52 (2009/1), pp. 57-70 - SCHAUFFERT, Fred Harry, Mulher, vítima de violência: o resgate da dignidade, n. 52 (2009/1), pp. 71-84 - SILVEIRA, André Luís da, e SCHNEIDER, Rodrigo Raiser, Construindo Políticas Públicas de Segurança: uma análise criminológica brasileira, n. 52 (2009/1), pp. 85-100 - STADELMANN, SJ, Luís, Confiança em Deus na crise, n. 52 (2009/1), pp. 121-132 - STADELMANN, SJ, Luís, O sacerdócio do reino messiânico (Sl 110), n. 53 (2009/2), pp. 119-133 - STADELMANN, SJ, Luís, Roteiro de atividades pastorais na Bíblia: Livros Sapienciais do AT e Diáconos no NT, n. 54 (2009/3), pp. 113-132 180 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Resumo Estatístico ITESC ÍNDICE GERAL dos números 55, 56 e 57 (2010/1, 2 e 3) a) Índice geral dos 3 números monográficos – No. 55 (2010/1): CF Ecumênica– 2010: Economia e Vida - CONIC, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica, pp. 11-16 - BARBOSA, Luís Alberto, Economia e Vida, pp. 17-24 - RIBEIRO, Antônio Lopes, Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da Vida, pp. 25-40 - FAVARIN, Roque, Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina, pp. 41-66 - STADELMANN, SJ, Luís, Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13), pp. 67-78 - LIMA, Anderson de Oliveira, Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus, pp. 79-92 - SCHMIDT, Ervino, A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e Desafios, pp. 93-102 - SOUZA, Anderson Jankus de, Neopentecostalismo e marketing religioso: uma análise das técnicas de merchandising em instituições religiosas brasileiras, pp. 103-122 - RIBEIRO, Antônio Lopes, O Ensino Religioso na pósmodernidade, pp. 123-140 - CRUZ, Terezinha Mota, Simpósio sobre Ecumenismo. Ecumenismo na Pastoral. Exigências da realidade sócioeclesial, pp. 141-152 - PEREIRA, Ney Brasil, MOLINARI, Paola (org.), “Música brasileira na Liturgia II”, pp. 155-160 Encontros Teológicos nº 51 Ano 23 / número 3 / 2008 181 Índice Geral – No. 56 (2010/2): Igreja e Sociedade - STADELMANN, SJ, Luís, Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel, pp. 11-26 - VICENTE, Vilmar Adelino, A propósito do Ano Sacerdotal, pp. 27-42 - DORNELAS, Sidnei Marcos, Igreja e mobilidade humana: exigências, desafios, dimensão do ser e agir eclesial, pp. 4356 - GUERTECHIN, SJ, Thierry Linard, Vida política e igreja. O direito-dever do eleitor cidadão, pp. 57-74 - SILVA, Márcio Bolda da, A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados, pp. 75-100 - BRAGA, Aroldo, Igreja e Cultura, pp. 101-118 - DIETRICH, Luiz José, Igreja e Sociedade: entre profecia e legitimação, pp. 119-132 - GOEDERT, David Bruno, Acordo Brasil – Santa Sé. Relações tuteladas pelo direito, pp. 133-166 - PEREIRA, Ney Brasil, A invocação de Deus na liturgia: “Deus todo-poderoso”? ou, antes, simplesmente, “Pai”?, pp. 167170 - PEREIRA, Ney Brasil, “Costela”, ou “lado” de Adão, em Gn 2,21-22? Um texto de João Crisóstomo, pp. 171-175 - SILVA, Wellington Cristiano da, ANDRADE, Bárbara, “Pecado original... ou graça do perdão?” (recensão), pp. 177-186 – No. 57 (2010/3): O projeto pastoral de Aparecida - GODOY, Manoel, O projeto pastoral na América latina e no Documento de Aparecida, pp. 11-28 - MIRANDA, SJ, Mário de França, As mudanças socioculturais e a Igreja no Brasil, pp. 29-48 - DORNELAS, Sidnei Marco, O método das Santas Missões Populares a serviço da missão Continental? Questionamentos sobre suas possibilidades e incongruências, pp. 49-66 182 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Índice Geral - CARDOSO, Maria Teresa de Freitas, A perspectiva ecumênica do Documento de Aparecida, pp. 67-80 - NERY, FSC, Irmão, Catequese Iniciática segundo Aparecida, pp. 81-94 - BOMBONATO, FSP, Vera Ivanise, Vida religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo, pp. 95110 - COUTINHO, Sérgio Ricardo, Conversão pastoral e renovação missionária a partir das CEBs, pp. 111-122 - DORNELAS, Nelito Nonato, A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolíticas, pp. 123-142 - DIAS, Geraldo Martins, Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias da comunicação, pp. 143-162 - SILVA, Márcio Bolda da, Ética religiosa e pós-modernidade. Fidelidade, um parâmetro fragilizado, pp. 163-174 - PEREIRA, Ney Brasil, TREVIJANO ETCHEVERRIA, Ramón, “A Bíblia no cristianismo antigo. Pré-nicenos, Gnósticos, Apócrifos” (recensão), pp. 175-181 - PEREIRA, Ney Brasil, JUNGMANN, SJ, Josef Andreas, “Missarum Sollemnia. Origens, liturgia, história e teologia da Missa Romana”, pp. 182-186 b) INDICE GERAL dos três números monográficos de 2010, por Autor - BARBOSA, Luís Alberto, Economia e Vida, n. 55 (2010/1), pp. 17-24 - BOMBONATO, FSP, Vera Ivanise, Vida religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo, n. 57 (2010/3), pp. 95-110 - BRAGA, Aroldo, Igreja e Cultura, n. 56 (2010/2), pp. 101118 - CARDOSO, Maria Teresa de Freitas, A perspectiva ecumênica do Documento de Aparecida, n. 57 (2010/3), pp. 67-80 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 183 Índice Geral - CONIC, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica, n. 55 (2010/1), pp. 11-16 - COUTINHO, Sérgio Ricardo, Conversão pastoral e renovação missionária a partir das CEBs, n. 57 (2010/3), pp. 111-122 - CRUZ, Terezinha Mota, Simpósio sobre Ecumenismo. Ecumenismo na Pastoral. Exigências da realidade sócioeclesial, n. 55 (2010/1), pp. 141-152 - DIAS, Geraldo Martins, Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias da comunicação, n. 57 (2010/3), pp. 143162 - DIETRICH, Luiz José, Igreja e Sociedade: entre profecia e legitimação, n. 56 (2010/2), pp. 119-132 - DORNELAS, Nelito Nonato, A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolíticas, n. 57 (2010/3), pp. 123-142 - DORNELAS, Sidnei Marco, Igreja e mobilidade humana: exigências, desafios, dimensão do ser e agir eclesial, n. 56 (2010/2), pp. 43-56 - DORNELAS, Sidnei Marco, O método das Santas Missões Populares a serviço da missão Continental? Questionamentos sobre suas possibilidades e incongruências, n. 57 (2010/3), pp. 49-66 - FAVARIN, Roque, Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina, n. 55 (2010/1), pp. 41-66 - GODOY, Manoel, O projeto pastoral na América latina e no Documento de Aparecida, n. 57 (2010/3), pp. 11-28 - GOEDERT, David Bruno, Acordo Brasil-Santa Sé. Relações tuteladas pelo direito, n. 56 (2010/2),pp. 133-166 - GUERTECHIN, SJ, Thierry Linard, Vida política e igreja. O direito-dever do eleitor cidadão, n. 56 (2010/2), pp. 57-74 - LIMA, Anderson de Oliveira, Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus, n. 55 (2010/1), pp. 79-92 - MIRANDA, SJ, Mário de França, As mudanças socioculturais e a Igreja no Brasil, n. 57 (2010/3),pp. 29-48 184 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Índice Geral - NERY, FSC, Irmão, Catequese Iniciática segundo Aparecida, n. 57 (2010/3), pp. 81-94 - PEREIRA, Ney Brasil, MOLINARI, Paola (org.), “Música brasileira na Liturgia II”, n. 55 (2010/1), pp. 155-160 - PEREIRA, Ney Brasil, A invocação de Deus na liturgia: “Deus todo-poderoso”? ou, antes, simplesmente, “Pai”?, n. 56 (2010/2), pp. 167-170 - PEREIRA, Ney Brasil, “Costela”, ou “lado” de Adão, em Gn 2,21-22? Um texto de João Crisóstomo, n. 56 (2010/2), pp. 171-175 - PEREIRA, Ney Brasil, TREVIJANO ETCHEVERRIA, Ramón, “A Bíblia no cristianismo antigo. Pré-nicenos, Gnósticos, Apócrifos” (recensão), n. 57 (2010/3), pp. 175-181 - PEREIRA, Ney Brasil, JUNGMANN, SJ, Josef Andreas, “Missarum Sollemnia. Origens, liturgia, história e teologia da Missa Romana”, n. 57 (2010/3), pp. 182-186 - RIBEIRO, Antônio Lopes, O Ensino Religioso na pósmodernidade, n. 55 (2010/1), pp. 123-140 - SILVA, Márcio Bolda da, A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados, n. 56 (2010/2), pp. 75-100 - SILVA, Márcio Bolda da, Ética religiosa e pós-modernidade. Fidelidade, um parâmetro fragilizado, n. 57 (2010/3), pp. 163174 - SILVA, Wellington Cristiano da, ANDRADE, Bárbara, “Pecado original... ou graça do perdão?” (recensão), n. 56 (2010/2), pp. 177-186 - SOUZA, Anderson Jankus de, Neopentecostalismo e marketing religioso: uma análise das técnicas de merchandising em instituições religiosas brasileiras, n. 55 (2010/1),pp. 103122 - SCHMIDT, Ervino, A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e Desafios, n. 55 (2010/1)pp. 93-102 - STADELMANN, SJ, Luís, Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13), n. 55 (2010/1), pp. 67-78 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 185 Índice Geral - STADELMANN, SJ, Luís, Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel, n. 56 (2010/2), pp. 11-26 - VICENTE, Vilmar Adelino, A propósito do Ano Sacerdotal, n. 56 (2010/2), pp. 27-42 186 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Encontros Teológicos – 25 anos REVISTA “ENCONTROS TEOLÓGICOS” 1986 – 25 ANOS – 2011 Títulos dos 58 números monográficos 1986, n. 1 (1986/1): O Leigo na Igreja n. 2 (1986/2): Planejamento Pastoral do Regional Sul IV – Contribuições 1987, n. 3 (1987/1): A Mulher, ontem e hoje 1988, n. 4 (1988/1): No Ano Mariano, Maria n. 5 (1988/2): Comunicação e Evangelização 1989, n. 6 (1989/1): Religiosidade Popular em Santa Catarina n. 7 (1989/2): Experiências Pastorais em Santa Catarina 1990, n. 8 (1990/1): A Mulher, na Igreja e na Sociedade n. 9 (1990/2): O Trabalho 1991,n. 10 (1991/1): A visita do Papa à Igreja que está em Santa Catarina n. 11 (1991/2): Os Jovens e a Juventude 1992,n. 12 (1992/1): Evangelização da América Latina – 500 anos e †Pe. Paulo Bratti – 10 anos n. 13 (1992/2): Fraternidade e Moradia – CF 1993 1993, n. 14 (1993/1): Santo Domingo – o Documento e ITESC – 20 anos n. 15 (1993/2): Fraternidade e Família – CF 1994 1994, n. 16 (1994/1): Política e Igreja e Centenário de Dom Jaime de Barros Câmara n. 17 (1994/2): Fraternidade e Excluídos – CF 1995 1995, n. 18 (1995/1): A Era do Espírito n. 19 (1995/2): Fraternidade e Política – CF 1996 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 187 Encontros Teológicos – 25 anos 1996, n. 20 (1996/1): Espiritualidade e Espiritualidades n. 21 (1996/2): Fraternidade e Encarcerados – CF 1997 1997, n. 22 (1997/1): Cristo, Fé e Batismo n. 23 (1997/2): Fraternidade e Educação – CF 1998 1998, n. 24 (1998/1): Espírito Santo, Esperança e Crisma n. 25 (1998/2): Fraternidade e Desempregados – CF 1999 1999, n. 26 (1999/1): Deus Pai, Caridade e Reconciliação n. 27 (1999/2): CF 2000 Ecumênica: Por um Milênio sem exclusões 2000, n. 28 (2000/1): Trindade, Eucaristia, Jubileu n. 29 (2000/2): CF 2001: Vida, sim; drogas, não! 2001, n. 30 (2001/1): Ser Igreja no novo Milênio n. 31 (2001/2): CF 2002: Fraternidade e Povos indígenas 2002, n. 32 (2002/1): CNBB: 50 anos de serviço à Evangelização no Brasil n. 33 (2002/2): Concílio Vaticano II: 40 anos depois 2003, n. 34 (2003/1): CF 2003: Fraternidade e Pessoas Idosas n. 35 (2003/2): Ética e Teologia n. 36 (2003/3): ITESC – 30 anos 2004,n. 37 (2004/1): CF 2004: Fraternidade e Água n. 38 (2004/2): O escândalo da Fome n. 39 (2004/3): Lumen Gentium – 40 anos Pessoa, Comunidade, Sociedade 2005, n. 40 (2005/1): CF 2005 Ecumênica: Solidariedade e Paz n. 41 (2005/2): A Eucaristia: Ele está no meio de nós n. 42 (2005/3): Gaudium et Spes – 40 anos 2006, n. 43 (2006/1): CF 2006: Fraternidade e Pessoas com deficiência n. 44 (2006/2): XV Congresso Eucarístico Nacional – maio de 2006 n. 45 (2006/3): Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e Caribenho 188 Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 Aparecida – preparação Encontros Teológicos – 25 anos 2007, n. 46 (2007/1): CF 2007: Amazônia, Vida e Missão nesse chão n. 47 (2007/2): Espiritualidade n. 48 (2007/3): A Igreja em Santa Catarina 2008, n. 49 (2008/1): CF 2008: Fraternidade e Defesa da Vida n. 50 (2008/2): A Igreja em Santa Catarina – II n. 51 (2008/3): A Igreja no Documento de Aparecida 2009, n. 52 (2009/1): CF 2009: Fraternidade e Segurança Pública n. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal: 2009-2010 n. 54 (2009/3): Diaconato Permanente 2010, n. 55 (2010/1): CF 2010 Ecumênica: Economia e Vida n. 56 (2010/2): Igreja e Sociedade n. 57 (2010/3): O Projeto Pastoral de Aparecida 2011, n. 58 (2011/1): CF 2011: Fraternidade e a Vida no Planeta Encontros Teológicos nº 58 Ano 26 / número 1 / 2011 189 (Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)