etica ioguica versus etica budista_um breve comparativo025239

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etica ioguica versus etica budista_um breve comparativo025239
Ética Ióguica versus Ética Budista: um breve comparativo 1 2
Iniciando a Reflexão
A ideia dessa reflexão é identificar pontos de convergência entre a ética ióguica e a ética budista,
admitindo que essas duas religiosidades têm sinergias naturais, quais a reencarnação ou
transmigração e o princípio da impermanência inerente ao mundo dos fenômenos que estruturam a
realidade relativa, apesar de uma diferença básica, pois a primeira é considerada teista e a segunda
ateia.
Então, a lógica está no sentido de apontar normas básicas comuns às duas religiosidades, isto é,
orientações e regras de conduta, expressas por certas convenções, instruções e costumes, em última
instância, padrões éticos, mas igualmente normas básicas culturais, que contribuíram e contribuem
para as transformações da universalidade da ética global de hoje, fundada e, por que não dizer,
fundadora de um etos primordial no tempo.
Do grego ethos, significando „costume‟, „uso‟, „característica‟. Segundo a 2ª Edição revista e
ampliada do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, publicada pela Editora Nova
Fronteira, quer dizer “disposição, caráter ou atitude peculiar a determinado povo, cultura, ou grupo,
que o(s) distingue de outro(s) povo(s), cultura(s) ou grupo(s)”. Portanto, um etos primordial está
num sentido transcendente aos etos das nações, plasmando sinergicamente de forma positiva
valores planetários. Numa hipótese ampliada, poder-se-ia refletir com os etos de outros planetas e
outros nações universais ou de outros estados alterados de consciência de seres constituídos de
elementos fundamentais diferentes dos humanos, que se estruturam de terra, fogo, água, ar e éter.
O desenvolvimento da ideia, como que justificando o título, ganhou dimensão com a oportunidade
de realizar um pequeno estudo comparado dos grandes mandamentos do budismo e do hinduísmo.
O preceito ontológico manifesto é de que o etos de cada grande religião constitui a trilha para a
vereda do e para o Inefável, que no Yoga se entende por Isvara [ou Brahman, se considerarmos sua
vinculação com o Vedanta]; ou Vazio Luminoso, a caracterizar o conceito de nadidade budista.
1
Antônio José Botelho é praticante de Yoga há cinco anos com base no Yoga-Sutras de Patanjali e há um ano tem
participado de prática budista Mahayana, na vertente Vajrayana, inaugurada por Padmasambava. Neste julho de 2010,
participa do Módulo I do Curso de Formação em Yoga com Pedro Kupfer em Mariscal, Santa Catarina.
2
Reflexão adaptada de outra maior intitulada Ethos Universa [ou Ethos Global], elaborada em 2009, aonde o autor
discute os principais mandamentos das cinco grandes religiões: budismo, cristianismo, hinduísmo, islamismo e
judaísmo.
Nessa trilha somente com a compaixão, que em última análise é o tom final dos mandamentos, é
que se chega ou à liberação ióguica ou à iluminação budista. O budismo e o yoga adotam, ainda, o
regozijo e a equanimidade, estando, acima de tudo, o conhecimento transcendental. Portanto, não se
chega Lá com a maldade, com a cobiça, com o orgulho, com a inveja, com a raiva, com a
intolerância, com o medo, com o apego, com a aversão, e, sobretudo, com a ignorância quanto a
uma solução inefável. E, na exata medida dessa trilha, dessa vereda, é que se dá a oportunidade da
geração do bem-estar entre os homens. Assim, os mandamentos ióguicos e budistas têm o mesmo e
grande objetivo: sair definitivamente desse oceano samsárico expresso pelo mundo manifesto. Mas,
ao mesmo tempo, contribuem para fundar um etos global no contexto da civilização planetária.
Aqui, adotando a ideologia, a filosofia das duas religiosidades, que pregam a lei do karma e do
dharma, no mesmo compasso da globalização, do globalismo.
Ressalte-se que não se observarão possíveis nuances entre as grandes e muito menos nas pequenas
divisões budistas, por exemplo. Assim, não se discutirá se os preceitos éticos sejam do Grande
[Mahãyãna] ou do Pequeno Veículo [Hinayãna]. Da mesma forma, no hinduísmo os preceitos
citados são do Yoga, uma das suas seis escolas ou filosofias [esta que faz par com o Sâmkhya; a
Mimãmsã e o Vedãnta; e o Vaisesika e o Nyãya].
Ao fim e ao cabo da reflexão, constaram percepções seculares que podem ser consideradas contidas
no conjunto unitário de uma religiosidade ética expressa nos mandamentos das duas grandes
religiosidades.
Contextualizando a Reflexão
O importante para estar registrado é que o conjunto de valores que se explicitará, além de moldar as
relações entre os seres sencientes, conforma a trilha da vereda para a imortalidade, para a liberdade.
A religiosidade ióguica realiza Brahman identificando Atman, enquanto sinônimo de liberação,
enquanto que para os budistas a iluminação se dá com a realização da Vacuidade.
Portanto, mesmo com percepções diferentes da transcendência, do imanifesto, do invisível, do
inefável, veremos que os valores, normas e atitudes éticas em construção para a realização do bemestar da humanidade são quase-comuns em todas as duas grandes religiosidades.
No hinduísmo, Küng argumenta [à página 89 e seguintes] que em sânscrito não existe uma palavra
que expressa a sentido correto de etos. Mas registra que já no século II a.C. surge uma primeira
sistematização da ética ióguica. Ela provém de Patanjali, o fundador da Yoga, e possui orientação
muito prática. O fundamento é a libertação do espírito [Atmã ou Purusha] da materialidade por
meio de esforços sistemáticos para controlar as forças físicas e psíquicas da natureza humana.
Os sutras relativos à ética do yoga de Patanjali, estruturados em oito níveis, se inicia com a yama,
ou autodomínio. Exigem-se cinco exercícios éticos a serem realizados em pensamentos, palavras e
ações, que se poderia denominar de elementos de um etos básico: i) não-violência; não-ferir [ahimsa]; ii) veracidade [satya]; iii) não-furtar [a-setya]; iv) castidade; vida pura [brahmacharya]; e
v) não-cobiça [a-parigraha].
Para Iyengar, [p. 31], “esses mandamentos são regras da moralidade para a sociedade e para o
indivíduo, que, se não forem obedecidos, acarretam o caos, a violência, a mentira, o roubo, a
dissipação e a ambição. As raízes desses males são as emoções da cobiça, do desejo e do apego, que
podem ser fracas, médias ou excessivas. Elas só trazem a dor e a ignorância. Patanjali ataca a raiz
desses males mudando a direção do modo de pensar, segundo os cinco princípios de yama”.
As disciplinas éticas [yama], entendidas como os grandes mandamentos que transcendem credo,
país, idade ou época, são adicionadas e condicionadas às regras de conduta que se aplicam à
disciplina individual [niyama]. Os cinco niyamas relacionados por Patanjali são: i) sucha [pureza];
ii) santosha [contentamento]; tapas [ardor e austeridade]; svadhyaya [estudo do Eu]; e Ishvara
pranidhama [dedicação ao Senhor].
Observe-se, portanto, que o hinduísmo, via Yoga, totaliza 10 grandes orientações éticas. As cinco
primeiras evitam práticas negativas; as cinco seguintes induzem práticas positivas.
Complementarmente, a Bhagavad Gita [Canção do Senhor], que é a escritura sagrada dos hindus ou
evangelho do hinduísmo e um dos grandes documentos éticos da humanidade, defende claramente,
na opinião de Küng um etos mundial. Ainda nas palavras do autor, não é exigida uma ascese, por
exemplo, nem uma renúncia monástica ao mundo com o fim de se livrar do fluxo de renascimento
[liberação]. Mas sim uma atividade unida a um distanciamento do mundo, que em larga escala
também pode ser aceita por um budista: “Cumpre teu dever no mundo, mas não te deixes vencer por
ele!”. Portanto, um engajamento sem vício e sem escravidão. Trata-se, enfim, da teoria do
desapego.
No budismo: Malcoln David Eckel [Publifolha; 2007: p. 163 e seguintes], entende que o guia básico
para o nirvana [o hinduísmo adota a meta do samadhi] é o Caminho Óctuplo, que compreende um
processo de disciplina com oito componentes: i) “compreensão correta”; ii) “pensamento correto”;
iii) “fala correta”; iv) “ocupação correta”; v) “conduta correta”; vi) “esforço correto”; vii)
“contemplação correta”; e viii) “concentração correta”. O autor sintetiza esse conjunto de posturas
corretas como expressos por três princípios fundamentais, enquanto pré-requisitos para o nirvana 3:
i) conduta ética [sila, “moralidade”]; disciplina mental [samadhi, concentração mental]; e iii)
conhecimento do “eu” e do mundo [prajna, sabedoria].
Esses princípios estão relacionados à compreensão budista tradicional da lei do karma, que governa
a ciclo de vida, morte e renascimento [samsara]. Ou seja, funciona como uma retribuição moral, na
medida em que a pessoa deve abster-se de ações maléficas porque estas levarão à punição numa
vida futura e dificultarão a libertação do círculo de morte e renascimento. Assim, o pecado causa
sofrimento numa próxima vida, boas ações trazem felicidade, e uma ação que mistura o bem e o
mal trará resultados que mesclam sofrimento e felicidade. A “conduta ética” se resume aos Cinco
Preceitos: i) não matar; ii) não roubar; iii) não ter má conduta sexual; iv) não mentir; e v) não
ingerir álcool. A “concentração mental” ajuda a eliminar os desejos e ódios que levam a ações
maléficas. A “sabedoria” destrói o falso senso de “eu” que alimenta todo o processo de desejo, ódio
e ação maléfica.
Observa-se, ainda, que no budismo, como igualmente demonstrado no yoga, há um confronto entre
assertivas éticas afirmativas e negativas. Nagarjuna [p. 14], grande metafísico do budismo
Mahayana, confirma essa perspectiva: “Aquele que não negligencia as práticas por causa de desejo,
ódio, medo ou ignorância é tido como alguém de fé – um receptáculo digno da bondade suprema;
Depois de analisar a fundo todos os feitos do corpo, fala e mente aquele que realiza o que é benéfico
para si e para ou outros, e sempre pratica, é sábio; Não matar, não mais roubar, respeitar a mulher
do próximo, abster-se completamente da fala mentirosa, ríspida, indiscreta e que causa desavença;
Abandonar a cobiça, as intenções nocivas e as opiniões niilistas tais são as dez brancas sendas de
ação, sendo negros seus opostos; Não beber substâncias inebriantes, ter meios de vida honestos,
levar em conta o dar, honrar o honorável e amar – é isto em suma, a prática”.
Na realidade, outra forma de ler seria a partir da orientação de Buda expressa com o conhecido
“caminho do meio”, a quarta das Quatro Nobres Verdades. Zimmer [p. 339] afirma: “O caminho de
Gautama Sakyamuni é chamado de “caminho do meio”, pois evita extremos. Um desses extremos é,
de um lado, a busca desenfreada de prazeres mundanos, de outro, a disciplina severa, ascética,
corporal, como a de alguns contemporâneos do Buddha, os jainistas por exemplo, cuja austeridade
tinha como objetivo culminante a aniquilação do corpo físico. Outro par de extremos é o do
3
Na realidade, pela leitura deste autor, ouso dizer que a meta rumo ao inefável no budismo está além do nirvana, pois
no nirvana ainda há dualidade em confronto com o samsara.
ceticismo, que nega a possibilidade do conhecimento transcendental e a sustentação dialética de
doutrinas metafísicas não demonstráveis. O budismo evita a encruzilhada desses extremos e conduz
a uma atitude que, por si mesma, leva à experiência transcendental. Rejeita explicitamente toda
fórmula controvertida do intelecto, considerando-a inadequada tanto para conduzir, como para
expressar a verdade paradoxal que repousa além, muito além das concepções mentais”.
Para fins de integração desses princípios comuns, toma-se a compaixão como fio condutor da
costura de uma grande rede de relacionamentos humanos, enquanto seres sencientes, vale dizer que
quem é ou se torna compassivo não rouba, não mata, enfim não trai nenhum preceito ético em prol
da elevação da humanidade entre os homens.
Finalizando a Reflexão
Não dúvidas de que todas as duas grandes religiosidades contribuem para a possibilidade de cada
ser humano deste planeta Terra encontrar um caminho espiritual. Apesar de sua diferença
fundamental exposta quanto às pertinentes concepções do Divino Brahman para os yogins e a
Vacuidade para os budistas – que não percebem, portanto, o Absoluto enquanto Ser Supremo,
ambas prega a compaixão como a melhor forma para se estabelecer os relacionamentos entre seres
humanos.
Talvez essa possibilidade não seja plena hoje porque vivemos numa era de aprendizado espiritual,
onde apesar da existência do bem, prevalece o mal, expresso pelas guerras, pela violência, pela
alienação, pela ambição, pela mentira como aspectos imanentes do sistema capitalista e do instituto
do estado moderno, que produzem homens produtivos e competitivos. Independentemente da
concepção humana de organização sócio-política, a cosmologia hindu nos informa que estamos
vivendo o Kaliyuga, exatamente uma era em que prevalece o mal em detrimento do bem.
Igualmente, o budismo entende que a humanidade vive uma era de degenerescência.
Não importa. O que importa realmente é que a humanidade dispõe de uma base ética para a
construção do bem neste planeta Terra.
A tese de Schopenhauer também oferece argumentos seculares para um novo paradigma. No nível
da via prática, a negação da vontade do homem se dá por meio do fazer, consistindo em que se
alivie o sofrimento do outro por meio da compaixão. Tal perspectiva é fundamentada
metafisicamente por Schopenhauer. Para tanto, se todos os seres vivos estão compreendidos na
vontade, têm de ver a si mesmos ligados uns aos outros pela raiz, e compreender que, no fundo,
tudo é um.4 Com isso, os limites ilusórios da individualidade são rompidos, pois o sofrimento do
outro é o próprio sofrimento, e justamente dessa compreensão é que surge a compaixão. Nela, o
homem sofre toda a dor da humanidade ou, mesmo, de todo o ser senciente. A compaixão pode,
assim, tornar-se a fonte da atitude ética que supera o egoísmo. Esse é o princípio fundamental da
ética de Schopenhauer. De acordo com ela, a vontade, que cria o sofrimento, é negada por meio do
ato da compaixão.
Esse novo paradigma somente será possível quando se operar a tolerância entre as religiões, quando
se poderá realizar o que professora Küng, plasmando-se diálogo, padrões éticos e, finalmente, paz
para o exercício do bem. Até lá devemos tomar as religiões como freqüências de rádios, onde
selecionamos a estação que melhor nos apetece para ouvir uma boa música, que pode ser jazz, bossa
nova, clássica, blues, MPB, samba, dentre muitas outras opções, tais quais as derivações das
grandes religiões. Ou seja, devemos superar o discurso de defesa de que uma dada religião é melhor
do que outra! A coisa, porém, não é tão simples assim como sintonizar uma faixa de freqüência e se
deleitar com o som de uma boa música.
Referências Bibliográficas:
Coogan, Michel D [coord.]. Religiões: história, tradições e fundamentos das principais crenças
religiosas. São Paulo: PubliFolha, 2007;
Küng, Hans. Religiões do Mundo: em busca dos pontos comuns. Campinas/SP. Verus Editora,
2004;
Iyengar, B. K. S. A Luz da Yoga. São Paulo: Cultrix, 2007.
Nagarjuna. A Grinalda Preciosa. São Paulo: Palas Athena, 1995;
Weischedel, Wilhelm. A Escada dos Fundos da Filosofia: a vida cotidiana e o pensamento de
34 grandes filósofos. São Paulo: Editora Angra, em 2000.
Zimmer, Heinrich. Filosofias da Índia. São Paulo, pela Editora Palas Athena, em 2005,
4
Tudo é um só! É uma forma tântrica de perceber o Divino, ou a Vacuidade, através da realidade.