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(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Papéis : Revista do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens / Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo
Grande, MS : A Universidade, 1997- .
v. : il. ; 23 cm.
Semestral
Subtítulo anterior: revista de Letras.
ISSN 1517-9257
1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos.
3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.
CDD (22)-805
CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Centro de Ciências Humanas e Sociais
Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
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Papéis
Linguística e Semiótica
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
REITORA
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VICE-REITOR
João Ricardo Filgueiras Tognini
DIRETORA DE CENTRO
Élcia Esnarriaga de Arruda
COORDENADOR DO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO
Geraldo Vicente Martins
EDITOR CIENTÍFICO
Geraldo Vicente Martins
EDITORA ADJUNTA DESTA EDIÇÃO
Eluiza Bortolotto Ghizzi
IMAGEM DE CAPA
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Sombras I, 2010
Fotografia digital
PROJETO GRÁFICO
Eluiza Bortolotto Ghizzi
REVISÃO
A revisão linguística e ortográfica é de
responsabilidade de Geraldo Vicente Martins e
Eluiza Bortolotto Ghizzi
TRADUÇÃO PARA O INGLÊS
DO TEXTO DA ORELHA
Marta Banducci Rahe
CÂMARA EDITORIAL
Eluiza Bortolotto Ghizzi – Geraldo Vicente Martins – Maria Luceli Faria Batistote – Raimunda
Madalena Araújo Maeda – Willie Macedo de Almeida
CONSELHO CIENTÍFICO
Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo
Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP]
– Luiz Carlos Santos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FCLAR-UNESP] – Márcia Valéria Zamboni
Gobbi [FCLAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt
[UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCL-ASSIS/UNESP] – Thomas
Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL].
Sumário
Apresentação
Linguística e Semiótica
13
NOS PERCURSOS DA SEMIÓTICA: UMA LEITURA POSSÍVEL
Willie Macedo de Almeida
31
O NASCIMENTO DE UM HERÓI BRASILEIRO: ABORDAGEM DA
SEMIÓTICA APLICADA A UMA CAPA DA REVISTA VEJA
Luciana Garcia Gabas Coelho e Maria Luceli Faria Batistote
41
GUSTAVO ROSA E A FIGURA HUMANA FEMININA: DA LAVADEIRA À
MULHER PÊRA
Janice de Campos Ferra
57
SIMULACROS DA JUVENTUDE EM LETRAS DE MÚSICA DE RENATO
RUSSO”
Geraldo Vicente Martins
79
O FUTEBOL-ARTE BRASILEIRO: ASPECTOS DISCURSIVOS
DA CONSTITUIÇÃO E LEGITIMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE
NACIONAL
Ariane Rodrigues de Oliveira e Ana Carolina Vilela-Ardenghi
103
A PROMESSA DIVINA PARA A VIDA PRESENTE. A PROMESSA
BÍBLICA DE PROTEÇÃO: UMA ANÁLISE SEMIÓTICA BÍBLICA
Flavia Melville Paiva
123
CAMARGO GUARNIERI E SUA LINGUAGEM MUSICAL: APROPRIAÇÕES PESSOAIS DA ESTÉTICA NACIONALISTA PROPOSTA
Marcelo Fernandes Pereira e Edelton Gloeden
5
Apresentação
A construção de uma revista como a Papéis, que não é pautada por temas, mas por áreas, resulta quase que invariavelmente em
diversidade de conteúdos e de procedimentos de pesquisa, como já
se reconheceu, por diversas vezes, nesta mesma seção em edições anteriores. Talvez por isso, consideramos dignos de nota, em cada edição, os desvios e as coincidências. Neste número, relativo ao primeiro
semestre de 2011, cuja chamada privilegiou a área de Lingüística e
Semiótica, os artigos foram “desviados” todos para a semiótica, assim
como, em números anteriores, verificamos grande incidência de artigos dedicados à Linguística. Ademais, dentre os artigos ora publicados,
temos algumas coincidências, como a que reúne aqui três textos sobre
música, sendo dois deles dedicados a análises de letras de música e
um terceiro, à abordagem de aspectos relacionados à linguagem e à
estética em músicas de um importante compositor brasileiro. Também
temos quatro artigos que permitem ligações conceituais por meio das
idéias de nacional/brasileiro, dado que tratam de nacionalismo na música, da identidade nacional no futebol, da figura do herói nacional e
da representação da mulher brasileira. Por fim, há a coincidência de
termos quatro dos sete artigos com aplicação de conceitos da semiótica
discursiva, campo de estudos do discurso iniciado por A.J. Greimas, o
que oferece ao leitor o contato com os diferentes usos dessa semiótica
adotados pelos autores.
O primeiro artigo a analisar letra de música, “Nos percursos da
semiótica: uma leitura possível”, de Willie Macedo de Almeida, estuda
a letra da canção “Escolho ser fiel”, de Estevão Queiroga, interpretada por Alessandra Samadello no álbum Impossível Dizer, lançado em
2011. Para a análise são aplicados conceitos da semiótica discursiva.
“Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo”, de
Geraldo Vicente Martins, também à luz dos fundamentos teóricos da
semiótica discursiva, analisa três letras de música do cantor e composi-
7
tor Renato Russo, “buscando verificar, nelas, a presença de simulacros
do enunciador e do enunciatário e sua importância para a constituição
das concepções a respeito da juventude na obra desse artista”. O terceiro texto sobre música é “Camargo Guarnieri e sua linguagem musical:
apropriações pessoais da estética nacionalista proposta por Mário de
Andrade”, de Marcelo Fernandes Pereira e Edelton Gloeden, em que
se “propõe um breve relato sobre a formação técnico-composicional
de Camargo Guarnieri (1907 – 1993), de alguns aspectos centrais de
sua produção e de seus princípios estéticos vinculados ao modernismo
brasileiro e influenciados pelo nacionalismo de Mário de Andrade”. Por
meio da bibliografia referencial sobre o assunto e, também, de resultados de análises de obras características da produção do compositor, o
artigo promove uma discussão sobre influências, ao mesmo tempo, de
uma formação neoclássica e do projeto marioandradiano de nacionalismo, materializados na música de Guarnieri.
Questões nacionais relacionadas com outras, mais universais, também estão presentes em “O nascimento de um herói brasileiro: abordagem da semiótica aplicada a uma capa da revista Veja”, de Luciana
Garcia Gabas Coelho e Maria Luceli Faria Batistote, artigo que parte do
conceito de “mito” para estudar a figura do “herói”. A análise, elaborada com base na semiótica discursiva, examina essa figura em um personagem da recente produção fílmica brasileira: “capitão Nascimento”, o
protagonista do filme Tropa de Elite. O estudo toma como corpus uma
capa da revista Veja, publicada em 10 de novembro de 2010, e aborda
os conceitos de semissimbolismo, figurativização e intertextualidade.
Outra análise de representação que aponta signos de brasilidade
é apresentada no artigo “Gustavo Rosa e a figura humana feminina:
da Lavadeira à Mulher Pêra”, de Janice de Campos Ferra. O texto foi
elaborado após a dissertação de mestrado (homônima) da autora, que
teve como objeto de estudo a representação da mulher na obra do
pintor brasileiro. A autora analisou um grupo de 20 pinturas desse artista, datadas do período de 1965 a 2009, tendo recorrido para isso a
conceitos da semiótica da imagem de extração peirciana, a textos de
história da arte e sobre a obra de Gustavo Rosa. No artigo são citadas algumas dessas análises. As conclusões da autora apontam relações entre
a obra desse artista e as de mestres do passado, bem como regularida-
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des internas à sua obra, que revelam um modo próprio do artista pintar
e de representar a mulher brasileira.
“O futebol-arte brasileiro: aspectos discursivos da constituição e
legitimação de uma identidade nacional”, de Ariane Rodrigues de Oliveira e Ana Carolina Vilela-Ardenghi, é um texto que apresenta resultados de estudo das autoras sobre o “fenômeno da constituição/legitimação de uma identidade nacional” e sobre “como o futebol, no caso do
Brasil, se relaciona com a definição desta identidade nacional. Usam
para isso o quadro teórico-metodológico da escola francesa de Análise
do Discurso (AD) e tomam como corpus um grupo de matérias esportivas. Os resultados relacionam identidade nacional construída discursivamente, “futebol-arte” e “futebol de resultados”.
O artigo “A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção: uma análise semiótica bíblica”, de Flavia Melville
Paiva, liga-se aos artigos que põe em curso a semiótica discursiva. Nesse
caso, a autora faz uma aplicação dos três níveis de análise propostos
pela semiótica discursiva, para tratar da construção do sentido de um
texto clássico; mais especificamente, o texto bíblico “Salmos 23”. O
tema central da análise é o da “Proteção quando em conjunção com
o divino”, que permite discutir conceitos importantes relacionados às
nossas crenças religiosas.
Além das relações que apontamos, esperamos que nossos leitores
possam encontrar outras e, por meio delas, participar do fluxo de correlações oportunizado pelo fazer científico dos autores que ora apresentamos. Convidamos a todos os leitores, portanto, para que usufruam
dos percursos em aberto por mais esta edição da Papéis.
Geraldo Vicente Martins
Eluiza Bortolotto Ghizzi
Editores da área de Lingüística e Semiótica
9
Linguística e Semiótica
[artigos]
Nos percursos da semiótica [13-31]
Nos percursos da semiótica:
uma leitura possível
In the processes of semiotics: a possible reading
Willie Macedo de Almeida
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande – MS.
[email protected]
Resumo: Este artigo consiste na análise de uma letra de música, na perspectiva da semiótica discursiva. O trabalho é produto de uma tentativa de
aplicação dos pressupostos teóricos desse campo de estudos do discurso,
iniciado por A.J. Greimas. Nele, aparecem sucintamente delineados os
conceitos de semiótica, texto, plano do conteúdo, percurso gerativo de
sentido, estruturas fundamentais, narrativas e discursivas. Seu objetivo é
evidenciar, a partir dos percursos figurativos e temáticos, as possibilidades interpretativas sugeridas no texto selecionado e, a partir de então,
construir uma leitura possível.
Palavras-chave: Semiótica. Discurso. Enunciação.
Abstract: This article is a music lyric analysis using a discursive semiotic perspective. This work is a result of an application tentative of theoretical
conception of this studies area of discourse, developed by A. J. Greimas. In
this article, the concepts of semiotics, text, level of content, meaning generative process, fundamental, narrative and discursive structures appear
briefly outlined. Its objective is to point out, throughout figurative and
thematic processes, interpretative possibilities suggested in the selected
text and, therefore, construct a possible reading.
Keywords: Semiotics. Discourse. Enunciation.
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Willie Macedo de Almeida [13-31]
Introdução
Este artigo consiste na análise de uma letra da música, na perspectiva da semiótica discursiva. Nele, examinam-se os procedimentos de
organização textual a fim de evidenciar as possibilidades interpretativas
sugeridas no texto selecionado e, a partir de então, construir uma leitura possível.
Para redigi-lo, primeiramente foram retomadas leituras básicas
para situar as concepções teóricas da semiótica discursiva e seus procedimentos de análise. Depois, foi selecionado um texto para ser analisado nessa perspectiva. Em seguida, foi verificado o percurso gerativo de
sentido do texto e os recursos enunciativos utilizados para dizer o que
diz da forma como diz.
Espera-se que esta modesta empreitada seja útil para elucidar os
conceitos apresentados e para auxiliar na compreensão do sentido
identificado pela análise do texto selecionado.
Pressupostos teóricos
Para situar a perspectiva da semiótica discursiva, a partir da qual foi
desenvolvida a análise, é necessário retomar os conceitos que a embasam.
A semiótica discursiva integra o grupo de disciplinas que se interessa pelo estudo do texto e dos sentidos nele construídos. Ela traz em si a
herança conceitual deixada pelo suíço Ferdinand de Saussure, em seus
estudos semiológicos e linguísticos, e encontra delineamento na teoria do
lituano Algirdas Julien Greimas. Por seu viés linguístico, a semiótica discursiva se distingue das demais semióticas “desvinculada[s] de qualquer
ancoragem nas formas linguageiras” (BERTRAND, 2003, p. 14).
Na perspectiva discursiva ou greimasiana, a semiótica deve examinar os procedimentos da organização textual e, ao mesmo tempo, os
mecanismos enunciativos de produção e recepção do texto. Em outras
palavras, ela procura refletir acerca das condições pelas quais seja possível um estudo científico da significação e define-se como uma ciência
cujo objeto de estudos é o sentido do texto (cf. BARROS, 2003, p.187),
ou ainda, a geração do sentido.
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Nos percursos da semiótica [13-31]
O texto, por sua vez, é entendido como um objeto de significação
e como um objeto de comunicação, que compreende duas esferas,
uma linguístico-discursiva e outra sócio-histórica.
O texto se organiza e produz sentidos, como um objeto de significação,
e também se constrói na relação com os demais objetos culturais, pois
está inserido em uma sociedade, em um dado momento histórico e é
determinado por formações ideológicas específicas, como um objeto de
comunicação. (BARROS, 2003, p. 188)
Para a análise semiótica, um texto pode se apresentar como verbal, não-verbal (gestual, visual) ou sincrético (misto). Nessa análise, a
semiótica preocupa-se em desvendar o “parecer do sentido” (cf. BERTRAND 2003, p. 11), ou seja, ela não trabalha com a verdade, mas
como o parecer verdadeiro.
A Semiótica não se interessa pela verdade dos enunciados, mas por sua
veridicção, isto é, pelos efeitos de sentido de verdade com os quais um
discurso se apresenta como verdadeiro, falso, mentiroso, etc. (FIORIN,
1999, p. 180)
Os sentidos do texto são elucidados por meio do exame dos mecanismos e procedimentos do plano do conteúdo. Conforme as elaborações do dinamarquês Louis Hjelmslev, existem dois planos decorrentes
de duas noções elementares e interdependentes: expressão e conteúdo.
Uma expressão só é expressão porque é a expressão de um conteúdo,
e um conteúdo só é conteúdo porque é o conteúdo de uma expressão.
Do mesmo modo, é impossível existir (a menos que sejam isolados
artificialmente) um conteúdo sem expressão e uma expressão sem
conteúdo. (HJELMSLEV, 2003, p. 198)
Por razões metodológicas, a semiótica discursiva dá prioridade ao
exame do plano do conteúdo; dele, são depreendidos os efeitos de sentido do texto. No entanto, apesar de priorizar o plano do conteúdo,
a semiótica admite que, no processo de textualização, há uma junção
entre conteúdo e expressão, até porque, conforme Hjelmslev, são interdependentes e o que conduz à separação é a análise textual. Além disso,
os semioticistas têm admitido que há textos em que a expressão, além de
expressar o conteúdo, “produz” sentido (cf. BARROS, 2005, p. 76-77).
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Para a análise, o plano de conteúdo é concebido sob a forma de um
percurso gerativo de sentido. Este compreende três patamares depreendidos daquele, os quais revelam os mecanismos e os procedimentos do
processo de produção e interpretação dos sentidos do texto. Esses patamares, por sua vez, contemplam um componente sintático e outro semântico; além disso, postula-se que se organizem a partir de conteúdos
mais simples e abstratos rumo aos mais complexos e concretos. Assim,
Quanto mais profundo o nível, mais amplas e menos articuladas, ou
seja, mais simples são as suas unidades, assim como mais abstratas.
Quanto mais superficial, mais essas unidades se complexificam e se
concretizam. Lembramos também que cada nível é dotado de uma
sintaxe, entendida como o conjunto de mecanismos que ordena os
conteúdos, e de uma semântica, tomada como os conteúdos investidos
nos arranjos sintáticos, sendo que a segunda tem uma autonomia
maior que a primeira, o que implica na possibilidade de investir
diferentes conteúdos semânticos na mesma estrutura sintática. (LARA
& FRICKMATTE, 2009, p. 20-21)
No nível mais profundo, encontra-se o patamar das estruturas fundamentais. Nele, a significação aparece organizada como uma oposição semântica mínima que passa a constituir categorias semânticas fundamentais. Estas são classificadas como eufóricas (quando positivas) ou
disfóricas (quando negativas). Já a sintaxe do nível fundamental abrange
duas operações: a negação e a asserção.
Nessa etapa, a análise semiótica procura determinar quais são as
oposições, asserções e negações, a partir das quais o sentido do texto é
construído e verificar as relações de euforia e disforia que se estabelecem.
No nível mais superficial, encontram-se os outros dois patamares:
das estruturas narrativas e das estruturas discursivas. No nível narrativo,
as oposições semânticas fundamentais são assumidas como valores por
um sujeito.
O patamar narrativo também apresenta dois componentes: uma semântica e uma sintaxe. Na semântica narrativa, os valores nos objetos,
tidos como elementos semânticos, são selecionados e relacionados com
o sujeito para desvendar sua significação. Nessa etapa, observa-se que
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as ações do sujeito e os valores nos objetos podem ser modalizados. Na
sintaxe narrativa, verificam-se dois tipos de enunciado elementares: o
enunciado de estado, que estabelece as relações de junção (conjunção e
disjunção) entre o sujeito e o objeto, e o enunciado de fazer, que mostra
as transformações que ocorrem mediante essas relações. Os textos, portanto, constituem narrativas complexas em que uma série de enunciados
de estado e de fazer estão organizados hierarquicamente. Tal organização define os programas narrativos.
Uma narrativa complexa desenvolve-se num esquema de três fases:
manipulação (por tentação, por intimidação, por sedução ou por provocação), ação (competência e performance) e sanção (julgamento). O
percurso narrativo é constituído por uma sequência de programas narrativos relacionados por pressuposição, podendo ser: percurso do sujeito;
percurso do destinador-manipulador; percurso do destinador-julgador.
No nível discursivo, as estruturas narrativas aparecem enriquecidas pelas opções do sujeito da enunciação. Essas escolhas referem-se
às categorias de tempo, espaço e pessoa. Ao enunciar, o sujeito deixa
marcas; assim, a enunciação se revela nas estruturas discursivas a partir
dos sinais espalhados ao longo do discurso, e estes precisam ser depreendidos para possibilitar a análise. Como nos demais níveis, a análise
discursiva desdobra-se nos componentes semântico e sintático.
Na semântica discursiva, destacam-se as noções de tematização,
figurativização e isotopia. A tematização consiste num processo de investimento semântico que diz respeito a categorias puramente conceituais, que não correspondem ao mundo natural. Na análise semiótica,
determinam-se os traços ou semas que se repetem para dar coerência
ao discurso. Todos os textos tematizam o nível narrativo e, depois, esse
nível poderá ou não ser figurativizado. A figurativização recobre os percursos temáticos abstratos e atribui-lhes traços de revestimento sensorial. As figuras, portanto, referem-se a e estabelecem correspondência
com o mundo natural, isto é, o mundo exterior. Na última etapa da
figurativização, encontra-se o processo de iconização, o “investimento
figurativo exaustivo final” (BARROS, 2005, p. 69).
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A isotopia corresponde à articulação dos temas e figuras que garante a coerência semântica do texto. Dito de uma forma mais simples,
as isotopias são as chaves interpretativas do sentido que um texto admite como possíveis. Se permite apenas uma leitura, o texto é monoisotópico; se permite duas, diisotópico; se três, triisotópico; e assim por
diante. Na análise, examinam-se os traços semânticos (abstratos e figurativos) que se repetem no discurso e identificam-se o desencadeador
de isotopias (elemento que promove a descoberta de novas leituras)
e o conector de isotopias (elemento que assegura a passagem de uma
leitura à outra).
Na sintaxe discursiva, são verificadas as projeções da enunciação
no enunciado e os procedimentos que produzem o efeito de realidade
ou referente. (cf. FIORIN, 1999, p. 189)
No âmbito das projeções da enunciação, destacam-se as noções
de debreagem e embreagem. Existem três tipos de debreagem – actancial, espacial e temporal – conforme a categoria sobre a qual incida.
Atravessando essa tipologia, outras duas classificações se estabelecem:
uma opõe debreagens enuncivas e enunciativas; outra propõe a distinção entre debreagens internas e paralelas/alternadas.
A debreagem enunciva provoca um distanciamento, mantendo a
enunciação afastada do discurso a fim de simular objetividade e aparentar imparcialidade. A debreagem enunciativa produz um efeito de
aproximação, demonstrando a subjetividade e a parcialidade contida na
visão dos fatos, a fim de garantir a impressão de que são fatos vividos por
aquele que os está enunciando. As debreagens enuncivas e enunciativas podem ocorrer, no texto, como paralelas ou alternadas. No caso das
debreagens internas, delega-se a voz, internamente a outro interlocutor,
produzindo o efeito de realidade ou de referente no discurso.
A embreagem, por sua vez, é “‘o efeito de retorno à enunciação’,
produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/
ou tempo” (FIORIN, 2008, p. 27), “de modo que se conceba tanto os
recursos enuncivos quanto os enunciativos como procedentes da mesma fonte” (TATIT, 2005, p. 204).
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A fim de persuadir o enunciatário, o enunciador pode ainda empregar procedimentos que produzam o efeito de realidade ou de referente. Estes constituem ilusões discursivas que causam a impressão de
que os fatos e os seres são reais e de que o discurso é verdadeiro.
Análise
Para uma demonstração de análise, foi selecionado o texto “Escolho ser fiel”, música de Estevão Queiroga1, interpretada por Alessandra
Samadello2 no álbum Impossível Dizer, lançado em 2011. Apesar de
configurar-se como um exemplo de texto sincrético devido aos elementos de ordem musical, optou-se por verificar no texto exclusivamente o seu componente verbal3. Desse modo, as considerações explicitadas abaixo representam o resultado de uma leitura apenas da letra
da música, realizada a partir da perspectiva semiótica.
O poema possui oito estrofes de quatro versos. Dessas, a terceira, a sexta e a oitava são “idênticas” – ou nem tanto, como será
demonstrado.
Escolho Ser Fiel
Letra e música: Estevão Queiroga
O homem duvida, a dúvida é fome
A vida é uma busca que a morte consome
A mente se engana, a prova é tão pouco
Se um dia estou firme, no outro sou louco
Estevão Queiroga (João Pessoa, 17 de setembro de 1984) é formado em Comunicação Social – Jornalismo, e atua na área de Marketing e Publicidade. Compôs a letra e a
música da canção “Escolho ser fiel”.
2
Alessandra Samadello (Santo André, 20 de abril de 1971) é uma cantora gospel. Sua
discografia contabiliza dezoito CDs e dois DVDs infantis. Já alcançou cerca de 1 milhão
de cópias vendidas.
3
Foram ignoradas as propriedades sonoras por uma questão de recorte. Para analisá-las adequadamente, seria necessário um aporte teórico específico da área de música,
o que alongaria demasiadamente a extensão deste artigo. Assim, a análise leva em
conta apenas o conteúdo verbalizado e sua expressividade poética. Além disso, foram
mantidas as repetições do refrão por acreditar que ele passe por um certo processo de
recategorização a cada vez que (re)aparece.
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Mas ainda que as ideias mudem,
Ainda há uma razão.
E ainda que as coisas passem no tempo,
Ele não mudará
Escolho ser fiel,
Escolho ser fiel ao que escolhi
Escolho ser fiel,
Escolho ser fiel a quem me escolheu.
Os cetros se inclinam, o certo não muda
Os livros se rasgam, o verbo perdura
O amor vale a luta, a fé cruza o vale
Na sombra eu me calo pra que ele me fale
Mas ainda que meus pensamentos vão longe
Eu fico perto
E ainda que meus sentimentos me traiam,
Escolho ser fiel
Escolho ser fiel,
Escolho ser fiel ao que escolhi
Escolho ser fiel,
Escolho ser fiel a quem me escolheu.
Eu creio no céu por trás desta nuvem
Eu ouço a resposta atrás da pergunta
Eu sei que há um Deus, além do que muda
E ele é.
Escolho ser fiel,
Escolho ser fiel ao que escolhi
Escolho ser fiel,
Escolho ser fiel a quem me escolheu.
O texto intercala o que é passageiro e o que é permanente. O percurso gerativo aparece recoberto por figuras, dentre as quais algumas
passam por uma simples figuração, como é o caso da razão, e outras recebem um revestimento figurativo mais exaustivo, como os cetros e os
livros. A articulação de todas as figuras possibilita o desencadeamento
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Nos percursos da semiótica [13-31]
de dois planos de leitura. No início do texto, figuras como dúvida, vida,
ideias e razão ativam uma leitura filosófico-existencial. No entanto, no
desenvolvimento do texto, esse percurso figurativo vai cedendo lugar a
um viés espiritual e/ou religioso, que se confirma no final.
No nível narrativo, tem-se um sujeito (o homem) disjunto do seu
objeto-valor, quer seja este o conhecimento (no plano filosófico-existencial) ou, paralelamente, a eternidade (no plano espiritual). Se for
levado em consideração que o objeto-valor é o conhecimento, o percurso do sujeito incidirá na sucessão de um programa de aquisição reflexiva, em que o sujeito é modalizado pelo desejo – o homem adquire
o conhecimento por si mesmo porque o quer. Tal programa, por sua
vez, pressupõe a possibilidade um programa de privação transitiva – o
objeto-valor pode ser tirado do homem pela falibilidade de sua lucidez
e pela mutabilidade das ideias e da ciência. Modalizado pela insegurança, o sujeito passa por um programa de privação reflexiva – inseguro, o homem opta por renunciar ao objeto-valor adquirido. Em seguida, o percurso do sujeito pressupõe a possibilidade de um programa
de aquisição transitiva, em que o sujeito é modalizado pela esperança
– outro sujeito (Deus) pode oferecer os objetos-valor (conhecimento e/
ou eternidade) ao sujeito homem. A transformação ocorre quando o
sujeito entra em conjunção com os valores que permanecem. Com a
transformação, ele adquire competência para crer (fé) e saber (razão),
sendo assim sancionado positivamente.
É possível observar que o texto trata da razão humana, tematizada
tanto no sentido de um constituinte racional – o homem é dotado de
uma capacidade de raciocínio que resulta na produção de conhecimentos – quanto no sentido de uma força motivacional – há uma razão
que move o homem. Para compreender como é possível depreender
essas duas possibilidades interpretativas e para estabelecer as devidas
relações entre elas, e entre elas e o título, procedemos à análise do
percurso gerativo de sentido, verso por verso.
Na primeira estrofe, como já foi mencionado, o homem é tido
como um sujeito incompleto e descontínuo. O homem está disjunto
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Willie Macedo de Almeida [13-31]
de seu objeto de valor (conhecimento). Portanto, é um sujeito não-realizado. A relação de junção existente entre o sujeito e o objeto-valor
é da ordem do desejável (QUERER) – porque a sua dúvida é fome – e,
ao mesmo tempo, do impossível (NÃO-PODER) – devido à falibilidade
da mente. Trata-se de um sujeito modalizado pelas paixões do desejo
e da insegurança.
Os três primeiros versos do poema contêm proposições que aludem à vida humana. Em “o homem duvida, a dúvida é fome” está
retratada a própria busca por sentido que caracteriza a existência humana – talvez o Dubito, ergo cogito, ergo sum, de Descartes. Essa ânsia
aparece figurativizada pela fome. O verso seguinte – “A vida é uma
busca que a morte consome” – reforça a ideia expressa anteriormente,
mas adiciona-lhe a contraparte referente ao fim da vida, consequentemente o fim da busca individual. O fim é a morte. Assim, instaura-se
a categoria opositiva: vida vs. morte. Enquanto a vida é uma busca, é
dúvida, é fome, a morte consome tudo isso e finaliza o processo. No
terceiro verso – “A mente se engana, a prova é tão pouco” – é destacada a vulnerabilidade do raciocínio humano. A mente é falível e está
sujeita a ser enganada, inclusive por si mesma (se o se for tomado como
pronome reflexivo). A prova introduz a primeira relação que se pode
fazer diretamente com o título. A fidelidade é exercício que passa por
provas, ou seja, que precisa ser provado. Ocorre que, diante da vulnerabilidade da mente, a prova pode representar “tão pouco”. O último
verso dessa primeira estrofe traz a voz do simulacro do sujeito enunciador, que assume a própria vulnerabilidade: “se um dia estou firme, no
outro sou louco”. Assim, instaura-se uma segunda categoria opositiva:
lucidez vs. loucura.
Tem-se uma debreagem enunciva nos três primeiros versos, o que
garante a objetividade das afirmativas, produzindo no enunciado um
efeito de verdade que pode ser aplicada a toda e qualquer pessoa, em
todo e qualquer tempo ou espaço. Em outras palavras, esse procedimento faz parecer – já que a análise semiótica compromete-se com o
parecer verdadeiro e não com a verdade em si – que as proposições
apresentadas são universais.
22
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Nos percursos da semiótica [13-31]
No plano da expressão4, verifica-se que a primeira estrofe é
composta de versos hendecassílabos, isto é, que contém onze sílabas poéticas. Essa regularidade métrica reitera a regularidade das asserções. Além disso, esses versos apresentam rimas paralelas AABB.
A esse respeito, é interessante notar a diferenciação temática entre
os dois pares de versos. Os dois primeiros retratam a estabilidade
das proposições apresentadas e os dois últimos, a instabilidade da
cognição5 humana.
Na segunda estrofe, as asseverações são concessivas, mostrando
que apesar das mudanças, há certos elementos que se mantêm. Assim,
impõe-se um movimento de alternância. O verso “Ainda que as ideias
mudem” reafirma o sentido de instabilidade apresentado nos dois versos anteriores – a mente se engana, perde-se a lucidez e mudam-se as
ideias. Retomando a afirmação de que a vida é uma busca, pode-se
inferir que os conhecimentos adquiridos durante esse processo podem
ser alterados, ou ainda, superados e substituídos por outros, mais consistentes, mais complexos ou simplesmente mais adequados. É um processo de transformação.
Levando-se em conta a enuncividade do enunciado, também é
possível dizer que essas ideias representam um saber coletivo, social –
não é dito “minhas ideias”, “suas ideias”, mas “as ideias” – pois não são
assumidas por sujeitos específicos. A partir de uma perspectiva sócio-histórica, as ideias podem englobar, por exemplo, as grandes teorias
científicas, modelos desse saber coletivo que não é eterno e vai sendo
construído, desconstruído e reconstruído com o passar do tempo.
No entanto, no verso seguinte, é dito que, apesar dessas transformações, “ainda há uma razão”. Novamente, para o entendimento do
termo razão, concorrem duas acepções: ou entende-se que, apesar do
aparente caos, existe uma causa para que essas mudanças ocorram; ou
4
Foram analisadas apenas as propriedades rímicas e rítmicas que possam estabelecer
alguma relação semissimbólica com o conteúdo veiculado.
5
Por cognição, entende-se “um conjunto de várias formas de conhecimento”. (cf.
KOCH, 2009, p. 32)
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Willie Macedo de Almeida [13-31]
que, apesar da insegurança gerada por essa instabilidade, há um motivo
(razão) para que o homem prossiga sua busca por novas respostas. Em
“Ainda que as coisas passem no tempo”, tem-se o sentido equivalente
ao do primeiro verso da mesma estrofe, mas no âmbito material. Ou
seja, tanto as ideias (psíquicas) como as coisas (físicas) são efêmeras.
No verso “Ele não mudará”, o pronome pessoal “ele” permite
duas interpretações. Ele pode ser considerado uma referência que retoma o termo “tempo”. Nesse caso, a leitura será a seguinte: ainda que as
coisas passem no tempo, ele (o tempo em si) não mudará. Essa opção
implica na concepção de que o tempo é uma categoria que permanece e resiste às mudanças. Outra possibilidade de leitura é a de que o
pronome “ele” introduz no texto uma referência a Deus. Em outras palavras, as coisas passam no tempo, mas Deus não mudará porque Ele é
eterno e transcende os limites do tempo. Porém, essa pressuposição só
será coerente se for reativada e puder ser comprovada mais adiante no
texto. Caso contrário, será automaticamente descartada. É interessante
notar até aqui que vários versos possibilitam mais de uma leitura. Essa
ambiguidade ocorre por meio dos elementos figurativos que permitem
interpretações diversas. Tais elementos podem ser considerados, por
isso, como conectores ou desencadeadores de isotopias.
No plano da expressão, essa oscilação entre as concessões é reforçada pela irregularidade métrica da estrofe. Assim como o conteúdo
veiculado não tem a mesma fixidez das proposições contidas na estrofe
anterior, o ritmo também não apresenta a mesma simetria.
A terceira estrofe (refrão) faz a primeira referência ao título do texto. Ao dizer “Escolho ser fiel”, a escolha constitui-se como um desejo
do sujeito. Dessa vez, porém, não se trata de um querer inerente como
a fome introduzida no primeiro verso, mas de um querer intencional,
opcional, sobre o qual o sujeito tem controle e para o qual demonstra-se competente, conforme será visto mais adiante. A escolha incide
sobre uma postura, um princípio: a fidelidade. Ser fiel é uma questão
de escolha do sujeito. Em “Escolho ser fiel ao que escolhi”, o sujeito eu
assume a opção de ser fiel ao objeto de sua escolha. Em “Escolho ser
24
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fiel a quem me escolheu”, o sujeito eu assume a mesma opção, mas
dessa vez em relação a outro sujeito, do qual é objeto de escolha, ou
seja, ao mesmo tempo em que é sujeito que escolhe, também é objeto
da escolha alheia. Além disso, a relação entre os tempos verbais mostra
que a escolha dos objetos é anterior à escolha do sujeito.
Prevalece no refrão a debreagem actancial enunciativa, pois o
sujeito assume a enunciação como sendo sua. Esse procedimento reforça
a noção de que a fidelidade envolve um posicionamento declarado
pelo sujeito, que precisa ser provado pelo sujeito – como sugerido no
terceiro verso do poema. Observa-se também a função da repetição
como forma de reafirmar a escolha e recategorizar gradualmente o
objeto da escolha.
Na quarta estrofe, são apresentadas novas proposições que, mais
uma vez por meio de debreagens enuncivas, querem se impor como universais e atemporais. Dessa vez, cada asserção está associada a uma esfera de atividade humana. Essa estrofe cria um percurso figurativo referente
aos valores sociais humanos. Em “Os cetros se inclinam”, a figura dos
cetros representa aqueles que detêm poder político, os quais inclinam-se, ou seja, com o passar do tempo cedem seu lugar a sucessores. Em
outras palavras, a Política é um terreno de instabilidade. Completando o
verso, diz-se que “o certo não muda”. As noções de certo e errado estão
muito ligadas aos valores da Ética. Ou ainda, se a afirmativa for situada
no contexto religioso, será possível entender que os princípios morais estabelecidos por Deus é que são imutáveis. No verso seguinte – “Os livros
se rasgam” – a figura dos livros parece estar ligada à Ciência. Livros rasgados sugerem que teorias são invalidadas, como já tinha sido anunciado
anteriormente no primeiro verso da segunda estrofe.
Em “o verbo perdura”, pode-se construir um sentido de concessão
ou de oposição. No primeiro caso, entende-se que o verbo representa
o saber imaterial que está nos livros e se apreende para além das páginas, diferentemente do livro materializado. Assim, lê-se que o conhecimento conquistado perdura, mesmo que se rasguem os livros a partir
dos quais ele foi adquirido. No segundo caso, pode-se entender que o
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verbo esteja personificado, o que faz lembrar a forma como João descreve a encarnação de Jesus (João 1:1, 14)6.
Nesse trecho bíblico7, é dito que Jesus é o Verbo existente desde o
princípio. Em outras palavras, Cristo é o Verbo eterno, que perdura. Em
“O amor vale a luta, a fé cruza o vale”, pode-se entender que o amor
faz valer a luta. Trata-se, portanto, de um valor superior às possíveis
adversidades com as quais seja necessário lutar. A fé, por sua vez, é
retratada como uma ação, não apenas como um sentimento cultivado,
mas como uma convicção que promove atitude e que é evidenciada
em obras (Tiago 2:14, 17)8. Quanto à figura do vale, há duas possibilidades. É possível que ela esteja recobrindo o tema da adversidade ou
representando a morte, pois no verso seguinte aparece a expressão na
sombra e, no texto bíblico, a figura do vale da sombra está proximamente relacionado à morte (Salmo 23:4)9. No caso da segunda leitura,
a fé atravessa a morte porque traz a esperança de ressurreição para a
vida eterna, esperança garantida na cruz – a fé “cruza”. Em “Na sombra
eu me calo pra que ele fale”, a figura da sombra pode representar tanto
o que é impreciso, obscuro, diante do qual o sujeito se cala por falta
de conhecimento. Nesse caso, o pronome “ele” pode retomar tanto o
referente “amor” do verso anterior, quanto Deus. Entende-se, portanto,
que, diante das incertezas, o sujeito se cala, se anula, para aprender
com o amor ou com a sabedoria divina.
Numa análise mais profunda, a figura da sombra pode denotar,
como a do vale, a ideia de morte. A morte tem o poder de calar, silenciar o sujeito. Esse processo pode sugerir a constituição de uma metá6
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. (...) E o
Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito
do Pai, cheio de graça e de verdade.”
7
A Bíblia foi utilizada como referência para endossar as possibilidades de leitura construídas a partir de uma perspectiva religiosa.
8
“Meus irmãos, qual é o proveito se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras?
Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? (...) Assim, também a fé, se não tiver obras, por si
só está morta.”
9
“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum porque
Tu estás comigo (...)”
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fora10 que simboliza a morte do cristão para as coisas do mundo e uma
nova vida em Cristo (Romanos 6:4, 11)11.
Se na segunda estrofe era apenas cogitada uma pequena possibilidade do tom religioso do poema, a partir da quarta estrofe, encontram-se evidências mais fortes. Assim, quando o refrão é repetido na sexta
estrofe, os objetos aparecem recategorizados, como será visto.
Quanto ao plano da expressão, temos o mesmo caso da primeira
estrofe, em que a regularidade da métrica e das rimas reforça o sentido
das premissas.
Na quinta estrofe, são apresentadas novas concessões. Em “Ainda
que meus pensamentos vão longe / Eu fico perto”, há um contraste
entre a divagação do pensamento e a permanência do sujeito. Ou seja,
ainda que os pensamentos, as dúvidas o façam divagar para longe, o
sujeito permanece fiel, perto, presente. Tal premissa é reforçada nos
versos subsequentes: “E ainda que meus sentimentos me traiam, / Escolho ser fiel”. Esse movimento de oscilação entre pensamentos/sentimentos e a fidelidade evoca também a ideia que a vida cristã consiste
num constante fazer o que não se quer fazer e não fazer o que se quer
fazer (Romanos 7:19)12.
Diferentemente do que ocorre na segunda estrofe, na quinta, o
simulacro do enunciador assume sua enunciação instaurando uma
debreagem actancial enunciativa: não são quaisquer pensamentos ou
sentimentos, mas sim os seus. Talvez essa opção queira demonstrar que
a escolha de manter-se fiel, manter-se perto, seja individual. Se, na
segunda estrofe, a fixidez das proposições é abalada por fatores sociais
externos; na quinta, trata-se de fatores internos, individuais, pessoais.
10
A metáfora consiste numa outra possibilidade de leitura de um termo, criada pelo
contexto, por meio da intersecção de traços semânticos. (FIORIN, 2002, p. 86)
11
“Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi
ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida. (...) Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos
para Deus, em Cristo Jesus.”
12
“Por que não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço.”
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A sexta estrofe é uma repetição da terceira, mas apresenta-se recategorizada pela nova isotopia ativada nas duas estrofes anteriores. Essa
recategorização será confirmada na oitava estrofe.
Quanto à sétima estrofe, no verso “Eu creio no céu por trás dessa nuvem”, o céu é uma figura eufórica e pode representar um lugar
celestial para onde Jesus levará os remidos (João 14:2-3)13. Nesse caso,
a nuvem representa algum obstáculo temporário que abale essa visão,
como, por exemplo, a racionalização do saber, já que a mente se engana e faz com que num dia se esteja firme e em outro se esteja louco.
Num outro sentido, o céu pode representar a esperança de vida eterna
que existe para além da morte, esta entendida como um sono (João
11:11-14)14, tendo em vista a transitoriedade da nuvem, que passa.
Em “Eu ouço a resposta atrás da pergunta”, tem-se um jogo de palavras entre pergunta e resposta. A pergunta pode figurativizar a vida, já
que esta vem sendo apresentada como uma busca por sanar dúvidas. A
resposta é a solução para a ânsia de conhecimento. Diferentemente da
relação entre céu e nuvem, em que o primeiro é eufórico e a segunda
é disfórica, na relação entre pergunta e resposta nenhum dos dois é
necessariamente disfórico. Obviamente, a resposta traz euforia porque
representa uma solução. Mas a pergunta não é disfórica em si mesma.
Só será disfórica se não levar a lugar algum, se perder de vista a possibilidade de resposta. Do contrário, a pergunta constitui a força propulsora que mobiliza ações em busca da resposta. Ou seja, é a pergunta que
motiva a procura pela resposta. E, sendo assim, não é disfórica.
Do verso “Eu sei que há um Deus além do que muda”, podem-se
abstrair duas categorias opositivas: mutabilidade vs. imutabilidade; efemeridade vs. eternidade. Nesse verso, é dada a comprovação da pos13
“Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois
vou preparar-vos lugar e, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei
para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também.”
14
“[Jesus] lhes acrescentou: Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou para despertá-lo.
Disseram, pois, os discípulos: Senhor, se dorme, estará salvo. Jesus, porém, falara com
respeito à morte de Lázaro; mas eles supunham que tivesse falado do repouso do sono.
Então, Jesus lhes disse claramente: Lázaro morreu.”
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sibilidade de leitura do oitavo verso (quarto verso da segunda estrofe),
em que o pronome “ele” poderia referir-se a Deus. Enquanto na segunda estrofe é dito que as ideias e as coisas mudam, e que a razão e – até
então – o tempo não mudam; na sétima estrofe fica explícito que é
Deus que permanece além do que muda. A seguir, o outro verso diz: “E
Ele é”. É interessante notar o emprego do verbo “ser”. Ele é. Poder-se-ia
completar o sentido do verso com predicativos coerentes com o tema
do poema, como “Ele é [fiel], [eterno], [imutável], [a resposta] etc”.
Mas, no contexto religioso, conforme a tradição bíblica, Deus é o único
ser que É. Sendo denominado como o grande EU SOU (Êxodo 3:14)15.
O único ser a quem se pode atribuir uma existência intransitiva.
Estabelecida essa isotopia, obtém-se uma nova categorização do
refrão, repetido na oitava estrofe. A partir de então, tem-se a certeza de
que Deus é o sujeito que escolheu o sujeito homem e que o homem
escolheu ser fiel aos valores escolhidos a partir de seu relacionamento
com Deus.
Considerações Finais
Após delinear os conceitos e mostrar um exemplo de análise, é
preciso tecer algumas considerações – por enquanto, as finais – a respeito da leitura possível que foi apresentada.
Este artigo buscou apresentar uma aventura pelos sentidos do texto. Ambiciosamente, ousou desvendar a significação de um poema.
Porém, diante da complexidade da tarefa, contentou-se em apenas
construir uma leitura possível.
Sobre os conceitos, admite-se que poderiam ser alvos de elaboração mais apurada e delongada. Sobre a análise, reconhece-se que
alguns procedimentos foram explorados de modo breve. No entanto,
acredita-se que isso não desmereça esta empreitada nos percursos da
semiótica discursiva.
“Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de
Israel: EU SOU me enviou a vós outros.”
15
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Willie Macedo de Almeida [13-31]
Referências
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BÍBLIA de Estudo Almeida. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. (Tradução
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FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto,
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FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 11. ed. São Paulo: Contexto,
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes
temas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.
LARA, Glaucia Muniz Proença; FRICKMATTE, Ana Cristina. Ensaios de semiótica:
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I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 187-209.
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O nascimento de um herói brasileiro [33-41]
O nascimento de um herói brasileiro:
abordagem semiótica aplicada a uma capa da
revista Veja
The birth of brazilian hero: semiotic approach applied to
Veja a cover of the magazine
Luciana Garcia Gabas Coelho
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande – MS.
[email protected]
Maria Luceli Faria Batistote
Professora do Centro de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande – MS.
[email protected]
Resumo: A ideia da existência de um salvador para, se não todos, grande parte
dos problemas que enfrentamos cotidianamente, aguça o imaginário das
pessoas e nos faz acreditar na possibilidade da transformação de homens
em heróis. O personagem mítico, protagonista de obras ficcionais,
permeia a realidade humana e traz à tona anseios e desejos das pessoas
comuns. A figura do herói e sua representação, embasada no conceito
filosófico de mito, é tema deste artigo, que tem como corpus de análise a
capa da revista Veja, publicada em 10 de novembro de 2010, em que o
protagonista do filme Tropa de Elite, capitão Nascimento, é considerado
o primeiro super-herói brasileiro. A análise é elaborada com base na
semiótica discursiva, proposta por A. J. Greimas, e aborda os conceitos de
semissimbolismo, figurativização e intertextualidade, que serão aplicados
ao texto sincrético selecionado. A abordagem da teoria greimasiana
considera a significação dos elementos da linguagem verbal e não verbal,
utilizados para compor o texto visual.
Palavras-chave: Mito. Semiótica greimasiana. Herói.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
31
Luciana Garcia Gabas Coelho / Maria Luceli Faria Batistote [33-41]
Abstract: The idea of a savior for, if not all, most part of the problems we
face daily, makes people’s imagination stronger and makes us believe in
the possibility of the transformation of humans in heroes. The mythical
character, leading figure of fictional stories, permeates the human reality
and shows desires and wishes of ordinary people. The picture of the
hero and its representation, based on the philosophic concept of myth,
is the main idea of this article, which has as corpus of analysis the cover
of the Veja magazine, published in November 10th, 2010, wherein the
protagonist of the Tropa de Elite movie, Capitão Nascimento, is named as
the first Brazilian super-hero. The lection is constructed on the discursive
semiotics, proposed by A. J. Greimas, and approaches the semi symbolism
and intertextuality concepts, which will be applied to the syncretic wording
selected. The approach of the Greimas theory considers the significance
of the elements of verbal and non-verbal parlance, used to build the visual
text.
Keywords: Myth. Semiotic. Hero.
Introdução
A ideia da existência de um salvador para, se não todos, grande
parte dos problemas que enfrentamos cotidianamente, aguça o imaginário das pessoas e nos faz acreditar na possibilidade da transformação
de homens em heróis.
O personagem mítico dotado de poder, protagonista de obras ficcionais, permeia a realidade humana e traz à tona anseios e desejos
das pessoas comuns, ávidas pela solução de problemas que atingem a
coletividade; encontrando nos meios midiáticos - rádio, TV, jornal, revista, etc - os canais para a propagação de suas ações e a consolidação
da figura do herói.
A construção da imagem do herói é o tema deste artigo, desenvolvido a partir da análise de elementos que compõem a capa da revista
Veja, publicada em 10 de novembro de 2010, ilustrada pelo perso-
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
O nascimento de um herói brasileiro [33-41]
nagem capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite, considerado pela
publicação o primeiro super-herói brasileiro.
Elaborado com base no conceito filosófico de mito e na semiótica
discursiva, proposta por A. J. Greimas, o estudo aborda os conceitos de
semissimbolismo, figurativização e intertextualidade, que serão aplicados ao texto sincrético selecionado.
A abordagem da teoria greimasiana considera a significação dos
elementos da linguagem verbal e não verbal utilizados para compor o
texto visual.
A filosofia do Mito
No dicionário Michaelis (2007, p.16), o verbete mito ou mythos,
do grego, é, em uma das acepções, apresentado como uma fábula que
relata a história dos deuses, semideuses e heróis da Antiguidade pagã.
Considerando que a exposição simbólica de um fato nos remete ao conceito filosófico de mito, recorremos a Eliade (2207, p.7), ao afirmar que
o mito não trata apenas da origem do mundo, dos animais, das plantas
e do homem. Outrossim, de todos os acontecimentos primordiais, em
consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje: “um ser
mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para
viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras”. Para o autor,
a sua principal função é revelar os modelos, exemplos de todos os ritos
e atividades humanas como a alimentação, o casamento, o trabalho, a
educação, a arte ou a sabedoria.
Segundo Cassirer (1992, p.23), as representações míticas da humanidade são, para a consciência primitiva, a totalidade do ser. Nas
narrativas mitológicas, deuses e heróis personificam valores e qualidades, e recebem atribuições de ordem celeste e terrena.
Ao contrário de como era tratado no século XIX, quando era utilizado no sentido de fábula, invenção ou ficção, a partir do século XX,
os eruditos ocidentais passaram a aceitar esse termo como uma história
verdadeira, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar
e significativo. É, pois, nessa nova concepção de mito que se enquadra
o herói contemporâneo, tema deste artigo.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Luciana Garcia Gabas Coelho / Maria Luceli Faria Batistote [33-41]
Segundo a historiadora francesa Colete Annequin, “o mito é sempre uma reflexão profunda sobre a condição do homem, suas preocupações e agonias” (2007, p.4). É nesse sentido que personagens
ficcionais que apresentam semelhanças com pessoas comuns, mas se
destacam por alguma virtude distinta tornam-se heróis no cinema e nos
meios de comunicação.
Na mitologia clássica, os heróis são em geral homens, filhos da
união entre deuses e mortais, com qualidades sobre-humanas em graus
variáveis. São essas qualidades que os diferenciam das pessoas comuns,
mesmo que possuam algumas semelhanças. Conforme LEEMING
(2004, p. 145), “os heróis são a nossa persona no mundo dos mitos. Esclarecemos que Jung (1945, apud HALL, LINDZEY,CAMPBELL, 2000,
p.91) apresenta o termo persona como a máscara adotada pela pessoa
em resposta às demandas das convenções e das tradições sociais e às
suas próprias necessidades arquetípicas internas.
Ainda segundo Leeming (idem, ibidem), “os heróis constituem
expressões da nossa psique coletiva, primeiro como culturas, depois
como espécie”. Ressaltamos que a psique coletiva é o reservatório de
traços de memória latente herdados do nosso passado ancestral que
inclui os seres mais primitivos. É o resíduo psíquico do desenvolvimento evolutivo humano, que se acumula em consequência de repetidas
experiências ao longo de muitas gerações. Todos os seres humanos têm
mais ou menos o mesmo inconsciente coletivo.
Assim como os heróis da Antiguidade, descritos como corajosos
guerreiros que se destacavam em batalhas e sobreviviam a odisseias, os
heróis da atualidade possuem características que sobressaem à coletividade e, também, refletem um desejo latente dos indivíduos.
Estes indivíduos dotados de poderes surgem em diferentes contextos e devem ser observados, enquanto figura, de acordo com sua
significação. Sobre o signo, Cassirer (op. cit., p.22) entende que, em lugar de medir o conteúdo, o sentido e a verdade das formas intelectuais
por algo alheio, cumpre descobrir, nestas próprias formas, a medida e o
critério de sua verdade e significação intrínseca.
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
O nascimento de um herói brasileiro [33-41]
Nesta análise buscaremos mostrar como a imagem de um herói
brasileiro foi construída utilizando-se signos verbais e não verbais na
elaboração da mencionada capa de revista.
Semiótica aplicada
A capa da revista Veja selecionada para este estudo (anexo 1) é
um texto sincrético que comporta, no plano de expressão, linguagem
não-verbal e linguagem verbal. Em uma mesma página, imagem e texto
se sobrepõem e se complementam para dar forma ao conteúdo da
mensagem.
A relação existente entre categorias do plano de expressão e do
plano de conteúdo é chamada de semissimbólica. Segundo Pietroforte
(2010), essa relação é arbitrária porque é fixada em determinado contexto, mas é motivada pela ligação estabelecida entre os dois planos da
linguagem.
O efeito de sentido do texto sincrético é provocado pela intertextualidade, que, segundo Greimas, implica a existência de semióticas
(ou de discursos) autônomas no interior das quais se sucedem processos de construção, de reprodução ou de transformação de modelos,
mais ou menos implícitos (GREIMAS,COURTÉS, 2008, p.272).
Na análise proposta, tendo como corpus a capa selecionada da
revista, é possível identificar, no plano de expressão, elementos que
denotam a oposição semântica caos vs ordem e que também se configuram como valores no nível fundamental do percurso gerativo de
sentido, no plano de conteúdo.
No entanto, acreditamos que, por se tratar de texto visual (sobretudo icônico), o que atrai o leitor, inicialmente, são as figuras (os atores,
os elementos da cena) que dão materialidade aos temas subjacentes.
Segundo Greimas & Courtés (2008, p. 496), há dois níveis de figurativização: o primeiro é a figurativização propriamente dita, ou seja,
o nível da instalação das figuras semióticas; o segundo, chamado de
iconização, “visa revestir exaustivamente as figuras, de forma a produzir a ilusão referencial que as transformaria em imagens do mundo”.
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Luciana Garcia Gabas Coelho / Maria Luceli Faria Batistote [33-41]
Cabe, ainda, esclarecer, conforme Fiorin, (1989, p. 64) que temas são
elementos abstratos que justificam, ordenam, categorizam a realidade, enquanto figuras são elementos concretos que remetem ao mundo
natural (ou construído como tal). Todos os textos, no nível discursivo,
revestem os esquemas narrativos com temas, podendo concretizá-los
ainda mais por meio de figuras. Temos, portanto, textos predominantemente temáticos (textos científicos, por exemplo) e textos preponderantemente figurativos (textos literários, por exemplo), que criam, dessa
forma, um simulacro do mundo. Não podemos perder de vista, nesse
último caso, que para entender as figuras disseminadas ao longo do
texto, é preciso apreender os temas que as iluminam.
Nessa perspectiva, não vemos como analisar o plano de expressão
sem remetê-lo também ao nível discursivo ou, mais especificamente,
aos temas e figuras que se articulam no nível mais superficial do percurso gerativo de sentido. Lembramos que Fiorin (1999) toma as relações semissimbólicas como incidindo sobre todos os níveis do percurso
gerativo – e não apenas sobre o nível mais profundo –, posição com a
qual concordamos.
Em vista disso, examinaremos as imagens (textos não verbais/visuais) por meio de uma abordagem que explora, na relação conteúdo/
expressão, além do nível fundamental, o discursivo (com seus temas e
figuras). Tal proposta inclui ainda a apreensão das relações semissimbólicas que se instauram entre os dois planos, quando isso se mostrar
relevante para a construção de sentido do texto em análise.
No plano de expressão, apresenta-se um cenário caótico, em que
a figura do protagonista do filme Tropa de Elite, capitão Nascimento,
demonstra um olhar fixo e determinado. Na mão, segura um rádio
walkie talkie, indicando que uma das armas usadas por ele para acabar
com os bandidos e a corrupção é a comunicação. O objeto também
confere a conotação de personagem humanizado. O sentido da
imagem é complementado pelo primeiro texto que compõem o título:
Ele é incorruptível, implacável com bandidos e espanca corruptos
degenerados.
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O nascimento de um herói brasileiro [33-41]
A farda faz referência ao primeiro filme, no qual o personagem
era capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope). No
segundo filme, o capitão Nascimento é alçado à esfera do poder executivo como secretário de Segurança Pública, posto em que enfrenta a
corrupção de políticos.
O uniforme, além de trazer informações da primeira filmografia,
na qual o herói começou a ser construído, também caracteriza toda
uma classe de profissionais que se dedicam a combater o crime. Contudo, mesmo que este seja o dever dos policiais, nem todos são exemplos
de caráter e conduta. Entre eles, o capitão Nascimento se sobressai por
suas virtudes (poderes) e é transformado em herói.
É no segundo filme, quando além de combater bandidos, ele também precisa enfrentar políticos corruptos, que o personagem reforça
a figura do herói. A escolha do ator Wagner Moura, típico brasileiro
comum, com olhos e cabelos castanhos, também contribui para a identificação do público com o personagem.
A composição da imagem, no plano de expressão, com o título - O
primeiro super-herói brasileiro - destacado pela cor alaranjada e pelo
tamanho da fonte, complementa o efeito de sentido produzido. As virtudes determinantes para a construção da figura do herói são reforçadas no
texto verbal, no enunciado apresentado logo acima do título, “Ele é incorruptível, implacável com bandidos e espanca políticos degenerados”.
No rodapé da página, o enunciatário é questionado sobre a mensagem que os 10,8 milhões de brasileiros, que viram e aplaudiram o
filme do diretor José Padilha, querem passar à esfera política do país
sobre a intolerância à corrupção na política e aos bandidos que geram
insegurança à população.
Ainda no plano de expressão, a categoria semântica mínima do plano de conteúdo, segurança vs medo, é explicitada com as imagens da
farda militar e do cenário caótico que compõem a totalidade da capa. O
nome do personagem- Nascimento- gravado em tom claro no uniforme
contrasta com a cor escura do tecido e sugere a transformação que deve
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Luciana Garcia Gabas Coelho / Maria Luceli Faria Batistote [33-41]
acontecer após a atuação do herói. A palavra também sugere uma complementação para o título da capa, “o nascimento” do primeiro super-herói brasileiro.
Para um efeito de finalização
Com a análise semiótica fundamentada nos conceitos de semissimbolismo, figurativização e intertextualidade realizada neste estudo,
tendo como corpus a capa da revista Veja com o personagem do filme
Tropa de Elite associado à figura do herói, no gênero capa de revista,
percebe-se que as informações no plano de expressão e plano de conteúdo se complementam.
A composição de elementos da linguagem verbal e não-verbal
construiu um texto visual que dá vida ao personagem do filme. Portador de virtudes consideradas incomuns dentro da corporação policial e
no meio político, o capitão Nascimento é alçado à categoria de herói. A
imagem construída se apóia no público atraído para as salas de cinema
que viram o filme, cerca de 10,8 milhões de pessoas.
Ávido pela moralização da classe política, por maior eficiência da
polícia e pela diminuição da criminalidade nos grandes centros do país,
o público identificou no personagem as características necessárias para
a dissolução dos conflitos advindos dessa problemática.
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CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. Perspectiva: São Paulo, 1992.
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FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Ática, 1989.
______. Três questões sobre a relação entre expressão e conteúdo. Itinerários. Número
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GREIMAS, A.J. e COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.
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tradução Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes médicas Sul, 2000.
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VEJA, Revista. Edição 2124 de 05/08/2009. Disponível em http://veja.abril.com.br/
acervodigital. Acesso em 24/03/2011.
Anexo 1
Edição 2190, publicada em 10 de novembro de 2010.
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Gustavo Rosa e a figura humana feminina [43-58]
Gustavo Rosa e a figura humana feminina: da
Lavadeira à Mulher Pêra
Gustavo Rosa and the woman figure: from the Washerwoman to
the Pear woman
Janice de Campos Ferra
Mestre pelo Programa de Pó-Graduação em Estudos de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande, MS.
[email protected]
Resumo: Este artigo é uma síntese da dissertação de Mestrado em Estudos de
Linguagens, que teve como objeto de estudo a representação da figura
humana feminina na obra de Gustavo Rosa. Essa dissertação tomou como
corpus de análise um grupo de 20 obras desse artista, datadas do período
de 1965 a 2009, todas pinturas. A Semiótica Geral de Charles Sanders
Peirce (1839-1914), especialmente a sua classificação dos signos, os estudos sobre semiótica da imagem e sua aplicação foram adotados como
referencial metodológico. Seguindo as orientações dessa semiótica para
a aplicação, a pesquisa recorreu a textos específicos de arte e a outros
sobre a obra de Gustavo Rosa. O estudo está apoiado, portanto, também
em uma revisão de bibliografia da representação da figura humana feminina na história das artes plásticas e em textos de críticos de arte que
escreveram sobre a obra de Gustavo Rosa. A partir da análise das obras
desse artista selecionadas para pesquisa, concluiu-se sobre relações entre
a obra dele e as de mestres do passado, bem como sobre regularidades
internas à sua obra, presentes na representação da figura feminina, no
modo de compor, e no uso das cores, que revelam um modo próprio do
artista pintar e, mais especificamente, de representar a mulher.
Palavras-chave: Semiótica peirciana. Semiótica da imagem. Arte brasileira.
Pintura figurativa.
Abstract: This article is to sum sth up dissertation of Master’s Languages Studies,
has as a aim of study the representation of the female human figure on the
Gustavo Rosa art work. This dissertation taked as body of analysis a group
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Janice de Campos Ferra [43-58]
of 20 art work of this artist, dated from the period of 1965 to 2009, all
paintings. The theoretical and methodological reference is the General
Semiotic of Charles Sanders Peirce (1839-1914), specially its classification
of the signs, the studies about semiotic of the image and its application.
Following the orientations of this semiotic to the application, the research
resorted to specific texts of art and of the Gustavo Rosa art work. The
study is based also on a review of bibliography of the representation of
the female human figure in the history of plastic arts and in texts of art
critics who wrote about Gustavo Rosa art work. Starting from de analysis
of the works of this artist selected to this research, one concluded about
the relations between his art work and the master of the past, as well as
the internal regularities to his art work, they are present in the representation of the female figure, on the mode to compose and in the use of the
colors, it reveals a own way of the artist to paint and, more specifically, to
represent the woman.
Keywords: Peirciana semiotic. Semiotic of the image. Brazilian art. Figurative
painting.
Introdução
É impossível negar que as imagens sempre exerceram uma forte
influência na imaginação de seus observadores, desempenhando assim
um papel importante no processo de significação do mundo. Na história desses processos tem sido notado que parte dos textos constituídos
de imagens são compreendidos quase que de maneira universal; porém, por muitas vezes, o significado é diferente para cada espectador,
pois vai depender de fatores diversos, entre eles do conhecimento dele
sobre a obra e a história da arte, o momento histórico no qual foi criada, entre outros. O fenômeno da significação tem sido estudado pelas
correntes semióticas, que foram desenvolvidas com mais ênfase a partir
do século XX. Dentre elas está a semiótica de Charles S. Peirce (18391914) e, associados a essa, há estudos específicos sobre semiótica da
imagem. Este artigo se depara com os problemas da significação pelo
viés da semiótica da imagem de extração peirciana.
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Gustavo Rosa e a figura humana feminina [43-58]
Para o desenvolvimento deste estudo buscaram-se na história da
arte subsídios para analisar o signo “figura humana feminina” presente
na obra de Gustavo Rosa. Bucou-se o apoio de uma revisão de bibliografia, enquanto se adentrava pelo mundo dos signos, por meio de
textos sobre a Teoria geral dos signos de Charles Sanders Peirce e sobre
uma semiótica da imagem nela embasada. Assim, a investigação dos
signos do corpus selecionado foi mesclando conhecimentos de história,
crítica de arte e semiótica da imagem.
O estudo da figura feminina na história da arte pode ser considerado como o interesse mais geral da pesquisa desenvolvida; a esse
somou-se, no contato com os estudos de linguagem, o interesse pela
semiótica da imagem. Associado a isso tudo surgiu, em particular, uma
curiosidade pelas pinturas de Gustavo Rosa, que desencadeou e uma
escolha por estudar a obra desse artista. As razões da escolha são: o fato
de ser um artista contemporâneo, brasileiro, cujas obras são figurativas;
também o modo como as imagens da figura feminina (rechonchudas)
fogem de um padrão de mulher presente na sociedade contemporânea
- aquele que, com o apoio da mídia, valoriza a figura feminina escultural, sem se importar que haja cada vez mais obesos na sociedade. Também porque, ao representar a figura humana, Gustavo Rosa desenvolve
traços únicos, com uma identidade pessoal; além disso, por suas obras
possuírem uma característica bem-humorada, utilizando a transformação ou deformação das figuras. Algumas vezes esses aspectos remetem
à caricatura e à charge, mas sempre parecem fazê-lo com o desejo de
reverenciar e acentuar a espontaneidade da mulher. Por fim, as pinturas
de Gustavo Rosa, muitas vezes, levam a associações com pinturas de
velhos mestres, muitos deles modernistas.
A história mostra que a arte acompanha o homem nas investigações mais simples; em cada época o homem exerce sua liberdade para
criar, por meio da exploração de sua expressão e do seu potencial criativo, podendo, a partir daí, gerar convenções culturais. Acompanhando
a trajetória das significações associadas à figura feminina na história da
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arte, nota-se que estão vinculadas às culturas às quais pertencem, o
que permite identificar, por meio das obras, não apenas um período
histórico e uma posição geográfica, mas uma regra representativa e/
ou expressiva. Algo dessa natureza, também, é buscado nas obras de
Gustavo Rosa selecionadas para este estudo.
O conhecimento das sociedades e das suas convenções culturais
é considerado necessário para o entendimento das imagens do ponto
de vista das semióticas, especialmente no caso da presença de símbolos
nessas imagens, já que a arbitrariedade dos símbolos culturais precisa
ser conhecida para ser interpretada. Aqui tais conhecimentos são obtidos no campo específico da história da arte, incluindo a brasileira. Com
base nesses conhecimentos é que se propõe investigar e compreender
a representação da figura feminina na pintura de Gustavo Rosa.
Na produção de Gustavo Rosa, as pinturas da figura feminina
são elementos fundamentais, pois em cada época o artista investe
diferentemente sobre essas figuras, dialogando com o imaginário social de cada um de nós. Gustavo Rosa busca, enquanto pinta, a sua
própria identidade como pintor. Sua imaginação individual e suas fantasias, seus sentimentos e conhecimentos sobre pintura e o mundo
encontram na linguagem pictórica um modo de expressão. A imaginação criadora vai produzindo enquanto o artista interage com certas matérias, técnicas e realidades, explorando sua capacidade de se
relacionar com elas.
Observar e analisar as obras de Gustavo Rosa se mostrou um trabalho constante de questionamento: Como o signo está caracterizado?
A que o signo se refere? O que ele representa? O que as obras de
Gustavo Rosa, selecionadas para este estudo e que têm como elemento constante e central a figura humana feminina, têm a dizer sobre a
mulher, ou sobre a mulher brasileira? A esta última pergunta sugeriu-se,
de início, uma resposta provisória, uma hipótese: a de que essas obras
têm algo em comum a dizer sobre a mulher e, em especial, talvez,
a brasileira. Com esta pesquisa buscaram-se possíveis respostas, bem
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como subsídios para justificá-las; e após analisar as obras escolhidas foi
possível responder a alguns desses questionamentos.
O texto da dissertação que deu origem a este artigo foi organizado
em três capítulos: 1. Conceitos sobre Semiótica e Pintura Figurativa, 2.
Figura Humana Feminina no Percurso da História das Artes Plásticas:
um recorte inspirado em Gustavo Rosa e 3. Pintura da Figura Humana
Feminina na obra de Gustavo Rosa. Para analisar as pinturas, recorre-se tanto ao referencial da semiótica perciana e da história da arte,
especialmente a brasileira contemporânea, entre os anos de 1965 e
2009, quanto a textos de Paulo Klein e de Antonio Carlos Gouveia
Júnior e Cecília Gouveia, sobre o artista. Nestes textos foram coletados os dados iniciais da pesquisa, como as imagens das vinte obras
do artista Gustavo Rosa, selecionadas para trabalhar1. A seleção dessas obras levou em consideração as diferentes fases de representação
da figura feminina ao longo da carreira do artista. Tais obras possibilitaram as observações que são apresentadas ao longo deste texto,
quanto a algumas características da obra desse artista que foi possível
compreender, especialmente, as homenagens que o artista faz aos
velhos mestres por meio da sua pintura e o modo como a figura feminina na sua obra dialoga com a sociedade contemporânea e a mulher
brasileira.
(1) A lavadeira, 1965. Guache sobre cartão, 30 x 20 cm, p. 42; (2) Mulher, 1976. Óleo
sobre tela, 65 x 54 cm, p.55; Sorvete, 1976. Óleo sobre tela, 65 x 54 cm, p.56; (3) I
love Rio, 1988. Óleo sobre tela, 120 x 110 cm, p. 86; (4) Abadogu, 1995. Óleo sobre
tela, 87 x 73 cm, p. 105; (5) Homenagem a Botero, 1998. Óleo sobre tela, 120 x 110
cm, p. 111; (6) Hot dog, 2000. Óleo sobre tela, 110 x 150 cm, p. 121; (7) Pulando a
cerca, 2001. Óleo sobre tela, 110 x 120 cm, p.127; (8) Pic-nic, 2002. Óleo sobre tela,
100 x 80 cm, p. 135; (9) Dieta saúde, 2002. Óleo sobre tela, 110 x 120 cm, p. 133;
(10) Abadogu, 2003. Óleo sobre tela, 65 x 54 cm, p. 145; (11) Banhista, 2004. Óleo
sobre tela, 54 x 65 cm, p.176; (12) Caça, 2004. Óleo sobre tela, 110 x 120 cm, p. 173;
(13) Saudades, 2004, Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, p. 178; (14) Cooper, 2004. Óleo
sobre tela, 120 x 80 cm, p. 182; (15) Banhista, 2005. Óleo sobre tela, 40 x 50 cm, p.
210, (16) Nu, 2005. Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, p.218; (17) Zona, 2005. Óleo sobre
tela, 54 x 65 cm, p. 205; (18) Bailarina, 2006. Óleo sobre tela, 100 x 80 cm, p. 237;
(19) Samba é no morro, 2007. Óleo sobre tela, 50 x 40 cm, p. 244; e (20) Mulher pera,
2009. Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, foto tirada no Estúdio do artista.
1
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Neste texto, a seguir, é feita uma síntese de algumas das idéias
desenvolvidas ao longo da dissertação. Para isso, citam-se algumas das
obras estudadas: a Banhista (Figura 1), “I love Rio” (Figura 2), Figura –
Ismael Nery (Figura 3), A lavadeira (Figura 4) e a Mulher pera (Figura 5).
1. A representação da figura humana na história e a obra de
Gustavo Rosa
A representação da figura humana sempre foi a maior preocupação da arte ocidental desde a Antiguidade até o início do século XX
(LANEYRIE-DAGEN, 2004, p. 9); além disso, foi retomada na segunda
metade desse século, após a arte ter experimentado as composições
abstratas. Para Argan (1988, p.109),
A ideia de representação implicava a certeza de que as próprias formas da
natureza fossem representativas de significados e conteúdos universais: sendo
a própria natureza uma representação em formas finitas e visíveis de uma
realidade infinita e transcendente, a arte não podia ser senão a representação
de uma representação (donde o princípio clássico da mimesis).
De um lado, as pesquisas nesse campo levam a um maior conhecimento da anatomia humana, o que ajuda os artistas na construção
de uma imagem verdadeira; de outro, porém, o apego mais às regras
do que às coisas tal como se apresentam, reforça a idealização. Em
termos da semiótica peirciana, o primeiro procedimento reforça os
ícones e os índices e o segundo, os símbolos, que são signos convencionais. Daí que as imagens mais fortemente idealizadas da história da
arte não são predominantemente icônicas nem predominantemente
indiciais, mas simbólicas.
Verificou-se que a figura humana feminina2 no percurso da História das Artes Plásticas é redescoberta em cada criação, desde épocas
passadas até a contemporânea. Desde a Pré-História, com a “Vênus de
Willendorf”, passando pelos períodos subsequentes e até a Modernidade. Para Laneyrie-Dagen (in LICHTENSTEIN, 2004, p. 13), no final
do século XIX e começo do século XX, a forma da figura humana na
Durante todo o texto daqui em diante, ao se referir à figura humana feminina, será
usada somente figura feminina.
2
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pintura começa a se modificar, reinventa-se um novo corpo e os artistas
abrem mão das anatomias ideais, ou seja, tradicionais.
Com a mudança do século (XIX para X), as transformações eram
evidentes em todos os aspectos da cultura. A arte se multiplica em
várias vertentes (Expressionismo, Cubismo, Futurismo), analisa Zanini
(1983, p. 508), as quais refletem a própria indecisão do homem diante das possibilidades difundidas por códigos visuais que projetavam
um universo ajustado a um complexo movimento da realidade contemporânea.
Ao adentrar na Arte Contemporânea Brasileira verifica-se, também, um aumento da variedade de experimentações com a pintura. A
pintura de Gustavo Rosa Insere-se em meio a essa produção. Na pintura contemporânea desse artista, como em Banhista (Figura 1), a figura
feminina adota (ou retoma) as formas circulares e arredondadas presentes em boa parte das representações de figuras femininas ao longo
da história, embora com um desenho notadamente influenciado pelo
modernismo, como denuncia a fragmentação do corpo; fragmentação
esta que remete àquela presente em muitas obras de Picasso.
Figura 1 - Banhista, 2005. Gustavo Rosa. Óleo sobre tela, 40 x 50 cm.
Fonte: Klein (2007, p. 210).
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Nessas obras, feminilidade, sensualidade e alegria caracterizam a mulher. Elas são representadas, na maioria das vezes, em
ambientes ao ar livre e no espaço urbano: praças, praias e parques,
como no caso da obra “I love Rio”, de Gustavo Rosa, representada
na Figura 2.
Figura 2 - I love Rio, 1988. Gustavo Rosa.
Óleo sobre tela, 1,20 x 1,10 cm.
Fonte: Klein (2007, p.86).
Embora contemporânea, a obra de Gustavo Rosa traz sempre elementos que remetem à história da pintura universal e, também, brasileira. A obra “I love Rio” (Figura 2) evidencia semelhanças para com o
trabalho de Ismael Nery, na obra citada na Figura 3.
Ismael Nery (1900-1934), se iniciou na pintura no Rio de Janeiro, no
período de 1921-1922. Na obra Figura (Figura 2), sobressai a presença da
imaginação criativa, onde realidade e sonho se misturam em uma temática
do inconsciente, dos sonhos, dos delírios, como na poética surrealista, o
que ocorre a partir de 1927, ano em que viaja pela segunda vez à Europa.
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Figura 3 – Figura. c. 1927- 1928. Ismael Nery.
Óleo sobre tela, 1,05X 69,2cm.
Fonte: Garcez e Oliveira (2003, p. 117)
A figura feminina é o elemento de ligação entre Gustavo Rosa
nessa obra e Ismael Nery. Destacam-se o formato oval da cabeça e o
cabelo esvoaçante e ondulado, a forma volumosa das coxas, grossas e
rechonchudas, os olhos de duas cores: em Nery em preto e branco, em
Rosa em vermelho e preto.
Nas obras de Gustavo Rosa observadas no estudo, a figura feminina está sempre centralizada e em posição que permite observar a linha
do horizonte, sugerida pelos planos das composições. Além disso, suas
figuras femininas muitas vezes remetem a algum artista do passado,
quer pelo tema, pela forma, por sua composição ou pelos significados
que sugerem. Há, contudo, semelhanças maiores com obras do movimento modernista; são responsáveis por isso, entre outros, as cores
vibrantes, a planificação, o desenho bem-definido.
Gustavo Rosa nasceu em São Paulo no dia 20 de dezembro de
1946 e costuma dizer que já nasceu com um lápis nas mãos para desenhar. Seu pai foi Isaias Rosa, um advogado; sua mãe, Maria Cecília
Machado, de família tradicional paulista, dedicada aos filhos e ao lar
(KLEIN, 2007, p. 289).
Buscou orientações e dicas sobre a profissão escolhida com os artistas Alfredo Volpi, Aldo Bonadei e Carlos Scliar. Klein (2007) relata
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que, nos primeiros encontros com Gustavo Rosa para o desenvolvimento do livro que mostra sua trajetória artística de mais de 40 anos, o
pintor fez questão de frisar:
Nunca pertenci a nenhum grupo de artistas, a nenhuma turma ou
movimento das artes. Sempre atuei solitariamente, apesar de buscar - no
início da minha carreira - orientação junto aos artistas que admirava,
como Alfredo Volpi, Aldo Bonadei e Carlos Scliar (KLEIN, 2007, p. 11).
Independente da caracterização de Gustavo Rosa como artista
plástico, é notável que sua obra mantenha uma ênfase no desenho e
uma plasticidade que remetem sempre ao universo das artes gráficas.
De fato, paralelamente à pintura, que é a sua paixão, e para além dela,
esse artista trabalha sempre com o desenho. Segundo Klein (2007, p.
251), “O desenho é à base da Pintura e, consequentemente, a base da
obra de Gustavo Rosa. Por trás de cada ideia, cada objeto, cada projeto
do artista, está o Desenho”.
Para Gustavo Rosa, o papel da arte na sociedade contemporânea
deve ser múltiplo e versátil, como disse em entrevista em seu Ateliê,
localizado na rua Groenlândia, 310, no Itaim Bibi, São Paulo, no dia
6 de junho de 2009 (FERRA, 2009, p. 111). Segundo Klein (2007, p.
271), o artista que sabe lidar com isso concilia prestígio e lucratividade,
conquistas recorrentes no caso de Gustavo Rosa.
Na análise das obras do artista observaram-se, na pintura em si
(características plásticas, relação figura fundo, composição e outras) e
nos temas, homenagens e relações diversas com a sociedade contemporânea, a cultura e a mulher brasileiras, bem como com obras de artistas do passado, que ficaram registradas nas histórias da arte do Brasil.
No período de 1960, quando morava no Morumbi, na cidade de
São Paulo, bairro próximo a uma favela, mulheres e crianças, moradoras
da favela, iam à casa da família de Gustavo Rosa apanhar baldes de água,
autorizadas pela mãe do artista (KLEIN, 2007, p. 20). Nesse período, ele
começou a retratá-las, já com traços que se tornaram característicos na
sua produção posterior, como se pode ver na obra A lavadeira.
A obra A lavadeira (Figura 4) mostra uma das primeiras pinturas
da figura feminina de Gustavo Rosa, já em uma forma estilizada.
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Gustavo Rosa e a figura humana feminina [43-58]
Na pintura, o artista não representa um ambiente específico, seja
um espaço externo ou interno. Só uma figura feminina faz parte da
composição: uma mulher, com um dos braços e a mão no rosto, como
se ela estivesse limpando o suor do rosto ou simplesmente cansada.
Figura 4 - A lavadeira, 1965. Gustavo Rosa. Guache sobre cartão 30x20 cm.
Fonte: Klein (2007, p. 42).
Seu vestido verde-escuro recebe tons de verde-claro, que ajudam
a compor uma estampa, que é tanto um modo de ser mais naturalista
quanto de fazer uso de um modo mais expressivo de usar o pincel,
ambas as características que não são da obra do artista posteriormente.
Já o contraste de cor, obtido com o balde vermelho e o chinelo preto, é
semelhante a outros contrastes verificados em obras posteriores.
Os seus braços e pernas realçam, também, a sensação de volume.
Em um ambiente aparentemente tranquilo e silencioso, a mulher se
mostra estática e sem a definição de uma direção específica do olhar.
As mulheres representadas em obras posteriores, a postura é mais dinâmica apesar da forma rechonchuda; e o olhar é, às vezes, um elemento
importante na relação da obra com o observador.
É a partir dos anos de 2000, conforme Klein (2007), que as personagens rechonchudas, gordinhas simpáticas, jovens ou não tão jovens, bailarinas, esportistas, nadadoras, voltam com muita força, sempre mostrando uma felicidade e uma alegria de viver, parecendo sair
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Janice de Campos Ferra [43-58]
da tela para caminhar na estrada da vida. São essas figuras femininas
que possuem uma verdade carregada de histórias e de subjetividade. É
uma figura feminina inventada, a criação de um signo, que se impõe e
fascina na sua apreensão da expressividade humana e, também, pelo
grafismo e pelo seu colorido.
Toda obra é expressão de seu tempo e do espírito criativo que
a produziu. Também, toda a obra tem uma natureza física que, por
sua vez, pertence a um contexto histórico-geográfico, que a torna signo deste. Apesar disso, toda obra possui qualidades que transpõem as
intenções do criador, do contexto que a produziu e dos espectadores. Portanto, o significado da obra (da imagem que ela carrega), assim
como das interpretações particulares, está além das intenções do artista. Por isso, a obra, mesmo a figurativa, onde aparentemente o objeto
é claro, é infinita e nunca passível de ser compreendida por inteiro; e
o espectador nunca deixa de acrescentar, transformar e reformular os
significados dessas imagens.
A obra A mulher pera (Figura 5), de Gustavo Rosa, é último quadro
produzido até a data em que esta autora esteve em visita de estudos
no Estúdio de Gustavo Rosa, para entrevistá-lo e para ver as obras de
fato. Estar diante delas, na sua presença física, foi importante para evitar
equívocos resultantes de lidar apenas com representações imagéticas
das obras, dado que estas nem sempre podem ser fiéis na cor, na textura e em outros detalhes que definem os aspectos qualitativos da obra.
Figura 5 - Mulher pera, 2009. Gustavo Rosa.
Óleo sobre tela, 54 x 65 cm.
Fonte: Foto da autora, tirada no Ateliê do artista.
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Gustavo Rosa e a figura humana feminina [43-58]
No caso dessa obra, o artista estabelece relação com as mulheres
exaltadas pelas mídias. Gustavo Rosa diz, em conversa com a autora,
antes de gravar a entrevista realizada durante a pesquisa, que há a mulher pêra “como há a mulher melancia, mulher moranguinho, que são
aclamadas pela mídia, jornais, revistas e os meios de produção eletrônicos na TV”. O corpo da figura feminina nessa obra tem o formato de
uma pêra e, para reforçar essa ideia, ao lado desse mesmo corpo o artista pintou uma pera (fruta). Aqui, nota-se que Gustavo Rosa mantém o
traço firme, a composição clara e a adoção de temas bem-humorados,
que são característicos da obra. A referência à relação entre a figura
(mulher) da obra e a mídia contemporânea bem popular revela que
esse artista não tem preconceito com temas.
Cabe destacar, diante dessa obra e comparando-a com as demais
analisadas na dissertação, que, desde a obra A lavadeira (primeira obra
desta análise) até a obra Mulher pêra (a última), os aspectos qualitativos
e compositivos da sua pintura mudaram bastante. Com essas mudanças, as obras deixam de lado um modo de representar mais naturalista,
para adotar um outro, mais abstrato e incorporando uma significação
mais simbólica do que referencial.
A composição de uma figura sobre um fundo, que é regularmente
um espaço aberto, já aparecia em A lavadeira e é mantida nas demais
obras. A representação desse espaço, por meio de planos coloridos,
que sugerem certa profundidade de campo sem, contudo, fazer uso
de perspectiva, é algo que surge posteriormente e vai sendo mantido.
O uso de duas ou mais cores primárias na mesma obra, que podem
estar mesclados com outros tons, sempre muito claros e iluminados,
também vai se firmando. O uso de texturas visuais muito suaves, em
pinceladas que denunciam uma expressividade artística, apesar de os
planos de cor parecerem quase “chapados”, também é algo que vai
sendo aprimorado.
A representação da figura feminina, ora com linhas curvas, ora
com linhas retas, mas sempre construindo formas que sugerem grande
volume, é algo que está colocado potencialmente em A lavadeira, mas
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vai sendo definido e mantido posteriormente. A forma da figura na
obra Mulher pêra, porém, diferentemente das outras, a torna quase um
objeto: ela é meio mulher meio objeto, e isso é algo que é importante
marcar. Essa dualidade mulher-objeto, notada aqui, embora torne essa
mulher diferente das demais, de outro lado a torna, também, muito
semelhante, porque trabalha com o sentido da dualidade já detectado
antes. Essa dualidade é, também em Mulher pêra, marcada nos olhos e
nos cabelos (de duas cores).
Tal é a insistência do artista em marcar essa dualidade nas obras
que talvez seja esse o significado que mais importa, associado à sua reelaboração da figura feminina para representar essa mulher que, como
visto, remete a uma mulher brasileira comum. Em todas as obras, ela
não é uma mulher em específico, mas sempre “a mulher brasileira comum” - ora dona de casa, ora se divertindo, ora prostituta, ora preocupada com a forma, ora a mulher gostosa e aclamada pela mídia - no
sentido genérico do termo.
Daí o objeto do signo deixar de ser apenas algo particular, ligado
à experiência subjetiva do artista – uma mulher que foi pegar água na
casa da mãe -, para ser um geral, um objeto real – que contem algo que
é comum a toda uma classe. Com isso, o signo passa de icônico-indicial
a simbólico. E pertence à natureza simbólica dessa mulher representada por Gustavo Rosa uma dualidade recorrente, registrada iconicamente nos membros de duas cores, no cabelo de duas cores e na marca
“olhos de duas cores”.
Considerações finais
Ao longo da análise, as figuras femininas de Gustavo Rosa foram se
transformando, nos diferentes períodos de sua pintura. No início, a figura
feminina era representada de uma maneira mais naturalista do que nos
desenvolvimentos posteriores, porém, já apresentava características de
uma estilização, presente na maioria das obras. Enquanto essa estilização
vai se tornando característica, a obra de Gustavo passa por um desenho
que remete ao cubismo até chegar às formas arredondadas, caracterizando uma mulher rechonchuda. Essas formas são parte do seu modo
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próprio de pintar hoje e foram consideradas relevantes para caracterizar
a obra desse artista neste estudo.
Outro elemento pictórico marcante na obra de Gustavo Rosa são
as cores que ele deu às mulheres em suas pinturas e, também, aos objetos e outros elementos da natureza presentes no espaço da obra, além
do próprio espaço. O artista experimentou diferentes cores, fazendo
clara opção pelas básicas (verdes, azuis, amarelos, vermelhos), além do
pink (um tom muito forte de rosa), que se tornaram vivas e luminosas,
pela opção de tons claros, abertos.
Há também que destacar os hábitos dessa figura feminina ou dessa
mulher que, segundo as palavras do próprio Gustavo Rosa, em entrevista (FERRA, 2009), não é uma mulher ou um conjunto de mulheres, mas
a “mulher de uma forma geral”. Essa mulher tem hábitos alimentares
saudáveis e demonstra que conhece como fazer dieta (frutas e revista
na mão da figura feminina na obra Dieta saúde). Ela está, nos locais
em que aparece, predominantemente ao ar livre e fazendo alguma atividade: lendo, andando de bicicleta, pulando (caçando borboletas?),
pulando o muro (!).
Nas obras de Gustavo Rosa que foram selecionadas, como se procurou mostrar especialmente no Capítulo 3 da dissertação, ora a figura
feminina é vista como uma mulher comum (Lavadeira, Pic-nic), ora
como uma prostituta (Zona) ou quase como um objeto (Mulher pera);
ora, ainda, ela se presta a uma homenagem (Homenagem a Botero).
Isso poderia ser lido como mera diversidade, se não fossem os signos de
dualidade, que parecem marcar uma mulher que é, ao mesmo tempo,
uma coisa e seu oposto, ou diferente; é o caso dos olhos e dos membros de duas cores, da dualidade entre o tema e a obra (Samba, Nu).
Esses signos de uma dualidade que, conforme registrado anteriormente, parece ser o significado que mais importa, se resolve em um signo
de síntese: tudo isso é parte de um todo, em todas as obras essa mulher
parece ser “a mulher brasileira comum”, uma mulher complexa, atípica.
Ao adentrar nos conceitos teóricos e metodológicos para a aplicação de uma perspectiva semiótica peirciana, tomou-se contato com
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alguns conceitos que orientaram a leitura das obras e que permitiram
entender a relevância no desenvolvimento de habilidades cognitivas
capazes de promover a interação do leitor com os signos e seus processos de significação. Não se tratou de seguir sistematicamente a metodologia organizada por Santaella (2008b), mas partiu-se desse modelo
para proceder às análises, de modo a perceber as relações internas,
bem como aquelas que existem entre as pinturas de Gustavo Rosa e as
dos velhos mestres do passado.
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. Arte e Critica d’Arte. Tradução Helena Gubernates.1ed. Lisboa:
Editorial Estampa, 1988.
FERRA, Janice de Campos. Gustavo Rosa: um pintor que brinca com as formas
arredondadas e as cores vibrantes (Entrevista). Papéis. Revista do Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagens, Campo Grande, MS: Editora da UFMS, v. 13, n.
26, 2009, p. 107-114.
KLEIN, Paulo (Curadoria e textos). Gustavo Rosa. Editor Antonio Carlos Gouveia e
Cláudio Yida; arte Daniel Pereira dos Santos; Tradução Romeo Costa e Breno Arantes.
São Paulo: Décor, 2007.
LANEYRIE-DAGEN, Nadeije. A figura humana. In: LICHTENSTEIN, Jaqueline (Org.). A
pintura: a figura humana. Tradução Magnólia Costa (Coord.). São Paulo: Ed. 34, 2004.
p. 9–13. v. 6.
LICHTENSTEIN, Jaqueline (Org.). A pintura: a figura humana. Tradução Magnólia
Costa (Coord.). São Paulo: Ed. 34, 2004.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução Teixeira Coelho. 4. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo, SP: Pioneira Thonson Learning,
2008b.
ZANINI, Walter (org.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther
Salles, 1983. 2 v.
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Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo [59-79]
Simulacros da juventude em letras de música
de Renato Russo
Youth’s images in Renato Russo’s song lyrics
Geraldo Vicente Martins
Professor do Centro de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande – MS.
[email protected]
Resumo: À luz dos fundamentos teóricos da semiótica discursiva, analisam-se
três letras de música do cantor e compositor Renato Russo, buscando
verificar, nelas, a presença de simulacros do enunciador e do enunciatário e sua importância para a constituição das concepções a respeito da
juventude na obra desse artista.
Palavras-chave: Sintaxe discursiva. Debreagem. Simulacro.
Abstract: By the light of the theoretical foundations of discursive semiotic, we
examine three song lyrics of singer-and songwriter Renato Russo, seeking to verify the presence of images of enunciating and enunciatee and
its importance for the formation of conceptions of youth in work of this
artist.
Keywords: Discursive syntax. Debreage. Image.
Introdução
Neste texto, tratamos, por meio de um estudo comparativo, dos
simulacros do enunciador e do enunciatário presentes em letras de músicas do cantor e compositor Renato Russo, vocalista da banda Legião
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Geraldo Vicente Martins [59-79]
Urbana. Tal abordagem procura verificar a importância desses simulacros na constituição das concepções de juventude do artista.
Para o trabalho analítico, foram selecionadas três letras escritas por
Russo em diferentes momentos: A dança (1985), Há tempos (1989) e
Aloha (1996). A escolha de composições com um certo intervalo de
tempo entre cada uma delas é proposital, pois, ao adotar tal procedimento, espera-se poder acompanhar um trajeto do letrista em seu
modo de ver e conceber os jovens em épocas diversas e surpreender,
nesses distintos estágios do compositor, semelhanças e diferenças que
possam servir como elementos para a possível determinação e descrição de uma visão específica da juventude.
Para um maior aproveitamento do corpus, e porque se efetua a
análise com base na semiótica discursiva, optamos, após uma leitura
prévia, por trabalhar, sobretudo, com a descrição do uso do mecanismo
de debreagem, característico da sintaxe discursiva, verificando quais os
principais efeitos de sentido se encontram nos textos, não dispensando,
porém, a utilização de outros importantes elementos da teoria.
Antes de passarmos à análise, porém, tornam-se necessárias duas
rápidas digressões justificativas: uma irá contextualizar o autor estudado, procurando ilustrar a razão da escolha de suas composições como
corpus de trabalho, e a outra irá nos levar em breve passeio pelos conceitos teóricos utilizados na análise.
Um compositor do mundo jovem
Nenhuma escolha de tema para trabalho é casual ou aleatória;
ela envolve sempre razões anteriores. No presente caso, levou-nos ao
estudo das letras de Renato Russo a preocupação com os jovens, que
nelas se manifesta, e nas quais temas associados ao universo juvenil são
uma constante.
Renato Russo surgiu na cena musical brasileira nos anos finais da
década de 1970, tocando em uma banda chamada Aborto Elétrico e
datam desse período algumas de suas composições que seriam utilizadas mais tarde, quando ele, de fato, passaria a ter uma certa influência
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no quadro musical do país. Viviam-se os momentos finais do regime
ditatorial militar que havia, entre outras arbitrariedades, cerceado a liberdade de expressão artística.
O sucesso, contudo, só chegaria na metade dos anos 80, quando Renato participava de outra banda – a Legião Urbana. Mesclando
uma temática que abordava, ao mesmo tempo, a problemática dos
relacionamentos amorosos, a difícil passagem da adolescência para a
maturidade e questões políticas, compostas em uma linguagem simples
e com diversas referências culturais, suas letras logo caíram no agrado
dos jovens, que faziam questão de decorá-las fosse para cantar, fosse para mostrar aos amigos que conheciam o trabalho do compositor.
Após Será, primeiro sucesso da banda, muitos outros vieram e apenas
fizeram crescer, entre os jovens, o conceito de grande letrista de que
Renato desfrutava.
Simultaneamente ao sucesso e amadurecido ele próprio pela passagem do tempo e pelas experiências vividas, ia desenvolvendo sua
verve de letrista musical. É importante considerá-lo tão-somente assim,
uma vez que ele mesmo rejeitou o rótulo de poeta, concedido diversas
e reiteradas vezes por jornalistas e críticos. Nos últimos anos de vida –
morreu em outubro de 1996 – sua temática concentrou-se sobretudo
nos desencantos advindos de relações amorosas mal resolvidas, todavia, jamais deixou de dedicar algumas de suas letras a um problema
que toca, muito de perto, os adolescentes: o desconforto causado pelo
fato de o jovem não ser mais criança e não ser ainda adulto, mas um
ser confuso e disforme ante a sociedade em que vive.
Para concluir, cabe ressaltar que os jovens correspondiam a essa
busca de diálogo pretendida pelo compositor. Tal afirmativa comprova-se em entrevistas com jovens publicadas pouco depois de sua morte:
a maioria o cita, com bastante carinho, como uma espécie de “irmão
mais velho” – dada a compreensão que tinha de seus dramas pessoais,
sempre presentes em suas canções.
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Geraldo Vicente Martins [59-79]
Teorizar é preciso...
A semiótica discursiva, teoria escolhida para a fundamentação
deste trabalho, encontra-se, desde há algum tempo, em uma fase “suficientemente avançada” (BARROS, 2001, p. 5). Sabe-se que a preocupação da semiótica é, ainda pelas palavras de Barros, “determinar
as condições em que um objeto se torna significante para o homem”
(idem, p. 13), isto é, a teoria semiótica busca explicar como se engendra
o sentido de um texto – este, visto em sua mais ampla acepção, pode
ser um poema, um bilhete, um quadro, um filme, etc. Para alcançar
esse objetivo, ela concebe um percurso gerativo do sentido que parte
do mais simples e abstrato para chegar ao mais complexo e concreto,
ao longo do que o texto recebe diversos investimentos semânticos e
sintáxicos.
Esse percurso contém três níveis: o fundamental, o narrativo e o
discursivo. No primeiro, nível das estruturas fundamentais, a significação irrompe por meio de uma oposição semântica mínima; no segundo, nível das estruturas narrativas, dá-se a organização da narrativa a
partir do ponto de vista de um sujeito; finalmente, no terceiro, nível
das estruturas discursivas, as estruturas do nível anterior são assumidas
e discursivizadas por um sujeito da enunciação.
Iniciaremos as investigações pelo nível discursivo, uma vez que
nosso interesse maior é analisar os simulacros construídos pelo enunciador e que dizem respeito aos seus possíveis enunciatários, os jovens.
Também serão verificados os simulacros do próprio enunciador e as relações porventura existentes entre os simulacros que lhe dizem respeito
e os que concernem ao enunciatário. Antes de explicarmos o conceito
de simulacro, julgamos oportuno justificar a nossa escolha do nível discursivo para início do trabalho de análise.
Cada um dos níveis do percurso gerativo do sentido possui um
componente sintáxico e outro semântico. No presente trabalho, a análise inicia-se por um mecanismo enunciativo que se localiza na sintaxe
do nível discursivo: a debreagem. Esta é um dos mecanismos responsáveis pela instauração de pessoas, espaços e tempos no enunciado – o
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outro mecanismo é a embreagem. Tomando a definição desses termos
a Greimas e Courtès, Fiorin explica-os
debreagem é a operação em que a instância de enunciação disjunge
de si e projeta para fora de si, no momento da discursivização, certos
termos ligados a sua estrutura de base, com vistas à constituição dos
elementos fundadores do enunciado, isto é, pessoa, espaço e tempo”(...)
“embreagem é o “efeito de retorno à enunciação”, produzido pela
neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim
como pela denegação da instância do enunciado (1996: 43 e 48).
Dos mecanismos acima, recorremos apenas à debreagem, importante porque remete justamente à instância de enunciação e à figura do
enunciador, responsável e pressuposto pela existência do enunciado. É
na utilização desse mecanismo em suas diferentes possibilidades que
nos apoiaremos durante a análise, focalizando, portanto, as marcas de
pessoa, tempo e espaço deixadas pelo enunciador no enunciado.
Há dois tipos de debreagem: enunciativa e enunciva. A debreagem
enunciativa ocorre quando se projeta no enunciado a pessoa (eu/tu), o
espaço (aqui/aí) e o tempo (agora) que simulam a instância da enunciação; já a debreagem enunciva é responsável pela projeção no enunciado
da pessoa (ele), do espaço (lá) e do tempo (então) do próprio enunciado.
Esses dois tipos de debreagem são responsáveis por dois grandes efeitos
de sentido do discurso: subjetividade, no caso da debreagem enunciativa, e objetividade, no caso da debreagem enunciva. Por outro lado, a
embreagem, que é o mecanismo que leva à suspensão das oposições de
pessoas, espaços e tempos, não será aqui utilizada por não se ter verificado, nas letras escolhidas, nenhum caso em que ela ocorresse.
Fiorin, na obra citada, faz um amplo estudo sobre os usos possíveis
desse mecanismo, mostrando que produzem efeitos de sentido diversos na compreensão do enunciado. Acrescenta ainda que a utilização
de um mecanismo em lugar de outro não é inconseqüente, mas, ao
contrário, torna muitas vezes a percepção do sentido mais eficaz.
Deve-se ressaltar, todavia, que a primazia concedida ao nível
discursivo não nos impede de verificar elementos que pertençam aos
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outros níveis do percurso. Assim, em certos momentos, investigaremos
as relações existentes entre os sujeitos do enunciado, e os valores que
perseguem, constituintes do nível narrativo – às vezes, o sujeito está
conjunto, junto, com o objeto que deseja; em outras, encontra-se dele
disjunto, separado; em outras passagens, faremos menção às oposições
semânticas que a narrativa comporta, além das operações sintáticas
– asserção e negação – que as organizam, o que concerne ao nível
fundamental.
O percurso teórico apresenta, até este ponto, a intenção de realizar um estudo de relações que ocorrem entre sujeitos. Tal estudo convoca, em primeiro plano, a “imagem” que o sujeito-enunciador possui
do sujeito-enunciatário, o que constitui aquilo a que a semiótica chama
de simulacro. Este , segundo a definição de Landowski, é
o tipo de figuras de componente modal e temático, com ajuda das quais
os actantes da enunciação se deixam apreender mutuamente, uma
vez projetados no âmbito do discurso enunciado. Por isso intervém
necessariamente, de antemão a todo programa de manipulação
intersubjetiva, a construção de tais simulacros na dimensão
cognoscitiva (1991: 232 – tradução e grifos nossos)
Como se depreende da definição acima, não há possibilidade de
uma relação intersubjetiva sem a construção de simulacros que organizem esse relacionamento. Ainda uma vez, cabe notar a oportuna lembrança de Barros:
os simulacros são entendidos como objetos imaginários que o sujeito
projeta e que, embora não tenham nenhum fundamento intersubjetivo,
determinam de maneira eficaz as relações intersubjetivas. (1995: 96)
Tal afirmação, segundo a qual o simulacro não possui fundamentos intersubjetivos, diz respeito ao fato de ele ser resultado da concepção que apenas um dos sujeitos faz do mundo circundante. Mas
essa concepção irá influir decididamente nas relações que esse sujeito
mantiver com outros. Na análise do corpus escolhido, espera-se tornar
mais visível a importância dos simulacros no relacionamento entre o
enunciador, o “artista”, e o enunciatário, “o público jovem”.
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Uma leitura semiótica das letras
Para estabelecer um roteiro de análise, seguimos a ordem cronológica de composição das letras, assim a primeira a ser analisada é A
dança, de 1985, que reproduzimos, na íntegra, abaixo.
Não sei o que é direito
Só vejo preconceito
E a sua roupa nova
É só uma roupa nova
Você não tem idéias
P’rá acompanhar a moda
Tratando as meninas
Como se fossem lixo
Ou então espécie rara
Só a você pertence
Ou então espécie rara
Que você não respeita
Ou então espécie rara
Que é só um objeto
P’rá usar e jogar fora
Depois de ter prazer.
Você é tão moderno
Se acha tão moderno
Mas é igual a seus pais
É só questão de idade
Passando dessa fase
Tanto fez e tanto faz.
Você com as suas drogas
E as suas teorias
E a sua rebeldia
E a sua solidão
Vive com seus excessos
Mas não tem mais dinheiro
P’rá comprar outra fuga
Sair de casa então
Então é outra festa
É outra sexta-feira
Que se dane o futuro
Você tem a vida inteira
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Você é tão esperto
Você está tão certo
Mas você nunca dançou
Com ódio de verdade.
Você é tão esperto
Você está tão certo
Que você nunca vai errar
Mas a vida deixa marcas
Tenha cuidado
Se um dia você dançar.
Nós somos tão modernos
Só não somos sinceros
Nos escondemos mais e mais
É só questão de idade
Passando dessa fase
Tanto fez e tanto faz.
O primeiro verso1 apresenta-se construído por meio de uma debreagem actancial enunciativa que instala no enunciado o simulacro do
enunciador2: o eu. Tal debreagem encontra-se manifestada pela forma
verbal sei, indicadora da primeira pessoa do singular; este verbo instala
também uma debreagem temporal enunciativa, uma vez que pertence
ao presente, temporalidade lingüística que procura simular a temporalidade da enunciação. Tem-se então, inicialmente, um enunciado que
produz um efeito de sentido de subjetividade acompanhado pela ilusão de simultaneidade temporal entre o dizer e o dito.
Esse recurso inicial empregado pelo enunciador é importante para
o que o conteúdo da canção procura expressar: constatações a respeito
1
Embora tenhamos adotado a denominação verso, utilizada em poesia, para fazer
referência ao que corresponderia à linha nos textos em prosa, reconhecemos que não
há consenso entre os pesquisadores da área sobre a similaridade entre aquele gênero
textual e o da letra de música.
2
Ao qual também poderíamos chamar narrador, mas, devido aos objetivos deste trabalho, optamos por chamar simulacro do enunciador ou enunciador somente. O
mesmo se aplica ao narratário, que se denominará simulacro do enunciatário ou
enunciatário.
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do cotidiano juvenil. Mas não adiantemos, apenas acompanhemos o
desenvolvimento narrativo da letra em questão.
Os versos iniciais instauram uma oposição essência vs. aparência,
manifestada no conflito entre o saber e o ver do enunciador. Tal oposição revela a condição em que esse sujeito emitirá o seu ponto de vista
sobre o mundo que o abriga: trata-se de uma opinião fundamentada
explicitamente no parecer, segundo a própria declaração do enunciador – e que por essa razão, estar fundamentada na aparência das coisas, torna-se ainda mais passível de enganos (exceto se o parecer for
assimilado ao ser).
Na continuidade desta primeira estrofe3, temos a instalação do
simulacro do enunciatário, por meio da convocação, inicialmente do
possessivo sua, seguido pelo pronome pessoal você, reforçando a debreagem actancial enunciativa dos versos anteriores. A imagem primeira desse outro sujeito possui um certo teor negativo, pois são feitas
constatações a seu respeito que remetem ao seu preconceito – mencionado anteriormente pelo enunciador. Tais constatações constróem o
simulacro de um sujeito vaidoso (no vestir-se), machista (no tratamento
com a mulher) – pressupõe-se que se trate de um sujeito masculino
justamente por essa indicação de relacionamento – e dominador, pois
procura manipular o outro como mero objeto, útil apenas enquanto
serve a seus desejos. Essa relação entre o enunciatário e seres do outro
sexo é bastante desigual, posto que ele sempre se coloca em uma posição de superioridade. Aliás, a recorrência constante dos possessivos
indica já essa sensação de posse que o enunciatário tem sobre tudo que
o cerca, o que concerne não apenas a bens materiais mas também aos
próprios seres humanos outros que com ele convivem.
Decorrente dessa primeira visão, poderíamos concluir que se
apresenta um enunciatário com imagem bastante negativa ou, para
usar os termos da teoria, disfórica – a semiótica discursiva articula, em
sua semântica do nível fundamental, as categorias do texto pela oposição euforia vs. disforia, na qual o primeiro termo é reservado aos
3
Por coerência metodológica, denominamos estrofe a cada conjunto de versos da letra.
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valores que apresentam o ser vivo em conformidade com os conteúdos
representados e o segundo, aos que o apresentam em desconformidade com esses conteúdos. A continuidade da análise há de verificar se
existe uma manutenção dessa visão disfórica do sujeito ou se ela sofre
alterações.
A estrofe seguinte inicia-se, porém, com a atribuição de um predicativo ao enunciatário que seria, em um primeiro momento, neutro:
moderno – ressalte-se que este se faz acompanhar por um advérbio
que possui valor apreciativo: tão. Se considerarmos que um dos significados de moderno é “pertencente ao nosso tempo”, veremos já uma
implicação não só do tempo presente neste lexema, mas também, e sobretudo, de coletividade, pois infere-se a presença de um certo padrão
do senso comum para que algo seja considerado moderno, o que está
manifestado, na definição dada, pelo pronome nosso.
Todavia, o segundo verso desta estrofe irá amenizar essa primeira
indicação, uma vez que o predicativo, que parecia ter sido conferido
objetivamente pelo enunciador ao enunciatário, passa a ser visto como
uma visão que este último tem de si próprio, embora transmitido pela
ótica do enunciador. Trata-se, na verdade, de um simulacro do simulacro, visto tratar-se do simulacro que um dos sujeitos concebe a respeito
do simulacro que um outro sujeito tem de si. Contudo, mais relevante
é a reiteração da oposição essência vs. aparência, presente no confronto entre os dois simulacros, em que o ser moderno é algo bastante diverso de achar-se, parecer, moderno. Sob a voz do enunciador, ouve-se
a voz do enunciatário.
O verso seguinte é iniciado pelo adversativo mas e indica a retomada do discurso pelo enunciador e o retorno de sua opinião. Para
ele, não há nenhuma modernidade nas atitudes do enunciatário, pelo
contrário, seu agir demonstra semelhanças com o que já era feito
desde tempos anteriores. Todavia, a neutralidade desse fazer é invocada; os atos do outro não são de sua própria responsabilidade, mas
de um comportamento típico da coletividade em determinado tempo
de sua existência. A concepção disfórica do outro estaria começando
66
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Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo [59-79]
a desfazer-se?
A seguir, retoma-se o tom dialogal, inserindo-se, novamente, no
enunciado notas sobre o comportamento do outro frente ao mundo.
Outra vez, a impressão é de que ao outro são atribuídas atitudes que
conotam valores disfóricos: consumo de drogas, teorias próprias que
justifiquem seus atos, livrando-o assim de condenações e culpas, gestos
rebeldes, isolamento, excessos. Outra vez o adversativo mas surge para
interromper essa seqüência de fazeres negativos do enunciatário. Esse
termo aparece quase como um limite, todavia, os limites não importam
ao outro, aliás, pela visão do enunciador, nada lhe importa. Afinal, para
o jovem que importa o próprio futuro frente à vida inteira? Assim, mais
uma vez, sob a voz do enunciador ouve-se a voz do outro sujeito...
Analisando a temporalidade desta letra, notou-se anteriormente
que se encontra construída sobre o tempo presente: trata-se de uma
debreagem temporal enunciativa, pois simula o tempo da enunciação.
Esse presente é mantido durante quase todo o texto, exceção feita a
quatro de seus momentos: nos versos que mostram a indiferença que
o jovem possui por suas atitudes – Tanto fez e tanto faz –, em que se
coloca a primeira forma do verbo fazer no pretérito; em uma das vezes
que se ouve a voz do enunciatário sob a do enunciador – Que você
nunca vai errar –, em que a perífrase verbal apresenta-se no futuro; e,
finalmente, nas duas vezes em que se emprega o verbo dançar, que resgata o título da letra – Mas você nunca dançou e Se um dia você dançar
–, a primeira está no pretérito e a segunda, no futuro. A comunicação
entre os sujeitos vale-se, portanto, de uma ilusão temporal que se torna
responsável pela impressão de um constante atualizar-se, no tempo,
dos conteúdos aí manifestados.
Mas, do que se constatou acima, a respeito do tempo no texto,
cumpre destacar a hipótese do ato de dançar, que se encontra colocado
como não ocorrido no passado, mas como uma possibilidade de
acontecimento futuro. Essa constatação é ainda mais importante se
lembrarmos que, na linguagem da juventude brasileira, dançar significa
“ser mal sucedido em seus atos”. Assim, a mensagem implícita, que
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Geraldo Vicente Martins [59-79]
pode ser extraída até a quarta estrofe da letra, leva-nos a pensar que o
enunciador acredita que esse comportamento do enunciatário, disfórico
em sua visão, permanece somente porque ele nunca teve problemas
decorrentes desse modo de agir – nas palavras do texto, nunca dançou.
Todavia, não há qualquer condenação sobre o comportamento do outro.
Eis que nos deparamos com a estrofe final. E a surpresa: não há
mais um eu e um você, mas um nós que subsume os dois sujeitos da
enunciação, tornando-os cúmplices em seus atos e fazeres. Não há, na
verdade, uma oposição aparência vs. essência, pois, assume-se, ser moderno não significa ser sincero; o que se vê pode não ser direito, mas é
o que é. A responsabilidade final de seus atos não pertence ao jovem,
mas é próprio de uma fase da vida e não há transformação possível desse fazer sem a passagem desse período – a menos que lhe sobrevenha
algum fato muito significativo.
Com o término da letra, e desta nossa primeira verificação, talvez
se possa dizer que mais do que cúmplice do enunciatário, o enunciador é compreensivo com seus atos e solidário a ele. É o que essa nova
debreagem actancial enunciativa, responsável pela instalação desse nós
coletivo, vem dizer.
A próxima letra a merecer nossa atenção é Há tempos, de 1989.
Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos
Há tempos tive um sonho
Não me lembro não me lembro
Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso
Os sonhos vêm
E os sonhos vão
O resto é imperfeito.
Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
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Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo [59-79]
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira.
E há tempos nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse:
Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa.
Embora a impressão inicial seja de uma debreagem actancial enunciva, que teria instalado no enunciado um actante que lhe pertença – um
ele, no caso o sentimento de tristeza, logo a seguir, percebe-se que se
trata de uma enunciativa, pois a presença do possessivo tua instala o simulacro do enunciatário, um dos actantes da enunciação.
O primeiro verso indica já a presença da disforia, uma vez que o
sentimento de tristeza mostra uma situação de desconformidade do
sujeito à realidade que o cerca. O segundo e o terceiro versos irão
confirmar a presença dessa disforia, pois, de uma perspectiva enunciva objetivante, apresentam uma conjunção dos sujeitos, enunciador
e enunciatário, com elementos disfóricos – descompasso, desperdício
– e uma conseqüente disjunção de algo eufórico – virtude. Note-se a
instauração, desde esse instante, de uma cumplicidade entre os sujeitos
– indicada pela forma verbal perdemos, pertencente à primeira pessoa
do plural, nós.
Também nesta segunda letra, trabalha-se com a debreagem
temporal enunciativa, exceto em dois trechos, que se encontram
justamente nestes versos que ora verificamos: Agora da virtude que
perdemos, em que a forma verbal indica a anterioridade de um estado
em que havia a conjunção entre o sujeito e a virtude, ausente no
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Geraldo Vicente Martins [59-79]
momento presente; e Há tempos tive um sonho, no qual surge pela
primeira vez a expressão que dá nome à letra e esta aqui se apresenta
com um valor restrospectivo, referindo-se apenas ao passado –
contrariamente ao que irá acontecer nas próximas vezes em que essa
mesma expressão manifestar-se. A forma verbal que reitera esse tempo
pretérito é tive.
Observe-se que, no curto espaço dos cinco primeiro versos, o trabalho com a debreagem já oscilou várias vezes: passou-se de um tu
inicial – tua – a um eles – temores, depois, deste passou-se a um nós
– perdemos – e, no quinto verso, a um eu – tive. É como se, por meio
desse recurso semelhante a um traveling cinematográfico, o enunciador
chamasse a atenção para todo um contexto, obrigando-nos a considerar vários aspectos da condição em que se inserem os simulacros – o
seu, enunciador, e o do enunciatário.
Tanto assim é que na seqüência do texto a debreagem efetua,
mais uma vez, a passagem do eu para o tu, isto um instante depois de
mencionar o esquecimento de um sonho. Este sonho se contrapõe à
tristeza que se apodera do enunciatário; tristeza que, acompanhada
pelo apreciativo tão, recebe uma dimensão específica – exata.
Essa conjunção entre o enunciatário e a tristeza que permanece
desde o início não é alterada sequer pela beleza do dia. Tem-se, então,
que o sujeito, pelo menos é o que se pode pressupor do enunciatário,
não se deixa influenciar por valores exteroceptivos, como fizera supor o
primeiro verso ao atribuir à cidade uma possível parcela de culpa no estado disfórico do sujeito, mas o que torna o ânimo desse sujeito variável
são valores interoceptivos – sobretudo, talvez, a perda da virtude.
Os simulacros dos sujeitos encontram-se marcados, consideravelmente, pela disforia que advém dessa influência da perda de valores
que lhes são deveras significativos. Os versos seguintes expressam essa
condição quando informam que tais sujeitos já se encontram disjuntos
dos valores há determinado tempo: Já estamos acostumados / A não
termos mais nem isso – ou seja, nem mesmo a beleza de um dia lhes
tem sido permitida, quanto mais sentimentos preciosos.
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Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo [59-79]
A continuidade da letra apresenta o enunciador a refletir sobre
a efemeridade dos sonhos: enquanto estes passam, a realidade
permanece. É possível depreender que apenas nos sonhos haveria
a possibilidade de recuperar a virtude perdida, uma vez que se faz
uma menção à imperfeição de tudo o mais – O resto é imperfeito.
Encontramo-nos, uma vez mais, frente a um registro enuncivo, mas
ainda assim, pelo contexto dado, não se obtém um efeito de sentido
se objetividade, ao contrário, mesmo nessa debreagem enunciva,
encontra-se um acentuado traço subjetivo.
A seguir, retomam-se, por meio de uma enunciação reportada, as
palavras do enunciatário. Este se revela tomado por uma estado de ânimo angustiante, no qual se transmitem, ao mesmo tempo, um desejo
e uma impossibilidade, que se encontram reforçados pela utilização,
na sintaxe frasal, de uma forma verbal no modo subjuntivo – tivesse –
tornando ainda mais significativa a incerteza e a pouca probabilidade
de que o fato mencionado ocorra, isto é, a expressão de um grito que
pudesse transmitir toda a sua dor. Opõem-se aqui o vivido – a dor – e
o sonhado – a voz.
Triste torna-se o tempo em que os sonhos são negados. Eis o tempo em que vivem enunciador e enunciatário: tempos sombrios. Assim,
a perspectiva enunciva que se instala na seqüência nada mais é do que
a reiteração dessa época por meio de impressões interiores do enunciador. A expressão há tempos reaparece para mostrar não um evento
ocorrido no pretérito, como fizera antes, mas, marcado pelo aspecto
durativo, vem indicar a recorrência de acontecimentos que atualizam a
categoria da disforia no interior do texto: sujeitos que se encontram em
disjunção com a bondade, a saúde, o encanto, a alegria e a solidariedade. Enfim, não há condições para que o bem se efetive nesse tempo e
nesse mundo que o texto construiu.
Poder-se-ia dizer, depois do parágrafo anterior, que tal texto apresenta, no momento, o simulacro de um mundo vão – e o que mais
se pode esperar de um mundo sem virtude? O enunciador construiu,
então, até o presente trecho, um discurso com um efeito de sentido de
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Geraldo Vicente Martins [59-79]
extremo pessimismo, no qual não se vislumbram perspectivas eufóricas
para os sujeitos.
No verso seguinte, tem-se a apresentação do enunciador e enunciatário como amantes, uma vez que a introdução de um predicativo
no diálogo entre esses sujeitos – amor – põe às claras essa situação.
O diálogo erige-se justamente sobre a importância de se resgatarem
algumas “virtudes”: disciplina, liberdade, compaixão, fortaleza, bondade e coragem. A estrutura dialogal apresenta-se sob a forma de
uma proposição, isto é, propõe-se ao enunciatário a volta à prática
dessas virtudes, e, para a resposta desse outro sujeito, instala-se uma
debreagem de segundo grau, a qual permite a sua manifestação, sem
a mediação do enunciador, ou seja, surge um simulacro da enunciação do enunciatário.
Antes dessa enunciação, porém, tem-se a passagem do tu, que
caracterizava o enunciatário, para um ela, o que deixa ainda mais clara a relação de amantes que já fora sugerida versos antes. Há também
esse afastamento do outro, uma vez que de instância enunciativa (tu),
ele passa a enunciva (ela) – a ausência de virtudes acaba afastando
mesmo os seres mais próximos, mais unidos.
Essa concessão da palavra ao outro, para que a ele caiba a enunciação final do texto, além de um efeito de sentido de realidade, causa um efeito de estranhamento, pois antes só se ouvira, diretamente,
a voz do enunciador. Mas, ainda mais estranho, torna-se o conteúdo
dessa enunciação: uma consideração sobre a pureza da água do poço
de sua casa.
O efeito de sentido que nos resta ao final do texto é inesperado,
pois o que se apresentava era uma estrutura em que se podia pressupor a passagem a uma situação de conjunção com os valores perdidos
– sobretudo com a virtude –, afinal, passara-se da disjunção a não-disjunção, quando o enunciador propusera ao enunciatário, o resgate das virtudes, mas, como este último não se manifesta a respeito,
os sujeitos permanecem em um estado suspensivo, no qual nenhuma
conjunção pode-se concretizar. Aqui, o simulacro do enunciador ter-
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo [59-79]
mina sendo condicionado pela palavra do enunciatário, o que, contudo, não deixa de ser sua criação e revelar sua própria imagem.
A última letra a ser analisada é Aloha, de 1996.
Será que ninguém vê o caos em que vivemos
Os jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmo
A juventude é rica, a juventude é pobre
A juventude sofre e ninguém parece perceber
Eu tenho um coração
Eu tenho ideais
Eu gosto de cinema
E de coisas naturais
E penso empre em sexo, oh yeah!
Todo adulto tem inveja dos mais jovens
A juventude está sozinha
Não há ninguém para ajudar
A explicar por que é que o mundo
É este desastre que aí está
Eu não sei, eu não sei
Dizem que eu não sei nada
Dizem que eu não tenho opinião
Me compram, me vendem, me estragam
E é tudo mentira, me deixam na mão
Não me deixam fazer nada
E a culpa é sempre minha, oh yeah!
E meus amigos parecem ter medo
De quem fala o que sentiu
De quem pensa diferente
Nos querem todos iguais
Assim é bem mais fácil nos controlar
E mentir mentir mentir
E matar matar matar
O que eu tenho de melhor: minha esperança
Que se faça o sacrifício
E cresçam logo as crianças.
Entre a composição da primeira letra analisada e desta, onze anos
se passaram, o que pode provocar uma grande mudança na maneira
que alguém possui de ver e conceber sua imagem a respeito dos jovens.
Se se levar em conta a figurativização desse componente temático nas
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Geraldo Vicente Martins [59-79]
letras de Renato Russo, perceber-se-á logo como as coisas mudaram
bastante nesse período. Mas verifiquemos a presente letra.
Temos, de início, a instalação de uma debreagem actancial enunciativa, uma vez que se encontra construída a partir da perspectiva de um
actante da enunciação: o nós – manifestado pela forma verbal vivemos.
Mais uma vez, o enunciador encontra-se sincretizado com o enunciatário, o que se associa a uma idéia de cumplicidade entre esses sujeitos.
Este verso inicial comporta ainda a situação de desordem a que os atores
do enunciado, que serão apresentados em seguida, são relegados.
O recurso figurativo a que aludíamos acima surge no segundo
verso. Os atores são nomeados de jovens – uma menção explícita ao
enunciatário. A reiteração de uma condição específica dos jovens, presente nesse trecho, reforça a particularidade que há no ser jovem.
Também a temporalidade desta letra encontra-se marcada pelo
presente, tempo que simula a enunciação, resultante de uma debreagem temporal enunciativa. Parece que aos jovens o único discurso interessante é o do presente. Cabe ressaltar ainda que de uma debreagem
actancial enunciativa – nós – passou-se a uma enunciva – os jovens. Tal
recurso, porém, não indica um abandono do enunciatário pelo enunciador, mas tão-somente a sua observação por um outro ângulo, que se
pretende menos subjetivo, todavia, o olhar desse enunciador permanece solidário aos jovens – efeito reforçado pela manutenção do tempo
enunciativo.
O terceiro verso apresenta termos contrários como predicativos
da juventude – rica, pobre. Sabe-se que a união de termos contrários
leva ao surgimento de um termo complexo e é desta forma que se nos
apresenta a condição da juventude: complexa, incompreensível. Daí
o encadeamento lógico do verso seguinte que enuncia o sofrimento
dessa juventude devido à incompreensão e à não-percepção que os
outros têm de sua situação particular. Por esse motivo, a construção do
simulacro de um enunciador que seja solidário a essa condição torna-se
bastante atraente para os jovens, justificando o interesse do enunciatário no discurso enunciado.
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Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo [59-79]
Da perspectiva enunciva em que se colocara para observar, de
maneira global, os jovens, o enunciador efetua uma nova debreagem
enunciativa em que instala o pronome pessoal eu, simulando sua própria presença no interior do discurso. Assume, então, valores e idéias
características da juventude a que supostamente se dirige. O simulacro
do enunciador atualiza em sua fala um comportamento que se revela
idiossincrático – aliás, algo bastante peculiar do jovem: a busca de atitudes próprias.
Se a juventude é a época em que os sonhos estão mais presentes
na vida do homem, quando este pretende reformar o mundo em que
vive, nada mais justo que ele se considere um humanista nato – tenha
um coração – e acredite em seus ideais. É ainda a fase de procurar seus
heróis e ídolos – na arte, no cinema. Além de o jovem encontrar-se no
vigor físico – e, por esse motivo, pensar sempre em sexo. O simulacro
do jovem que o enunciador constrói é, então, bastante fiel ao que a
“realidade” mostra.
A debreagem enunciva que se apresenta a seguir indica a existência de uma forte oposição jovem vs. adulto, sendo que o texto coloca-se, visivelmente, ao lado da primeira categoria dessa oposição.
É como se a culpa pelo estado caótico em que o mundo se encontra
fosse imputada, no discurso do enunciador, somente aos mais velhos
– estes seriam responsáveis ainda pelo desamparo em que a juventude
se encontra.
A oposição apontada acima é explorada na passagem em que,
logo após mostrar o jovem como sujeito que não consegue entender a
realidade circundante, mostra-se a visão que o adulto possui do jovem,
atribuindo-lhe ignorância e ausência de uma identidade própria – falta
à juventude o saber para alcançar o ser. Essa oposição é reforçada pelo
apontamento, nos versos seguintes, da manipulação a que os adultos
submetem os jovens, tratando-os como objetos, utilizando-os de acordo com os seus fins, levando-os ainda, ao fim, a interiorizarem a sensação de culpa por esse tratamento recebido.
Tal atitude por parte dos adultos só poderia conduzir a juventude a
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Geraldo Vicente Martins [59-79]
um estado de opressão, assim os jovens passam a sentir medo de expressar aquilo que realmente sentem, ficam inibidos de serem autênticos,
achando conveniente adotar os padrões do mundo adulto e prosseguir
no caminho de seus erros – o que facilita a sua dominação e a manutenção do status quo idealizado pelos outros. É a essa morte que o enunciador deseja referir-se quando reitera seguidamente um assassínio – E
matar matar matar: a morte dos ideais humanitários, mais justos, para
a construção de um mundo outro, diferente do dos adultos. É a aniquilação da esperança, como assinala o texto em seguida; é a disjunção
total do sujeito jovens, do actante coletivo juventude, com valores representativos de uma nova vida que o adulto – esse ser apresentado como
ninguém em alguns trechos da canção – pretende realizar.
E se, no momento presente, ele consegue esse seu intento, a
disjunção, não significa que a guerra tenha sido perdida pela juventude, uma vez que logo hão de vir outros jovens – as crianças que
crescerão. Isto significa que o final da questão deixa, em estado virtual,
o prosseguimento dessa busca de um novo mundo à juventude futura.
Um simulacro da esperança, apesar de sua morte, é a mensagem final
da letra.
Considerações finais
Ainda que os resultados alcançados pela verificação das letras não
tenham sido alvo de uma análise mais profunda, arriscamo-nos a extrair
deles algumas conclusões, as quais expomos a seguir:
- utiliza-se, nas letras, predominantemente, o mecanismo de debreagem actancial enunciativa, uma vez que, desta forma, torna-se
possível ao enunciador estabelecer uma relação de cumplicidade e solidariedade com o enunciatário;
- também no que diz respeito à temporalidade, há uma notável
preferência pelo tempo enunciativo, o presente, o que cria uma ilusão
temporal de simultaneidade entre a enunciação e o enunciado, atualizando o diálogo entre enunciador e enunciatário;
- entre a primeira e última letra, com a passagem do tempo, perce-
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Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo [59-79]
be-se que há uma evolução na maneira pela qual o enunciador dirige-se ao enunciatário: se na primeira, tal convocação desse último sujeito
é velada, na última, ela se torna bastante explícita. O que não se altera
com o tempo, somente progride, é a atitude compreensiva que o enunciador dirige ao outro;
- pode-se dizer, enfim, que o simulacro do enunciador assume a
condição existencial do simulacro do enunciatário para dele se aproximar e exprimir melhor os anseios que tal sujeito possui.
São essas as conclusões a que chegamos ao final da leitura sobre
o corpus escolhido.
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso – fundamentos semióticos. 2ª ed.
São
Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001, 172 p.
_____. “Sintaxe narrativa”. In: Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas
Julien Greimas. São Paulo: EDUC, 1995, p 81-97.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e
tempo. São Paulo: Ática, 1996, 318 p.
LANDOWSKI, Eric. “Simulacro”. In: Semiótica. Diccionario razonado de la teoria del
lenguaje – tomo II. Madrid: Gredos, 1991, p 232-2.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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O futebol-arte brasileiro [81-103]
O futebol-arte brasileiro: aspectos discursivos
da constituição e legitimação de uma
identidade nacional
The Brazilian “artistic soccer”: discursive aspects
of construction and legitimization of a national identity
Ariane Rodrigues de Oliveira
Acadêmica do Curso de Letras da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande – MS.
[email protected]
Ana Carolina Vilela-Ardenghi
Professora do Centro de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande – MS.
[email protected]
Resumo: O presente artigo objetiva apresentar uma análise do fenômeno da
constituição/legitimação de uma identidade nacional a partir de uma abordagem discursiva, mais especificamente, no interior do quadro teórico-metodológico da escola francesa de Análise do Discurso (AD). A constituição dessa identidade envolve uma série de elementos, dentre os quais
se podem destacar a língua, o território, a economia, os atletas, a religião
etc. Neste artigo, analisamos como o futebol, no caso do Brasil, se relaciona com a definição desta identidade nacional. Isso porque, como é
amplamente sabido, o futebol é apontado como o esporte nacional por
excelência e as matérias esportivas frequentemente falam em um “verdadeiro futebol brasileiro”, que representaria, em certa medida, os traços característicos do país. Para tanto, nosso corpus constituiu-se de 28 matérias
esportivas, cartas de leitores e de uma propaganda de material esportivo a
fim de analisarmos e descrevermos o funcionamento dos discursos que associam este esporte a uma certa identidade nacional. A partir das análises,
pudemos observar que, diferentemente do que supúnhamos inicialmente,
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
79
Ariane Rodrigues de Oliveira / Ana Carolina Vilela-Ardenghi [81-103]
a identidade nacional construída discursivamente a partir do futebol não
se liga de maneira exclusiva ao chamado “futebol-arte”. Os resultados alcançados nos permitiram descrever, por meio da materialidade linguística,
o funcionamento de um discurso que busca conciliar os modos de jogo conhecidos como “futebol de resultados” e do já mencionado “futebol-arte”.
Palavras-chave: Futebol. Análise do discurso. Fórmula. Identidade nacional.
Abstract: The present article intends to present an analysis of the phenomenon
of construction/legitimization of a national identity from a discursive approach, more specifically, from the theoretical and methodological framework of the French Discourse Analysis (DA). The constitution of such identity involves a series of elements, among which we could point out the
language, the territory, the economy, the athletes and religion. In this article
we analyze how the soccer, in the Brazilian case, is related to the definition
of that national identity. This comes from the widely known fact that soccer
is considered to be the national sport in the country and sports articles frequently talk about a “genuine Brazilian soccer” that would represent, to a
certain extent, the country’s most remarkable features. In order to achieve
that, the corpus gathered 28 sports articles, readers’ letters and a campaign of a sports product so as to allow the analysis and description of the
discourses that associate this sport to a certain national identity. From the
analysis, we could observe that, different from what we supposed at first,
the national identity that is discursively built by soccer does not connect
neither directly nor exclusively to the so called “artistic soccer”. The results
allowed us to describe, based on the linguistic material, themodus operandi of a discourse that constantly tries to conciliate two different styles,
known as “results soccer” and the previously mentioned “artistic soccer”.
Keywords: Soccer. Discourse Analysis. Formula. National identity.
Introdução
No presente artigo, nos propusemos a analisar discursivamente a
relação do futebol-arte com a identidade nacional. Como a proposta
se inscreve no campo teórico-metodológico da Análise do Discurso de
80
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
O futebol-arte brasileiro [81-103]
linha francesa (doravante AD), o que interessa de maneira mais específica ao analista do discurso é pensar a questão identitária na sua relação
com a linguagem e o que a linguagem pode contribuir para pensar a
identidade, e é o que pretendemos fazer ao longo do trabalho.
Como em AD, teoria e prática encontram-se profundamente imbricadas, nosso trabalho – como os demais em AD – não apresenta, por
exemplo, uma separação entre teoria e prática. Assim, ele se subdivide
em três partes: num primeiro momento, faremos algumas considerações em torno da questão identitária, debatendo por que o futebol (em
especial o futebol-arte) pode ser apontado como constituinte da identidade nacional; na sequência, apresentaremos o quadro teórico-metodológico utilizado, a partir do qual investigaremos o caráter formulaico
do sintagma “futebol-arte” – se ele pode ou não ser considerado uma
“fórmula” (para o que nos valeremos dos estudos de Krieg-Planque,
2010); depois faremos a análise do nosso corpus, apresentando as relações que ali encontramos do futebol-arte com a identidade nacional.
Há ainda uma observação a respeito das referências que consideramos
pertinente fazer: para fins didáticos, nós as separamos em dois blocos,
sendo o primeiro o das referências de pesquisa e o segundo o das referências do corpus, isto é, do material analisado.
Assim, no artigo que ora se propõe, partiremos do sintagma “futebol-arte” (e suas possíveis transformações) nas matérias esportivas nacionais para analisar as relações (discursivas) estabelecidas com uma
identidade brasileira.
Algumas considerações em torno da questão identitária
A questão da construção/legitimação da identidade nacional não
pode ser analisada como se se tratasse de algo homogêneo, pois, como
observa Da Matta (1986, p.101): “a sociedade brasileira não poderia
ser entendida de modo unitário, na base de uma só causa ou de um só
princípio social”. Assim, pode-se dizer que diversos fatores concorrem
para a construção da chamada identidade nacional.
A esse respeito, por exemplo, Hobsbawn (2004), estudando o
processo de formação dos Estados-nações europeus, destaca alguns
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Ariane Rodrigues de Oliveira / Ana Carolina Vilela-Ardenghi [81-103]
elementos que, ao longo do tempo, concorreram para a definição
das suas identidades nacionais, tais como língua, raça, religião, território, atletas dentre outros. Chauí, a partir da leitura de Hobsbawn
(2004), propõe que a esses elementos dê-se o nome de semióforos,
signos que “indica[m] algo que significa alguma outra coisa e cujo valor não é medido por sua materialidade e sim por sua força simbólica”
(CHAUÍ, apud Vilela-Ardenghi, 2007, p 48). Nesse sentido, a nação
seria, ela mesma, um semióforo-matriz, que abrigaria os demais elementos mencionados em Hobsbawn. É, pois, nesse cenário que nos
situamos ao propor que, no caso brasileiro, o futebol representaria
um traço de nossa identidade; ou, valendo-nos dos conceitos apresentados acima, considerar o futebol como um semióforo.
E é o próprio Hobsbawn (2004) quem observa que os esportes de
maneira geral podem, sim, ser fonte de identificação nacional. Falando
sobre os meios de o Estado exercer domínio sob a população, garantir a
lealdade do povo e assim fazê-los sentir-se como parte da nação, Hobsbawn (2004) aponta que foi necessário que os Estados desenvolvessem
uma espécie de “religião cívica”: o patriotismo, que foi deslocado para
o campo dos esportes; comentando o fenômeno descrito pelo autor,
Vilela-Ardenghi (2007, p. 56) destaca que
as Olimpíadas e a Copa do Mundo são exemplos de como os esportes
passaram a representar uma fonte de autoafirmação nacional. O torcedor,
ao se identificar com o atleta como um símbolo nacional, transfere o
sentimento de lealdade para com o time ou com a equipe para a nação,
transformando-se, ele também, num símbolo nacional.
No caso brasileiro, a identificação do país com o futebol é, sabese, bastante grande e o que propomos aqui — que o futebol seja visto
como um fator da construção e/ou legitimação de nossa identidade
nacional — não é algo novo: para ficar em um exemplo apenas, podese citar Bellos (2003), para quem o futebol não só seria, conforme
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O futebol-arte brasileiro [81-103]
propomos, um semióforo, como seria o mais importante deles na
definição da identidade brasileira.
A história do país com o futebol vem sendo escrita (e até certo
ponto confundida) ao longo dos anos, desde a chegada do estudante
Charles Miller, em 1894, trazendo na bagagem após período de estudos na Inglaterra, o football. Foi somente o tempo que pôde fazer com
que a desconfiança em torno da modalidade fosse gradativamente se
dissipando e que se abrisse espaço para o esporte nacional “por excelência”. A força do futebol é tamanha que é somente como ironia que
pode ler o trecho abaixo, de Graciliano Ramos:
Os verdadeiros esportes regionais estão aí abandonados: o porrete, o
cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que
se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o calto,
a cavalhada, e o melhor de tudo, o cambapé, a rasteira. A rasteira! Esse,
sim, é o esporte nacional por excelência. (Sgarioni, 2010, p. 8) 1
O futebol, contudo, já registrou capítulos sombrios ao longo de
sua história, como a proibição de negros e pobres de integrar os clubes — e, ainda hoje, assistimos a demonstrações de racismo dentro de
campo, seja dentro ou fora do país — atravessou guerras mundiais e
outros momentos de crise. Nada disso, porém, impediu o crescimento
desse esporte no Brasil (e no mundo). Nesse sentido, a observação de
Sgarioni 2 (2010, p. 9) é bastante esclarecedora:
Ter o melhor futebol do mundo se tornou obsessão nacional, uma
afirmação do país. Viramos exportadores de craques, e a nossa história
se confunde com a própria evolução do esporte. Passatempo de poucos,
a atividade, então de elite, triunfaria e cresceria para ser uma instituição
brasileira. (grifamos)
Foi nas décadas de 1930 a 1950 que o futebol conheceu sua fase
mais popular. Nos anos 1930, houve a primeira Copa do Mundo de
futebol e o Brasil participou, marcando a sua presença também em
todas as Copas seguintes. Com o Estado Novo, o sentimento nacionalista
no Brasil estava exacerbado. Getúlio Vargas, que tinha a pretensão
1
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In: Revista Continuum Itaú Cultural.
In: Revista Continuum Itaú Cultural.
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Ariane Rodrigues de Oliveira / Ana Carolina Vilela-Ardenghi [81-103]
de re-eleição, usou o futebol como estandarte de sua campanha:
fazia aparições nos jogos, prometia investimentos e contribuía para
o aumento da popularização do esporte. Já na década de 1940, os
brasileiros torciam por sua seleção nas Copas, ficavam deprimidos com
as derrotas e eliminações — como esquecer a derrota de 1950 em
pleno Maracanã? A primeira conquista veio, como se sabe, somente em
1958, última Copa daquela década.
De lá para cá, o futebol brasileiro cresceu, o país tornou-se um
grande exportador de matéria-prima (os craques), e dono de uma “fórmula” de referência: o “futebol-arte”, como se fosse algo “natural” do
país, parte de sua “genética”, como observa Guterman (2010, p. 13),
para quem o tipo de jogo nacional tem, “em seu DNA”, características
que o distinguem do futebol comumente praticado na Europa.
De fato, o futebol tornou-se uma espécie de “cartão de visita” do
Brasil: dificilmente se fala no país sem que se mencione o futebol. De
acordo com Fernández (1974), reforçando observação também realizada por Hobsbawn (2004), é no futebol — para Hobsbawn, nos esportes
de modo geral — que rivalidades políticas e econômicas são colocadas
em campos opostos e, para os brasileiros, há um sabor especial, pois
o Brasil desponta nas Copas do Mundo, por exemplo, como potência
capaz de “derrotar” aqueles que nos campos político e econômico subjugam o país (FERNÁNDEZ, 1974).
No entanto, não é qualquer futebol que representa o Brasil, mas
o “futebol-arte”, tido como “verdadeiro”, como se pode observar em
declarações como a do ex-jogador e ídolo Júnior: “Me encheu de esperança de voltar a ver o verdadeiro futebol brasileiro em campo” (Segalla, 2010, p.78) (grifamos).
Assim, “o futebol é parte integrante da identidade nacional brasileira, de modo que qualquer coisa que se enuncie sobre o nosso futebol já é uma forma de construir discursivamente a identidade do Brasil”
(PECENIN, 2007, p. 82). E esse traço é tão marcante na construção de
nossa identidade nacional que não conhecer o esporte e/ou suas regras
é algo inadmissível ou até mesmo anormal para o brasileiro, como se
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pode notar a partir da afirmação de Burgierman 3 (2010, p. 14): “Não
entender nada de futebol pega supermal. Você pode passar por antipatriótico, ou antipopular, ou antibrasileiro, ou americanizado” (grifamos). Veja que a relação com o patriotismo é aqui explícita e a própria
nacionalidade é “negada” àqueles que nada sabem sobre o esporte
bretão.
Futebol-arte: uma fórmula discursiva?
A noção de “fórmula” – conforme assumida por Krieg-Planque
(2010) – tem se mostrado bastante produtiva nos trabalhos em AD. Isso
se deve, em boa medida, ao fato de que ela permite ao analista desestruturar unidades instituídas, navegando pelo interdisurso sem qualquer pretensão de estabelecer uma unidade ou totalidade (MAINGUENEAU, 2006). A proposta inicial desta pesquisa pautava-se justamente
sobre esta noção. Para debatermos o assunto e justificarmos, como se
verá mais adiante, a negação do caráter formulaico de “futebol-arte”,
faremos, a seguir, uma incursão pelas considerações de Krieg-Planque
(2010).
Krieg-Planque (2010) aponta quatro componentes próprios das
“fórmulas”, a saber: i) caráter cristalizado; ii) caráter discursivo; iii)
funcionamento como referente social; e iv) caráter polêmico. Vejamos
cada uma dessas características.
2.1 Caráter cristalizado
Uma fórmula tem a propriedade de ser cristalizada em razão de
sua forma significante, que é relativamente estável, o que faz com
que seja “possível seguir uma fórmula num sistema de buscas” (POSSENTI, 2010, p. 107). Krieg-Planque (2010), a esse respeito, aponta
que as fórmulas podem surgir de unidades lexicais simples, complexas, léxico-sintáticas e de sequências autônomas (frases) – todas passíveis de cristalização. O processo de cristalização tem dois lados,
isto é, pode ser de ordem estrutural (formal) ou de ordem memorial.
Quando se tem um processo pautado numa ordem estrutural, está-se
falando de “uma análise sistemática das expressões cristalizadas nos
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termos da língua e nas categorias da gramática” (Habert & Fiala
apud Krieg-Planque, 2010, p. 64) ao passo que, no caso de um processo de ordem memorial, a remissão é “ao conjunto de enunciados
ou fragmentos que circulam ‘em bloco’ num dado momento e que
são percebidos como formando um todo cuja origem é, ou não é,
recuperável” (Habert & Fiala apud Krieg-Planque, 2010, p. 64). É
importante que se diga, porém, que a cristalização faz parte de um
continuum, que é uma concepção gradativa, não absoluta e que seus
limites (sequência totalmente livre e sequência totalmente cristalizada) são “menos bem servidos do que as zonas intermediárias” (Krieg-Planque, 2010, p. 66). Assim, o que deve ficar claro no que tange
a essa característica é que uma fórmula existe e se firma por conta de
suas muitas paráfrases, das quais ela é a cristalização. Isso indica que a
“fórmula” pode ter suas variantes e uma análise absolutamente formal
tende a não ser produtiva.
Voltando-nos para o nosso corpus, podemos dizer que a expressão
“futebol-arte” apresenta tal propriedade e foi, aliás, o seu caráter cristalizado que primeiramente nos permitiu pensar que se tratava de uma
fórmula discursiva. Tendo surgido, como se acredita, na década de 1970,
a expressão designava o modo “plástico” de jogar da Seleção Brasileira.
Atualmente a expressão vem sendo retomada de modo cada vez mais
frequente no Brasil e no mundo – mas o interessante é que é quase sempre para falar do futebol brasileiro (!), evidenciando, assim, a importância
desse semióforo na construção/legitimação de nossa identidade.
O continuum existente entre os processos de ordem estrutural e
memorial acima mencionado pode ser também observado aqui. Há
algumas variantes da “fórmula” futebol-arte que podemos citar: jogo
bonito, show de bola, jogo alegre, futebol “moleque”. E essas “paráfrases” de futebol-arte apontavam para que o enunciado pudesse ser
enquadrado como uma “fórmula”.
2.2 Caráter discursivo
Apesar de ser “uma materialidade linguística relativamente estável, localizável na cadeia do enunciado e linguisticamente descritível”
(Krieg-Planque, 2010, p. 81), o que dá suporte à fórmula, não se
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O futebol-arte brasileiro [81-103]
trata aqui de uma noção linguística. Isso por que o que torna uma
fórmula uma fórmula são os seus usos. Normalmente, a unidade já
preexiste e se torna fórmula devido aos seus empregos na linguagem.
Desse modo, a fórmula não é um uso novo, mas um uso particular em
determinados campos ou situações, disputada por posições, sendo comentada, retomada, ou seja, ganhando um movimento.
Assim, como a fórmula não é uma noção linguística, mas discursiva, ela só pode ser estudada apoiada em um “corpus saturado de enunciados atestados”, isto é, um corpus cujo “enriquecimento por novos
enunciados não traz mais dados novos do ponto de vista da problemática adotada, pelo menos não mais dados novos suscetíveis de modificar
os resultados de maneira substancial” (Krieg-Planque, 2010, p. 89).
Também essa propriedade encontra-se presente na expressão
“futebol-arte”: aqui, como já dissemos, estamos diante de um caso de
uma unidade já existente mas que ganha novos usos, passando a ser
comentada e retomada constantemente. A conquista do Campeonato
Paulista de futebol de 2010 pelo time do Santos, com um elenco em
grande parte formado por jovens atletas (os “meninos da Vila”) que
“jogavam bonito” e cuja não-convocação para a Copa do Mundo de
2010 rendeu ao então técnico Dunga muitas críticas, foi por nós tomada como um acontecimento – no sentido de Pêcheux (1983/2002). O
exemplo a seguir nos mostra que há “disputas” em torno da expressão:
“Ter uma equipe organizada também é bonito. As pessoas elogiam tanto o basquete, que faz marcação por zona... Temos que saber marcar e
atacar com a mesma eficiência” 4.
2.3 Caráter polêmico
Essa propriedade não é contraditória com as características anteriores: embora apoiada numa materialidade linguística relativamente
estável, é polêmica. E isso ocorre justamente porque “há um denominador comum, um território partilhado” (Fiala & Ebel apud Krieg-Planque, 2010, p. 100). Outra explicação para o caráter polêmico da
4
SANTOS? Dunga defende futebol “bonito e organizado”; grifamos.
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Ariane Rodrigues de Oliveira / Ana Carolina Vilela-Ardenghi [81-103]
fórmula está no fato de que ela carrega questões sociopolíticas, propícias para polêmicas, objetos para debates. Sua dimensão polêmica
encontra-se profundamente imbricada, como veremos mais adiante,
com a próxima característica – o caráter de referente social.
O “futebol-arte” com certeza suscita polêmicas e é, sem dúvida,
uma arena para embates. A declaração de Dunga – já citada e que
retomamos a seguir – é um exemplo disso: “Ter uma equipe organizada também é bonito. As pessoas elogiam tanto o basquete, que faz
marcação por zona... Temos que saber marcar e atacar com a mesma
eficiência” 5.
Como vemos, há aqui uma disputa pelo sentido da expressão: não
mais referente à plasticidade, mas à organização. A fórmula é, portanto,
polêmica porque é posta a funcionar em práticas linguageiras específicas.
2.4 Caráter de referente social
Um referente social é um signo que “evoca alguma coisa para todos num dado momento” (Krieg-Planque, 2010, p. 92). E, para que
tal fato ocorra, é necessário que a fórmula seja de conhecimento de
todos. Krieg-Planque defende que esse “conhecimento” de todos não
se resume a um “saber da existência da fórmula”, antes, isso implica
um eventual deslocamento de domínios, o que significa que “é preciso
que a encontremos nos mais variados tipos de discurso”. Ou ainda,
“se a fórmula é originária de uma formação discursiva, deve sair dela”
(Krieg-Planque , 2010, p. 96).
No caso de nosso corpus, esse deslocamento não ocorre, como
podemos observar nas análises empreendidas por Possenti (2010), sobre a fórmula “fazer a lição de casa” 6, ou por Krieg-Planque (2010),
em torno das fórmulas “purificação étnica” e “desenvolvimento sustentável”, respectivamente. No caso do futebol-arte, vemos seu emprego
limitado ao campo esportivo, com raríssimas aparições em outras esferas por meio de uma de suas paráfrases (“show de bola”). Ainda assim,
5
6
SANTOS? Dunga defende futebol “bonito e organizado”; grifamos.
Para maiores detalhes, vide POSSENTI (2010).
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dado o fato de que, para ser um referente social, é preciso que, no
momento considerado, a fórmula se torne uma espécie de ponto de
passagem obrigatório, de modo que todos se sintam mais ou menos
obrigados a usá-la, nos pareceu que atribuir à expressão em pauta o
estatuto formulaico seria extrapolar os limites do conceito.
Assim, como vimos, a noção de futebol-arte apresenta três das
quatro propriedades, a saber: caráter cristalizado, caráter discursivo e
caráter polêmico. No entanto, não parece ser possível sustentar o caráter de referente social de “futebol-arte”, uma vez que falta à expressão
circulação em outros campos discursivos 7.
É importante, contudo, observar que nossa hipótese inicial não foi,
de maneira alguma, improdutiva. Foi perseguindo a noção de fórmula tal
como vista acima que pudemos notar um funcionamento – materializado linguisticamente – dos discursos em torno do futebol-arte, apontado
como elemento da mais alta importância na construção e/ou legitimação
de nossa identidade nacional. E é sobre isso que falaremos a seguir.
Análise
Como já mencionado anteriormente, a conquista do Campeonato
Paulista pelo time do Santos em 2010 foi tomada por nós como acontecimento – no sentido de Pêcheux (1983/2002) –, a partir do qual
organizamos nosso levantamento do corpus.
Pensando se tratar de uma fórmula, “perseguimos” o sintagma
“futebol-arte” na mídia em geral a partir do acontecimento acima destacado. Assim, nosso corpus compõe-se de: i) matérias publicadas (em
diversos meios) principalmente após o jogo de estreia do Santos no
Campeonato Paulista, mas também matérias publicadas depois da conquista do referido campeonato; ii) matérias (também publicadas em
diversos meios) sobre a estreia da seleção de Mano Menezes no primeiro amistoso pós-Copa do Mundo, contra os Estados Unidos – de
7
É possível encontrarmos usos para outros esportes, como “voleibol-arte” usado em
uma transmissão da Liga Mundial no canal Sportv em 2011, mas ainda assim estamos
no campo esportivo. Não encontramos nenhuma ocorrência nos campos político, econômico ou pedagógico, para citar uns poucos exemplos.
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10/08/2010 até 20/08/20108; e iii) uma campanha publicitária da marca Penalty, do primeiro semestre de 2011. No total, 28 matérias fazem
parte do corpus cuja análise apresentamos aqui.
De maneira geral, é possível perceber em todo o corpus uma
relação, digamos, “opositiva” entre o “futebol-arte” e o chamado
“futebol burocrático”. A esse respeito, por exemplo, pode-se citar
uma das matérias analisadas, intitulada “A virada do futebol-arte”
9
, que, comparando os dois modos de jogo, destaca o retorno do
“futebol-arte” atribuindo isso a “dois fenômenos atuais” 10 Santos e
Barcelona com seu futebol “criativ[o] e esteticamente agradável”11:
“Depois de anos sendo definido de forma pejorativa como ‘romântico’ (isto é, distante da realidade), ultrapassado em tempos pragmáticos, eis que o futebol-arte volta a ganhar as manchetes das editorias
de esporte”12.
A mesma matéria ainda aponta algumas das seleções caracterizadas por jogarem o futebol-arte em Copas do Mundo e saírem vencedoras, incluindo aí as seleções nacionais de 1958 e 1970. Embora se
diga na matéria que outros países já jogaram o futebol-arte, o Brasil é
colocado como o que se destaca:
talvez o Brasil seja, ou melhor, foi um dia, seu praticante mais assíduo.
Aqui floresceu o beautiful game, fruto de um trabalho cultural que
adoçou e arredondou o rígido jogo britânico com a ginga, a finta, o passe
em curva, o jeito sutil de bater na bola. Gilberto Freyre descreveu esse
processo de aculturação no prefácio de O Negro no Futebol Brasileiro,
livro clássico de Mário Filho. Nele, evoca a contribuição da capoeira e
do samba no abrasileiramento do jogo da bola pela miscigenação afrobrasileira.13
É possível identificar no texto acima o mesmo discurso encontrado
em Guterman (2010, p. 13), para quem o futebol brasileiro tem, “em
Observe-se, contudo, que as datas são “relativas”, pois no corpus podem ser encontrados textos datados de períodos distintos.
9
ORICCHIO, L.Z. A virada do futebol-arte.
10
Idem.
11
Idem.
12
Idem; grifamos.
13
Idem; grifos no original.
8
90
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seu DNA”, características que o distinguem do “futebol comumente
praticado na Europa”. E também na matéria intitulada “Um show com
a cara do Brasil” 14. “Cara”, nesse sentido, pode ser relacionada com
“identidade”, mostrando assim a grande relação que há entre o “futebol
show” com a identidade nacional. Há ainda uma série de comentários
retirados de jornais americanos — e citados por jornais brasileiros —
que se valem de expressões que, como os exemplos citados até aqui,
atualizam esse discurso que considera o futebol-arte como um traço de
nossa identidade nacional: “voltar às raízes” e “recuperar” o modo de
jogo do “célebre passado” brasileiro, como se pode verificar a seguir:
“[o jogo da seleção sob o comando de Mano Menezes] fez o Brasil voltar
às suas raízes e jogar bonito” 15 (USA Today);
“foi o começo de um esforço agressivo do Brasil para recuperar o
esplendor de seu célebre passado” 16 (New York Times).
Assim, observa-se a partir dos excertos acima que não é o “futebol”
um traço de nossa identidade, mas o “futebol-arte”. Isso fica também
evidente na propaganda da marca de produtos esportivos Penalty17 que
faz parte de nosso corpus:
A gente gosta da marcação, mas prefere o drible.
A gente gosta da tática, mas prefere o talento.
A gente gosta do ensaio, mas prefere o improviso.
Porque esse é o jogo que o Brasil joga. E que a gente joga.
Um jogo que não se explica; se sente.
As estruturas adversativas (p MAS q) dos três primeiros parágrafos opõem marcação a drible, tática a talento e ensaio a improviso.
Para Ducrot (apud GUIMARÃES, 1987), o operador em questão – o
mas – tem um funcionamento bastante peculiar: ele introduz um
argumento que vai na direção contrária da conclusão (R) em favor
da qual o primeiro argumento vai; sendo assim, o argumento introDEIRO, B. Um show com a cara do Brasil.
Apud Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 de agosto de 2010; grifamos.
16
Idem; grifamos.
17
YOUTUBE. Propaganda – Penalty – Ginga Brasil. 2011. Penalty Ginga Brasil. [online].
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=nAKBn61Yhi8>. Acesso em: 16
de agosto de 2011.
14
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duzido pelo mas direciona a argumentação em favor da conclusão
oposta, denominada por ele ~R (lê-se “não R”). Ou seja, se considerarmos que a conclusão em favor da qual as primeiras partes for
R: “para vencer no futebol é preciso privilegiar a técnica” – conclusão esta perfeitamente de acordo com as paráfrases referentes ao
“futebol de resultados” – fica claro que o discurso que sustenta os
enunciados da propaganda, ao ir em direção a uma conclusão ~R
e atestar que “esse é o jogo que o Brasil joga” instaura a relação de
identificação do futebol brasileiro com o “futebol-arte”, dos dribles,
do talento e do improviso.
No comentário a seguir a comparação dos modos de jogo das seleções sob o comando de Dunga, primeiramente, e, depois, de Mano
Menezes é com o clima do país, outra de suas “marcas registradas”:
“nos últimos quatro anos, o futebol do Brasil esteve como o tempo em
São Paulo essa semana: frio, cinzento. Mas depois do jogo contra os
Estados Unidos, o primeiro da era Mano Menezes, tem muito torcedor achando que o inverno da seleção chegou ao fim” 18(grifamos). No
Brasil é comum termos calor — somos até mesmo chamados de “país
tropical” — e ter um inverno mais rigoroso é atípico e mesmo indesejável por muitos, não sendo este, reitere-se, o clima típico do país.
Assim, estabelecendo essa comparação, fica claro que o futebol-arte é
associado ao clima predominante e “genuíno” do Brasil. Essa relação
com o futebol-arte fica também evidente no excerto a seguir, extraído
de matéria sobre o jogador Paulo Henrique Ganso (um dos “meninos
da Vila”): “Os brasileiros esperam por Ganso com a nostalgia de quem
acredita piamente na existência de uma escola brasileira de futebol,
mais cadenciada, sem erros de passe e com lançamentos precisos. Com
belos gols também, é lógico” 19.
Procuramos até aqui apresentar o modo como se estabelece a relação entre o futebol e a identidade nacional ou, dito de outra manei18
19
BRASILEIROS aprovam futebol bonito da seleção de Mano Menezes; grifamos.
SÍMON, 2011, p. 34; grifamos.
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ra, como o futebol é significado como um semióforo constitutivo da
identidade nacional. No entanto, a partir da breve análise apresentada
da propaganda da Penalty mais acima, pudemos perceber, pelo funcionamento do operador descrito (mas), que havia ali um funcionamento
discursivo que se materializa também ao longo das demais matérias de
nosso corpus – ainda que por meio de outros operadores. Em outras
palavras: ao introduzir um argumento mais forte em favor de uma conclusão ~R – que, no caso, pode ser descrita como “para vencer no futebol não é preciso/não basta privilegiar a técnica” – instaura-se também
um posicionamento ao qual poderíamos chamar “conciliatório” entre
o “futebol-arte” e o “futebol de resultados”.
Vejamos alguns exemplos de como esse posicionamento se materializa nas matérias analisadas:
“A seleção brasileira jogou o futebol alegre e ofensivo [...] e derrotou os
Estados Unidos” 20;
“Não faltaram toques de efeito e dribles irreverentes, mas quase sempre
com objetividade” 21;
“O resultado foi uma boa apresentação e a vitória” 22;
“Além de mostrar um futebol convincente no setor ofensivo, [...] também
não corria riscos na defesa” 23;
“é possível alcançar resultados com um futebol vistoso” 24;
“Se nós conseguirmos fazer a seleção estar mais próxima de vencer
jogando bonito como todos gostam vai ser o máximo do projeto que
vamos conseguir” 25;
“garantiram a vitória alvinegra com belas jogadas, toques de efeito,
chapéus” 26;
ATAQUE brilha e Brasil de Mano estréia com vitória sobre EUA; grifamos.
DEIRO, B. Um show com a cara do Brasil; grifamos.
22
BRASIL terá um ‘sistema tático preferencial’, diz Mano Menezes; grifamos.
23
NA ESTREIA de Mano, seleção brasileira mostra futebol ofensivo e vence os EUA;
20
21
grifamos.
BARROS, A. Dorival orgulhoso de seus meninos: ‘É a contribuição do clube ao futebol’; grifamos.
25
MANO Menezes cobra maturidade pela volta do futebol bonito; grifamos.
24
26
BARROS, A. Ganso e Neymar brilham e garantem vitória do Peixe sobre o
Rio Branco; grifamos.
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“Gostei pelo resultado, claro, mas além disso foi um jogo bonito” 27;
“o Santos encantou o Brasil no primeiro semestre e mostrou que pode ser
campeão com um futebol de gala” 28.
Os diversos recortes acima apresentados materializam a tentativa
de “conciliar” o futebol-arte e o futebol de resultados, mais do que
sobrepor um ao outro. Isso também pode ser observado na declaração
de Paulo Henrique Ganso, considerado um dos grandes representantes
desse novo momento do futebol brasileiro: “Não sou de dar caneta, de
dar chapéu, de dar elástico quando não precisa” 29. Trata-se, como se
pode ver, de uma paráfrase de muitos dos enunciados já apresentados.
Nas matérias analisadas, a cada um dos “modelos” de jogo associam-se determinadas expressões, esquemas táticos, adjetivos etc.
como destacados no quadro a seguir:
Quadro 1
Futebol de resultados
Futebol “militarizado”, organizado,
racional, burocrático
Jogo retrancado, pragmático,
“científico”, passes retilíneos,
triangulação
Jogo defensivo, privilegiando os
resultados e pragmático
Seleção envelhecida (média de
idade: 29 anos)
Eficiência tática, resultados
Jogo com marcações rígidas
Jogar retrancado
Esquema 4-4-2
“O samba morreu”
Seleção sóbria e séria, “time de
seminaristas”
Futebol-arte
Futebol com velocidade, alegre,
moleque, descontraído
Jogadas de efeito, dribles, chapéus,
fintas, passes curvos
Jogo ofensivo, que encanta, futebol
plástico, vistoso e show
Jovem seleção (média de idade: 23
anos)
Qualidade, técnica, habilidade, talento
Jogo com bastante movimentação e
liberdade para os jogadores
Jogar para frente
Esquema 4-3-3
“Jovem samba”
Seleção alegre e criativa
27
PRESIDENTE da CBF elogia estreia de Mano Menezes e diz que técnico é craque;
grifamos.
28
SANTOS? Dunga defende futebol “bonito e organizado”; grifamos.
29
SÍMON, 2011, p. 34; grifamos.
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O futebol-arte brasileiro [81-103]
Jogo feio
Futebol de prosa
Jogo bonito
Futebol de poesia
As estruturas linguísticas destacadas mais acima evidenciam a conciliação entre o que considera “típico” do futebol de resultados e do
futebol-arte. Mas, como dissemos, mais que “somar” as vantagens de
cada um – isto é, o jogo bonito à vitória – essa materialidade linguística
nos serve de indício de um discurso que tem circulado cada vez mais
ao se falar do futebol brasileiro e, consequentemente, do futebol que
caracterizaria o Brasil, contribuindo para a construção/legitimação de
nossa identidade nacional.
Guimarães (1987), tratando das conjunções da língua portuguesa
por meio de uma abordagem argumentativa, aponta que sobre as estruturas inclusivas (tradicionalmente enquadradas pela gramática como
coordenadas aditivas, por exemplo) se poderia dizer que funcionam
como operadores que reúnem “argumentos de mesma força argumentativa”. Contudo, pensamos que, discursivamente falando, o funcionamento não parece ser de simples “agrupamento” de argumentos igualmente fortes dadas as relações estabelecidas com outros discursos do
campo. Para entendermos tais relações, empreenderemos um breve
percurso histórico em torno do futebol nacional.
A Copa do Mundo de 1982, disputada na Espanha, pode ser
apontada como um marco importante na história do futebol brasileiro.
A seleção – comandada por Telê Santana e contando com um elenco
composto de renomados craques como Zico, Falcão, Sócrates, Júnior
e Cerezo – foi precocemente eliminada ainda nas quartas-de-final
mesmo tendo encantado com um futebol frequentemente descrito
como “ofensivo e criativo”, representante típico do chamado futebolarte. Essa derrota acendeu um debate em torno do par plasticidade
vs. competitividade, cindindo, assim, nos modos de jogo apresentados
aqui. É importante notar que até esse momento não parecia haver um
debate mais sistemático sobre o tema; havia, sim, uma tentativa de
“classificação” do futebol nacional relacionando-o com as características
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Ariane Rodrigues de Oliveira / Ana Carolina Vilela-Ardenghi [81-103]
“nacionais”: a miscigenação do povo, o samba etc. As duas principais
seleções campeãs do Brasil em Copas do Mundo jogando dessa maneira
– a seleção de 1958 e a de 1970 – consolidaram esse modo de jogar e
entre os “protagonistas” das conquistas estava Pelé – o mais conhecido
praticante desse modo de jogo e até hoje aclamado como o “rei do
futebol”.
Inicia-se, assim, um crescente questionamento sobre a eficiência
do chamado futebol-arte, como mostra a declaração de Falcão (apud
LEITE, 2010, p. 120): “Não foi o Brasil que perdeu. Foi o futebol. Ganhar aquele título poderia ter significado uma mudança na forma de se
jogar dali pra frente”. Após a conquista de 1970, o Brasil só foi campeão novamente em 1994, 24 anos depois, portanto. Ganhava força,
então, e cada vez mais adeptos o chamado “futebol de resultados”
– que foi se constituindo discursivamente como o oposto do “futebol-arte”. Nesse modo de jogo, como vimos, os resultados é que são privilegiados – deixando de lado, por assim dizer, as “jogadas de efeito”, as
goleadas e o ataque ofensivo – fazendo uma espécie de dosagem entre
ataque e defesa, como diriam alguns, atacando pouco e defendendo
muito. A conquista do título de 1994 pela seleção jogando um futebol essencialmente “de resultados” chamou a atenção para a eficiência
desse estilo de jogo 30. Mas como já dito anteriormente, a partir do
que tomamos como acontecimento, constatamos que parece haver um
posicionamento distinto atualmente, “conciliatório” entre os dois modos de jogo. Duas declarações são exemplares para marcar a diferença
entre esses posicionamentos: Zico afirma que “é mais importante fazer
gols do que não tomá-los” 31, evidenciando aqui uma visão do “futebol-arte” do qual ele foi representante, ou seja, até 1982; por outro lado,
o excerto a seguir (já citado antes) nos mostra a importância dada à
defesa hoje: “Além de mostrar um futebol convincente no setor ofensivo, [...] também não corria riscos na defesa” 32. Fala-se, assim, nesta
última declaração acerca da seleção brasileira da “Era Mano”, sobre
Não nos centraremos na seleção de 1994. Sobre isso vide PECENIN (2007).
ZICO, Luxemburgo e Dorival Júnior veem volta do futebol arte. Placar.
32
NA ESTREIA de Mano, seleção brasileira mostra futebol ofensivo e vence os EUA.
30
31
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O futebol-arte brasileiro [81-103]
um modo de jogo ofensivo, mas sem “descuidar” da defesa, sem apresentar supostas vulnerabilidades que o “puro” futebol-arte apresentaria
nesse setor. E em outros enunciados tomados como exemplo, vemos as
duas máximas dos modos de jogo combinadas, a saber, o “show” e os
“resultados”.
Considerações finais
Inicialmente, o objetivo central proposto para o presente artigo
era analisar como se estabelecia discursivamente a relação entre futebol e uma identidade nacional (brasileira), a partir da descrição do funcionamento dos discursos sobre o chamado “futebol-arte”, na medida
em que o relacionam com uma identidade brasileira.
Nossa hipótese inicial era a de um posicionamento do “puro”
futebol-arte como representativo da identidade nacional que estaria
materializado no corpus. Isso em decorrência das discussões cada vez
mais presentes sobre um possível “retorno” do futebol-arte aos campos de futebol. Porém, depois de analisarmos o corpus, notamos que
esse posicionamento não era absoluto, isto é, o que havia eram discursos apontando para uma direção que não esperávamos, a saber, da
“combinação” de dois modos de jogo: o futebol-arte com o futebol de
resultados. Pelas estruturas linguísticas inclusivas (conjunções, preposições, orações, léxico) encontradas no corpus, pudemos descrever o
funcionamento dos discursos atuais sobre o futebol-arte, parte da identidade nacional. Esperamos, assim, ter contribuído para lançar um olhar
(discursivo, no caso) para o estudo do que é por muitos considerado
uma “paixão nacional” e de que muito se fala, mas ainda são poucos os
estudos acadêmicos (especialmente linguísticos) a seu respeito.
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
A promessa divina para a vida presente . A
promessa bíblica de proteção: uma análise
semiótica bíblica
The divine promise to present life. The bible promise of protection: a biblical semiotics analysis
Flavia Melville Paiva
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande – MS.
[email protected]
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise semiótica da
construção do sentido do texto bíblico “Salmos 23” com a isotopia
da “Proteção”, quando o crente está na presença/conjunção de sua
divindade, apontando os princípios da teoria semiótica discursiva,
proposta pelo semioticista Algirdas Julien Greimas, considerando os três
níveis de análise: fundamental, narrativo e discursivo.
Palavras-chaves: Semiótica. Nível Fundamental. Nível Narrativo. Nível
Discursivo.
THE DIVINE PROMISE TO PRESENT LIFE. THE BIBLE PROMISE OF
PROTECTION: A BIBLICAL SEMIOTICS ANALYSIS Abstract: The purpose of this paper is to present a semiotic analysis of the
construction of the meaning of the biblical text “Psalm 23” with the isotopy
of “protection” when the religious believer is in the presence / conjunction
of his divinity pointing to the principles of semiotics discourse proposed by
the semiotician Algirdas Julien Greimas, featuring three levels of analysis:
fundamental, narrative and discursive.
Keywords: Semiotics. Fundamental Level. Narrative Level. Discursive Level.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
103
Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
1. Introdução
A Bíblia, coletânea de textos religiosos escritos por diferentes
autores em diferentes épocas da história da humanidade, apesar de
tão antiga e por vezes polêmica, por tratar temas e doutrinas religiosas,
tem sido amplamente estudada, inclusive nos dias atuais, e é também
passível de ser analisada por teorias que propõem um tratamento
sistemático, científico, ou seja, sem objetivo religioso nem doutrinário.
Conforme afirma Malanga (2008, n/p), sobre o texto bíblico, “para
grande parte dos povos do Ocidente, ele representa uma obra sagrada,
ligada às suas religiões. Para outros, trata-se apenas de uma obra antiga,
ligada às raízes da nossa cultura”, e existem várias formas de ver e
estudar a Bíblia, “como literatura, como registro histórico e social de
uma época, sob o ponto de vista da ética e tantos outros aspectos”.
Assim, o tratamento que pretendemos dar à Bíblia neste trabalho
é o de uma análise semiótica, pela apresentação de como o tema
“Proteção quando na presença divina” foi construído no Salmo 23
(que, em algumas edições bíblicas1, é denominado Salmo 222);
apresentamos, também, outras três passagens bíblicas, que atuarão,
nesta análise, como marca de que, mesmo a Bíblia tendo sido escrita
em vários períodos distintos da história da humanidade e por diversos
autores, apresenta um cerne isotópico, como “a proteção na vida
presente do crente com a consequente salvação futura (na vida eterna,
após a morte carnal)”.
Propomos, então, uma análise do percurso gerativo que é
construído sobre abstrações que o leitor pode fazer sobre o texto do
Salmo 23, e apresenta as marcas sintáticas e semânticas em três níveis
de análise, sem a visão dogmática da religião e sob o ponto de vista
científico.
Salmo 23 em A BÍBLIA SAGRADA - Edição Almeida Corrigida e Fiel da Sociedade
Bíblica Trinitariana do Brasil, 1995; Salmo 22 em A BÍBLIA SAGRADA. Trad. Pe. Matos
Soares. São Paulo : Edições Paulinas, 1980.
2
O que gera essa diferença entre as duas edições pesquisadas é a inclusão ou não de
outros livros e textos; por isso, tivemos o cuidado de selecionar quatro textos para análise presentes em ambas as edições.
1
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
Os três níveis de análise sugeridos por Algirdas Julien Greimas
(fundamental, discursivo e narrativo) serão analisados em relação ao
Salmo 23 e com exemplificação nos outros textos utilizados como
apoio intertextual.
Pela cronologia bíblica3, escolhemos os quatro textos abaixo, dois
representando o período de 1000 a 500 a.C, outro referente à época
da vida de Cristo, com um de seus apóstolos, e outro após sua morte,
para verificar como o tema Proteção foi tratado por escritores em fases
diferentes da história da humanidade abordadas pela coletânea religiosa:
• Salmos 23 – remetendo ao ano 1000 a.C
• Malaquias, capítulo 3 – remetendo ao ano 500 a.C
• João, capítulo 16 - remetendo à época da vida de Cristo.
• Romanos, capítulo 4 – remetendo ao ano 56 d.C
2. Texto-Base: Salmo 23 [Salmo De Davi]
1
O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará.
2
Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas
tranquilas.
3
Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor
do seu nome.
4
Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria
mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me
consolam.
5
Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos,
unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda.
6
Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os
dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias.
HALLEY, H.H., Manual Bíblico – um comentário abreviado da Bíblia. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1970.
3
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
2.1 Textos de apoio intertextual para análise
Os textos utilizados para apoio intertextual nesta análise semiótica
serão os encontrados em: Malaquias 3:11, 17 e 18; João 16: 1, 23, 24
e 33 e Romanos 5: 2 a 5, 9 e 11:
Malaquias 3:11
E por causa de vós repreenderei o devorador, e ele não destruirá
os frutos da vossa terra; e a vossa vide no campo não será estéril, diz o
SENHOR dos Exércitos.
Malaquias 3:17
E eles serão meus, diz o SENHOR dos Exércitos; naquele dia serão
para mim jóias; poupá-los-ei, como um homem poupa a seu filho, que
o serve.
e
Malaquias 3:18
Então voltareis e vereis a diferença entre o justo e o ímpio; entre o
que serve a Deus, e o que não o serve.
João 16: 2
Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer
que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus.
João 16: 23 e 24
E naquele dia nada me perguntareis. Na verdade, na verdade vos
digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há
de dar. Até agora nada pedistes em meu nome; pedi, e recebereis, para
que o vosso gozo se cumpra.
e
João 16: 33
Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis
aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.
Romanos 5: 2 a 5
Pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual
estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo
que a tribulação produz a paciência, E a paciência a experiência, e a
experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o
amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi dado.
Romanos 5: 9
Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue,
seremos por ele salvos da ira.
e
Romanos 5: 11
E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso
Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação.
3. Análise Semiótica Discursiva
3.1 Nível Fundamental
Analisando o Salmo 23 à luz do nível fundamental, encontramos
as categorias semânticas que dão base ao texto, dentro da perspectiva
religiosa cristã, quando na presença ou ausência de deus, /proteção/
versus /desamparo/.
Essa oposição é a que faz com que a categoria ocorra, existindo,
sim, um traço comum que une /proteção/ a /desamparo/, e é esse
traço, com base no cuidado ou não divino, que estabelece a diferença
entre os termos da categoria, estabelecendo relações de contrariedade
contraditoriedade.
Salientamos que, no texto em análise, /proteção/ não tem sua
negação no /desamparo/ e sim na /não-proteção/. Essa contrariedade
pode ser melhor entendida quando percebemos o caminho que o
homem segue quando descobre a /proteção/ divina, pois ele estava antes
em um estado de /desamparo/, por não ter consciência da presença
divina em sua vida, ou em companhia não-divina (vida mundana), que
o levava ao /não-desamparo/, mas ainda longe da /proteção/. Uma
vez encontrada essa consciência, ou seja, a da existência de proteção
divina, abre-se para ele a possibilidade de ir em busca da /proteção/ ou
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
passar a viver sob a /não-proteção/, já que consciente da possibilidade
de salvação divina.
A qualificação semântica /euforia/ versus /disforia/ está presente
na categoria semântica encontrada. Analisando a /disforia/, com seu
valor negativo, sempre pressuposto (pois o que interessa ao salmista é
deixar claro que não tem dúvida da possibilidade de vida conjunta com
deus); assim, há disforia nas passagens que remetem a problemas que
o homem terá de enfrentar, e /euforia/, com seu valor positivo, quando
percebe o sucesso presente e possível, conforme o quadro abaixo:
Quadro 1
Texto
Euforia
Disforia
Salmo 23
Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me
mansamente a águas tranquilas.
...Ainda que eu
andasse pelo vale
da sombra da
morte
Refrigera a minha alma; guia-me pelas
veredas da justiça, por amor do seu nome.
... a tua vara e o teu cajado me consolam
... mal
... Preparas uma mesa perante mim
... presença dos
meus inimigos
... unges a minha cabeça
...temeria
E resume, apresentando a benção em sua
vida presente:
... a bondade e a misericórdia me seguirão
todos os dias da minha vida
E a promessa de vida eterna: ...habitarei na
casa do SENHOR por longos dias.
A negação e a asserção existentes na sintaxe do nível fundamental
verificam-se no Salmo 23, sugerindo a construção do sentido pela:
a) afirmação pressuposta de desamparo; quando declara que
“nada me faltará”, é porque já está consciente de que está sozinho,
mas consciente da existência divina;
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A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
b) negação de desamparo e afirmação de proteção; após o tomar
consciência da possibilidade da proteção, nega o desamparo e busca
outro caminho – ao afirmar publicamente que “o Senhor é meu pastor”.
Além desse contínuo estabelecido entre asserção e negação, podemos
agrupar em três blocos os elementos fundamentais do Salmo 23:
a) afirmação de desamparo: “nada me faltará”
b) negação de desamparo: “O Senhor é meu pastor”
c) afirmação de proteção: “Deitar-me faz em verdes pastos, guiame mansamente a águas tranquilas, refrigera ... guia-me... justiça... não
temeria mal algum, porque tu estás comigo... consolam... prepara uma
mesa perante mim... unges... meu cálice transborda... a bondade e a
misericórdia me seguirão... habitarei ... por longos dias”
Quadrado semiótico
Courtés (1979, p. 70) exemplifica o emprego do “quadrado
semiótico”; com sua representação, podemos precisar essa relação
isotópica da Proteção, presente nos textos bíblicos escolhidos, e, assim,
visualizar o nível profundo e de natureza lógico-semântica abaixo
esquematizado:
Figura 1: Quadrado Semiótico
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
3.2 Nível Narrativo:
Fiorin (2006, p. 27 e 28) sugere que façamos, inicialmente, uma
distinção entre narratividade e narração, antes de iniciarmos a análise
do nível narrativo: “narração” constitui “a classe de discurso em que
estados e transformações estão ligados a personagens individualizadas”,
existente em uma determinada classe de textos; já a “narratividade” é
um componente de todos os textos, “é uma transformação situada entre
dois estados sucessivos e diferentes”, em que “ocorre uma narrativa
mínima, quando se tem um estado inicial, uma transformação e um
estado final”. E é entendida como uma transformação de conteúdo,
um componente da teoria do discurso, ponto a ser estudado na análise
narrativa do texto proposto.
Os textos “não são narrativas mínimas, ao contrário, são narrativas
complexas, em que uma série de enunciados de fazer e de ser (de
estado) estão organizados hierarquicamente” (FIORIN, 2006, p. 29).
Dentro desta análise, os enunciados elementares que encontramos são:
a) enunciados de estado, que estabelecem uma relação de junção
(disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto, encontrados
no Salmo 23, pela ausência de proteção divina e disjunção com o deus
protetor,
b) enunciados de fazer, que mostram as transformações de um
enunciado, de estado a outro, quando o salmista busca pela conjunção
com deus e encontra refrigério na vida presente e a consequente
salvação eterna.
A sequência canônica da manipulação, envolvendo competência,
performance e sanção, que estrutura uma narrativa complexa, está
presente em:
a) Manipulação (a fase em que “um sujeito age sobre outro
para levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa)”; encontrada
no texto-base e, talvez, em todos os textos bíblicos, cuja temática
principal é: a Salvação, para uns; o Sacrifício4, para outros. Percebemos
4
RAMOS, K. A. H. P. Análise semiótica da narrativa bíblica “A prova de Abraão”. Assis:
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A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
que a recompensa futura da vida eterna manipula o fiel a procurar
seguir as diretrizes religiosas, sendo preparado no presente para ser
capaz de receber bênçãos e, até mesmo, para suportar atribulações e
perseguições.
Existem vários tipos de manipulação, por tentação, intimidação,
sedução ou provocação. Encontramos a tentação no texto-base
estudado, pois o texto bíblico propõe ao crente uma recompensa – um
objeto de valor positivo, com a finalidade de levá-lo a fazer alguma coisa,
mesmo que sempre com a promessa de desamparo pressuposto e a de
proteção enquanto certeza e sem dúvida alguma (se o crente assume
que “o Senhor é meu pastor”, ele o leva por caminhos tranquilos, e se
tiver que passar por privações, terá coragem).
b) Competência: fase em que “o sujeito que vai realizar a
transformação central da narrativa é dotado de um saber e/ou poder
fazer” (FIORIN, 2006, p. 30). Greimas (1979, p. 23) afirma que “o
sujeito só pode realizar uma performance se possuir, previamente, a
competência necessária: a pressuposição lógica constitui assim, antes
de qualquer outra consideração, a base do componente do percurso
narrativo que precede a performance.” A competência, contrariamente à
performance, é /o que faz ser/, sendo da ordem do /ser/ e não do /fazer/;
para tanto, o sujeito competente precisa estar na posse de um programa
narrativo (S∩PN), deve possuir “um conjunto de modalidades de querer
e/ou dever e de poder e/ou saber fazer” (GREIMAS, 1979, p. 23).
Vemos isso quando o salmista afirma que é capaz de caminhar com
o seu senhor, que tem interesse em ser guiado, refrigerado, alimentado
e de viver em companhia divina.
c) Performance: “é a fase em que se dá a transformação (mudança
de um estado a outro) central da narrativa.” (ibid, p. 31). O sujeito
passa de um estado de disjunção com a proteção para um estado de
conjunção com ela.
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP, 2004. Tese de doutoramento.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
No Salmo 23, há o momento da transformação, dividido em várias
etapas:
1. o homem percebe a possibilidade de procurar a proteção
2. percebe então sua situação de desamparo,
3. crente, passa então pela disjunção com o desamparo (estado de
consciência que o faz entender que está em conjunção com a
não-proteção),
4. é impelido a buscar a disjunção com a não-proteção e a conjunção
com a proteção. A performance existe como um /fazer-ser/ .
d) Sanção: “Nela ocorre a constatação de que a performance se
realizou, e, por conseguinte, o reconhecimento do sujeito que operou
a transformação.” (ibid, p. 30). A distribuição de prêmios e castigos,
comum a essa fase, é encontrada no Salmo 23 quando o salmista
resume seu prêmio recebido por receber a companhia da “bondade e
a misericórdia” todos os dias da vida e, após a vida, receber o prêmio
de habitar “na casa do Senhor por longos dias”.
E o desmascarar de falsos heróis e a coroação dos verdadeiros
existe no texto-base quando, mesmo na presença de inimigos, o
salmista é tratado pelo seu protetor com deferência: “preparas uma
mesa perante mim na presença dos meus inimigos”, e nessa mesa, que
o alimenta e sustenta com tanta abundância, seu “cálice transborda”.
É importante salientar que essas quatro fases não ocorrem
simultaneamente, vão construindo o sentido do texto, apreensível pelo
leitor, às vezes, inconscientemente.
A não-necessidade da sequência canônica é percebida no Salmo
23 que apresenta as quatro fases em construção, sugerindo um ir e vir
de /disforia/ e /euforia/, de /disjunção com o desamparo/ e /conjunção
com a não-proteção/ e /conjunção com a proteção/.
Os objetos modais /querer/, /dever/, /saber/ e /poder fazer/ nesse
Salmo ocorrem na seguinte ordem: saber, querer, poder fazer nas
atitudes e sanções positivas do presente, e o dever de continuar para
alcançar o prêmio da vida eterna.
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A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
Os objetos de valor, com que se entra em conjunção ou disjunção,
como a conjunção com o objeto proteção, são caracterizados como
a abundância (“nada me faltará), a paz (“verdes pastos”, “águas
tranquilas”, “veredas da justiça”), a coragem (“não temeria”), ou seja,
uma concretização do poder ser protegido.
3.3 Nível Discursivo
Fiorin (2006, p. 41) sintetiza a caracterização das diferenças e, ao
mesmo tempo, das completudes do nível narrativo e discursivo, quando
afirma que, no primeiro, as formas abstratas são analisadas, como
apontamos anteriormente, em termos do sujeito no Salmo 23 entrar
em conjunção com a proteção. No segundo, essas formas abstratas
do nível narrativo “são revestidas de termos que lhe dão concretude”.
Essa concretude é predominante no Salmo 23, quando o salmista cita
uma série de imagens reais (verdes campos), mas que, na verdade, são
figuras de outros momentos e problemas, (como o “vale da morte”)
que o ser humano pode vivenciar, vencendo-os ao encontrar apoio,
proteção, força e coragem, quando em conjunção com a figura divina
(verdes campos).
A estrutura básica do Salmo 23, seguindo a proposta já apresentada,
aponta que o salmista, representando o crente, afirma que, mesmo nas
tribulações, é protegido pela entidade divina. A cada imagem negativa,
encontra-se uma positiva proposta por seu deus e a mudança de estado
de desamparado, não-protegido e finalmente protegido é verificado.
Na semântica discursiva, o “conceito de isotopia é extremamente
importante para a análise do discurso, pois permite determinar
o(s) plano(s) de leitura dos textos, controlar a interpretação dos
textos plurissignificativos e definir mecanismos de construção de
certos tipos de discurso” (FIORIN, 2006, p. 117) e é, a partir dessa
conceituação, que defendemos que o tempo presente, as ações
atuais praticadas pelo fiel, não geram apenas bônus futuros, mas
bênçãos. A proteção real e atual que traz esperança, confiança e
coragem para suportar provações.
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
A semiótica ajuda a entender como o texto bíblico é aberto a várias
interpretações, pois ele apresenta indícios de polissemia, baseados no
uso frequente de metáforas e não um discurso simples e direto.
Como já citamos, encontramos pesquisas que nomeiam o
“sacrifício” com o tema central da Bíblia, outros que tratam da
“salvação”, podendo buscar tantos temas que sugeririam construções
narrativas com base na distinção entre Bom e Mau Pastor, Amor e
Não-amor, Proteção e Agressão, Cuidado e Descaso, Paz e Sofrimento,
Felicidade e Não felicidade, Ansiedade e Confiança, dentre outros.
No texto, essa proteção pode ser encontrada em: fim da privação,
o protetor que não permite a privação: “nada me faltará”, já que meu
protetor “é o Senhor”. É como o pastor que cuida de suas ovelhas,
não deixando que enveredem por maus caminhos mas sim por “verdes
pastos”, que saciem sua sede em “águas tranquilas”, alimentem-no
em “preparas uma mesa perante mim”, e não mais citando imagens
concretas, guia pelas “veredas da justiça”, ampara no “vale da morte”,
“unges a minha cabeça”.
Temos a proteção que gera coragem em: “Ainda que eu andasse
pelo vale da sobra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás
comigo”; a proteção que gera confiança em: “a tua vara e o teu cajado
me consolam”.
As figuras “pastor”, “pasto”, “águas” apontam para lugares
metaforicamente utilizados para representar o deus, o protetor, a
vida eterna, a pureza. Já as figuras “vale da sombra” e “inimigos”,
representam, também em metáfora, o antideus, a morte sem salvação.
Todas as figuras apresentadas pelo Salmo 23 sugerem que a
proteção divina existe e segue um percurso temático em que temas
psicológicos, sentimentos como ansiedade, solidão, desamparo que
ocorrem, quando o sujeito não tem fé nem esperança; e a não proteção,
não benção, não companhia, quando tem a sabedoria do caminho
ao lado do divino; e confiança, esperança, coragem, força quando
em companhia de seu deus, mostrando claramente que o salmista,
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A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
já em estado de consciência do poder divino, reduz sua ansiedade e
sentimentos negativos afins para reafirmar sua coragem, esperança e
confiança, pois está em companhia e proteção.
Grifamos, nos textos utilizados para apoio intertextual, como
a temática da proteção na vida presente, quando o crente está em
conjunção com o poder divino, foi tratada:
• Em Malaquias 3:11: E por causa de vós repreenderei o devorador,
e ele não destruirá os frutos da vossa terra; e a vossa vide no
campo não será estéril, diz o SENHOR dos Exércitos.
• Em Malaquias 3:17: E eles serão meus, diz o SENHOR dos
Exércitos; naquele dia serão para mim jóias; poupá-los-ei, como
um homem poupa a seu filho, que o serve.
• Em João 16: 2: Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a
hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um
serviço a Deus.
• Em João 16: 23 e 24: E naquele dia nada me perguntareis. Na
verdade, na verdade vos digo que tudo quanto pedirdes a
meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar. Até agora nada
pedistes em meu nome; pedi, e recebereis, para que o vosso
gozo se cumpra.
• Em João 16: 33: Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais
paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu
venci o mundo.
• Em Romanos 5: 2 a 5: Pelo qual também temos entrada pela
fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos
na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas
também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a
tribulação produz a paciência, E a paciência a experiência, e
a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão,
porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações
pelo Espírito Santo que nos foi dado.
• Em Romanos 5: 9: Logo muito mais agora, tendo sido justificados
pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
• Em Romanos 5: 11: E não somente isto, mas também nos
gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual
agora alcançamos a reconciliação.
Como a sintaxe do discurso estuda as marcas da enunciação no
enunciado, verificamos os três procedimentos de discursivização: a
actorialização, a espacialização e a temporalização.
a) A actorialização: em relação às imagens de autor e leitor,
respectivamente enunciador e enunciatário, construídas pelo texto,
percebemos que o Salmo 23 é todo escrito com o eu do salmista,
tendo a enunciação toda instaurada pelo salmista que está em “euaqui-agora” (FIORIN, 2006, p. 56). O tu, ou seja, a pessoa a quem
o eu se dirige, entendemos que seja ele próprio, já que essa oração
existe como afirmação de sua crença em seu deus, e na proteção
que recebe por estar em sua companhia. Assim, eu e tu, os actantes
da enunciação, participantes da ação enunciativa são idênticos, mas
em papéis diferenciados. Ambos constituem o sujeito da enunciação,
sendo que o eu produz o enunciado, e o tu é o filtro que “é levado em
consideração pelo eu na construção do enunciado” (ibid, p. 56).
b) A espacialização: o aqui é o espaço em que o eu inicia a ordenação
de seu espaço, não são as imagens do campo verde, ou das provações.
c) A temporalização: que, junto ao agora, marca espacialidade e
temporalidade do salmo no momento da construção da enunciação.
Ainda estudando a sintaxe do discurso, Fiorin (ibid, p. 57) sugere
a análise de dois aspectos, que se confundem, pois “as diferentes
projeções da enunciação no enunciado visam, em última instância,
a levar o enunciatário a aceitar o que está sendo comunicado” pelas
projeções da instância da enunciação no enunciado “Se a enunciação
se define a partir de um eu-aqui-agora, ela instaura o discursoenunciado, projetando para fora de si os atores do discurso, bem
como suas coordenadas espaço-temporais.” Para tanto, faz uso do
mecanismo de debreagem, que Greimas e Courtés (2008, p. 111)
definiram como:
[...] a operação pela qual a instância da enunciação disjunge e projeta
fora de si, no ato de linguagem, e com vistas à manifestação, certos
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
termos ligados a sua estrutura de base, para assim constituir os elementos
que servem de fundação ao enunciado-discurso.
A debreagem é o mecanismo em que se projeta no enunciado quer
as pessoas (eu/tu), o tempo (agora), chamada de debreagem enunciativa,
e o espaço (aqui) da enunciação; quer a pessoa (ele), o tempo (então)
e o espaço (alhures) do enunciado, chamada de debreagem enunciva.
Encontramos no Salmo 23, a debreagem de eu-aqui-agora, ou
seja, enunciativa, instalando no enunciado os actantes enunciativos
(eu e tu do salmista sujeito e objeto), já mencionados, e os tempos
enunciativos (presente: “é... faz... leva... refrigera... guia... estás...
consolam... preparas... unges... transborda”, e futuro do presente:
faltará... temerei... seguirão... habitarei).
Nos exemplos citados de tempos verbais utilizados pelo salmista,
percebemos a mudança de ele para vós, quando inicia o texto fala de
seu deus como ele que é, faz, leva, regrigera e guia: em seguida, muda
para uma conversa diretamente com ele, momento em que sente sua
presença pessoal, concretude de conjunção com a proteção em que o
vós estás, preparas, unges.
Analisando os verbos no futuro do presente, encontramos uma
bela construção de sentido realizada pelo salmista que, antes em
disjunção com seu deus, quando pressupõe a anterior falta de tudo, e,
ao acreditar e afirmar sua fé passa para um estado de plenitude e nãofalta. Quando o encontra e percebe sua necessidade, usa a primeira
pessoa “temerei”, pois em estado de presença do deus, mas não
fazendo parte dele, usa a terceira pessoa do plural, “seguirão”, para
plurificar deus, como sendo bondade e misericórdia, e, em conjunção
com a proteção, volta à primeira pessoa em “habitarei”.
Percebemos a debreagem temporal em que o futuro é consequência
do presente para o fiel; suas ações no presente refletirão sua vida eterna
junto a deus, recebendo-o como seu senhor e salvador, que leva ao
futuro promissor, mesmo que no presente ocorram momentos de
medo, locais sombrios e existência de adversários.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
Utilizando o esquema de Fiorin (2006, p. 59), listamos os verbos
existentes no salmo, apresentando a /concomitância/: versus /nãoconcomitância/ relacionada à isotopia, sugerida para análise deste
trabalho, da /proteção/ versus /desamparo/:
Figura 2: Debreagem temporal
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Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
No quadro proposto por Fiorin (2006, p.59), ele sugeriu a
terminologia de pretérito perfeito 1 (sugerindo anterioridade em
relação ao agora); em nosso quadro, apresentamos o pretérito para
mostrar que o salmista faz questão de tratar sua vida no passado (sem a
presença da proteção), no presente (momento da mudança e escolha
pela proteção) e no futuro (consequências da escolha realizada), não
misturando conceitos da gramática e tempos verbais na análise da
temporalidade para a construção do sentido do texto.
No que tange à debreagem enunciativa de discurso, percebemos
que o Salmo escolhido está quase todo em primeira pessoa. O salmista
modifica seu estado modal, mas sempre falando de si próprio, mesmo
que com análise possível de ser o representante geral do fiel em busca
de proteção e da prometida salvação.
O autor, inclusive, utiliza verbos pronominais com a primeira
pessoa do singular, mostrando sua modalidade de querer, saber, mas
que, na verdade, quem o protege não é nem ele nem suas ações, e sim
seu deus (verbos pronominais: me faltará, me faz, leva-me, refrigerame, guia-me, me consolam, preparas-me, unges-me, me seguirão; uso
do possessivo também de primeira pessoa: meu pastor, minha vida).
4. Conclusão:
Uma análise do texto escolhido para apresentar o tema da
“Proteção quando em conjunção com o divino”, via teoria semiótica,
seria tão ampla que preferimos, neste estudo, indicar os pontos básicos,
os elementos que ocorreram para produzir o sentido esperado, passível
de várias interpretações, até por tratar-se de um texto religioso utilizado
como base teológica para diversas denominações religiosas.
Mas como a semiótica não permite a parcialidade das escolhas
doutrinárias, e nos traz a possibilidade de uma análise imparcial, baseada
na construção linguística do sentido, percebemos que o salmista marca
todo seu texto não estar hesitante quanto à sua fé e à promessa de
proteção e consequente salvação de sua alma (exemplos: “nada me
faltará”; uso do subjuntivo “ainda que eu andasse”, propondo a outra
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Suzana Alice Marcelino Cardoso [105-124]
característica desse texto que é deixar implícita a possibilidade de nãoproteção, mas a certeza da benção divina em “certamente”; na figura
de “verdes pastos”, “mansamente”, “águas tranquilas”, da “justiça”), e
o uso do tratamento do seu deus no início do texto por “ele” e, após
sagrar sua necessidade de estar em proteção e estar em conjunção tão
íntima com seu deus, passa a chamá-lo de “tu”.
Assim, nos detemos no estudo dos três níveis de análise, o
fundamental, o narrativo e o discursivo, sugeridos por A. J. Greimas,
que tecem as redes de “elementos simples que seguem um percurso
complexo, encontrando no seu caminho tanto constrangimentos a que
deve submeter-se como escolhas que é livre de operar”.
A religião, em oposição ao ateísmo, normalmente apresenta
a busca de uma vida pautada em princípios doutrinários, que
estabelecem a paz e comunhão entre os seres humanos, como forma
de alcançar a vida eterna. Algumas religiões salientam a necessidade
de dor, provações e muita disposição para o sacrifício; para outras, por
entenderem o homem como imperfeito, apenas imagem e semelhança
do deus em que creem, não o próprio deus, o fato de estarem em
comunhão acreditando na existência divina e pautando sua vida na
busca da comunhão já garante a vida eterna; e a Bíblia aponta, em
diversas passagens, que tribulações podem e vão ocorrer, assim como
tentações, manipulações, provas da competência, mas cabe ao fiel
manter-se forte e corajoso, esperançoso que o deus de sua crença será
a fortaleza e apoio no presente, a “Proteção” possível e vivificadora,
como nos propusemos a apontar neste trabalho.
Referências
A BÍBLIA SAGRADA - Edição Almeida Corrigida e Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana
do Brasil, 1995.
A BÍBLIA SAGRADA. Trad. Pe. Matos Soares. São Paulo : Edições Paulinas, 1980.
COURTÉS, J. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra-Portugal:
Livraria Almedina, 1979.
120
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A promessa divina para a vida presente. A promessa bíblica de proteção [105-124]
CHABROL, C. (apres.) Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix, Ed. da
Universidade de São Paulo, 1977.
CHABROL, C. Semiótica narrativa dos textos bíblicos. Rio de Janeiro: Forense
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FIORIN, J.L., Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006.
GREIMAS, A. J., As aquisições e os projectos – Prefácio de A. J. Greimas. In: COURTÉS,
J. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra-Portugal: Livraria Almedina,
1979.
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HALLEY, H.H., Manual Bíblico – um comentário Abreviado da Bíblia. São Paulo:
Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1970.
MALANGA, E. B. Por uma semiologia bíblica. Arquivo Maaravi: Revista Digital de
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www.ufmg.br/nej/maaravi/artigoelianamalanga-torah.html - Acesso em: 02 de agosto
de 2010.
RAMOS, K. A. H. P. Análise semiótica da narrativa bíblica “A prova de Abraão”.
Assis: Faculdade de Ciências e Letras – UNESP, 2004. Tese de doutoramento.
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
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Camargo Guarnieri e sua linguagem musical [125-146]
Camargo Guarnieri e sua linguagem musical:
apropriações pessoais da estética nacionalista
proposta por de Mário de Andrade
Camargo Guarnieri and his musical language:
personal appropriation of the nationalist
aesthetic proposed by Mário de Andrade
Marcelo Fernandes Pereira
Doutor em Música pela Universidade de São Paulo.
Violonista e professor do Curso de Música do Centro de Ciências Humanas e
Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Campo Grande – MS.
[email protected]
Edelton Gloeden
Violonista e professor do Programa de Pós-Graduação em Música da
Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo
São Paulo - SP
[email protected]
Resumo: Este artigo propõe um breve relato sobre a formação técnicocomposicional de Camargo Guarnieri (1907 – 1993), de alguns aspectos
centrais de sua produção e de seus princípios estéticos vinculados ao
modernismo brasileiro e influenciados pelo nacionalismo de Mário de
Andrade. Nossa metodologia está centrada no estudo da bibliografia
referencial sobre o assunto e lança mão do resultado de análises de obras
características da produção do compositor.
Palavras-chave: Nacionalismo. Música erudita. Estética. Linguagem.
Abstract: This paper presents a brief account about the compositional
technic of Camargo Guarnieri (1907 - 1993), some central aspects of his
production and his aesthetic principles linked to Brazilian modernism
and nationalism which were influenced by Mário de Andrade.”Our
Papéis, Campo Grande, MS, v.15, n.29, jan./jun. 2011
123
Marcelo Fernandes Pereira / Edelton Gloeden [125-146]
methodology is centered on the study of the referencial literature on
this subject and makes use of the results of analyzes about characteristic
works of the composer.
Keywords: Nationalism, Classical music, Aesthetics, Language.
1 A formação técnico-musical de Camargo Guarnieri
O primeiro passo para entendermos a produção guarnieriana em
seus aspectos técnicos e estéticos é considerarmos sua formação. Sua
infância em Tietê – cidade do interior paulista - e sua juventude na
capital do Estado ocorreram justamente em período concomitante ao
movimento de afirmação/expansão da música de seresta e dos gêneros rurais nos centros urbanos. Esse fato se reflete dentro da produção
do autor, sobretudo em suas obras não orquestrais – de câmara e
para instrumentos solistas – nas quais o caráter intimista e seresteiro é
encontrado amiúde. A relação entre a seresta e esse caráter intimista,
característico da obra do compositor, é notada em afirmações como:
“[Guarnieri] é sempre substancioso, em termos de expressão recôndita e penetrada da mágoa de nossos cantos populares. Essa dolência dá
maior apreço à obra porque, na autenticidade da inspiração do autor,
a sentimos bem nossa” (FRANÇA, 2001, p. 438); ou ainda, tratando
das valsas para piano solo: “apesar do rebuscamento hábil e requintado do contraponto, o caráter seresteiro é sentido no bordejo dos
violões [...], no contracanto da flauta [...] e na emotividade das frases”
(MENDONÇA, 2001, p. 418).
Devemos considerar também sua formação pianística, com Ernani Braga (1888 - 1948) e Antonio Leal de Sá Pereira (1888 - 1966), e
seu trabalho como pianista junto a casas de venda de partituras, que,
segundo Verhaalen, lhe rendeu familiaridade com o repertório do piano erudito: “essa intimidade com a música de Bach, Chopin, Mozart
e outros (...) foi de inestimável valor para o músico naquela época de
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Camargo Guarnieri e sua linguagem musical [125-146]
sua vida” (2001, p. 20). A essa familiaridade com um repertório erudito
tradicional, soma-se sua formação técnica-composicional, que se deu
pelas mãos de dois mestres europeus: Lamberto Baldi (1885 – 1979) e
Charles Koechlin (1867 – 1950).
Baldi chegou a São Paulo em 1926, e atuou como regente até
1931, ano em que se radicou em Montevidéu para assumir a então
prestigiosa Orquestra do S.O.D.R.E. - Servicio Oficial de Difusión Radio
Eléctrica. Foi aluno de Ildebrando Pizzetti (1880 - 1968) - um membro da
geração de 18801, à qual pertenceu Respighi (1879 - 1936) -, o que nos
faz intuir sua preferência pela polifonia e pela busca de uma expressão
composicional neoclássica. André Egg (2010, p. 56) afirma que “Todos
os testemunhos a respeito de Baldi são que ele era um músico bastante
atualizado, conhecedor das principais obras modernas, especialmente as
do modernismo francês e italiano, as quais introduziu na programação
de concertos em São Paulo”. Nas palavras do próprio Guarnieri:
Baldi era uma pessoa incrível, homem de grande inteligência. Sua maneira
de ensinar era integrada: Eu estudava harmonia, contraponto, fuga e
orquestração simultaneamente, consultando a literatura musical, mas minha
composição era livre. Ele jamais colocou obstáculos em meu caminho,
apenas revia uma passagem e dizia: “não gosto disso, corrija!”. Uma das
primeiras coisas que fez foi me colocar na orquestra, onde eu tocava todos
os instrumentos de teclado – piano, xilofone, celesta... Eu passava o dia todo
estudando, tocando na orquestra e à noite jantava com ele. As aulas eram
depois da refeição. Éramos oito alunos e todos estudávamos desse modo
(GUARNIERI apud VERHAALEN, 2001, p. 22, grifo nosso).
Guarnieri sempre prezou muito a instrução que recebeu do mestre italiano, a ponto de declarar: “do ponto de vista da técnica de
composição, devo a Lamberto Baldi os ensinamentos mais eficazes e
que constituem os princípios básicos que ainda hoje adoto” (GUARNIERI, 2001, p.15). Já seus estudos com Koechlin ocorreram mais de
uma década depois (1938/39), em Paris, quando o compositor, então
A geração de Pizzetti e Respighi é chamada na Itália geração de 1880 e se caracteriza
pelo interesse dos compositores em elementos da música antiga italiana e também por
uma produção na qual a ópera não representa o carro chefe.
1
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com 31 anos e agraciado com uma bolsa de estudos do governo paulistano, já possuía algum reconhecimento dentro do cenário musical
brasileiro.2
Os estudos com o mestre francês se iniciaram com os rudimentos
da harmonia e contraponto – a pedido do próprio Guarnieri (TONI,
2007, p. 132). Mesmo após Guarnieri ter apresentado sua música nos
palcos parisienses e de sua relação com o professor francês ter se estreitado, “as aulas seguiram o mesmo padrão anterior: o professor oferecia
os temas, o aluno trabalhava-os em corais ou fugas”. (2007, p. 116). Assim, podemos entender que seu trabalho junto a Koechlin foi eminentemente técnico-musical e abordou aspectos clássicos da composição,
deixando de lado (ou, quiçá, em segundo plano) problemas como os
relativos à estética contemporânea. Por outro lado, entendemos que o
convívio com a efervescência da vida musical parisiense terminou por
fomentar os questionamentos do compositor acerca de questões estéticas, como podemos observar na correspondência de Guarnieri escrita
nesse período (RODRIGUES, 2001, p.327 - 331).
Assim, no fim da década de 1930, podemos afirmar que
Guarnieri encerrara a etapa de estudante e como resultado dessa etapa
observamos a formação de uma sólida técnica clássica, que primava por
questões como forma, desenvolvimento melódico e, sobretudo, escrita
contrapontística. Não podemos dizer que a opção por essa formação
técnica tenha sido apenas fruto das circunstâncias, assim como não
podemos afirmar que o compositor não conhecia outro universo
Em artigo que trata da relação de Guarnieri com o seu mestre francês, a musicóloga
Flávia Toni ( 2007, p. 116) assim o descreve: Charles Koechlin (1867/1950), membro da
burguesia da Alsácia, nasceu em Paris, onde seguiu a carreira militar abraçando tardiamente a música em 1889. No Conservatório, além de estudar harmonia com Taudou,
teve Massenet, Fauré e Gédalge como professores. Aos 42 anos, em 1909, profissional
respeitado integrou o comitê fundador da Sociedade Musical Independente, grupo que
unia forças para aclamar a música de Debussy, bem como a criação livre e que não mais
encontrava abrigo junto à já antiga Sociedade Nacional.Conhecido pela defesa incondicional da liberdade e pelo amor à natureza, Koechlin sempre foi tido como intelectual
respeitado, apesar de sua aparência um tanto excêntrica. Professor particular, conferencista e crítico musical, jamais lecionou no Conservatório onde se graduara, mas foi autor
de sólida bibliografia para jovens músicos.
2
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estético, diferente do qual efetuou a formação de seu metier. O próprio
Guarnieri assinalou por diversas vezes que, no início dos anos de 1930,
estudara a música de Hindemith (1895 – 1963); além disso, uma vez
em Paris, Guarnieri teve contato com diversas expressões da vanguarda.
Dessa forma, o que se pode afirmar é que a opção pela construção
de um metier composicional com certa continuidade em relação ao
repertório clássico-romântico - que permitia a realização de obras
menos radicais, em termos de renovação da linguagem - decorreu,
em muito, das convicções e anseios pessoais do compositor. Por outro
lado, vemos que essa tendência pessoal foi potencializada pela relação
do compositor com Mário de Andrade: o esteta foi, dentre seus pares
modernistas, o que maior formação musical possuía e, por isso, foi o
teórico modernista que mais estudou e escreveu sobre música.
2 Camargo Guarnieri e Mário de Andrade
É difícil estabelecermos um direcionamento monofônico nos escritos sobre música de Mário de Andrade; contudo, considerações sobre alguns dos trabalhos mais importantes são pertinentes, a título de
relacionamento com o objeto deste artigo. A primeira publicação foi o
Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, seguida de “Música, doce
música” - uma coletânea de textos publicados em periódicos por Andrade em seu trabalho como crítico musical. Em 1939, o autor publica
o ensaio Evolução social da música no Brasil (1939) e, como derradeiro
trabalho musical, temos O Banquete (1945). Se os escritos iniciais apresentam a tese da formação de uma música erudita como emblema do
nacional e conclamam os compositores a formá-la, no final dos anos
trinta, o escritor apresenta um direcionamento distinto:
Cada vez mais consciente da necessidade de uma transformação política
para a evolução da situação social do país, sentindo-se estéril após uma
experiência mal fadada na política, e vendo os desumanos caminhos da
ordem mundial, Mário abandona a fé na democracia burguesa e se envolve
cada vez mais com os ideais políticos socialistas. No amadurecimento
dessas idéias, ele recoloca, sem o mesmo fervor militante, os conceitos
apresentados no Ensaio sobre a música brasileira. Ao final do ensaio
Evolução social da música no Brasil, Mário resume o panorama exposto
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cuidadosamente no decorrer do ensaio, dividindo a música brasileira
nas fases Universal (“dissolvida em religião”), Internacionalista (“com a
descoberta da profanidade, o desenvolvimento da técnica e a riqueza
agrícola”), Nacionalista (“pela aquisição de uma consciência de si mesma”)
e Cultural (“livremente estética, e sempre se entendendo que não pode
haver cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se
realiza”) (ANDRADE, apud DE BONIS, 2006, p. 121). E a fase nacionalista
pela qual ele passa recebe agora definição mais cuidadosa. É um momento
dramático, em que o compositor tem de lutar contra “as suas próprias
tradições eruditas, hábitos adquiridos” e se esforçar para “não se afogar nas
condições econômico-sociais do país”. (DE BONIS, 2006, p. 121).
Esse período final da produção de Mário de Andrade, no qual suas
idéias flertam com o socialismo, provavelmente influenciou Guarnieri, em termos de discurso – e não propriamente em termos musicais
-, levando o compositor a predicar a feitura de uma arte socialmente
utilitária, na qual cada compositor “cumpre suas funções diante do seu
povo e das novas gerações de criadores da arte musical”3. (GUARNIERI
apud SILVA, 2001, p. 143). Esse discurso é muitas vezes confundido
com sua obra, que acaba sendo equivocadamente considerada como
uma versão brasileira de realismo socialista.
Voltemo-nos agora ao Ensaio sobre a Música Brasileira, por ser a
publicação de Mário de Andrade que maior influência teve sobre Guarnieri: “no Brasil, o problema do nacionalismo consciente tem a sua base
no livro do meu inesquecível amigo Mário de Andrade, Ensaio sobre
a música brasileira, que todos conhecemos, onde ele, com aquela sua
característica premonição, estabelece três fases.” (GUARNIERI apud
SILVA, 2001, p. 389). O texto foi também utilizado pelo compositor
durante décadas em suas atividades didáticas, como iniciação à estética
nacionalista, e, por isso, consiste na publicação que maior repercussão
teve sobre os compositores nacionalistas ligados a Guarnieri 4.
Outra referência socialista que influenciou o discurso do compositor foi seu irmão,
o poeta Rossini Camargo Guarnieri – artista engajado e atuante na cena paulistana de
meados do século XX.
4
Em entrevista concedida especialmente para elaboração da tese de doutoramento
do autor, os compositores Sérgio Vasconcelos- Correa e Osvaldo Lacerda apontaram a
importância do Ensaio para a sua formação estética. Já Olivier Toni aponta que o Ensaio
3
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Camargo Guarnieri e sua linguagem musical [125-146]
Dentre as idéias encontradas no Ensaio, notamos, como tema
principal, a formação de uma tradição de música de concerto genuinamente brasileira a partir da exploração consciente do material popular.
Não se tratava de uma proposta puramente estética, antes, de uma
proposta ideológica, pois essa tradição, uma vez estabelecida, colocaria
a cultura brasileira ao lado das culturas já estabelecidas no campo da
música5. No dizer de Ana Lúcia Kobayashi (2009, p. 38):
“[...] o projeto de Mário de Andrade consistia na busca da identidade
nacional a ser obtida por meio de pesquisa de caráter científico das
tradições populares. Com o estudo dos processos de criação da cultura
popular, o compositor, utilizando-se das técnicas da música culta, faria
a transposição dos elementos folclóricos para a música erudita. O
compositor seria o responsável pelo desenvolvimento da arte de caráter
nacional através da música culta visando à equiparação com a produção
européia, tida como símbolo de desenvolvimento”.
E para defender seu projeto, Andrade se utiliza de uma retórica
bastante “contundente”:
O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um
inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta. [...]. Pois é com a
observação inteligente do populário e aproveitamento dele que a música
artística se desenvolverá. Mas o artista que se mete num trabalho desses
carece alargar as idéias estéticas senão a obra dele será ineficaz ou até
prejudicial. (ANDRADE, 1972, p.4 e 7).
Como forma de estabelecer critérios para coleta do material popular que serviria de matéria prima para os compositores eruditos, encontramos no Ensaio, a preocupação do esteta em estabelecer um conceito
sobre o “nacional em música” que abrangesse as mais diversas manifestações populares do Brasil, e não só os estereótipos exóticos da música
não foi tão relevante para sua formação, contudo reitera a utilização deste como uma
espécie de introdução ao nacionalismo, utilizada por seu professor Camargo Guarnieri.
(DE BONIS, 2006).
5
As “culturas estabelecias” seriam, para Mário de Andrade, a italiana, a alemã e a
francesa.
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indígena e africana 6. Sobre essa aversão ao caráter exótico, Andrade
(1972, p. 1-8) ainda as-severa:
[...] no caso de Vila-Lobos, por exemplo, é fácil enxergar o coeficiente
guassú com que o exotismo concorreu para o sucesso atual do artista.
[...] Mas bastou que fizesse uma obra extravagando bem do continuado
para conseguir o aplauso. [p.1]. [...] Se a gente aceita como um brasileiro
só o excessivo característico cai num exotismo que é exótico até para
nós. O que faz a riqueza das principais escolas européias é justamente
um carácter nacional incontestável mas na maioria dos casos indefinível
porém. Todo o caráter excessivo e que por ser excessivo é objetivo e
exterior em vez de psicológico, é perigoso. Fatiga e se torna facilmente
banal. É uma pobreza. [p. 1 e 8].
Como podemos intuir da citação acima, a proposta de nacionalismo elaborada por Andrade - que doravante conceituaremos marioandradiano7 - é bem mais sóbria que o modernismo visceral de Villa-Lobos
– então modelo de nacionalismo. Essa proposta não buscava apenas impressionar, nem poderia flertar com a música ligeira e, sobretudo, não
poderia cair no exótico, pois se tratava da representação do nacional. Ela
demandava compositores com boa formação técnica, que trabalhassem
de forma mais intelectual e reflexiva e que fossem criteriosos na escolha
dos materiais empregados. Por isso, aos olhos de Andrade, nos anos vinte
do século passado, faltavam compositores para realizar esse projeto. Por
outro lado, olhando em retrospecto para a produção de Guarnieri, podemos dizer que o compositor o tenha realizado.
“Se escutam um batuque brabo muito que bem, estão gozando, porém se é modinha sem síncopa ou certas efusões líricas dos tanguinhos de Marcelo Tupinambá, isso
é música italiana! Falam de cara enjoada. E os que são sabidos se metem criticando e
aconselhando, o que é perigo vasto. Numa toada, num acalanto, num abôio desentocam
a cada passo frases francesas, russas, escandinavas. Às vezes especificam que é Rossini,
que é Boris. Ora, o quê que tem a Música Brasileira com isso! Se Milk parece com Milch,
as palavras deixam de ser uma inglesa outra alemã?” (ANDRADE, 1972, p. 3) - Mais
adiante, Andrade inclui a música indígena no panteão de exotismos brasileiros apreciados pelos europeus.
7
Marioandradiano: referente a Mário de Andrade. Esse vocábulo será utilizado em todo
o texto como adjetivo relacionado ao esteta paulista, inclusive com inflexão de gênero
(marioandradiana).
6
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Mesmo assim - mesmo tendo realmente Mário de Andrade influenciado a produção de Guarnieri - observamos que essa influência
foi supervalorizada pela historiografia que trata do compositor (EGG
2010, p.22) e não pretendemos repetir aqui esta supervalorização.
Apenas encontramos, na personalidade (e posteriormente, na técnica)
do jovem Guarnieri, elementos potenciais para realização do projeto
proposto por Andrade - elementos esses que no decorrer da carreira
do compositor, se materializaram em uma produção ligada à estética
marioandradiana. Em primeiro lugar, temos a aversão ao exotismo expresso nas obras de Guarnieri:
Durante a exposição [do primeiro movimento, do primeiro Concerto
nº. 1 para violino e orquestra ], percebemos a aplicação de um dos
princípios composicionais ao qual Guarnieri sempre foi fiel, que é a
recusa consciente de qualquer exotismo. Por esta razão, evita o excesso
de qualquer um dos componentes do discurso musical, procurando
estabelecer o equilíbrio entre eles. (...) Precisa ainda ser dito que se trata
do primeiro movimento de um concerto para violino, mas mesmo em
seus finali, nos quais predominam os ritmos de danças, o uso do reforço
rítmico característico da percussão não os transforma em exóticos
produtos musicais à espera da curiosidade européia. (RODRIGUES,
2001, p. 482, grifo nosso).
Comparando a aversão ao exotismo apregoada por Mário de Andrade no Ensaio à produção de Guarnieri, encontramos tal compatibilidade, que parece ter o compositor seguido dogmaticamente as indicações do esteta; contudo, um olhar mais aprofundado nos revela que
essa aversão ao exótico evidenciada por Guarnieri é muito mais uma
característica pessoal do que fruto de sua educação estética marioandradiana. Vejamos como Rodrigues coloca em perspectiva o assunto,
analisando a correspondência entre Mário de Andrade e Guarnieri:
Um dos pontos em que Mário mais insistiu, presente em várias críticas
anteriores, encontra-se claramente definido em sua primeira carta:
“você, de sua própria essência psicológica, já é um escritor difícil,
um compositor sem grandes faculdades de amabilidade, que agradem
a toda gente.” Guarnieri nunca esqueceu essa afirmação de Mário de
Andrade e dela até parecia orgulhar-se. Tomou-a como uma verdadeira
definição de sua personalidade musical, usando-a sempre para explicar
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suas dificuldades em tornar-se um compositor de maior popularidade.
Ao final de sua vida, a afirmação de Mário já havia adquirido um
significado de profecia que se cumprira. Foi reprimenda, é verdade,
mas o compositor deu-lhe um peso relativo porque, do outro lado da
questão, poderia correr o risco de banalidade e Guarnieri nunca admitiu
correr esse risco, mesmo que trouxesse maior reconhecimento popular.
O próprio Mário foi cuidadoso ao tratar o problema: você tem horror
do agradável, por causa desse perigo do agradável que é se confundir
com o banal. Está muito bem, esse horror, antes o medo do agradável
é mais que justo, e nobilita o artista. Mas o diabo é que o horror do
agradável está se tornando preconceito, e se transformando na mania
do desagradável [...]. Guarnieri operou várias mudanças em sua música,
ao longo da sua vida, mas não transgrediu com a banalidade. Preferiu
aceitar a condição de compositor difícil, como se fosse uma fatalidade,
decorrente da natureza de sua própria linguagem musical, à qual sempre
foi fiel. (RODRIGUES, 2001, p. 323, grifo nosso).
No texto de Rodrigues, encontramos ainda outra ponderação de
Mário de Andrade sobre ausência de efeitos na obra guarnieriana – que
entendemos decorrer da aversão ao banal e ao belo comum que o
compositor alimentava:
Você neste ponto é um antifrancês, é um germânico severíssimo e puro como
Schoenberg. Você não procura desenvolver a sua inteligência do efeito,
pelo lado mau que ela tem [...]. Durante toda a vida, Guarnieri recusouse permitir que os efeitos instrumentais ocupassem lugar de destaque
em sua música, reservando-lhes um papel secundário, subordinado ao
domínio das prioridades formais. Ao mesmo tempo, não permaneceu
refratário aos conselhos de Mário de Andrade, buscando sempre experimentar
novos efeitos com discrição. Para conciliar essas posições aparentemente
contraditórias, a solução encontrada foi a de dar funções formais aos efeitos
instrumentais. Por exemplo, um determinado efeito pode ser empregado ao
mesmo tempo como figura de acompanhamento e ambientação de tema,
caracterizando e limitando o espaço que lhe é reservado na estrutura da obra,
que, em conseqüência, torna-se formalmente mais clara. (RODRIGUES,
2001, p. 325-326, grifo nosso).
Como vemos, aversão ao exotismo se manifestava na busca de
Guarnieri pela economia de material e na não utilização do estilo
rapsódico – elementos esses comuns às obras de caráter semiculto e
encontrados com freqüência em alguns nacionalismos. Dessa forma,
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Camargo Guarnieri e sua linguagem musical [125-146]
o desenvolvimento e aproveitamento de cada motivo se torna capital
para a realização de seu projeto composicional de cunho nacionalista,
resultando em uma arte de pouco apelo populista – a despeito de sua
intenção nacionalista -, na qual a economia de meios e a concisão são
fatores primordiais, como vemos neste trecho de análise do primeiro
movimento da Terceira Sinfonia de Guarnieri:
A célula rítmica do primeiro tema continua presente durante a exposição
do segundo, contrapontando-o, como se fosse uma passarada. Não
existe porém, nenhum exotismo, nem descritivismo vulgar, mas uma
reminiscência poética do inconsciente do autor. O desenvolvimento
temático é seguido pela reexposição, apenas do primeiro tema. [...].
(TACUCHIAN, 2001, p. 452, grifo nosso).
Em uma nota de rodapé mais desenvolvida do Ensaio, Mário de
Andrade expõe uma teoria a respeito da formação da tradição de música de concerto em países como os do continente Americano. Nessa
teoria, o esteta divide o processo que engendra a formação dessas tradições em distintos estágios, sendo que o estágio mais desenvolvido
não apresenta citações de melodias folclóricas em obras de concerto. E
Andrade conclui (1972, p.14):
Nos países em que a cultura aparece de emprestado que nem os
americanos, tanto os indivíduos como a Arte nacionalizada, têm de
passar por três fases: 1a fase da tese nacional; 2a fase do sentimento
nacional; 3a fase da inconsciência nacional. Só nesta última, a Arte culta
e o indivíduo culto sentem a sinceridade do hábito e a sinceridade da
convicção coincidirem. Não é nosso caso ainda.
Assim, a 3ª fase, seria a desejável, pois demonstraria maturidade composicional pela ausência de citações folclóricas e incorporação do ethos
nacional de forma inconsciente pelo compositor. Justamente observamos
que Guarnieri buscava se inserir na 3ª fase do nacionalismo, pois notamos a preocupação do compositor em relação à incorporação do folclore
em sua linguagem pessoal, sem que se tornasse um elemento estranho
nas composições: “O elemento folclórico deve estar tão integrado na obra
quanto na sensibilidade do compositor [...]”. (GUARNIERI, 2001, p. 15).
Tacuchian, investigando essa questão nas sinfonias de Guarnieri, escreve:
A outra indagação o compositor me responde: “Minha temática é sempre
a procura da quintessência da alma brasileira”. Esta brasilidade deve ser
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compreendida não pelo uso de clichês ou de elementos folclóricos,
mas pela recriação a partir de uma realidade brasileira. “Hoje não tem
mais cabimento o conceito de música nacionalista, mas sim o de música
nacional brasileira”. Essa nuança de expressão do compositor traduz a
essencialidade nacional que ele persegue, evitando cair no regionalismo.
Raramente Guarnieri emprega em sua obra um tema tradicional. (2001,
p. 448, grifo nosso).
E Caldeira Filho (2001, p. 17) resume:
Todos os aspectos nacionalistas por Guarnieri percebidos não geraram
o poemático, nem o descritivo, nem o anedótico, nem o étnico, nem o
documentário, como se vê dos gêneros a que principalmente se dedicou.
Todas essas coisas não estão ausentes em sua obra, mas nela funcionam
como desencadeadoras da criação, e, em conseqüência, da construção
gradativa de uma linguística própria, pessoal.
O próprio Mário de Andrade, em crítica para o jornal Diário de
São Paulo, escreve sobre Guarnieri em momento bem prematuro da
carreira do compositor - 28/05/1935: “[...] e já é um nacionalismo de
continuação, quero dizer: que não se alimenta diretamente do populário, e apenas se apóia nele”. (ANDRADE, 1993, p. 313). Essas semelhanças entre o conteúdo do Ensaio e a produção guarnieriana continuam a ocorrer no plano técnico-composicional: segundo Andrade,
a harmonia seria um elemento impossível de ser nacionalizado, pois
cairia sempre no comum:
A harmonização européia é vaga e desgraçada. Muito menos que
raciais, certos processos de harmonização são individuais. [...] É
absurdo pretender harmonização brasileira pois que nem a Alemanha
nem a Itália nem a França com séculos de formação nacional, jamais
não tiveram isso e adotaram as quartas e quintas do órgano talvez latino
e as terças e sextas do falso bordão talvez céltico. Na infinita maioria
dos documentos musicais do nosso populário persiste o tonalismo
harmônico europeu herdado de Portugal. Nossa harmonização tem
que se sujeitar consequentemente às leis acústicas gerais e às normas
de harmonização da escala temperada. (ANDRADE, 1972, p. 18, grifo
nosso).
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Camargo Guarnieri e sua linguagem musical [125-146]
Considerando esse problema, a polifonia é indicada pelo esteta como
principal saída para que se evite o empobrecimento da obra artística:
Onde já os processos de simultaneidade sonora podem assumir maior
caracter (sic) nacional é na polifonia. [...] Nada impede por exemplo
que os processos de melodia acompanhante que os nossos violeiros
empregam sistematicamente no baixo, passe para outras vozes da
polifonia. Esse baixo se manifesta às vezes como melodia completa e
independente, apenas concordando harmoniosamente com a melodia
da vox principalis [...]. (ANDRADE, 1972, p. 19).
Contudo, o autor era bastante restritivo em sua visão do uso dos
ditames da polifonia tradicional diretamente sobre a composição musical com finalidade artística8 e, por isso, esperava soluções pessoais
para a utilização da polifonia a partir de elementos nacionais. E foi justamente no uso pessoal da escrita polifônica que Guarnieri estruturou
sua harmonia incomum e sua técnica composicional, que permitiu a
fatura de uma obra de caráter nacionalista que evitasse o óbvio, o senso
comum, os “ostinatos sincopados do baião mixolídio”... A visão musical
horizontal de Guarnieri é assinalada em sua obra sinfônica pelo compositor Ricardo Tacuchian, que em seguida cita o compositor:
[...] o conjunto da obra de Guarnieri chama muito a atenção pela diluição
da harmonia em favor da horizontalidade dialogada: Sempre fui
apaixonado por Bach. Minha música é mais polifônica que harmônica. O
que existe é um agregado de sons que me agrada. (TACUCHIAN, 2001,
p. 449, grifo nosso).
E é o próprio Guarnieri quem afirma utilizar o raciocínio polifônico em detrimento do raciocínio vertical, com finalidade da abrandar a
violência do ritmo, que em todo o caso causaria certo desequilíbrio no
discurso:
Em 1940, Guarnieri afirmava: “quanto ao problema da harmonia, a
música nacional deve ser de preferência tratada polifonicamente. A
qualidade de nossa rítmica, a sua força dinâmica, nos aconselha a
8
“Quanto aos processos já europeus de polifonização eles são muito perigosos e na
maioria das feitas descaracterizam a melodia brasileira. Ou pelo menos a revestem
muito mascaradamente. [...]. Processos desses não só não ajuntam caracter para a
obra como podem descaracterizá-la”. (ANDRADE, 1972, p. 19).
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Marcelo Fernandes Pereira / Edelton Gloeden [125-146]
evitar as harmonizações por acordes, pois esses viriam acentuar mais
violentamente ainda essa rítmica [...]. E concebida polifonicamente, a
música brasileira, pela própria exigência de elasticidade e entrelaçamento
das linhas melódicas, poderá disfarçar a violência dos seus ritmos sem
que estes deixem de permanecer como base construtiva e de fundo
dinâmico da criação. (GROSSI, 2004, p. 30).
Contudo, se a harmonia ocorre pelo desenvolvimento das linhas
contrapontísticas, encontramos, por outro lado, um plano harmônico
que não deixa dúvidas de que, para Guarnieri, a harmonia, mesmo
diluída em linhas contrapontísticas, era um elemento controlado e preciso em seu discurso. Assim, o uso da tonalidade fugidia ou difusa (ver
citação abaixo), encontrado nas obras em questão, é uma característica
de sua maneira de expandir a linguagem sem abandonar elementos
que dessem forma à sua necessidade expressiva. Essa harmonia, pela
sobrecarga cromática, chegou a ser chamada de atonal, no início da
carreira de Guarnieri, contudo hoje, com certo distanciamento, não é
possível considerar como atonais obras nas quais o estabelecimento e
confirmação tonais são evidentes e planejados. O Ponteio para violão
(1944), por exemplo, é uma peça em lá menor, contudo com um desenvolvimento assumidamente atonal na seção central (PEREIRA, 2011.
p. 60 à 62). Rodrigues aborda essa questão:
Se atonalidade é um conceito controverso ainda hoje, na época em
que Mário escreveu suas cartas, as discussões sobre o assunto eram
acirradas, não só quanto ao conceito que a palavra representava, como
também sobre o emprego da própria palavra ao representá-lo. Alguns
dos maiores teóricos do século opinaram sobre o assunto, entre eles
Hindemith: “[...] há dois tipos de música que embora não possam ser
chamadas “atonal” através da acumulação dos meios de expressão
harmônicos, sobrecarregam o ouvido do ouvinte de tal maneira que
ele se torne inapto para seguí-las completamente. Um desses tipos,
embora parta de premissas diatônicas, opera com o material da escala
cromática e concentra em pouco espaço, uma multiplicidade de relações
de dominante, alterações e mudanças enarmônicas, que a tonalidade é
rompida em grupos harmônicos de pequena duração”. Muitos trechos
de obras de Guarnieri contemporâneas da Sonata se enquadram nessa
definição. São obras nas quais se percebe que o compositor não se
preocupava em evitar sistematicamente os encaminhamentos tonais,
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definindo sem rodeios, a tonalidade do princípio e do final da obra,
mas usando, ao longo do discurso, procedimentos harmônicos tais
como aqueles acima mencionados. Não se trata, rigorosamente, de
música atonal, mas no Brasil da época não só Mário de Andrade como
também a maioria dos críticos musicais denominavam-na assim, senão em
seu todo, pelo menos em certos trechos. Guarnieri preferia usar o termo
tonalidade “fugidia” ou “fugitiva” para esses casos [...]. (RODRIGUES,
2001, p. 324, grifo nosso).
Já em relação ao uso das formas ocidentais tradicionais, no Ensaio,
o esteta paulista expõe certas reservas, pois as considera superadas em
seu tempo, sendo sua proposta para a construção formal da música
pura, baseada no uso das formas corais estróficas populares encontradas nos desafios e cocos (p. 23) ou na utilização de danças populares:
Também quanto a formas corais (sic) possuímos nos reisados e demais
danças dramáticas, e nos cocos muita base de inspiração formal. Nos
cocos então as formas corais variam esplendidamente. E já que estou
imaginando em peças grandes, é fácil de evitar as formas de Sonata,
Tocata etc. muito desvirtuadas hoje em dia. [...] (ANDRADE, 1972, p.
23, grifo nosso).
É seguir o exemplo de C. Franck no “Prelúdio Coral e Fuga”. Dentro
de criações dessas, sempre conservando a liberdade individual a gente
podia obedecer à obsessão humana pela construção ternária e seguir
o conselho razoável de diversidade nas partes. “Ponteio, Acalanto e
Samba”; chimarrita, Aboio e Louvação” etc. (ANDRADE, 1972, p. 25).
E neste campo – o da forma - encontramos congruências e incongruências entre os preceitos do Ensaio e as opções técnicas de Guarnieri. Concordando com Andrade, no âmbito da pequena forma, o
compositor produziu peças ou ciclos como Ponteios, Choros, Toada
Sertaneja, Lundu, que aludem ao domínio da música rural ou novecentista brasileira. Mesmo assim, nesses casos, o título trata muito mais
do caráter do que da forma, já que estamos falando – em sua maioria
- de pequenas peças monotemáticas, em forma binária ou ternária. Já,
nas obras de maior envergadura - como a Sonata para piano (1972), os
concertos para instrumento solista e orquestra, as sinfonias ou a música de câmara - sua utilização de formas tradicionais (como a forma
de sonata ou a fuga) contraria a visão de Mário de Andrade: o esteta
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paulista entendia as formas tradicionais (como a sonata e a fuga) como
ultrapassadas, já em 1928. Entretanto, essa postura de Guarnieri - mais
ligada à tradição européia - denota a formação neoclássica do compositor, que o levou a produzir música pura e autônoma – pelo menos no
que diz respeito à forma - até o final de sua vida. A citação abaixo se
inicia com uma fala de Guarnieri, na qual o compositor se auto-intitula
brahmsiano9:
“Sou um homem brahmsiano, a forma é minha alucinação. Isto não
quer dizer que ela me prende, o contrário, uso-a a serviço de minha
imaginação e de minha expressão. O que vale na forma é seu aspecto
geral, mas dentro dela recrio sempre novas propostas.”
Esse caráter formal de Guarnieri é uma constante em toda a sua obra e em
particular nas Sete Sinfonias. Isto não impede que mesmo nestas, ele use
um coro (n° 5), faça apenas dois movimentos (n° 7) ou escreva um scherzo
no meio do segundo movimento lento (n° 3). “A forma clássica da sonata é
muito elástica. O esqueleto é que vale. Dentro dele podemos fazer o que
quisermos”, completa o mestre. (TACUCHIAN, 2001, p 447-448).
Essa preocupação formal engendra questões como desenvolvimento temático e concisão formal, que também são caras ao autor e
se colocam como solução para sua aversão ao exótico e ao rapsódico,
anteriormente observada:
A técnica do desenvolvimento é um dos mais típicos recursos do
compositor [Guarnieri, no caso]. Em suas mãos, qualquer motivo
ganha proporções inimagináveis. Em toda a obra sinfônica, seus
temas quando expostos, são imediatamente desenvolvidos. Pequenos
motivos são usados por toda a obra, mesmo quando um segundo
tema é apresentado. Às vezes, um segundo tema, embora com caráter
contrastante ao primeiro, é formado com elementos evocativos deste,
como é o caso do primeiro e do segundo temas do primeiro movimento
da Sinfonia no. 4. Esta economia no material dá à obra de Guarnieri
9
Isto quer dizer muito sobre o sinfonismo pretendido por Guarnieri, já que Brahms
(1833 – 1897) - mesmo após a difusão da técnica de forma cíclica nas sinfonias e
do surgimento de obras como a Sinfonia Fausto (1857) de Lizst, cuja estrutura formal
e texturas se apoiavam mais em idéias literárias, do que na idéia clássica de forma
autônoma – manteve preocupações clássicas em relação à forma sonata, chamando
para si a responsabilidade de continuador do sinfonismo alemão de Haydn, Mozart e,
sobretudo, Beethoven.
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uma grande unidade que, aliás, é uma das principais características de
seu estilo. A requintada capacidade de desenvolver já havia sido notada
por Mário de Andrade quando afirmou, falando de Guarnieri, que “no
Brasil há pelo menos um compositor que sabe desenvolver”. Quinze
anos mais tarde, Luís Heitor declararia: “em poucos autores brasileiros
o princípio eficaz do desenvolvimento temático – tão malsinado por
certos pioneiros da arte musical contemporânea – encontra essa
aplicação inteligente e dignificante que vamos achar na obra de
Camargo Guarnieri” (TACUCHIAN, 2001, p. 448).
A orquestração de Guarnieri apresenta ainda características ligadas à representação de sonoridades características – sempre evitando o
exótico - que foram predicadas por Mário de Andrade10. Essas características não são centrais na obra do compositor, mas podem ser constatadas em observações como: “[...] com freqüência ele confia às cordas
um acompanhamento fortemente sincopado, fazendo soar como um
imenso violão” (VERHAALEN, 2001, p. 405); ou, segundo o próprio
Mário de Andrade: “é um guizalhar de timbres como se a orquestra
fosse uma enorme viola sertaneja” (TACUCHIAN, 2001, p. 449).
Um elemento muito peculiar da produção guarnieriana é
seu intimismo, expresso especialmente na pequena forma e em
andamentos lentos. Em entrevista, o compositor Sergio Oliveira
Vasconcelos Correa, ex-aluno de Guarnieri, relatou que “[...] para se
conhecer bem Guarnieri há que se escutar os movimentos lentos”
“O sinfonismo contemporâneo, que não é de nenhuma nacionalidade, é universal, pode perfeitamente ser brasileiro também. (...) Nossos sinfonistas devem de pôr
reparo na maneira com que o povo trata os instrumentos dele e não só aplicá-la
para os mesmos instrumentos como transportá-la para outros mais viáveis sinfonicamente. Porque se o artista querendo numa obra orquestral dar um ponteio que
nem o usado pelos violeiros e tocadores de violão, puser na partitura um bandão de
cavaquinho, vinte violas e quinze violões, está claro que será muito difícil pelo menos
por enquanto encontrar mesmo nas cidades mais populosas do país, numero de instrumentistas capazes de arcar com as dificuldades eruditas da comparticipação orquestral.
(...) Mas nossos ponteios, nossos refrães (sic) instrumentais, nosso ralhar, nosso toque
rasgado da viola, os processos dos flautistas e dos violonistas seresteiros, o oficleide
que tem para nós o papel que o saxofone tem no jazz, etc. etc. dão base larga para
transposição e tratamento orquestral, de câmara ou solista.” (ANDRADE, 1972, p. 21,
grifo nosso).
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(VASCONCELOS-CORRÊA, 2010)11. Esse caráter se tornou marcante
em sua obra, especialmente pelo refinamento e pessoalidade nele
encontrados, que representam a quintessência da música brasileira
de seu tempo, recriação de formas e atmosferas populares em uma
linguagem que prima pelo equilíbrio clássico e pela riqueza polifônica.
Contudo, há outra faceta de Guarnieri que deve ser ressaltada, e
essa faceta se expressa melhor nas obras orquestrais. Nas palavras de
Verhaalen:
A obra orquestral de Camargo Guarnieri acrescenta uma dimensão
inteiramente nova ao entendimento de seu estilo. Sua concepção
contrapontística, o tratamento fragmentário, o estilo de litania do material
temático, os ostinati e a vitalidade rítmica para ele representam novas
possibilidades diante do grande número de combinações instrumentais
e das ilimitadas opções tímbricas que ampliam a trama de sua música.
(VERHAALEN 2001, p. 405, grifo nosso).
Em primeiro lugar, observamos na citação acima que Verhaalen
reafirma a preferência de Guarnieri pela técnica contrapontística já
assinalada neste trabalho. Mas, principalmente, fica patente um lado
rítmico e enérgico de sua música, encontrado com bem menos freqüência – ou talvez, que chame menos atenção - em suas obras mais
conhecidas, mas que é representativo de sua música sinfônica: “o intimismo da sétima Sinfonia se destaca [de forma incomum] no conjunto
da obra sinfônica do autor [...]”. (TACUCHIAN, 2001, p. 462) ou “os
primeiros temas dos movimentos rápidos [das sinfonias de Guarnieri]
são enérgicos e percussivos; o autor quase sempre indica uma acentuação para cada nota [...]” (TACUCHIAN, 2001, p. 449). Esse caráter
rítmico é amiúde, reforçado pela orquestração: “Com muita freqüência inicia suas obras com vigorosos uníssonos (ou oitavas) nas cordas
ou nos sopros (ibidem). E ainda: “Em muitos movimentos rápidos, os
instrumentos mais graves funcionam como se fizessem parte da seção
rítmica (sic) fornecendo um acompanhamento em ostinato, perfeito no
que tange à precisão”. (VERHAALEN, 2001, p. 406).
Entrevista concedida em 09/04/2010, na residência do Compositor, na cidade de
Guarujá, SP.
11
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Fora do âmbito sinfônico, um elemento marcante de sua obra orquestral - sobretudo a partir do início dos anos setenta – é seu atonalismo e serialismo. Lutero Rodrigues também assinala todo um período
de produção atonal do compositor como uma fase de aproximadamente dez anos, precedida já por obras de maior afastamento tonal
(RODRIGUES, 2001, p. 495-496). Já Lais de Souza Brasil assinala essa
mesma fase a partir do 4º Concerto para Piano e Orquestra:
Apenas um ano separa o terceiro concerto da Seresta, que marca o início
do terceiro estágio, compreendendo também os Concertos no. 4 e no. 5.
Agora, a nacionalidade está ainda mais diluída, embora sempre presente,
como num perfume indelével e marcante. A escrita se torna mais concisa
e avançada, e os últimos traços remanescentes dos conceitos tonais
e harmônicos são abolidos. A partir do Concerto no. 4, o compositor
incorpora, inclusive, a técnica serial à sua linguagem. Alarga-se ainda
mais a versatilidade expressiva do piano e sua função orgânica na massa
orquestral. (BRASIL, 2001, p. 465, grifo nosso).
Esse aspecto de sua produção constitui uma espécie de contradição ao estereótipo nacionalista. José Maria Neves (1981, p. 13) considerou o nacionalismo marioandradiano como uma espécie de realismo
(socialista) musical, justamente pelo fato de que os compositores que
seguiram os preceitos do esteta paulista (e especialmente Guarnieri)
não terem acompanhado as inovações propostas no plano técnico, pela
vanguarda da segunda metade do século XX. Nessa mesma linha, não
é raro que parte da historiografia – sobretudo ligada à esquerda - tache a produção de Guarnieri como retrógrada e conservadora12. Por
isso, a incursão de Guarnieri no campo do serialismo e de harmonias
notadamente atonais se apresenta como uma contradição que impede
qualquer rótulo primário para a classificação da produção guarnieriana.
3 Considerações finais
Como pudemos constatar, o projeto marioandradiano de nacionalismo e a formação neoclássica que o compositor teve junto a Baldi
se materializam notavelmente na produção de Guarnieri. Mas disso
não podemos extrair a afirmação de que Guarnieri seguira a doutrina
José Maria Neves (1981, p.109) também denominou os neoclassicismos europeus do
entre guerras de neoclassicismo objetivo.
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do esteta paulista ou os preceitos técnicos de seus mestres como uma
espécie de dogma que o levou simplesmente à formação de um obra
de cunho neoclássico e nacionalista.
Sobre a relação estética entre Guarnieri e Andrade, podemos
inclusive apontar outras divergências, como a crítica feita por Mário
de Andrade à segunda Sonata para violino e piano (1933) de Guarnieri, que foi registrada nas correspondências entre ambos (TONI,
2001, p. 201-299). Nessa crítica, é possível constatar a discordância
do esteta em relação ao “atonalismo” e às “dissonâncias” encontrados
na sonata. Podemos dizer que Guarnieri, nesse tempo, buscava seu
enriquecimento técnico em direções pouco exploradas no Brasil da
década de 1930 e que essa busca pessoal não condizia com o plano
utilitário social da arte defendida por Mário de Andrade. Disso podemos extrair a conclusão que o compositor de Tietê sempre teve mais
forte compromisso com sua poética pessoal do que com a estética
marioandradiana. Outra questão cara a Mário de Andrade que nunca
foi seguida com empenho por Guarnieri diz respeito à pesquisa folclórica. Alguns compositores que se volveram à estética nacionalista
marioandradiana (como Guerra Peixe, por exemplo) a praticaram sistematicamente e com um rigor digno de nota, contudo, vemos que
para Guarnieri – que raramente empreendeu pesquisas sistemáticas
sobre folclore – os estudos sobre pesquisas de outros musicólogos
foram suficientes para a fatura de sua obra nacionalista. Em resumo,
Guarnieri herda de Mário de Andrade o projeto de construção de
uma música de concerto genuinamente brasileira que deveria conter
o ethos nacional sem citações folclóricas e herda ainda a concepção
imperiosa do entendimento desse nacionalismo como necessário ao
desenvolvimento da música erudita brasileira.
Já sobre sua formação neoclássica e o caráter de sua obra – que
contém grandes ciclos para piano solo, obras sinfônicas, de dezenas
de concertos para instrumento solista, sinfonias, óperas, sonatas –
fica clara a busca pela construção nos moldes dos grandes mestres
europeus do passado, ao mesmo tempo em que denota uma rejeição
aos novos paradigmas adotados pela vanguarda musical do pós-guerra.
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Nesse mesmo sentido, é também notável a prolificidade de sua obra
camerística, na qual se destacam sonatas para violino e piano, violoncelo
e piano, quartetos de corda e ainda mais de duzentas canções com
acompanhamento de piano. Mas se o caráter de sua produção traz à
tona o binômio nacionalismo/neoclassicismo (que é visto como uma
espécie de retrocesso da linguagem musical, em resposta à vanguarda
serial), este não é suficiente para definir a produção guarnieriana,
uma vez que, na prática, o compositor lançou mão de uma linguagem
harmônica consideravelmente mais avançada do que a proposta
contida em tal binômio. Podemos afirmar que o compositor soube
sintetizar os preceitos estéticos e técnicos absorvidos durante seu
período de formação, transformando-os de forma a produzir uma arte
pessoal e referencial na música brasileira, cuja compreensão e estudo
só é possível a partir da própria obra musical, pois, como pudemos
observar, os rótulos ou classificações escolásticas se mostram míopes e
insuficientes e na maioria das vezes levarão o leitor a uma concepção
falsa da música à qual se referem.
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” (VASCONCELOS-CORRÊA, 2010)
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Projeto Editorial e Normas para Publicação
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(Ver exemplos abaixo).
Livro:
HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006.
Ensaio em periódico:
NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados,
Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006.
Capítulo de livro:
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO,
Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (19942004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252.
Documentos eletrônicos:
CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em:
www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm.
Acesso
em 08 mai. 2007.
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