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ISBN 85–87266–05–5 Módulo 2 – Fascículo 2 – Ano 1 – 2002 II.II Aterosclerose Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia •Hipocolesterolemizantes: bases para o seu uso, evidências recentes •Avanços na detecção e na prevenção da doença coronariana (Parte I) •Qualificando o tratamento cirúrgico orovalvar •Infecção e aterosclerose Sumário Presidente Juarez Ortiz Diretor Científico Rubens Nassar Darwich Escolha do editor 4 Entrevista 7 Editor Responsável Edson A. Saad Editores Associados Protásio Lemos da Luz Tânia L. Martinez Ângelo de Paola Editor Newton Marins Hipocolesterolemizantes: bases para o seu uso, evidências recentes Direção de arte Hélio Malka Y Negri Andréia Assis Loures-Vale; Tânia Leme da Rocha Martinez Coordenação editorial Beatriz Couto Avanços na detecção e na prevenção da doença coronariana (Parte I) Assistência editorial Helio Cantimiro 10 18 Edson A. Saad ; José Geraldo de Castro Amino Revisão Claudia Gouvêa Leila Dias Qualificando o tratamento cirúrgico orovalvar Pablo Maria Alberto Pomerantzeff; Roney Orismar Projeto gráfico Roberta Carvalho 25 Sampaio; Carlos Manuel de Almeida Brandão; Max Grinberg editoração eletrônica Karla Lemos Infecção e aterosclerose Uma publicação de DIA GR A PHIC Maria de Lourdes Higuchi; José Antônio F. Ramires 30 ® E D I T O R A Diagraphic Projetos Gráficos e Editoriais Ltda. Av. Paulo de Frontin 707 – Rio Comprido CEP 20261-241 – Rio de Janeiro-RJ Telefax: (21) 2502.7405 e-mail: [email protected] www.diagraphic.com.br As matérias assinadas, bem como suas respectivas fotos de conteúdo científico, são de responsabilidade dos autores, não refletindo necessariamente a posição da editora. Distribuição exclusiva à classe médica. Comercialização e contato médico No próximo fascículo... Escolha do Editor – Edson A. Saad 1. Artigo dos Drs. Carlos Buchpiguel e Ibrahim Francisco Pinto – Avanços na Detecção da Aterosclerose 2. Artigo do Prof. Adib D. Jatene – Cirurgia de Revascularização Miocárdica Revisitada 3. Artigo dos Drs. Aloysio Cechelle Achutti, Ana Marice Ladeia, Armênio Costa Guimarães e Maria Inês Reinert Azambuja – Epidemiologia da Aterosclerose Coronariana (DAC) e Cerebrovascular (AVC) Escolha do editor Informações Custo dos medicamentos As dez principais indústrias farmacêuticas, hoje conglomerados farmacêuticos, investem cerca de 38 bilhões de dólares/ano em pesquisa. Disto resulta, para cada uma, uma média de cinco a sete produtos que poderão ser sucessos comerciais ou fracassos. Também, depois de um certo número de anos, esgota-se a patente e qualquer laboratório poderá produzir estes medicamentos. Daí o custo tão diferente entre os chamados genéricos e os medicamentos dos grandes laboratórios farmacêuticos. É de se questionar se o genérico é uma produção moral ou amoral, porque, na realidade, é uma pirataria dos descobrimentos dos laboratórios clássicos. Por outro lado, um produto, para sair do laboratório e chegar à farmácia, passa por um processo, nem sempre muito ético, que tem um custo aproximado de 850 milhões de dólares. Pasmem os meus leitores que destes, 350 milhões de dólares são custos pagos a profissionais da saúde para programas de teste, ensaios, etc. Se se compararem os 500 milhões de dólares gastos com o desenvolvimento do produto, este custo é tremendamente oneroso e absolutamente injusto. Equivaleria a um advogado que cobre 70% do valor da causa como honorário. Neste processo de pagamento aos profissionais está o grande problema se não a corrupção nos tempos atuais. Como estes laboratórios não são entidades de caridade, e não teriam como sê-lo, todos os custos fazem parte do custo final do produto, portanto, quando criticarmos o custo excessivo dos medicamentos, tenhamos a dignidade de assumir que, na situação atual, uma boa parte destes custos se deve a nossa própria atividade remunerada de um modo moralmente bastante questionável. Mas isto também gera deformações que tendem a influenciar a prescrição destes produtos, induzidas com a colaboração da classe médica e, infelizmente, de grandes líderes da classe. Comentarei este assunto mais em profundidade em um fascículo subseqüente. A864 Aterosclerose : Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia : módulo 2 . – Ano 1, n. 1 (2002) – fasc. 2 (2002) . – Rio de Janeiro : Diagraphic, 2002. v. : il. ; 28cm. Bimestral ISBN 85-87266-05-5. 1. Aterosclerose – Periódicos. I. Sociedade Brasileira de Cardiologia. CDD 612.1205 4 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Escolha do editor Humor No consultório médico há muitas cenas pungentes, muitas decisões difíceis que fazem o médico, por vezes, se sentir literalmente playing God, mas há também algumas tiradas e humor. O nosso querido Protásio Lemos da Luz escreveu um livro sobre isso, cuja leitura recomendo. Vou relatar a seguir um caso da minha experiência pessoal, que mostra como o que se diz é uma coisa, e a maneira como se o diz pode atenuar muito a rudeza do afirmado. “Um paciente nordestino chegou à minha consulta e, quando lhe perguntei qual era a sua queixa, ele desfiou durante os 45 minutos subseqüentes, sem chance de interrupção, um rosário de queixas. Queixas absolutamente coerentes e sugestivas de doença, porém o seu exame físico e o seu eletrocardiograma eram absolutamente normais, o que deixava a possibilidade de várias enfermidades. Solicitei-lhe muitos exames que me pareceram apropriados para estabelecer o seu diagnóstico. Retornou ele duas semanas depois com uma pilha de uns 15cm a 20cm de exames. E estava eu a pensar exatamente: “Será que eu fiquei louco?... Fui eu mesmo que pedi todos estes exames?”, quando o paciente retrucou: “Oh, dotô, se com isso tudo não fizer diagnóstico, tem que ser muito burro!” A maneira como o paciente falou não foi ofensiva, provocou-me um riso e a certeza de que ele estava absolutamente certo. Felizmente o meu atestado de burrice foi por terra porque o diagnóstico acabou sendo feito e o doente, tratado convenientemente. Estrela da vida inteira Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar – Lá sou amigo do rei Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. Manuel Bandeira Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 5 Escolha do editor Pour Etre Heureux Rodant, triste et solitaire, Dans la forêt du mystère, J’ai crie, lê coeur très las; “La vie est triste ici-bas!” L’Echo m’a repondu: “Bah!” Puis, d’une voix si touchante: “Echo! La vie est méchante!” L’Echo m’a repondu: “Chante!” “Echo, Echo des grands bois! Lourde, trop lourde est ma croix!” L’Echo m’a repondu: “Crois!” “La haine en moi va germer, Dois-je rire ou blasphemer?” Et l’Echo m’a dit: “Aimer!” Comme l’Echo des grand bois M’a conseillé de faire, J’aime, je chante et je crois … Et je suis heureux sur terre! Théodore Botrel, chansonnier français (1868-1925) Paraphrase du Psaume CXLV N’espérons plus, mon âme, aux promesses du monde; Sa lumière est un verre et sa faveur une onde Que toujours quelque vent empêche de calmer. Quittons ces vanites, lassons-nous de les suivre; C’est Dieu qui nous fait vivre, C’est Dieu qu’il faut aimer En vain, pour satisfaire à nos lâches envies, Nous passons près des róis tout le temps de nos vies A souffrir des mépris et ployer les genoux Ce qu’ils peuvent n’est rien; ils sont comme nous sommes, Véritablement hommes, Et meurent comme nous Ont-ils rendu l’esprit, et ce n’est plus que poussière Que cette majesté si pompeuse et si fière Dont l’eclat orgueilleux étonne l’univers. Et dans ces grands tombeaux, ou leurs âmes hautaines Font encore les vaines, Ils sont mangés des vers Là se perdent ces titres de maitres de la terre, D’arbitres de la paix, et de foudres de la guerre; Comme ils n’ont plus de sceptre, ils n’ont plus de flatteurs: Et tombent avec eux d’une chute commune Tous ceux que leur fortune Faisait leurs serviteurs François de Malherbe (1555-1628) 6 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Entrevista com o prof. Luiz V. Décourt Local: residência do prof. Décourt Data: 28 de outubro de 2002 Entrevistador: prof. Edson A. Saad Luiz Décourt, professor titular de clínica médica da Faculdade de Medicina da USP, é um dos grandes, senão o maior, dos médicos e professores deste país, que influenciou e formou dezenas de gerações e que constitui um repositório de grandes virtudes, razões pelas quais eu o considero um dos marcos azuis no meu caminho. Edson Saad – Professor, como foi a sua infância e a juventude até a universidade? Prof. Luiz Décourt – Bom, mais a parte talvez de ginásio... Veja bem, eu costumo dividir a minha formação intelectual em três grandes períodos, excluindo o curso primário, que é para aprender a ler: o curso secundário, o curso superior e a faculdade de medicina. No secundário eu cursei um ginásio que era o mais famoso do Brasil naquela época, chamado Ginásio Culto à Ciência de Campinas, onde o meu pai era professor de História Natural. Então, lá eu aprendi uma série de matérias que hoje quase não constam do currículo. Vou dar para você dois exemplos. Eu estive na Europa fazendo conferências. Estive na Itália e na França (meus avós eram franceses), mas, na Itália, arranjei um rapaz que me ajudasse a falar bem o italiano, o que me foi fácil porque eu tinha tido dois anos de italiano no ginásio. Quando me formei, a ciência médica era essencialmente européia e, entre a ciência médica, uma grande parte, inclusive o estudo anatomopatológico, estava na Alemanha. Então eu precisava ler um pouco de alemão. Estive dois anos na Escola Alemã, na Olindenstrafe (Hulingham), mas tive uma grande vantagem em relação aos meus colegas, porque eu tinha tido também curso de alemão durante o ginásio. Então o meu curso de ginásio, Edson, foi uma das épocas mais felizes da minha vida, onde aprendi um grande número de matérias que foram de grande auxílio. Aprendi mecânica e astronomia, álgebra, geometria e trigonometria. Um curso secundário excelente. Em segundo lugar, entrando na faculdade de medicina, uma faculdade que já era respeitada pela categoria dos professores; não quero dizer que todos fossem excelentes, mas a grande maioria era composta por professores competentes, respeitados e respeitosos, onde aprendi não apenas a medicina técnica, mas também o modo de tratar os doentes, porque o curso prático foi dado na Santa Casa de Misericórdia, e lá as auxiliares dos médicos eram freiras, e não enfermeiras, então havia uma assistência muito humana aos doentes, até religiosa, se eu posso assim dizer. Este curso que fiz, com a parte do curso teórico na faculdade de medicina, que era excepcional e ainda continua sendo, e um curso prático bem-feito na Santa Casa de Misericórdia, onde eu guardei não apenas a técnica, mas também o modo humano de exercer a medicina, marcaram meu espírito. Edson Saad – Quais qualidades o senhor julga que devam ornar a pessoa do médico? Prof. Luiz Décourt – Eu faria uma pequena distinção entre o médico clínico e o médico professor universitário. Ambos precisam ter uma visão muito grande do ser humano. Eu já fiz várias vezes conferências sobre o estudo das humanidades na carreira científica, e, evidentemente, é preciso, em primeiro lugar, um conhecimento total da matéria e, em segundo lugar, que se respeite o trabalho dos outros. Não importa a origem, se foi de uma grande entidade ou de uma pequena entidade. Em terceiro lugar, o médico deve atender à necessidade da pátria, numa revolução, numa guerra, numa revolta, numa epidemia e, em último lugar, mas eu diria que é o primeiro lugar, sendo o último apenas na parte geográfica do texto, o trato do médico com o doente. Eu tenho um credo em que ressalto as qualidades do médico para amparar os que não têm amparo. E termino dizendo que o médico deve servir aos doentes, e nunca se servir dos doentes. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 7 Credo Creio na medicina que é ato contínuo de aprimoramento; que evita, na sucessão dos dias, o aniquilamento de um patrimônio cultural que é a própria razão de seu mister; que não cessa de buscar, nos homens e nos livros, a forma correta de se exercer. Na medicina que exige o fato atual, mas não o recebe com passividade; que analisa o dado novo pela segurança das medidas que o forneceram e através da experiência conseguida. Medicina que defende, mas não reverencia a própria opinião; e que aceita a informação, se adequada, provenha ela de autoridades consagradas ou de humildes trabalhadores. Na medicina que procura não apenas o combate à doença e sua prevenção, mas também o avanço do conhecimento científico; que investiga, compara, discute e conclui. Não tanto para a exaltação do próprio prestígio, como para o progresso do homem, porque sabe que a recompensa do investigador não é a obtenção de prêmio, mas o privilégio de ter trazido seu grão de areia ou seu tijolo ao sempre renovado edifício da verdade científica. Creio na medicina que é ato de resposta às necessidades da pátria. Medicina lúcida e vigilante, atenta aos problemas nacionais e apta para intervir. Medicina responsável e solucionadora, que não aguarda o chamado da coletividade, mas procura atuar antes desse apelo. Nunca deformada por estreita visão do local em prejuízo do universal; nunca amesquinhada por demagogia ou por interesses pessoais; nunca aviltada por ideologias políticas corruptas e corruptoras. Creio na medicina que, sendo técnica e conhecimento, é também ato de solidariedade e de afeto; que é dádiva não apenas de ciência, mas ainda de tempo e de compreensão; que sabe ouvir com interesse, transmitindo ao enfermo a segurança de que sua narração é recebida como o fato mais importante desse momento. Medicina que é amparo para os que não têm amparo; que é certeza de apoio dentro da desorientação, do pânico ou da revolta que a doença traz. Na medicina que serve aos doentes e nunca se serve deles. Luiz V. Décourt (Agosto de 1970) Edson Saad – Qual é o papel que deve ter a cultura humanística na formação dos médicos? Prof. Luiz Décourt – Eu não tenho dúvida de que a formação humanística é essencial para os médicos. Em primeiro lugar, dá aos médicos uma cultura que faz com que possam aproveitar os trabalhos que irão ler. Uma cultura humanística traz ao médico aquela parte de visão integral não apenas do homem, mas do mundo e da época que o mundo está atravessando. Então, fala-se muito hoje em sociologia, e a sociologia é uma parte da vida em comum que vivemos; mas a formação do médico como deve ser feita consta, em parte, de uma grande função sociológica, em que ele deve estar consciente do seu papel na sociedade; combatendo as doenças, sim, fazendo a profilaxia, sim, fazendo as vacinas, sim, mas essencialmente transmitindo aos seus alunos o respeito integral à pessoa do doente. Por isso eu considero, Edson, a anamnese uma parte importante do exame clínico, porque nela fico conhecendo a personalidade do indivíduo e atinjo mais facilmente a intimidade deste indivíduo, que é o cliente e que o médico deve atingir. Edson Saad – Um assunto difícil hoje: a medicina se tornou muito materialista, as dificuldades de sobrevivência dos médicos são cada vez maiores, acho que vivemos uma sociedade profundamente egoísta. Então, eu gostaria que o senhor falasse sobre exercício profissional, educação continuada e finanças no mundo atual. 8 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Prof. Luiz Décourt – Veja bem, Saad, um médico vive hoje, como outros profissionais, uma vida onde as realizações são difíceis, pelo próprio meio em que ele vive. Então, economicamente perturbado, politicamente perturbado e até, quem sabe, familiarmente perturbado. Mas há um ponto, Edson, em que eu não transijo: em primeiro lugar, para o médico, está a figura do paciente, que jamais pode ser desrespeitada. Ele deve trazer o máximo do seu conhecimento para o doente, mas de uma forma humana. Há um elemento importante hoje em dia, nos jovens, de ver a parte técnica com predomínio sobre a parte humana. Houve até um médico italiano que esteve aqui (não me recordo o nome dele) e que disse que “não sabia por que falava-se tanto em humanismo; se a pessoa tem uma doença, eu dou um remédio, ela sara e está acabado”, uma forma completamente absurda de encarar a medicina. É como se a medicina fosse o conserto de um carro, que, se está com o pneu furado, troca-se o pneu, não vendo, portanto, a tremenda, a utilíssima tarefa do médico de proteger o seu doente também psicologicamente. O médico é essencialmente, para o seu doente, um provedor – é o que está no meu juízo. Então, ele deve ser não apenas um curador de doenças, mas um orientador na vida social. Isso faz parte do médico. Edson Saad – Uma outra pergunta, professor: qual o papel da tecnologia atual e qual a sua influência no exercício da medicina? Prof. Luiz Décourt – A tecnologia é fundamental. Se nós não déssemos aos nossos doentes o que a técnica nos fornece hoje, estaríamos atrasados 300 anos. O mal que eu vejo hoje, Saad, não é que o médico não empregue esta técnica. Ele em geral a conhece, sabe empregá-la, mas ele como que transforma a medicina em fórmulas, em máquinas. E eu sempre digo: a máquina atual é essencial no exercício da medicina, mas, veja bem, é a máquina que complementa o homem, e não o homem que complementa a máquina. Então, a máquina existe para auxiliar o médico. Ele deve ser o fac totum, aquele que se utiliza da máquina quando for preciso, compreende? O aprendizado da técnica é fundamental, porém o aprendizado técnico jamais poderá ser a única virtude do médico. Edson Saad – O senhor foi um grande líder, influenciou gerações inteiras, formou grandes médicos e grandes professores. Quais são as regras para isto? Luiz Décourt – Você agora falou uma coisa que eu sou obrigado a aceitar. Realmente, nos meus 30 anos (eu me formei há mais tempo) dedicados à cardiologia, eu formei centenas de estagiários. Nestes 30 anos, eu tive 897 estagiários que fizeram estágio comigo. Procurei fazer com que eles conhecessem a medicina, a aplicação da medicina e o respeito à resposta do doente à medicina. Em primeiro lugar está o homem, está a sua palavra, está o seu conselho, está o seu apoio, está a sua vigilância, está a sua norma de conduta, que deve ser exemplo. Então, uma parte que está dentro da sua interrogação é como se deve comportar o médico na sua sociedade, e eu acho que o médico é um exemplo. Se o médico não tem moral é um mau exemplo, mais do que outras profissões. Então, ele deve ser não apenas um excelente auxiliar para o seu doente, mas deve ser também um digno, um digníssimo exemplo do elemento pensante e atuante na sociedade com disciplina, com entusiasmo sempre, ajudando, jamais perseguindo. Edson Saad – Muito bem, professor, muito obrigado! Nota do editor: Preferi aqui guardar a linguagem original pelo seu sabor e autenticidade, limitando a edição ao mínimo indispensável. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 9 Hipocolesterolemizantes: bases para o seu uso, evidências recentes II.II Autores Andréia Assis Loures-Vale 1 Tânia Leme da Rocha Martinez 2 De acordo com as diretrizes nacionais (Diretrizes Brasileiras sobre Aterosclerose) e internacionais (NCEP/ATP III), o principal objetivo para a diminuição do risco cardiovascular é a redução do nível sérico do LDL-c. Devemos, evidentemente, avaliar e estratificar individualmente o risco de cada paciente e, só então, definir qual a meta adequada e qual a intensidade da abordagem terapêutica. O primeiro passo para se buscar a redução do LDL-c seria a instituição da chamada mudança de estilo de vida. Além da grande dificuldade em se conseguirem modificações realmente significativas, temos ainda grande número de pacientes em que somente esta intervenção não será suficiente para atingir as metas de LDL-c propostas. Portanto, apesar de este ser o modo mais econômico de tratamento, o uso de drogas hipolipemiantes se fará necessário em grande parte da população dislipidêmica. Importante salientar que os fármacos serão usados em associação ao tratamento não-farmacológico, e não em sua substituição, e que a administração deste tipo de medicação será precedida por uma avaliação minuciosa de suas indicações (diagnóstico correto da dislipidemia), sendo necessários controles sucessivos para monitorar a resposta e a tolerabilidade. Vários medicamentos são amplamente utilizados para diminuir as concentrações plasmáticas de lipoproteínas. Seu mecanismo de ação inclui (Quadro): alterações da Quadro – Classificação dos medicamentos redutores de lipídios de acordo com o mecanismo principal de ação Aumentam a depuração da LDL (mediada por receptores) Seqüestradores de ácidos biliares, inibidores da HMG-CoA redutase Reduzem síntese/secreção de lipoproteínas Ácido nicotínico, óleos de peixe (ácidos graxos ômega-3) Derivados do ácido fíbrico Alteram o metabolismo intravascular síntese lipoprotéica, do metabolismo intravascular das lipoproteínas e da sua depuração. Abordaremos neste fascículo os medicamentos mais indicados para a redução do LDL-c: inibidores da HMG-CoA redutase (ou estatinas) e seqüestrantes de ácidos biliares (ou resinas). Inibidores da HMG-CoA redutase (estatinas) As estatinas pertencem à classe de medicamentos redutores de LDL-c mais eficazes e toleráveis, sendo, portanto, as mais utilizadas. As estatinas em uso atualmente são: lovastatina, sinvastatina, pravastatina, fluvastatina, atorvastatina e há algumas estatinas mais recentes (rosuvastatina, itavastatina) ainda não-disponíveis para uso. Todas atuam diminuindo o nível sérico do LDL-c (maiores detalhes a seguir), possuem inúmeros outros efeitos ditos pleiotrópicos, mas, apesar de pertencerem à mesma classe, apresentam características diferentes entre si; ainda não temos evidências concretas de que estas diferenças traduzam resultados também diferentes na redução de eventos clínicos. Evidentemente, o percentual de redução do LDL-c dependerá da droga e da dose que for utilizada. A lovastatina, a sinvastatina e a pravastatina são metabólitos fúngicos ou derivados destes, e a fluvastatina e atorvastatina são totalmente sintéticas. A lovastatina e a sinvastatina são administradas como lactonas inativas; necessitam ser hidrolisadas (o que 1 Mestre em Biologia Molecular pela Escola Paulista de Medicina/Unifesp; coordenadora do Departamento de Aterosclerose e do Centro de Pesquisa do Hospital Socor, de Belo Horizonte. Professora Livre-Docente em Medicina pela Unifesp; diretora da Unidade de Dislipidemia do Incor. 2 10 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 ocorre dentro dos hepatócitos) para ter atividade farmacológica, podendo, então, serem consideradas pró-medicações. As outras estatinas são administradas na forma ativa. Mecanismo de ação/metabolismo Os inibidores da HMG-CoA redutase atuam através da inibição da 3-hidroxi-3-metilglutaril coenzima A (Figura 1), enzima limitante da síntese do colesterol. A inibição é decorrente do fato de as estatinas conterem, na sua molécula, um componente de estrutura análoga à da HMG-CoA, que possui afinidade com a enzima milhares de vezes superior à do substrato natural, sendo capaz de bloqueá-la competitivamente e de forma parcial, reversível, potente e dependente da dose. Um dos resultados essenciais da inibição do colesterol dentro dos hepatócitos (Figura 2) é a diminuição das reservas intracelulares de colesterol, o que desencadeia medidas homeostáticas: estímulo de síntese de mais receptores e aumento de atividade do receptor da LDL na membrana celular, fazendo com que esta lipoproteína seja retirada rapidamente da circulação, trazendo seu conteúdo de colesterol para dentro do hepatócito. Além deste efeito, as estatinas também podem reduzir a produção e aumentar a depuração hepática da VLDL, mecanismo que explica a redução de triglicérides que podemos obter com o uso desta classe de drogas. A absorção intestinal (Tabela 1) destes agentes varia de 31% (lovastatina) a mais de 95% (atorvastatina). Todas as estatinas se dirigem para o fígado por extração hepática na primeira passagem (o maior percentual é da sinvastatina: > 79%). Estes agentes se ligam às proteínas em grande quantidade (> 95%), exceto pela pravastatina, que apresenta ligação protéica abaixo de 50%. Especula-se que o elevado grau de ligação protéica poderia minimizar o efeito destes agentes em tecidos extra- Acetil-CoA HMG-CoA HMG-CoA redutase Mevalonato Estatinas Proteínas farnelizadas Farnesil-PP Esqualeno Geranilgeranil-PP (GGPP) Proteínas isoprenóides Colesterol hepáticos, diminuindo o potencial de efeitos colaterais. A fluvastatina e a pravastatina são hidrofílicas e, portanto, não atravessam a barreira liquórica. A principal via de eliminação das estatinas é o fígado; a excreção renal ocorre apenas com a pravastatina (mesmo assim, a depuração hepática é substancial). A insuficiência renal não provoca aumento dos níveis séricos de pravastatina, bem como não há necessidade de modificação das doses da fluvastatina neste caso; maior cuidado deve ser tomado com o uso da lovastatina em pacientes urêmicos. Proteínas geranilgeranilizadas Figura 1. Cascata do colesterol Tabela 1 – Propriedades das estatinas Estatinas Metabolização Ligação protéica Lipofílica? Meia-vida (h) Lovastatina CYP 450 3A4 > 95% S ~2 Sinvastatina CYP 450 3A4 95-98% S ~3 Pravastatina Praticamente não utiliza esta via ~ 50% N ~2 Fluvastatina CYP 450 2C9 > 98% N ~3 Atorvastatina CYP 450 3A4 > 98% S ~ 15 Adaptado de Vaughan et al. J Am Coll Cardiol, v. 35, p. 1-10, 2000 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 11 Quilomícron LPL Intestino VLDL Fígado Remanescente LPL HDL3 Figura 2a. Metabolismo das lipoproteínas: ciclos exógeno, endógeno e transporte reverso LPT – Lipase lipoprotéica LCAT – Lecitina colesterol aciltransferase HPL – Lipase hepática IDL HPL LCAT HPL LDL HDL2 Fonte: II Consenso Brasileiro sobre Dislipidemias. Arq Bras Cardiol 1996;67:1-16. transporte reverso de colesterol Fígado Intestino HDL LDL VLDL Tecidos extraremanescentes de remanescentes hepáticos quilomícrons de VLDL Quilomícrons Vaso capilar Figura 2b. Metabolismo hepático das lipoproteínas Precursores de HDL (do fígado e do intestino) Lipase lipoprotéica ácidos graxos livres Tecido mamário, muscular ou adiposo Eficácia: efeitos lipídicos (Tabela 2) As estatinas diferem na quantidade de redução de LDL-c que pode ser obtida com uma dose máxima. A dose máxima aprovada de atorvastatina (80mg/dia) proporciona uma média de 58% de redução do LDL em pacientes hipercolesterolêmicos. Esta redução é maior que a observada com as doses máximas das outras estatinas e parece estar relacionada à sua maior meia-vida plasmática. Esta distinção entre as várias estatinas torna-se importante apenas quando há necessidade de redução máxima de LDL, já que a maioria dos pacientes necessita de reduções muito inferiores a 60%. Devem ser administradas, quando em dose única, preferencialmente à noite. Eficácia: objetivos clínicos e aterosclerose Na última década têm sido publicados inúmeros ensaios clínicos que confirmam que o tratamento das dislipidemias com fármacos hipolipemiantes é benéfico tanto 12 na prevenção primária quanto na secundária. Tem sido demonstrado um decréscimo significativo da morbimortalidade por acidentes coronarianos, da mortalidade total e da morbimortalidade por acidentes vasculares cerebrais. Também tem sido demonstrado que as estatinas, além de seus efeitos sobre as concentrações plasmáticas de lípides, influem sobre uma ampla série de fenômenos – chamados de efeitos pleiotrópicos (como já mencionamos anteriormente): normalizam a função endotelial, melhoram a função vasomotora e a perfusão miocárdica, inibem a proliferação das células musculares lisas, protegem as LDL das modificações oxidativas, reduzem as concentrações de PAI-1, normalizam a agregação plaquetária e das hemácias, modulando a resposta imunológica e antioxidante, além de diminuir a resposta inflamatória. Através de muitas destas ações, poderia ser justificada a rapidez pela qual as estatinas modificam as alterações vasomotoras existentes na aterosclerose coronariana, proporcionando um benefício clínico significativo e precoce, que dificilmente seria devido somente à redução do LDL-c. Nos pacientes submetidos a transplante cardíaco, a utilização das estatinas reduz a porcentagem de rejeição e melhora significativamente a sobrevida durante o primeiro ano. Ensaios clínicos Existem sete grandes estudos clínicos desenvolvidos com estatinas (Tabela 3) que demonstraram, sem sombra de dúvida, que estas drogas são eficazes na redução da mortalidade por DAC (doença aterosclerótica coronariana) e na prevenção de eventos e/ou de complicações. São estudos bem divulgados no nosso meio (excetuando-se talvez o HPS, publicado em julho deste ano). Vale a pena fazermos uma análise sobre o que representa o conjunto de informações que eles nos trazem. Como já ressaltamos anteriormente, não há dúvidas quanto ao benefício advindo da redução do colesterol; entretanto estamos agora na fase de nos perguntarmos o que deve ser mais interessante do ponto de vista de redução de eventos: a teoria de quanto mais baixo melhor (LDL-c) ou a análise de que reduções percentuais se correlacionam melhor? As reduções percentuais no LDL-c variaram de 25% (Afcaps/TexCaps e Lipid) até 35% (4S), enquanto que a redução média de DAC variou de 24% nos estudos Care e Lipid até 34% no 4S; fica claro, portanto, que este tipo de correlação foi mais eficaz do que se avaliarmos por valores basais de CT (colesterol total) ou de LDL-c. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Assim como nos estudos clínicos, a redução de eventos vista nos estudos angiográficos também nos permite fazer a mesma análise de que a diminuição percentual (%) no LDL-c seria um melhor critério da eficácia terapêutica do que seu valor absoluto (mg/dl). Entretanto, por que nossas diretrizes, as americanas e as européias continuam enfatizando um determinado valor de corte de LDL-c como meta no tratamento? Quando nos detemos um pouco mais nas análises de subconjunto dos grandes estudos clínicos, temos o combustível para reabastecer essa controvérsia atual, validando as atuais diretrizes que colocam o nível de LDL-c de100-130mg/dl como sendo o ideal: a) no estudo clínico 4S, apesar de a redução no risco relativo ter sido independente do nível basal de LDL-c, foi demonstrada uma redução contínua no risco de DAC até um nível de LDL-c de cerca de 80mg/dl; b) as taxas de evento reduzem, no estudo Care, à medi- da que reduzimos o nível do LDL-c (174mg/dl até 125mg/dl) (Tabelas 4 e 5); c) finalmente, em dados de estudos epidemiológicos amplamente conhecidos como o MRFIT (Multiple Risk Factor Intervention Trial), Framingham e Procam (Prospective Cardiovascular Munster), vemos que a relação entre os níveis séricos de CT e/ou LDL-c e de DAC é contínua e graduada de maneira curvilínea onde os quintis mais baixos de LDL-c (média de 88mg/dl em mulheres e 95mg/dl em homens) se correlacionam com menor incidência de DAC. Para trazer mais luz a esta questão, devemos aguardar a publicação dos novos estudos que testam a hipótese de que quanto mais reduzirmos o LDL-c mais diminuiremos as taxas de DAC. Efeitos adversos Em geral, as estatinas são bem toleradas, sendo seus efeitos secundários mais freqüentes cefaléia, flatulência, dispepsia, dores musculares, prurido e exantema cutâneo. Tabela 2 – Efeitos das estatinas nos lípides Dose 40mg/dia LDL-c HDL-c TG Lovastatina - 34% + 8,6% - 16% Sinvastatina - 41% + 12% - 18% Pravastatina - 34% + 12% - 24% Fluvastatina - 24% + 8% - 10% Atorvastatina - 50% + 6% - 29% Adaptado de Knopp. N Eng J Med, v. 341, p. 498-511, 1999 Tabela 3 – Principais estudos com estatinas para a prevenção da aterosclerose Estudo (n) Sexo/idade (anos) Droga Redução de LDL-c Redução relativa Redução absoluta do risco (endpoint 1o) do risco (NNT) Afcaps/TexCaps (6.605) H – 45-73 M – 55-73 Lovastatina - 25% - 37% 2,03 (50) Woscops (6.595) H – 45-64 Pravastatina - 26% - 31% 2,45 (40) 4S (4.444) H e M – 35-70 Sinvastatina - 35% - 34% 7,68 (13) Care (4.159) H e M – 21-75 Pravastatina - 28% - 24% 3,17 (32) Lipid (9.014) H e M – 31-75 Pravastatina - 25% - 24% 3,54 (28) Miracl (3.086) H e M – > 18 Atorvastatina - 40% - 14,8% – HPS (20.536) H e M – 40-80 Sinvastatina Redução de 1mmol (39mg/dl) - 17% 5,4 (18) Adaptado de Arq Bras Cardiol, v. 77, supl. III, 2001. Afcaps/TexCaps: Air Force/Texas Coronary Atherosclerosis Prevention Study; Woscops: West of Scotland Coronary Prevention Study; 4S: Scandinavian Simvastatin Survival Study; Care: Cholesterol and Recurrent Events; Lipid: The Long Term Intervention with Pravastatin in Ischaemic Disease; Miracl: Myocardial Ischemia Reduction with Aggressive Cholesterol Lowering; HPS: Heart Protection Study. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 13 Tabela 4 – Valores lipídicos e sua categorização Lípide CT LDL-c HDL-c TG Valor (mg/dl) Categoria < 200 Ótimo 200-239 Limítrofe ≥ 240 Alto < 100 Ótimo 100-129 Desejável 130-159 Limítrofe 160-189 Alto ≥ 190 Muito alto < 40 Baixo > 60 Alto < 150 Ótimo 150-200 Limítrofe 200-499 Alto ≥ 500 Muito alto Tabela 5 – Estratificação x metas lipídicas (mg/dl) Nível de risco Metas lipídicas LDL-c Alto risco Pacientes com DAC, DVP ou aterosclerose carotídea HDL-c Recomendações terapêuticas De acordo com as III Diretrizes sobre Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia, o primeiro passo que devemos dar ao abordar um paciente hipercolesterolêmico será o de estratificar o seu risco para a doença aterosclerótica – não entraremos em detalhes por não ser este o objetivo do nosso artigo. Após a estratificação, iremos prescrever o tratamento farmacológico de acordo com a Tabela 6. TG Seqüestrantes de ácidos biliares (resinas) < 100 > 40 < 150 Pacientes com diabetes < 100 > 45 < 150 Risco de DAC em 10 anos = 20% < 100 > 40 < 150 Médio risco Risco de DAC em 10 anos > 10% e < 20% < 130 > 40 < 150 Baixo risco Risco de DAC em 10 anos = 10% < 130* > 40 < 150 *A meta de LDL-c em pacientes de baixo risco é < 130mg/dl; entretanto tolera-se LDL-c < 160mg/dl. O exemplo de efeito adverso importante seria a hepatoxicidade manifestada por elevação das transaminases; é dose-dependente, geralmente assintomática e lentamente reversível após interrupção do medicamento. A freqüência deste efeito colateral é de aproximadamente 1% e parece estar relacionada à inibição da HMG-CoA redutase. Não há necessidade de interrupção do tratamento com pequenas elevações das transaminases, somente quando 14 temos valores acima de três vezes o valor normal e podemos reiniciar o medicamento, em doses mais baixas, após restauração dos valores normais. Deve-se realizar monitorização laboratorial após seis e 12 semanas do início do tratamento e a cada seis meses, daí em diante. Outro fator adverso importante, porém raro, é a miopatia (0,1% – resultados publicados dos diversos estudos clínicos com estatinas): provoca fraqueza extrema, mialgias e elevação da CPK até dez vezes acima de seus limites normais. A associação com ciclosporina, eritromicina, antifúngicos, antibióticos macrolídeos, fibratos (genfibrozil) e ácido nicotínico pode aumentar as probabilidades de miopatia que, excepcionalmente, pode ser complicada por rabdomiólise e necrose tubular aguda. Estes fármacos são utilizados desde a década de 1960, após a descoberta de que a exclusão ileal, projetada para reduzir a ingestão de colesterol dietético, também reduzia os ácidos biliares. A colestiramina e o colestipol são os principais representantes desta classe e, até meados da década de 1980, eram os principais fármacos redutores de colesterol. Com o advento das estatinas e sua incontestável melhor tolerabilidade e maior potencial de redução, estes medicamentos foram sendo substituídos e, hoje, são utilizados em algumas situações especiais e como terapia adjuvante quando a redução de LDL-c não é satisfatória apenas com o uso das estatinas. Como são medicamentos de ação no nível intestinal e não-sistêmicos, seus efeitos colaterais são mínimos e, por isso, representam a droga ideal no tratamento de crianças e grávidas hipercolesterolêmicas. Tanto a colestiramina (Questran Light®) quanto o colestipol (não-disponível no Brasil) estão disponíveis em pó e devem ser misturados a líquidos antes da ingestão. Existe ainda um outro representante dessa classe, aprovado nos Estados Unidos no ano de 2000, ainda Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Tabela 6 – Recomendações para uso de drogas de acordo com a estratificação Nível de LDL-c (mg/dl) Orientação Verificações Baixo risco Até 159 MEV 6 meses 160-190 MEV 3 meses > 190 Tratamento farmacológico Médio risco Até 160 MEV > 160 3 meses Tratamento farmacológico Alto risco 100-129 MEV ≥ 130 3 meses Tratamento farmacológico MEV: mudança de estilo de vida. não-disponível no nosso país, que é o coleveselan. Representa uma nova formulação de resinas, com melhor tolerabilidade e com bons resultados quando usado em associação com estatinas. Mecanismo de ação Essas drogas são resinas trocadoras de ânions, e sua administração inicia uma seqüência complexa de eventos que resultam no aumento da atividade do receptor de LDL, resultando em maior depuração na LDL plasmática. São polímeros, insolúveis em água, resistentes às enzimas digestivas e capazes de unir-se aos ácidos biliares na luz intestinal. Esta ligação com os ácidos biliares e sua posterior eliminação nas fezes, interrompendo sua circulação entero-hepática (Figura 3), reduzem a absorção de ácido biliar no íleo. O fígado, depletado de bile, já que a excreção fecal pode aumentar de três a 15 vezes, sintetiza uma maior quantidade de reservas hepáticas de colesterol. Como o colesterol é convertido em ácidos biliares em taxas elevadas, sua concentração diminui dentro dos hepatócitos. É importante ressaltar que a redução conseguida nos níveis de colesterol sérico com estes fármacos é dependente de seus efeitos na via exógena da hipercolesterolemia. Efeitos sobre as lipoproteínas e uso em ensaios clínicos No Estudo de Prevenção Coronária Primária da Clínica de Pesquisas de Lípides (LRC-CPPT), 3.806 homens foram distribuídos aleatoriamente para trata- mento com colestiramina ou placebo. Os participantes do grupo ativo tomaram 12g (três pacotes) duas vezes ao dia, mas a aderência à medicação variou. Houve relação linear entre o consumo da colestiramina e a redução do LDL-c, e a diminuição do risco coronariano correspondeu às alterações da dose da medicação e da taxa de redução do LDL-c (Tabela 7). A colestiramina exerce seu efeito predominante sobre o LDL-c, podendo apresentar pequenos aumentos no HDL-c (de 2% a 3%), como também pode ocasionar aumento de triglicérides secundário a aumentos da fração VLDL-c. Portanto deverá ser conFigura 3. tra-indicada àqueles pacientes que apresentem Ciclo dislipidemias mistas ou hipertrigliceridemia. enteroepático Partícula LDL Receptor LDL B-100 Colesterol Complexo de Golgi Síntese do receptor LDL Retícula endoplasmática Endossoma Colesterol Lisossoma Aminoácidos Núcleo Éster de colesterol Ácidos graxos Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 15 Além do ensaio clínico descrito anteriormente, as resinas também foram utilizadas em importantes estudos que se baseavam em dados angiográficos, como, por exemplo, no Clas (Ensaio de Redução dos Níveis de Colesterol na Aterosclerose), Fats (Ensaio de Tratamento da Aterosclerose Familial), Harp (Projeto Harvard de Reversibilidade da Aterosclerose) e Stars (Ensaio de Regressão da Aterosclerose de St. Thomas) (Tabela 8). (geralmente suco de laranja) e iniciadas sempre em pequenas doses (4g = um pacote de colestiramina) com aumentos sucessivos até a dose máxima recomendada de 24g/dia. Os pacientes devem ter os seus níveis de vitaminas solúveis em gordura checados periodicamente e a necessidade de uma reposição deve ser sempre avaliada, principalmente nas crianças. Podem apresentar interação medicamentosa com outros agentes igualmente iônicos se administrados simultaneamente; com warfarin, l-tiroxina, hidroclorotiazida e estatinas (de modo geral) essa interferência já está bem documentada e a administração da resina deverá ser feita uma hora antes ou quatro horas depois da tomada dos medicamentos citados. Efeitos adversos Como não são absorvidas pelo intestino, as resinas não possuem toxicidade sistêmica e são consideradas os hipolipemiantes mais seguros. No entanto provocam freqüentes intolerâncias digestivas (constipação, flatulência ou náuseas) já presentes em doses baixas do medicamento e que têm uma relação de piora com o aumento da dose utilizada. Outro ponto que prejudica a adesão do paciente ao tratamento com as resinas diz respeito a sua palatabilidade: relato de boca cheia de areia. Estas drogas deverão ser administradas misturadas a um líquido Considerações finais: custo/ efetividade do tratamento da hipercolesterolemia A avaliação da relação de custo/efetividade do tratamento para reduzir o colesterol depende da população em questão, do risco absoluto para DAC e da Tabela 7 – LRC-CPPT: resultados Dose (g/d) n % ∆ de LDL % ∆ de HDL % ∆ de TG Risco de DAC 0-4 294 - 6,6 + 5,2 + 10,7 - 10,9 4-8 145 - 8,7 + 2,3 + 12,7 8-12 135 - 13,1 + 5,5 + 12,9 12-16 156 - 16,5 +6 + 14,2 16-20 205 - 20,9 + 3,8 + 15,5 20-24 965 - 28,3 + 4,3 + 17,1 - 26,1 - 39,3 Adaptado de JAMA, v. 251, p. 365-74, 1984. Tabela 8 – Redução lipídica x regressão da placa x redução de eventos Grupo tratado Estudo ∆% estenose (p) % redução de eventos 89 ↓ 43 ↓ 7,7 (< 0,01) _____ 25 43 Esquema terapêutico LDL-c Stars D+R ↓ 36 Clas I D+R+N Clas II D+R+N ↓ 40 _____ Fats (N + C) D+R+N ↓ 32 ↓ 0,9 (0,005) 80 Fats (L + C) D+R+L ↓ 46 ↓ 0,7 (0,02) 70 D+P+R+N+F ↓ 41 ↑ 2,1 33 Harp D: dieta; R: resina; N: ácido nicotínico; L: lovastatina; P: pravastatina. 16 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 redução relativa alcançada. Depende ainda do custo da intervenção e, no caso de drogas, da dose utilizada e do preço unitário. Pode ser expressa por diminuições na morbimortalidade e em intervenções, reduções de risco, melhora em índices de qualidade de vida e como aumento no custo por ano de vida salva (sigla YLS). Na literatura internacional há um consenso em se considerar a abordagem da prevenção secundária, com o uso de estatina, mandatória e altamente compensatória do ponto de vista de custo/efetividade. Já com relação à prevenção primária, ficamos diante de todas as condicionais já descritas; o risco absoluto do paciente deve ser estabelecido, e em cima do resulta- do é que poderemos verificar se, do ponto de vista econômico (é bom ressaltar isso) vale a pena tratar. Há algumas publicações que colocam que se o risco exceder 1,5% ao ano, já teremos uma relação satisfatória para o uso de estatinas; de acordo com nossas diretrizes, os pacientes classificados como de médio risco estariam nesta categoria. Persiste a dúvida quanto àqueles pacientes jovens e portadores de alterações lipídicas (desde que não estejamos diante de uma hipercolesterolemia familiar, que por si só já leva o paciente à categoria de alto risco) sem outro fator de risco importante: trataremos ou não? Nestes casos, irão prevalecer a nossa avaliação e o bom senso. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 17 II.II Autores Edson A. Saad 1 José Geraldo de Castro Amino2 Avanços na detecção e na prevenção da doença coronariana (Parte I) A compreensão da base genética na doença arterial coronariana pode melhorar o seu manejo e prevenção. Os conhecimentos atuais sobre o assunto derivam de estudos familiares, em gêmeos, em modelos animais e em estudos de associação de genes, e todos eles confirmam uma participação genética na doença arterial coronariana. Os genes contribuem para o seu desenvolvimento e progressão e para a resposta aos fatores de risco, à sua modificação, e para o efeito do estilo de vida. Os estudos familiares são os melhores indicadores da predisposição à doença arterial coronariana, e refinamentos maiores são possíveis com os testes bioquímicos e de DNA. Muitos fatores de risco de doença cardiovascular herdada podem ser modificados, tais como o LDL-colesterol, a homocisteína e a lipoproteína A. A detecção precoce da doença arterial coronariana pode levar a intervenções mais precoces em indivíduos geneticamente suscetíveis. Contudo existem poucos dados relativos à eficácia deste método de prevenção para eventos clínicos importantes. O conhecimento da predisposição genética da doença arterial coronariana tem valor no manuseio da informação de riscos e para dirigir decisões terapêuticas, embora exista uma falta de evidência para este fenômeno. Isto faz com que novas pesquisas sejam necessárias para investigar os resultados da avaliação do risco genético na doença arterial coronariana. Trataremos subseqüentemente: 1) da evidência de que fatores genéticos podem contribuir para o desenvolvimento e a história natural da doença arterial coronariana; e 2) do papel da avaliação de risco genético na prevenção da doença arterial coronariana. O papel da genética Vários processos bioquímicos estão envolvidos na formação, na progressão da aterosclerose e nas síndromes coronarianas agudas, incluindo o metabolismo lipídico e das apolipoproteínas, resposta inflamatória, função endotelial, função plaquetária, trombose, fribrinólise, metabolismo na homocisteína, sensibilidade a insulina e regulação da pressão arterial. Cada um destes processos bioquímicos tem constituintes múltiplos como enzimas receptoras e ligandos, que são codificados pelos genes. Variações nos genes podem alterar a função destes constituintes, dentro de vias que resultam em suscetibilidade variável ao desenvolvimento e à progressão da aterosclerose. Geralmente a doença arterial coronariana pode ser considerada uma interação entre vários genes favoráveis e desfavoráveis e fatores ambientais. Os pacientes com maior número de fatores de risco, incluindo genéticos e ambientais, têm o maior risco de desenvolver aterosclerose em estágios precoces. Os fatores de risco ambientais e estilos de vida que predispõem a aterosclerose são os prevalentes nas sociedades ocidentais, incluindo o fumo, a inatividade e o excesso de calorias com alto teor de ingesta de lipídios. Como para a maioria das doenças comuns da idade adulta, a maior parte dos fatores genéticos que contribuem para a doença arterial coronariana é prevalente na população e de penetração baixa. Raramente a sensibilidade à aterosclerose é resultado de uma mutação genética única, como, por exemplo, acontece na hipercolesterolemia familiar devida a mutações do receptor LDL ou a mutações da apolipoproteína P, que estão presentes em 1:500 e em 1:1.000, respectivamente. Várias linhas de investigação fornecem evidências para uma base genética da doença arterial coronariana e os seus fatores de risco. Os métodos de investigação incluem o estudo de agregação familiar, de gêmeos, de modelos animais e das associações de genes. Agregação familiar Estudos de caso-controle mostram uma média de aumento de duas a três vezes do risco de doença arterial coronariana nos parentes de primeiro grau. História familiar de doença arterial coronariana antes dos 60 anos em um parente de primeiro grau é um fator de risco independente para o desenvolvimento de infarto do miocárdio precoce depois de correção para os fatores de risco tradicionais. Estudos prospectivos mostram que existe um aumento de uma e meia a duas vezes no risco de doença arterial coronariana associa- 1 Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF); Membro Titular da Academia Nacional de Medicina. Coordenador de Pesquisa no Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras/Ministério da Saúde. 2 18 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 da a história familiar depois do ajuste para os fatores de risco tradicionais. Os fatores de risco associados com a doença arterial coronariana também têm agregação em famílias doentes, e neste caso estão as anormalidades lipídicas, a hipertensão, o diabetes e a obesidade, sugerindo uma base genética para estas condições e explicando em parte a agregação familiar de coronariopatia. Estudos angiográficos demonstram que uma história familiar de coronariopatia é um fator de risco preditivo independente para a coronariopatia angiograficamente evidente. Também existe uma correlação entre a extensão da coronariopatia e a história familiar de infarto do miocárdio. História familiar de coronariopatia também está associada a evidências pré-clínicas de aterosclerose, como medidas, pelo índice de espessamento, da íntima para média nas artérias carótidas. Estudo recente mostra que evidências de coronariopatia estão presentes e são detectáveis por métodos não-invasivos, como a medida do espessamento na íntima e na média carotídea em indivíduos jovens com parentes com história prematura de coronariopatia. Um estudo epidemiológico genético analisou dados relativos a 19 fatores de risco tradicionais em 207 pacientes com infarto do miocárdio antes dos 55 anos e 621 controles. Em uma análise univariada, a razão de chance mais elevada estava associada à história familiar nos parentes de primeiro grau que desenvolveram doença coronariana antes dos 55 anos, e o risco estava aumentado 7,1 vezes nos parentes que foram diagnosticados antes dos 65 anos. Estes riscos são substancialmente maiores do que os associados com a elevação do colesterol acima de 270mg% (razão de chance = 4,3), fumo de pelo menos um maço de cigarros por dia (razão de chance 4), inatividade (razão de chance = 3,4). Este estudo mostra ainda que a hereditariedade para o início ou a ocorrência precoce da doença arterial coronariana é 0,63 e, após a exclusão de anormalidades aparentemente monogênicas do metabolismo lipídico, a estimativa é de 0,56, sugerindo que mais da metade da doença arterial coronariana diagnosticada antes da idade de 55 anos seja devida à contribuição de genes. Finalmente, vários estudos que investigaram a agregação familiar na coronariopatia aterosclerótica demonstraram que, quanto mais cedo é o início desta doença, maior é o risco dos parentes em primeiro grau. Em adição, o risco da doença é tipicamente muitas vezes maior em parentes de mulheres-caso em comparação com os homens. Estas características demonstram o tipo poligênico/ multifatorial da herança da doença arterial coronariana, com a ocorrência de doença clínica representando um limiar de vários fatores que se abatem sobre as mulheres e adultos jovens menos suscetíveis, mas que apresentam uma carga acentuada de genes predisponentes, transmitindo, assim, uma grande carga genética à sua descendência. Em famílias com doença arterial coronariana com início antes dos 46 anos, a hereditariedade é estimada em 90% a 100%, enquanto que em famílias dos casos que adquiriram doença coronariana mais tardiamente, o papel da hereditariedade varia entre 15% e 30%. Estudos em gêmeos Gêmeos têm sido úteis no estudo da contribuição genética a várias doenças comuns. Uma elevada concordância de um traço em gêmeos monozigóticos que compartilham todos os seus genes, em comparação com os gêmeos dizigóticos, que têm apenas a metade dos genes idênticos, sugere um componente genético. Os dados da contribuição genética à doença arterial coronariana em gêmeos provêm, principalmente, de um estudo dinamarquês iniciado em 1954 e que inclui cerca de 8 mil pares de gêmeos não-selecionados. Uma diferença significativa em concordância para mortes por doença coronariana foi observada em gêmeos monozigóticos em comparação com os dizigóticos, em homens e mulheres: 39% vs. 26% e 44% vs. 14%, respectivamente. Os estudos mostram também um índice de concordância similar para infarto do miocárdio fatal e não-fatal. Modelos animais Excelentes modelos animais de mesma linhagem existem para aterosclerose e condições associadas: hipertensão, diabetes melito, dislipidemias e obesidade. Associações de genes em modelos animais podem mesmo resultar na identificação de genes candidatos para estudos em famílias de humanos. Estudos de associações de genes Vários polimorfismos genéticos estão associados com aterosclerose (Quadro 1). Genericamente eles são genes candidatos de vias bioquímicas implicadas no desenvolvimento e na progressão da aterosclerose. Inúmeros estudos mostraram associações de genes com doenças relacionadas e indiretamente implicadas no desenvolvimento e na progressão da coronariopatia, tais como hipertensão, obesidade e diabetes. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 19 Quadro 1 – Genes candidatos implicados no risco de aterosclerose em humanos • Metabolismo lipídico Apolipoproteína (a) [LP(a)] Apolipoproteína B Apolipoproteína E Proteína de transferência do colesterol esterificado Receptor LDL Lipase lipoprotéica Paraoxonase • Regulação da pressão arterial Angiotensinogênio Receptor da angiotensina II, tipo 1 Inibidor da enzima conversora da angiotensina • Metabolismo da homocisteína Cistationina beta-sintetase Metileno tetraidrofolato redutase • Trombose Fator II (protrombina) Fator V (fator V Leiden) Fator VII • Fibrinólise Fibrinogênio Inibidor 1 do ativador do plasminogênio • Função plaquetária Glicoproteína IIIa • Função endotelial/resposta inflamatória Molécula de adesão leucocitária endotelial (selectina E) Óxido nítrico sintetase da célula endotelial • Miscelânea Lócus de ataxia teleangiectasia Lócus de síndrome de Werner Álcool deidrogenase de tipo 3 Adenosina monofosfato deaminase-1 Investigações recentes utilizando avaliação genômica encontraram locais genéticos adicionais associados com doença arterial coronariana, hipertensão e diabetes. Análises de ligação em famílias com aterosclerose prematura mostraram evidências para ligações com uma região do cromossoma 2q21.1-22 e Xq23-26. Alguns fatores genéticos aumentam a progressão e a incidência de eventos clínicos coronarianos por in- 20 fluenciar as respostas às modificações dos fatores de risco e estilo de vida, tais como dieta, álcool e uso de terapêutica de substituição hormonal pós-menopausa. Para citar um só exemplo, um estudo recente mostrou que 40% da variação individual do colesterol LDL em resposta à dieta com redução de gorduras saturadas representam um traço familiar. Mensuração da suscetibilidade genética à doença arterial coronariana Suscetibilidade genética para doença arterial coronariana pode ser avaliada por vários métodos que incluem testes com base em DNA, avaliação fenotípica de traços bioquímicos, características físicas, bem como história pessoal e familiar. O exame físico pode mostrar dados importantes, tais como xantomas tendinosos e xantelasmas encontrados nas doenças hereditárias dos lipídios, o estigma de síndrome de Marfan, síndrome de Ehlers-Danlos e pseudoxantoma elástico. Contudo estas síndromes hereditárias são raras e respondem apenas por uma pequena porcentagem de doença cardiovascular. Por outro lado os marcadores de DNA associados com o risco de doença arterial coronariana são geralmente prevalentes e de baixa magnitude, de tal forma que isoladamente eles não são altamente preditores de risco de doença coronariana. Portanto a história familiar sistemática parece no momento ser a mais apropriada avaliação para identificação de indivíduos com suscetibilidade genética a doença coronariana. O Quadro 2 mostra as características na história familiar de suscetibilidade genética a doença arterial coronariana. Agregação familiar de doença arterial coronariana, acidente vascular cerebral, hipertensão arterial, dislipidemia e diabetes do tipo 2 sugerem resistência à insulina referida com freqüência como síndrome X. De um modo geral, os relatórios da história familiar de doença coronariana são geralmente acurados, com uma sensibilidade de 67% a 85%. Ocorrência na história familiar de diabetes e hipertensão tem uma sensibilidade semelhante. Os valores de especificidade para a ocorrência na história clínica familiar destas condições se aproximam de 90%. Assim, uma história familiar positiva pode geralmente ser usada com alto grau de confiança para identificação de indivíduos que podem estar em risco aumentado de desenvolver doença arterial coronariana. História familiar de doença cardiovascular, incluindo doença arterial coronariana, acidente vascular e síndrome X, é a característica mais comum e relatada em 34% dos casos de coronariopatia. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Aplicação clínica da informação de suscetibilidade genética na prevenção da coronariopatia A redução do colesterol é uma importante estratégia clínica para a prevenção primária e secundária da doença arterial coronariana. Contudo, a despeito de uma redução lipídica efetiva, uma proporção substancial de indivíduos desenvolve aterosclerose coronariana ou tem progressão da sua doença. Em adição, vários investigadores manifestam a sua preocupação em relação a segurança e custo/efetividade desta forma de prevenção. Além disto, um colesterol elevado não é um preditor sensível de indivíduos com a maior possibilidade genética para doença arterial coronariana. Em um estudo de adultos com doença arterial coronariana prematura, apenas 38% tinham valores lipídicos anormais. A anormalidade mais comum foi a elevação da LP(a), que ocorreu em 19% dos casos e que não é detectada com o exame rotineiro do colesterol, e apenas 3% tinham LDL-colesterol elevado. A doença arterial coronariana é uma desordem heterogênea. Portanto não é razoável esperar que uma via simples de prevenção possa existir para todos os pacientes. O conhecimento da suscetibilidade genética à doença coronariana pode identificar diferenças biológicas importantes que poderiam vir a melhorar o manuseio e a prevenção da doença coronariana através de terapêuticas dirigidas. A incapacidade de reconhecer estas diferenças pode resultar em falta de acesso apropriado aos cuidados médicos daqueles pacientes que se beneficiariam de estratégias de manuseio e prevenção alternativas. A melhoria em vários fatores de risco cardiovasculares hereditários é possível. Por exemplo, a suplementação com co-fatores envolvidos no metabolismo da homocisteína, como as vitaminas B6 e B12 e os folatos, é eficaz para reduzir os níveis de homocisteína, particularmente se existe uma deficiência vitamínica. Do mesmo modo, o uso de estrogênios e testosterona em homens e mulheres e de ácido nicotínico reduz a lipoproteína A. Contudo faltam dados relativos à eficácia da prevenção de eventos clínicos cardiovasculares em indivíduos que tiveram modificados fatores genéticos mais recentemente descritos, como a homocisteína e a lipoproteína A. A despeito destes fatos, indivíduos com maior suscetibilidade genética para doença arterial coronariana detectada na história familiar e na presença de novos fatores de risco podem ter um grande benefício com as estratégias preventivas tradicionais, como a variação e o tratamento dos níveis elevados de colesterol. Estratégias para detecção precoce Estratégias para detecção precoce de doença arterial coronariana não são geralmente recomendadas para a população em geral, uma vez que muitos métodos não têm sensibilidade e especificidade adequadas, enquanto que outros são muito invasivos ou dispendiosos. A despeito disto, o uso e a detecção precoce da doença coronariana com a tomografia por feixe de elétrons podem ser custoefetivos para indivíduos de alto risco segundo sua suscetibilidade genética. Existe uma evidência considerável de que as calcificações coronarianas se correlacionam altamente com a presença e o grau de doença coronariana obstrutiva, ou não-obstrutiva, e infarto não-fatal, tornando necessária a revascularização coronariana em indivíduos assintomáticos ou sintomáticos. Também os estudos com tomografia por feixe de elétrons, como o Spect, são capazes de identificar isquemia silenciosa significativa. Nenhum dos pacientes com score coronariano menor que 10 teve uma imagem de Spect positiva. Cintilografias anormais são encontradas em 2,6% com score de 11 a 100; 11,3%, com score de 101 a 399; e 40% com score de 400 ou mais. Quando a doença coronariana é identificada em indivíduos com alto risco de suscetibilidade genética, uma conduta mais agressiva para modificação dos fatores de risco e uma consideração de intervenção com medidas profiláticas, como a angioplastia coronariana ou a cirurgia de revascularização miocárdica, pode estar indicada. Aconselhamento e educação genética em relação à suscetibilidade à doença arterial coronariana Um objetivo importante da avaliação genética na doença arterial coronariana é o desenvolvimento de estratégias preventivas individualizadas baseadas na avaQuadro 2 – Características da predisposição genética à doença arterial coronariana • Início precoce da coronariopatia (antes dos 60 anos) • Doença de múltiplos vasos • Múltiplos fatores de risco • Refratariedade à modificação dos fatores de risco convencionais • História familiar de coronariopatia, especialmente de mulheres afetadas • História familiar de doenças relacionadas, como, por exemplo, diabetes, hipertensão, AVC e desordens do metabolismo lipídico Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 21 liação do risco genético, bem como na história médica do paciente, no estilo de vida e nas preferências. A participação dos pacientes no processo é vital para o sucesso do plano preventivo. O aconselhamento genético é um componente integral da avaliação genética e é crítico para delinear motivação de pacientes e a sua compreensão da avaliação do risco genético. Via de regra os indivíduos estão motivados a participar da avaliação do risco genético com esperança de que ela irá mostrar o plano mais apropriado para o manuseio e a prevenção da doença e também pelos benefícios que a informação genética pode trazer para os seus familiares. Vários estudos mostraram que uma história familiar pode influenciar na adesão à avaliação dos lipídios e outras intervenções preventivas. Existem barreiras à obtenção de informação do risco genético que incluem o medo de discriminação quer no local de trabalho, quer com seguradoras, custo e incerteza a propósito do valor da intervenção. A evidência de discriminação genética em indivíduos normais é mínima. Desde 1990 tem havido um interesse crescente relativo ao uso de informação genética por seguradoras de saúde. Em 1996 o Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA) se tornou, nos Estados Unidos, a primeira lei federal para limitar o uso de dados genéticos por seguradoras de saúde. Ele proíbe a planos de medicina de grupo, por exemplo, usar a predisposição genética à doença como uma condição preexistente que poderia retardar ou limitar a cobertura de saúde. Triglicerídeo: fator de risco ou companheiro de viagem? Um assunto não resolvido na cardiologia preventiva é se os triglicerídeos séricos são um fator de risco independente de doença arterial coronariana e, conseqüentemente, se possuem valor como teste diagnóstico. Evidências publicadas a partir do ano 2000 contribuíram substancialmente para clarificar este assunto. Metabolismo dos triglicerídeos Os triglicerídeos são formados no processo de transferência de gordura do intestino para o sangue. Neste processo eles são veiculados principalmente pelas proteínas de muito baixa intensidade (VLDL). Os triglicerídeos são metabolizados pela lipase lipoprotéica para um remanescente que é removido durante a passagem através do fígado, onde ele também é armazenado. Alguns destes remanescentes são metabolizados pela lipase hepática em lipoproteínas de baixa densi- 22 dade (LDL), que também são armazenadas no fígado. Pacientes com doença arterial coronariana e diabetes exibem diferenças substanciais no seu metabolismo dos triglicerídeos em relação aos indivíduos normais. Em pacientes com doença arterial coronariana, os níveis pós-prandiais de triglicerídeos são aproximadamente o dobro daqueles que ocorrem nos normais 4 a 5 horas após a ingestão de uma refeição gordurosa. Imagens ultra-sônicas carotídeas mostram que a ecotransparência das placas ateroscleróticas está associada com o aumento dos níveis de lipoproteínas ricas em triglicerídeos, bem como com o seu conteúdo lipídico. A hipertrigliceridemia pós-prandial se correlaciona com a espessura da íntima e média das carótidas. Quilomícrons ou os seus remanescentes penetram na parede aórtica tão eficientemente quanto as moléculas menores, incluindo o LDL e o HDL. A velocidade de acumulação na parede de um vaso e a duração da retenção de quilomícrons/remanescentes radioativos são maiores do que as do LDL, e são positivamente relacionadas ao grau de hiperglicemia. Conseqüentemente um mecanismo pelo qual os triglicerídeos podem contribuir para um aumento do risco de aterosclerose é diretamente através do acúmulo na parede do vaso, iniciando-se um processo bem estabelecido que acompanha a acumulação das lipoproteínas de baixa densidade. Níveis séricos de triglicerídeos e risco de doença arterial coronariana Os níveis de triglicerídeos séricos têm sido positivamente associados com o risco de desenvolver doença arterial coronariana. Por exemplo, na base de dados de Framingham, Castelli et al. encontraram um incremento de duas vezes no risco de doença coronariana em pacientes com níveis de triglicerídeos séricos na faixa de 250mg% a 400mg% em comparação com aqueles na faixa de 50mg% a 100mg%. Uma das maiores bases de dados epidemiológicos da hipertrigliceridemia, o Munster Heart Study (Procam), envolve cerca de 13.737 homens e 5.961 mulheres observados por oito anos. Neste estudo, níveis moderadamente elevados de triglicerídeos constituem um fator de risco para doença coronariana, independentemente de LDL e HDL. Metanálise do risco de doença arterial coronariana em relação aos níveis de triglicerídeos séricos sugere que um nível elevado de triglicerídeos confere um risco aumentado para desenvolver doença coronariana mesmo após o ajuste para HDL colesterol. A dificuldade em atribuir um risco independente para os triglicerídeos em rela- Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 ção à doença arterial coronariana é, contudo, a sua típica e íntima associação com outros fatores de risco. Triglicerídeos elevados constituem um importante componente da chamada síndrome metabólica, que inclui obesidade, hipertensão, hipertrigliceridemia, diminuição das lipoproteínas de alta densidade (HDL), predomínio das lipoproteínas pequenas, densas, de baixa densidade (LDL), diminuição da tolerância a glicose e insulinorresistência. Em um estudo elegante, Sprecher et al. analisaram o significado prognóstico em quatro dos componentes das síndromes metabólicas, a saber: obesidade, diabetes, hipertensão e hipertrigliceridemia em 6.428 pacientes pós-cirurgia de by-pass aortocoronariano, durante oito anos, na Cleveland Clinic. A mortalidade analisada variou de 1% naqueles sem nenhum fator de risco a 3,3% naqueles com todos os quatro fatores de risco. Separando homens e mulheres, o risco para os que têm quatro fatores de risco foi de 2,6% nos homens e 13,4% nas mulheres. Importantemente, a sobrevida dos pacientes sem os componentes da síndrome excedeu a 95% em oito anos, enquanto que aqueles com a síndrome tiveram uma sobrevivência de apenas 80%. Como a insulinorresistência é associada com aumento substancial na prevalência de lipoproteínas de baixa densidade, lipoproteínas de alta densidade e triglicerídeos séricos reduzidos, não é possível separar estes componentes individuais do padrão lipídico ou atribuir um aumento de risco de doença coronariana a um fator lipídico individualmente. Com base nestes estudos é possível concluir, contudo, que os níveis elevados de triglicerídeos estão associados com um aumento substancial no risco de doença coronariana, e que os triglicerídeos séricos se agrupam com outros fatores que predispõem ao risco aumentado e que esta agregação impede a análise de associação independente de um destes fatores com a incidência de doença coronariana. Conseqüentemente, as medidas de triglicerídeos séricos têm valor como instrumento diagnóstico. O impacto dos ensaios clínicos Durante vários anos o melhor estudo sobre a terapêutica para reduzir os triglicerídeos séricos foi o Helsinki Heart Study, conduzido em 4.081 pacientes entre 40 e 55 anos assintomáticos e dislipidêmicos. Nestes pacientes, o genfibrosil na dose de 600mg duas vezes ao dia foi comparado com placebo em um período de cinco anos. O colesterol total e o LDL reduziram-se em 10% e 11%, respectivamente, e o HDL aumentou em 11%. Os triglicerídeos séricos baixaram 35%. Estas alterações nos parâmetros lipídicos foram acompanhadas por uma redução de 34% na incidência de doença arterial coronariana. Estes dados sugerem que a redução dos triglicerídeos séricos tem benefício terapêutico, mas, devido ao fato de que o HDL colesterol foi também alterado numa direção benéfica e que não existem estudos confirmatórios, o assunto permaneceu não-resolvido. Além disso, é preciso lembrar que a aplicabilidade destes estudos se faz em indivíduos de sexo masculino entre 40 e 55 anos de idade apenas. A suspeição de que os triglicerídeos possam ser um elemento ao lado e nãocausal foi confirmada por uma análise de subgrupos dos dados de Helsinki, que apontaram o colesterol HDL basal como um fator crítico. O benefício da redução dos níveis séricos de triglicerídeos foi confinado ao grupo com relação LDL/HDL > 5, não tendo havido diferença entre o placebo e o grupo de tratamento quando esta relação LDL/HDL foi ≤ 5. Assim, embora a redução dos triglicerídeos reduza a incidência de doença arterial coronariana, o mecanismo responsável por este efeito benéfico ainda não foi elucidado. Muitos anos se passaram até que um outro importante ensaio de redução de lipídios tivesse sido relatado. O ensaio Becait comparou o destino angiográfico de 81 pacientes tratados com bezafibrato ou placebo e observados por um período de cinco anos. Neste grupo os triglicerídeos séricos foram reduzidos em 46%, e o VLDL, em 53%, enquanto que o HDL aumentou 9% com uma mudança na distribuição dos LDL para partículas mais largas no grupo tratado com bezafibrato. Alterações no colesterol total e no LDL foram relativamente insignificantes. Após cinco anos, o grupo tratado demonstrou um aumento de 0,13mm no diâmetro luminal coronariano mínimo, enquanto que no grupo placebo não houve tal benefício. Estes dados parecem demonstrar a possibilidade de um efeito benéfico da redução dos triglicerídeos séricos e/ou da elevação de HDL. Os dados do Becait foram validados pelo ensaio Vahit publicado em 1999. Neste ensaio, 2.531 pacientes com doença coronariana e com HDL baixo (menor que 40mg%), mas níveis relativamente normais de LDL (140mg%), foram tratados com genfibrosil na dose de 1.200mg por dia por cinco anos. As lipoproteínas de baixa densidade não foram modificadas durante o tratamento, enquanto que os triglicerídeos caíram 31% e o HDL aumentou 6%. Estas alterações no perfil lipídico estiveram associadas com uma redução de 20% a 25% no infarto do miocárdio, na morte e em acidente vascular cerebral. Com base nestes dados, por- Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 23 tanto, é possível propor que existe um padrão consistente: pacientes com níveis baixos de HDL, com ou sem doença arterial coronariana conhecida, têm uma redução substancial no número de eventos cardíacos, com o benefício da redução dos triglicerídeos séricos induzido pelo fibratos, os quais eram acompanhados por um modesto aumento de HDL e por nenhuma alteração significativa de LDL. Pouco depois da publicação do ensaio Vahit, o Bezafibrato Infarction Prevention Trial (BIP) foi publicado. Este ensaio envolveu 3.090 pacientes portadores de doença arterial coronariana observados por 6,2 anos. Os dados de lipídios, duração do follow-up e magnitude da alteração dos fatores lipídicos individuais foram grosseiramente comparáveis com aqueles do ensaio Vahit. Neste estudo não houve um decréscimo significativo na mortalidade cardíaca, e apenas 9,4% de diminuição de eventos cardíacos não-fatais (p = 0,26). Essa diferença se deve à convergência da curva de eventos, refletindo um achatamento não-explicado da curva de placebo no final do estudo. As diferenças entre o Vahit e o BIP continuam não-explicadas. Neste contexto, o ensaio mais recente, o Diabetes Atherosclerosis Intervention Study (Dais), parece confirmar os resultados do Vahit, do Becait e de outros ensaios. No Dais, 418 pacientes diabéticos do tipo 2 com doença coronariana angiograficamente comprovada foram tratados com fenofibrate 200mg ou placebo micronizado diariamente, por três anos, sendo, então, o estudo angiográfico repetido. As lipoproteínas de baixa densidade diminuíram apenas 5%, mas os triglicerídeos diminuíram 30% e o HDL aumentou 8%. Pacientes no grupo fenofibrate tiveram aumentos significativamente menores no diâmetro de estenose e menores diminuições no diâmetro luminal mínimo. O estudo não teve força para avaliar endpoints clínicos, mas houve uma redução de 23% nos eventos cardíacos no grupo fenofibrate. A eficácia dos fibratos parece, pois, maior nos pacientes com síndrome metabólica. Estratégias de manuseio da hiperlipidemia O primeiro passo numa estratégia de redução de triglicerídeos é a modificação do estilo de vida. De todas as frações lipídicas séricas, os triglicerídeos constituem as mais sensíveis às modificações dietéticas. No Nurses Health Study, 84.129 mulheres foram observadas por 24 14 anos. Nos indivíduos cujo estilo de vida correspondia às diretrizes recomendadas sobre fumo, peso, dieta, exercício e álcool, o risco relativo de desenvolver doença coronariana recente foi de apenas 17% do risco de todos os homens e mulheres na coorte, levando os autores a concluir que mais de 80% dos eventos cardiovasculares nesta coorte poderiam ser atribuíveis aos fatores ligados ao estilo de vida. Apenas 3% desta coorte, no entanto, se enquadravam nestas diretrizes de estilo de vida. A terapêutica por estatinas resulta numa redução substancial nos níveis de LDL e triglicerídeos, particularmente quando altas doses de estatinas possantes são utilizadas. A redução dos triglicerídeos séricos é grosseiramente comparável àquela que pode ser obtida com os fibratos, e a elevação concomitante do HDL é também de magnitude similar. Conseqüentemente, a maior parte dos lipidologistas preferem iniciar a terapêutica com uma estatina quando o LDL está elevado e os triglicerídeos são menores do que 400mg%. Quando os níveis de LDL colesterol atingem os limites considerados satisfatórios mas os triglicerídeos continuam elevados, é necessária a adição de fibrato ou niacina para o tratamento. A terapêutica medicamentosa múltipla é às vezes apropriada. Se a niacina é adicionada, uma atenção particular deve ser dedicada aos níveis séricos de glicose. Se um fibrato é usado em conjunto com uma estatina, o médico precisa estar alerta para o desenvolvimento potencial de miosite ou rabdomiólise. O doente precisa estar informado para relatar ao médico qualquer dolorimento muscular que se desenvolva. O uso concomitante de estatinas com outros medicamentos cria a necessidade de uma monitorização mais rigorosa dos níveis de enzimas hepáticas. Quando os triglicerídeos séricos excedem 300mg% a 400mg% e o LDL está em um nível relativamente normal, os fibratos são a primeira opção de terapêutica. Uma segunda droga hipolipemiante deve ser adicionada se os outros parâmetros permanecerem anormais após a redução dos triglicerídeos para menos de 200mg%. Aparentemente, pois, a melhor estratégia para o tratamento da elevação dos triglicerídeos séricos acima de 400mg% é primeiro o foco nos triglicerídeos séricos; quando os triglicerídeos estão menores do que 400mg%, o primeiro foco deve ser no LDL. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Qualificando o tratamento cirúrgico orovalvar A abordagem do paciente valvar oferece um espectro amplo desde a primeira avaliação até a sala de cirurgia. O momento exato de indicação cirúrgica tem apresentado mudanças ao longo do tempo. Fatores antes considerados de mau prognóstico hoje são pouco valorizados, pelo evidente progresso na cirurgia cardíaca nos últimos 30 anos. Este processo é contínuo e muitas das atuais indicações talvez não mais o sejam em alguns anos. Valva mitral A valvopatia mitral por obstrução, estenose mitral, caracteriza-se pela lenta evolução até sintomas incapacitantes. A presença de classes funcionais III e IV pelo New York Heart Association (NYHA) é a indicação padrão para tratamento cirúrgico (Quadro). Em pacientes em classe funcional II ou I as indicações variam de acordo com a presença de hipertensão pulmonar ou sinais de tricuspidização. A morfologia valvar é de importância ímpar, pois, em presença de escore ecocardiográfico menor ou igual a oito (usando-se os critérios universalmente aceitos: mobilidade, espessamento, aparelho subvalvar e calcificação da valva mitral), é factível – e até mandatório quando há disponibilidade local – a realização de procedimento percutâneo. Diretrizes internacionais sugerem tratamento precoce por valvuloplastia por balão (VPCB) mesmo no paciente assintomático, se houver área valvar menor que 1,5cm2, argumentando que há preservação dos mecanismos(1). Contudo, alerte-se que a VPCB não é um procedimento isento de riscos, e preferimos indicá-la quando, de fato, houver incapacidade física progressiva ou pressão pulmonar elevada (ao menos acima de 60mmHg) (Quadro). As pacientes grávidas fazem parte de um grupo especial em que, por vezes, é necessária a VPCB durante a gestação. Sempre que houver indicação clínica de intervenção e desejo da paciente de engravidar, a VPCB deve preceder a gestação, dentro de um planejamento familiar. II.II Autores Pablo Maria Alberto Pomerantzeff 1 Roney Orismar Sampaio2 Carlos Manuel de Almeida Brandão3 Max Grinberg4 Número considerável de pacientes apresenta anatomia desfavorável à VPCB e, nesta situação, a comissurotomia mitral a céu aberto, com o auxílio da circulação extracorpórea, torna-se a cirurgia de eleição. O acesso à valva mitral é realizado rotineiramente através da atriotomia esquerda, com inspeção cuidadosa da aurícula esquerda para a investigação de trombos. Em muitos casos, associamos a papilarotomia, bem como a remoção de cálcio ou fibrose. Na presença de sinéquia papilovalvar, o papilar deve ser seccionado ao meio, deixando-se apoio para as duas cúspides. Após a abertura da valva, deve-se testar a mesma quanto à presença de insuficiência, através da injeção de solução salina no ventrículo esquerdo, com o coração batendo, ou através de método complementar de melhor acurácia: o ecocardiograma transesofágico. O tratamento cirúrgico da estenose mitral tem apresentado resultados satisfatórios, com baixa morbimortalidade. Estudando 44 pacientes submetidos a comissurotomia mitral, notamos uma diminuição significativa do gradiente transvalvar médio após 12 meses e aumento significativo da área. Não houve mortalidade operatória e todos os pacientes involuíram para classe funcional I (NYHA)(2). A insuficiência mitral crônica caracteriza-se pela remodelação progressiva das câmaras esquerdas(3). A complacência atrial permite o represamento de grandes volumes com manutenção da pressão pulmonar em níveis adequados por longo período. A perda dos mecanismos adaptativos resulta em disfunção 1 Livre-Docente em Cirurgia pela Universidade de São Paulo (USP); Diretor da Unidade Cirúrgica de Valvopatia do Instituto do Coração (Incor). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da USP. 3 Doutor em Cirurgia Torácica e Cardiovascular pela Faculdade de Medicina da USP; Médico Assistente da Unidade Cirúrgica de Valvopatia do Incor. 4 Professor Livre-Docente pela FM/USP; Diretor da Unidade Clínica de Valvopatia do Incor. 2 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 25 Quadro – Critérios de indicação cirúrgica Classe I Classe IIa Estenose mitral* 1. CF III e IV + AVM < 1,5cm2 1. CF I e II + AVM < 1cm2 + HP Insuficiência mitral 1. Insuficiência mitral aguda sintomática 2. CF II, III e IV com FEVE > 0,6 e DsVE < 45mm 3. Independente dos sintomas + FEVE 0,5-0, 6mm e DsVE 45-50mm ou FEVE 0,3-0,5 e DsVE 50-55mm 1. Assintomático + FEVE > 0,6 + a) FA e/ou b) HP (50-60mmHg) e/ou c) DsVE 45-50mm 2. Assintomático + FEVE 0,5-0,6 + DsVE < 45mm 3. Provável conservação valvar + FEVE > 0,3 e DsVE > 55mm Estenose aórtica 1. Estenose importante + a) Presença de sintomas b) Necessidade de revascularização do miocárdio c) Necessidade de cirurgia da aorta ou em outra valva 1. Estenose aórtica moderada + a) Revascularização do miocárdio b) Cirurgia da aorta ou em outra valva 2. Assintomático 1 + estenose importante + a) Disfunção sistólica do VE b) Resposta anormal ao exercício Insuficiência aórtica 1. CF III ou IV + FEVE > 0,5 2. CF II + FEVE > 0,5 em declínio 3. Independente dos sintomas + FEVE < 0,5 4. Necessidade de revascularização do miocárdio ou cirurgia da aorta ou em outra valva 1. FEVE > 0,5 a) CF II b) CF I + DdVE > 75 ou DsVE > 55 Adaptado das diretrizes norte-americanas. *Considerar valvuloplastia percutânea por cateter balão. Abreviaturas: CF: classe funcional; AVM: área valvar mitral; HP: hipertensão pulmonar; FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; FA: fibrilação atrial; VE: ventrículo esquerdo; DdVE: diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo; DsVE: diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo. ventricular, aparecimento de arritmias supraventriculares, como a fibrilação atrial ou sintomas de insuficiência cardíaca congestiva. Assim como observado na estenose mitral, fatores de mau prognóstico como a hipertensão pulmonar ou o aparecimento de fibrilação atrial sugerem avanço na história natural. Todavia sinais de exaustão dos mecanismos de remodelação ventricular nem sempre são facilmente identificáveis. Assim, discutem-se sugestões de tratamento cirúrgico cada vez mais precoce. Pacientes em classe funcional avançada (III e IV/NYHA) necessitam de correção cirúrgica imediata (Quadro). A disfunção ventricular esquerda é também um marco para a indicação operatória. Pacientes em classe funcional II, e sobretudo em 26 classe funcional I, formam um grupo à parte. Este grupo freqüentemente está associado a refluxo mitral de longa data e necessitam de correção cirúrgica na maioria das vezes. Os diâmetros ventriculares servem de orientação para conduta, mas não podem ser determinantes. O uso de medidas ventriculares, como 45mm de diâmetro sistólico, tem sido preconizado(1) na tentativa de facilitar a indicação (Quadro). Além de insuficiente, é controverso e perigoso admitir um paciente na sala de cirurgia com base exclusiva nos seus diâmetros ventriculares. Não há garantia da preservação da função ventricular e ao mesmo tempo há a morbimortalidade operatória. A anatomia valvar, mais uma vez, é um determinante importante da conduta. A pre- Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 servação da valva em portadores de prolapso mitral, especialmente do folheto posterior, determina maior precocidade na indicação operatória, mesmo em pacientes oligossintomáticos. Vale lembrar que diretrizes são determinações gerais de conduta, baseadas em estudos científicos nem sempre suficientemente consistentes, e muitos casos necessitam de individualização. A correção cirúrgica da valva mitral pode ser por plástica ou troca de valva. O termo plástica nas cirurgias valvares é utilizado para designar técnica ou conjunto de técnicas que possibilita a correção do refluxo nas lesões valvares. As vantagens da plástica mitral sobre a substituição valvar são a menor morbimortalidade, menor taxa de tromboembolismo e endocardite bacteriana, e melhor função ventricular esquerda. Nos pacientes jovens, a plástica mitral adquire maior importância, uma vez que a calcificação das biopróteses é precoce e a anticoagulação para os portadores de próteses mecânicas não é isenta de riscos. Para a obtenção de bons resultados com a plástica da valva mitral é necessário o conhecimento da anatomia normal da valva mitral, bem como o domínio de várias técnicas de reconstrução. O estudo ecodopplercardiográfico pré-operatório auxilia no planejamento da reconstrução valvar, assim como o exame ecodopplercardiográfico esofágico intra-operatório na avaliação do resultado. Quando a insuficiência mitral for secundária à dilatação do anel, podem-se utilizar anéis protéticos, como os de Carpentier, Gregori, Duran, Cosgrove, ou a anuloplastia posterior com tira de pericárdio bovino. Nos pacientes com alongamento de cordas, pode-se encurtá-las junto ao papilar, à cúspide, ou encurtar os papilares. A rotura de cordas da cúspide posterior secundária à degeneração mixomatosa pode ser corrigida com a ressecção quadrangular da porção correspondente da cúspide, anuloplastia segmentar com reforço de tiras de teflon e sutura borda a borda da cúspide. Quando a rotura de cordas for da cúspide anterior, podem-se utilizar técnica de transferência de cordas, implante de cordas artificiais ou ressecção em cunha com plicatura da cúspide. Quando existe retração das cúspides, estas podem ser ampliadas com remendos de pericárdio autólogo ou bovino. Perfurações de cúspides também podem ser corrigidas com estes remendos. A plástica mitral tem sido realizada em pacientes portadores de febre reumática, prolapso devido à degeneração mixomatosa, insuficiência mitral congênita, isquêmica, pós-endocardite, endomiocardiofibrose e na miocardiopatia dilatada. A experiência do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo com a plástica da valva mitral constitui-se de 726 casos nos últimos dez anos. A mortalidade hospitalar encontrase em torno de 4,5%, com uma sobrevida atuarial de 71,7% e 65,0% livre de reoperação(4). Valva tricúspide A cirurgia exclusiva da valva tricúspide é rara. Normalmente ocorre na doença reumática em associação com a valvopatia mitral. Muitos casos de valvopatia mitral são acompanhados de hipertensão pulmonar e dilatação de câmaras direitas. A tricuspidização é caracterizada pela progressiva insuficiência da valva tricúspide, que serve como valva de escape frente à hipertensão pulmonar progressiva e à redução da função ventricular direita. A tricuspidização representa história natural avançada e necessita de correção operatória. A comissurotomia, dependendo do aparelho valvar, é o tratamento cirúrgico de escolha da estenose tricúspide isolada. A insuficiência tricúspide geralmente é secundária à dilatação do anel tricuspídeo. Várias técnicas podem ser utilizadas para a correção, como a anuloplastia de De Vega, Revuelta, da mesma forma que a bicuspidização da valva tricúspide. Em casos de grandes dilatações anulares, está indicada a anuloplastia com anel de Carpentier ou com tira de pericárdio bovino, pois tem sido descrita desinserção da sutura nestes casos com a técnica de De Vega. Valva aórtica A hipertrofia concêntrica, com preservação dos diâmetros e da função do ventrículo esquerdo, caracteriza a obstrução valvar aórtica. Longo período assintomático, em geral acompanhado de elevação da pressão diastólica e disfunção ventricular esquerda, é observado até os sintomas. O grande dilema do médico diante do portador de estenose aórtica é a definição do assintomático. Muitos pacientes supostamente assintomáticos se autolimitam, talvez pelo receio do tratamento cirúrgico (Quadro). Reduzida capacidade ao exercício ou hipotensão durante ergometria sugerem estenose aórtica com repercussão hemodinâmica importante. A presença de área valvar menor que 0,7cm2, gradiente transvalvar acima de 60mmHg ou velocidade sistólica acima de 4m/s e intensa calcificação da valva indicam maior atenção, pois os sintomas e a indicação cirúrgica quase sempre ocorrerão em dois ou três anos. Por outro lado, hipertrofia miocárdica importante (acima de 15mm) e taquicardia ventricular Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 27 não-sustentada, embora demonstrem avanço na história natural, envolvem menor risco de morte súbita, podendo ser observadas clinicamente por maior período(1). Alías, a morte súbita é rara no paciente assintomático: menor que 1%/ano, não devendo ser indicado o tratamento operatório neste grupo. Na estenose aórtica congênita, a valva aórtica pode se apresentar com três, duas ou, mais raramente, uma válvula indiferenciada. Nos casos mais graves, existe hipoplasia do anel aórtico ou do ventrículo esquerdo. Deve-se realizar a comissurotomia aórtica respeitando-se os pontos de sustentação da valva, de forma a obter abertura satisfatória do orifício valvar sem criar ou agravar o refluxo. Na estenose aórtica calcificada, degenerativa ou reumática, a comissurotomia associada à descalcificação e ao desbastamento das válvulas é factível e pode ser realizada sobretudo se o cálcio se encontra aposto ao tecido valvular. A insuficiência aórtica caracteriza-se pela presença de três compartimentos (aorta, ventrículo esquerdo e periferia) que interagem durante a história natural, postergando o aparecimento dos sintomas através dos mecanismos adaptativos. Como na insuficiência mitral, observamos a utilização de parâmetros ecocardiográficos ou hemodinâmicos, com intuito de universalizar e até mesmo uniformizar a indicação cirúrgica dos portadores de insuficiência aórtica. Não há dúvidas quanto à indicação operatória nos pacientes em classe funcional III ou IV, ou ainda na presença de disfunção ventricular. Entretanto encontramos pacientes em classe funcional II ou mesmo em classe funcional I e com diâmetros ventriculares aumentados. Pelas diretrizes norte-americanas, diâmetros diastólicos acima de 7075mm ou sistólicos de 50-55mm indicam tratamento cirúrgico, independente da classe funcional. A justificativa seria a disfunção ventricular esquerda pós-operatória. Contudo outros(5) não confirmaram a predominância de disfunção ventricular pós-operatória apenas pelo exagerado aumento dos diâmetros ventriculares; assim, o tema permanece controverso. Embora seja inegável o avanço da história natural neste grupo, é impossível, pelos atuais metódos, definir por parâmetros simples os beneficiários do tratamento cirúrgico precoce. A plástica da valva aórtica pode ser realizada em algumas situações. Quando existe prolapso das válvulas, geralmente associado à comunicação interventricular, podem-se fixar as válvulas junto às comissuras (Trusler), ou fazer plicatura na parte central das válvulas prolapsadas. Nos pacientes com retração das mes- 28 mas, geralmente reumáticos, podem-se alongar as válvulas com remendos de pericárdio bovino, além de realizar anuloplastias. Na dupla lesão aórtica moderada, pode-se realizar o desbastamento da fibrose, aumentando a mobilidade das válvulas e permitindo a coaptação das mesmas. Entretanto a maior parte dos casos de lesão dupla ou mesmo de refluxo isolado necessita de troca valvar. Muitos estudos foram realizados com o intuito de se determinar qual o substituto valvar ideal. Há 40 anos, Harken relatou quais seriam os mandamentos de um substituto valvar ideal: baixa trombogenicidade, boa durabilidade, pouca hemólise, facilidade de implante, não perturbar o paciente com ruído excessivo, fechar prontamente com o ciclo cardíaco, ser quimicamente inerte, não lesar os elementos figurados do sangue, não oferecer resistência aos fluxos fisiológicos, permanecer fechado durante a fase apropriada do ciclo cardíaco, ser passível de colocação em posição anatômica e permitir fixação definitiva. As substituições valvares apresentam maior morbimortalidade operatória e maiores taxas de tromboembolismo, hemólise e endocardite, quando comparadas às cirurgias conservadoras. As limitações das biopróteses estão relacionadas à sua durabilidade, relacionada principalmente à rotura e à calcificação. Tromboembolismo e hemorragia são as complicações temidas nos pacientes portadores de próteses mecânicas. O escape paravalvar, pouco freqüente, associa-se geralmente à fragilidade do anel valvar. Os substitutos biológicos se caracterizam por baixa trombogenicidade, baixa turbulência devido ao seu fluxo central, boa hemodinâmica, facilidade de implante e ausência de ruído. As opções atuais de substitutos valvares biológicos vão desde biopróteses com anel de sustentação ou sem anel de sustentação (stentless), até enxertos homólogos frescos ou criopreservados. As biopróteses mais utilizadas são confeccionadas com pericárdio bovino ou com válvulas aórticas porcinas fixadas em glutaraldeído e formaldeído. No Instituto do Coração foram implantadas 2.607 biopróteses em 2.259 pacientes no período 1982 a 1995. A patogenia predominante foi a febre reumática: 45,7% dos casos. A mortalidade hospitalar foi de 4,7% para a substituição aórtica; 8,6% para a substituição mitral e 12,8% para a dupla substituição, mitral e aórtica. As taxas linearizadas foram: 1,1% paciente/ano para calcificação; 0,2% para tromboembolismo; 0,1% para escape paravalvar; 0,9% para rotura e 0,5% para endocardite infecciosa. A Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 curva atuarial de sobrevida em 15 anos alcançou 49,1%. Após experiências com diferentes materiais e modelos de próteses mecânicas, as próteses de duplo folheto confeccionadas com carvão pirolítico são hoje as mais utilizadas. São próteses de baixo perfil, boa hemodinâmica, porém ainda apresentam certa resistência ao fluxo, necessitando de anticoagulação. De 1980 a 1993, 315 próteses mecânicas foram implantadas em 291 pacientes no Instituto do Coração, sendo 45,4% de etiologia reumática e 33,3% aneurismas ou dissecções da aorta ascendente com insuficiência aórtica. A sobrevida atuarial foi de 62,2% em 14 anos para a posição aórtica e 81,3% para a mitral. A complicação mais freqüente foi o tromboembolismo, com uma taxa linearizada de 2,1% pacientes/ano para a posição mitral e 1,1% para a aórtica. A hemorragia relacionada à anticoagulação foi mais freqüente na posição mitral (1,4% paciente/ano) do que na aórtica (0,8%). A endocardite teve uma taxa linearizada de 0,26% paciente/ano no grupo aórtico e não ocorreu no grupo mitral. O mesmo ocorreu com a hemólise e o escape paravalvar, com taxas de 0,8% no grupo aórtico(6). As reoperações constituem grande parte das operações valvares no Instituto do Coração, em vista da ampla utilização de biopróteses em nossos pacientes, as quais têm sua vida útil limitada pela disfunção estrutural. Nos últimos 20 anos, entre 7.544 operações valvares, 22,4% eram reoperações e, no ano de 2001, 31% das operações valvares foram reoperações. As reoperações valvares determinam maiores morbidade e mortalidade hospitalares e vários são os fatores de risco. Em análise de 194 reoperações valvares consecutivas no Instituto do Coração entre 1995 e 1999, foram identificados como variáveis preditivas independentes da mortalidade hospitalar: a classe funcional IV, a creatinina sérica superior a 1,5mg/dl e o tempo de circulação extracorpórea maior que 120 minutos. O aprimoramento da técnica operatória, o avanço tecnológico da circulação extracorpórea, a utilização de antifibrinolíticos e a melhora nos cuidados intensivos no pós-operatório têm contribuído para sensível melhora nos resultados cirúrgicos dos portadores de valvopatia encaminhados segundo critérios clínicos bem definidos. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 29 II.II Autores Maria de Lourdes Higuchi1 José Antônio F. Ramires2 Infecção e aterosclerose Os avanços dos últimos anos em relação à patogenia da aterosclerose representam até certo ponto uma retomada da teoria de Virchow, que a considerava uma doença inflamatória, ou seja, uma resposta do vaso à injúria(1), acrescentando, porém, consideráveis esclarecimentos em relação aos fatores injuriantes. Mudanças de conceito se intensificaram com o conhecimento de que infarto agudo do miocárdio e angina instável ocorrem, na maioria das vezes, porque a placa de aterosclerose se instabiliza, rompe e se trombosa(2-4). Além disso, verificou-se que as lesões mais vulneráveis são aquelas de placas com maior conteúdo de gordura, sendo aquelas com pouca gordura e maior fibrose mais resistentes, responsáveis talvez por angina estável, mas com menor probabilidade de levar a trombose(5, 6). Uma outra informação adicional importante sobre as características da placa instável é que ela teria mais inflamação do que a estável(7-9). Trabalhos recentes realizados no Instituto do Coração (Incor) mostraram ainda outras características morfológicas que distinguem as placas vulneráveis através de estudo comparativo entre dois grupos de segmentos de artérias coronárias em indivíduos que faleceram por infarto agudo do miocárdio(10, 11): Grupo A – Placas rotas e trombosadas que causaram o infarto agudo do miocárdio. Elas eram grandes, cheias de gordura e capa fibrosa fina. Um aspecto novo foi que a inflamação por linfócitos estava presente não só na placa, mas mais intensamente na adventícia. Além disso, apresentavam remodelamento positivo, ou seja, dilatação de toda a parede de tal forma que, apesar das placas serem grandes, não obstruíam de forma significativa a luz do vaso. Grupo B – Eram representadas por placas de ateroma sem ruptura, dos mesmos indivíduos, que apresentavam porcentagem de obstrução semelhante. Estas placas eram usualmente menores, contendo menor quantidade de gordura e maior de fibrose, além de menor inflamação tanto na placa quanto na adventícia. Geralmente não se associavam com remodelamento positivo, mas, ao contrário, apresentavam remodelamento negativo ou ausência de remodelamento, ou seja, pequenas placas de ateroma podiam causar grande obstrução da luz. Classicamente considerava-se que as lesões mais graves do ponto de vista de obstrução eram mais propensas a ter trombose. A partir dos trabalhos de Ambrose et al. em cineangiocoronariografias passou- se a considerar que placas pequenas causando obstrução moderada(12, 13) é que causavam trombose. Nossos e outros trabalhos em patologia(14, 15) puderam explicar esta aparente discrepância: as placas instáveis são grandes e gordurosas, porém a cineangiografia detecta apenas a luz(16), e o remodelamento arterial mascara o tamanho da placa. Publicações recentes com ultra-som confirmam que o remodelamento positivo está associado a placas vulneráveis, e o negativo, a placas estáveis(17-20). A quebra da capa fibrosa pode ser causada pela ação das metaloproteinases, mais especificamente uma delas, a colagenase(21). A maior parte do estoque destas enzimas está nas células inflamatórias. Lipoproteínas oxidadas têm sido responsabilizadas pela geração desta inflamação(22, 23). Recentemente, tem-se sugerido que vários agentes infecciosos podem estar envolvidos na aterosclerose em si e/ou na ruptura das placas, destacando-se, entre todos, a Chlamydia pneumoniae(24-27). No material de autópsias do Incor, procuramos esta bactéria nas lesões coronarianas. Pelos achados prévios de inflamação adventicial mais intensa do que da placa, procuramos as clamídias também na adventícia. Os segmentos instáveis apresentaram maior quantidade de C. pneumoniae do que os demais segmentos, principalmente na adventícia(28, 29). Pela microscopia eletrônica foi possível reconhecer os corpos elementares (formas arredondadas de material eletrodenso, circundadas por dupla membrana e forma de pêra) des- 1 Diretora do Laboratório de Patologia do Incor. Professor Titular de Cardiologia da FM/USP; Diretor Geral do Incor. 2 30 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 tas bactérias. O número médio de linfócitos B se correlacionou positivamente com a quantidade de células positivas para C. pneumoniae na adventícia, sugerindo uma relação de causa e efeito (r = 0,65). Mais surpreendente, porém, foi o achado concomitante de Mycoplasma pneumoniae nas mesmas(30, 31). À microscopia eletrônica foram vistas estruturas pequenas, de formato tendendo a oval ou filiformes, com granulação do tipo RNA ou DNA, envolvidas por uma única membrana, característica de micoplasma. A hibridização in situ e a imunoistoquímica confirmaram tratar-se de Mycoplasma pneumoniae. Os micoplasmas são as únicas bactérias com colesterol formando sua membrana externa(32, 33). Têm sido considerados parasitas típicos de epitélios (respiratório e trato geniturinário) que dificilmente invadem o corpo humano. Em condições patológicas como Aids, os micoplasmas se tornariam mais invasivos(34). Estudando os segmentos dos grupos A e B conjuntamente, encontraram-se correlações estatisticamente significantes entre quantidade de micoplasmas e quantidade de gordura na placa (r = 0,69), bem como com a área seccional do vaso (r = 0,65), sugerindo que estas bactérias participam ativamente no remodelamento positivo da vaso. Assim, micoplasmas estão presentes nos ateromas, mas a associação com clamídias parece levar a aumento de virulência de ambos os agentes infecciosos, aumentando a inflamação e o enfraquecimento do vaso, podendo estar relacionados com a ruptura da placa de ateroma. A hipótese de que agentes infecciosos estão direta ou indiretamente envolvidos na instabilização da placa vem ganhando cada vez mais reforços(35). hemácias célula infectada A B C D Figura. Demonstração morfológica de agentes infecciosos na placa aterosclerótica rota associada a infarto agudo do miocárdio: A – numerosos macrófagos e linfócitos apresentando positividade para antígenos da Chlamydia pneumoniae; B – célula no sangue infectada por C. pneumoniae pela imunofluorescência, ao lado de hemácias em observação ao microscópio confocal a laser; C – micrografia eletrônica demonstrando numerosas massas eletrodensas com morfologia compatível com corpos elementares de C. pneumoniae; D – estrutura compatível com micoplasma (seta cheia) penetrando célula endotelial, a qual mostra tumefação e presença de formas irregulares de membranas com conteúdo vazio de origem não-esclarecida (seta vazia) Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 31 Nota do editor Os três traçados subseqüentes foram gentilmente cedidos e analisados pelo dr. Eduardo B. Saad, chief fellow in pacing and electrophysiology da Cleveland Clinic Foundation. Traçado nº 1 Trata-se de um jovem de 32 anos que foi atendido com dor precordial atípica. Estava monitorizado quando apresentou um quadro sincopal. O eletrocardiograma (traçado contínuo) revela inicialmente um ritmo sinusal; subseqüentemente ocorre bradicardia progressiva, evoluindo para ritmo juncional progressivamente mais lento, terminando, em assistolia, por 30 segundos, e recuperando-se espontaneamente e sem seqüelas a seguir. Comentários Trata-se de um paciente jovem com coração estruturalmente normal e com história de episódios présincopais vagais em situações típicas, como, por exemplo, coleta de sangue. Os achados foram reproduzidos num teste de inclinação, que mostrou resposta cardioinibitória e vasodepressora. Como se trata do primeiro episódio de síncope, o tratamento deve ser conservador, farmacológico, à base de betabloqueadores, e o treinamento, em situações posturais. O implante de marca-passo, especialmente quando existe um elemento vasodepressor associado, não mostra benefícios adicionais em relação ao tratamento clínico: não se mostrou benéfico em reduzir a freqüência de síncope, limitando-se a aumentar o período sem síncope. Esta terapêutica estará indicada nos casos de síncopes recorrentes. É interessante citar que estes conceitos são válidos mesmo para as síncopes com período de assistolia prolongado, como o caso presente. 32 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Traçado nº 2 Trata-se de uma taquicardia com QRS alargado. Os complexos QRS têm cerca de 200 milissegundos de duração. O padrão eletrocardiográfico é o de bloqueio do ramo direito atípico, com desvio do eixo elétrico para o quadrante superior direito. O diagnóstico diferencial é entre uma taquicardia supraventricular com condução aberrante, uma taquicardia ventricular, ou uma taquicardia por via anômala, com pré-excitação. A existência de um padrão predominantemente negativo em V5 V6 afasta uma taquicardia por via anômala, porque mostra que o foco da taquicardia é mais inferiormente situado, apical, enquanto que na taquicardia por via anômala o foco está situado junto à base do coração. A presença de R puro em V1, associado ao intervalo RS em V4 acima de 100 milissegundos, e o padrão QS em V6 estabelecem o diagnóstico de taquicardia ventricular. A presença de padrão de ondas Q alargadas em D2 D3 e AVF configurando a presença de infarto do miocárdio é outro elemento de convicção para taquicardia ventricular. A morfologia das derivações precordiais mostra claramente que esta taquicardia se origina da parede inferior. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 33 Traçado nº 3 Trata-se de um paciente com 60 anos. O traçado mostra, na sua parte inicial, um flutter atrial com bloqueio AV 2:1 e bloqueio completo de ramo direito do feixe de His. O quinto batimento é uma extra-sístole ventricular à qual se segue um agrupamento dos complexos QRS de 2 para 2, permitindo, pois, uma melhor análise com visualização das ondas P, configurando agora um flutter atrial com bloqueio AV 3:2, com fenômeno de Wenckebach. A melhora da condução A-V após a extra-sístole provavelmente se deve ao fato de ela reduzir ou eliminar uma condução oculta previamente existente. 34 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 2 • Ano 1 • 2002 35