Narriman Palmeira da Silva Sorbille
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Narriman Palmeira da Silva Sorbille
COLÉGIO OFÉLIA FONSECA HARRY POTTER: ANJO OU DEMÔNIO? Narriman Palmeira da Silva Sorbille São Paulo 2014 Narriman Palmeira da Silva Sorbille HARRY POTTER: ANJO OU DEMÔNIO? Trabalho realizado e apresentado sob a orientação do Professor André Renato Oliveira Silva, da disciplina de LÍNGUA PORTUGUESA / AÇÃO 2 Sumário: 1. Joanne Kathleen Rowling ................................................................................... 06 1.1 Em busca dos números perdidos ......................................................................... 08 1.2 Indústria cinematográfica .................................................................................. 11 1.3 O Mundo Mágico de Harry Potter .................................................................... 12 1.4 Ponto de vista ...................................................................................................... 14 2. O jovem e a leitura ............................................................................................ 15 2.1 Dom Quixote de la Mancha .............................................................................. 16 2.2 Hábito de Leitura entre os adolescentes ........................................................... 17 3. Paradoxo ........................................................................................................... 18 3.1 Um conto de fadas moderno ............................................................................ 19 3.2 O universo da magia ........................................................................................ 21 3.3 Harry Potter na sala de aula ............................................................................ 22 3.4 Faça um livro, não faça guerra ....................................................................... 23 3.5 Valores do bem, valores do mal .........................................................................24 3.6 O saber para atingir a maturidade .................................................................... 19 3.7 Encarnação poética da nossa imaginação ...................................................... 24 4. CONCLUSÃO ................................................................................................. .26 5. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 32 3 Agradecimentos Primeiramente agradeço a meu orientador, André Renato, pela ajuda, orientação e apoio na realização do meu trabalho. Gostaria de agradecer também a meus pais que me introduziram nesse universo da leitura, mas principalmente a minha mãe que me mostrou o Harry Potter em um cinema em 2001 e, desde então, tornou-se uma paixão que procuro passar para a minha irmã. Finalmente, um agradecimento especial para a querida Joanne Kathleen Rowling, pois sem a sua arte não sei como eu seria hoje. 4 Dedicatória Dedico este trabalho a todos aqueles que, assim como eu, possuem alguma obra que inspire a sua vida e tenha algum sentimento pelos livros do Harry Potter. Meu objetivo com este trabalho foi procurar conscientizar as pessoas a respeito da grande influência que os livros podem ter sobre a vida de um individuo, especialmente as crianças, desde que lidos com carinho e atenção. 5 1. Joanne Kathleen Rowling Nascida em 1965, na pacata cidade de Chipping Sodbury, próxima a Bristol onde viveu até os nove anos. Depois mudou-se para um vilarejo em Tutshill Começou os estudos em uma escola do vilarejo, onde os alunos eram obrigados a se sentar de acordo com suas notas em avaliações. Sendo assim ela foi colocada na „‟turma do fundão‟‟, onde eram considerados pela professora como ‟confusos‟. Com o passar dos anos, Joanne foi melhorando e tornou-se uma das melhores alunas de sua sala. Formou-se na universidade de Exeter e estudou inglês durante um ano em Paris. Em seguida, voltou para Londres, onde fez um curso de secretária bilíngue. Nessa época, ela trocava os pubs por cafés isolados a fim de escrever um romance para adultos. Durante uma viagem de trem de Manchester para Londres, as primeiras visões sobre o que viria a ser o Harry Potter surgiram. “Eu nunca tinha ficado agitada daquele jeito. Soube imediatamente que seria muito divertido escrever sobre ele. Mas não fazia ideia se seria um livro infantil - só sabia que eu tinha esse menino, Harry. Durante a viagem, também descobri Rony, NickQuase-Sem-Cabeça, Hagrid e Pirraça 1.” Ao final da viagem, Joanne já sabia que seriam sete livros ao todo e levou cerca de cinco anos para criar todo o enredo da coleção. Neste processo ela imaginou muito pontos que não foram descritos em seus livros, pois, como ela mesma disse se fossem colocados todos os detalhes, cada livro seria do tamanho de uma Enciclopédia Britânica. Um ano após a morte de sua mãe, ela se mudou para Porto, em Portugal, ensinando inglês para pessoas de 8 a 62 anos de idade. Em seis meses, ela conheceu um jornalista com quem se casou e, um ano depois, ela teve a sua primeira filha, Jessica, e três capítulos completos de Harry Potter e a Pedra Filosofal junto com alguns rascunhos. Em seguida ao seu divórcio, ela voltou para Edimburgo, onde passava horas no café de seu cunhado - o Nicolson's – escrevendo sobre Harry Potter enquanto a sua filha dormia em um carrinho ao lado. Após a finalização do primeiro livro, ela o mandou para um agente literário, que o rejeitou imediatamente; mas, como uma mãe preocupada em conseguir algum dinheiro para criar a sua filha, ela não desistiu e o mandou para um segundo agente, Christopher Little, que aceitou 1 ROWLING, J. K. Conversando com J. K. Rowling: entrevista de Lindsay Fraser. São Paulo: Panda, 2003, p 10. 6 após a sua secretária insistir que ele desse uma olhada no manuscrito. Ele pediu que Rowling abreviasse o seu nome para que nenhum garoto deixasse de ler o livro, pois ele era escrito por uma mulher; assim, ela pegou emprestado o nome de sua avó, Kathleen, e surgiu a J.K. Rowling. O próximo passo, então, seria encontrar uma editora, mas quando a Bloomsbery aceitou, ela finalmente pôde publicá-lo em 1997. Joanne só percebeu como o seu livro estava obtendo reconhecimento após a editora americana Scholastic comprar os direitos do primeiro livro por uma quantia muito maior do que a esperada e ela ser obrigada a deixar o emprego de professora para poder conseguir terminar de escrever Harry Potter e a Câmara Secreta a tempo da publicação. Em 1999, a companhia cinematográfica Warner Brothers comprou os direitos dos quatro primeiros livros de Harry Potter por 2 milhões de dólares e lançou o primeiro filme da série em 2001. 7 1.1 Em busca dos números perdidos Em 2004 a autora das narrativas de Harry Potter entrou para a lista dos bilionários segundo a revista Forbes, com uma fortuna avaliada em US$1 bilhão. No entanto ela não faz mais parte desta lista, que inclui, atualmente, o criador do Facebook Mark Zuckerberg. De acordo com a revista Entertainment Weekly o motivo de sua retirada se deu pelas doações feitas num valor de US$ 160 milhões. Ela era a única mulher britânica a marcar presença entre os mais poderosos dos negócios. Entretanto ela continua mais rica que a rainha da Inglaterra, e se tornou uma das 100 pessoas mais influentes por incentivar a leitura entre jovens de todas as idades. Seus livros foram traduzidos em 67 línguas – com edições em latim e até grego antigo - e vendidos em mais de 200 países. Procure por „‟Harry Potter‟‟ no Google e aparecerá cerca de 204 milhões de resultados. As cifras que compreendem o bruxinho mais famoso do decênio não param de ascender. Somente em 2003, a J.K Rowling recebeu uma remuneração de 211 milhões de dólares, e os três primeiros volumes venderam 254 milhões de exemplares. A Ordem da Fênix arrecadou cerca de 185 milhões de dólares (cerca de 12 milhões de cópias) em seis meses após sua publicação, somente nos Estados Unidos da América. No Brasil, os quatro primeiros volumes venderam cerca de 1,5 milhão de cópias até 2004 e a Ordem da Fênix 300 mil. Até 2004 os lucros sobre os produtos licenciados com a marca Harry Potter era de 150 milhões de dólares. Contudo, não é somente com dinheiro que a escritora faz mágica. Suas obras já receberam incontáveis prêmios literários desde a publicação de Harry Potter e a Pedra Filosofal em 1997, como os citados abaixo: • Três prêmios Nestlé Smarties Book Prize (1997-1999); • Dois Scottish Arts Council Book Awards (1999 e 2001); • Quatro prêmios Whitaker Platinum Book Awards (2001); • WHSmith book of the year (2006) dentre outros. • Em 2000, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban foi indicado como Melhor Romance no Hugo Awards; • Cálice de Fogo ganhou o prêmio como Melhor Romance no Hugo Awards no ano seguinte. 8 As honras recebidas também incluem: • Uma indicação ao prêmio Carnegie Medal (1997); • Uma pré-indicação no Guardian Children's Award (1998) e • Inclusão em numerosas listagens de livros notáveis, Escolha dos editores, e listas de melhores livros, da American Library Association, The New York Times, Chicago Public Library e Publishers Weekly. Após as vendas dos direitos autorais de Harry Potter para a Warner Brothers, o lançamento de sua versão cinematográfica dos livros se deu em 2001. A franquia acabou se tornando a mais rentável na história do cinema americano (e mais tarde o mundial), com faturamento total de US$ 13,3 bilhões. Os longa-metragens fizeram tanto sucesso que receberam 72 nominações e 44 prêmios através das academias mais importantes do cinema mundial, nas quais citamos: Academy Awards, BAFTA Awards, Screen Actors Guild Awards, AFI Awards, Academy of Science Fiction, Fantasy & Horror Films, Alliance of Women Film Journalists, Art Directors Guild, BMI Film & TV Awards, Broadcast Film Critics Association Awards, Costume Designers Guild Awards, Denver Film Critics Society, Empire Awards, Evening Standard British Film Awards, Golden Trailer Awards, Grammy Awards, Hollywood Film Festival, Hugo Awards, IGN Summer Movie Awards, International Film Music Critics Award (IFMCA), Jupiter Award, Kids' Choice Awards, MTV Movie Awards, National Board of Review, Online Film & Television Association, People's Choice Awards, Phoenix Film Critics Society Awards, Rembrandt Awards, SFX Awards, San Diego Film Critics Society Awards, Satellite Awards, Scream Awards, St. Louis Film Critics Association, Teen Choice Awards, Visual Effects Society Awards, Washington DC Area Film Critics Association Awards, World Soundtrack Awards Além dessas nomeações seis dos oito filmes da saga foram nomeados 12 vezes no Academy Awards (Óscar), todavia eles não receberam nenhuma estatueta, entretanto durante a 64ª edição dos British Academy Film Awards (BAFTA) em Fevereiro de 2011, J. K. Rowling, David Heyman, David Barron, David Yates, Alfonso Cuarón, Mike Newell, Rupert Grint e Emma Watson receberam o Prêmio Michael Balcon de Contribuição ao Cinema Britânico na categoria série. 9 Porém, um dos mistérios mais intrigantes é compreender como crianças e adolescentes com as mais diversas dificuldades conseguem ler um total de 2.188 mil páginas em português e/ou 2.194 mil páginas em inglês com tanto prazer. A cada ano, a trama vai ficando mais complexa juntamente com os livros, seguindo o sistema educacional inglês onde os livros escolares vão ficando mais complexos à medida que os alunos avançam no currículo. 10 1.2 Indústria cinematográfica Para concordar em vender os direitos de Harry Potter, Rowling exigiu que a companhia seguisse algumas condições especiais impostas por ela como, por exemplo, o elenco dos filmes deveria ser inteiramente britânico (a fim de manter a essência da história e dos personagens), o filme deveria ser fiel ao livro – desde as locações até os diálogos e ela deveria participar ativamente da escolha do diretor. As únicas exceções permitidas por ela foram somente alguns franceses, irlandeses e orientais que realmente aparecem em alguns livros como em Harry Potter e o Cálice de Fogo. O lançamento do primeiro filme estabeleceu um recorde mundial de abertura, seguido por todos os demais filmes, que também conseguiram um grande número de críticas positivas tanto por parte dos fãs como por parte de críticos renomados. Abaixo, podemos ver o total em dólares arrecadado por cada filme durante o período em que ele se encontrou em cartaz ao redor do mundo: • Harry Potter e a Pedra Filosofal - $1,227,850,042.88 • Harry Potter e a Câmara Secreta - $1,090,287,929.83 • Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban - $947,462,829.52 • Harry Potter e o Cálice de Fogo - $1,041,225,686 • Harry Potter e a Ordem da Fênix - $1,020,828,830.69 • Harry Potter e o Enigma do Príncipe - $974,201,682.00 • Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte I - $969,707,879.97 • Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte II - $1,328,111,219 A série levou ao todo dois atores para interpretar a personagem Dumbledore, quatro diretores, dez anos e milhares de fãs para ser concluída. 11 1.3 O Mundo Mágico de Harry Potter O parque temático “O Mundo Mágico de Harry Potter”, inaugurado em junho de 2010, trouxe milhares de fãs que esperavam poder sentir como é estar em Hogwarts, ou em Hogsmeade, ou até mesmo na companhia de Harry, Ron e Hermione. A Warner Bros. Entertainment Inc. e Universal Orlando Resort fizeram uma parceria para criar o primeiro ambiente no mundo completamente imerso em Harry Potter, baseando-se nos famosos livros de J.K. Rowling e nos filmes da Warner Bros, projetaram o novo ambiente que se tornou parte das Ilhas de Aventura da Universal, no Universal Orlando Resort. “Nós vamos contar com o rico legado e experiência de nossa companhia em transformar conceitos de filmes em experiências de entretenimento em parque de diversões. As histórias de Harry Potter estão entre as mais atraentes de nosso tempo. As milhões de pessoas que leram os livros e assistiram aos filmes vão agora poder experimentar o mundo de Harry Potter em pessoa.” Foi o que nos prometeu Ron Meyer, presidente e chefe-executivo de operações da Universal Studios, quando o parque estava ainda sob planejamento. O diretor de arte e vencedor do Óscar, Stuart Craig, ajudou a trazer vida para o mundo de Harry Potter em todos os filmes, liderou os trabalhos do parque para assegurar que ele permanecesse fiel às aparências e sentimentos dos filmes. “Nosso objetivo principal era ter certeza de que essa experiência fosse uma autêntica extensão do mundo de Harry Potter como ele é mostrado nos filmes e nos livros”, disse Craig. “Eu estou muito empolgado com trabalhar de perto com a equipe da Universal Orlando para trazer a área à vida”. Efeitos especiais, como o da perspectiva forçada dão majestade à vila de Hogsmeade e ao castelo de Hogwarts, que possui 45 metros de altura, mas parece ter mais de 200 metros para os visitantes. No restaurante Três Vassouras, dentro do parque, o pessoal pode se refrescar com produtos criados pela autora da saga, J.K. Rowling, como suco de abóbora e cerveja amanteigada, sem álcool. Um dos grandes desafios foi materializar o que só existia na imaginação da escritora. Foi interessante o desenvolvimento da cerveja amanteigada, já que tinha que ser aprovado pela J.K. Rowling, que fez várias provas e só aprovou a bebida quando o sabor chegou ao que ela havia imaginado: um misto de açúcar mascavo, biscoito de manteiga e caramelo. Os feijões de todos os sabores (bacon, meleca, terra, minhoca, sabão), 12 por sua vez, foram desenvolvidos pela Jelly Belly e estão no mercado mundial há cinco anos, mas que também estão à venda no Mundo Mágico. Dentro da vila, os mais fanáticos podem comprar uma vassoura modelo Firebolt por US$ 300 (R$ 552) ou bisbilhoscópios (sensores de segredos) por US$ 15 (R$ 26,7), além de camisetas e agasalhos dos principais times de quadribol. No dia 10 de maio de 2012, foi anunciada ao mundo a construção de um novo parque temático da série Harry Potter, no Japão, que inaugurou em 2014. Com a presença de James e Oliver Phelps (os gêmeos Weasleys na série de filmes Harry Potter), do governador de Osaka (Japão), o presidente da CEO, da Universal Studios Japão, o presidente de produtos e consumos da Warner Bros e o presidente da Global Business Development e Universal Parks & Resorts, o evento que anunciou os projetos para o novo parque causou um tremendo alvoroço entre os fãs japoneses da saga. 13 1.4 Ponto de vista Como todo grande sucesso, a obra de Rowling não deixou de receber elogios, críticas e debates contraditórios. Encontramos pessoas que defendem desde a negação em relação ao seu valor literário (por ser um Best-Seller) até aqueles que o consideram apenas uma “ficçãobarata”, passando é claro pela polêmica discussão a respeito da espiritualidade presente na obra. Segundo Pierre Bruno os livros de Harry Potter são sexistas, racistas e elitistas, enquanto Isabelle Smadja afirma que o seu sucesso literário se deve à sua qualidade, valores e sua introdução na cultura de massa popular e não elitista. Contudo, como Descartes afirma em Regras para a direção do espírito: “Toda vez que sobre o mesmo tema duas pessoas são de opinião diferente, é certo que pelo menos uma das duas se engana; e até nenhuma delas, parece, possui a verdade: pois se as razões de um fossem certas e evidentes, ele poderia expô-las ao outro de tal maneira que acabaria convencendo-o também.2” Como uma mesma obra pode passar uma mensagem sexista e ao mesmo tempo desejar uma emancipação feminina? Porém como na política, se não colocarmos um limite nas rivalidades, as diferenças irão ocultar elementos em que as duas partes possam, em algum momento, concordar. 2 R. Descartes, Regles pour la direction de l’espirit, Regle II, Paris, Gallimard, 1970, p.40. 14 2. O jovem e a leitura De qualquer maneira, o fenômeno foi poderoso o bastante para virar assunto nas consultas psicológicas, após muitos jovens descobrirem que os seus problemas são mais comuns do que imaginavam e podem vir a acontecer com outras pessoas também. De acordo com Jesualdo Sosa,o jovem irá ler o romance desde que “[..] tenha um cunho preponderantemente sentimental, o estímulo de maior significação nessa fase. O jovem procurará nas obras que lê uma tradução não apenas de suas questões pessoais, um espelho de sua alma atribulada, mas um exemplo para sua atividade fiel e um caminho por entre as contradições aparentemente insolúveis que lhe surgem a cada momento.3 ’’ Podemos até tentar classificar o jovem em diferentes categorias de leitor, contudo tal classificação depende de vários fatores que vão além da idade e do gênero “mas principalmente da inter-relação existente entre sua idade cronológica, nível de amadurecimento biopsíquico-afetivointelectual e grau ou nível de conhecimento/domínio do mecanismo da leitura.4” O jovem leitor possui pleno domínio da leitura, linguagem escrita e da reflexão em profundidade. Assim ele se encontra com o pensamento crítico e reflexivo em total desenvolvimento de maneira que ele comece a questionar as realidades consagradas. Durante a segunda metade do século XVII, houve uma crescente preocupação com a literatura infantil e juvenil, durante a monarquia absolutista de Luis XIV, o Rei Sol da França. 3 4 Sosa, Jesualdo, A literatura infantil, São Paulo, cultrix/editora da universidade de São Paulo, 1978, p.169. Idem, PP. 78-79 15 2.1 Dom Quixote de la Mancha A figura do herói, que atualmente persiste em nossa literatura, é representada pelo adolescente. Como exemplo para explicar melhor essa figura podemos usar um herói de uma obra que nos foi escrita há alguns séculos e, apesar de não possuir um protagonista jovem, ainda sim faz um grande sucesso: Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, publicada entre 1605 e 1615. Mas por que essa história, assim como Harry Potter, atraiu a atenção de tantos jovens? Nelly Novaes Coelho nos explica essa questão: ‘’Sua figura [de D. Quixote] esquálida e comovente continua a escoar bem viva, em cada ser humano que instintivamente, se entrega a luta por sua auto-realização ou por seu Ideal. As Dulcinéias, os Sanchos Panças, os ‘’moinhos de vento’’ continuarão existindo enquanto existir idealismo nos seres humanos e estes se entregarem a luta, sem desfalecimentos, que é preciso travar com o mundo, onde 5 cada um deve encontrar o seu ‘’lugar ao sol’’. Esse o segredo de D. Quixote... ’’ A relação feita aqui é que a adolescência é uma fase em que as pessoas estão querendo conquistar o seu espaço, são idealistas e procuram se afirmar perante os pais, a família e a sociedade. 5 Coelho, Nelly Novaes, Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática, São Paulo, Ática, 1993, p.28 16 2.2 Hábito de Leitura entre os adolescentes Vivemos em uma sociedade onde a discriminação está presente e as oportunidades de acesso à cultura e à educação são diferentes. Então, como consequência desses atos, acabam existindo poucos leitores em alguns lugares como, por exemplo, no Brasil. O ato da leitura inclui uma compreensão crítica das ideias trazidas no texto com uma reflexão do assunto abordado. Quando o jovem é obrigado a ler uma obra, ele espera uma história que apresenta algo de sua realidade, caso contrário, o leitor não será cativado ele irá buscar os livros de poucas páginas. O mundo juvenil é um lugar onde o adolescente espera se identificar com um personagem de uma realidade totalmente impossível e fictícia. A literatura deve ser algo prazeroso para o jovem, sem o peso de uma obrigação, para, dessa maneira, cativá-lo à leitura. 17 3. Paradoxo Embora seja repleto de seres fantásticos com sortilégios do tipo vassouras voadoras, o universo de Harry Potter é de uma grande racionalidade e lógica por parte da J.K Rowling, que chega a lançar um olhar crítico a nossa própria realidade e, muitas vezes, severo através de personagens como a excêntrica Sibila Trelawney, uma vidente que leciona Adivinhação para os alunos de Hogwarts, cujas adivinhações sempre se revelam falsas e rodeadas de charlatanismo. Em O prisioneiro de Azkaban, Alvo Dumbledore, diretor da escola, responde nos seguintes termos a Harry, quando é questionado sobre as adivinhações de sua professora: ‘’As consequências de nossas ações são sempre complexas, tão diversificadas, que prever o futuro torna-se uma empreitada bastante difícil... A professora Trelawney é a prova viva disso.’’ Podemos citar também outro caso que ocorre em A pedra filosofal, quando Harry sente-se receoso em pronunciar o nome do vilão mais temido da história e acaba chamando-o pelo eufemismo de ‘’Você-Sabe-Quem’’. Dumbledore ressalta ‘’Você pode chamá-lo de Voldemort, Harry. Chame sempre as coisas pelo nome que elas têm. O medo de um nome só faz aumentar o próprio medo da coisa’’ O paradoxo continua nas páginas que, a princípio tem o objetivo de se opor ao nosso mundo simples e mortal com bruxos, centauros, elfos e dragões. Talvez aqui seja a verdadeira anomalia, onde a feitiçaria seria a atração principal desta aventura literária: vemos um mundo de trouxas (pessoas que não possuem o dom mágico) que são os excluídos; na verdade, esses “trouxas” somos nós. Harry Potter não é uma obra que faz apologia ao mistério, à irracionalidade, mas também não expõe a sua moral e sua ética somente na racionalidade, ele é um conto de fadas. Assim como todo conto deste tipo, seus ensinamentos vêm através do inconsciente e do imaginário. 18 3.1 Um conto de fadas moderno Os contos de fada normalmente são bem similares. Segundo Bettelheim, “o conto de fadas coloca a criança em presença de todas as dificuldades fundamentais do homem. São numerosos os contos de fadas que, por exemplo, começam com a morte da mãe ou do pai6 ”. Da mesma maneira a análise desses contos feita por Marthe Robert em Roman des origines et origines du Roman aplica-se de maneira perfeita à juventude do nosso protagonista: ‘’Trata-se sempre de provar, pelo exemplo de um herói sofredor, que inspira pena pela sua própria juventude – em geral é uma criança ou um adolescente, mais raramente um homem maduro – que se pode ter um defeito físico, [...] ser mal nascido, mal-amado, torturado com requinte por um ambiente inumano e, no entanto, ter acesso ao poder supremo pela virtude mágica do amor e de uma aliança com uma pessoa de alta posição. Para explicar o destino desse herói deserdado, que desforra da vida com grande brilho, o conto realça um acidente de nascimento, que relaciona ou a um fenômeno natural, ou ao malefício de uma potencia qualquer invisível. Muitas vezes, esse trauma é identificado com a morte da mãe7 ’’ Harry é criado por pessoas que o odeiam e não perdem a oportunidade de lembrá-lo disso. J.K. Rowling transforma essa injustiça em paródia: Duda tem dois quartos, enquanto Harry possui apenas um armário embaixo da escada. Se Harry recebe “uma caixa de biscoitos de cachorro”, “um velho par de meias de Duda” ou até mesmo “um palito de dentes”, Duda reclama porque só ganhou 37 presentes de aniversário, um a menos que no ano anterior. Rowling também chega a inverter as relações entre o nosso mundo e o imaginário, já que Hogwarts se aproxima mais com do nosso real, onde as relações são mais complexas, mas menos esquemáticas do que a vida deliberadamente carregada dos Dursley. Porém, mesmo sujeito a tanta maldade familiar, ele herda dos pais a bondade e outras qualidades que não o deixam se amargurar sobre a sua situação. Já o teste que ele é obrigado a enfrentar representa os obstáculos que a pessoa precisa superar para chegar à vida adulta. E de modo geral, esses desafios exigem coragem e determinação fora do comum. A escritora procura tornar o personagem Harry Potter o mais vivo possível para que ele seja recebido não apenas como mais um personagem de uma história entre tantas outras nas prateleiras, mas sim como uma pessoa real, de carne e osso. Dessa maneira, será sempre 6 Bettelheim, Psychanalyse dês contes de fées, critiques e commentaires, Paris, Robert Laffont, Pluriel, 1976, p.481 7 Marthe Robert, Roman des origines et origines du Roman, Paris, Gallimard, col. Tel, 1972, p.89 19 necessário que se passe um ano para a publicação do próximo livro, que nos mostre mais um ano escolar de Harry e um amadurecimento que só ocorre com o tempo. Usar mitos, lendas e contos para falar com o nosso imaginário é mostrar ao homem sobre ele mesmo, ou seja, sua psicologia, seus desejos e suas frustrações com a vida. 20 3.2 O universo da magia Para as crianças, além de se sentirem valorizadas ao encontrarem um livro desta magnitude destinado a elas, ser um bruxo em Hogwarts significa que elas podem ir além de seus limites e capacidades, podendo voar em uma vassoura para jogar Quadribol ou ter o seu jantar preparado por elfos, além de aprender a domesticar hipogrifos e fazer nascer um rabo de porco naquele primo chato. Esse jogo de desejos e ilusões se torna mais possível nas crianças do que nos adultos, já que para eles tudo isso não passa de uma história bonita de superação, como todos os contos de fadas, enquanto que para as crianças todos os seus sonhos podem ser real izados, com ou sem uma varinha de condão. A analogia entre a infância e a bruxaria continua na incompetência dos bruxos em realizar tarefas aparentemente simples como tomar um táxi, mandar uma carta ou se vestir corretamente com as roupas dos trouxas. Essa falta de jeito não nos deixa de lembrar a inabilidade de uma criança, como em O cálice de fogo, quando Molly Weasley decide mandar uma carta aos Dursley através do correio trouxa e acaba cobrindo a carta com tantos selos que sobra apenas um lugarzinho para escrever o endereço. Podemos notar tanto o papel de uma mãe querendo manter contato com a criança quanto o de um menino que está com medo de falhar e não parecer maduro o suficiente aos olhos dos outros adultos. Para impedir que o trouxas desconfiem da existência dos bruxos, o Ministério da Magia usa “Feitiços de Amnésia” para aqueles que tenham presenciado algo mágico sem querer. Esse feitiço pode ser comparado com o esquecimento que os adultos passam ao perder os vínculos com a infância. Assim como os Feitiços Antitrouxas que afastam os trouxas do terreno onde ocorrerá a Copa Mundial de Quadribol, O Cálice de Fogo nos mostra um adulto sempre apressado e sem tempo para brincar com os filhos: ‘’Cada centímetro quadrado foi tratado com Feitiços Antitrouxas. Durante todo o ano: cada vez que um trouxa chegava perto do terreno, logo se lembrava de que tinha um compromisso urgente e se afastava correndo dali o mais depressa possível’’ Portanto as aventuras de Harry Potter despontam com uma preocupação tanto pedagógica quanto ideológica. 21 3.3 Harry Potter na sala de aula Pensando em uma maneira de trabalhar conteúdos velhos de uma nova maneira, o Colégio Saint Clair, em São Paulo procurou utilizar a obra de J.K.Rowling para ensinar crianças, do ensino fundamental até o médio, disciplinas que normalmente seriam esquecidas e ignoradas facilmente pelos alunos. Apesar da resistência inicial dos pais, principalmente por questões religiosas, a escola provou que o projeto era inovador, desafiador e satisfatório. A partir das obras, os alunos aprenderam sobre a Inquisição durante a Idade Média (história), quando os "bruxos" eram perseguidos pela Igreja, sobre o ábaco e outras ferramentas antigas de cálculos (matemática) e realizaram atividades bem interativas, como o jogo de xadrez (raciocínio) em que as peças eram as próprias pessoas, em alusão ao primeiro livro da série, Harry Potter e a Pedra Filosofal. 22 3.4 Faça um livro, não faça guerra Durante toda a obra podemos ver o preconceito sofrido pelos bruxos nascidos trouxas, chamados, nos livros, de sangues-ruins, a discriminação enfrentada por Remo Lupin pelo fato de ser um lobisomem e até mesmo uma luta de Hermione pelos direitos de liberdade e vida digna dos elfos domésticos. Porém, à primeira vista, esses exemplos podem parecer apenas passagens da história. No entanto, a série, mais uma vez mostrou-se bem mais próxima do nosso mundo do que imaginamos: um estudo publicado no Journal of Applied Social Psychology demonstrou que os jovens que leram e acompanharam a vida completa de Harry Potter tendem a ser menos preconceituosos contra grupos socialmente marginalizados. O estudo teve três etapas. Primeiramente, 34 crianças italianas da quinta série foram submetidas a um tipo de curso intensivo sobre o mundo Harry Potter, com duração de seis semanas. As discussões seguintes sobre discriminação mostraram que os estudantes que haviam passado pelo “curso Potter” tinham uma mente mais aberta em relação à intolerância contra imigrantes e homossexuais – e que ficou clara a relação que eles faziam entre a luta de Harry contra o preconceito pelos “nascidos trouxas” e os grupos marginalizados da vida real. Na segunda etapa, 117 adolescentes italianos foram entrevistados. Os que haviam lido, apreciado e se identificado com Harry Potter, novamente se mostraram mais abertos e tolerantes em relação a grupos como os homossexuais. E por fim, a última etapa usou um grupo de estudantes universitários ingleses e concluiu que os que menos se identificavam com o personagem de Voldemort tendiam a ser mais preocupados com a questão social dos imigrantes. A conclusão desse estudo aponta que, se a geração de crianças e adolescentes influenciadas por Harry Potter tender a ter menos preconceitos, teremos adultos mais conscientes e preocupados com os direitos das minorias. A luta de Harry, Rony e Hermione contra Voldemort – e sua sociedade em que apenas os “sangues-puros” viveriam – serve de metáfora perfeita para a luta social contra a discriminação, o racismo e a homofobia do mundo real. E se Harry, depois de muita luta, conseguiu, nós também vamos conseguir. 23 3.5 Valores do bem, valores do mal Não há como escapar das sentenças moralizadoras que bordam a obra. Toda vez que uma aventura de Harry termina, Dumbledore concede uma entrevista a sós com o menino para responder todas as suas dúvidas a respeito de sua origem ou identidade. No final de A Câmara Secreta, por exemplo, Harry pergunta por que o Chapéu Seletor – aquele que escolhe para qual das quatro casas o novos alunos serão encaminhados – hesitara antes de mandá-lo para a Grifinória. Por que ele compartilha com Voldemort, assim como Salazar Sonserina, a ofiodioglossia, isto é, o poder de falar com serpentes? A todas essas questões Dumbledore responde: “- Se você é ofidioglota, Harry, é porque Lord Voldemort, o último descendente de Salazar Sonserina, também o era. A menos que eu esteja enganado, ele transmitiu a você, na noite em que lhe fez essa cicatriz, alguns dos poderes que tinha. -Voldemort transmitiu há mim um pouco dele mesmo ? – perguntou Harry, aterrorizado. [...] - Então eu deveria estar em Sonserina – exclamou o menino, fitando Dumbledore com um ar de desespero. – O Chapéu Seletor viu que havia em mim poderes que pertenciam a Sonserina e... -Mandou você para Grifinória – completou Dumbledore. [...] Você sabe por quê? Pense. -Mandou-me para a Grifinória porque eu pedi para não ir para a Sonserina – respondeu Harry com uma voz transtornada. -Exatamente. [...] São as nossas escolhas Harry, que mostram o que nós somos de verdade, bem mais do que as nossas aptidões.” Se não fosse por Rowling, o discurso de Dumbledore dificilmente seria compreendido por adolescentes, já que todos os homens de certa maneira teriam herdado tanto a parte do Diabo quando a parte de Deus e cabe somente a nós escolher a quem realmente queremos como exemplo. A luta contra a serpente de Voldemort acontece em todos os momentos, já que ela é o mal e a tentação. Em O Cálice de Fogo, diante dos alunos de três escolas reunidos sob uma atmosfera solene e impregnada pela lembrança de um assassinato recente contra um aluno de Hogwarts, Dumbledore profere mais uma vez a sua mensagem de paz e fraternidade: 24 “- A aptidão de Voldemort para semear a discórdia e o ódio é considerável. Só podemos combatêlo uma determinação tão poderosa quanto à dele, mas fundada na amizade e na confiança. As diferenças de linguagem e de cultura nada são quando partilhamos os mesmo objetivos e quando abertos uns para os outros.” No final do mesmo livro em mais uma reunião, intencionalmente presente nos três últimos volumes, o diretor aparece com as seguintes recomendações: “-Harry deve ficar. Ele precisa entender o que aconteceu. É necessário compreender a realidade antes de aceitá-la e somente a aceitação da realidade torna possível a cura. É preciso que Harry saiba quem lhe impôs a prova pela qual ele passou a noite e por que.” Em suma é nos apresentado através de Dumbledore e Voldemort a concepção do bem e do mal e todo um universo de valores. 25 3.6 O saber para atingir a maturidade Conhecer e compreender o mundo e os homens é essencial para alcançar a maturidade. A autora atribui uma grande importância à escola, cujo papel é fundamental não só no decorrer da história, mas também na formação e preparação da criança para a vida. A grande maioria das provas de Harry só é superada graças ao conhecimento erudito de Hermione e aos livros que ela lê ou até sabe de cor. A mensagem é, mais uma vez, muito clara: a educação, o conhecimento e a bagagem cultural ensinada através dos livros são necessários para se sobreviver em um mundo perigoso e ao acesso a um universo mais maduro que passa pelo aprendizado em sala de aula. Inúmeras vezes Rony e Harry são salvos graças à erudição de Hermione como em uma passagem na Pedra Filosofal, em que as três crianças são obrigadas a enfrentar diversos desafios impostos pelos professores para impedir que alguém roube a pedra filosofal da escola, onde ela está escondida. Sufocados por uma planta infernal, Rony e Harry devem suas vidas a Hermione: Ela olhou horrorizada para Rony e Harry, que tentavam se soltar: “- Não se mexam mais! – ordenou Hermione. – Conheço essa planta, é um visgo do Diabo! [...] Calem a boca, estou tentando me lembrar como se faz para matar a planta- disse a menina. -Depressa, então, porque eu não consigo respirar- disse Harry com uma voz fraquinha. -Vamos ver, o visgo do diabo...O que foi mesmo que a professora Sprout disse para gente? Gosta de umidade e do escuro... -Neste caso, acenda um fogo- disse Harry já quase completamente sufocado. -É isso, é isso mesmo, mas não temos nem um graveto- exclamou Hermione, torcendo as mãos. [...] -Ah, é verdade – disse Hermione A menina puxou a varinha mágica, agitou-a, murmurou algumas palavras e fez jorrar um jato de chamas azuis em direção à planta. Em poucos segundos Rony e Harry sentiram a planta afrouxar o abraço. 26 [...] -É uma sorte que você tenha prestado atenção às aulas, Hermione – disse Harry com o rosto coberto de suor.” Embora o aprendizado que se tem na escola seja necessário, outros elementos também são indispensáveis para o acesso ao mundo adulto. Harry e seus amigos devem desenvolver uma audácia e uma curiosidade acima daquilo que lhes foram ensinados. Acima de tudo, é necessário que eles alimentem uma curiosidade que só pode ser despertada através das provações e dificuldades, como as que o trio experimenta. E existe uma imagem mais do caráter protetor do sofrimento do que lágrimas de fênix que, ao caírem em cima de uma ferida, cure-as instantaneamente? No fim de A Câmara Secreta, Harry é ferido por uma presa venenosa do Basilisco e é salvo pelas lágrimas de Fawkes, a fênix de Dumbledore: “Harry segurou a presa que destilava veneno em seu sangue e arrancou-a do braço. Mas sabia que era tarde demais. Uma dor lancinante difundia-se lentamente pelo seu corpo. [...] Uma mancha escarlate passou-lhe diante dos olhos, e Harry ouviu um barulho de asas ao seu lado.” -Fawkes – disse Harry com uma voz pastosa. – Você foi magnífica. - Você está morto, Harry Potter – ouviu-se Riddle dizer – Morto. Até o pássaro de Dumbledore entendeu isso. Você viu o que o pássaro está fazendo, Harry? Ele chora. Lágrimas espessas, grossas como pérolas, corriam sobre as plumas luzentes. [...] Mas será que Harry ia morrer mesmo? As lágrimas de pérola tinham formado uma mancha que brilhava em torno do ferimento... Harry percebeu então que a ferida sumira... - As lágrimas da fênix – murmurou Riddle. – Um poderoso remédio contra feridas... Eu tinha me esquecido completamente disso.” As lágrimas e a dor como antídoto para as feridas da vida são ideias perigosas para uma criança. Mas Rowling brinca com fogo e faz questão de lembrar, através de Dumbledore, que é estritamente necessário a Harry passar por tais provações para que não se torne mimado demais para ser generoso, assim como Duda. Quando, em A Pedra Filosofal, Minerva McGonagall questiona Dumbledore acerca do futuro de Harry nas mãos dos Dursley : 27 “Pessoas assim vão ser incapazes de compreender este menino”! Ele vai ficar célebre, uma verdadeira lenda viva, todos os meninos do nosso mundo irão conhecê-lo. - É verdade. E isso pode virar a cabeça de qualquer criança. Ficar célebre antes até de aprender a andar e a falar! Célebre por uma coisa da qual ele nem mesmo será capaz de se lembrar! Você não compreende que convém que Harry cresça afastado de tudo isso até que esteja pronto a assumir seu papel?” Tudo indica que para Dumbledore, Harry deve aprender sozinho e encontrar em si mesmo todas as qualidades que o tornarão um herói, em vez de se sentar sob os louros de sua cicatriz. O valor de um indivíduo não se mede pela sua capacidade de ser feliz ou bem-sucedido, mas pela sua conduta digna da felicidade que vier a conquistar. Tudo isso nos leva a uma mesma conclusão: é enfrentando provas que a criança se torna madura. Rowling afirma isso, também, nos diferentes confrontos de Harry em O Prisioneiro de Azkaban. Cada vez que ele encontra um dementador, é obrigado a reviver a cena do assassinato dos pais. Conseguir suportar esse sofrimento significa que ele deve assumir o seu destino como ser mortal e assim atingir a idade adulta. Aceitar a morte, no entanto, significa que Harry confrontá-la face a face não será sem dor: “Harry viu um dementador parar perto dele. [...] Uma mão morta, putrefata, saiu de dentro da capa negra. [...] O dementador suspende a túnica. Ali, onde deveria estar os olhos, só havia uma pele fina e cinzenta, coberta de crostas, esticada sobre órbitas vazias. Em compensação havia uma boca... Um buraco escancarado, informe, que aspirava o ar em um estertor de morte”. Harry consegue vencer o dementador que quer sugar sua felicidade, com um patrono que se assemelha a seu pai. Os patronos representam uma força positiva que vai servir de alimento para os dementadores – alegria, vontade de viver – mas como o patrono é apenas um feitiço ele não pode sentir desespero e dessa maneira o dementador não ira lhe fazer mal. 28 Assim, os dementadores representam a passagem da infância para o mundo adulto, a passagem de um mundo alegre para um mundo onde reinam todos os tipos de angústias e quietudes. Crescer é conviver ao mesmo tempo com o passado- que lembra a Harry a morte de seus pais – e com o futuro – onde aguarda a sua própria morte. Com os dementadores e seu halito da morte nossa escritora nos envolve em um misto de horror da morte e desespero suscitado pelo sentimento de culpa. Isso é confirmando pelo próprio Cornélio Fudge, que ficou ‘’assustado ao constatar a que ponto Black parecia normal.[...] ‘Fiquei estupefato de ver que os dementadores haviam tido tão pouco efeito sobre ele.’’’ Ele não tinha motivos para se mortificar pela acusação que sofrera, até porque fora Pedro Pettigrew que traiu os Potter. Para além desse aspecto mórbido, Joanne sustenta a ideia da memória: lembrar é, para Harry, sua única salvação para escapar dos dementadores. Sua cicatriz na testa é uma marca tanto dolorosa quanto salvadora, já que produz nele um sofrimento terrível quando Voldemort está por perto, mas é incapaz de tocar Harry sem sentir uma dor lancinante graças ao sacrifício de sua mãe. Em oposição, o esquecimento é incluído no contexto de desgraças: o Feitiço da Amnésia é amplamente empregado pelo professor Gilderoy Lockhart, que o usa para furtar as descobertas de pessoas que ele mesmo entrevista sem elas se lembrarem de seus próprios feitos. É através desse feitiço, também, que ele se torna tão desligado quanto uma criança de berço, após acidentalmente usar uma varinha quebrada e jogar o encantamento contra si mesmo. A importância da memória pode ser mais uma vez percebida em O Prisioneiro de Azkaban onde o beijo de um dementador leva a um destino pior do que a própria morte: “Podemos continuar existindo na alma, porque o coração e o cérebro funcionam. Mas não temos mais consciência de nós mesmos, nem a memória, mais...nada. E o que é pior, não há qualquer chance de cura. Não existimos, é tudo. Como uma concha vazia” 29 3.7 Encarnação poética da nossa imaginação Rowling nos mostra que a memória é a condição para a sabedoria e a maturidade. Em O Cálice de Fogo, Harry cai em uma bacia onde assiste a acontecimentos do passado como um telespectador, e cabe ao Dumbledore mais uma vez lhe explicar as coisas: “- É o que nós chamamos de Penseira. Às vezes eu acho que muitos pensamentos e muitas lembranças estão atropelando a minha cabeça. [...] Toda vez que eu tenho essa sensação, recorro à Penseira . Basta extrair os pensamentos inúteis da mente e verte-los nesta bacia para depois poder examiná-los com mais vagar. Quando eles estão sob essa forma, fica mais fácil distinguir as estruturas e os laços que os unem. - Você quer dizer que...que o que está ai dentro são os seus pensamentos? [...] -Mas é claro, olhe, vou lhe mostrar-lhe” A Penseira é a própria imagem dos livros de Rowling – os pensamentos – que são extraídos do íntimo para serem percebidos como objetos ou coisas. Toda a arte de Joanne está nessa capacidade de dar forma ao defeitos ou qualidades de seres vivos e, assim, somos introduzidos no universo do sonho, onde as fantasias de nossa imaginação ganham sua encarnação poética em seres de carne e osso. O espelho de Ojesed nos mostra o nosso desejo mais íntimo, como se, para Joanne, nosso verdadeiro retrato não fosse dado pela aparência física nem pelas roupas mas unicamente pelos nossos pensamentos e desejos. Nos livros, essas invenções se tornam independentes de nossa própria mente, o que aumenta a riqueza da personalidade das personagens. Outro instrumento que possui esta particularidade é o Chapéu Seletor, que decide e, qual casa os alunos de Hogwarts irão ficar, representando assim a voz da consciência. Só nos resta a maneira como a autora resolveu a complexidade de todo o infinito do interior das crianças diante de valores do bem e do mal. Harry é um herói exemplar, não é somente puro e inocente , já que ele possui uma parte de Voldemort em si, que o tenta para o lado negro da força. Os contos de fadas normalmente mostram somente o „lado ensolarado‟ para os 30 filhos a fim de poupá-los da crueldade humana dando a criança um sentimento de culpa, pois ela irá pensar que é a única com uma parte má. Rowling tenta fazer o contrário, pois ao fazer Harry compartilhar algumas coisas com Voldemort, ela sugere que não é a inocência nem o desconhecimento do mal de um individuo que o define, mas sim o seu caráter, ou seja, sua força de vontade a resistir à agressividade natural. Harry não é desprovido de ambição nem de desejo de poder e glória, mas todas as suas fragilidades e inquietudes a respeito de seu valor tornam-no ainda mais sedutor. A identificação com Harry produz ainda mais satisfação cada vez que ele resiste em a uma tentação e o seu desejo de combatê-la triunfa. Voldemort e Harry, na verdade, viveram uma infância bem similar. Ambos são órfãos desde que nasceram e tiveram uma vida infeliz ate descobrirem suas aptidões para magia. No entanto, isso não determinou a criação de suas personalidades, já que Voldemort se alimentou de todo ódio e resentimento, enquanto Harry tornou-se modesto e dotado de bondade na alma. Como Dumbledore uma vez disse: ‘’ São nossas escolhas, Harry, que mostram aquilo que somos de verdade, bem mais do que nossas aptidões ‘’ 31 4. Conclusão De acordo com a proposta deste trabalho, podemos analisar um último caso em que um site diz que a autora possui conhecimentos prévios de alquimia e satanismo para a escrita dos livros. ‘’ J. K. Rowling baseou suas narrativas em As Núpcias Químicas de Christian Rosenkreutz, escrito em 1459 e utilizado na iniciação dos rosa-cruzes. O fato de ter usado esse livro obscuro, conhecido somente pelos iniciados ocultistas, é mais uma forte indicação que ela pratica a feitiçaria. Afirmamos repetidas vezes que a autora dos livros da série Harry Potter conhece muito bem o satanismo. Indicamos onde os eventos e as cenas em seus livros são puro satanismo; na verdade, são satanismo correto. Ela traça uma figura perfeitamente correta de aspectos do satanismo, apresenta os encantamentos corretos, os ingredientes corretos, compreende bem a importância das drogas, e assim por diante. No artigo anterior [N1485, "O Uso de Cores Vívidas nos Livros da Série Harry Potter: Finalmente Compreendemos o Mistério"], mostramos que Rowling usa as cores vívidas que são sagradas para a religião dos druidas, o Druidismo, e para o zodíaco. Citamos uma ex-satanista, Cisco Wheeler — agora uma autora cristã nascida de novo — que nos disse que essas cores sagradas são usadas na Magia Ritual. Quando uma criança envolve-se entusiasticamente nesses livros, e pelas cores vívidas especificamente, fica exposta ao contato por um espírito-guia um dia! Rowling usa essas cores vívidas muito bem! As Núpcias Químicas é um dos símbolos arquétipos da transformação alquímica.[...] "As Núpcias Químicas são a base para os rituais de iniciação criados pelos rosa-cruzes. Elas representam a união da pessoa, o espírito e a sociedade." [Philosophical Research Society, Publications Department]. Maravilhoso! Esse livro é a base para os rituais de iniciação para os rosa-cruzes. Novamente, a verdadeira natureza de Rowling é demonstrada para todos que quiserem ver. A despeito de suas repetidas negativas que esteja envolvida ativamente na feitiçaria, vemos que, além de exibir um 32 conhecimento detalhado e íntimo do satanismo, ela agora está demonstrando profundo conhecimento de um livro muito antigo e obscuro, que é usado como base para iniciação na Sociedade Rosa-Cruz .8” Mas, após todos os prós e contras aqui discutidos, podemos perceber que essa é uma interpretação irrelevante, pois como exemplo de conto de fadas moderno, as aventuras de Harry Potter nos levam aos nossos mais profundos desejos, onde todo sofrimento é vencido pelo amor. É uma obra inédita com uma mistura incrível de histórias reais, muitas baseadas na própria na autora, e fictícias. Um conto de fadas que se constrói sob um mundo onde os sonhos são raros e o dinheiro substitui o valor moral. Sendo assim, seria bem plausível concluir que o sucesso de Harry Potter e a identificação com o bruxinho são presságios de uma revolução onde os livros de J.K Rowling nos alertam para um desejo radical de viver a partir de um novo jeito, num novo mundo. A literatura deve, por vezes satisfazer esse desejo e transformar o espírito do jovem leitor, fazendo-o sonhar e ficar se perguntando: „e se ?‟ Mas, em outras, ela tem o efeito catártico de nos livrar dos nossos desejos e nos apresentar apenas uma representação deles. Dessa maneira, cabe à literatura e ao imaginário a difícil tarefa de nos seduzir para atenuar nossas decepções e frustrações, fazendo com que aceitemos o mundo „‟trouxa‟‟ em que vivemos, ou seja, desencantado e sem graça. Por isso essa obra se tornou um sucesso dentre toda a cultura juvenil. Harry Potter é um personagem que cresceu junto com os seus leitores, tornando o apego à série muito mais durável e intenso. Os livros fizeram com que nascesse uma necessidade de guardar uma parte da infância e, dessa maneira, transmiti-la aos mais novos. Com isso, voltamos à nossa questão central: Harry Potter é um anjo ou demônio ? Nosso bruxinho ainda terá muitas décadas para conquistar novos leitores e despertar paixões, curiosidades e emoções em todos que abrirem os seus livros, mas deixemos Dumbledore proferir as palavras finais desta pesquisa: ‘’Prever o futuro é uma tarefa bem difícil...’’ BIBLIOGRAFIA 8 http://odetalhedapalavra.blogspot.com/2013/06/autora-de-harry-potter-eassumidamente.html#ixzz3IifV9YiX acesso em 28/10/2014 33 Bibliografia ROWLING, J. K. Conversando com J. K. Rowling: entrevista de Lindsay Fraser. São Paulo: Panda, 2003, p 10. R. Descartes, Regles pour la direction de l‟espirit, Regle II, Paris, Gallimard, 1970, p.40. Sosa, Jesualdo, A literatura infantil, São Paulo, cultrix/editora da universidade de São Paulo, 1978, p.169. 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