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BRASIL A QUESTÃO NACIONAL Miguel Arraes SCLN 304 - Bloco A - Entrada 63 - Sobreloja - CEP 70736-510 - Brasília, DF Tel/Fax: (61) 3327-6405 / 3327-5196 - e-mail: [email protected] Miguel Arraes BRASIL A QUESTÃO NACIONAL Capa: Detalhe Reprodução Obra de Cândido Portinari Contra-Capa: Reprodução de Obra David Farias Projeto Gráfico e Impressão: TC Gráfica e Editora Ltda - EPP “...se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão dos seus sofrimentos.” “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” Carlos Drummond de Andrade1 1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião, editora José Olímpio. Rio de Janeiro, 1969. Sumário Grande Nação? Ou Território Ocupado?......................... 7 Dependência....................................................................... 10 A Revolução Nacional....................................................... 23 A Contra-Revolução.......................................................... 31 Os Golpes........................................................................... 46 A Ditadura.......................................................................... 53 A Recolonização................................................................. 58 Os Modelos........................................................................ 64 A Questão Nacional........................................................... 73 Interesses Nacionais........................................................... 82 Mobilização Nacional........................................................ 95 Resumo............................................................................... 99 6 Brasil a Questão Nacional Grande Nação? Ou Território Ocupado? É importante para a ditadura procurar demonstrar que estamos saindo do mundo dos subdesenvolvidos. Essa tese não é destinada apenas a entreter a propaganda que justificaria a ação dos governantes do momento. Nela está assentado o arcabouço ideológico do sistema de dominação e, em conseqüência, a política do regime. Tudo é feito para dar a impressão de que o Brasil está ficando rico e, portanto, independente. A prova estaria no crescimento da produção industrial, nas estradas, nos meios de comunicação e em realizações semelhantes. Com isso, o regime permite-se implantar a “segurança”. As razões que ele mesmo oferece para existir, isto é, para a repressão que desencadeia em todos os níveis, baseiam-se no falseamento de conceitos, a começar pelos de grandeza e de nação. A grandeza não se mede pelo número de automóveis fabricados, nem por quilômetros de estrada. Nada disso tem valor se não nos afirmamos, diante da comunidade internacional, como uma nação que traz, em termos altos, Brasil a Questão Nacional 7 uma contribuição nova e construtiva para o conjunto da humanidade. Ora, o comportamento da ditadura leva o país ao sentido oposto. Fomenta golpes de Estado nos países vizinhos, liga-se ao regime fascista da África do Sul e apóia a política colonialista de Portugal quando somos uma das maiores nações negras fora do Continente Africano. A pretexto de que o Brasil se desenvolve, afasta-se dos países do terceiro mundo, assumindo atitudes de novo rico, quando a nossa população é tão pobre ou mais do que a deles. Seu conceito de grandeza fere, desse modo, a realidade de nosso país e as aspirações do nosso povo. Por outro lado, os nossos verdadeiros problemas são escamoteados através da comparação do Brasil com as nações européias, com os Estados Unidos, com o Japão, de épocas anteriores. Os tecnocratas da ditadura citam dados estatísticos com a intenção de mostrar que já trilhamos uma boa parte do mesmo caminho, quando o nosso é bem diferente dos que seguiram aquelas nações. Como bem assinala Stavenhagen2 “o subdesenvolvimento na América Latina não é simplesmente uma questão de “atraso” em relação aos países industrializados, que se poderia medir comparando diversos indicadores tais como o produto nacional bruto, o produto por habitante etc. Trata-se de uma estrutura que resulta de um certo processo histórico. O subdesenvolvimento é a maneira de ser dos países latinoamericanos na época moderna, como foi a “sociedade colonial” durante os três séculos da colonização ibérica.” 2 STAVENHAGEN, Rodolph. L’ Amérique Latine, 1971. 8 Brasil a Questão Nacional De fato, nossa história não é a da Europa. Lá, segundo Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, a burguesia industrial desempenhou um papel ativo e revolucionário na formação das nações, partindo dos seus interesses de classe. A centralização dos meios de produção e a concentração da propriedade nas mãos de poucos determinaram a centralização do poder, criando normas que levariam populações, antes ligadas por laços mais tênues, a uma convivência que se estruturou no plano econômico, político e cultural. A estabilidade desse sistema, na sua fase de expansão, permitiu-lhe estender seu domínio a outras regiões, na busca da exploração de outros povos. Tampouco somos como os Estados Unidos. Conforme Celso Furtado, as manufaturas desenvolveram-se desde o final do século XVII, apesar das sucessivas proibições da Inglaterra. Sendo numerosa, a pequena e média propriedade constituíam um mercado interno capaz de absorver a sua produção. A guerra da independência trouxe para o poder as camadas médias e uma burguesia em ascensão, classes consideradas revolucionárias naquela época, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Nossa evolução foi bem diversa. As manufaturas foram liquidadas na própria metrópole portuguesa, pelo Tratado de Methuen. Fomos uma espécie de Rodésia do século XIX: uma minoria branca também decretou a nossa autonomia política, com o objetivo de quebrar o monopólio do mercado de exportação, detido por Portugal. Brasil a Questão Nacional 9 Dependência Traços comuns com as nações dependentes Sempre fomos e continuamos dependentes. Assemelhamo-nos assim, com os demais países latinoamericanos, com os africanos e com os asiáticos. Em todos os países como o nosso, os setores hegemônicos das camadas dirigentes desempenharam papel bem diferente das burguesias industriais européia e americana. Serviram e servem de intermediários da dominação dos seus próprios povos por interesses externos. Para exercer esse papel, devem relacionar-se com as duas partes. De um lado, com o exterior, significando submissão, aliança, associação; de outro, com o interior, guardando, pelo menos, a aparência de que pertencem à comunidade nacional. Instalando sua hegemonia sobre o conjunto das classes dominantes, aqueles setores representaram sempre a antinação, não a nação. Jamais tiveram o papel ativo e revolucionário que coube, no passado, às burguesias dos países industrializados. Desempenharam sempre um papel passivo, reflexo, de freio ao desenvolvimento da própria comunidade, 10 Brasil a Questão Nacional porque isso resultava melhor aos seus interesses. Nestas condições, as definições de nação que trazem os dicionários não se aplicam por inteiro às nações dependentes. É certo que, como as demais, são “uma forma historicamente constituída de sociedade humana....São próprias da nação, antes de tudo, a de condições materiais de vida; de território e de vida econômica, a comunidade de idioma, de psicologia, assim como determinados traços de caráter nacional que se manifestam na peculiaridade nacional de sua cultura”. Toda essa conceituação contida no dicionário Rosental e Iudin pode ser encontrada, grosso modo, nas diversas nações, dominantes e dominadas. Mas essas últimas não chegam a ser, como ele acrescenta, “a forma mais ampla de comunidade a que deu origem o nascimento e evolução do sistema capitalista”. Esse conceito ajusta-se melhor às dominantes, àquelas em que o sistema se expandiu a partir de transformações de suas bases sociais, atingindo plena maturidade e que agora está em fase de decadência. A expansão do sistema capitalista transformou a face do mundo. Mas, imposto de fora para dentro, de cima para baixo, às nações dependentes, não criou mecanismos que as tornassem a “forma mais ampla da comunidade humana”, no sentido capitalista do termo. Ao contrário, contribuiu para frear sua evolução nesta direção, porque isso era necessário à expansão dos centros mundiais de dominação. A liquidação de formas embrionárias de desenvolvimento industrial era uma exigência da expansão do sistema. O Tratado de Methuen fez de Portugal, até hoje, uma nação subdesenvolvida para atender às necessidades Brasil a Questão Nacional 11 do capitalismo inglês. Em todo o mundo colonizado, eram proibidas as manufaturas, ou liquidadas pela concorrência da máquina, como ocorreu com a indústria chinesa fundada sobre o trabalho manual, no século passado. Assim, a penetração do sistema capitalista nas nações dependentes fez-se de forma reflexa. Quebrou o desenvolvimento dessas sociedades a partir de mecanismos próprios, criados pelas necessidades vividas naquela oportunidade. Prevaleceram outros fatores, mais fortes, vindos de fora. Por conseguinte, as modificações introduzidas pelo sistema importado não conseguiram atingir toda a escala social. A penetração do sistema capitalista não provocou uma revolução profunda. Mas impôs como conseqüência, a sua ideologia, por inteiro. Por isso mesmo, antigas culturas, enraizadas por uma longa tradição, tidas como mais “atrasadas” do que a “civilização ocidental”, continuaram a servir, em maior ou menor medida, de elemento aglutinador da sociedade. Traços particulares da nossa dependência Dependentes como os povos asiáticos e africanos, deles nos distinguimos, entretanto, pelas diferenças culturais decorrentes da nossa formação histórica. Não constituímos uma antiga civilização. As comunidades que existiam no nosso continente foram dizimadas. O que delas restou é visto como um corpo estranho no seu próprio território, de tal forma que 12 Brasil a Questão Nacional ninguém se aventuraria a propor a restituição aos índios das terras ocupadas há poucos séculos ou ainda não desbravadas. No entanto, muitos consideram perfeitamente normal a recuperação do território da Palestina pelos judeus, dois mil anos depois de ter sido abandonado. Nossa recente formação não permitiu a sedimentação de formas de convivência que, nas antigas comunidades, serviam como um dos elementos de coesão social, fundada, em toda parte, no consentimento e na coerção. Quanto maior fosse o consentimento, entendido não como a aceitação de idéias em abstrato, mas através do seu ajustamento aos interesses dos indivíduos, menos as classes dirigentes precisariam recorrer ao uso da força. No curso da sua evolução, elas puderam constituir, por “atrasado” que fosse, um sistema social coerente, no sentido da harmonia existente entre a exploração econômica, as idéias que a justificaram e os elementos culturais que se organizaram em torno delas. No dizer de Gramsci, em Piotte3 “se uma ideologia – definida como a união de uma visão do mundo e de formas de conduta – é historicamente necessária, ela deve poder ser encontrada em todos os níveis da sociedade: econômico, político, artístico, científico, lingüístico etc.” O s i s t e ma c a pit a list a n ã o encontrou ple no desenvolvimento nas nações dependentes que não foram, por isso, totalmente impregnadas da ideologia que lhe corresponde, enquanto “concepção do mundo que se 3 PIOTTE, Jean Marc. La Pensé e Politique de Gramsci, Editora Anthropos. Paris, 1970. Brasil a Questão Nacional 13 manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações da vida individual e coletiva” (idem). Permaneceram, em maior ou menor medida, antigas formas de relacionamento – outra “noção de uma visão do mundo e de formas de conduta” – por ter sido “historicamente necessária” em fase anterior. Continuam a servir à coesão social, embora sejam geralmente consideradas como um obstáculo ao progresso. Pode se discutir o papel que tais fatores desempenham. Assumem aspecto positivo, quando um projeto político os utiliza em ligação com reivindicações sentidas da população, como ocorreu em algumas guerras de libertação. No mais das vezes, continuam a servir de instrumento das camadas dirigentes que os manipula em seu próprio benefício. No entanto, estas são também freadas na sua tendência a uma total aculturação pois precisam conservar raízes no interior, necessárias ao seu papel de intermediárias. Em outras palavras, os dirigentes devem, ao menos, ter o trabalho de conservar, embora só na aparência, os hábitos, símbolos e crenças de seus povos. Na África e na Ásia, esses traços culturais ajudam a distinguir o dominador “ocidental” do domínio local. Para a América Latina, transferiu-se a “civilização ocidental” com armas e bagagens. Nossas classes dominantes não teriam que se preocupar sequer com a manipulação dos costumes locais. Limparam o terreno, destruindo os obstáculos que encontraram. A violência na nossa formação 14 Brasil a Questão Nacional Por isso mesmo, nossas origens estão marcadas pela violência. Ela foi empregada em toda a parte, mas a carga que nos coube, a que está presente na nossa história até os dias de hoje, é inegavelmente maior. Impossível querer escondê-la atrás do paternalismo de Pedro II, das liberdades republicanas e de outros mitos. Ela é tão grande que nos faz escapar às definições dos dicionários sobre nação. Não só dos marxistas, como o já citado, mas do Larousse, segundo o qual “nação é uma comunidade humana...animada do desejo de vida em comum”. Para reunir índios, caçados como feras, negros, trazidos como escravos, e brancos, fugidos da miséria do reino ou castigados por uma corte cuja justiça duvidamos, foi preciso inegavelmente usar a violência de forma ilimitada. Éramos um ajuntamento de gente, onde, há menos de um século, existia a escravidão que ainda perdura, disfarçada sob várias formas, ou aberta, como no tráfego de nordestinos para as grandes fazendas de outras regiões. O “desejo de vida em comum” que se criou, vem da necessidade de sobrevivência da massa oprimida. Não era o mesmo para senhores e escravos. Os escravos tinham que arrumar a vida localmente. Os senhores voltavam-se para fora. Suas atividades econômicas existiam em função do exterior, de onde provinha a sua ideologia. Sua preocupação não era a de organizar o país com vistas ao atendimento das necessidades da comunidade. Tudo era destinado a atender a exigências vindas de fora. À primeira vista, parece ser história antiga, parece referir-se a fatos ocorridos quando da chegada dos portugueses Brasil a Questão Nacional 15 nos idos de 1500. No entanto, ela é perfeitamente atual. As duas concepções sobre a formação da nação chocam-se até hoje. A postura do colonizador, o absoluto desprezo pela população são tanto dos primeiros representantes da coroa portuguesa, quanto do atual ministro da fazenda da ditadura. A orientação é a mesma: dirigir as atividades econômicas para fora e não no sentido da construção do país. O que nele se faz, por vezes com alarde de grandiosidade, serve a uma mesma política de dependência. Mudam as justificativas, os métodos, os instrumentos; a essência permanece. A separação entre a minoria dominante e a grande maioria da população vinha e vem de enormes diferenças materiais de vida. Mas o fosso é ainda mais aprofundado pela inexistência de laços de identificação entre ambas. Entre um pobre e um rico, em certas zonas do nosso país, a distância era maior do que entre um budista pobre e outro rico, entre um chefe árabe e seus súditos. Estes possuíam, ao menos, crenças comuns. É que existia, paralelamente à repressão material, a violência ideológica contra o povo, a quem se buscava impor concepções que nada tinham a ver com suas condições concretas de vida. As elites importavam o modo de vida europeu como agora, o norte-americano. Incapazes de construir um sistema com um mínimo de coerência, tiveram que aplicar as idéias da Revolução Francesa a um regime escravocrata. Agora utilizam fórmulas americanas a condições econômicas e sociais inteiramente diferentes, como as nossas. Por isso, a repressão sempre foi utilizada em alto grau. 16 Brasil a Questão Nacional As franquias democráticas que começaram a se alargar em 1930, beneficiaram de fato apenas uma reduzida minoria. Um dos direitos mais elementares, o de voto, não apenas para os analfabetos mas para milhões de pessoas no interior do país, sempre foi estritamente controlado e dirigido. O uso da violência, sob diferentes formas e de modo permanente, como elo de ligação entre a minoria dominante e o povo, estabeleceu entre ambos uma profunda separação. Todo elo liga e separa ao mesmo tempo, sendo a violência, enquanto tal, o que mais força tem para separar. Violência e Segregação Em termos sociais, a violência leva à segregação. Dirse-á que ela não existe no Brasil, tanto assim que teríamos ultrapassado o problema da discriminação racial. Na verdade, a discriminação entre nós assume aspectos diversos da americana e da sul-africana. No nosso país, as condições de vida identificaram, nas necessidades e no sofrimento, brancos, pretos e mestiços, homens de todas as origens, reduzindo ou eliminando, no seio do povo e de grande parte das camadas médias, a separação em função da cor da pele. Porém, herança da sociedade escravocrata, ela constitui fenômeno tão amplo quanto a recusa de convivência com pessoas de outra raça. É sobretudo sobre outros aspectos que esta separação existe no Brasil, onde toma o nome mais brando de “marginalização”. Nossa população vive segregada, marginalizada. Isso pode ser facilmente constatado em todos os lugares, nas regiões ricas e pobres. Brasil a Questão Nacional 17 No Centro-Oeste, de acordo com o documento 4 divulgado pelos bispos da região, “de 1955 pessoas com quem procuramos falar, 1210 disseram que estão desempregadas e enfrentam o trabalho que aparece na hora, no tempo em que é maior a precisão; 143 nada quiseram dizer; somente 602 disseram que têm emprego fixo. Quer dizer que se a gente pega três pessoas, só uma tem emprego com ordenado. As outras duas vivem como podem, de “biscate”: trabalham aqui e ali, hoje sim, amanhã não, um mês sim, outro não...”. O documento divulgado pelos bispos e superiores religiosos constata que “a fome assume no Nordeste características epidemiológicas. Pesquisa realizada em cidades de diferentes áreas da região apresentou o seguinte resultado para o consumo médio alimentar por pessoa, em termos de percentagem sobre o cientificamente recomendado: calorias, 56%; proteínas (total), 81%; cálcio, 74%; vitamina A, 4%; vitamina C, 54%. Os valores relativos a crianças com idade menor que dois anos eram os seguintes: calorias, 51%; proteínas (total), 56%; cálcio, 79%; vitamina A, 7%; vitamina C, 27%”. “As causas e conseqüências de tal estado de subnutrição são referidas nas conclusões do relatório da pesquisa, publicado em 1968 pelo Instituto de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (Nutrition Survey on Northeast): A deficiente disponibilidade de alimentos para a população da área nordestina tornou-se evidente...A população em geral foi considerada magra, o que se confirmou através de medidas de espessura da pele...A impressão mais geral, confirmada através de exames 4 Marginalização de um Povo, maio/1973. 18 Brasil a Questão Nacional clínicos, foi de subnutrição ou pouco desenvolvimento físico”. E mais: “A subnutrição, tendo provocado uma redução da estatura física, conforme constatação da primeira pesquisa citada, incluiu entre seus efeitos, o aparecimento na região de grande número de mutilados mentais. Teste aplicado em 1972 em três municípios da zona da mata de Pernambuco, para medir o quociente intelectual de 109 crianças, apresenta os resultados que seguem. Em Gameleira, foi registrado um QI médio de 78, que na escala de Terman indica indivíduos com inteligência embotada. Em Ribeirão e Água Preta, verificaram-se médias ainda mais assustadoras: 72,4 e 73,3, respectivamente. Na mesma escala de referência, esse é o limite da debilidade. Um ponto abaixo estão os débeis mentais fracos, “último degrau da imbecilidade” (“Eu ouvi os clamores do meu povo”, maio de 1973). Em Minas Gerais, segundo constata Oliveira 5 , “move-se, sonambúlica, inerme, uma população açoitada pela bouba, o tracoma, o bócio endêmico, a leishmaniose, a esquistossomose, a malária, o escorpionismo, a doença de Chagas – uma legião de homens à morte confiados. Há populações em que a prevalência da doença de Chagas é de 100%. Outras em que a taxa de mortalidade infantil é de 500 sobre 1000. A marginalização social desses contingentes humanos é tremenda. Para cada grupo de 33 pessoas ocupadas existem 67 dependentes – é como se de cada dez pessoas apenas duas trabalhassem... De um milhão de habitações rurais, pelo menos 600 mil não apresentam condições mínimas de segurança e higiene. Há áreas em que 76% da população vivem em “cafuas” – versão mineira da favela carioca, do mocambo pernambucano, da maloca gaúcha, dos Brasil a Questão Nacional 19 alagados baianos”. Na Amazônia, de acordo com Newsweek, de 03/07/1972, a convicção dos padres e das autoridades superiores da Igreja no Brasil “é de que a exploração da Amazônia está causando excessivas perdas em vidas humanas e em sofrimento. É rara a semana em que horríveis histórias não filtram da floresta – relatos de atrocidades contra os índios, batalhas entre exércitos privados das grandes companhias e os posseiros que defendem a terra vendida sem o seu conhecimento ou trabalhadores submetidos à condição de escravos. Acompanhado por um colega francês, o frade franciscano Júlio Hebinek, de nacionalidade americana, viajou recentemente num barco pelo interior da Amazônia e voltou com dolorosos relatos sobre os trabalhadores da borracha recrutados à base de promessa de rápido enriquecimento e que morreram antes de chegar ao destino. Em quase todas as famílias visitadas numa dessas explorações, pelo menos metade das crianças tinham morrido”. Em São Paulo, segundo divulgou O Estado de São Paulo, de 20 de fevereiro de 1972, “no litoral, as crianças menores de quatro anos contribuem com aproximadamente 49% do total de mortes na região. Segundo pesquisas da OMS – Organização Mundial da Saúde, em 75% dos óbitos de crianças em idade pré-escolar, encontram-se provas concretas de desnutrição moderada ou grave. Na capital de São Paulo, a situação não é muito diferente: a subnutrição é responsável por 43% das crianças mortas antes dos quatro anos”. Segundo 5 OLIVEIRA, Franklin de. A Tragédia da renovação brasileira, 1971. 20 Brasil a Questão Nacional o Dr. Herbert Levy em Oliveira (idem): “São Paulo, unidade líder da União, oferece-nos hoje espetáculo contristador em sua zona rural. O nível a que baixou a condição de vida do trabalhador agrícola – marginalizado daquilo que se chama civilização cristã – é o da completa degradação humana”. A marginalização econômica e social completa-se com a política. A maioria sempre foi privada dos direitos mais elementares, constituindo cidadãos de terceira ou quarta categoria. A privação de direitos decorrentes das medidas de exceção da ditadura sempre existiu para a maioria do nosso povo, em todas as épocas. A segregação está à vista de todos. Basta olhar as favelas que constituem um outro mundo: as cidades satélites de Brasília, os mocambos do Recife, os alagados de Salvador, os casebres em torno das cidades brasileiras. Segregação ou marginalização, dê-se-lhe a designação que se queira, não é possível negar a existência do fenômeno. Ele não se extingue com a transferência de favelas para longe dos bairros ricos, como no Rio, nem com a simples mudança de nome. A Revolução Nacional A luta dessa massa marginalizada, miserável e oprimida pela própria sobrevivência, ao longo dos anos, objetivou a constituição da comunidade brasileira. A Revolução Nacional, compreendida no seu sentido histórico, não visou apenas a fazer Brasil a Questão Nacional 21 passar de um estágio a outro uma sociedade homogênea, ligada, através do tempo, por uma civilização comum. Visa a integrar homens de origens bem diversas que, no começo, uma minoria branca juntou pela força, em função dos seus interesses. A esse conjunto heterogêneo, ela tentou impor normas importadas, desvinculadas, seja das tradições dos indígenas e dos negros, seja da própria realidade que se foi constituindo no país. As bases sociais que se foram formando no decorrer do tempo rejeitaram sistematicamente essa imposição, criando uma visível separação entre a minoria dominante e a maioria dominada. A diferença vem da exploração econômica que se 22 Brasil a Questão Nacional encontra, sem dúvida, na base de tudo o mais. Mas ela determina e compreende aspectos sobre os quais sempre se defrontaram e ainda se defrontam, duas correntes opostas, no curso de nossa história. De um lado, os “nativistas”, os “nacionalistas”, os que dão ênfase à construção do país. De outro, os “europeus”, agora os “americanos”, que se voltam para fora, tanto no que toca a seus interesses materiais, como à ideologia que defendem, determinada pela sua dependência do exterior. Pouco importa que essa dependência venha da exportação do açúcar, do café ou do novo ciclo, o dos manufaturados. Mudam os produtos, mas a ideologia é a mesma, a do colonizado. Essa ideologia reflete os interesses das classes dominantes que retardaram a nossa independência econômica e a consolidação da comunidade nacional sob diversos aspectos. A independência foi sendo impulsionada, pouco a pouco, pelo povo, freqüentemente através de formas empíricas, não políticas, que indicam, no entanto, aquela oposição. As camadas dominantes não só impuseram sua língua como pretenderam conservá-la na sua pureza original. O português falado pelo povo só entrou na nossa literatura com o movimento dos nordestinos em l922. A concretização da independência, no plano lingüístico, só começou a ocorrer, por conseguinte, um século depois de proclamada a autonomia política. A metrópole, a Europa, continuou a ser fonte inspiradora das elites. Brasil a Questão Nacional 23 À margem da Igreja oficial, sobreviveram cultos africanos, não obstante as estritas proibições e a repressão sistemática contra os terreiros. Mas o povo criou santos e beatos, contestando a história católica. O padre Cícero e numerosos outros menos conhecidos deveram uma popularidade regional ou local à ligação mais estreita que estabeleceram com as bases sociais. Deram mais ênfase a essa ligação do que aos aspectos “romanos” da religião, “abrasileirando-a”. O “arquipélago cultural” é a resposta dessas mesmas bases a um modelo ideológico, que se pretendia nacional, mas completamente estranho à sua vida. A compartimentação da população, em razão das distâncias e da variedade das atividades econômicas, forjou os regionalismos, expressões culturais diferentes na forma, mas semelhantes no conteúdo. Representaram a rejeição de idéias supostamente nacionais mas, na verdade, importantes e inautênticas, arrimando-se no popular de cada zona do país. A “revolução demográfica” foi acentuando miséria em termos quantitativos. A “populaça” a “quarta classe”, como eram designados no século passado, os brancos, pretos e mestiços pobres, transformou-se em milhões de favelados, de “bóias-frias”, de “biscateiros”, de “paus-de-arara”, de “baianos”, de “caiçaras”, que enchem hoje as cidades grandes, médias e pequenas. A industrialização, acelerada a partir de 1930, pela convergência de fatores internos e externos, contribuiu, na sua primeira fase, para alargar a autonomia econômica com repercussão na política e em outros planos. Começava 24 Brasil a Questão Nacional a pesar, dentro das classes dominantes, um setor cujos interesses voltavam-se para o interior, ao contrário das velhas oligarquias exportadoras de matérias-primas. Crescia a classe operária urbana, o que permitia não só elevar o nível das lutas populares em algumas áreas, mas sobretudo interligá-las. Iniciava-se um processo de integração nacional. As trocas passaram a ser feitas entre regiões produtoras de matérias-primas, antes enviadas diretamente ao exterior, e os centros fabris que se instalavam no país. Essas mudanças favoreciam o alargamento do processo democrático, alimentado por parcelas crescentes das massas populares, mas também, por um novo tipo de classe média que se formava em torno dessas novas atividades. As necessidades do setor industrial determinavam mudanças no estudo e na aplicação das diferentes técnicas. Sendo antes simplesmente transplantadas, elas começavam a ser vistas em função da realidade em que iam ser aplicadas. “Abrasileiravam-se”, tal como acontecera em outros domínios. Reforçava-se, assim, através de novos elementos, o processo de formação nacional que só o povo, em planos não políticos e de forma espontânea, mantivera em permanência, opondo-se à alienação das camadas dominantes do período neocolonial. Retomavam-se as lutas dos revolucionários do século passado que defendiam a necessidade de uma independência efetiva contra a autonomia negociada, legada pelo príncipe português. Limitações da Industrialização Brasil a Questão Nacional 25 Esses aspectos positivos da industrialização trouxeram, em contrapartida, elementos negativos que nem sempre foram levados em conta. As análises acentuaram sobretudo o fato de que o país evoluía do “atraso” para o “progresso”, com uma decorrência natural do crescimento dos seus centros fabris. Os índices utilizados para medir aquela evolução, em geral a comparação dos bens produzidos pela indústria e pela agricultura, eram, no entanto, insuficientes. Escondiam outros aspectos, como acentuação da miséria em vastas zonas do país. Em muitas delas, as burguesias tradicionais conseguiram sobreviver graças a subsídios governamentais e à intensificação da exploração da mão-de-obra. O ônus principal recaía sobre a massa explorada. Nas regiões de concentração de assalariados agrícolas, como a zona açucareira do Nordeste, o fenômeno é mais visível. Mas ele se encontra em toda parte, fruto da mesma causa, a situação de dependência do país. A formação de uma burguesia industrial exigia um nível de acumulação capaz de atender, ao mesmo tempo, às necessidades de implantação e funcionamento do parque fabril sem que cessassem as saídas dos tributos da dependência neocolonial. O aumento do número de fábricas não significava, por si só, o desaparecimento dessa dominação. Até hoje, continuam a conviver desde a concessão do tipo colonial clássico, como a de manganês do Amapá, até as formas mais modernas e requintadas do imperialismo. A industrialização não se chocava frontalmente com essa situação. Não obstante, suas contradições com uma economia exportadora de matérias-primas, a eliminação desta 26 Brasil a Questão Nacional não era necessária à sua existência e ao seu crescimento. Ela se encaixava nas velhas estruturas. Na primeira fase, a de substituição de importações de bens de consumo corrente, a industrialização valia-se de um mercado criado pelo estágio neocolonial. Fabricava-se aquilo que já era antes consumido por camadas sociais que se haviam formado em função dele. A própria compra de equipamentos dependia da conservação das antigas estruturas, na medida em que lhe forneciam as divisas necessárias. Como ficou demonstrada na prática, a conciliação dos diversos interesses dominantes era perfeitamente viável, constituindo, ademais, uma imposição da correlação de forças econômica e política existente no país. Fraqueza da Burguesia Industrial A debilidade da burguesia industrial não lhe permitia assumir efetivamente o comando do desenvolvimento, detendo a exclusividade ou a hegemonia incontestada no controle do poder. É de notar que não se constituiu sequer um partido político da burguesia industrial com a finalidade de consolidar um projeto de implantação de um capitalismo autônomo, sob seu comando. As teses defendidas em restritos círculos empresariais que adotavam essa orientação, não deram lugar à criação de uma nova força ou à transformação de um dos partidos tradicionais, com a finalidade de levá-las à prática. O PTB apoiava-se sobretudo nos sindicatos operários. Brasil a Questão Nacional 27 Sua função era a de mobilizar os trabalhadores (e não a burguesia) para um projeto daquele tipo, isoladamente ou em coligação com outras forças populares. Os elementos da burguesia que se ligavam ao PTB não conduziam a sua própria classe e a ele se filiavam, quando não por mero oportunismo, exatamente porque não tinham condições de organizá-la. Nem os nacionalistas, nem os socialistas e muito menos os comunistas podiam representá-la, apoiando-se em setores populares e nas camadas médias da população. O PSD representava os setores tradicionais cujas preocupações no âmbito nacional, só existiam na medida em que a divisão do mando central contribuía para preservar o seu poder estadual ou local. Eles não tinham condições de apresentar perspectivas para o conjunto do país, limitando-se a defender seus interesses setoriais e a lutar, cada um, por um maior favorecimento dos benefícios federais. Da UDN participavam os representantes dos grandes interesses ligados ao exterior, notadamente os relacionados com a exportação de matérias-primas. Aglutinava os grupos tradicionalmente ligados aos americanos, civis e militares, a ponto de fazer constar dos seus estatutos, como ponto programático, a defesa do capital estrangeiro. Esse perfil das forças políticas reflete a sobrevivência das estruturas vindas do neocolonialismo, ampliadas e atualizadas. Ele não pode evidentemente ser tomado à risca: são encontrados “entreguistas” no PTB e “nacionalistas” na UDN. Tais casos assumem, porém, um caráter de exceção, não invalidando as suas grandes linhas. Elas indicam a projeção das velhas forças e mostram a fraqueza política do 28 Brasil a Questão Nacional setor industrial, fruto de suas limitações econômicas. A necessidade de conciliar para existir colocou-o em posição defensiva no plano ideológico e político. Não se propôs criar a nação nos termos em que fizeram as burguesias européias. Enquanto as forças representativas do capital estrangeiro faziam organizadamente a defesa de suas teses, a ponto de se constituírem em ponto programático de um partido, o empresariado nacional limitou-se a reivindicar, não a sua predominância, mas apenas e debilmente a igualdade de direitos com os grandes grupos vindos de fora. Nestas condições, cresceu o setor moderno da economia sem que se verificasse a liquidação ou a relativização dos demais. Ocorreu mais uma superposição do que uma sucessão de estágios de desenvolvimento, deixando sobreviver, no plano econômico, político, social e ideológico, uma forte marca da sociedade neocolonial. A Contra-Revolução Tanto quanto a revolução nacional de que constitui o pólo oposto, a contra-revolução tem coerência histórica, dentro de sua incoerência frente aos interesses nacionais e populares. De sua lógica às avessas, surgem conceitos e símbolos. Não é por acaso que o símbolo da ditadura é Pedro I e não Tiradentes ou outro herói das lutas pela independência. A transferência dos restos mortais do príncipe português para o Brasil vem de par com a predominância, no seio da ditadura, Brasil a Questão Nacional 29 das mesmas idéias neocoloniais que ele encarnou. Anteriormente, tratava-se de conservar o país debaixo da tutela britânica; atualmente, cuida-se de consolidar a do império americano. As condições eram certamente bem diversas. Os argumentos ganham nova roupagem, tornam-se sofisticados para atender a uma situação muito mais complexa. A essência continua a mesma: tudo se baseia no pressuposto de que nossa sorte depende fundamentalmente do exterior. Essa atitude já era rejeitada por Martim Francisco, nos idos 1824. Dizia ele que “os povos, quando querem ser livres, têm muitos recursos em si próprios”. Tendo vivido no século passado, não pode ser acusado de estar repetindo Mao-Tse-Tung, quando diz a mesma coisa, aconselhando a nos “apoiarmos nas nossas próprias forças”. Desde há um século e meio, essas teses se defrontavam. Segundo Sodré 6, levantaram-se - contra as medidas de proteção à incipiente industrialização, tomadas por Floriano 30 Brasil a Questão Nacional – duas linhas de argumento: “a primeira pretendia que, no Brasil, só havia perspectivas para o beneficiamento de determinados produtos agrícolas e para determinada espécie de manufaturas que operassem com matéria-prima de origem vegetal. Chamava-se a isto “indústria natural” e tinha o sentido de assegurar sempre a supremacia agrária: a “indústria natural” seria sempre um apêndice da agricultura. A segunda pretendia que, não existindo no Brasil condições para a produção industrial, as medidas tomadas pelo Estado no sentido de criar essas condições correspondiam sempre ao sacrifício do consumidor, obrigado a pagar caro aquilo que as “indústrias artificiais” lhe ofereciam, quando poderia pagar barato o que as importações livres lhe ofereciam”. Tratava-se, naquela época, de impedir o crescimento do incipiente parque fabril, antes que adquirisse importância como força econômica. A fraqueza do setor industrial possibilitava a obtenção desse objetivo com medidas relativamente simples. Segundo Sodré, a emissão destinada a favorecer a indústria, em 1892, foi eliminada com este simples telegrama, mencionado nos jornais da época: “Consta-nos que os Srs. Rothschild telegrafaram ao ministro da Fazenda fazendo-lhe sentir que a emissão de apólices para auxílio às indústrias, se resolvidas pelos poderes públicos, não será de bom efeito no crédito do país”. Brasil a Questão Nacional 31 Aquela linha de argumento prevaleceu até depois da Segunda Guerra Mundial. Nossa “vocação agrícola” continuou a ser decantada pela corrente ligada ao sistema internacional. Levada à prática, no governo de Dutra, serviu de suporte à liquidação das divisas brasileiras acumuladas durante a guerra e reservadas à importação de equipamentos para a indústria. A volta de Getúlio ao poder foi o resultado dessa situação, correspondendo à reação da burguesia industrial e do operariado urbano contra um recuo que se pretendia impor ao país. O enorme favorecimento ao capital estrangeiro que se seguiu à sua morte, permitiu aos grupos internacionais assumirem o controle do setor industrial. Já não era mais possível continuar afirmando a “necessidade de nos conservarmos essencialmente agrícolas”. Sobretudo tornava-se extremamente vantajoso transferir conjuntos industriais, obsoletos nos países de origem, ou adquirir ramos já existentes, tais as concessões que eram oferecidas pelo governo de Juscelino Kubitschek . Nesse período, segundo Sodré, “o Estado brasileiro, na verdade, canalizou para as mãos de grupos estrangeiros dezenas de bilhões de cruzeiros, permitindo-lhes, com esses recursos nacionais, apoderar-se de um setor importantíssimo da indústria nacional e dominar o mercado interno”. O próprio embaixador Lincoln Gordon revelou depois as enormes vantagens concedidas aos investidores estrangeiros, conforme Gasparian7. São palavras do embaixador: “uma determinada 6 SODRÉ, Nelson Wernewck. História da burguesia brasileira, sem data. 32 Brasil a Questão Nacional empresa informou que lhe foi permitido supervalorizar a tal ponto o equipamento importado nos termos da Instrução 113 que contrabalançou o efeito da inflação até este momento (1962). O investimento em questão foi feito em 1957 e, levando-se em conta a taxa de inflação do período, pode-se afirmar que a sobrevalorização deve ter sido muito apreciável”. Novo Papel Político do Setor Industrial Essas, porém são apenas as vantagens imediatas, no nível das empresas. O controle do setor industrial constituía o único instrumento capaz de romper o impasse em que se iam colocando os Estados Unidos ao manter, no Brasil, uma aliança preferencial com os grupos tradicionais, exportadores de matérias-primas. A substituição de importações de bens de equipamento, cuja necessidade já se evidenciava nos primeiros anos da década de 50, se feita com recursos nacionais, estatais ou mesmo privados, favoreceria a consolidação da burguesia industrial brasileira. Alargando-se a autonomia econômica, perderia cada vez mais sentido o argumento daqueles setores tradicionais, baseado na nossa “vocação agrícola”. Do modo como se processou, a passagem a uma segunda fase de industrialização encaixou-se, tal como ocorrera na primeira, ao velho sistema. Juntou-se-lhe uma nova peça, sem alterá-lo. Em Furtado8 constata a harmonia existente entre o setor estatal, a indústria privada nacional e as empresas estrangeiras, acrescentando: “Outro ponto importante a assinalar é que o complexo industrial brasileiro comporta Brasil a Questão Nacional 33 uma dupla inserção: no sistema econômico interno e na economia capitalista internacional. Como as empresas que atuam nos setores mais dinâmicos, não exatamente aquelas que apresentam essa dupla inserção, os possíveis conflitos entre interesses “internos” e “externos” tendem a ser transferidos para o âmbito dos oligopólios internacionais, sendo pouco visíveis para o observador que se coloca no ângulo da economia nacional”. Registra ainda as repercussões ideológicas desses fatos, assinalando que “como a formação profissional, as fontes de informação, os padrões de consumo, em muitos casos a carreira, enfim, o quadro cultural dos elementos dirigentes das empresas dos três setores indicados tende a seguir o mesmo paradigma, trata-se menos de emergência ou consolidação de uma burguesia nacional do que de implantação da nova burguesia internacional ligada ao capitalismo dos grandes conglomerados transnacionais”. Essas constatações são verdadeiras, referindo-se, porém, ao setor industrial. Na verdade, à parte certas peculiaridades que existem em cada ramo de atividade, elas podem e devem ser estendidas às classes dominantes tradicionais. De fato, se o setor industrial agora “se insere na economia capitalista internacional”, elas sempre estiveram inseridas. O controle do setor industrial não visa à implantação 7 GASPARIAN, Fernando. Capital estrangeiro e desenvolvimento na América Latina, sem data. 34 Brasil a Questão Nacional da nova burguesia, mas a permanência da velha e constante burguesia internacional com a ajuda de novos instrumentos. Em torno dele, o regime faz gravitar os demais setores, para o que precisa mudar a qualidade da contradição que poderia opor a indústria, desejosa de abrir o mercado interno, a setores voltados para a exportação. A criação de “um sistema de incentivos à exportação de manufaturados que implicam em subsídios da ordem de 40%, segundo Celso Furtado, possibilita a unificação dos diversos setores debaixo de uma mesma política. As disputas não são contra, mas dentro dela, cada um procurando uma participação maior nos incentivos. Café, açúcar, carne etc., tanto quanto os manufaturados, “inserem-se na economia internacional”. A Ditadura Atual e as Velhas Oligarquias Assim, a orientação da ditadura atual está fundada nos mesmos princípios seguidos pelas oligarquias do passado. Baseia-se na exportação. Se as condições são outras, ela continua a decorrer da aceitação da condição de dependência do país. A introdução de novos fatores dificulta o cotejo de acontecimentos e de idéias de épocas distintas e distantes. No entanto, podem ser encontrados traços comuns, mesmo ao nível dos pronunciamentos e malgrado a diferença de linguagem. Ambas, as oligarquias e a ditadura, dependem 8 FURTADO, Celso. Análise do modelo brasileiro, sem data. Brasil a Questão Nacional 35 fundamentalmente dos banqueiros internacionais, sendo a mesma a atitude dos seus ministros da fazenda em relação a eles. Segundo Sodré (idem), que analisa a atuação do ministro do governo Campos Sales: “Murtinho, no seu relatório de 1901, defendendo a solução pela qual as finanças brasileiras passavam ao controle estrangeiro, afirmaria que “o que queriam os nossos credores era exatamente o que queriam todos os brasileiros”; os que se opunham a isto “eram levados por paixões partidárias”. Agora, o atual ministro da ditadura assim se defende do endividamento a que levou o país, em entrevista a Veja, de 26 de setembro de 1973: “em fins de 1967, devíamos 3,3 bilhões de dólares e em fins de 1972 aumentamos a dívida para 9,5 bilhões de dólares, o que prova que os banqueiros estrangeiros são tão incapazes que continuam banqueiros”. A diferença entre as duas frases está em que Murtinho guarda uma circunspeção que falta a seu colega do momento. A identidade está em que os dois ministros tomam os banqueiros internacionais como oráculos para saber se o país vai bem ou mal. Na medida em que consentem em emprestar, tudo vai às mil maravilhas. E nessas maravilhas vivemos de 1822 em diante. Já é tempo, portanto, de saber que os banqueiros não emprestam em função dos interesses do nosso povo mas das conveniências dos seus bancos. Exigem uma situação de “estabilidade”, isto é, que sejam abafadas as reclamações populares. Calculam quanto isso pode durar e emprestam, com as garantias usuais a qualquer país. 36 Brasil a Questão Nacional Tais semelhanças teriam significação menor se houvesse uma profunda diferença entre a função do Estado no período oligárquico e no período atual. À primeira vista, ela existe: a oligarquia pregava um não intervencionismo total, enquanto Furtado constata que atualmente “o Brasil afastou-se consideravelmente da economia do laissez-faire, criando uma “variante” do capitalismo de Estado que requer para o seu funcionamento normal uma íntima articulação entre a classe empresarial e os poderes públicos”. Como não poderia deixar de ser, dadas as diferenças de circunstâncias, os métodos não são os mesmos. Por caminhos diferentes chega-se ao mesmo objetivo, a desnacionalização. O não intervencionismo da oligarquia importava, na prática, em direcionar o conjunto da economia para a preservação do sistema neocolonial. Não era necessário que o Estado agisse como empresário. Para o fim que tinha em vista, bastava que fossem acionados mecanismos mais simples, como as taxas de câmbio, as tarifas etc. Não faltavam os que se insurgissem contra isso. Nos primeiros anos deste século, Cerzedêlo Correia, entre outros, chamava a atenção para o “perigo do livre câmbio adotado por uma nação, quando ela não está em condições de lutar...”. Enxergava, por conseguinte, que o “laissez-faire” não é senão a arma do mais forte. Ele não se extingue com aquela “variante” agora necessária à mesma política de desnacionalização. A designação é empregada por Furtado justamente para que não se confunda a função do Estado brasileiro, enquanto empresário, com o capitalismo de Estado, na sua conceituação Brasil a Questão Nacional 37 corrente: “Em jovens países em desenvolvimento, em países que conquistaram sua independência política, o capitalismo de Estado desempenha nova função. Constitui um meio de luta contra o capital estrangeiro, extirpa as raízes econômicas do seu domínio, contribui para fortalecer e desenvolver a economia nacional”. A função da “variante” é inversa, objetivando inserir o setor industrial na economia capitalista internacional. Isso torna secundário o fato de que o Estado possua algumas empresas, por maiores que sejam. Não é o volume da participação, mas a sua finalidade que importa. Só quando o aumento da participação venha a ser suficiente para mudar a qualidade da finalidade, é que a quantidade passa a ter importância. Nada indica que isso venha a acontecer. A participação do Estado dá-se agora de forma passiva. Frente a uma burguesia industrial incipiente como a brasileira, ele aparecia antes como setor de um desenvolvimento capitalista com tendência à autonomia. Cabia-lhe assegurar prerrogativas reivindicadas pela burguesia industrial, sobretudo exercer o papel pioneiro em setores onde seus investimentos e sua capacidade de empreendimento não bastavam. Isso lhe dava uma missão “ativa” que contrasta com a atual, por dinâmica que pareça. Agora, sua ação é condicionada pelos “grupos internacionais que têm o controle quase total das indústrias de bens duráveis de consumo, químico-farmacêutica e equipamentos em geral, que em conjunto formam o bloco em mais rápida expansão e onde mais significativa é a penetração do progresso tecnológico” (Furtado). O 38 Brasil a Questão Nacional Estado vai a reboque das necessidades desses grupos que condicionam seus investimentos. O atual regime não promoveu a criação de novas empresas, como Volta Redonda e a Petrobrás. Na medida do possível, mudou a sua finalidade e vendeu outras, como a Fábrica Nacional de Motores. Seu propósito declarado é o de fortalecer a empresa privada, sendo a sua participação, em novos empreendimentos, mera exceção, ditada por interesses outros que não os seus, mesmo enquanto empresário. Afora essa participação “passiva” do Estado, o “laissez-faire” continua como regra, como arma do mais forte, “o bloco em mais rápida expansão”, na liquidação dos concorrentes possíveis dentro do país. A “variante” introduzida nos métodos não apaga a semelhança da antiga e da nova dominação quanto aos objetivos e quanto aos efeitos. No plano cultural, como constata Bandeira 9, “a influência dos Estados Unidos no Brasil se acentuou, acompanhando o ritmo da expansão capitalista, com a qual se identificou. Se por um lado gera algum progresso, acarreta, por outro, atraso ainda maior, com distorções que afetaram, não só a economia, como também o comportamento, os hábitos e os costumes, enfim, a cultura do povo brasileiro”. No que se refere às regiões, constata-se uma crescente diferenciação sobre vários aspectos, não apenas pela diferença de renda, imposta pela especialização. Inverte-se a tendência à integração e reaviva-se a compartimentação, na medida em que cada uma delas, tal como no passado, vai se dedicar a produtos diferentes para o mercado externo, mais do que para trocas entre elas, destinadas às suas mútuas necessidades. Brasil a Questão Nacional 39 A Amazônia está transformada em colônia dos Estados Unidos. Os trezentos mil quilômetros quadrados de terra em mãos dos americanos, as velhas e novas concessões para a exploração de minérios, a retirada de madeira sem qualquer controle, além das relações diretas que existiam e são intensificadas, não deixam dúvida quanto a isso. Tentar reparar essa situação com a remessa de alguns soldados, como fazem alguns poucos militares preocupados com a “integridade do território nacional”, é desconhecer ou querer ignorar os mecanismos da dominação já implantada. Os soldados serão meras alegorias da presença simbólica do Brasil. No Nordeste, “o subdesenvolvimento continua a ser a nota característica mais importante. Segundo a SUDENE, a renda per capita do Nordeste se situa, hoje, um pouco acima de 200 dólares, ou seja, cerca de metade da renda per capita do Brasil e apenas um terço da renda de um paulista. Dados do Censo de 1970, revelam, contudo, que para cada grupo de 100 nordestinos com 10 anos ou mais de idade, 52 ganhavam até 100 cruzeiros mensais, enquanto 15 não tinham rendimento ou não o declararam. Apenas 3,3% da população economicamente ativa tinham rendimento superior a 500 cruzeiros mensais e apenas 0,86% ganhavam acima de 1.000 cruzeiros. No Piauí e no Maranhão, para o total de uma população economicamente ativa de 1.470.000 pessoas, somente 955 ganhavam acima de dois mil cruzeiros mensais” (Documento de bispos e superiores religiosos do Nordeste, maio/73). No Centro-Oeste, surgem novos donatários das novas capitanias hereditárias, que expulsam os antigos posseiros, do mesmo modo que os portugueses expulsaram os índios, a 40 Brasil a Questão Nacional partir da descoberta. No Sul, tenta-se fixar uma economia “essencialmente agropecuária”, valendo-se das condições mais favoráveis da região. Mas, assim mesmo, a região chegou a exportar gente para a Amazônia. No Centro-Sul, ocorre o “ciclo dos manufaturados” o que não impede o aumento das favelas, nem a marginalização. Tal como já ocorreu com o açúcar, o ouro, o café, a borracha etc., o novo ciclo não elimina os anteriores. Torna-os secundários, sem resolver os problemas nacionais de conjunto. Nestas condições, a ação da ditadura inverte totalmente o processo de formação nacional. Elimina, no plano econômico, político e cultural, as pequenas conquistas que, a muito custo, o povo brasileiro foi acumulando no curso de sua história. Reaviva o perfil da sociedade neocolonial com o crescimento da marginalização: entre a “minoria branca”, agora uma estreita camada urbana de renda privilegiada, e a “populaça”, agora os “bóias-frias”, os favelados etc., o fosso se afunda. A ditadura promove a contra-revolução nacional. Métodos da Contra-Revolução São também semelhantes, na fase oligárquica e atualmente, os métodos utilizados para conservar o poder. Têm a finalidade de retirar do povo os meios de expressão e de decisão. Tudo aquilo que, em qualquer plano, reflete 9 BANDEIRA, Moniz. A Presença americana no Brasil, sem data. Brasil a Questão Nacional 41 a vontade das bases sociais deve ser reprimido. A extensão dessa repressão não se mede apenas pelo número de cassados, presos, torturados e assassinados pela ditadura atual, senão através de uma engrenagem mais ampla, que tem também a sua história. No plano econômico, ambas concentram a distribuição da renda, já que o mercado interno é secundário. Não importa que a maioria tenha um baixo nível de consumo. Para a oligarquia, o problema social “era um caso de polícia”, tanto quanto atualmente. No plano político, a eliminação das correntes representativas das camadas exploradas é apenas um dos aspectos da repressão. Sendo a finalidade a de afastar o povo das decisões, há que eliminar os opositores, mas é preciso também controlar os próprios agentes. Oligarquia e ditadura estabelecem, assim, um corpo eleitoral restrito para “legitimar” o seu poder. Honra lhe seja feita, ao poder oligárquico, pois, com fraudes e tudo o mais, era mais amplo do que o atual. No plano cultural, a repressão não se limita à censura à imprensa. Atinge dos físicos nucleares aos músicos populares. A repressão do Estado Novo é semelhante à atual não só por atingir setores liberais e comunistas, como também por empregar os mesmos métodos, hoje apenas mais brutais e generalizados. Mas dela se diferencia em razão da própria finalidade com que era aplicada. Visando a afirmar uma burguesia industrial incipiente, devia fazer frente à oligarquia vencida em 1930 mas suficientemente forte para tentar retomar o poder pela violência, em 1932. Isso obrigava 42 Brasil a Questão Nacional Getúlio a buscar sustentação nas massas urbanas, não obstante a perseguição contra forças que as representavam. Para isso, tinha que abrandar o aspecto econômico da repressão através de aumentos de salário e da concessão dos favores das leis trabalhistas. Sendo nacionalizador, por força das características do desenvolvimento a que presidia, não precisava atingir as manifestações culturais, não políticas, ao nível do povo. Não é por acaso, mas em razão dessa orientação que Getúlio pôde voltar ao poder em 1950. Isso não tem viabilidade para qualquer dos generais que o ocuparam no atual regime. A contra-revolução só pode sobreviver sem o povo, com eleições controladas e com golpes que o afastem do cenário político. E sua história, no após-guerra, conta-se pela sucessão de golpes desfechados na mesma direção, mas com objetivos que se iam ajustando às situações novas, criadas pelos seus insucessos. Os Golpes Em 1946, o golpe contra Getúlio foi facilitado pelas condições surgidas depois da Segunda Guerra Mundial. Os grupos pró-americanos, representados pelos setores ligados às velhas oligarquias, sobretudo a do café, e, por motivos diferentes, os liberais e os comunistas forçavam o restabelecimento das liberdades eliminadas pelo Estado Novo. O PCB tentava influir o governo de Vargas a uma posição antiimperialista mais conseqüente, eliminando a sua tendência à conciliação. A oligarquia, porém, brandia a bandeira da democracia com outro objetivo, na esperança de assegurar a hegemonia dentro das classes dominantes, invertendo o Brasil a Questão Nacional 43 processo de desenvolvimento, o lado positivo do governo Vargas. Teve, porém, que recorrer ao golpe e à “união nacional”, promovida no governo de Dutra, quando foi desenterrada a tese do “essencialmente agrícola”. As eleições de 1950 derrubaram, no entanto, as esperanças da volta a uma economia neocolonial. O processo de industrialização avançara de forma a impedir um retorno puro e simples ao passado. O golpe de agosto de 1954 tinha em conta essa circunstância. Visou, assim, a não mais barrar o crescimento do setor industrial, mas a assegurar o seu controle pelos grupos internacionais. Poucos meses depois da morte de Vargas, no início de 1955, a instrução 113 instituiu um regime de privilégios para os capitais estrangeiros que os tornava mais favorecidos do que os nacionais. A extensão desses favores no governo de Juscelino possibilitou o controle da indústria por aqueles grupos. Essa mudança na estratégia da dominação repercutia no quadro político interno. Já não eram apenas os remanescentes da oligarquia, “as forças do atraso”, opostas “às forças do progresso”, a burguesia industrial brasileira. Apoiava-se também no “setor moderno”. Com essa mudança, reduzida a contradição entre os setores dominantes, seria de esperar que a troca de presidentes pudesse ser feita “dentro da normalidade democrática”. Havia, porém, um descompasso no plano político. O fato de se apoderarem da economia não dava aos grupos estrangeiros, automaticamente, os instrumentos do poder. 44 Brasil a Questão Nacional As derrotas sofridas pelas lideranças declaradamente próamericanas não as animavam sequer a uma disputa eleitoral nos termos da legalidade existente. O fracasso do golpe para impedir a posse de Juscelino e a posição do Marechal Lott, contrária à desnacionalização do petróleo, indicavam a existência de uma situação desfavorável a um golpe, naquela oportunidade. Nestas condições, a contra-revolução valeu-se de Jânio Quadros, pondo a sua disposição imensos recursos e sua estrutura partidária, a UDN. Eleito com slogans nacionalistas, Brasil a Questão Nacional 45 Jânio punha no governo os homens dos americanos. Tendo apelado para o povo, cercava-se das figuras mais reacionárias do país. As condecorações a Gagarin e a Che Guevara, o envio de missão à China e outros atos meramente simbólicos, eram obviamente insuficientes para quebrar o cerco em que se colocou, por gosto ou contra a vontade. Querendo ou não, começou a dar cobertura às medidas antipopulares do seu governo, precursoras da política adotada pela atual ditadura. Segundo Bandeira (idem), Jânio “consolidou a confiança de Wall Street no seu governo, adotando imediatamente as medidas para a estabilização monetária, entre as quais a reforma cambial, iniciada através da resolução 204 da SUMOC. O staff, que ele encarregou de elaborar a política econômico-financeira de sua administração, congregava notórios agentes de interesses estrangeiros, como Roberto de Oliveira Campos. No golpe de 1961, desfechado com a renúncia de Jânio, o objetivo era apenas o de conservar essa política. Bastaria, para tanto, impedir a posse de Goulart, fazendo-a executar por um outro qualquer. No entanto, as forças da contrarevolução haviam tudo assentado na popularidade de Jânio, cuja linguagem esquerdizante e nacionalizadora tinham que engolir para ganhar as eleições. Não dispunham de um programa ostensivo que, na verdade, estava escondido atrás das promessas 46 Brasil a Questão Nacional do seu candidato. Repousavam, por conseguinte, apenas na legalidade advinda das eleições de 1960. Eram obrigados a recuar, em conseqüência da tentativa de quebra da sua própria legalidade face à reação popular e à confusão estabelecida no seu campo de sustentação. A posse de Goulart frustrou, portanto, o objetivo do golpe, sem conseguir inverter os rumos do país. Apesar do crescimento do movimento popular durante o seu governo, não se estabeleceu uma frente política unida em torno dos problemas fundamentais da nação. A despeito de alguns poucos passos dados no sentido de enfrentá-los, pode-se constatar que eram tímidos e conciliatórios. Não mereciam a celeuma feita pelos adversários senão como medida preparatória do golpe em gestação. As reformas solicitadas ao Congresso eram extremamente moderadas: concessão do direito de voto aos analfabetos, abolição da vitaliciedade de cátedra, revogação do artigo da Constituição que exigia a indenização prévia e em dinheiro para a desapropriação de terras, que foi posto abaixo pela própria ditadura atual. Desse modo, o golpe de 1964, não podia ser desfechado contra a implantação de um regime socialista ou comunista pelo simples fato de que tal ameaça não existia. A posição de todas as forças populares não ultrapassava, na época, os limites do sistema em vigor. Como é bem sabido “a preservação das instituições contra a subversão” e outros slogans tinham apenas a finalidade de mobilizar setores sociais altos e médios e de convocar os militares para a intervenção que vieram a fazer. Eliminados esses slogans, verifica-se que os objetivos do golpe de 1964, englobando os das tentativas anteriores, Brasil a Questão Nacional 47 superam-nos amplamente. Prevalecia a presunção de que os interesses americanos ou a eles ligados podiam ser mantidos “sem quebra das instituições”. Bastava que eles fossem capazes de reduzir ou eliminar a participação que as forças populares iam tendo nas decisões, em nível nacional. Dentro do “quadro institucional”, as medidas destinadas a reduzir ou a eliminar a influência popular poderiam revestirse de várias formas, desde que surtissem o mesmo efeito. Tanto vale Dutra como Jânio, o essencial era afastar o povo. O primeiro utilizava medidas reacionárias, a “autoridade” e a força, já que lhe faltava sustentação popular. O segundo, que a tinha, devia manipular o povo, neutralizando-o, em benefício da mesma política de dependência. Era o que esperavam os grupos americanos que o levaram ao poder. O golpe de 1964 leva em conta o fato de que estava esgotada a possibilidade de tais manobras. A mudança nos métodos da contra-revolução decorre essencialmente da revisão da estratégia dos Estados Unidos para o seu campo de dominação. A perda de substância política dos seus aliados não ocorria apenas no Brasil, mas em inúmeros países e em vários continentes. A afirmação do poder de Fidel Castro, em Cuba, e a queda de Diem, no Vietnam, são apenas exemplos extremos desse desgaste. A generalização do fenômeno mede-se pela necessidade de criar a Aliança para o Progresso, na vã tentativa de barrar, com medidas assistenciais, o crescente descontentamento dos povos latino-americanos. A total ineficácia desse programa cedo estaria sendo denunciada pelos próprios políticos 48 Brasil a Questão Nacional conservadores de diferentes países. Tornado evidente o fracasso da Aliança e não tendo os Estados Unidos outra perspectiva a apresentar para solucionar politicamente os problemas da América Latina e de outras áreas, deviam iniciar uma fase de golpes e a implantação dos regimes neofascistas em todo o seu campo de dominação. Ao de 1964, no Brasil, sucederam-se outros na América Latina, na Indonésia, na Grécia, em diferentes países. Pouco depois de instalada a ditadura no Brasil, iniciavam-se os bombardeios no Vietnam, seguidos da intervenção direta de suas tropas terrestres. Em 1965, foi esmagado o levante de São Domingos. Repetiu-se, em todos os lugares, a tomada do poder pelos militares formados nas escolas americanas. A presença dos militares na cena política objetivou, portanto, remediar uma crise geral do campo imperialista. Eles vieram socorrer as correntes políticas aliadas dos Estados Unidos em cada país, ultrapassadas internamente, numa ocasião em que os “planos de ajuda” tinham sido desmoralizados, na prática. Já não era suficiente reajustar interesses internos, satisfazer setores dominantes mais atingidos pelo alargamento do processo democrático, nem impedir, no caso do Brasil, todas ou algumas reformas propostas por Goulart. De resto, elas eram menos radicais do que as sugeridas e aprovadas pelos próprios americanos, em Punta del Este. Mas era isso, sem dúvida, o que erradamente esperavam certas correntes participantes do golpe. Pretendiam apenas uma paralisação do processo em curso. Sonhavam, porém, com a Brasil a Questão Nacional 49 manutenção de certas “instituições” que pudessem continuar utilizando para defender seus pequenos interesses setoriais ou locais. É nessa ótica que defendiam o “prestígio do legislativo”, isto é, dar a um Congresso desmoralizado pelas cassações, prerrogativas que eram negadas ao povo. Viam o golpe como os anteriores, nos quais o objetivo era limitado à preservação dos interesses dominantes indistintamente, mantendo-se os mecanismos tradicionais através dos quais sempre dividiram o poder. A “democracia”, isto é, a livre manifestação desses interesses, afastado o povo, poderia continuar a ser a bandeira dos grupos pró-americanos dentro do país. Seus juristas e teóricos em geral não teriam necessidade de rever, como fizeram, as teses “jurídicas” que pregaram durante várias décadas. Poderiam continuar enganando figuras que nelas tinham uma honesta convicção, como Ribeiro da Costa, e outros que continuam a defendê-las contra o regime. A Ditadura A instauração da ditadura com o AI-1 decorre de motivos que vão além dos invocados para o golpe e das conveniências imediatas das classes dominantes. Visou fundamentalmente à preservação da dominação externa como um todo através de sua modernização. Isso não podia ser feito mediante simples compromisso entre os diferentes setores empresariais, sem alteração do statu quo. Em 1967, a “Orientação geral do planejamento da 50 Brasil a Questão Nacional segurança nacional” reafirmou expressamente aquela decisão. Vendo subir ao poder Costa e Silva, menos iniciado nos segredos da Escola Superior de Guerra, “diretivas de governo” (a codificação da política seguida desde o golpe) foram baixadas para enquadrá-lo. Tais formas recomendavam a redução ou a liquidação de várias pressões, como vinha sendo feito, entre as quais “a pressão econômica, exercida por grupos externos e internos, beneficiários de estruturas obsoletas através de ações de intimidação ou coercitivas, principalmente das classes empresariais, associações comerciais e sindicatos patronais. Destinam-se a alterar a política do governo para atender aos respectivos interesses, ameaçando a paz social, a prosperidade nacional e a democracia representativa”. Isso não deixa dúvida que poderiam ser atingidas algumas áreas ligadas ao golpe, como vinha acontecendo. Cada empresa, cada setor empresarial, segundo essas normas, deviam ser tidos como secundários em relação à preservação dos interesses dominantes no seu conjunto. Situando-se dentro desse conjunto em posição privilegiada, as empresas multinacionais nada tinham a temer. Sendo mais fortes, como eram as manufaturas inglesas frente às indústrias nascentes nos países dominados, podiam sugerir e apoiar um “princípio de ordem geral”, o “laissez- faire”, a “livre empresa”. A intervenção do Estado, já existente, aparentemente contraditória com esse princípio, passa a complementá-lo. E essa exceção é tanto mais aceita quanto mais rentável para as multinacionais, podendo os tecnocratas, além do mais, alegarem que nisso reside “a peculiaridade do desenvolvimento Brasil a Questão Nacional 51 brasileiro”. Assim, foram asseguradas às grandes empresas internacionais as condições políticas para ditar, em nome dos “interesses nacionais”, a orientação econômico-financeira do país. Dominando bancos e indústrias, podem ameaçar qualquer governo que se queira atribuir o direito de realizar mudanças nos mecanismos principais do sistema. Basta alegar os problemas que podem provocar no setor mais dinâmico da economia. Se isso não basta, o endividamento externo reforça a ameaça, tanto quanto o telegrama de Rothschild na fase oligárquica. Essa engrenagem retira as grandes decisões das mãos dos militares, por mais fortes e autoritários que sejam, se porventura desejassem promover, por “amor à Pátria”, mudanças que beneficiassem já não o povo, mas o Estado. Sua margem de manobra é extremamente reduzida, não ultrapassando os assuntos correntes. Se resolvessem investir em uma maior autonomia do país, o que não é o caso, estariam bloqueados pela máquina que ajudaram a montar. A mudança principal introduzida pela ditadura residiu sobretudo no fato de haver transformado o setor industrial na peça fundamental da dominação externa. Como afirma Furtado, “já não pode haver dúvida de que o sistema industrial 52 Brasil a Questão Nacional constitui hoje a espinha dorsal da economia do país”. Sendo mais “moderno”, mais “dinâmico”, mais “avançado” do que os outros, dita as normas a serem seguidas por todos. Sem ele, a “associação” continuaria a ser feita com setores tradicionais que não teriam condições de desempenhar esse papel, como há muito fora demonstrado. A importância do setor industrial mede-se, portanto, mais pela tarefa política que desempenha, a de preservar a dominação externa sobre o conjunto do país, do que talvez pelos resultados econômicos não desprezíveis que apresenta para as grandes empresas. Na verdade, o que não se situa no setor industrial, em termos de interesses dos grandes grupos internacionais, não é menos importante do que ele. Depende da “contabilidade” em que sejam escriturados os diversos fatores que interferem no funcionamento de todo esse sistema de exploração. Na comparação dos dados dos diversos setores, registrados nas estatísticas brasileiras (contabilidade interna), os números relativos à produção industrial aparecem maiores do que se vistos no conjunto de interesses da dominação imperialista (contabilidade externa). Nesta, os resultados da industrialização e da comercialização das matérias-primas conta-se pelos preços finais, várias vezes superiores aos da exportação. Brasil a Questão Nacional 53 No caso dos minérios, por exemplo, não são considerados sequer os investimentos feitos dentro do país pelo Estado e suas empresas, na construção da infra-estrutura que serve aos concessionários estrangeiros, concessões feitas gratuitamente. Não cabe, aliás, avaliá-las em termos de dólares, porque isso diz muito pouco. Entram outros fatores, dificilmente traduzíveis em algarismos, a começar pelo fato de que a exploração das jazidas é condicionada pelas conveniências dos Estados Unidos. Elas podem ser tanto excessiva e indevidamente exploradas, como permanecerem inexploradas ou semi-exploradas, como reserva estratégica dos americanos. Em declarações feitas em dezembro de 1972, o subsecretário americano para assuntos econômicos, William J. Casey, afirmou que daqui a uma dezena de anos os Estados Unidos serão dependentes do estrangeiro em relação à nova das treze matérias-primas essenciais, entre as quais a bauxita, o ferro e o estanho. Na verdade, essa dependência já existe, tendendo a agravar-se. Os homens da ditadura não dizem, porém, que os Estados Unidos precisam comprar minérios. Afirmam, ao contrário, que o Brasil precisa exportá-lo, como se a necessidade fosse nossa e não dos Estados Unidos. Propalam que “constitui um crime deixá-los debaixo da terra”, transformando o Ministério de Minas numa agência destinada a promover a alienação das riquezas do país. Não é difícil ver que, além do baixo preço e das enormes vantagens concedidas aos grupos internacionais, a ditadura não considera a importância política dessas riquezas 54 Brasil a Questão Nacional para a nossa própria segurança, palavra de que usa e abusa. Além de tudo, faz entrar de quebra, na “contabilidade” do Estado americano, a vantagem que advém da importância do Brasil para os seus planos de dominação da América Latina e da África. Pode-se até “contabilizar” o fato de que nossas Forças Armadas fazem decrescer o custo da repressão que caberia aos americanos, na medida em que a ditadura assume o papel de seu gendarme no Continente. Pagamos para ser explorados e pagamos para ser gendarmes. Desse modo, a maior vantagem que trouxe a ditadura para os Estados Unidos não foi a de fazer concessões às suas empresas industriais, mas a de estabelecer a sua dominação sobre o conjunto do país. Qualquer setor é secundário frente à necessidade de preservação dessa dominação no seu conjunto, que constitui o objetivo central e a tarefa não das empresas, mas do Estado americano. A Recolonização Se não havíamos completado a nossa evolução da economia colonial para a nacional, como constatava Prado10, passamos a involuir. Está sendo promovida uma recolonização do país. Não nos deve impressionar a existência do enclave industrial do Centro-Sul, nas condições em que o seu crescimento se realiza. Quando os holandeses ocuparam o Nordeste, lá fizeram um enclave para a fabricação de açúcar com o que de mais moderno existia em tecnologia, na época... Tanto quanto o velho enclave, o novo não é capaz de nos Brasil a Questão Nacional 55 tornar independentes pelo simples fato de existir. Alimenta as ilusões dos que se entretêm com o consumo. Na verdade, regredimos politicamente. As decisões que tocam os nossos destinos são cada vez mais tomadas fora do país. Visam a um “progresso” que tem quase tanto a ver com o nosso povo, quanto o açúcar dos holandeses com os índios do seu tempo, ligado que está aos interesses dos que nos dominam. Para conservar essa dominação, segundo revela Fernandez11, os estrategistas americanos adotaram, como medida essencial, “a contínua internacionalização da atividade econômica e o desmantelamento do Estado Nacional, reduzindo-o, por meio dos militares, a manter a ordem interna”. Essa orientação tem sido seguida à risca, no Brasil, desde 1964. As diferentes atividades, se já não estavam, foram “inseridas na economia internacional”. O desmantelamento do Estado Nacional começa pela mudança na função das Forças Armadas. Ainda segundo Fernandez, os estrategistas americanos consideram que, “nas áreas subdesenvolvidas, os instrumentos essenciais para manter a supremacia são de natureza militar”. Em harmonia com essa diretiva, a “Orientação geral do planejamento da Segurança Nacional”, previu, como medida básica, “a reestruturação, a rearticulação e o equipamento das Forças Armadas, tendo em conta particularmente seu emprego na guerra revolucionária no Brasil e na América Latina”. Essa decisão completa um longo processo que começa na Segunda Guerra Mundial. A uniformização dos armamentos 56 Brasil a Questão Nacional em nível continental, o controle da Escola Superior de Guerra e das instituições de ensino militar por elementos próamericanos, além dos cursos de especialização nos Estados Unidos eram fatores que jogavam no sentido de uma crescente “internacionalização” das Forças Armadas. Entretanto, ela era parcialmente impedida pela repercussão das lutas políticas nos meios militares e pela posição de muitos oficiais, inclusive de antigos generais, cuja formação era bem diversa da ministrada pelos americanos. Dentro da concepção de “defesa do Continente”, da “luta entre dois blocos”, as nossas Forças Armadas eram parte do sistema militar dos Estados Unidos, integrando-os, porém, de forma diferente da atual. Durante toda a nossa história, salvo na fase colonial, os militares foram sempre levados a visualizar o “inimigo” fora do país e, no interior, constituíam a principal base de sustentação dos americanos. Estivesse nas fronteiras ou se tratasse da “invasão das hordas russas”, cuidavam da defesa do território nacional contra uma possível ameaça externa, real ou imaginária. Com a ditadura, o campo de batalha é o nosso território e o inimigo, o nosso povo. Assim, as funções das Forças Armadas internacionalizaram-se totalmente, sendo essa a principal mudança nelas introduzidas pelo atual regime. E as missões Brasil a Questão Nacional 57 policiais passam a ser uma decorrência dessa decisão. Não asseguram sequer “a emergência ou consolidação de uma burguesia nacional” mas a “implantação da nova burguesia internacional ligada ao capitalismo dos grandes conglomerados transacionais” (Furtado). Deixaram de depender, enquanto instituição, de instrumentos internos, inclusive do apoio da população contra um eventual agressor externo, para contarem com o apoio externo destinado a enfrentar um inimigo interno, o povo brasileiro. Por conseguinte, sua inserção no sistema militar dos Estados Unidos muda de qualidade. Já não é uma força aliada para a “defesa do Continente” mas, um corpo de tropa de ocupação composta de pessoas nascidas no Brasil. Do aspecto antipopular, antidemocrático, repressivo etc., pode ser dito – como muitos fazem, lavando as mãos quanto aos excessos – que cabe apenas aos setores militares diretamente encarregados do policiamento. Mas o mesmo não pode ser alegado em relação às funções da própria instituição que deixa simplesmente de ser brasileira. Com tais funções, estão comprometidos todos os que as aceitam e as exercem. Aliás, isso envolve todo o governo que não mudou 10 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, sem data. 58 Brasil a Questão Nacional apenas de forma, isto é, não foram apenas abolidas as antigas instituições e instaurada uma ditadura militar. Suas atribuições, aparentemente mais amplas, são realmente mais restritas do que a de qualquer outro, no passado. Cabe-lhe, apenas, a manutenção da ordem interna. A intensificação do controle sobre a população dá aos militares a ilusão de um enorme poder. No entanto, em tudo o mais, estão ao sabor das diretivas que impõem os grupos internacionais. Suas disputas com eles, quando porventura existem, giram em torno de casos específicos e são provocadas por quem, em nível operacional, ainda pensa nos interesses do país. Na prática, a divisão de atribuições ocorre naturalmente como decorrência do controle externo sobre a economia. O nível de dependência que ele determina caracteriza a ausência de um poder nacional, seja capitalista, estatizante, socialista, comunista, monárquico ou republicano. Os generais talvez pensam que ocupam o posto de presidente. Na verdade, só lhes é dado o de procônsul. Melhor será dizer de vice-rei, que já os tivemos. E o vice-reinado caracterizava-se não só pelo nome mas, pelas atribuições de quem o ocupava: plenos poderes para o enquadramento dos súditos e para os serviços locais e obediência às diretrizes gerais fixadas pela Metrópole. A “internacionalização”, recomendada pelos estrategistas americanos, abarca, portanto, a economia, o 11 FERNANDEZ, John Saxe. IX Congresso de Sociologia, México, 1969. Brasil a Questão Nacional 59 governo e seus instrumentos de ação. Não visa apenas ao combate ao comunismo em qualquer plano. Os golpes são desfechados não só contra os representantes das correntes socialistas do Continente, como o Presidente Allende, mas também contra os defensores de um capitalismo autônomo, como Vargas. Este não pleiteava sequer a expulsão total do capital estrangeiro, mas sua limitação em certos domínios. Não estamos, diante de um regime que se dispõe apenas a reprimir reivindicações populares ou a impedir o advento do socialismo, coisa de que se ocupariam igualmente as próprias camadas dominantes brasileiras. É um regime que nos faz regredir, imprimindo ao país um rumo inverso daquele percorrido pelo povo brasileiro, em busca de sua independência. Não nega apenas comunistas como Prestes. Nega igualmente Tiradentes, Frei Caneca e outros mártires da Independência, como também nega Mauá, Bernardes, Vargas, Gabriel Passos, Lott e tantos outros, vivos ou mortos. Cada um defendeu idéias diferentes, no que toca à organização interna do país, à solução dos seus problemas econômicos e sociais, porque diferentes as épocas em que viveram e as classes de que provieram. Identificaram-se, pelo menos, na preocupação de consolidar nossa formação como país e como nação. A ditadura atual está nos transformando em simples território ocupado. E para lá iremos, para essa triste condição, pela força inexorável dos fatos que os mecanismos do sistema de dominação vão impondo, se não houver uma completa inversão de rumos. 60 Brasil a Questão Nacional Os Modelos Ora, a “irreversibilidade da revolução”, do “modelo de desenvolvimento” é o slogan básico do regime. Mantida a política econômico-financeira, flexões poderão ser permitidas de acordo com as conveniências táticas ditadas pelas circunstâncias. Alterações no regime podem facilitar a solução de disputas entre seus próprios adeptos. Na reorganização do seu campo de dominação, os Estados Unidos continuam a fomentar golpes sangrentos, como o do Chile, mas procuram associar, onde se torna possível, limitados instrumentos políticos aos de natureza militar na tentativa de atenuar o desgaste que uma longa ditadura inevitavelmente provoca. Em lugares os mais diversos, aparentemente desligados entre si, as “aberturas” e os “endurecimentos” marcam apenas a substituição de uma facção pró-americana por outra. Discute-se assim, qual o tipo de “vice-rei” mais eficaz para assegurar a “irreversibilidade” num momento dado, mas nunca a abolição do “vice-reinado”. Do mesmo modo, no domínio das atividades empresariais, podem ser discutidas as percentagens da participação, mas não o princípio da participação dos grupos internacionais. Discutir o secundário – se 49, 35 ou 51% interessa aos americanos, na medida em que isso seja necessário para contornar reações de membros das próprias Forças Armadas que, por vezes, se opõem ao vulto das concessões e ao exagero da submissão. Nem todos são como o Sr. Juraci Magalhães para quem “o que é bom para os Estados Unidos, Brasil a Questão Nacional 61 é bom para o Brasil”. Dessa forma, aumentar um pouco a distribuição nacional do petróleo, não comprar o satélite ou adquiri-lo mais barato, não é agradável para a empresa diretamente interessada, mas está previsto nas táticas do imperialismo americano: não enrijecer posições, contornar obstáculos criados por alguns oficiais mais ciosos de suas prerrogativas porque não comprometidos diretamente com interesses materiais. Exemplo: a extensão da soberania a 200 milhas. Ela acabou sendo anulada, na prática, pelos acordos de pesca com os Estados Unidos. São pagas algumas pequenas taxas mas, em compensação, outros países são afastados da área. Ao que toca aos navios de guerra, a “defesa do Atlântico Sul” dá-lhes livre trânsito. A soberania torna-se, portanto, teórica e vazia. Essas acomodações facilitam a “irreversibilidade”, a manutenção da dependência. Mas, para que não pareçamos dependentes, procura-se dar a impressão de somos uma “potência de segunda grandeza”, cujo poder se manifesta na ajuda aos golpes na Bolívia, no Uruguai, na promessa de tropas ao Paraguai. Confunde-se grandeza com uma arrogância e uma prepotência sem base, nem consistência. Os fatos estão demonstrando que o “modelo” da ditadura está sujeito a todos os ventos. Importa-se a inflação, no dizer do Ministro da Fazenda. A “guerra do petróleo” aumenta o volume de divisas necessárias à aquisição de combustível, no momento em que o endividamento do país já chegou ao nível de uma “filipeta” internacional. Os ventos comprovam a fragilidade do modelo, obrigando a ditadura a rever posições que justifica em termos 62 Brasil a Questão Nacional de mero oportunismo. Desmoraliza-se, assim, já não diante do povo brasileiro, mas também junto aos seus aliados. Não pode mais sustentar Portugal. Ligada a Israel numa colaboração que vai até ao treinamento militar, vê-se a contra gosto, na contingência de votar com os árabes. Nestas condições, o “modelo” não consegue sequer atingir os objetivos a que declaradamente se propôs e, muito menos, aos que interessam ao povo. Ele nada tem a ver com tais delírios de grandeza, precisando, no mínimo, comer, vestir-se, educar-se. O Modelo da Burguesia Nacional Alguns representantes do empresariado nacional fazem essa mesma constatação. Entendem que o “modelo” da ditadura Brasil a Questão Nacional 63 fracassou, fato sem dúvida positivo pois estabelece a posição de uma parcela de burguesia em face de um regime antinacional e antipopular. Entre outros, o deputado Medina12 mostrou que “independentemente de posições doutrinárias o caminho de um desenvolvimento via capital estrangeiro está fechado para o Brasil”. No entanto, ao fixar os objetivos desses setores dominantes, ele apenas sonha com a implantação do “modelo ocidental”. Em nome da implantação de um capitalismo autônomo, pretende a restituição “ao empresariado nacional da liderança do nosso processo econômico, dando-lhe capacidade competitiva frente aos grupos externos e fazendo-o participar, de forma significativa, nos principais setores dinâmicos da economia”. Ora, ninguém pode dar ou restituir aquela liderança ao empresariado nacional. Não se trata de querer negar-lhe o “direito histórico” de comandar o desenvolvimento com base em “razões doutrinárias”. Ele não o exerce porque não deve e não tem força para tanto. Foi pela força econômica, política e militar que as velhas burguesias européias “assumiram a liderança do processo econômico”. Derrubaram reis, príncipes e outras majestades, tomando o poder e impondo os seus interesses. Tinham condições de apresentar, na época, “perspectivas nacionais”, mobilizando as demais camadas que emergiam da 64 Brasil a Questão Nacional servidão a quem acenavam com a conquista de alguns direitos. Dada a sua fraqueza econômica, a nossa burguesia mal defende os seus interesses específicos de classe. Adota uma posição inteiramente desligada da correlação de forças existentes no país. Perde-se na tolerância, no medo e na vontade de que tudo aconteça segundo seus desejos. Tolerância em relação ao que seria o seu principal inimigo. De fato, afirma Medina: por um lado, que “o caminho de um desenvolvimento via capitais estrangeiros está fechado para o Brasil”; por outro “que não se trata de liquidar o investimento estrangeiro no Brasil, desapropriando empresas alienígenas, multiplicando obstáculos a sua ação, ou mesmo impedindo a entrada de novos empreendimentos”. Medo do socialismo, o que seria natural. Mas, também do Estado, único capaz de suprir sua fraqueza: “fazer depender do Estado uma política nacional de desenvolvi-mento, significa unir contra esta desnecessariamente todos os partidários da iniciativa privada” ( Medina).Vontade de que “o papel do capital internacional” seja “necessariamente subsidiário”, tudo isso “sem obstáculos a sua ação”. Ora, por força das leis do capitalismo, as empresas estrangeiras serão necessariamente principais, como estão sendo e o serão, caso não encontrem obstáculos no seu caminho. Utilizarão o Estado, como estão fazendo, para assegurar essa superioridade, seguindo os princípios universais do sistema que asseguram a preponderância dos economicamente mais fortes. Enquanto isso, a nossa burguesia alimenta ilusões. Coloca-se na postura de sucessora natural de uma oligarquia Brasil a Questão Nacional 65 que não morreu totalmente, entendendo que a hegemonia lhe cabe por direito hereditário. Aspira a que o “modelo” se reproduza, em época, lugar e circunstâncias diferentes, por fatalidade histórica. Sonha em transplantar “a civilização ocidental”. O Modelo Radical As mesmas premissas (a da ditadura, “estamos saindo do subdesenvolvimento”; a da burguesia, “transplante da civilização ocidental”) levam alguns grupos, que se consideram radicais, a simplificar a atual etapa de luta. Não sem razão, perdem a paciência com a nossa burguesia, com suas fraquezas e debilidades. Concluem, talvez por isso mesmo, que tudo se resume na sua liquidação, quando atingidas as condições para uma rápida passagem ao socialismo. Para chegar a essa conclusão, costumam invocar Lenine, mas parecem não levar em conta a situação concreta em que vive nossa classe operária. Na verdade, ela é igual às dos países europeus, a americana, a japonesa, do mesmo modo que as respectivas burguesias identificam-se com a nossa. Enquanto classes sociais, estão sujeitas às leis que regem o sistema que as fez nascer. Agem, porém, em contextos históricos diferentes. É para as particularidades que disso resultam que Lenine chamava insistentemente a atenção. Se a advertência não é seguida pelos que assumem aquela posição, a ditadura a leva em conta, parecendo ter assimilado 12 MEDINA, Rubens. Desnacionalização. Crime contra o Brasil?, sem data. 66 Brasil a Questão Nacional melhor a lição. Na verdade, sua política para a classe operária não se limita à repressão, ao arrocho salarial, ao controle dos sindicatos. Seu objetivo maior é o de transformar o operário em simples peça do enclave industrial. Visa a “internacionalizá-lo”, convencê-lo de que irá ser igual aos dos países desenvolvidos, isolando-o dos problemas nacionais. Em outras palavras, o regime pretende estabelecer entre os trabalhadores industriais concentrados numa reduzida área e o resto da massa pobre espalhada pela imensidade do nosso território, as diferenças que Lenine enxergava entre os proletários das nações opressoras e os das nações oprimidas. Em “Uma caricatura do Marxismo”, ele assim as definia: 1 – Economicamente, a diferença está em que parte da classe operária dos países opressores beneficia-se dos restos do superlucro que realizam as burguesias das nações opressoras ao explorarem duas vezes mais os trabalhadores das nações oprimidas... 2 – Politicamente, a diferença reside em que os operários das nações opressoras ocupam uma situação privilegiada em toda uma série de domínios da vida política, em relação aos trabalhadores da nação oprimida. 3 – Ideologicamente, ou espiritualmente, a diferença está em que os operários das nações opressoras são sempre educados pela escola e pela vida no desprezo ou no desdém pelos operários das nações oprimidas. Não se diga que isso se refere a trabalhadores de países diferentes; segundo ele, tais fatos ocorriam na Rússia tzarista, onde os grandes-russos tinham tal atitude em relação aos demais, bem como nos Estados Unidos, em relação aos Brasil a Questão Nacional 67 trabalhadores imigrados. A divisão econômica, política e espiritual entre a nossa classe operária e o resto da massa explorada é um dos objetivos maiores da estratégia política do sistema. Consiste em procurar desligar o operariado especializado, dos bóias-frias, dos assalariados agrícolas, dos peões, dos seringueiros. Mesmo que seja nordestino, fazer com que esqueça a sua região, lançando sobre ela a culpa de dificuldades maiores que vivia no passado. Para melhor atingir aquele objetivo, a orientação dos “departamentos de relações públicas das empresas” é no sentido de procurar estabelecer diferenças dentro da própria classe operária, num trabalho sistemático que vai, por vezes, ao nível do indivíduo. O emprego de tecnologia destinada a poupar mão-de-obra contém o crescimento. Pequenas concessões econômicas podem ser feitas quando a organização dos trabalhadores lhes permite romper, em certa medida, as barreiras repressivas. Enfim, o regime trata de “despolitizar” a classe operária através da deformação ideológica. Para isso, não basta impedir o ensino do Marxismo ou da Doutrina Social da Igreja. Precisa levá-la a crer-se como uma simples reprodução da classe operária dos países desenvolvidos, isolando-a da massa pobre que a produziu. Partindo das mesmas premissas, os que se consideram radicais podem ajudar essa deformação. Suprimida de sua origem, colocada em um estágio acima da marginalidade, a classe operária deixou de ser uma parcela das massas exploradas do país para se constituir numa simples peça da indústria estrangeira. Voltada para si mesma, deixou de desempenhar o papel histórico que vinha tendo, o 68 Brasil a Questão Nacional de conduzir politicamente e de interligar as lutas travadas, em vários planos, pelas massas urbanas e rurais. Foi com o seu aparecimento que elas saíram do estágio de mera contestação para ganhar conotação política. O principal fracasso da ditadura reside em não ter podido estabelecer esse corte, em ter sido vã a sua tentativa de “internacionalizar” a classe operária e também a juventude, através da deformação do ensino. Não é difícil americanizar a burguesia e alguns setores da classe média, herdeiras das tradições de nossas classes dominantes que sempre mantiveram fora do país os seus interesses, de lá trazendo a sua ideologia. Será impossível, porém, “desnacionalizar” o povo brasileiro, por mais longa e dura que seja a dominação. A Questão Nacional Determinar o que é nacional ou internacional, brasileiro ou não, aparece, para alguns, como questão bizantina. Para outros, como preocupação chauvinista, fruto do “nacionalismo burguês” ou da discriminação em relação aos estrangeiros. Invoca-se ou o fato de que somos abertos a todas as raças que rapidamente se integram no nosso meio, ou o “internacionalismo proletário”, para afastar o problema. No entanto, pessoas tão diferentes quanto Lenine e Roockefeller preocuparam-se com a questão. É possível até que o segundo tenha se valido dos escritos do primeiro para fins opostos àqueles a que se destinavam, seguindo a regra de que se deve bem conhecer o inimigo. Brasil a Questão Nacional 69 No já citado trabalho, Lenine contesta P. Kievski a propósito da resolução sobre a guerra de 1914/1918, explicando “como se deve distinguir uma verdadeira guerra nacional de uma guerra imperialista, camuflada sob falsas palavras de ordem nacionais. A saber, para fazer a distinção é preciso ver se, “na base”, encontra-se um longo processo nacional de massas, de derrubada da opressão contra a nação”. No seu relatório sobre a América Latina, Nelson Rockefeller chama a atenção de Nixon para o fato de que “a curva do sentimento nacionalista está geralmente em ascensão, na medida em que essas sociedades (latino-americanas) lutam por uma maior identidade nacional e por uma auto-afirmação”. Constata ainda que “o nacionalismo não se restringe a um só país, nem vem de uma só fonte. Grupos políticos e de pressão de todas as tendências baseiam-se na exploração do sentimento nacional”. Ao propor medidas contra isso, Rockefeller teme, sem dúvida, aquilo que prevê Lenine, na obra já citada. Diz este que “toda opressão contra uma nação provoca uma resposta nas largas “massas do povo” e toda resposta de uma população nacional oprimida tende a tomar a forma de uma insurreição nacional”. Nestas condições, se estamos submetidos à dominação imperialista, devemos definir o tipo de opressão que sofremos, quem oprime e quem é oprimido, quem é nacional e quem é estrangeiro. Noutros lugares, as diferenças de raça ajudam a distinguir os dominantes dos dominados. Entre nós, ao contrário, há estrangeiros que são brasileiros, com o Pe. Jentel, 70 Brasil a Questão Nacional preso porque solidário com os camponeses do Centro-Oeste. Há brasileiros que são estrangeiros, como o Sr, Roberto Campos. Esses são os casos mais simples numa questão tão complicada que levou Carlos Drummond de Andrade a encerrar assim o seu “Hino Nacional”: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”. Tem cabimento a indagação do poeta, pois o conflito entre exploradores e explorados, presente em todas as sociedades não socialistas, adquire, no Brasil, particularidades que a justificam. No trato das desigualdades sociais e regionais, a linguagem e o comportamento do colonizador ainda aparecem, sem disfarces, na vida corrente. Em 04/11/1973, por exemplo, o Estado de São Paulo publicou um longo editorial sobre a “grandeza paulista”. Ela provocaria, segundo o jornal, desde o começo do século, “sentimentos de respeito e de inveja”, “complexos de primos pobres”, no resto do país. Entre outras considerações do mesmo gênero, afirma que “os ressentimentos contra São Paulo não decorrem somente dos desníveis do desenvolvimento econômico. Eles são sobretudo fruto do subdesenvolvimento cultural, vale dizer, da mentalidade subdesenvolvida que impera na maior parte do país”. Não eram diferentes os conceitos dos colonizadores europeus em relação aos africanos, aos árabes, aos povos asiáticos sob sua dominação: bando de subdesenvolvidos, “gente de cor”, cuja miséria não podia deixar de ser culpa deles próprios, de sua pele e de sua ignorância. Por conseguinte, a “minoria branca” de Pedro I continua viva. Prosperou, evoluindo para uma burguesia que se associa, Brasil a Questão Nacional 71 em condições mais vantajosas, aos grupos estrangeiros. A corte do príncipe cresceu, dispondo de tecnocratas, de servidores e de seguidores que se lançam ao consumo, tal como deviam fazer os menos numerosos freqüentadores dos seus palácios. A máquina de dominação modernizou-se, mecanizou-se, em harmonia com o novo ciclo, cheio de fábricas e de máquinas. Mas seus agentes nos mais diversos lugares continuam a ser condes e barões com outros nomes: os políticos que enquadram a população e que se alimentam dos restos do poder central. 72 Brasil a Questão Nacional Sempre formaram o partido oficial, na monarquia, na república, nos períodos democráticos ou ditatoriais. Cresceu, por outro lado, o “populacho”, diversificandose em diversas categorias. Mas o fosso entre a massa explorada e a “minoria branca” não foi reduzido. Vem do fato de que aquela minoria, que não compreende sequer toda a burguesia sediada no país, não chega a ser brasileira, nem, ao menos, estrangeira integrada e radicada no país. É completamente estranha à comunidade que nela historicamente se tenta formar, apesar de nascida no Brasil. Essa característica pode ser encontrada em outros países latino-americanos. Falando do recente golpe de estado no seu país, o embaixador chileno Armando Uribe constata: “Eu mesmo, burguês de origem, dou o meu testemunho: durante séculos, tratou-se o povo chileno como se fosse estrangeiro”. Isso é verdade no Chile, no Brasil e em outros países, o que vale dizer, nossas classes dominantes, antigas e modernas, aliadas aos exploradores externos, conservam o comportamento e a mentalidade do primitivo ocupante. Se a “ocupação” sempre existiu, a ditadura foi o único governo que teve a coragem de transformá-la em política oficial, desde a proclamação de nossa autonomia. Caracterizou-a ao definir, como elemento fundamental de defesa, a associação com o exterior e ao localizar o inimigo dentro do país. Numa Brasil a Questão Nacional 73 guerra externa, ele está fora, e as bases de sustentação das forças nacionais, no interior. Numa disputa interna, as partes buscam localmente os elementos materiais e humanos de apoio; a contribuição externa é secundária. Só a ocupação reúne as duas características contidas na orientação da ditadura. A primeira foi estabelecida por Castelo Branco, logo após o golpe, num discurso de 31.07.1964. Dizia ele que “a defesa tem de ser necessariamente associativa...”. Dentro da “confrontação do poder bipolar, com radical divórcio da independência entre os dois respectivos centros, a preservação da independência pressupõe a aceitação de um certo grau de interdependência, quer no campo militar, quer no econômico, quer no político”. Isso significa que o país devia se subordinar, em todos esses planos, ao imperialismo americano e que nessa “associação”, isto é, no exterior, residia a principal base de defesa. A segunda está nos discursos que até hoje pronunciam vários chefes militares. Para eles, a “guerra revolucionária” lavra permanentemente, revelando-se nas menores manifestações de descontentamento e de protesto que ocorram no país. Essa concepção do “inimigo interno” foi reafirmada na recente conferência militar de Caracas, contra a posição defendida notadamente pelos argentinos e pelos peruanos. O país foi, assim, “vietnamizado”, o que não se mede pelo volume de equipamentos recebidos mas pelo caráter da “associação”. A ajuda militar americana não tem necessidade de assumir atualmente, no Brasil, as proporções atingidas no Vietnam. As medidas econômicas e políticas são predominantes, sendo apenas “preventivas”, as repressivas. 74 Brasil a Questão Nacional Aliás, ocorre talvez o contrário. O neocolonialismo, em voga durante um século e meio na América Latina, estaria sendo exportado para o Vietnam. De lá, nos é reenviado, enriquecido por uma experiência nova que a dominação americana não havia conhecido no nosso Continente. De fato, a arma fundamental utilizada nos dois casos é a solidariedade internacional de classe que se estabelece entre as classes dominantes da metrópole e as da neocolônia, em defesa da “associação” que realizam para a exploração do país. A prematura implantação do neocolonialismo na América Latina, quando a África e a Ásia sofriam o jogo colonial, não decorre de um maior atraso das nações destes dois continentes, onde existiam civilizações mais enraizadas do que a latino-americana; deve-se a existência entre nós, de uma minoria de ocupantes que, além de brancos, identificavam-se com a “civilização ocidental”, qualidades que facilitavam a “associação”. Por “civilização ocidental” deve-se entender o que foi importado – e tudo importamos, homens e idéias – mas não foi digerido, refeito, integrado, nacionalizado, tal como ocorreu, por exemplo, com o futebol. No esporte, isso ainda é tolerado. Quando certas instituições desviam-se do esquema inicial, deixando de servir de arma ao “ocupante”, são condenadas inapelavelmente. Agora, a democracia liberal torna-se inconveniente para a maior parte dos que agitavam o “lenço branco” do brigadeiro. Já não é possível utilizá-la apenas para as classes médias e altas, sem o risco de que se estenda a enormes parcelas da população, tornando a situação incontrolável. Segundo o Estado de São Paulo, de 19/10/1973, o General Humberto de Souza Melo, comandante do II Exército, convocou seus camaradas da Força Brasil a Questão Nacional 75 Aérea para marcharem juntos a fim de que “jamais nossa Pátria retorne ao liberalismo democrático ou ao deformado Estado de Direito...com as imunidades equívocas que geram a licenciosidade nas mais variadas formas por um estado de omissão ou de indiferença...”. Quanto à Igreja, que os autores do golpe desejavam viesse a constituir um dos pilares do regime, como imagem indiscutível do “ocidente”, ocorre a mesma coisa. Tem-se notícia de padres executados no século passado, ao se afastarem não da religião, mas dos “padrões ocidentais”, pretendendo integrar-se na comunidade de “brancos, pretos, índios e mulatos”. Permanecendo, desde então, dentro do modelo original, nada sucedeu aos sacerdotes. Agora, sob a ditadura, as perseguições atingem aqueles que se ligam ao povo. A alta hierarquia torna-se mal vista por não querer permanecer estrangeira, como instrumento de “ocupante”, tal como foi no passado. A “nacionalização” do conhecimento fere também a “associação”, mesmo quando não se liga a atividades partidárias. O controle do setor industrial retirou inclusive a razão de ser de certas profissões em que já se dispunha de especialistas de alto nível. Foi o que aconteceu, por exemplo, no conhecido caso da indústria farmacêutica, que passou cem por cento para mãos estrangeiras. A contribuição que o país vinha oferecendo e poderia oferecer nesse domínio desapareceu, afetando as atividades médicas que voltaram a ser uma transplantação da “ocidental”. Enfim, sendo o imperialismo um sistema de dominação que vai do econômico ao cultural, a propaganda do regime e 76 Brasil a Questão Nacional das empresas internacionais segue o modelo americano. Visa a impedir que progrida a luta “por uma maior identidade nacional”, temida por Rockefeller, sempre atento a Lenine que advertiu : “O menor esforço de reflexão demonstrará a todos e a cada um...que toda nação “insurgida” defende-se contra uma nação opressora, defende sua língua, seu território, sua pátria”. Nada melhor para impedir que isso ocorra do que estimular um falso orgulho nacional, fomentar delírios de grandeza através de declarações patrioteiras. Estas podem ser lidas não só nos discursos dos generais, mas nos próprios anúncios das empresas americanas com a finalidade de explorar aqueles falsos sentimentos nacionais ao mostrar que seus produtos já são fabricados no Brasil. A propaganda americana sabe perfeitamente que a “luta pela nossa identidade nacional” jamais se fará enquanto pudermos ser enganados por tais métodos, réplica moderna e sofisticada das contas coloridas que os portugueses davam aos índios, logo após a descoberta. Ela exige a continuidade “do longo processo de movimentos de massa (Lenine) iniciado pelos índios, caçados como feras; pelos pretos, trazidos como escravos; pelos brancos, fugidos da miséria do reino ou condenados pela corte. Não tem razão o poeta quando diz “ser difícil compreender o que querem esses homens, por que eles se ajuntaram e qual a razão dos seus sofrimentos”?. Na verdade, começamos a ser juntados há alguns séculos atrás para atender as conveniências da expansão capitalista. Compondo uma comunidade heterogênea, unida pelo sofrimento que lhe foi imposto desde as origens, não podemos distinguir um brasileiro de um estrangeiro pela cor, pela religião, pelas Brasil a Questão Nacional 77 convicções ideológicas, por ter nascido ou não no Brasil. Carecemos, para tanto, de critérios políticos. Nossa nacionalidade só pode ser determinada em função da história do nosso povo, da consolidação da primitiva comunidade. No entanto, os diferentes tipos de dominação a que fomos submetidos sempre se opuseram a essa consolidação. Nossa comunidade se manifestou nos “mata-galegos”, nos indianistas, nos nativistas, nos nacionalistas, em católicos, comunistas, protestantes, socialistas, maçons, espíritas, em todos os que reconheceram a sua existência e contribuíram para o movimento de massas que está na base de sua formação. Interesses Nacionais Mas nossa formação não se completou, nem se completará com as estradas e os meios de comunicação construídos pela ditadura. A infra-estrutura não vale por si mesmo senão pelo uso que se lhe dá. Tanto pode servir a um programa de integração quanto a outro de compartimentação do país. Pode ser feita, quando necessário, até mesmo em território inimigo para facilitar o controle de áreas ocupadas... A consolidação da nação não é uma simples tarefa administrativa, como faz crer a ditadura. Cabe a todos os brasileiros, consistindo na edificação de uma comunidade onde 78 Brasil a Questão Nacional se integrem e vivam. Sempre foi esse o interesse e a aspiração das camadas oprimidas da nossa população. Indo-se além, pode-se dizer que foram as mesmas aspirações que guiaram índios e negros desde o tempo da colônia. Os primeiros procuraram conservar sua “nação”, suas tabas, seus costumes. Os outros tentaram refazer sua “nação”, nos quilombos onde reproduziram localmente formas africanas de vida, as únicas que conheciam, afora a escravidão. São formas historicamente ultrapassadas, embora os índios ainda hoje sejam obrigados a defender suas tabas, na Amazônia, onde estão sendo dizimados. Apesar da existência atual de muitos quilombos, se assim podem ser chamadas inúmeras comunidades existentes em extensas áreas de mera sobrevivência, pesquisas recentes mostram a quase inexistência de circulação monetária. Dir-se-á que as diferenças na forma de conceber a formação da nação impedem a sua consolidação. Mesmo entre os setores explorados da população existem essas diferenças, devidas sobretudo à variação das condições de vida e ao nível de consciência. Tanto quanto os índios preferiam as tabas e os negros os quilombos, o operariado industrial, os bóias-frias, os seringueiros, os peões, os posseiros etc., possuem aspirações diferentes quanto à forma. O que é inegável é que a aspiração mínima de todos de que se constitua uma comunidade onde as pessoas sejam consideradas, é histórica. Se uma parcela da população chegou a conquistar alguns direitos, a maioria jamais os teve, nem sequer aqueles universalmente reconhecidos à pessoa humana. Restariam, porém, os interesses das diversas classes sociais que determinam diferenças no conceito de interesses Brasil a Questão Nacional 79 nacionais. Aquelas aspirações mínimas, no entanto, nem sequer se chocam com o direito de propriedade. Não exigem uma socialização ou uma estatização que abranja do bar da esquina a empreendimentos maiores, não conflitantes com os interesses do país; mas, apesar de tudo, são conflitantes com a interdependência que não permite sequer a concessão das liberdades conquistadas por outros povos no século XVIII. Ela representa uma verdadeira anexação do país, em termos econômicos, políticos e militares. Para essa anexação, o imperialismo vale-se da luta de classes que não é apenas uma arma de esquerda. Convémlhe uma prematura radicalização em palavras, no que é ajudado inconscientemente pelos que entendem o processo de transformações sociais como simples ato de vontade, já perfeito e acabado, bastando escolher o “modelo” de socialismo; por outro lado, pelos generais que afirmam a existência de uma “guerra revolucionária” em permanência, afirmando que propriedades, famílias e tudo o mais estão sob a ameaça iminente do “comunismo internacional”. Isso permite a mobilização dos que têm posses, grandes e pequenas, em defesa de interesses supostamente ameaçados, setores sociais que têm consciência de classe, maiores recursos, técnicas modernas. Permite calcular o momento de utilizar a violência antes que as massas populares tenham atingido, no seu conjunto, um elevado grau de consciência, de organização e de operacionalidade. Desarmadas ou mal armadas, sem treino militar e comandadas por várias tendências que não conseguem estabelecer planos unificados de ação, são esmagadas pelos modernos instrumentos de repressão. A experiência do nosso e de outros países mostra que 80 Brasil a Questão Nacional essa tática, bastante clara, vem sendo sistematicamente utilizada nos golpes militares. Serve igualmente para a preservação do clima necessário à vigência do neofascismo e mesmo da “democracia limitada”, sua versão mais branda, pregada por certos setores ditos mais moderados dos Estados Unidos. Enquanto nos perdemos em formulações doutrinárias, o imperialismo procura desviar-nos dos nossos objetivos, analisa friamente a situação concreta existente, fixando a hora e as condições do enfrentamento. Segundo André Fontaine (Le Monde – 21.12.1973), Mr. Kissinger age com extremo realismo, inspirando-se também em Lenine. Para comprovar sua afirmação, cita palavras do Secretário de Estado americano: “o valor de um homem de Estado reside no seu talento no avaliar a exata correlação de forças e no utilizar essa avaliação para as finalidades que tem em vista”. E Fontaine explicita o sentido da frase: “Só o conhecimento exato da correlação de forças permite definir o possível, de tomar caminhos que, aos olhos da maioria, parecem inacessíveis. E, para bem perceber essas Brasil a Questão Nacional 81 relações, é preciso uma visão que não esteja turvada pelas lentes da paixão, nem da ideologia. Isso faz pensar na célebre fórmula de Lenine: “Fazer uma análise concreta de uma situação concreta”. A tática de ação, que passa pela fria análise de Mr. Kissinger, assenta-se num dos pontos da doutrina Nixon, que definiu a estratégia atual do imperialismo americano, a “divisão de responsabilidade”. Ela nada mais é do que a solidariedade internacional das classes dominantes, a mobilização das camadas altas e médias de cada país para a defesa de suas prerrogativas, colocadas além e acima dos “interesses nacionais”. O aguçamento, mas sobretudo a “internacionalização” da luta de classes, une os setores dominantes contra o processo de independência nacional sob o comando dos grupos estrangeiros que detêm os mecanismos do sistema. A resposta das classes dominantes locais à convocação de Nixon não decorre apenas da associação, em termos econômicos, com os grupos internacionais. A maioria ocorre em termos políticos, passando a constituir simples massa de manobra nas mãos dos que dominam o país. Outros rejeitam aquela convocação, mas a ela acabam servindo objetivamente, pois analisam a situação “através das lentes da paixão”, isto é, do medo às diferentes pressões a que estão submetidos. Medo do povo, das conquistas democráticas 82 Brasil a Questão Nacional que podem descambar para mudanças sociais mais profundas. Medo do Estado, de uma ameaça de intervenção na vida econômica que prejudique a empresa privada. Medo dos grandes grupos estrangeiros que, na prática, os estão liquidando. Os “interesses nacionais” são alegados para cobrir, por conseguinte, posições as mais diversas. Em seu nome a ditadura favorece os grupos estrangeiros que, segundo alega, ajudam o “desenvolvimento nacional”. Em seu nome, pedese o oposto, a renacionalização das empresas, passando-as para as mãos de pessoas nascidas no Brasil. Em seu nome, os produtores de carne defendem a exportação, enquanto a classe média, zelando pelo seu próprio abastecimento, prefere que ela seja proibida... Furtado13, acentuando a importância da questão, diz que “os interesses nacionais” definiam-se quando a atividade mercantil se apoiava em manufaturas locais, que podiam ser ameaçadas por concorrentes externos ou que eram utilizadas para exportação”. Adianta que é “a combinação de atividades manufatureiras pré-industriais (baseadas na organização corporativa ou no trabalho livre), com as atividades que enfrentam a concorrência externa, que define o perfil das burguesias nacionais”. Conclui, em conseqüência, que “a classe industrial que se forma no Brasil atua num quadro estrutural próprio” e que “assimilá-la a uma burguesia nacional” constitui simplificação que contribui mais para ocultar do que para revelar a realidade. Seus interesses estão, de maneira geral, positivamente vinculados ao comércio exterior”. Brasil a Questão Nacional 83 Assim, as “burguesias nacionais” que, nas nações desenvolvidas, criaram a “forma mais ampla de comunidade a que deu origem o nascimento e a evolução do sistema capitalista” (Rosental e Iudin) tinham, na época do seu aparecimento, “interesses nacionais” e podiam falar em nome de “toda a nação”, não obstante suas contradições com as demais classes sociais. Essas contradições as separavam no que toca à forma de organização da sociedade. Divergentes quanto à maneira de conduzir os “interesses nacionais”, convergiam ao fundo da questão: “A base econômica de que surgiu a nação deu-se pela liquidação da fragmentação feudal, pela consolidação dos nexos econômicos entre as várias regiões do país, pela união dos mercados em um mercado nacional único”. (idem). Essa convergência dos interesses econômicos forçava a unidade política e cultural da nação, a “unidade nacional”, a “integração”, que interessava às diferentes classes e camadas, não obstante as desigualdades e injustiças no relacionamento entre elas. Na nossa evolução, como foi visto, é o contrário que se passa. A exportação de matérias- primas compartimentou o país em áreas especializadas sem nexo entre elas, reduzindose, com o atual regime, os débeis vínculos que estabelecia a primeira fase da industrialização. Quem produz carne, açúcar, café etc., busca o mercado exterior, onde os preços podem ser superiores aos que pode pagar a imensa maioria da nossa população. Com a indústria, ocorre, na prática, a mesma coisa. De acordo com Furtado, a política atual consiste em “dinamizar a demanda da classe média alta”, cujo nível de 84 Brasil a Questão Nacional vida “deve acompanhar a evolução do consumo dos grupos de renda médias e altas dos países mais ricos”, o que implica na “pauperização absoluta da população”. Nestas condições, pode-se afirmar que essa estreita camada não se inclui no “mercado brasileiro”, mas num “mercado internacional” artificialmente implantado no Brasil. Em conseqüência, pode-se dizer do crescimento industrial não apenas que favorece as multinacionais e que se vale do arrocho salarial. Pode-se também afirmar que ele nada tem a ver com os “interesses nacionais”, assim entendidos os do conjunto de classes e camadas de todo o tipo, os interesses dos brasileiros em geral, que não são necessariamente todos, nem apenas as pessoas nascidas no Brasil. São os que não “internacionalizaram” as suas atividades, o seu consumo, a sua mentalidade, nem as posições políticas, porque seus interesses estão ligados à construção da “comunidade local”, da nação, ou como se queira chamar o resultado do ajuntamento primitivo iniciado com a descoberta do nosso território. Os interesses das classes dominantes não as levam a constituir, nem mesmo a pertencer a essa “comunidade local”, senão a dela se servirem, na qualidade de intermediárias, dentro do sistema internacional em que estão inseridas. Se as burguesias dos países desenvolvidos discordavam das demais classes e camadas quanto à forma, unindo-se a elas em relação ao conteúdo da questão nacional, as nossas classes dominantes divergem da maioria do nosso povo sob os dois aspectos. Os seus interesses tomam um sentido oposto aos das “bases econômicas de que surgiu a nação”. Não promovem a “união Brasil a Questão Nacional 85 dos mercados em um mercado nacional único”, antes dividem e compartimentam o país, ameaçando a unidade nacional. Se tais rumos persistem, terá razão o poeta. O Brasil não existirá como Nação, seja capitalista, ou socialista, seja taba ou quilombo. Será um simples território ocupado. Para que exista o Brasil, é preciso que existam os brasileiros, o que não acontece com a simples transferência de ações das multinacionais para as mãos de pessoas nascidas no nosso território, como pensam alguns setores do empresariado nacional. Tem que ser instaurado um poder nacional representativo das classes e camadas interessadas na consolidação da Nação, em oposição ao processo de “desmantelamento do Estado Nacional”, aconselhado pelos estrategistas americanos e posto em prática pelo atual regime. O poder deve sair das mãos da minoria que desnacionalizou suas atividades, seu consumo, sua mentalidade, e vir para as mãos do povo brasileiro. Nos países desenvolvidos, o movimento nacional pertence ao passado. Já em nada contribui para fazer avançar a sociedade no seu conjunto. Entre nós, ele ainda significa a defesa de reivindicações gerais que, embora semelhantes, não são idênticas àquelas que presidiram a construção das nações européias. Tanto nelas, como entre nós, a liberdade e a democracia visam a permitir que apareçam as reivindicações do conjunto da população e a possibilitar a sua solução. Não se as pode ver como entes de razão, eternas e imutáveis, mas como instrumentos 13 FURTADO, Celso. Análise do modelo econômico, sem data. 86 Brasil a Questão Nacional destinados à condução de um processo de transformações econômicas, políticas e sociais que consulte os interesses da maioria. Sua simples existência não leva necessariamente à reprodução do “modelo ocidental”. De fato, não há comparação entre a atual correlação de forças dentro do nosso país e no plano internacional com aquela que permitiu a formação daquele “modelo”. As reivindicações e as soluções possíveis, ditadas pelas necessidades da população e pela situação concreta do país, não podem ser atendidas por ele, sequer na medida em que o puderam fazer as burguesias européia e americana. Estas (salvo as subdesenvolvidas, onde o fascismo prevalece: Portugal, Espanha e Grécia) tiveram e têm capacidade para tolerar um grau maior de liberdade e de democracia, enquanto entre nós (e agora mais do que nunca) elas sobrevivem graças a uma “preservação da ordem” em termos muito mais estritos e restritos, a “segurança” de que tanto falam os nossos militares. E a estratégia política que condiz com essa “segurança” não é a da unidade nacional decorrente da necessidade de um mercado unificado, a que levavam os interesses da burguesia européia, tornados hegemônicos no seio da sociedade. Entre nós, os interesses dominantes dirigem-se no sentido de dividir. Juntam-se mas, na defesa das prerrogativas de cada um na sua zona de influência. Não unem o país. Para a grande maioria dos setores dominantes, a unidade nacional tem sentido bem distinto daquele que conseguiu aliar burguesia e camadas populares na Revolução Francesa. Nada tem a ver com o significado de unidade nacional que atende aos interesses do povo brasileiro para quem ela consiste (como Brasil a Questão Nacional 87 para as camadas populares francesas de então) em direcionar as atividades de todos no sentido de fazer avançar a sociedade no seu conjunto, isto é, na solução dos problemas que o afligem dos grandes centros urbanos aos lugares mais distantes do país. Assim, em contraposição à ação fracionária dos setores dominantes, é necessário adotar uma linha de ação que nos leve à unidade em todos os planos. Ela não virá da concordância em torno de doutrinas ou de modelos, mas de objetivos mínimos que não só possam como devam ser aceitos por todo aquele que se identifique como brasileiro. Nessa qualidade, somos obrigados a concordar com a necessidade de assegurar a unidade nacional, objetivo a que nem os homens da ditadura podem abertamente se opor. Na prática, eles tentarão convencer que ela consiste em distribuir tropas pelos quatro cantos do país, confundindo unidade nacional com ocupação militar do nosso território. É evidente que ela implica no combate ao atual processo de diversificação e de compartimentação, na correção da crescente marginalização de regiões inteiras e da imensa maioria da população, na correção de distorções provocadas pela nossa evolução, agora agravada pela política da ditadura. São necessárias, desse modo, grandes transformações na vida do país, impostas pelas realidades de diferentes áreas e por tipos de dominação que vão do colonial clássico às formas mais modernas e requintadas. Sem elas, não será possível corrigir as desigualdades materiais nem as decalagens que aquelas realidades determinam no nível da consciência das várias camadas da população. É em face dessas realidades que cada brasileiro se vê 88 Brasil a Questão Nacional colocado e não diante de “modelos” que pudessem escolher segundo os seus desejos. Diante delas, cabem duas alternativas bem definidas: ou se teme a transformação indispensável à consolidação da nação e atende-se a convocação de Nixon, perdendo a condição de brasileiro, ou se conserva essa condição, aceitando as transformações na medida em que são impostas pela situação concreta do país e da nossa população, como um imperativo da nossa própria existência nacional. No escamotear a existência do problema nacional, fundase a ação ideológica do sistema. O próprio sentido das atividades econômicas ajuda a enfatizar a existência de problemas setoriais e regionais, desligados do principal. As questões são divididas, ou colocados os seus aspectos secundários, de modo a provocar a dispersão política da população. Não haveria brasileiros mas paulistas, baianos, mineiros, goianos, gaúchos, amazonenses... Assim, a contradição entre as regiões industrializadas e as zonas subdesenvolvidas cria uma falsa oposição entre São Paulo e o resto do país. É fato que a exagerada concentração do setor industrial numa reduzida área cria grandes disparidades, mas nisto não reside o aspecto principal da questão. As desigualdades não podem ser corrigidas com a simples implantação de fábricas, mas poderíamos pretender a instalação de uma siderúrgica em cada município para que todos ficassem iguais. O fundamental é a orientação da produção industrial que não está dirigida no sentido de servir ao conjunto do país, visando à elevação do nível de produtividade dos outros setores. Grave não é a concentração, mas sobretudo a fabricação de artigos de luxo para uma estreita camada em detrimento do resto da população, não importando que isso se faça em São Brasil a Questão Nacional 89 Paulo ou no Amazonas. No que toca às regiões pobres, o isolamento do problema também ocorre. Explica-se que são pobres em virtude de características que lhes são próprias, em razão da seca ou do excesso de chuva, e não como resultado do tipo de exploração sofrido pelo país, e dos efeitos específicos que nelas provocou. Em conseqüência, não se lhes concede os direitos que têm como parte integrante da Nação. São vistas com um falso espírito de caridade, como dignas de comiseração e de ajuda, nunca com os olhos da Justiça que manda dar aquilo que lhes é devido em razão da nossa história. Procura-se dividir, do mesmo modo, os diferentes setores da população. Os estudantes poderão falar de assuntos escolares, os padres das questões religiosas, os camponeses da chuva, os operários do seu trabalho e, em certas circunstâncias, como admitem os mais “liberais”, de aumento salarial. Não é permitido, porém, ligar entre si esses problemas através da discussão do sentido geral do desenvolvimento, do problema nacional, que interessa a todos. A “segurança” só admite, no máximo, problemas parciais, mas não a questão principal sem cuja solução nenhum problema parcial pode ser resolvido. Mobilização Nacional Nenhuma alteração fundamental poderá ser introduzida nessa situação pelos novos governantes. Não se trata sequer de discutir se desejam ou não promover 90 Brasil a Questão Nacional mudanças, embora seja fácil concluir pela negativa, face aos seus pronunciamentos formais quanto à continuidade ao atual sistema. Deve-se constatar que não podem, mesmo que assim o desejassem. O poder atual é extremamente débil para isso. Não tem forças para adotar medidas em defesa dos interesses nacionais, em benefício da população. Elas se chocariam com o setor hegemônico dominado pelos grupos estrangeiros, que reclama cada vez mais inversões e concentração de renda. Esse setor – e não o governo - é que detém os mecanismos financeiros cujo controle está fora do país. Estamos transformados numa espécie de vice-reinado. O poder dos governantes restringe-se à manutenção da ordem e à administração dos assuntos internos, no que podem ser mais ou menos tolerantes, pois até aí vão os limites de suas atribuições que não são suficientes para mudar o sentido do desenvolvimento. É um poder sustentado por um esquema militar cujas funções foram deformadas para voltá-lo contra o povo. Essa constatação é imposta pelos fatos. Não se pode sequer alegar que resulta de premissas preestabelecidas, de preferência por sistemas, doutrinas, modelos ou de deliberada intransigência. É a experiência vivida pelo nosso país que estabelece, com indiscutível evidência, a impossibilidade de ajustamentos ou conciliações com interesses estranhos que nos exploram. Também não se pode alegar que, como país, tenhamos partido de uma recusa sistemática da chamada “política de boa vizinhança”. Nossos governos cometeram o erro de nela acreditar, pois ninguém mais do que Getúlio tentou acomodar Brasil a Questão Nacional 91 o alargamento da nossa autonomia econômica e política com a presença dos grupos internacionais, pagando com a vida essa ilusão. Nem atacá-lo por ter errado, nem lamentar o fato. A lição a tirar reside na constatação de que tal caminho é totalmente inviável. E o ensinamento é tanto melhor quando procede da nossa própria experiência. Obriga-nos a colocar como questão central a independência do país, que não pode ser obtida com pequenas flexões do regime, nem com a desapropriação de algumas ou de todas as multinacionais. Ela exige a extinção do “vice-reinado atual”, o restabelecimento do Estado Nacional, a “nacionalização” das Forças Armadas, da Igreja, da esquerda, de todos nós, isto é, nossa inserção na luta de massas que historicamente trava o nosso povo para a construção da comunidade brasileira. Na etapa atual, esse é o único objetivo capaz de criar a uniformidade ideológica indispensável entre as diferentes tendências antiditatoriais, apesar dos seus desencontros, doutrinário e noutros planos. O importante não são as cores que ostentam ou as aspirações que alimentam quanto ao futuro, mas o próprio combate, o fato de que visualizem correta e conjuntamente o inimigo. E o inimigo não são alguns generais, mas um sistema da dominação que dispõe de instrumentos de atuação, tanto para a luta ideológica e política, quanto para a repressão direta. Deve ser visto no seu conjunto e nos efeitos diferenciados que provoca, para que sejam identificados os que com ele colaboram consciente ou inconscientemente, em todos os lugares, mesmo naqueles mais distantes. Os agentes locais do poder, agarrados 92 Brasil a Questão Nacional a seus pequenos interesses de mando, são tão importantes quanto, noutro nível, os associados das multinacionais. Estes estão perfeitamente conscientes do seu papel mas aqueles, mesmo que disso não se dêem conta, constituem, somados, um importante sustentáculo do sistema de dominação. A tarefa tem as dimensões do país, exigindo uma força política com as mesmas proporções, em condições de falar ao conjunto do nosso povo, unindo cada setor e interligando-os. A classe operária, os estudantes, os intelectuais, os camponeses, as regiões, os Estados, as localidades, devem ser unificadas em torno de suas reivindicações. Mas, se cada um permanece preso a seus problemas específicos, estaremos sujeitos ao fracionamento que favorece a dominação do conjunto do país. Na verdade, a força do imperialismo e do atual regime que o serve, não reside apenas nos meios de que dispõe, por poderoso que seja seu dispositivo policial-militar. Vem também da dispersão que já se encontra na raiz da derrota de 1964. Ela impede a coordenação de esforços, sendo inútil lançar grupos desarticulados contra um inimigo que busca fazer da coesão sua arma principal. Isso multiplica, além do mais, as formas de enxergá-lo. Quem se coloca hoje no Extremo-Sul, tem mais tendência a acreditar nos efeitos de pressões de forças ali tradicionalmente organizadas, dada a história da região e as condições agora existentes. No entanto, para os do Nordeste ou do CentroOeste, nas áreas onde a repressão nunca foi muito diferente da atual, uma tal análise aparecerá como inteiramente fora da realidade. A síntese dessa situação não pode ser feita por grupos dispersos, representativos de uma área ou de uma camada Brasil a Questão Nacional 93 social, especialmente quando em muitos lugares eles apenas sobrevivem às dificuldades criadas pela ação da ditadura. Não conseguem, por falta de perspectivas gerais, perceber e valorizar a atuação que poderiam desenvolver, por pequena que fosse, com contribuição à tarefa comum. A quebra desse impasse exige a rearticulação e a mobilização sistemática de quadros, antigos e novos. Só esse trabalho coletivo, que abarque visões setoriais, regionais e locais, convergentes e complementares, pode alargar as perspectivas de uma ação que, eliminando a ocupação do país, restabeleça o processo de formação da Nação Brasileira. 94 Brasil a Questão Nacional Resumo 1 – O golpe de 1964 teve em conta não apenas os interesses das empresas internacionais instaladas no Brasil, mas os do Estado americano. Estes englobam evidentemente aqueles, indo contudo muito além da simples busca de vantagens imediatas e conjunturais para os empresários. 2 – Falira a política dos Estados Unidos no seu campo de influência. Fracassara a tentativa de derrubada do governo cubano. Diem caíra no Vietnam. Crescia o movimento popular no Brasil, noutros países latino-americanos, na Indonésia, na Grécia etc. 3 – Restavam, portanto, os meios militares. Sucederamse os golpes de Estado em vários continentes e, quando necessária, a intervenção direta das tropas americanas, como no Vietnam e em São Domingos. Brasil a Questão Nacional 95 4 – A guerra no sudoeste da Ásia mostrou, porém, os inconvenientes de uma presença direta das tropas americanas. Ficavam ameaçadas de dispersão, se fossem engajadas em mais de uma guerra local, enfraquecendo o poder militar dos Estados Unidos. Isso ficara claro no segundo período de Johnson. 5 – Foi Nixon, porém, no discurso pronunciado em Guam, em 1969, quem deu ênfase à necessidade de “dividir responsabilidades”, isto é, à mobilização das classes alta e média em cada país para fazer face à “subversão”, tal como fora feito no Brasil, modelo bem sucedido de contrarevolução. A “manutenção da ordem” passa a ser tarefa dos exércitos locais, eliminando-se a presença americana tanto quanto possível. 6 – Isso não alterou a estratégia do Estado americano, apenas o manejo dos instrumentos. Ela continua a ter por base o “desmantelamento do estado nacional” nos diversos países, isto é, fazer prevalecer as “alianças” sobre os interesses específicos de cada um deles. De Gaulle, por exemplo, reagia contra isso, já que o poderio americano assegurava a hegemonia dos Estados Unidos dentro das várias “alianças”, ferindo também interesses dos países desenvolvidos, seus aliados. 7 – No Brasil, com o golpe, o “desmantelamento do estado nacional”, ou seja, a “interdependência” foi proclamada 96 Brasil a Questão Nacional política oficial desde os primeiros dias do governo de Castelo Branco. Iniciou-se um processo de “internacionalização” que ganhou plena expressão no governo Médici. a) Com Castelo Branco, a mudança consistiu sobretudo na criação de um mercado artificial para as grandes empresas multinacionais através de uma forte concentração de renda. Foi, por assim dizer, “internacionalizada” uma parte do mercado brasileiro mediante o favorecimento de uma estreita camada cujo nível de vida, segundo Furtado, deve sempre estar próximo dos padrões das classes altas e médias dos países ricos. Isso afetou, porém, os bens de consumo popular, reduzindo as atividades das indústrias tradicionais. b) O governo de Costa e Silva foi fruto dessa contradição. Pretendia representar parcelas do empresariado nacional afetadas pela política de Castelo, “humanizando” a economia. Buscando encontrar uma composição entre aqueles interesses divergentes, perdia condições de oferecer perspectivas para a expansão da economia no seu conjunto. Daí os impasses políticos que desembocaram no AI-5. c) No governo de Médici, a “internacionalização” encontrou uma saída na política de exportação. Com ele, unificaramse numa mesma direção todos os produtos, da castanha do Pará à carne do Rio Grande do Sul, passando pelos manufaturados. Os diferentes setores empresariais não contestam essa orientação; disputam uma melhor posição Brasil a Questão Nacional 97 dentro dela, como atualmente os produtores de carne. Concordam com o governo; contestam a falta de coerência na aplicação de sua política. 8 – Alterou-se, assim, a função do setor industrial. Cabe assinalar duas modificações que trouxeram larga repercussão no quadro político interno: a) A primeira intensificou-se no governo de Juscelino. A invasão do capital estrangeiro alarga a aliança dos americanos com grupos empresariais brasileiros. Ela já não se dá apenas com as oligarquias notadamente a do café. Faz-se também com o setor mais dinâmico da economia. O empresariado que sustentara Vargas em 1950, perdera peso econômico e político. b) A segunda modificação foi feita pela ditadura. O setor industrial passa a ser mais um “ciclo”. Sua produção destina-se à exportação para o exterior ou para venda no restrito mercado interno, artificialmente elevado ao nível de mercado internacional. Reduz-se, assim, a função de fazer avançar o processo de transformações internas, aceleradas a partir de 1930, que tendiam a levar o país a um estágio superior de desenvolvimento. 9 – Ao contrário, recuamos a uma fase neocolonial, apesar dos aspectos modernos introduzidos no país. Daí a semelhança entre o atual regime e a república oligárquica: a) dependência dos banqueiros internacionais; b) estabelecimento de um colégio eleitoral restrito, desde as teses econômicas à música; d) marginalização da população; e) agravamento das diferenças regionais; f) Brasil a Questão Nacional 98compartimentação do país em áreas especializadas que se ligam ao mercado externo. Bem considerado, a dominação atual é mais profunda do que naquela fase. Importa na “desnacionalização” das Forças Armadas, do ensino, das atividades em geral. A Amazônia passou a ser uma colônia dos Estados Unidos. Afrouxaram-se os laços internos que lentamente iam sendo estabelecidos pelo primeiro surto das atividades industriais, invertendo-se o processo de formação nacional. O atual sistema constitui, assim, uma série de ameaças à unidade do país. 10 – O atual regime não tem forças para modificar essa situação, mesmo que assim desejassem os que assumem o governo, o que não é o caso. Estão condicionados pela dívida externa, pela necessidade de mais recursos, pela impossibilidade de alterar os mecanismos econômicofinanceiros que possibilitam o funcionamento do parque industrial das multinacionais. Estes produzem para atender a minoria cujo consumo foi “internacionalizado”, não se preocupando com a solução dos problemas da imensa maioria do nosso povo. Como aquelas empresas controlam os cordões que movem as finanças internacionais, fechase o círculo vicioso. Sustentado nos interesses que o estabeleceram, o regime não tem condições de quebrá-lo. 11 – Na verdade, o Estado Brasileiro foi transformado numa Brasil a Questão Nacional 99 espécie de vice-reinado: amplos poderes para enquadrar a população e nenhum para decidir sobre as questões fundamentais do país. Para isso, é necessário constituir uma força política nacional sustentada pelo povo, que deve ser convocado para defender a nossa sobrevivência como Nação. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR 100 Brasil a Questão Nacional Brasil a Questão Nacional 101 102 Brasil a Questão Nacional Brasil a Questão Nacional 103 SIG/Sul - Quadra 03 - Bloco “C” - Nº 46 - Térreo Fones: (061) 3344-2332 / 3344-2510 / 3344-0193 Fax: (061) 344-1712 CEP 70610-400 - Brasília-DF e-mail: [email protected] 104 Brasil a Questão Nacional Brasil a Questão Nacional 105