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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA RODOLFO POLZIN RONDON OBJETOS PARA PENSAR: O NOSSO AQUI, COMPRADO ALI, VINDO DE LÁ CUIABÁ-MT 2012 RODOLFO POLZIN RONDON OBJETOS PARA PENSAR: O NOSSO AQUI, COMPRADO ALI, VINDO DE LÁ Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Poéticas Contemporâneas. Orientadora: Profa. Dra. Ludmila de Lima Brandão Cuiabá-MT 2012 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte R771o Rondon, Rodolfo Polzin. Objetos para pensar: o nosso aqui, comprando ali, vindo de lá / Rodolfo Polzin Rondon. – 2012. 113 f. ; 30 cm : color. (incluem figuras) Orientadora: Ludmila de Lima Brandão Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2012. Bibliografia: f. 110-113 Catalogação na fonte: Maurício S.de Oliveira CRB/1-1860. 1. Camelódromo. 2. Globalização subalterna. 3. Made in China. 4. Maneki Neko. I.Título. CDU 339.177 _______________________________________________________ Profa. Dra. LEDA MARIA DE BARROS GUIMARÃES Examinadora Externa (FAV/UFG) ___________________________________________________________ Prof. Dr. YUJI GUSHIKEN Examinador Interno (ECCO/UFMT) ___________________________________________________________ Profa. Dra. LUDMILA DE LIMA BRANDÃO Orientadora (ECCO/UFMT) Cuiabá, 07 de fevereiro de 2012. AGRADECIMENTOS Escrever uma dissertação não é uma tarefa fácil. São anos de estudos, leituras, erros, páginas excluídas, rabiscos, anos de dedicação. Chegar até este ponto, diante de um amontoado de folhas que leva meu nome na capa reflete minha certeza de que não cheguei aqui sozinho. Assim sendo, devo registrar nestes escritos minha gratidão, respeito e amor pelas pessoas que me rodeiam. Neste espaço, digo meu “muito obrigado” a todas as pessoas que me ajudaram nesta caminhada. A primeira delas não poderia ser outra: Ludmila Brandão. Lud querida, obrigado é pouco para refletir o que sinto. Sou grato pela orientação cuidadosa e amizade sincera, pelo ouvido disposto e pelo sorriso no rosto. Quero ser como você quando crescer, sábio, simples e generoso. Agradeço minha família, em especial a minha “Vó Ica”, que partiu em meio ao meu processo de qualificação e, fisicamente, não está aqui para ver seu neto ser “mestre”, como sempre dizia repleta de orgulho, mas contribuiu e muito com isso. Agradeço minha mãe, Maria Emilia, pela compreensão e amor incondicional. Por sempre estar me esperando nas voltas que esta pesquisa deu, por pisar delicadamente quando passava pela sala onde eu escrevia esta dissertação. Agradeço ao meu irmão, Fernando, por sempre discordar de mim e, indiretamente, me ajudar a sedimentar minhas leituras durante nossas longas discussões. Hugo, companheiro maravilhoso, crítico de todo este trabalho e amigo de todas as horas, muito obrigado por estar sempre disposto. Obrigado por ler e reler este texto uma centenas de vezes, por seu olhar minicioso, por fazer parte da minha vida. Digo “muito obrigado” também para Yuji, eterno professor e amigo, pelos conselhos sempre pertinentes, pelas conversas nas ruas de São Paulo ou Bogotá, pela segurança que me dá ter sua amizade. Sem dúvidas, muito do que sou hoje, devo a você. Obrigado Leda, pelas valiosas contribuições, da qualificação a defesa, e por aceitar colaborar tão decisivamente para este trabalho. Agradeço às minhas amigas, guerreiras de todas as horas, ouvidos dispostos e abertos de sempre, “muito obrigado” Carol Sousa, Fernanda Arantes, Inara Fonseca, Juliana Curvo e Viviane Rocha. Agradeço ainda a CAPES pelo investimento e auxílio. Por fim, agradeço a Deus e aos espíritos bons, nos quais eu acredito, por toda a proteção que me dedicam durante toda minha vida. Obrigado. Saravá. RESUMO A presente investigação inicia-se no edifício popularmente chamado de “camelódromo” ou Shopping Popular de Cuiabá. Construído há mais de quinze anos, esse espaço é parte constitutiva desta capital, ao mesmo tempo em que a integra aos fluxos globais de circulação de mercadorias, mais especificamente aos objetos Made in China. Por meio da proposta etnográfica “de perto e de dentro” seguimos, do fim para o começo, o percurso feito por essas “quinquilharias”, representadas no texto pelo gatinho da sorte ou Maneki Neko. Assim sendo, partimos do camelódromo (e de toda a sua constituição histórica e física) rumo à Ciudad Del Este, centro econômico do Paraguai, amplamente conhecido pelo comércio desse tipo de mercadoria e destino de compras dos camelôs do Shopping Popular de Cuiabá. Lá averiguamos de perto os fluxos e trânsitos desses objetos, descrevendo detalhadamente as práticas observadas que subsidiaram as reflexões acerca do termo “globalização subalterna”. Por fim, apresentamos os fatores que contribuíram, historicamente, para a consolidação da China como potência mundial produtora desses produtos e realizamos uma “biografia” do Maneki Neko, com o intuito de discutir de que forma esses objetos contribuem para a compreensão dos meios pelos quais agem os que estão fora dos fluxos hegemônicos do mundo contemporâneo. Palavras-chave: camelódromo, globalização subalterna, Made in China, Maneki Neko. ABSTRACT The present investigation parts of the building popularly called "camelódromo" or Popular Shopping in Cuiabá. Built more than fifteen years ago, this space is a constitutive part of the city while integrates the global flows of movement of goods, more specifically the objects Made in China. Through the proposed ethnographic "near and inside" we made, the ending to beginning, the route taken by these "junk", represented in the text by luck cat or Maneki Neko. Therefore, we assume camelódromo (and all its history and physical constitution) towards Ciudad Del Este, the Paraguayan city widely known by the trade of this type of merchandise and shopping destination of the hawkers in the Popular Shopping in Cuiabá. There we analised closely the flows and transits of these objects, describing in detail the practices that supported the observed reflections on the term "subaltern globalization." Finally, we present the factors that contributed historically to the consolidation of China as a sign of power producing these objects and perform a "biography" of Maneki Neko, with the purpose of discuss where these objects contribute to the understanding of the means by which the act that are outside the hegemonic flows in the contemporary world. Keywords: camelódromo, subaltern globalization, Made in China, Maneki Neko. SUMÁRIO ABRINDO............................................................................................................. 9 CAPÍTULO 1 – AQUI........................................................................................... 12 1.1 O camelódromo de Cuiabá............................................................................ 12 1.2. O subalterno em questão.............................................................................. 16 1.2.1. Gramsci, os conceitos de hegemonia e subalterno............................... 16 1.2.2. Os Estudos Culturais.............................................................................. 18 1.2.3. Os Estudos Subalternos......................................................................... 25 1.3. O camelódromo hoje..................................................................................... 27 1.4. Canevacciando o camelódromo.................................................................... 36 1.5. Relação entre corpos: um devaneio escrito.................................................. 39 CAPÍTULO 2 – ALI.............................................................................................. 43 2.1. Etnografia de um pesquisador sacoleiro....................................................... 43 2.2. Globalização.................................................................................................. 67 2.2.1. Entre metáforas e o mundo.................................................................... 67 2. 3. A globalização subalterna............................................................................ 72 CAPÍTULO 3 – LÁ............................................................................................... 76 3.1. China: recorte histórico................................................................................. 76 3.1.1. Canton System....................................................................................... 76 3.1.2. As Guerras do Ópio e outras insurreições (1819-1911)......................... 79 3.1.3. República (1911-1949)........................................................................... 80 3.1.4. Revolução Comunista (1949)................................................................. 82 3.1.5. A Era Mao (1949-1976).......................................................................... 84 3.1.5.1. Grande Revolução Cultural Proletária da China (1966-1969)......... 86 3.1.5.2. Os últimos anos do timoneiro (1969-1976)..................................... 88 3.1.3. Deng e o capitalismo chinês (1976-2011)............................................. 89 3.1.4. Algumas considerações à cerca Guangdong e suas bugigangas........ 91 3.2. Maneki Neko................................................................................................. 92 3.2.1. As lendas................................................................................................ 92 3.2.2. O nosso aqui, comprado ali, vindo de lá................................................ 95 3.3. As mercadorias Made in China..................................................................... 98 3.3.1. Entre sacrifícios e biografias, com quem dialogo .................................. 98 3.3.2. Biografia do Maneki Neko...................................................................... 101 FECHANDO......................................................................................................... 107 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 110 9 ABRINDO Quando criança costumava ir ao camelódromo com minha avó. Sempre fui fascinado por aquele lugar, repleto de coisas por todos os lados. Andava por entre os corredores enquanto ela escolhia flores de plástico para os arranjos da sala. Enquanto ela e a vendedora discutiam combinações, passeava olhando brinquedos, como a coleção de bonecos que giravam a cabeça, a mini fazenda com bois, vacas e cavalos de plástico ou a imensa caixa repleta de miniaturas de carros de corrida. Aqueles objetos vinham de algum lugar que na minha cabeça de criança era apenas longe. O Paraguai era como a fábrica do Papai Noel, que também aparecia ali no camelódromo dançando na época de Natal. Quando minha avó terminava suas escolhas, sempre comprava para mim uma fita contendo dez gomas de mascar coloridas e redondas. O camelódromo tinha, para mim, gosto de goma de mascar. Anos mais tarde, já na graduação, retorno ao camelódromo para realizar pesquisa de iniciação científica. Investiguei a difusão e a releitura dos personagens infanto-juvenis naquele espaço de práticas subalternas durante dois anos. Esse tempo permitiu que descobrisse outro fenômeno: a publicidade feita pelos próprios camelôs, da maneira que dá, sobre suas bancas. Ingressei no mestrado e o camelódromo continuou como lócus de meu interesse. Mas tratar do quê? Lá tem tanta coisa que foi (e ainda é) difícil manter uma linha tênue de investigação. Porém, se observarmos bem o que fiz por lá durante esse tempo, chegamos ao ponto crucial da pesquisa que resulta esta dissertação: os objetos em trânsito na globalização subalterna. São os objetos que dão vida ao camelódromo. São eles que vêm de lá para cá e vão daqui para lá. São eles que vêm da China e vão para alguma casa em algum ponto da cidade. São eles que conectam cidades. São eles utilizados como e para publicidade. São eles que materializam a globalização que acontece em meio às classes populares. São eles, como a televisão e a internet, que globalizam aqueles que estão fora dos fluxos hegemônicos, logo subalternos. A metodologia adotada nesta caminhada, principalmente no que diz respeito à pesquisa de campo, baseia-se nas reflexões etnográficas de José Guilherme Cantor Magnani, em seu artigo “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. A etnografia aqui sugerida contempla o estudo dos atores sociais no contexto da cidade e a partir das relações que a mesma estabelece com os seus atores, seus fluxos, trânsitos e pertencimentos. Os objetos dos quais falamos estão inseridos no 10 contexto do camelódromo que por sua vez é movimentado pelos camelôs (atores sociais) que circulam por entre cidades como Cuiabá, Foz do Iguaçu e Ciudad Del Este. Para Magnani, isso permite o resgate e a inserção da dinâmica da cidade observando suas multiplicidades, seus movimentos (2002, p. 15). O camelódromo, fruto de um ordenamento que escapou ao controle do Estado, mudou a dinâmica da cidade e consequentemente sua relação com o mundo. Magnani (idem) ainda destaca que o método etnográfico “não se confunde nem se reduz a uma técnica”. Para ele, a etnografia pode servir-se de várias técnicas, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; “ela é antes um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos”. Acrescenta ainda que “não é a obsessão pelos detalhes que caracteriza a etnografia, mas a atenção que lhes dá: em algum momento, os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a pista para um novo entendimento” dos objetos enquanto mercadorias, transitando em uma globalização não hegemônica. Assim sendo, o primeiro capítulo começa com a apresentação do percurso histórico que culminou na criação do Shopping Popular de Cuiabá e se encaminha para definição do termo “subalterno”, tão importante para esta discussão, partindo da interpretação do conceito de Antônio Gramsci. Além disso, apresento uma introdução aos estudos culturais sustentando a breve discussão a propósito dos estudos culturais na América Latina, proposta por Alberto Moreiras, colaborando para uma aproximação teórica entre os latino-americanos e os indianos dos Estudos Subalternos (nomes como Gayatry Spivak, Dipesh Chakrabarty e Ranajit Guha). Posterior a essa delimitação e a conclusão da descrição do camelódromo, manipulo os conceitos propostos por Massimo Canevacci e, influenciado pela metodologia do autor, constituo conceitualmente o camelódromo e ainda experimento observá-lo pela lente canevacciana num devaneio escrito. Compreendido o espaço do qual falamos, temos no início do segundo capítulo a pesquisa de campo realizada na viagem às cidades de Foz do Iguaçu, Ciudad Del Este e Puerto Iguazu. Nessa tríplice fronteira observamos como as práticas da informalidade se articulam em meio a táticas para burlar o poder hegemônico do governo e do comércio formal e ainda como acontecem os fluxos das mercadorias em um processo de globalização subalterna. Para manipular tal termo, cunhado por Ludmila Brandão, utilizamos as considerações a respeito da globalização (e seus 11 sinônimos) de Octavio Ianni, Renato Ortiz, Marshal McLuhan, Milton Santos e Anthony Giddens. O terceiro e último capítulo apresenta um histórico detalhado da China, justificado pela necessidade de compreensão dos fatores que contribuíram para o crescimento acelerado do país nas últimas décadas. Além disso, escolhi o gatinho da sorte Maneki Neko para tratar da potência dos objetos Made in China, de suas biografias e da materialização da globalização subalterna rascunhada no capítulo anterior. Amparado na obra organizada por Arjun Appadurai que discute a vida social das coisas e em Michel de Certeau com suas proposições a respeito das táticas dos sujeitos comuns que subvertem a ordem, ou seja, o hegemônico, pensei na representação de uma outra globalização pouco investigada pela academia em todas as áreas. Nas considerações finais, ou no fechamento, optei por apresentar o meu aprendizado durante todo esse percurso, relacionando as conclusões que apresentei durante todo o texto com a vivência que o trabalho me proporcionou e o aprendizado que fica a cerca do fazer pesquisa no contemporâneo. Boa leitura. 12 CAPÍTULO 1 – AQUI 1.1. O camelódromo de Cuiabá A virada do século XIX para o século XX marcou o crescimento urbano atrelado ao processo de industrialização e deslocamento das pessoas pelo mundo. Esses deslocamentos desencadearam um aumento nos problemas urbanos, as cidades se transformavam e foi preciso pensá-las a fim de minimizar os problemas da “nova” cidade. Dos estudos da Escola de Chicago até os dias atuais, muitos pesquisadores se debruçaram sobre as problemáticas das cidades e se utilizaram de diversas características das mesmas para desenvolver suas teses. Esses trabalhos servem para compreendermos como se deram esses processos e mais, o que eles nos dizem a cerca da cidade contemporânea e suas práticas. Décadas depois dos estudos de Robert E. Park, a modernidade em Cuiabá, assim como a brasileira chegará, especialmente, na década de 1970, quando a cidade apresentou as mais altas taxas de crescimento populacional do país, atingindo índices de 12% ao ano1. Um novo “problema” para a municipalidade decorrente desse crescimento populacional2, que se acentuará nas décadas seguintes em função de outros problemas de ordem nacional, foi a ocupação dos espaços públicos pelo comércio popular informal de comerciantes ambulantes. Esses ambulantes foram afetados diretamente pelo processo de modernização da cidade que resultou em várias tentativas de disciplinamento da atividade desses atores sociais por parte daqueles que detinham o poder de viabilizá-la. Os camelôs se apropriam das ruas, supostamente ordenadas pelo poder público, e as utilizavam em favor de suas práticas. Néstor García Canclini diz que a cidade moderna (a que não escapa ao controle), por vezes, deixa de ser moderna: O que era um conjunto de bairros se espalha para além do que podemos relacionar, ninguém dá conta de todos os itinerários, nem de todas as ofertas materiais e simbólicas desconexas que aparecem. Os migrantes atravessam a cidade em muitas direções e instalam, precisamente nos cruzamentos, suas barracas barrocas de doces regionais e rádio de contrabando, ervas medicinais e videocassetes (CANCLINI, 2008). 1 2 BRANDÃO, 1997, p. 70. BOMFIM, 2010, p. 97. 13 Os migrantes que Canclini aponta, em nosso caso, equivalem aos camelôs que também caminham nas mais diversas direções dentro da cidade e fora dela, instalando suas barracas por entre ruas e cruzamentos, vendendo seus produtos ilegais e transformando, a todo momento, os fluxos urbanos. Manuel Delgado, no livro Sociedades Movedizas, diz que nas cidades, mais precisamente, nas ruas, o que encontramos é uma vida coletiva que só pode ser observada no instante em que emerge, já que está destinada a se dissolver de imediato. Para Delgado (2007), a cidade não é um esquema de pontos, nem um marco vazio, nem um envoltório, tampouco uma forma que se impõe aos eixos, como pretendiam os urbanistas; e sim, uma ação interminável na qual os transeuntes reinterpretam a forma urbana a partir dos estilos com os quais se apropriam dela. Os “praticantes ordinários da cidade”, como nos diz Michel de Certeau (2007, p. 171), “cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano que escrevem sem poder lê-lo”, junto a outros corpos, escrevem uma história múltipla da cidade habitada, formada em fragmentos de trajetórias. Kevin Lynch (2005, p. 13), considera a cidade não como algo em si mesmo, mas como objeto da percepção dos seus habitantes. Estas perspectivas, concomitante com a apontada por Canclini, nos colocam diante menos de um problema e mais de um fenômeno a ser investigado. O ato de perambular pelas cidades comercializando produtos não era novo, advinha dos antigos mascates que andavam pelas estradas do Brasil levando seus produtos que dificilmente chegariam a esses lugares por outros meios. Os mascates, a nosso ver, tinham o papel de ligar produtos e pessoas de diferentes lugares (como ainda hoje fazem os camelôs, como vemos mais a frente). É como as raízes da globalização na visão de Serge Gruzinski (1999), no qual as grandes navegações, a “descoberta” das Américas e o escambo de iguarias marcaram os contatos e início da vida social das mercadorias pelo globo. Os mascates eram detentores de uma modernidade brejeira, das novidades da capital, do imaginário do que estava para além do horizonte, dos produtos que se convertiam em imagens do lado de lá. Ludmila Brandão, a propósito da “transformação” dos mascates em camelôs, descreve que, no século XX, no âmbito das transformações sociais, econômicas, culturais e urbanas, a figura do mascate foi paulatinamente escasseando e cedendo lugar à figura do camelô que, diferentemente do seu predecessor, ganha localização fixa em 14 algum ponto da cidade com grande circulação de pedestres. Enquanto o mascate visitava a conhecida freguesia, de porta em porta e com certa regularidade, o camelô fica, sistematicamente, à espera de seus fregueses, agora anônimos, nos pontos cotidianos de passagem (BRANDÃO, 2009, p. 240). Com o passar dos anos, o desenvolvimento das cidades e das estradas, os mascates foram gradativamente perdendo sua função. O campo perdia espaço para a cidade, o rural era engolido pelo urbano. Os produtos começaram a chegar por outros meios e mesmo as menores cidades deixavam de estar tão isoladas das demais. O capitalismo avançou, transformando-se aceleradamente, e nele não há espaços iguais para todos. Os mascates deram lugar aos atores sociais de que falamos no começo, os camelôs. É claro que não há uma ligação direta entre eles. O que vemos é uma aproximação, uma prática que se reconfigurou com os anos e continua viva na sociedade contemporânea. Eles são então, a subversão do capitalismo dentro dele próprio, o que sobra, faz a curva e entra novamente no sistema, sem impostos, sem taxas. É das práticas desses atores, no camelódromo de Cuiabá, que tratarei neste capítulo. Em abril de 1995, após inúmeros embates entre os “ambulantes” e o Poder Público Municipal, os camelôs, que transitavam pelas ruas e praças de Cuiabá vendendo suas mercadorias, foram transferidos para o local onde hoje encontramos o “Shopping Popular de Cuiabá3”. Entretanto, antes de ocuparem o atual prédio do “camelódromo”, ficaram por mais de três anos tentando, sem sucesso, acordos e concessões com os governantes da época. Em 1992, o então prefeito Dante Martins de Oliveira (figura nacionalmente conhecida por sua participação no processo de eleições diretas) inaugurou sua administração com a disposição de “limpeza” das ruas e praças de Cuiabá que significava, entre outras coisas, a remoção dos camelôs. Wilson Santos (que veio posteriormente a ser prefeito de Cuiabá), assumiu a Secretaria de Serviços Urbanos na administração Dante de Oliveira com a responsabilidade de coordenar o processo de negociação e posterior remoção dos camelôs do recém-tombado Centro Histórico da capital. Segundo Misael Galvão4, o discurso do Poder Público, na época, era o de que Cuiabá não comportaria a demanda de ambulantes nas ruas; eram muitas pessoas 3 Tratado daqui em diante por SP. Misael Oliveira Galvão, presidente da Associação dos Camelôs do Shopping Popular, participou de todo o processo de negociação até a remoção. Na época era conhecido como “líder de rua” (como o 4 15 transitando e obstruindo as frentes das lojas (obviamente desagradando aos interesses dos comerciantes legalizados). A remoção dos camelôs foi realizada em 26 de abril de 1995 sob forte esquema de segurança, com apoio da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso que, à força, retirou os camelôs do centro e os levou até a nova área imposta para a ocupação. Misael diz ainda que, na época, a área foi entregue apenas com o asfalto e dois banheiros, sem qualquer infraestrutura básica. Figura 1 Vista da região centro-sul de Cuiabá A postura opressiva adotada pelos então governantes reforça a principal característica do subdesenvolvimento, “a impossibilidade de uma organização social capaz de concentrar e dirigir os meios existentes em direção ao desenvolvimento da coletividade” (CASTELLS, 1983, p. 57). Na ocasião, ao invés de buscar medidas que atendessem às diversas demandas que envolviam a questão dos camelôs, preferiuse expulsá-los do convívio central, como se fosse possível dizimá-los da nova postura da cidade. próprio se intitula) e, posteriormente, assumiu o mandato de presidente da associação, cargo este que ocupa há mais de 12 anos. Em 2010, foi eleito Deputado Estadual por Mato Grosso. 16 Diante da situação cada vez mais difícil, os camelôs resolveram se organizar e criar a Associação dos Camelôs do Shopping Popular (ACSP). A operação desses usuários, “supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 2007, p. 37), já que foram retirados à força do centro5 (ponto marcado com a letra “A” na figura 01) e “acomodados” no bairro do Porto6 (ponto marcado com a letra “B” na mesma figura), resultou na transformação dos então ambulantes em “associados 7”, que passaram a articular uma parceria com o Poder Público para a construção do que hoje chamamos de Shopping Popular. A construção aconteceu com a ajuda de diversos setores, mas em sua maioria, com o capital investido pelos próprios associados da ACSP. Os ambulantes subverteram a ordem, não a rejeitando diretamente ou a modificando, mas a usaram para fins e em função de referências até nesse momento estranhas ao sistema do qual não podiam fugir. Estranhas porque na época, era inconcebível pensar uma organização comercial que não a de lojas bem estruturadas em prédios bem localizados. A ACSP, torna-se então, a CDL (Câmara dos Dirigentes Lojistas – instituição representante dos comerciantes lojistas de Cuiabá) subalterna. A propósito desse termo, fundamental para esta discussão e marco de minha perspectiva epistemológica, tratarei de contextualizá-lo para, depois, retomar o camelódromo a luz desse conceito. 1.2. O subalterno em questão 1.2.1. Gramsci, os conceitos de hegemonia e subalterno Na concepção de Antônio Gramsci, as classes sociais dominadas ou subalternas compartilham de uma visão do mundo que lhes é imposta pelas classes dominantes. A partir da leitura de Luciano Gruppi (1978) a propósito do conceito de hegemonia em Gramsci, farei algumas associações que servem como argumento para a compreensão das práticas dos camelôs como subalternas e posterior discussão da globalização desses atores sociais como sendo também subalterna. 5 Local no qual há grande carga simbólica na relação que a cidade estabelece com seus habitantes, já que ali surgiu Cuiabá e dali a mesma cresceu. A nosso ver, é como seu a própria cidade degredasse seus habitantes, essa parcela da população que subvertia a onda modernizadora e “sujava” a capital. 6 Ponto que, no passado, conectava a cidade com o resto do mundo por meio do rio Cuiabá e nesse período era marginalizada por causa de seus transeuntes. 7 Essa denominação é usada pelo presidente da associação para referir-se aos camelôs vinculados ao Shopping Popular. 17 Conforme nos diz Gruppi a cerca dos escritos de Gramsci, Vemos [...] a ideologia das classes ou classes dominantes chegar às classes subalternas, operária e camponesa, por vários canais, através dos quais a classe dominante constrói a própria influência ideal, a própria capacidade de plasmar as consciências de toda a coletividade, a própria hegemonia. Um desses canais e a escola. [...] Um outro canal é a religião, a Igreja. [...] Outro canal de educação é o serviço militar. [...] É preciso estudar o modo pelo qual se expressa uma consciência ainda subalterna; deve ser levado em consideração o elemento de espontaneidade relativa nela presente, já que tão-somente a partir dessa consciência elementar poderemos guiar as massas até uma consciência crítica. (GRUPPI, 1978, p. 68). Não retornarei a discussão marxista que permeia a obra de Gramsci, mas é claro que também não a nego e marco aqui sua importância. O que interessa é ver como as anotações desse autor em seus Cadernos do Cárcere servem para observarmos o desencadeamento que constituiu o camelódromo. A força hegemônica aplicada sobre os camelôs pelos governantes da época foi respaldada pelo discurso de preservação do patrimônio histórico de Cuiabá, cujo Centro Histórico acabava de ser oficialmente tombado pelo IPHAN. Como em outras cidades no Brasil, o discurso da preservação do patrimônio, um discurso ideológico que se converteu em hegemônico foi a justificativa que faltava para concretizar a expulsão dos camelôs do centro da cidade. Essa “capacidade de unificar através da ideologia e de conservar unido um bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por profundas contradições de classe” (idem, p. 70) é a hegemonia para Gramsci. Os governantes articulados com o interesse privado dos comerciantes conseguiram, naquele momento, realizar esse feito da união pela força. Através de sua ação política, ideológica, cultural, a classe hegemônica em questão conseguiu manter articulado esse grupo de forças heterogêneas, impedindo que o contraste existente entre tais forças explodisse, “provocando assim uma crise na ideologia dominante” (ibidem). A criação da ACSP pode ser compreendida como uma reação desse grupo de camelôs, pertencente ao conjunto das classes subalternas, como uma crítica à concepção de comércio imposta pelas classes dominantes, dessa forma, as classes subalternas em questão superam as classes dominantes, tendo em vista a construção de uma “concepção nova” de comércio, na qual se estabeleceu uma unidade entre a teoria (as leis que fundamentavam a expulsão em nome da preservação, bem como a organização dos subalternos enquanto entidade jurídica) 18 e a prática (o uso da teoria em prol da manutenção de reconfiguração da venda dos produtos comercializados), entre a política e a filosofia. Mesmo com tal frente ao hegemônico, os associados continuam em situação subalterna, ao passo que o discurso preservacionista, que já não dava mais conta da ideologia “anti-camelôs”, renova-se sob outras formas: “anti-pirataria”, “antisonegação de impostos”, entre outras, das quais falarei mais no decorrer da dissertação e que corroboram para a manutenção dos camelôs e suas práticas em posição subalterna, à margem dos fluxos hegemônicos mundiais. 1.2.2. Os Estudos Culturais Os Cultural Studies surgem na Grã-Bretanha, como um campo de estudos, por volta da segunda metade dos anos 1950, como uma crítica ao elitismo de F. R. Leavis (1895 – 1978) e seus contemporâneos, para quem a cultura era propriedade de uns poucos homens de valores refinados. Em 1957, Richard Hoggart publicou o livro The Users of Literacy: Aspects of Working-Class Life with Special References to Publications and Entertainments, sendo este considerado, por alguns pesquisadores da área, o marco inicial dos Estudos Culturais. Ele almejava ultrapassar o positivismo científico da objetividade sociológica e concentrar-se na “subjetividade”, no sentido de analisar a cultura em relação a vidas individuais. Nesse livro, Hoggart estuda a influência da cultura difundida em meio à classe operária pelos modernos meios de comunicação. [...] A ideia central que ele desenvolve é que tendemos a superestimar a influência dos produtos da indústria cultural sobre as classes populares. (MATTELART e NEVEU, 2004, p.42) Hoggart, mesmo manifestando sua atenção aos receptores, tem suas hipóteses e análises marcadas pela desconfiança com a industrialização da cultura. De acordo com Armand Mattelart e Érik Neveu (2004), a própria ideia de resistência das classes populares, que embasam sua abordagem das práticas culturais populares, sustenta-se nessa crença. Hoggart previne ao leitor o uso dos juízos de valor na utilização de termos antinômicos tais como “são”, “decente”, “sério” e “positivo” de um lado, “vazio”, “debilitante”, “trivial” e “negativo”, do outro. O conceito de resistência à ordem cultural industrial é consubstancial à pluralidade de objetos de pesquisa que distinguirão os domínios explorados pelos estudos culturais durante 19 mais de duas décadas. Ela evoca a convicção de que é impossível prescindir a “cultura” das relações de poder e das estratégias de mudança social. Além de Hoggart, Raymond Williams é outro importante nome fundador dos Estudos Culturais ingleses. Williams, como Hoggart8, era ligado à formação de adultos das classes populares e ao renascimento das análises marxistas com a New Left Review nos anos 1960. Advindos das classes trabalhadoras inglesas, relacionaram-se com o leavisismo de maneira ambivalente, ao passo que, mesmo concordando que os textos canônicos ingleses detinham maior riqueza cultural que outros, por exemplo, a literatura produzida para as massas, ou todo e qualquer produto considerado massivo, reconheciam que essa maneira de pensar marginalizava as formas culturais das classes trabalhadoras. Em seu livro Culture and Society (1958), Williams arquiteta um histórico do conceito de cultura, concluindo com a ideia de que a “cultura comum ou ordinária”, bem como o mundo das Artes, Literatura e Música podem ser observadas como um modo de vida em condições de igualdade de existência (cf. ESCOSTEGUY, 2010, p. 28). Sua contribuição teórica é fundamental através de um olhar diferenciado sobre a história literária. Ele entende a cultura como uma categoria-chave que relaciona investigação social e análise literária e ainda a dificuldade da identificação dos efeitos culturais das desigualdades sociais. Três anos depois, publica The Long Revolution, no qual destaca a força do debate à época a respeito do impacto cultural dos meios massivos. Para Stuart Hall, esse livro transformou toda a orientação da discussão de uma definição moral-literária para uma definição antropológica. Segundo Escosteguy (ibidem), “essa mudança no entendimento de cultura fez possível o desenvolvimento dos estudos culturais”. O terceiro “pai” dos Estudos Culturais é Edward P. Thompson. Seu trabalho, conforme disseram Mattelart e Neveu (2004), pode ser delineado como a alternativa de uma história situada na vida e nas práticas de resistência das classes populares. O mais conhecido é The Making of the English Working Class (1963), considerado um clássico da história-social com reflexão sobre a sócio-história de um grupo social. Ele foi um dos fundadores da New Left Review e, com Williams, compartilhava a vontade de romper com a interpretação da cultura como uma variável submetida à economia. Ambos entendiam a cultura como 8 E também Thompson, conforme veremos a seguir. 20 uma rede vivida de práticas e relações que constituíam a vida cotidiana, dentro da qual o papel do individuo estava em primeiro plano. Thompson resistia ao entendimento de cultura enquanto uma forma de vida global. Em vez disso, preferia entendê-la enquanto um enfrentamento entre modos de vida diferentes (ESCOSTEGUY, 2010, p. 28-29). A fim de aproximar ainda mais a discussão de Williams e Thompson, Mattelart e Neveu (2004, p.47) afirmam que encontra-se a visão de uma história construída a partir das lutas sociais e da interação entre cultura e economia, em que aparece como central a noção de resistência de uma ordem marcada pelo “capitalismo como sistema”. Entre os intelectuais de esquerda, o período é então ainda dominado pelo debate sobre a antinomia sumária que opõe a “base material” da economia á cultura, fazendo desta última um simples reflexo da primeira. Sair desse dilema impossível e redutor é um dos desafios com que os estudos culturais terão de se enfrentar. Alguns anos mais tarde, o trio de pais fundadores se completará com um quarto (e crucial) pensador: Stuart Hall. Pertencente à geração que não participou diretamente da Segunda Guerra Mundial, Hall foi uma figura-chave das revistas da nova esquerda intelectual, tendo sua maturidade na produção científica no limiar dos anos 1970. Ao substituir Hoggart na direção do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS)9, de 1968 a 1979, fomentou, o desenvolvimento da investigação de práticas de resistência de subculturas e de análises dos meios massivos, identificando seu papel central na direção da sociedade; exerceu uma função de “aglutinador” em momentos de intensas distensões teóricas e, sobretudo, destravou debates teórico-políticos, tornando-se um “catalizador” de inúmeros projetos coletivos (ESCOSTEGUY, 2010, p.29). Hall, apesar de herdeiro de Raymond Williams e sua abordagem culturalista dos Cultural Studies, não despreza a contribuição dos estruturalistas no campo dos Estudos Culturais, que voltam seus olhares para o exame atento de práticas significantes e processos discursivos. De acordo com Escosteguy (ibidem), “é uma concepção particular de cultura que gera a singularidade do projeto dos Estudos Culturais e seu enfoque sobre a dimensão cultural contemporânea”. Essa afirmação nos ajuda a compreender um pouco da mistura de realidades que constituíram (e ainda constituem) os Estudos Culturais. As práticas culturais são analisadas simultaneamente como formas simbólicas e materiais. Assim sendo, a criação cultural encontra-se localizada no espaço econômico e social no qual a atividade se 9 De acordo com Mattelart e Neveu (2004, p.56) o CCCS nasce em 1964, na Universidade de Birmingham, liderado por Hoggart, com herança explicitamente leavisiana. 21 desenvolve. Dessa forma, a sociedade pode ser vista como palco onde as forças econômicas, políticas e culturais competem entre si. Viajando da Europa para a América Latina vamos pensar como os Estudos Culturais reverberaram por aqui. Composta majoritariamente por países de passado colonizado, a América Latina desfruta de uma pluralidade sociocultural imensa. É um misto de línguas e práticas que constituem as relações entre si. A esse propósito, evoco Moreiras para apresentar como aconteceu por cá. Alberto Moreiras (2001), na introdução de seu livro “A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos”, apresenta um panorama de sua compreensão a cerca dos estudos culturais latino-americanos na contemporaneidade. Ele trabalha com a posição latino-americanista do pensamento, o qual define como “a soma total das representações que dizem respeito à América Latina enquanto objeto do saber” (idem, p. 36). Segundo ele, o pensamento a cerca da América Latina é um dos campos em que a separação entre trabalho intelectual e seus próprios meios de produção é forçosamente revelada. Tal separação surge como uma espécie de expropriação, um sintoma de expropriação, na lacuna constitutiva entre o discurso teórico e o campo de reflexão. Levando-se em consideração que o latino-americanismo busca, em todo caso, algo como a apropriação de um objeto encontrado (latino-americano), a distância entre o objeto e a intenção apropriadora permanece irredutível. A irredutibilidade hoje tornou-se tema e o próprio nome do jogo latinoamericanista, em debates ou séries de debates que envolvem a relativa substituição do aparato tradicional dos estudos literários pelos estudos culturais na reflexão transnacional sobre a cultura latino-americana. Esses debates envolvem ainda o peso, dentro da reflexão latino-americanista, das correntes intelectuais que parecem fluir por demais unilateralmente do discurso universitário norteamericano em direção a diferentes academias latino-americanas. (2001, p. 11) As “condições de possibilidade” do discurso latino-americanista transformaram-se nas últimas décadas. Todo o discurso identitário localizado em meados da década de 80 como “modelo de análise epistemológica geral” cai por terra nos anos 2000 considerando a própria instabilidade da generalidade e sua consequente morte. “Ou seja, o latino-americanismo vive, se de fato isto é vida, em uma certa precariedade de experiência – que, liberta pelo desvanecimento do sujeito crítico, envolve a dissolução do próprio objeto crítico” (idem, p.12). Essa compreensão dos estudos latino-americanos serve para pensarmos no modo como 22 as constituições epistemológicas, no decorrer da história, foram descentralizando da Europa e ganhando o mundo. O debate literatura/estudos culturais10 é a especificidade da função nas ciências humanas. Cabe ressaltar que, neste trabalho, bem como no livro de Moreiras (2001), tomamos os estudos culturais não apenas como um retorno às raízes clássicas, mas como o aparato que pretende estudar a cultura e suas manifestações. Fugirei aqui dos “conceitos já batidos de identidade e diferença” (idem, p. 14) a fim de tentar entender, com a ajuda dos autores que virão, o “subalterno” como crítica da modernidade. Talvez estejamos mais próximos dos indianos que cunharam (inspirados por Grasmci) os estudos subalternos do que dos europeus que tentam entender porque a modernidade não se realiza completamente aqui. Jamais fomos modernos? Creio que a América Latina, como já nos disse Canclini, experimentou a modernidade de outra maneira e os estudos que a criticam também podem nos servir para entender onde estamos no contemporâneo. A fim de esquematizar o embate, com disputa de hegemonia, entre os estudos literários e os estudos culturais11, Moreiras (idem, p.18) adota as nomenclaturas “poder” e “força”. Segundo ele: fez-se visível uma certa violência, que assumiu duas caracterizações empíricas: por um lado, a violência divisória e fundadora dos estudos culturais, a que chamo força; por outro, a violência dividida e conservadora dos estudos literários, a que denomino poder. A divisão não foi, e não é, pura, mas sim está marcada desde o início por uma espécie de contaminação mútua. O “poder” refere-se à posição hegemônica do literário; a “força”, à posição irruptiva dos estudos culturais. [...] A irrupção do novo logo se tornou conservadora, ao passo que a preservação do antigo revelou guardar em si, mesmo em seu espírito de resistência, formas de irrupção novas ou possíveis. Força e poder então se misturavam de maneira complexa. Desde sua origem, os estudos culturais advinham de uma matriz literária (leavisismo) e, por outro lado, os estudos literários se voltaram cada vez mais para o culturalismo, dessa forma, no decorrer das décadas, tornou-se cada vez mais fácil e difícil, ao mesmo tempo, separar a força do poder. Moreiras (idem, p.20) continua: 10 Como vimos no começo deste capítulo, tal debate desencadeou a estruturação do campo dos estudos culturais e seus desdobramentos. Vemos nas páginas que seguem minha tentativa de compreender esse percurso epistemológico a fim de chegar aos Estudos Subalternos na América Latina que servirão como lente para analisarmos o camelódromo de Cuiabá como produtor de poéticas informais e sua relação com o mundo globalizado através dos produtos Made in China. 11 Moreiras usa como exemplo a discussão oriunda do encontro da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), realizada no Rio de Janeiro, em agosto de 1996. 23 a discussão [...] entre poder e força, entre estudos literários e estudos culturais, tomou um aspecto muito distinto ao se reproduzir como querela transnacional de alguns representantes dos estudos culturais na América Latina contra o poder constituído da academia, em grande parte norte-americana. Mas creio que essa transformação tenha sido mais uma volta dentro da mesma polêmica, e não algo alternativo ou suplementar. Em ambos os casos temos duas formas de violência – uma divisória e fundadora e outra dividida e conservadora –, e em ambos os casos há uma reação a um deslocamento tendencial ocasionado pela irrupção, no campo institucional, de uma estrutura grafemática de caráter ameaçador e invasivo. Esse tipo de embate desencadeia uma série de reflexões a respeito das “condições mínimas para uma crítica efetiva do saber no mundo contemporâneo” (ibidem). Há uma tentativa por parte dos latino-americanistas de libertação do saber norte-americano, pelo menos no que diz respeito a eles próprios. Essa tentativa abre os horizontes dos estudos acadêmicos para novas perspectivas, como que chegando o momento de ouvir as outras vozes do mundo. Moreiras encaminha essa discussão para sua compreensão do que disse Immanuel Wallerstein a propósito do termo “geocultura”. Segundo o autor, geocultura é uma “estrutura cultural” do sistema socioeconômico mundial. Como dito anteriormente, as aproximações teóricas aqui propostas misturam-se com diferentes autores e períodos e, talvez, seja essa mistura que reflita de maneira mais precisa o que é o “pensar” sobre a cultura contemporânea na América Latina. Para tal compreensão, como nas linhas de Moreiras, opto por utilizar outros conceitos e autores, por uma aproximação de ideias e gostos. Após esse panorama dos estudos culturais, é preciso entrar na seara dos estudos pós-modernos para finalmente chegar aos estudos subalternos e aplicá-los aos fenômenos do camelódromo. De antemão aviso que minha intenção nunca foi, e nem será, falar pelos camelôs. Minha intenção sim é falar das práticas desses atores sociais da maneira mais próxima possível, possibilitada pela metodologia adotada e pelo tempo de pesquisa. A partir dos anos 90, os Estudos Culturais oferecem uma perspectiva mais ampla da compreensão, aglutinando instrumentos capazes de desmistificar e deshierarquizar o contemporâneo servindo como ponto de partida para estabelecimento de uma política da diferença que desafia a hegemonia nordocêntrica, redefinindo a modernidade em novos termos, garantindo voz a sujeitos anteriormente sem voz. 24 Os Estudos Subalternos encontram-se razoavelmente localizados na discussão pós-colonial que, por sua vez, é vista como uma das críticas à modernidade. Há que se considerar a diferença entre “modernidade” e “modernismo”, sendo o primeiro em maior parte político ou ideológico enquanto o segundo é acima de tudo cultural e estético. Ambos coincidem nos casos da arquitetura e do urbanismo e conectam esse projeto a termos chave como razão, ciência, técnica, progresso, emancipação, sujeito, historicismo, metafísica, entre outras. Angela Prysthon (2010), em seu artigo “Histórias da teoria: os estudos culturais e as teorias pós-coloniais na América Latina” apresenta um percurso teórico que nos possibilitará entender, de maneira esquemática, a linha de raciocínio da autora que auxiliará nesta discussão. Os Estudos Culturais estabelecem um diálogo intenso com a teoria francesa12. Essa associação leva a outra que, segundo a autora, é ainda mais dominante com os conceitos relacionados ao pós-moderno. “A arte e a cultura pós-modernistas implicam na prática da citação, na recuperação lúdica do passado, na des-hierarquização, no des-centramento das formas, [...] fragmentação dos sujeitos e das experiências, esquizofrenia, micropolitização do social, etc.” (idem, p. 5). Prysthon (ibidem) retoma Jean-François Lyotard (1979) quando afirma que a pós-modernidade é a época onde já não existem mais metanarrativas, onde os jogos de linguagem, múltiplos e heteromórficos predominam numa sociedade pontilhista, na qual é impossível estabelecer regras gerais. Ou seja, nesta concepção está incluída para além dos jogos de linguagem pura e simplesmente, a tendência para a pulverização dos grupos que os praticam e o desmantelamento dos valores universais e absolutos. No diálogo proposto por Prysthon entre Lyotard e Andreas Huyssen (1991), extraímos a ideia de “arqueologia da modernidade13” que compreende o pósmodernismo como uma derivação do pós-estruturalismo e, a partir dele, entendemos então o pós-estruturalismo como uma parte importante da interpretação do pósmodernismo: a releitura. “Ou seja, fazer arqueologia da modernidade é em si um procedimento pós-moderno. Nesta interpretação, contudo, importa mais esta teoria como sintoma da cultura contemporânea, que como conjunto de hipóteses e 12 Através de nomes como Althusser, Foucault, Barthes, Lyotard e Derrida, conforme Prysthon (2010, p. 4). 13 Essa linha de pensamento entende a teoria pós-estruturalista como analítica da modernidade, sendo então o pós-estruturalismo uma fronteira da modernidade, e não um fragmento do pósmodernismo. 25 proposições” (idem, p. 6). Em outras palavras, a releitura é uma característica pósmoderna que vista em diversas manifestações do comércio popular de Cuiabá, mais especificamente no camelódromo da capital que trataremos mais adiante. Segundo Prysthon, no final do século passado, o pós-modernismo conseguiu, enquanto conceito/teoria/estilo, ocupar certas funções dentro da cultura, como “dominante cultural do capitalismo transnacional, paradigma ideológico do neoliberalismo, tendência artística de certas facções das elites, entre outras” (ibidem). Porém, o pós-moderno não conseguiu comportar certas manifestações das culturas periféricas. Do lado de cá do globo, pensadores latino-americanos tentam aproximar o pós-moderno do hibridismo, associá-lo a certas evoluções do tecido social e ainda romper com o neoliberalismo. Prysthon (idem) afirma que “fica patente a insuficiência do conceito [...] no sentido de apresentar e propor o remapeamento teórico do mundo, uma reorganização dos cânones culturais, uma deshierarquização geopolítica”. Neste ponto podemos pensar na aproximação de Moreiras e Prysthon, ao passo que, as teorias apresentadas dão conta de pensadores europeus, com realidades e percursos históricos diferentes dos nossos das águas de cá. 1.2.3. Os Estudos Subalternos Por volta da década 70, na Índia, a expressão “subalterno” passa a ser utilizada como alusão às pessoas colonizadas do subcontinente sul-asiático, e possibilita um novo ponto de vista na história dos locais dominados, vistos até esse momento apenas pela perspectiva dos colonizadores e seu poder hegemônico. Essa crítica à historiografia vigente foi direcionada a duas escolas: a Escola de Cambridge e a escola dos historiadores nacionalistas. Segundo Dipesh Chakrabarty14, ambas as aproximações eram elitistas e não contemplavam a perspectiva dos que não estavam falando. Ranajit Guha15, no início da década de 80, propõe os Estudos Subalternos como tentativa de intervir no modo como a história da Índia estava sendo contada. Em parceria com outros estudiosos indianos publica Subaltern Studies, uma 14 Dipesh Chakrabarty é historiador indiano, professor da Universidade de Chicago e tem contribuído para o debate a cerca da teoria pós-colonial e os estudos da subalternidade. 15 Ranajit Guha é professor e pesquisador em várias universidades na Índia, Inglaterra, Estados Unidos e Austrália. 26 coletânea de textos que mudaram para sempre os rumos desse campo de estudos. Essa intervenção na historiografia sul-asiática espraiou pelos continentes e rapidamente foi adotada por diversos pensadores, inclusive latino-americanos16. O Grupo de Estudos Subalternos idealizavam a espontaneidade da mobilização popular e, ao insistir que os subalternos tivessem uma ação humana positiva e pudessem ser pensados como sujeitos históricos autônomos, o próprio grupo colocava-se em uma posição subalterna dentro da historiografia (MALLON, 2001, p. 129). Gayatry Spivak17, Dipesh Chakrabarty e Ranajit Guha utilizam “subalterno” para se referir a grupos marginalizados que não possuem voz ou representatividade, em decorrência de seu status social, em termos de classe, casta, idade, gênero e ofício. Para Florência Mallon (2001), quando os subalternos lutam politicamente para criar suas próprias organizações cada vez mais autônomas, o fazem em diálogo com e em luta contra, as formas políticas dominantes. A reflexão a que chegamos neste momento é de aproximação entre realidades. Embora a maioria dos países da América Latina há muito tenham deixado de ser colônias, muito antes da Índia, é inegável que a experiência da colonização ainda marca singularmente cada um destes países, além de lidar seguidamente com formas neo-colonizadoras interna ou externamente. Spivak18, mulher e indiana, entende o termo “subalterno” para além de oprimido, entende como uma representação aos que não conseguem lugar em um contexto capitalista, excludente, globalizante e totalitário. Para a autora, o subalterno não pode falar, pois, se o fizer, já não o é. Ele precisa de um representante por sua própria condição de silenciado. Dessa forma, ela propõe uma discussão a respeito da capacidade de autorrepresentação do subalterno, teorizando “quais são as possibilidades do subalterno de se subjetivar autonomamente19”. Por essa leitura de Spivak, o que tento aqui é atividade contínua de análise e reflexão a cerca dos subalternos em nossa sociedade, jamais falando “sobre” eles. 16 São exemplos John Baverly, Robert Carr, José Rabasa, Ileana Rodrigues, Javier Sanjines, entre outros. 17 Gayatri Chakravorty Spivak é crítica literária e professora na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. Sua obra “Can the subaltern speak?” é mundialmente conhecida e considerada um texto de fundação do pós-colonialismo. 18 “Can the subaltern speak?” foi traduzido, em 2010, pela Editora UFMG. 19 FIGUEIREDO, 2010, p. 86. 27 Entendemos então o pós-colonial na América Latina, no nosso caso brasileiro, como uma “descolonização intelectual” (CHAKRABARTY, S/D, p. 4). Por uma questão de aproximação, entendo estarmos mais próximos do que escreveram os indianos do que da realidade europeia da maioria dos pensadores contemporâneos. Como vimos, o processo de “criação” do camelódromo de Cuiabá se deu mediante diversas pressões hegemônicas municipais, colocando os camelôs em uma situação “sem voz”. Entretanto, a resposta com a criação da ACSP e a contínua insubordinação, marca a nosso ver, a tentativa dos subalternos de fala. 1.3. O camelódromo hoje Nesses mais de quinze anos, o Shopping Popular tem realizado melhorias, principalmente de infraestrutura a fim de melhor atender aos seus usuários e clientes. Sua vitalidade comercial é evidente, pelo trânsito de clientes e trabalhadores que abriga, em número cada vez maior, já sendo apontado como o maior centro popular de compras do Estado. Definir esse grande prédio conceitualmente nos aproxima das proposições de Michel de Certeau20 referentes a espaço. Para Certeau espaço é todo “lugar praticado”, isto é, todo lugar que traz, em si, o “peso” da vivência de seus praticantes. Nele ocorrem “os cruzamentos dos móveis [e é] de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que [ali] se desdobram” (CERTEAU, 2007, p. 202). Esses movimentos são determinantes na existência do espaço. Dessa forma, o camelódromo só existe porque ali transitam diariamente milhares de pessoas comprando, vendendo, procurando, trabalhando, enfim, “vivenciando” aquele espaço. Pensando um pouco além com o aporte de Certeau posso dizer que há entre a cidade e o SP uma estreita relação. Uma espécie de tríplice operação do discurso utópico urbanístico21 que reitera a ideia de subversão da ACSP. Uso aqui apenas dois, dos três conceitos trabalhados pelo autor, por entendermos que são mais próximos de nossa discussão. 20 Pode parecer contraditório o uso de alguns autores europeus diante minha proposta de leituras “subalternas”, porém, esse distanciamento só reforçaria uma discriminação. Assim sendo, utilizo concomitantemente todos àqueles que contribuírem para a discussão, sem juízos ou prejuízos para a proposta epistemológica. 21 O que para Certeau trata-se de um discurso, Max Weber (1979) entende como um complexo de caracteres que formam o modo de vida da cidade. 28 A primeira delas é “a produção de um espaço próprio” (CERTEAU, 2007, p. 173) que organiza racionalmente a cidade recalcando todas as “poluições físicas, mentais ou políticas que a comprometeriam”. Ora, se o propósito do poder público era “limpar o centro”, o que se fez no camelódromo foi criar também um “espaço próprio”, um prédio que abrigaria os degredados e suas práticas. A subversão está na contínua quebra do discurso utópico urbanístico, que teve então que lidar com um imenso galpão erguido por centenas de braços. Esse galpão comporta uma parcela das práticas da cidade, essa “Cuiabá de consumidores22” que mantém o comércio informal praticado no SP e o legitimam, nesse espaço próprio criado pelos associados a fim de resignificar o lugar que lhes foi “dado” na cidade. A segunda operação é “estabelecer um não-tempo”, ou seja, “um sistema sincrônico, para substituir as resistências inapreensíveis e teimosas das tradições”. Nesse ponto podemos pensar na “chegada” da modernidade à Cuiabá, a necessidade de identificar-se com suas irmãs mais velhas, sábias e limpas, sem o traço de cidade retrógrada e atrasada. É nesse não-tempo da cidade que a criação da ACSP e a construção do SP imprimem ao mercado informal um novo tempo, visando o crescimento e modernização (a cidade se moderniza e os camelôs também). Se era tempo da cidade mudar, era então, tempo dos camelôs, “recomeçarem”. Portanto, se pensamos a relação entre o “espaço” e a cidade, podemos inicialmente constatar que tratamos de um terreno de práticas, de usuários diversos que transitam entre um e outro sem preocuparem-se com demarcações, a vivência é múltipla e sem um sentido único, caminha-se pela cidade e pelo SP ao mesmo tempo, sem “ler” os caminhos nesse imenso texto cultural. Com as proporções de um pequeno Shopping Center, o “camelódromo” ou Shopping Popular, hoje, consiste num grande galpão com portas “de correr” verticais em toda sua extensão exterior que abriga, dentro de si, as bancas individualizadas de metal (onde ficam as mercadorias), as lanchonetes e restaurantes (ao modo de uma praça de alimentação horizontal), os estacionamentos improvisados e outros espaços de comercialização. Na parte “dos fundos”, encontramos o acesso ao prédio da ACSP. Cada associado 22 O termo faz alusão à discussão de Max Weber (1979, p.72) a propósito dos conceitos e categorias da cidade. Para ele, uma “cidade de consumidores” remete às “cidades de principado” e são os conglomerados urbanos que se sustenta economicamente, em sua maioria, de consumidores e pensionistas do Estado. Porém, não acreditarmos que Cuiabá seja apenas uma cidade de consumidores, mas tal perspectiva corrobora com a discussão a cerca do SP e suas práticas. 29 colabora mensalmente com a taxa de duzentos e setenta reais para a manutenção do espaço e pagamento dos funcionários da associação. Figura 2 Vista superior do atual prédio do Shopping Popular de Cuiabá Figura 3 Entrada lateral do Shopping Popular Atualmente, no SP, existem dois tipos de bancas (ou boxes) utilizadas pelos associados: as mais antigas (figura 04), que são caixas metálicas com abas laterais e superiores que abrem e fecham, funcionando ora como container dos produtos armazenados, ora como banca de mercadorias à vista; e as mais novas (figura 05), 30 que funcionam como “minilojas”, nas quais o vendedor além de possuir bancadas em vidro que funcionam como vitrines e prateleiras, ainda dispõem da opção de ficar dentro da banca (como podemos ver nas figuras abaixo). Todas as bancas são igualmente verdes e não podem ser pintadas se não dessa cor. Figura 4 Modelo de banca antiga Figura 5 Modelo de banca nova 31 Retomando Certeau, as bancas têm seus “lugares”. Para o autor um lugar “é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência” (CERTEAU, 2007, p. 202). Cada banca tem seu lugar, se acham umas ao lado de outras, situadas num lugar “próprio” e distinto que as definem. Entretanto, ainda que as bancas ocupem um lugar nessa organização (lugar enquanto localização), ela se constitui como espaço desde quando nela acontecem vivências e práticas diversas. As bancas ocupam lugares, mas são, efetivamente, espaços, ou seja, lugares praticados. As bancas são dispostas lado a lado e “fundo com fundo” formando fileiras duplas com corredores paralelos entre si e algumas passagens transversais, por onde transitam os clientes. As sinalizações existentes (nome e/ou número da banca) permitem aos clientes se localizarem facilmente (após um primeiro contato com a engenharia do espaço). As mercadorias, por sua vez, são organizadas cada banca a sua maneira, de acordo com a observação e prática dos vendedores, que, é claro, privilegiam as novidades expondo-as na frente, entre outros pequenos truques de publicidade. Figura 6 Prédio da ACSP 32 Os números23 do SP surpreendem. São 392 associados registrados que geram mais de 1200 empregos diretos (são vendedores, técnicos entre outros profissionais prontos para atender as demandas dos clientes). Por dia, circulam em média 10.000 pessoas pelo espaço, nos fins de semana esse número duplica. Próximo a grandes datas comemorativas (como o dia das mães, por exemplo), chegam a circular, em um só dia, mais de 30.000 pessoas por entre os becos e corredores do SP. Noventa e cinco por cento dos associados possuem máquinas de cartões de débito/crédito como uma das formas de pagamento para os clientes. Os estacionamentos contam com cerca de 300 vagas para veículos, tanto de compradores como dos próprios associados. Além disso, o SP ainda conta com noventa e três câmeras de segurança que o monitoram integralmente. Em dezembro de 2010, por exemplo, um locatário de uma banca assassinou um cliente dentro do SP e, graças ao sistema de segurança, todo o crime foi registrado, ajudando a polícia nas investigações. Nos estacionamentos, seguranças da associação (como na figura 07) fazem rondas por entre os carros, cuidando da segurança no local. Figura 7 Segurança no estacionamento 23 Todos fornecidos pelo presidente da ACSP em entrevista concedida em 28 de agosto de 2010. 33 Figura 8 Estacionamento O caráter informal e clandestino garante a principal característica dessas mercadorias, vendidas pelos camelôs: o preço mais baixo que o de mercado e, consequentemente, acessível. Para os consumidores do SP, as mercadorias expostas e vendidas no camelódromo representam o acesso a produtos globalizados, em geral fabricados na Ásia e distribuídos por todo o mundo, chamados aqui de Made in China24. Esses produtos materializam o processo de globalização mundial que integra mercadorias, serviços e pessoas por e entre o mundo, derrubando fronteiras e usufruindo das tecnologias da informação que transformam o espaço e o tempo. Os Made in China, estigmatizados como produtos de “baixo valor”, constituem o resultado das trocas econômicas informais e, dessa forma, pouco valorizados socialmente. Essas mercadorias circulam por todo o mundo, conectando cidades separadas geograficamente, mas que possuem um “nó” que as integra, um ponto de convergência e dispersão de mercadoria (e, consequentemente, de informações) que redefine as relações da cidade com o mundo. O camelódromo serve então como “porta” de entrada para a tecnologia estrangeira, já que vende aquilo que não se produz aqui (ou oferece opções para 24 O capítulo 3 será dedicado integralmente a essas mercadorias e suas relações com a globalização, tendo como exemplo o “Gatinho da Sorte” ou Maneki Neko. 34 todos os bolsos e gostos). Ele retira Cuiabá da margem25 dos fluxos de informação ao passo que disponibiliza a venda de tecnologias produzidas do outro lado do globo, mas isso discutirei depois. Pensando um pouco mais na relação dos consumidores do SP com o espaço, podemos constatar que a maioria dos clientes do SP entrevistados procuravam o camelódromo com um objetivo definido, com um produto em vista. Para tal, eram estimuladas pelos mais diferentes impulsos, seja a busca pelo menor preço ou ainda a “exclusividade” e “praticidade” do produto a venda no SP. Um bom exemplo disso são os aparelhos chamados MP726, que são encontrados no camelódromo (ou pela internet) e acumulam em si as funções de telefone celular dual sim (dois chips telefônicos GSM funcionando simultaneamente em um só aparelho), câmera fotográfica, filmadora, TV, reprodutor de MP3 entre outros recursos que o tornam algo muito além de um simples telefone celular. Ele é uma espécie de “híbrido Made in China” que, em Cuiabá, só se encontra no SP. Aqui, assim como nos “shoppings tradicionais”, é frequente a clientela que vai apenas para “dar uma olhada” e passear, de todo modo se expondo à possibilidade de ser “afetado” por alguma novidade ou produto. Parece que esse tipo de visita, espécie de "deambulação”, é menos provável, porém existe. Um frequentador assíduo do SP nessa situação de circulação errante se coloca mais disponível para as mercadorias do que ao contrário (o que se diz correntemente), uma vez que são eles que se deixam estimular pelos objetos a ponto de o adquirirem mesmo quando não havia uma disposição prévia para isso. Temos então um espaço que, curiosamente, transita entre a legalidade e a clandestinidade, uma espécie de “mercado cinza”, como nos diz Arjun Appadurai (2005, p. 58), esse mercado que não é totalmente negro (imerso na criminalidade), mas também não é totalmente branco (legalmente realizado), tornado-se cinza, uma vez que foi construído com o apoio da Prefeitura da cidade (portanto, existindo legalmente), mas que vende mercadorias, em geral, adquiridas no Paraguai27, contrabandeadas para o Brasil (e pelo Brasil) e 25 A internet também desempenha esse papel em todas as cidades conectadas, já que a margem dos fluxos da informação representa o lugar desconectado (virtual e espacialmente) do resto do mundo. 26 Devido ao grande sucesso desses aparelhos, a tecnologia evoluiu e encontramos hoje a venda diversos MP’s, ao passo que, quanto maior o número de funções, maior é o número que segue a sigla (MP12, MP13, etc.) e ainda coube a esses produtos tornarem-se a réplica de celulares de grandes marcas, como Iphone (da Apple) entre outros. 27 Pude vivenciar parte desse processo de contrabando feito via Ponte da Amizade durante a pesquisa de campo realizada em maio de 2011. O texto etnográfico resultante compõe o início do capítulo 2. 35 negociadas no SP, sem nota fiscal e sem garantia. O fato é que os associados, quando estão “em trânsito” com suas mercadorias, não têm permissão para fazê-lo, já que elas não possuem nota fiscal (transitam na ilegalidade); entretanto, quando estão “fixos”, em seus lugares, cartesianos, como pede a cidade moderna e disciplinada, em suas bancas, tem legalidade de venda, já que são licenciadas pelo poder público municipal. Com o propósito de sempre oferecer novidades, os associados possuem suas rotinas de viagens a fim de repor os estoques de suas bancas. Transitam por entre cidades do Brasil e do exterior, na maioria das vezes, escondidos em carros particulares com medo de terem suas compras confiscadas pela Polícia Federal. A grande maioria responde a processo judicial por contrabando, muitos até já foram presos. Empresas de aluguel de ônibus não aceitam mais fretar seus carros para a ACSP, como já o fizeram por muito tempo, porque quando são descobertos, a empresa é responsabilizada e multada. Em geral, as confecções são compradas em Goiânia. Alguns eletrônicos e brinquedos são comprados em São Paulo. E por fim, o maior fluxo de compras dos associados são as cidades paraguaias de Pedro Juan Cabalero e Ciudad Del Este, onde encontram maior variedade e o melhor preço. O que pareceu ter início, na cidade, como um paliativo para o problema da suposta ocupação desordenada dos espaços públicos adquiriu força e “vida própria”. É um espaço constituinte da cidade, por mais que comumente seja tratado como residual e secundário. O SP forma um sistema sócio-cultural cuja prática maior é a compra e a venda das e para as classes subalternas cujas precariedades, mais do que designarem um “modo informal” de existência (sobrevivência diriam uns) urbana, constituem um complexo mundo para o qual concorre a criatividade, a velocidade, a flexibilidade, a agência para, arranjando-se com pouco, dele extraírem o máximo de qualidade da própria existência. As práticas de consumo que abriga, longe de serem privadas, atomizadas e passivas, e do mesmo modo que outros consumos socialmente menos estigmatizados, como o artístico, o comunitário, o cultural, desenham pertencimentos. Exatamente por isso, por essa capacidade de constituir pertencimentos, o consumo (e por tabela os espaços de sua prática) não pode ser visto “como simples cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas [sim,] como espaço que serve para pensar, onde se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades” (CANCLINI, 2001, p. 15). 36 Neste ponto fundamenta-se parte dos objetivos deste trabalho: abandonar a visão demonizadora do consumo bem como dos camelôs e suas práticas. Apresentar esse espaço para falar de suas práticas e do fluxo de seus objetos sustenta o desejo de investigar esses atores sociais e ainda pensar a cultura a partir dos objetos de suas práticas. Então, como espaço que desenha pertencimentos, o SP está longe de ser residual e secundário, é ao contrário, lócus de intensa e rica produção sociocultural que chamou minha atenção e despertou meu interesse. 1.4. Canevacciando o camelódromo Caminhar por entre as vielas do SP é fundamentalmente uma experiência de encontro de corpos. Partindo dessa experiência senti a necessidade de uma visita sensorial ao espaço e, partindo disso, falar do SP de uma maneira diferente, porém pertinente a uma investigação em cultura contemporânea e conclusiva do capítulo inicial desta dissertação. Os caminhos são estreitos e, na maioria das vezes, abarrotados de pessoas com objetivos múltiplos e caminhos indescritíveis. Ali se manifesta uma posição adotada pela antropologia, a não-naturalidade do corpo, expressa na movimentação determinada, talvez, pela maneira própria da cultura brasileira e, mais propriamente, cuiabana. Se o caminhar é um encontro de corpos, é na pele que a sensorialidade emerge apurando muito além do tato. São corpos difundidos transitivamente, corpos ocidentais. Nós vemos, ouvimos, degustamos, sentimos, cheiramos, pulsamos com o camelódromo. Amparado pelas proposições de Massimo Canevacci28, este tópico permeia conceitos e estupores, a vivência com o objeto que já é, em alguma medida, sujeito, ao passo que se manifesta como um corpo que comunica com a metrópole regional e com as menores unidades viventes dentro de si, as pessoas, que mantém o fluxo quase sanguíneo do local. A importância desta aproximação se justifica por tratarmos de pessoas, diferente das visões marginalizantes que rodeiam o SP. Em se tratando de local – o que não significa uma tradução direta –, vamos cirandar pelo conceito de location, discutido por Canevacci e que, num esforço etnológico, aproximo do SP. Quando entendemos location como um lugar, retornamos ao 28 Este trabalho aspira uma aproximação, sem chegar a conclusões incrustadas, o que ruiria com o processo de compreensão da comunicação entre corpo, metrópole, fetiche, etc. 37 pensamento clássico de Marc Augé29, que “exprime uma identidade dada como fixa, única, compacta [e] certa” (ibidem). Nessa perspectiva o lugar determina a cidade histórica – da modernidade em diante –, onde se inicia a cidade e termina com os muros. Para além deles está a natureza, isto é, o espaço. Location como espaço, ao contrário, injeta a dificuldade de controle, de desejar medidas matemáticas e geométricas da identidade, porque o espaço é movimentado e, se transplantado para e-space, torna-se uma location eletrônica e interconectante dos multivíduos mundiais. O e-space do camelódromo se “materializa” em sua página na internet, na qual o visitante pode acessar maiores informações sobre o camelódromo bem como sobre as bancas, produtos e serviços. Chego então às definições do autor que se enlaçam com o objeto-sujeito em questão (o SP): as locations como zonas. Elas podem ser resultado de um plano regular que deixa aquela zona como resíduo a ser ordenado sucessivamente ou a ser abandonada ali como um homeless, ou é o resultado de uma resistência dos irredutíveis habitantes às falsas promessas da planificação urbanística, ou uma ocupação que transforma, por exemplo, um velho forte oitocentista no centro social mais belo não só italiano (Forte Prenestino). As locations como zonas exprimem (ou melhor, expressaram nos anos noventa) o conflito social e cultural por parte dos sujeitos que, deste modo – em contraste com os planos regulares –, transformavam uma cidade em metrópole (CANEVACCI, 2008, p. 33). Entender o SP como uma zona a partir da ramificação do conceito de location serve como lente para definir – mesmo que parcialmente – o que o imenso galpão construído a muitas mãos representa nos dias de hoje para cidade e para a cultura, mesmo tendo seu nascimento datado na década de noventa. Os conflitos sociais existentes desde a ocupação das ruas, a expulsão dos camelôs do centro da cidade, o arranjo ao descaso no bairro do Porto, fomentaram a existência do SP. Até aqui, então, entendemos o SP enquanto location como zona. Continuando com a tentativa de entender o SP dentro dessa égide, encontro o conceito de interstício. Os interstícios são zonas que estão entre (in-between) áreas mais ou menos conhecidas [...] Eles se localizam nos limites incertos entre diversos quarteirões, entre velhos cruzamentos abandonados pelas novas redes viárias, ou ainda no interior dos quarteirões que se acredita conhecer muito bem e que, ao contrário, mantêm alguns nichos deslocados, que se exprimem por impulsos comunicacionais diversos pela gentrificação. Com este termo [...] se entende um processo urbanístico que reestrutura um bairro de tradição popular ou industrial, que ou é reestruturado no interior, ou demolido e reconstruído ex-novo, favorecendo desta forma o acesso às classes 29 APUD CANEVACCI, 2008, p. 32. 38 sociais mais “altas” economicamente ou culturamente stylish (...). (CANEVACCI, 2008, p. 34) Compreendo então esse fenômeno que se instaura em uma zona e modifica os fluxos corpóreos naquele local como zona intersticial. O SP como interstício, fica in-between o centro da cidade e o bairro do Porto, região que como dito anteriormente, foi por muito tempo marginalizado e ocupado por viciados em drogas e prostitutas e, após a construção do SP, foi reconfigurado passando a ser frequentado por pessoas de diversas classes sociais. Ele faz parte da experiência metropolitana e é significativo para quem cria “zonas mutantes através do próprio transcorrer com um corpo-panorama que somatiza códigos ainda invisíveis, mas que podem produzir sentido” (idem, p.35). Esses códigos são muito significativos no interior do interstício, ao passo que acentua ao máximo a percepção “de um bodyscape-location que se investe por meio de um elemento posterior: o dress-code” (idem, p.36). Dress-code é definido por Canevacci como uma pragmática do corpo que se modifica, se constrói, se ressignifica por meio de contínuas e oscilantes escolhas por parte de um sujeito mutante e múltiplo, na sua relação constitutiva e temporária como o contexto no interior do qual expor tal pragmática comunicacional. (CANEVACCI, 2008, p. 38). E esse corpo que se modifica está nos associados do SP (ou camelôs), são eles que desafiam as identidades fixas e unitárias, que desprezam os arquétipos e realizam as suas práticas ao seu modo. São body-scapes por detrás das bancas, que perambulam entre os corredores com seus dress-codes estabelecendo relações de sintonia, dissonância e aglutinação entre esses corpos e o “local”. Assim, o bodyscape como location está nesses vendedores. Corpos e bancas entrelaçados. Corpos-bancas. Corpos-panoramas. Bodybox. Body-scape. A figura 9 apresenta uma das centenas de bancas do SP. Nela vemos o mix entre os produtos, os compradores, a banca em si e os vendedores. Há nessa imagem uma mistura latente, pulsante, de corpos-coisas que se entreveem na dinâmica natural do location. Esses corpos comunicam, se misturam aos produtos, se misturam aos fetiches. Mercadorias e fetiches. Desejos. 39 Figura 9 Banca do SP 1.5. Relação entre corpos: um devaneio escrito Ocorre-me, a partir das leituras do autor deveras citado, que o Shopping Popular seja um grande corpo. Em um devaneio escrito, é possível compará-lo ao corpo humano, e a partir daí entendê-lo como parte constituinte do corpo da cidade e, consequentemente, do corpo da metrópole comunicacional. Ler o fetichismo contemporâneo é pensar em corpos. Corpo-coisa. Body-corpse. Como descrito no início deste trabalho o camelódromo consiste num grande galpão com portas verticais que fechadas tornam-no um grande bloco de concreto e ferro fechado. Essas portas funcionam como aberturas, canais, que permitem a entrada e a saída de pessoas com certo controle, ao passo que não é um espaço totalmente acessível. Elas circulam o ar. As portas são as bocas, múltiplas, que engolem quem quer entrar e liberam quem quer sair. Onde não há passagem, elas são a pele, que protege e ao mesmo tempo integra. 40 Figura 10 Portas do SP Os corredores, que ficam entre os caminhos de bancas lado a lado, fundo com fundo, são como artérias, que levam o sangue para todo o corpo e irrigam a carne viva. Ligadas às artérias estão às veias, que no nosso sujeito-objeto são as vielas, as pequenas passagens, o “entre bancas”, que não são oficialmente demarcadas, mas permitem a circulação. As artérias e veias do camelódromo levam pessoas, clientes, que irrigam a carne morta. Morta-viva. Figura 11 Corredor interno do SP 41 As bancas são os órgãos. São elas que mantêm cada função do camelódromo funcionando. Elas, cada uma a sua maneira, com seus produtos particularmente iguais (ou não), desempenham funções e atendem determinadas necessidades do que vem de fora. As bancas verdes – com dois modelos distintos – preenchem o corpo. Os seguranças são os glóbulos. Eles cuidam de impedir a proliferação de invasores. Estão sempre prontos para proteger. A ACSP é o cérebro. É de lá que partem as ordens de funcionamento e é lá que administra e gere o camelódromo. A associação é responsável pela comunicação entre o SP e a cidade. Entre o corpo e os outros corpos. Por último o fluido vital: o sangue. Os clientes são o sangue, os deambulantes, enfim, os corpos dentro do corpo. São eles que carregam os nutrientes e o oxigênio. Os nutrientes do camelódromo estão na moeda. No Real. No dinheiro – que pode ser cartão. São eles os responsáveis pelo movimento do bodycorpse e/ou location. São eles, com seus corpos panoramáticos que vivificam o body-corpse do camelódromo. Um canibalismo de corpos. Um corpo vivo dentro do corpo morto. O corpo morto que tem vida pelo fluxo do corpo vivo. O camelódromo se encarna. O camelódromo vive! É esse corpo vivo que se relaciona com a cidade. Cuiabá, cidade em questão, não experimentou plenamente a industrialização (como muitas cidades latinoamericanas). Por estas bandas, ainda hoje, migram indústrias do saturado centro econômico brasileiro em busca de mão de obra e benefícios fiscais. Entretanto, consigo ver a passagem, mesmo sem superar o estágio anterior, entre a Cuiabá monocêntrica e a Cuiabá policêntrica. A cidade industrial que tinha como monumento central a fábrica deu lugar à metrópole comunicacional, policêntrica. Para Canevacci o consumo, a comunicação e a cultura têm uma importância maior que a produção industrial monocêntrica. Em particular o consumo, que em suas múltiplas manifestações desenvolve um tipo de público que não é mais homogêneo e massificado, como na era industrial. Falamos de públicos pluri. Ou, retomando Stuart Hall (2005), falamos em identidades pós-modernas, que variam de acordo com as formas pelas quais são representados ou interpelados nos sistemas culturais que o rodeiam, assumindo identidades de acordo com a ocasião e o momento (ora consumidores, ora receptadores). Não há como negar que o público do SP seja pluri. São pessoas de diversas classes sociais – a se julgar pelos carros que estacionam por ali – com objetivos 42 distintos e focos de consumo diversos. Esse público não se contenta mais com o mesmo para todos, é preciso diversificar. Diversificar no que é ofertado e conectar cidades do mundo. As mercadorias vêm de diversos pontos do planeta e ali se encontram para sua nova vida social. É na tentativa de atender a essa demanda que os camelôs se arriscam, tornam-se cinzas, como disse anteriormente. Observar o camelódromo a partir das lentes de Massimo Canevacci permitiu um relaxamento mental (treinar o olho para olhar de outra maneira). Foi, de fato, um “fazer-se olho”. Modificar o olhar para tornar o familiar estranho e poder continuar com a pesquisa desse objeto-sujeito que tanto me fascina. O olhar que não é natural estranha os detalhes e possibilita uma mudança de pensamento. Senão mudança, pelo menos, possibilidade de pensar diferente. Pensar a cidade como corpo, e o camelódromo como um corpo dentro da cidade emergiu a possibilidade de leitura dos códigos que a cidade absorve. A linguagem da cidade influencia o comportamento das pessoas e dessa maneira seus hábitos. Essa linguagem é repleta de lugares, espaços e, principalmente, interstícios. O camelódromo também é um interstício e também é repleto de pessoas e, logo, é influenciado pela linguagem da cidade. Ler o corpo da cidade é ler o camelódromo. Entender, mesmo que parcialmente, a fluidez, a mobilidade e a hibridização da metrópole contemporânea é entender a experiência da cultura, dos corpos, das pessoas e, consequentemente, do espaço do qual falei até agora. É olhar e ser olhado. É olhar com todo o corpo. É ser visto por todos os corpos. Muitos corpos, multivíduos. E, para mim, o camelódromo não será mais o mesmo, não depois deste trabalho. 43 CAPÍTULO 2 – ALI 2.1. Etnografia de um pesquisador sacoleiro Ouvir, os relatos dos camelôs do SP a cerca de suas idas e vindas do Paraguai despertou em mim o desejo de vivenciar essa experiência e constatar o cinza. Na companhia de Hugo Vuerzler30, embarquei no dia 03 de maio de 2011 rumo a Foz do Iguaçu, cidade do estado do Paraná que faz divisa com o Paraguai e a Argentina. O avião ainda não havia pousado e a integração entre as duas cidades era evidente. Num horizonte quase indistinto, a ponte que sela a amizade entre os dois países não marca e, sim, destaca a relação que talvez seja a continuidade desta pesquisa. Foz do Iguaçu com seus mais de 300.000 habitantes demonstra toda a sua potência para quem chega pelo ar. A cidade é grande, esquadrinhada e adoravelmente verde. O imenso lago de Itaipu, ao longe, destaca outra divisa, que não vem ao caso agora. O avião está cada vez mais próximo do chão e um frio percorre a espinha. Dentro do avião, ouvia-se o burburinho dos viajantes, cada um a sua maneira, com as mais diversas expectativas para a chegada. Alguns apontavam para a ponte da amizade, outros relistavam em voz alta suas encomendas. O Paraguai e seus produtos Made in China estavam dentro do avião. O baque com o solo marcou a chegada, finalmente estávamos a alguns passos do maior aglomerado do meu objeto. Estava ansioso pelo encontro que não tardaria. Logo na entrada do setor destinado ao desembarque um imenso frontlight anunciava a loja paraguaia “Monalisa”. Um garoto, franzino, entregava compassadamente para os “chegantes” uma revista que instruía os novatos a como navegar por esse mar do consumo subalterno. No caminho até o hotel, Monalisa nos perseguiu, por todos os lados, com seu bienvenido ao Paraguai-Brasil. O taxista nos deu as primeiras instruções deste novo lugar, que em breve tornar-se-ia espaço para mim. Por todo o percurso, vimos placas de sinalização em três idiomas (português, inglês e espanhol). A cidade marcava-se como cosmopolita. Depois da chegada ao hotel, fomos encaminhados para o quarto, chegando lá, o atendente nos pergunta por quanto tempo ficaremos e toma um susto, quando respondo 8 dias. A reação 30 Igualmente mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea. 44 dele demonstrou que os sacoleiros que por aqui ficam são em maior número do que eu imaginava, mas, por menos tempo como depois constataríamos. Depois de um breve descanso, saímos e, nas ruas, ouvíamos vozes de vários lugares do mundo. Assim como os produtos, as pessoas circulam por esta região com uma naturalidade própria do lugar. Para além do turismo curioso, vi um turismo objetivo, focado, ainda que clandestino, por entre as brechas da aduaneira. Os comércios formais, tenuemente adaptados à realidade cinza da cidade, é trilíngue em gesto e modo. Gesto de quem recepciona e modo de quem espera. A cidade é polifônica, multinacional, subalterna. Avistamos ao longe o terminal de integração rodoviário, com pequenas bancas repletas de produtos pendurados, mexendo, com o gélido vento ainda não narrado. Hugo e eu caminhamos mais e a cidade se tornava menos estranha, o popular e clandestino me eram familiares, curioso fato que destaco aqui. Depois de perambular escolhemos onde comer, um restaurante árabe é eleito. Lá dentro, o cardápio simples mostra em que lugar estava. Aos poucos, chegaram homens estrangeiros, com seu português miscigenado que, falavam ora em português, ora em árabe. Aqueles homens atraíam minha atenção quando, na mesa ao lado, atentei-me para outro que falava, em tom alto, sobre os perfumes que pretendia trazer do Paraguai. Enquanto instruía seu ouvinte a observar bem as cores da embalagem, o “encomendante” delimitou bem quais eram suas preferências. Uma mulher à mesa o interpela, pedindo que seja mais discreto. Ele a recrimina e, com um tom áspero, disse “estou tratando de negócios, enquanto essas pessoas apenas comem”. Perfumes importados, replicados, falsificados. Sim, ele tratava de negócios. Saímos do restaurante deixando o comerciante para trás. No caminho de volta para o hotel, diversas bancas, que antes ali não estavam, surgem como planta que brota do chão. Hugo escolhe a banca que vendia colchas e o primeiro produto genuinamente subalterno de nossa viagem foi comprado. Quase chegando ao hotel, uma loja de suvenires vende produtos do Brasil-Paraguai-Argentina-China. É interessante ver essa loja, com características de um “não-lugar”31 mundial cosmopolita. Voltamos para o hotel e a viagem, de fato, começava. O caminho do consumo começou a ser desenhado. O primeiro dia terminou. 31 Pensando aqui em Marc Augé. 45 Na tarde do segundo dia (04/07/2011) tomamos o ônibus rumo à Ponte da Amizade. O Paraguai estava cada vez mais próximo, a pouco mais de 7 km de distância do ponto no qual estávamos. O ônibus estava lotado, pagamos R$ 3,30 por pessoa para chegar do outro lado da ponte, o ônibus era internacional e trazia em si instruções nos dois “idiomas nativos”. Além das instruções, o preço da passagem podia ser pago em reais (moeda brasileira), pesos (moeda argentina) ou guaranis (moeda paraguaia). Não me ative ao câmbio naquele momento, mas destaco a importância desse mecanismo da economia que invade Paraguai-Brasil. As múltiplas vozes dentro do ônibus tratavam dos mais diversos assuntos nos mais diversos idiomas. Olhava nos rostos dos passageiros e imaginava o que os fazia estar ali, por volta de 12:30, atravessando a fronteira rumo à cidade vizinha. A viagem parecia longa, mas atribuo isso à ansiedade que me espreitava, o desejo de chegar logo. Figura 12 Aduana/ Posto de Fiscalização da Receita Federal do Brasil Avistei os imensos shoppings paraguaios e seus letreiros do lado de cá. O horizonte pode ser comprado como o que ele anuncia. Finalmente avistei o rio Paraná e, na sequência, a Ponte da Amizade. Fiquei espantado e absorto com a quantidade de carros, motos, vans e ônibus trafegando loucamente pelo local. O fluxo era intenso, desenfreado. As pessoas carregavam suas sacolas-compras da maneira que dava e seguiam para seus destinos. O Paraguai começa a se mostrar 46 como é, subdesenvolvido, pero no mucho. Passamos pelo posto da Receita Federal do Brasil (figura 12), na pista reservada aos ônibus (para organizar a travessia dos veículos existem pistas destinadas a cada tipo, são elas: motocicletas, automóveis, vans, ônibus e caminhões) sem problemas, pelo menos na ida, falarei sobre isso mais tarde. A travessia da ponte, que apesar de não ser longa, demorou mais de 30 minutos devido ao tráfego. Era interessante acompanhar esse fervilhar e observar de perto as pessoas que faziam esse percurso a pé. Logo começamos a avistar ambulantes vendendo batatas fritas em tubos32, meias, capas para câmeras fotográficas entre outros. Essa cena me era familiar. Figura 13 Pedestres e passageiros atravessando a Ponte da Amizade A aduana paraguaia foi simpática, bem como seus policiais federais que apenas compõem a paisagem, ali, em pé. Descemos do ônibus e um enxame de rapazes ofereciam ajuda para transitar. Entregavam panfletos publicitários dos diversos shoppings do lado de cá. Os panfletos, assim como a fachada das lojas mostra-me a possível fonte da “publicidade subalterna” praticada no camelódromo 32 Réplicas das mundialmente conhecidas batatas Pringles. 47 de Cuiabá, como desenvolvi em trabalho anterior33. “Não, obrigado”, repeti quase que como um mantra até a entrada do Shopping Del Este. As portas automáticas se abriram e meu coração disparou. Meus olhos avistaram um Iphone 4, objeto de meu desejo que cerceio no mesmo instante, já que esta era uma viagem de pesquisa e eu estava ali como pesquisador, com um método preestabelecido e um planejamento a cumprir. Junto com Hugo, entrei na primeira loja. Ele ficou fascinado com o que viu e se perdeu. Mantenho firme meu propósito e começo a rastrear indícios do que procuro, dos objetos, mais propriamente quinquilharias. Mais tarde percebi que jamais encontraria quinquilharias nesse lugar. Hugo costurava o shopping de loja em loja e eu me irritava com essa perturbação na ordem de minha tão planejada visita etnográfica. Decido e imponho que devemos “cambiar” algum dinheiro para falar na língua local (dólar). Após um breve desentendimento, Hugo desmontou este pesquisador quando disse que queria se perder nesse mar de atratores34 e que eu deveria fazer o mesmo, para poder entender o que realmente estávamos fazendo ali. Naquele momento, compreendi que só me perdendo, poderia me encontrar enquanto pesquisador-consumidor. Pesquisa “de perto e de dentro”, como nos ensina Magnani. Eu ainda estava de fora e de longe. A pesquisa estava salva, mas meu bolso, com alguns dólares, começava a declinar. Caminhando rumo à ladeira que lembrava a 25 de março35, um menino nos seguiu durante todo o percurso oferecendo 3 pacotes com 3 pares de meias por “10 reales”. No final, já eram 7 pacotes pelos mesmos “10 reales”. Não compramos as meias e entramos em um dos becos de um outro Paraguai. Os prédios conjugados tornaram-se unos, com as frentes repletas de bancas e tabuleiros, com os mais diversos produtos. As calçadas se tornaram corredores, com paredes de lonas remendadas e coloridas. Fui atraído por uma banca com colchas coloridas, o preço me espantou, não comprei 36. Observei que não havia serviços37 como os encontrados no SP de Cuiabá. A predominância era de produtos. 33 Trabalho apresentado no XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação na Divisão temática “Comunicação e Culturas Urbanas” e finalista do Prêmio Estudantil Francisco Morel promovido pela Intercom. 34 Lembrando as aulas de Massimo Canevacci. 35 Rua do comércio popular na cidade de São Paulo. 36 Estava mais cara que a similar comprada no dia anterior em Foz do Iguaçu, acho que nossa cara de “turista” valorizou o produto. 37 No SP encontramos serviços de assistência técnica aos equipamentos vendidos por lá, lanchonetes, restaurantes, chaveiros, entre outros. 48 Seguindo o fluxo dos transeuntes entramos no primeiro conglomerado de lojas. Munidos de dólares, descobrimos que lá o câmbio era em múltiplas moedas, feito nas calculadoras, com as taxas à revelia do valor da bolsa no instante da compra. Na vitrine de uma loja, avisto diversos bibelôs, quinquilharias. Encontrei ali o que me fez vir de Cuiabá: o gato da sorte Maneki Neko38. No Shopping Ásia, na loja “Happy 4” somos atendidos por Karen, uma simpática paraguaia que pacientemente aguarda enquanto Hugo e eu nos divertíamos com os produtos globalizados Made in China. Agarro o gato japonês-chinês e Hugo a boneca Russa. Ambos, enquanto objetos, tem a “função” primeira de cofrinhos, mas cada um traz consigo sua mitologia cultural que também nos interessa. Gasto exatos 6 dólares com meus gatos, a uma taxa de câmbio de R$ 1,70. Pago esse valor para o simpático chinês proprietário da loja. Enquanto calcula meu troco, ele atende ao telefone e durante alguns minutos, fala em português, guarani e chinês com a pessoa do outro lado da linha. Eis diante de mim um dos pivôs da relação ChinaParaguai-Brasil. Saímos da loja e seguimos para outras. Os gatos estavam por todos os lugares. Segundo nos disse Karen, eles balançam o braço para chamar os fregueses. Os donos das lojas por aqui levam a sério a crença e, pelo sim, pelo não, deixam perto de seus caixas o gatinho simpático nos mais diversos formatos e materiais. Figura 14 Exemplo de caixa com o valor da compra em todas as moedas disponíveis 38 Falarei sobre ele no próximo capítulo. 49 Em um dos corredores, Hugo avista uma banca de relógios e assusta-se com o preço quase que único: 2 reais. Animado com o preço, tenta barganhar com a moça um desconto para outra peça, mais luxuosa, que custava absurdos (perto das outras) 25 reais. Aqui, não obteve sucesso. Ainda no shopping Ásia entramos na loja “Super K”. A loja era grande e diversificada. Nada nos atraiu, a não ser o gatinho, lá, no caixa, acenando para nós, com notas de real, dólar e guarani pregadas no vidro a sua frente, talvez seja para o gatinho não esquecer seu objetivo. Nas escadarias da saída da loja, uma senhora desembrulha uma série de camisetas. Mais tarde descobri que ela fazia isso para passar pela aduana brasileira, esperta senhora, cinza senhora. No subsolo do mesmo shopping vamos à loja “Toys”. Lá compramos mais quinquilharias e presentes, o pesquisador-consumidor sentiu-se livre. Figura 15 Bibelôs Made in China Curiosamente, nessa loja encontramos diversas imagens de santos em resina. Destaco a “Yemanjá europeia39”, vinda da África, fabricada na China, cultuada no Brasil e vendida no Paraguai. No primeiro piso do shopping Ásia entramos na “Loja B”, lá encontramos roupas Made in China. Embora não fosse meu foco, elas eram irresistíveis e compramos. Cansados, decidimos encerrar nossa 39 Caucasiana com os traços finos e o corpo magro. 50 visita etnográfica ali. Subimos a ladeira rumo à aduana paraguaia e só avistamos no topo da avenida um dos ônibus que nos traria de volta ao Brasil. Caminhamos por entre pedestres e motos, nos becos entre lojas e bancas. Ouvimos as multilínguas por ali faladas. Chegamos ao ônibus e, pelos mesmos 3 reais e 30 centavos, seguimos em direção ao Brasil. O trecho de saída do Paraguai é tumultuado, mas logo estamos sobre a ponte e num piscar de olhos chegamos na aduana brasileira. O ônibus para e um rude policial federal brasileiro entra no ônibus e, de maneira grosseira e intransigente, revista bolsas e sacolas, obrigando-nos a declarar nossos “inúmeros” produtos. Já na receita, o atendente nos tranquiliza, dizendo que devemos declarar apenas nossos nomes, já que nossa compra não ultrapassa o limite de 300 dólares mensais. Esse mesmo atendente nos fez perder a passagem gratuita garantida: estratégia das empresas de ônibus que atravessam a ponte com passageiros, entregando um ticket que vale como uma espécie de integração entre os ônibus, permitindo o reembarque daqueles que ficam “presos” na aduana brasileira a fim de declarar suas compras. No nosso caso, perdemos o reembarque por sair da aduana a mando do funcionário que nos atendeu. Terminamos o percurso a pé e, já no Brasil, um táxi paraguaio para a nossa frente e dele descem quatro rapazes rumo ao porta-malas do carro, do qual retiraram vários eletrônicos trazidos do Paraguai e sonegados na aduana. Ou seja, ônibus sofrem “baculejos”, táxis não? Outro dia, nosso retorno será de táxi – prometemo-nos. Tomamos outro ônibus que, curiosamente, destinava-se à Argentina, passando pelo Brasil, custando 20 centavos a mais que o anterior. Descemos em nosso ponto e seguimos para o hotel, onde apreciamos nossas aquisições encerrando assim o dia em que minha pesquisa foi salva (figura 16). 51 Figura 16 Compras do primeiro dia Dedicamos o 3º dia (05/05/2011) ao “turismo”. Partimos relativamente cedo para o Parque Nacional de Iguaçu e no longo trecho pude observar a cidade enquanto ela passava por mim. Em várias esquinas, becos e vielas, sempre podíamos ver alguma barraquinha vendendo produtos que “no Paraguai não tem”. É curioso pensar que talvez seja essa a estratégia dos ambulantes de lá para tentar burlar a facilidade de consumo disponível do outro lado da fronteira. Tanto no ônibus que levava ao parque, quanto dentro do mesmo, os assuntos dos turistas das mais diversas partes do planeta eram os produtos e o comércio do Paraguai, os objetos de desejo já adquiridos ou por adquirir acompanharam-nos por toda a viagem. No parque, como em todas as lojas que se encontram em intersecções turísticas, os preços para produtos regionais eram bem mais caros que no Paraguai ou mesmo no centro de Foz. Depois do tour pelas cataratas, fomos para o Parque das Aves, uma área privada, linda e exuberante que abriga aves e alguns animais com fins reprodutivos. De lá, no anoitecer, voltamos para o hotel e, depois de descansar, saímos para explorar mais a nossa região. Na calçada de nosso hotel, uma loja nos atraiu. Ela abrigava desde artesanato até pedrarias e extrações, passando pelas quinquilharias, é claro. O dono era um sério paraguaio que mal levantava de seu banco, atrás do balcão do caixa. As vendedoras, muito simpáticas, tentavam disfarçar a má vontade do “seu 52 Francisco”. Não era a primeira vez que vínhamos a esta loja, mas foi a primeira na qual compramos algo. Depois de fechada a compra, seu Francisco tornou-se outro, simpático, indo na contramão do tratamento dos outros estabelecimentos dessa zona fronteiriça. Atravessamos a rua e vamos até a Feira Iguaçu. Trata-se de um corredor de bancas em metal, que mais parecem garagens enfileiradas, que ocupam as calçadas dos dois extremos da avenida Brasil. A propaganda segue a linha do “no Paraguai não tem” e o modo singular da negociação dos preços que encontramos no Brasil, pelo menos no SP de Cuiabá. Havia também uma similitude entre os produtos e os arranjos. De lá voltamos para o hotel e nos preparamos para o dia seguinte, que seria todo dedicado aos shoppings do Paraguai. O quarto dia (06/05/2011) começa cedo. Estávamos programados para passarmos o dia no Paraguai. A priori, escolhemos o Shopping China e o Shopping Monalisa, depois, o fluxo das ruas nos guiaria. Seguimos para o ponto de ônibus, em frente ao terminal urbano de Foz. Logo passou o ônibus internacional que liga as duas cidades. Entramos e nos deparamos com o ônibus relativamente vazio, todas as pessoas estavam sentadas e três delas, em especial, me chamaram a atenção. A primeira era um homem de meia-idade, com um sotaque não identificável, o segundo era também um homem de meia-idade brasileiro e a terceira era uma mulher jovem. Os três conversavam tranquilamente assuntos variados, até que a mulher começou a instruí-los em como burlar a aduana das mais diversas formas, inclusive como fazê-lo nos aeroportos. Segundo ela, para atravessar a ponte, devemos desembalar todos os produtos, dar um ar de uso a eles (fato já observado e comprovado pelas atitudes dos sacoleiros vistos anteriormente) e misturá-los para não identificarem rapidamente a repetição em quantidade. No aeroporto, ainda segundo ela, deve-se retirar todas as etiquetas, lacres e qualquer outro signo de produto novo, relembrando para cuidar com as repetições em quantidade. Eu deveria agradecer a essa mulher, por ter essa conversa logo ali, perto de mim. Preferi não abordá-la, a fim de não suprimir sua espontaneidade. A sacoleira em questão vinha do interior de São Paulo para comprar produtos e revender em sua cidade. Nessa “conversa”, dou por mim chegando à ponte, que estava com um fluxo 3 vezes maior que no primeiro dia que cruzamos, a véspera do dia das mães marcava presença já na ponte. No caminho de chegadas e saídas, muitos outdoors 53 demarcam o espaço e me remeteram à Las Vegas de Robert Venturi (figura 17). Esperava, como ele, aprender algo com Ciudad Del Este. Os veículos, em números impressionantes, davam a pulsação do tráfico. O fluxo de pedestres era também intenso. Com suas sacolas cheias e imensas eles andavam rápido e “magicamente” atravessavam a fronteira. A cidade estava cheia, não havia um só lugar onde não houvesse pessoas comprando ou vendendo coisas ou ônibus com turistas em vários lugares. Chegamos ao nosso ponto, descemos e, só então, conseguimos ter uma pequena noção do que nos aguardava. Era por volta de 09:45 da manhã e Ciudad Del Este fervia. Os ambulantes nos abordavam a todo tempo, chegando a colocar os produtos em nossas mãos para que o sentíssemos! Com certa dificuldade, chegamos ao Shopping China e nele entramos sem olhar para trás. Figura 17 Outdoor da “Las Vegas” Sul-americana Já dentro do shopping, me assustei com o uniforme das atendentes. Ele era incrivelmente curto e sensual. Elas estavam com maquiagens carregadas, quase como gueixas, mesmo sabendo que essas advinham do Japão e não da China, como no Shopping em questão (mas afinal, o que são as fronteiras por aqui?). Passado o primeiro choque, começamos a perambular pela loja. São apenas dois pisos com muitos departamentos, contendo os mais diversos produtos. Os preços eram marcados em dólares, mas a loja seguia a tendência do “plurimonetarismo” 54 paraguaio. Em sua maioria, eram homens em busca de eletrônicos e esportivos. Com a compra encerrada, fomos a um dos diversos caixas espalhados pela loja, interessante meio de facilitar as compras e diminuir a fila juntamente com a chance de arrependimento. Pegamos nossas compras na parte de despacho (ou pacote) e saímos rumo à Monalisa. Driblando os ambulantes, somos recebidos por dois seguranças na porta da loja, lado a lado com o detector de metais e furtos. A loja estava à meia-luz (depois descubro que estava sem energia, funcionando apenas com geradores) e, mesmo assim, a loja impunha sua grandeza. O prédio tem seis andares (e mais dois reservados apenas aos grandes clientes), divididos entre perfumaria, vestuário, eletrônicos, alimentos, artefatos para o lar e decoração. Lá, sem dúvidas, não encontraria meu gatinho da sorte. Visitamos por todos os andares, todas as sessões. O shopping está fervilhando. Inúmeros brasileiros conversam e negociam com os vários atendentes, de ambos os sexos, bem alinhados e apessoados. Pagamos quatro reais em uma garrafa d'água. Depois de um bom tempo perambulando pela loja, decidimos que era hora de visitar os outros lugares, digamos, mais populares. Figura 18 Lado direito da entrada de Ciudad Del Este 55 Os aglomerados de lojas lá, em geral, são shoppings, galerias ou casas, que vão desde simples bancas com os produtos até os luxuosíssimos Del Este e Monalisa. Do lado direito da avenida principal começamos nossa caminhada, sem rumo, seguindo o intenso fluxo de consumidores variados e polifônicos. Os prédios são quase conjugados, com múltiplas entradas e saídas, sem um núcleo aparente, os prédios são labirínticos. A predominância nesses prédios é de lojas de produtos eletrônicos, os mais diversos, com os mais variados preços. Enlouqueci com os celulares, principalmente com uma bela réplica do meu desejado Iphone 4. É impressionante a variedade de marcas de celulares e eletrônicos, muitas mais que as encontradas no SP. Há uma marca (MDU) que possui selo de qualidade de uma certificadora americana, produto chinês com padrão de qualidade americano. Na maioria dessas lojas, a entrada era por uma porta e a saída era por outra, com polos distantes, que mantém o fluxo das pessoas. Numa breve parada para o lanche, ouvimos um casal de brasileiros conversando. O homem falava para a esposa as inúmeras maravilhas que ele poderia realizar se tivesse um celular com dois chips e acesso à internet. Esse homem se expos ao celular, muita mais que o contrário. As pessoas se expõem aos produtos, (como acontece no SP) e, esses, com seu poder de atrair seduzem e fascinam. Perambulamos por entre prédios e calçadas, todas abarrotadas de pessoas, na frente e nos fundos. O meu gatinho da sorte estava por todos os lados, nas lojas mais populares, de donos chineses ou descendentes. Esse movimento chega a me atordoar, por vezes fico sem saber como agir, são muitas pessoas, muito barulho, sem contar as interpelações constantes dos ambulantes que precisam ser ignorados para nos dar sossego. Passamos o restante do dia nessas andanças. Terminamos o dia no Shopping Del Este, comprando algumas coisas na loja coreana. Por uma questão metodológica, desta vez, atravessamos a ponte de van. Saímos do Shopping Del Este e seguimos ladeira abaixo para que um dos atravessadores nos escolhesse (já havíamos sido interpelados por um, que cobrou cinco reais por pessoa, mas naquela hora ainda não estávamos de partida). Antes disso, fizemos uma parada em um grande galpão, muitíssimo parecido com o SP. Repleto de bancas lado a lado, novíssimo, com algumas poucas pessoas organizando seus espaços e vendendo seus produtos. Notei ali a tentativa de disciplinamento das ruas, os ambulantes estavam sendo, pouco a pouco, convencidos a deixar as ruas e ocupar aquele espaço. Talvez a maneira como se 56 organizavam nas ruas tenha começado a incomodar. Será que há nesse prédio uma tentativa de “embelezamento” da cidade? Modernização? Limpeza? Vi Cuiabá no Paraguai. (figura 19). Figura 19 Corredor do camelódromo paraguaio Figura 20 Camelôs arrumando suas mercadorias no camelódromo paraguaio 57 Saindo desse local, ainda em busca de van, fomos abordados por um homem oferecendo tal serviço. Após uma rápida negociação de preço (de 20 caiu para 15 com exclusividade de transporte) entramos na van e começamos a arrumar nossas compras entre a mochila e as duas outras sacolas que havíamos comprado, com o propósito de “burlar” a fiscalização. Não foi preciso, nossa van não foi fiscalizada e seguimos uns 200 metros da aduana até que ela estacionou para que descêssemos e seguíssemos de volta para o hotel em qualquer ônibus. No quinto dia (07/05/2011), o cansaço nos atacou fortemente. Partimos já tarde para a Argentina, apesar de nosso plano inicial ser passar o dia todo por lá. Mesmo assim, partimos em direção ao ponto de ônibus paralelo ao terminal urbano, no qual poderíamos tomar o ônibus para Puerto Iguazú, na Argentina. Figura 21 Compradoras Enquanto aguardávamos o ônibus, pude observar com detalhes a chegada de duas senhoras que, neste sábado, resolveram fazer compras no Paraguai. Já eram quase 11 horas da manhã e as duas remexiam em suas sacolas e comentavam suas aquisições (figura 21). Enquanto conversavam, pude ouvir que a ponte estava 58 infernal, com uma demora aproximada de 45 minutos para a travessia. A aduana brasileira estava movimentada e, não sei como, as duas simpáticas senhorinhas conseguiram chegar tão longe com suas inúmeras compras. Logo chegaram dois homens conhecidos delas (e só então descubro que além de ponto para a Argentina, esse local era parada de ônibus para os distritos vizinhos de Foz, de onde vinham essas pessoas), também repletos de sacolas. Havia um ar de intimidade entre eles. Esses vieram a pé desde o Paraguai, já que julgaram ser mais rápido esse meio que o ônibus. Novamente, confirmo que o Paraguai estava repleto de compradores, mesmo não estando lá para ver, enriquece minha etnografia essas informações indiretas e cruciais para o método que utilizo. Finalmente o ônibus chegou, entramos, e logo percebi que algumas pessoas vinham do Paraguai em direção a Puerto Iguazú. Dessa maneira, a cidade de Foz era apenas mais uma imensa fronteira a se atravessar. Não havia muitas pessoas no ônibus. A viagem seguiu tranquila, sem nada que chamasse minha atenção. Já na saída de Foz, a aduana brasileira estava entregue às moscas. Não havia um policial sequer do lado de fora observando quem entrava ou saía do país. Deviam estar todos no Paraguai, perturbando a ordem dos sem ordem. No entre-meio dos dois países encontra-se o maior duty free da América Latina. Não paramos nesse local, mas é interessante pensar que ele, supostamente, estava numa zona “sem dono”, “sem lei”, livre de consumo autorizado. Como com o Paraguai, a divisa entre o Brasil e a Argentina se dá por uma ponte. Seguimos em frente e logo avistamos a aduana argentina, nessa todos eram obrigados a parar e descer. Apresentamos nossas identidades e logo depois de responder algumas perguntas práticas somos liberados para retornar ao ônibus e seguir em frente. Após cruzarmos a rotatória da cidade, comecei a ver alguns estabelecimentos comerciais, ao modo de strips40, esses comércios que ocupam a avenida principal a qual a cidade cresce ao redor. A viagem continua até o terminal rodoviário. Durante o percurso não vi ambulantes por aqui, acho que os hermanos têm outro jeito de lidar com o comércio subalterno. Já no terminal, nos informamos sobre qual ônibus deveríamos tomar para ir ao Parque de QuiraOga (nosso destino para hoje) e esperamos até sua chegada. 40 VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas: o simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 59 De volta ao ônibus fizemos o caminho contrário ao da ida, até chegarmos ao parque. Na estrada, avistei vários hotéis de luxo, parece que do lado de cá a cidade é mais rica e suntuosa. Carros importados, residenciais fechados, hotéis grandes. Foi esse o panorama até QuiraOga. No parque, logo à frente da recepção há uma lojinha, nela encontramos produtos artesanais, com preços internacionais, como toda boa loja desse tipo. Logo chegou o trator que nos guiaria por dentro do parque e começamos o passeio. O passeio terminou e fomos ao museu, logo em frente à QuiraOga e ao lado da entrada das cataratas do lado argentino. O museu abrigava peças entalhadas em madeira juntamente com uma exposição de fotografias em macro. Acima do museu, ficava o ponto de informações aos turistas, lá somos muito bem recebidos pelos atendentes que sanam todas as nossas dúvidas. Perguntei sobre aglomerados de comércio popular, segundo eles, não havia nenhum organizado por essas bandas. Voltamos para a estrada e apesar de já me sentir no limite, decidi seguir com a visita. O ônibus demorou uma eternidade mas enfim chegou, entramos juntos com alguns turistas estrangeiros (de verdade, de fora do Brasil-Argentina) que aguardavam conosco no mesmo ponto. Eles vestiam roupas de marca famosas, como os jovens das cidades que estávamos visitando. Curioso pensar o pequeno limite que nesse lugar da América Latina o original e o falsificado se encontram. Figura 22 “Camelódromo” em Puerto Iguazú 60 Voltamos ao centro e, após um breve lanche, vou a uma casa de câmbio para trocar reais por pesos argentinos. Na casa de câmbio, tive que apresentar minha identidade e fazer um breve cadastro. O atendente calculou quanto meus 50 reais seriam em pesos argentinos enquanto assinava a papelada em duas vias. Entreguei os papéis e peguei meu dinheiro. Depois de cumprir a burocracia da casa de câmbio (completamente diferente da do Paraguai, diga-se de passagem, onde entregamos o dinheiro com a mão direita e recebemos o “cambiado” com a esquerda) paguei a conta e, enfim saímos para um reconhecimento da área. Passamos por algumas lojas de souvenires e a máxima se repete: lembrancinhas são sempre caras. Mal conseguia andar. Decidimos então voltar para Foz do Iguaçu e, depois de caminhar até o terminal rodoviário, tomamos o ônibus de volta. No terminal pude ver várias pessoas com sacolas dos já conhecidos shoppings do Paraguai, era fim de tarde e, acredito, eles voltavam para casa depois de um dia de compras na cidade quase vizinha. Chegamos a Foz e cansado, tomo banho e descanso, para depois jantar e dormir. No sexto dia (08/05/2011) acordei bem, muito bem. Os remédios que tomei fizeram efeito. O destino era o Paraguai, finalmente iria comprar meu Iphone 4 (réplica, é claro). Partimos para o ponto de ônibus e como esse demorava, acabamos tomando um táxi paraguaio que viera deixar algum outro passageiro advindo de lá. Antes de nós, outros brasileiros já haviam feito o mesmo, com outro táxi que passou antes desse. O táxi não para, mas anda lentamente enquanto perguntava o preço (5 reais por pessoa) e chamava Hugo para embarcamos. Ao nosso lado, no ponto, estava um senhor oriental, que negocia com os dedos o preço com o “nosso” taxista, que por 3 reais o aceita como passageiro. Do outro lado da rua, taxistas brasileiros gritam e buzinam, não consegui entender o que falavam. Nosso condutor paraguaio disse que os colegas brasileiros não gostam que eles (os taxistas paraguaios) peguem passageiros do lado de cá da ponte. Nosso taxista quebrara a regra. A travessia pela ponte foi rápida, não havia muitos carros no caminho e chegando na aduana paraguaia nosso taxista perguntou se era nossa “primeira vez” no Paraguai, respondi que sim ao que ele começou a nos explicar como funcionavam as coisas por lá nos domingos: o lado esquerdo estava com todas as lojas fechadas (exceto o Shopping Monalisa), enquanto todo o lado direito da avenida estava em pleno vapor até as 13 horas (para os shoppings) e o dia todo para os demais aglomerados de vendas. 61 Descemos na frente do Shopping China e rapidamente nos misturamos com os transeuntes. Entramos em uma das galerias e começamos a peregrinação em busca de meu Iphone 4 e de um GPS encomendado por uma amiga. Fomos de balcão em balcão perguntando preço e pechinchando. Já tínhamos certa experiência em compras desse lado da fronteira e, dessa forma, fomos seguindo até encontrar com um jovem garoto, com sotaque árabe. Ele nos falou os preços do que procurávamos e, antes de descartá-lo, ele começou a mostrar-se mais maleável para a negociação. Hugo apertou o cerco, e entre quedas do dólar e do real, acabamos com comprar o GPS. Ainda faltava o Iphone. No final das contas, ele abaixou o preço do Iphone também e ainda nos deu alguns brindes como recordação. Quando começamos a desmontar as caixas para travessar a aduana, ele nos ajudou, arrumando sacolas escuras como a mochila a fim de camuflar nossas muambas. Saímos de lá satisfeitos, rumo à ponte, já que hoje, seguindo o nosso propósito etnográfico, atravessaríamos a pé. Figura 23 Travessia na Ponte da Amizade - Ciudad del Este a Foz do Iguaçu Depois de nos perdermos, rapidamente encontramos a entrada da ponte e seguimos o fluxo. Várias pessoas atravessavam conosco. Hugo foi logo atrás de mim registrando tudo com a câmera do celular. Num dado momento, um taxista percebe que ele estava fotografando e começou a xingá-lo em meio aos carros, o 62 trânsito flui e ele segue, nos deixando para trás. A pé, a travessia demorou pouco mais de 15 minutos. Chegamos à aduana brasileira e, para nossa surpresa, não havia nenhum fiscal para os atravessadores a pé. Saímos da zona da aduana e vamos até o ponto de ônibus, com os produtos esparramados pelo corpo e pela mochila. Depois do almoço partimos para a Usina de Itaipu. Chegando lá compramos nossos ingressos e esperamos o horário de partida do passeio pela reserva natural da usina. Logo chegam mais pessoas, turistas, que conversam com seus companheiros sobre suas experiências de compras no Paraguai ou seus anseios pelas que ainda irão fazer. É impressionante como parece haver uma dobra territorial que liga essas cidades através do consumo. Chega a hora de entrarmos no bonde, nosso guia assumiu a frente e começou a falar seu texto decorado. De tudo que ele disse, vale ressaltar o trecho no qual contou que alguns dos mais de 100.000 operários que ajudaram a construir a usina, ficaram por essas bandas (nos residenciais construídos por Itaipu para eles) e após o término da obra tornaram-se muambeiros. Diante desse fato curioso, Itaipu em parceria com a receita federal construiu a aduana brasileira na saída para a ponte da amizade, que hoje é a maior do país. Concluído o passeio voltamos para nosso hotel e seguimos nosso descanso para o dia seguinte. No sétimo dia (09/05/201) saímos quase na hora do almoço e alguns equívocos nos fizeram mudar de planos já no ponto de ônibus. Resolvemos visitar as cataratas do lado argentino. Novamente, mudamos de ponto e esperamos por alguns minutos (cerca de 30 minutos) até a chegada do coletivo que nos levaria ao centro de Porto Iguazú. Durante o percurso, voltei a observar o quanto as duas cidades (Foz e Porto) são costuradas pela influência do comércio paraguaio. Penso que a existência desse tipo de comércio na tríplice fronteira desenha pertencimentos por entre as três cidades. Foz, a meu ver, fica na mistura popular brasileira, onde o comércio legal (lojas com alvará) vende produtos trazidos do Paraguai sem o menor pudor. Por toda a cidade vemos “banquinhas” com produtos do lado de lá, pessoas com sacolas mostrando em uma das mãos alguns produtos “úteis”, tentando atrair pelo preço, sempre flexível. Além disso, o forte atrativo turístico proveniente da localização geográfica desenha uma outra cidade, a dos não muambeiros, a dos que querem aventuras pela floresta e pelas águas. Já Porto Iguazú, não tão próxima 63 estrategicamente do Paraguai, envereda-se pelos caminhos do ecoturismo e do luxo. O “melhor” duty free do mundo e diversos cassinos na fronteira mostram a característica que a cidade quer para si. Atrativa para todos os gostos e bolsos. Enfim, em meio a meus pensamentos, chegamos a Porto Iguazú. Descemos no centro e, enquanto Hugo escolhia algumas quinquilharias na loja de souvenires, fiz o câmbio para os pesos argentinos que nos abririam portas (junto com o real, dólar e guarani). Das quinquilharias compradas, saltou aos meus olhos a boneca russa, morena, feita pelos índios da região, com suas várias irmãs gêmeas. Curioso ver um modelo cultural russo, feito em madeira latina, por índios argentinos, vendidos na quase fronteira, no não-lugar das lojas de souvenires. Em suas múltiplas barrigas, carregam flores ou o ouro líquido da região, as cataratas. Com essa etapa cumprida, procuramos o ponto que nos levaria para o parque nacional que abriga as cataratas. Depois de uma longa espera, enfim chega o ônibus, confortável e grande, garantindo o sossego da viagem relativamente longa. No portão do parque descemos para comprar as entradas (que se carimbadas garantem o retorno no dia seguinte gratuitamente) e somos encaminhados até o ponto que divide, de fato, a entrada do parque. É um bom trecho até a estação de trem que serpenteava o parque e nos levava até o caminho suspenso sobre as águas da garganta do diabo. O percurso e seu fim são vertiginosos. Não consegui ficar por muito tempo em meio à vastidão das águas. Retornamos ao trem e, ouvindo as vozes do mundo, retornamos para a entrada e, posteriormente para o Brasil. O oitavo (10/05/2011), último e triste dia chega. O clima de último dia já se mostra na melancolia dos fins de viagem. Já estava habituado a este lugar, a estas pessoas, a esse clima que me deixava mais intrigado e tranquilo com relação à minha pesquisa. Nas compras espalhadas pelo quarto, pedaços de mundo, particularmente, da China. Em cada objeto, histórias, biografias, caminhos que percorreram até pararem em nossas mãos. Olhei cuidadosamente cada um deles, na esperança de ver para além do plástico dourado, barato e frágil. Finalmente deixamos o hotel. No caminho para o Paraguai não me assustava mais com o que via, acho que já pertencia a esse lugar. Mal chegamos ao viaduto e as palavras do taxista do primeiro dia retornam a minha cabeça, não há dia ou hora para a travessia ser longa e demorada. Levamos mais de uma hora para atravessar. 64 Em pé, no calor, com várias vozes, várias histórias, várias vidas. Vários percursos múltiplos e misturados. Só hoje reparei nos remendos no começo da ponte. Talvez estes sejam a marca material das tentativas de sucumbir à ordem quase militar desse pedaço entre países. O curioso é que as cores dos ferros marcam os tempos distintos, uma prática recorrente, uma subversão que sempre vêm. Figura 24 Grades remendadas no começo da Ponte Antes de entrarmos no mundo pós-ponte, decidimos enveredar pelo Paraguai profundo, em direção ao zoológico regional mantido pela Itaipu binacional. Descemos na rodoviária e tomamos um táxi. A explicação em “portunhol” da atendente afastou meu espírito etnógrafo. No táxi, andamos por entre as calles e rutas. A cidade é linda. Diferente e charmosa. Estávamos em outro lugar, bem diferente e distante do Paraguai pós-ponte. Num canto ou outro víamos alguns ambulantes, com produtos de lá, de longe, mesmo estando a poucos quilômetros da fonte. A cidade estava toda decorada. O vermelho, azul e branco patriotizavam o Paraguai das muambas. Estávamos na semana do bicentenário da independência. As ruas e as pessoas comemoravam essa data nos pequenos detalhes, seja no broche ou na casa de areia de uma rotatória qualquer. 65 O zoológico ficava em um distrito, Hernanderias. Depois de um longo percurso, descobrimos que o mesmo estava fechado, em greve por melhores salários. Voltamos. Pedimos ao taxista que nos deixasse na entrada da avenida dupla que liga a entrada efetiva do Paraguai à Ponte da Amizade. O começo das bancas não anuncia o que estava por vir. O começo calmo foi se tornando movimentado chegando à loucura da beira dos shoppings. Cambiamos mais dinheiro, as compras estavam listadas, para pessoas específicas no Brasil. Mudamos o percurso e andamos pelas ruas paralelas. Foi fantástico ver a organização por detrás dos shoppings e das lojas. Por todas as ruas e vielas saem pessoas puxando carrinhos ou carregando caixas, inúmeras caixas, não identificadas, sem remetente ou destinatário. As caixas nos parecem saindo “do nada” e entrando em lugar nenhum. Da maneira como elas surgem elas somem. Dentro dos shoppings mais camuflados, vemos pessoas desmontando caixas, tirando caixas menores das caixas maiores. Empilhando o lastro dos produtos Made in China. Entramos em um luxuoso shopping, com réplicas perfeitas de bolsas de marca. Tão perfeitas que até meus olhos mais treinados são enganados e fascinados. Os preços eram em dólares e guaranis. Eram três andares, com atendentes educadas e sorridentes por todos os lados. O lugar era fascinante. Compramos duas bolsas para presentear. Emaranhamo-nos ainda mais pelas paralelas. Deixamos-nos levar pelo fluxo, pelo movimento dos carrinhos que nos espremiam entre paredes, caixas, produtos, carros e pessoas. Esse movimento me incomodou. Cheguei a ficar irritado. Subimos e descemos escadas, ladeiras, entramos por um lugar e saímos por outros, nesse labirinto comercial de papelão. Os shoppings paralelos tinham seu primeiro andar como um grande mostruário, os demais andares servem como depósitos para os compradores em atacado. Dado curioso e revelador. Existe um Paraguai dentro do Paraguai, o Paraguai dos compradores, não dos turistas compradores, que não se aventuram pelos pontos mais obscuros do mercado global. Procurávamos por relógios. Existiam vários modelos de vários preços. Olhamos vários lugares, muitas vitrines. Saímos, andamos e voltamos ao lugar anterior. Hugo comprou um relógio. Algumas lojas começavam a fechar, o movimento de caixas diminuiu. Muitas portas estavam fechadas. O dragão latino estava adormecendo. Ainda faltava um item, os produtos da Loreal para minha 66 cunhada. Apenas dois lugares dispunham dos produtos, mas os preços estavam inviáveis, esses ficaram por lá mesmo. Decidimos partir. No topo da avenida tomamos o ônibus que vagarosamente desceu a ladeira, com vendedores de bebidas e batatas, entraram mais pessoas. Entraram mais sacoleiros, com ou sem sacolas. Atrás de nós assentam-se dois homens, tio e sobrinho. O primeiro ensina o segundo como proceder, já que esta aparentava ser sua primeira viagem profissional. Explicou como fazer no ônibus de carreira que iria atravessá-lo, onde descer, com que falar em caso de roubo ou quem deverá levá-lo. Essa educação informal me intrigou e despertou em mim novas dúvidas, que espero investigar num futuro próximo. Sobre a ponte vi os barquinhos atravessando o rio, longe dos olhos da aduana. Barquinhos levando muambas. Muambas flutuantes pelo imenso Paraná. Atravessamos a ponte e chegamos à aduana. O ônibus para. Descemos. Pedimos informação de onde declarar e depois de desencontros de informação, Hugo retorna ao ônibus e segue viagem. Eu fico para trás, na aduana, declarando o indeclarável, já que a menos de sete dias havíamos atravessado. Por boa vontade do atendente, passo com a bolsa pelas vistas grossas do estado. Sigo meu trajeto até o hotel. Chego em paz. Finalmente chegou a hora de arrumar as malas. Além das que trouxemos levávamos mais uma, grande, preta, típica de sacoleiro (comprada na barganha, com o vendedor que ao final ainda nos ofereceu o medicamento Desobese, depois de olhar nossos perfis!). Organizamos cuidadosamente as compras por todas as sacolas, misturando com roupas sujas e novas, seguindo os conselhos que recebemos durante toda a estadia. Mais que conselhos, seguindo as instruções de como proceder no cinza, como caminhar no subalterno. Depois de “malocar” tudo, aguardamos a hora de seguir viagem. Já no aeroporto, passamos pelo raio-x sem grandes problemas. Passamos por todos eles. Vi outras pessoas sem a mesma sorte, tendo suas mercadorias confiscadas na frente de todos, sendo tachados de contrabandistas, sendo tratados como criminosos. Até o fim da viagem constatei a manifestação do poder hegemônico do Estado agindo sobre as pessoas. Entramos no avião e seguimos para casa, com as malas e as mentes repletas de novidades dali nesse trânsito de mercadorias e pessoas pelo mundo. 67 2.2. Globalização 2.2.1. Entre metáforas e o mundo As obras que tentam dar conta das linhas gerais que circundam o fenômeno o qual descrevi (o de produção e circulação de mercadorias pelo mundo) são inúmeras. Autores de todo o mundo escreveram incessantemente suas reflexões no sentido dos rumos de nossa civilização. Vou apresentar algumas delas com o propósito de substanciar o pensamento a propósito da globalização subalterna, traçando comparativos com esse fim. Optei, inicialmente, por utilizar das interpretações do sociólogo brasileiro Octavio Ianni (1926-2004), em seu livro Teorias da Globalização, para discutir a globalização e suas leituras, a fim de tentar falar da globalização fora dos fluxos hegemônicos, falar da globalização subalterna China-Paraguai-Brasil. Ainda neste capítulo, irei dialogar com Renato Ortiz e sua mundialização, bem como adiantar alguns itens do que virá no próximo capítulo com Arjun Appadurai. No curso da história, cada descoberta científica acarretava uma mudança nas teorias que tentavam compreender sua época. A descoberta de que o globo era algo para além de uma figura astronômica, e sim o território de relações, atrelamentos e diferenças, rompeu drasticamente com os modos de ser, sentir, agir, pensar e fabular. Ianni afirma “que o globo não é mais exclusivamente um conglomerado de nações, sociedades interdependência, nacionais, dependência, Estados-nações, colonialismo, em suas imperialismo, relações de bilateralismo, multilateralismo” (IANNI, 2003, p. 13). O centro do mundo deixa de ser o indivíduo, compreendido (singular e plural) como povo, grupo, classe, maioria, minoria, opinião pública, etc. Segundo o autor: Desde que o capitalismo desenvolveu-se na Europa, apresentou sempre conotações internacionais, multinacionais, transnacionais e mundiais, desenvolvidas no interior da acumulação originária do mercantilismo, do colonialismo, do imperialismo, da dependência e da interdependência. Nesse clima, a reflexão e a imaginação não só caminham de par em par como multiplicam metáforas, imagens, figuras, parábolas e alegorias, destinadas a dar conta do que está acontecendo, das realidades não codificadas, das surpresas imaginadas. As metáforas parecem florescer quando os modos de ser, agir, pensar e fabular mais ou menos sedimentados sentem-se abalados. [...] São múltiplas as possibilidades abertas ao imaginário científico, filosófico e artístico, quando se descortinam os 68 horizontes da globalização do mundo, envolvendo coisas, gentes e ideias, interrogações e respostas, explicações e intuições, interpretações e previsões, nostalgia e utopias (idem, p. 14-5). Para ele as metáforas abarcam as controvérsias sobre modernidade e pósmodernidade, expondo como é a partir, principalmente, dos horizontes da modernidade que podemos projetar as possibilidades e os embaraços da pósmodernidade no novo mapa do mundo. Diante dessa justificativa para o uso de metáforas nas teorias da globalização, o autor segue apresentando algumas delas, como: “Aldeia Global”, [termo de Marshall McLuhan], sugere que, afinal, formou-se a comunidade mundial, concretizada com as realizações e as possibilidades de comunicação, informação e fabulação abertas pela eletrônica. Sugere que estão em curso a harmonização e a homogeneização progressivas. Baseia-se na convicção de que a organização, o funcionamento e a mudança da vida social, em sentido amplo, compreendendo evidentemente a globalização, são ocasionados pela técnica e, neste caso, pela eletrônica. Em pouco tempo, as províncias, nações e regiões, bem como culturas e civilizações, são atravessadas e articuladas pelos sistemas de informação, comunicação e fabulação agilizados pela eletrônica. Na aldeia global, além das mercadorias convencionais, sob formas antigas e atuais, empacotam-se e vendem-se as informações. Estas são fabricadas como mercadorias e comercializadas em escala mundial. As informações, os entretenimentos e as ideias são produzidos, comercializados e consumidos como mercadorias. (idem, p. 16). A leitura de Ianni dos escritos de McLuhan colabora para o que apontei no primeiro capítulo ao tratar da importância do camelódromo de Cuiabá para a própria cidade, ao passo que o mesmo desempenha, dentre outras coisas, o papel de conectar a cidade à tecnologia e informação do restante do globo, materializada nos produtos que comercializa. Na perspectiva de uma “aldeia global”, os produtos eletrônicos Made in China tratariam, sob duas formas (os produtos propriamente e sua carga tecnológica), de transportar para cá as informações do “que há de mais moderno” por aí, espraiando pela cidade tecnologia (e consequentemente, informação) mundial. Na missão das metáforas, Octavio Ianni apresenta a: “Fábrica global” [que] sugere uma transformação quantitativa e qualitativa do capitalismo além de todas as fronteiras, subsumindo formal ou realmente todas as outras forma de organização social e técnica do trabalho, da produção e da reprodução ampliada do capital. Toda economia nacional, seja qual for, torna-se província da econômica global. O modo capitalista de produção entra em uma época propriamente global, e não apenas internacionalmente ou multinacional. Assim, os mercados, as forças produtivas, a nova divisão internacional do trabalho, a reprodução ampliada do capital 69 desenvolvem-se em escala mundial. Uma globalização que, progressiva e contraditoriamente, subsume real ou fortemente outras e diversas formas de organização das forças produtivas, envolvendo a produção material e espiritual (idem, p. 18). A “fábrica global” articula capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho social e outras forças produtivas instalando-se além de qualquer fronteira. Acompanhada pelos meios de comunicação, “dissolve fronteiras, agiliza os mercados, generaliza o consumismo. Provoca a desterritorialização e a reterritorialização de espaços e tempos” (idem, p.19). Nessa perspectiva podemos pensar no Paraguai como um “centro de distribuição de mercadorias”. Como uma parte da fábrica global que é responsável não pelo destino final, mas por uma etapa da trajetória dessas mercadorias. Pensando por metáforas, a experiência que tivemos no Paraguai nos coloca nesse lugar da fábrica global, no centro de distribuição, repleto de funcionários da globalização subalterna transitando com as mercadorias para outros lugares do continente. Ainda em metáforas, Ianni apresenta a ideia de “Nave espacial”, que pode muito bem ser o emblema de como a modernidade se adolesce no século XX, prognosticando o XXI e sugere à “viagem e a travessia, o lugar e a duração, o conhecido e o incógnito, o destinado e o transviado, a aventura e a desventura. A magia da nave espacial vem junto com o destino desconhecido” (ibidem). Na metáfora da nave espacial esconde-se a da “torre de babel”, um espaço desordenado que os indivíduos têm dificuldade para compreender que se acham extraviados, em declínio, ameaçados ou sujeitos à dissolução (idem, p. 21). Ainda nesse sentido, ele afirma que: A Babel escondida no emblema da nave espacial pode revelar ainda mais nitidamente o que há de trágico no modo pelo qual se dá a globalização. Nesta altura da história, paradoxalmente, todos se entendem. Há até mesmo uma língua comum, universal, que permite um mínimo de comunicação entre todos. A despeito das diversidades científicas, artísticas e outras, o inglês tem sido adotado como a vulgata da globalização. [...] É o idioma do mercado universal, do intelectual cosmopolita, da epistemologia escondida no computador, do Prometeu eletrônico. (idem, p. 22). Concluindo seus escritos a esse respeito, Octavio Ianni nos diz que: Vistas assim, como emblema da globalização, as metáforas desvendam traços fundamentais das configurações e movimentos da sociedade global. São faces de um objeto caleidoscópico, delineando fisionomias e movimentos do real, emblemas da sociedade global desafiando a reflexão e a imaginação. A metáfora está sempre no pensamento científico. Não é apenas um artifício poético, mas uma forma de surpreender o imponderável, fugaz, recôndito ou essencial, 70 escondido na opacidade do real. A metáfora combina reflexão e imaginação. Desvenda o real de forma poética, mágica. (pp. 23). Muito me agrada essa perspectiva científica do refletir por metáforas. Por estar alocados na linha de pesquisa em Poéticas Contemporâneas, creio na possibilidade de utilizar múltiplas ferramentas da língua para refletir a cerca do que estudo. Como foi possível na leitura desta dissertação até o momento, utilizo dessa ferramenta da linguagem para pensar o espaço do camelódromo e, para além dele, as práticas da globalização que integram o mundo. É claro que sabemos das críticas feitas ao uso das metáforas e das diferentes leituras para a mesma. Em contraponto, parcial41, a perspectiva que Ianni adota, Renato Ortiz em Mundialização e Cultura, afirma que “toda metáfora é um relato figurado; o que se ganha em consciência perde-se em precisão conceitual” (ORTIZ, 2003, p.14). Embora adote essa postura, Ortiz reconhece a importância delas para a discussão em questão: Chama a atenção nesses textos a profusão de metáforas utilizadas para descrever as transformações deste final de século: “primeira revolução mundial” (Alexander King), “terceira onda” (Alvin Toffler), “sociedade informática” (Adam Shaff), “sociedade amébica” (Kenichi Ohmae), “aldeia global” (Marshall McLuhan). Fala-se da passagem de uma economia “high volume” para outra de “high value” (Robert Reich), e da existência de um universo habitado por “objetos móveis” (Jacques Attali) deslocando-se incessantemente de um canto para o outro do planeta. (ibidem). A perspectiva de Ortiz em sua obra é de destacar a emergência de uma sociedade global, desterritorializada. Para o autor, somos todos cidadãos mundiais mesmo quando não nos deslocamos, ou seja, em sua perspectiva, o mundo chegou até nós e nosso cotidiano. Dessa maneira, ele abandona a ideia de superação do local pelo global e, ao contrário, enxerga nesses pontos uma interligação. Além disso, distingue a internacionalização da globalização, sendo a primeira simplesmente o “aumento da extensão geográfica das atividades econômicas através das fronteiras nacionais” e a segunda a “produção, distribuição e consumo de bens e de serviços, organizados a partir de uma estratégia mundial, e voltada para um mercado”. Assim sendo, o autor caminha para um entendimento do caráter cultural no contexto global como mundialização, destinando a globalização apenas as tarefas econômicas e tecnológicas. Enquanto Ianni e Ortiz pensam o termo mais 41 Embora Ortiz critique o pensamento por metáforas, ele dialoga com Octavio Ianni em seus escritos a cerca da mundialização e da cultura. 71 apropriado e sua aplicação no contexto social, outros autores enxergam nas transformações causadas pela globalização algo nocivo para a sociedade. Milton Santos, geógrafo brasileiro, propõe em seus escritos Por uma outra globalização (2001) que a mais-valia global deixe de ter o foco nas perspectivas teóricas e práticas da globalização que, para ele, se difere de tudo que a humanidade já passou por estarmos num novo tempo de produção do conhecimento em todas as esferas. Santos entende o fenômeno do qual falamos como perverso, como ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista e propõe que seja lançado sobre ele um novo olhar, atribuindo um novo sentido à existência, que contemple a todos e não apenas àqueles que lucram com tudo isso. Diferente dos outros autores apresentados, Santos está mais preocupado com os rumos que a sociedade tomará do que como chamamos essa transformação. Retomando Octavio Ianni, na sequencia de seu livro, o autor apresenta o conceito de “economia-mundo” a luz de Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein. Segundo Ianni, economia-mundo compreende a economia de uma porção do globo que compreenda um todo econômico, ocupando um determinado espaço geográfico com um polo no papel de centro (cidade dominante) e zonas no entorno do centro até chegar às periferias. Juntamente com o conceito de “economia-mundo” temos o de “sistema-mundo” que é um sistema social, que possui estruturas, limites, membros, regras de legitimação e coerência. Se parece com um organismo pela volatilidade e estabilidade de suas características. A meu ver o sistema-mundo contempla a parte social, política e cultural enquanto a economia-mundo é a parte econômica da percepção dos autores a esse respeito, encontrando, talvez, uma conexão com as preocupações de Milton Santos. Finalizando, acrescento a discussão Anthony Giddens, em O mundo na era da globalização (2006). Para o autor a globalização não trata apenas da inclusão de aparelhos modernos nas suas maneiras de viver. Trata-se de uma transformação que afeta tudo que fazemos. É um fenômeno cada vez mais descentralizado e espraiado, que não está sob o controle de nenhum grupo de nações e muito menos sobre o domínio das grandes companhias. Giddens afirma que seus efeitos são sentidos no ocidente e em qualquer outra parte do planeta e, para melhor ou para pior, somos empurrados para uma ordem global que ainda não compreendemos totalmente, mas cujos efeitos já se fazem sentir em todos nós. Dessa forma, bebendo das múltiplas fontes apresentadas e, sem citá-las diretamente, nos 72 aventuramos na sequência a explorar a ideia do que nosso título anuncia como globalização subalterna. 2. 3. A globalização subalterna Os caminhos que decidi seguir nesta dissertação não foram os convencionais. Trabalhar com autores pouco estudados e falar sobre conceitos polêmicos (como é o caso do subalterno) sem dúvidas, só foi possível graças ao respaldo teóricometodológico que recebi de minha orientadora Ludmila Brandão. É dela o termo “globalização subalterna” e, com sua licença, me atrevo a explorá-lo e desenvolvê-lo neste capítulo. Na maioria de seus textos iniciais a esse respeito, Brandão se utiliza de termos como “fluxos ou circuitos globais subalternos” para denominar o fenômeno do trânsito de objetos, pessoas e valores pelo mundo. Em texto recente publicado no livro Moda em zigue-zague: interfaces e expansões, organizado por Cristiane Mesquita e Rosane Preciosa, a autora faz as seguintes considerações: Desenvolvi a noção de circuitos subalternos de consumo na pesquisa anterior, que deu origem a esta, para destacar os locais, as práticas singulares de comercialização, os profissionais envolvidos e os objetos comercializados (pirataria, em grande parte) que constituem circuitos voltados para as classes populares (mas não apenas), semi-ilegais, mercados “cinzas” mais ou menos tolerados nas cidades nos quais se verifica uma imensa circulação de mercadorias, em geral fabricadas na China, realizando isso que podemos chamar de globalização subalterna (BRANDÃO, 2011, p. 203). O que nos diz as práticas dos camelôs de Cuiabá para chegarem até aqui com suas mercadorias? O que podemos ouvir de Ciudad Del Este, lá, em suas ruas abarrotadas de gente e sacolas? Que contribuições podemos trazer para os estudos de cultura contemporânea a esse respeito? Como podemos preparar o terreno para discutir o que vêm de lá, o que vem da China? Let’s try it! A aproximação reflexiva da transformação do mascate em camelô (capítulo 1) nos ajuda a tratar justamente dessas figuras que materializam a globalização dos objetos. Se os mascates os transportavam para o Brasil profundo, os camelôs transportam-nos para todos os lados, sendo todo ponto potência de venda. O processo de “modernização” (ou tentativa, para os mais críticos) de Cuiabá implicou na segregação de parte desses atores sociais que movimentavam o centro da cidade. A postura impositiva do governo (hegemonia política) a serviço dos 73 interesses dos lojistas (hegemonia econômica) marca o momento em que se cala os camelôs. Marca o momento que, oficialmente, os subalterniza. Mesmo tendo construído um novo espaço para suas práticas, os camelôs associados continuaram tendo de burlar, de modo tático, uma série de dispositivos do Estado. A ação das classes subalternas, nesse contexto, se aproxima do que Certeau (2007, p. 100) chama de tática. Para o autor, a tática é um movimento dentro do campo inimigo, no seu espaço controlado, operando golpe por golpe, aproveitando ocasiões com ganhos instáveis. Comprar e revender produtos contrabandeados são exercícios de caça diários. Essa instabilidade lhes permite uma mobilidade de ação, utilizando as falhas abertas “na vigilância do poder proprietário”. Táticos nas viagens, mesmo instalados no camelódromo dispõem de táticas para transitar com suas mercadorias ilegais. “Em suma, tática é a arte do fraco” (idem, p. 101). Diria mais, tática é a arte do subalterno. A partir da ideia esboçada por Brandão e das observações que faço desde a experiência no SP e em Ciudad Del Este, apresento a seguir cinco características básicas que compõem nossa leitura da globalização subalterna. Dessa maneira, metodologicamente, tracei semelhanças e a partir delas relaciono os dados empíricos das pesquisas de campo atrelados aos conceitos discutidos. Posteriormente, no próximo capítulo, tratarei de discutir os objetos que transitam na globalização subalterna e suas relações com o contemporâneo. Em meio a metáforas e reflexões, vamos a nossa proposição teórica. A primeira característica da globalização subalterna é a instabilidade do tráfego. Trata-se desse campo arenoso dos percursos feitos pelos subalternos para adquirir as mercadorias e retornar aos seus espaços. Enquanto no mercado global hegemônico as mercadorias dispõem de permissão de tráfego (notas e declarações fiscais), na globalização subalterna as táticas de seus agentes é que permitem o tráfego. São compartimentos secretos nos carros, travessias a barco no Rio Paraná, estradas de terra que cortam as regiões do Brasil, propinas para fiscais e o uso de GPS (tecnologia da informação) que permitem a configuração de novos caminhos no fluxo das mercadorias. Elas vêm da China, param no Paraguai e dali se encaminham para sua nova vida social. A segunda característica da globalização subalterna é a criminalização da prática. O criminalizar entendido para além da esfera jurídica, é o criminalizar como dispositivo do poder hegemônico de unificar através da ideologia da boa conduta, do 74 apelo a uma consciência moral coletiva. É o jogo de inversão dos subalternos a figura de criminosos e não de trabalhadores fora do fluxo do mercado oficial. Vender produtos sem nota fiscal é crime, importar sem tributar também. Nesse caso, as notas e declarações fiscais são como passaportes (igualmente globais), que conferem permissões de tráfego às mercadorias pelo mundo. No caso das que trato, são clandestinas e, logo, criminalizadas pelas classes dominantes não por sua vilania, mas por sua potência de concorrência. A terceira característica da globalização subalterna é a reinvenção do uso. Uma vez que o tráfego é fiscalizado e a importação é criminalizada, uma tática praticada pelos subalternos é a de reinventar o uso das mercadorias. Isso opera da seguinte maneira: compra-se, por exemplo, uma dezena de camisetas da mesma marca (obviamente para revenda), imediatamente elas são retiradas do plástico que as protege, seguido das etiquetas e demais adesivos que lhe confiram o status de novo. Num segundo momento elas são misturadas em uma mala e atravessam a fronteira como viajantes, e não como mercadorias em tráfego. Outro exemplo são os pen drives que, uma vez adquiridos, são retirados das embalagens para receber alguns arquivos que violem sua virgindade digital. O uso das mercadorias é reinventado, antecipado, para que elas estejam protegidas do confronto na fronteira. A quarta característica é a facilitação coletiva. É impressionante como as lojas e shoppings em Ciudad Del Este facilitam e agilizam as compras dos clientes. A multiplicidade de moedas aceitas (rompendo fronteiras econômicas), o cambio instantâneo (em escala mundial) e a condução do fluxo dentro das lojas ditam o ritmo que alcança as ruas, a velocidade das pessoas ao andar, o entrar e sair. Essa espécie de companheirismo integra os que estão na mesma condição, enfrentando os mesmos medos. Vemos essa facilitação nos agrupamentos das vans para travessia, no auxílio dos vendedores aos clientes para burlar a fiscalização, nos olhares que se cruzam e nos avisos sobre a ponte. Além da ponte, essas facilitações são inerentes à globalização subalterna, ao passo que é por uma série de acordos extraoficiais que as mercadorias chegam até lá e partem de lá. A quinta e última característica é a ligação mundial. Essa é a característica mais própria das mercadorias em tráfego na globalização subalterna. Essas mercadorias, através das táticas apresentadas em meio às características anteriores, carregam consigo a carga simbólica e informacional através do mundo. Embora fabricadas na China, essas mercadorias possuem biografias distintas, de 75 diferentes lugares, centralizando a produção de símbolos mundiais. Com essa característica abro passagem para o próximo capítulo, no qual tratarei da China, sua relação com a globalização subalterna e a materialização da mercadoria no Maneki Neko. 76 CAPÍTULO 3 – LÁ 3.1. China: recorte histórico Neste capítulo chegamos “lá”, chegamos à China. A propósito dos estudos das mercadorias Made in China, utilizarei a pesquisadora brasileira Rosana Pinheiro-Machado que defendeu, em 2009, a tese intitulada “Made in China: produção e circulação de mercadorias no circuito China-Paraguai-Brasil”. A partir da leitura de seus escritos iremos pensar a China como uma das pontas (embora nos pareça a principal) da globalização subalterna. Além dela trabalharemos com Cláudia Trevisan (2009) e seu livro “Os Chineses”, no qual autora apresenta um minucioso histórico de uma das civilizações mais antigas do mundo. Do trabalho de Trevisan podemos extrair o substrato que nos permitirá entender a constituição histórica da China, que muito influenciou para sua atual posição no mercado mundial de produção de mercadorias. Os estudos de PinheiroMachado funcionaram como um incentivo a seguir esse fluxo tão fascinante. Infelizmente não pudemos realizar uma pesquisa de campo na China (como ela fez em sua tese), mas suas discussões nos levarão até “lá” junto com o que nos fala Trevisan. 3.1.1. Canton System Pinheiro-Machado (2009) afirma que a origem do fluxo global de mercadorias encontra-se na Província de Guangdong e, para que possamos compreender os motivos que levaram essa região a tal feito, devemos acompanhá-la numa “elucidação histórica”. Interessa acompanhar a autora justamente por partilharmos do interesse pelo ponto de partida dos fluxos dos quais discorri nos outros capítulos e por ela responder a duas questões básicas: por que em Guangdong (ou Porto de Cantão) e o que essa província representa na China contemporânea, de trás para frente, tendo no “aqui” o camelódromo de Cuiabá, o “ali” na Tríplice Fronteira e o “lá” na China. Para “lá”, vamos com Pinheiro-Machado. Fatores naturais, infraestruturais e culturais colaboraram decisivamente para o boom da economia chinesa na região do Delta do Rio da Pérola. A província de Guangdong fica localizada ao sul da China e, desde o século XVI, é caracterizada 77 pelo forte comércio marítimo através do Delta do Rio da Pérola e dos portos de Guangzhou. Durante os séculos XVI a XIX (Dinastia Qing42) o comércio marítimo movimentava economias gigantescas (através de mercadorias como prata, chá, porcelana, ópio, ouro, arroz, seda e outras chinoiseries) e caracterizava-se por um contato incomum com o Ocidente devido à presença de companhias comerciais estrangeiras na região, as quais negociavam com suas diferentes moedas e cotações (PINHEIRO-MACHADO, 2009, p. 55). Esse fluxo de mercadorias, iniciado há séculos, continua no presente, pelo mesmo canal do Delta desembocando no Pacífico, passando por Guangzhou, Shenzhen e Dongguan, Zhuhai, Macau e Hong Kong. A grande fase do comércio de Guangzhou se deu entre 1700 a 1845 (período conhecido como Canton Era) com a criação do sistema comercial Canton System, mantenedor da corte de Beijing43. Desse sistema participaram muitos comerciantes estrangeiros e PinheiroMachado (idem, p. 56) destaca a participação de holandeses e ingleses. A Inglaterra tinha especial interesse pelo chá, pois essa especiaria constituía um “um luxo e uma necessidade vital indispensável” desde a sua disseminação em meados do século XVIII. O porto de Guangzhou era considerado “acessível” e “livre” em termos de vantagens mercantis e também possuía uma boa relação com Macau. Além disso, o porto tinha melhor localização que outros chineses, sendo também considerado “perfeito” em suas condições geográficas, hidrográficas e topográficas. Canton System era dependente dessas qualidades, as quais não poderiam ser duplicadas em outro porto ou região (ibidem). 42 De acordo com Trevisan (2009), para os chineses a história não era linear. Ela era circular, formada por uma sucessão de dinastias, período que abarca desde o recebimento do “Mandato do Céu” pelo Imperador até o momento no qual este deixa de ser digno de portá-lo, dando então início a uma nova dinastia. A sucessão era do pai para o filho mais velho, em casos omissos assumia o império o parente mais próximo do imperador. A dinastia Qing foi de 1644 até 1911 e abarca todo o período de fundamentação social, econômica e cultural do qual iremos tratar. 43 Durante sua “elucidação histórica” Pinheiro-Machado cita, por diversas vezes, o texto Streetlife China de Paul Dike (2005) e o texto The Venomous Course of Southwestern Opium: Qing Prohibition in Yunnan, Sichuan, and Guizhou in the Early Nineteenth Century de David Bello (2003). Como não tivemos acesso a esses textos, nos resta apenas, quando extremamente necessário, citá-los em apud de Pinheiro-Machado (2009). 78 Figura 25 Mapa da região do Delta do Rio da Pérola Perante o exposto por Pinheiro-Machado, fica claro o motivo pelo qual a região se consolidou há tantos séculos como “porta de saída” da produção chinesa, ocupando durante tanto tempo e ainda hoje essa posição. Todas essas características fizeram com que no período do Canton Era Guangzhou fosse considerado o centro de negócio entre a China e o mundo. A autora segue afirmando que Bello (2003) assinala que mercadorias chinesas, como chá, tabaco e açúcar criaram e sustentaram o primeiro mercado europeu de consumo de massa cujas receitas foram pré-requisitos para o desenvolvimento do capitalismo privado e estabilidade dos estados e dos regimes coloniais europeus (ibidem). Além desse comércio entre os países, havia uma especificidade desse mercado internacional: o contrabando de metais, ópio, arroz e outras atividades de roubo do mar (pirataria). Essa especificidade não foi responsável pela derrocada desse sistema e, para Paul Dyke (apud PINHEIRO-MACHADO, 2009, p. 58), o colapso do Canton System se deu, em 1842, graças à intervenção do governo e a carga tributária. Esse sistema substanciou a região para o desenvolvimento econômico que chegaria com as décadas seguintes, viabilizando o crescimento com a expansão do mercado externo. A “janela chinesa para o mundo” inseriu a própria China nos fluxos de um mercado globalizado, através da circulação intensa de 79 mercadorias chinesas e europeias num processo antigo e, portanto, refuta o ineditismo da globalização que vemos hoje, respeitando é claro sua velocidade e extensão nos dias atuais. 3.1.2. As Guerras do Ópio e outras insurreições (1819-1911) No século XVIII, durante o Canton System, a China vendia seda, porcelana e chá para a Inglaterra, porém, não comprava nada em troca, fazendo com que os ingleses transferissem cada vez mais prata para o Império do Meio sem um grande retorno econômico. Assim sendo, a Inglaterra passa a vender ópio aos chineses, produto que advinha da Índia e foi rapidamente aceito pelo povo chinês, criando graves problemas para a China. Em 1792 o Império Qing proíbe o comércio do ópio na China, entretanto, tal proibição não foi respeitada, pois a comercialização era feita através do grande tráfico e contrabando do produto. Essa prática só tornou-se um problema mais sério quando, em 1830, houve uma verdadeira enxurrada de prata saindo da China para sustentar o consumo do fumo do ópio, causando grande impacto na receita do império. Para dar fim à prática, o imperador envia um de seus mais respeitados burocratas, Lin Zexu, a Guangdong e este realiza diversas ações que confrontam o interesse dos ingleses. Após inúmeros desacordos políticos, em novembro de 1839, inicia-se a Primeira Guerra do Ópio (1819-1842), que dura 23 anos e resulta na derrota do Império do Meio para a Inglaterra e na divisão das terras de Qing com outros países através do Tratado de Nanquim. Dentre essas se destaca a transferência da ilha de Hong Kong para a Inglaterra, sendo este território inglês até o ano de 1997. De acordo com Cláudia Trevisan (2009), O Nanquim foi o primeiro de uma série de “tratados desiguais” que deram a governos estrangeiros domínios de regiões dentro da China, nas quais vigoravam suas próprias leis, dentro do princípio de extraterritorialidade. Depois da Inglaterra, os Estados Unidos, a França, a Rússia e a Alemanha também conseguiram privilégios comerciais e controle sobre parcelas do território chinês. Impostos pelos vitoriosos, esses documentos davam enormes privilégios às potências estrangeiras dentro do país asiático e reduziram o Império a uma semicolônia (TREVISAN, 2009, p. 192). Cerca de vinte anos depois a China entrou novamente em confronto com as potências ocidentais, que tentavam revisar alguns termos do tratado, como ampliar 80 ainda mais os privilégios e retomar o comércio de ópio. Inicia-se assim a Segunda Guerra do Ópio (1856-1860) e, novamente, a China é derrotada tendo como marco a destruição do Palácio de Verão dos imperadores Qing em 18 de outubro de 1860. Após a segunda derrota, a China perdeu ainda mais território para as grandes economias ocidentais e também para o Japão, que emerge nesse período como potência do oriente deixando a China em segundo plano. Diante da situação crítica que o país enfrentava, diversas rebeliões populares enfraqueceram ainda mais a relação da China com os países ocidentais. Envoltos em crises de corrupção por parte dos poderosos do imperador e a devastação cada vez maior dos camponeses, o Império Qing ruiu em 1911, representando o fim dos mandarins e o início de um novo período para a China, no pós-dinastias de história linear como no ocidente. 3.1.3. República (1911-1949) Com a queda absoluta da Dinastia Qing, aumentava cada vez mais o nacionalismo entre diversas sociedades secretas dentro e fora da China. Textos de caráter reformista e adoção de costumes ocidentais estavam entre as ações desses grupos que pretendiam instaurar uma revolução sem precedentes. Sun Yat-sen (1866-1925) é considerado o herói da revolução que acabou com o Império e instaurou a República na China. O filho de camponeses pobres emigrou para o Havaí e lá teve contato com hábitos ocidentais. Interessou-se pelo cristianismo, mudou-se para Hong Kong e formou-se em medicina em 1892. Retornando a sua província natal, Guangdong, organizou alguns pequenos levantes contra os Qings e, fracassado, fica exilado por 16 anos e só retorna a China quando descobre a derrocada do Império Qing. Foi eleito presidente provisório em dezembro de 1911, mas abdica meses depois por falta de apoio político para governar. Retomando os escritos de Trevisan, o cargo de primeiro presidente da China republicana acabou sendo entregue a um ex-ministro reformista dos quings, o chefe militar Yuan Shikai (1859-1916), visto por revolucionários e conservadores como o único nome capaz de evitar a guerra civil e o fracionamento da sociedade chinesa (idem, p. 214). Yuan Shikai tentou, por meio da força, se autodeclarar imperador da China em dezembro de 1915. A atitude que gerou inúmeros protestos, não resultou em nada 81 graças a sua morte súbita em junho de 1916. Nos anos seguintes, até 1928, o poder central foi cada vez mais desintegrado, emergindo o fortalecimento de chefes militares regionais. Enquanto isso, nos grandes centros urbanos da China, os portos continuavam sendo administrados pelas potências estrangeiras, mantendo o fluxo de produtos pelo globo. “O nacionalismo dos chineses da República recém-criada voltou a aflorar em 1919 no Movimento Quatro de Maio, uma das maiores manifestações populares já realizadas na China” (ibidem). A revolta origina-se frente à decisão dos vencedores da Primeira Guerra Mundial de concederem ao Japão a parte da Alemanha no Tratado de Nanquim. O descontentamento dos chineses para com o Japão já se arrastava há anos e aumentar ainda mais o poder do país sobre a China desagradou a diversos segmentos sociais chineses. Na tarde de quatro de maio, cerca de três mil pessoas se reuniram na Praça da Paz Celestial, em Pequim. O principal alvo do protesto eram dois ministros identificados como pró-Japão: o das Comunicações teve sua casa incendiada pelos manifestantes e o responsável por assuntos japoneses foi espancado até ficar inconsciente. Os protestos se espalharam pelo país e ganharam apoio de diferentes grupos sociais. Em Xangai, empresários e trabalhadores fecharam estabelecimentos comerciais por uma semana, a partir de cinco de maio, e campanhas de boicote a produtos japoneses ocorreram em toda a China. Cerca de mil estudantes foram presos e vários outros morreram nas manifestações. Diante do crescente descontentamento, o governo foi forçado a demitir três ministros identificados como aliados do Japão e se recusou a assinar o Tratado de Versalhes, o que legitimaria a transferência das antigas concessões alemãs para os japoneses (idem, p. 215). A expressão “Movimento Quatro de Maio”, além de designar os protestos, nos fala também da efervescência intelectual que tomou conta da elite chinesa durante nove anos, a partir de 1917, buscando alternativas para modernizar e desenvolver o país. Nessa perspectiva, tradições milenares como a posição subalterna da mulher e instituições tradicionais começaram a ser atacados, enquanto a liberdade, a democracia e a ciência do ocidente eram enlevadas. Esse movimento serviu para desenvolver as reflexões a respeito do futuro da China e da maneira como o país se portava interna e externamente. A partir disso surgem debates a propósito dos muitos “ismos” (do liberalismo ao anarquismo), mas foi o comunismo quem seduziu alguns dos principais líderes do movimento, dentre os quais Chen Duxiu destaca-se pelo papel central na fundação do Partido Comunista da China, em maio de 1920. 82 Essa manifestação também serve para pensarmos algumas características políticas e culturais que com o decorrer dos anos subsidiará o desenvolvimento econômico da China. Quando comparado ao total de habitantes do país, o número três mil pode parecer pouco significativo, entretanto, vale ressaltar que essas pessoas afrontaram ao regime totalitário do partido e forçaram mudanças significativas no país. Assim sendo, comparando com países de regimes não totalitários, talvez esse número represente milhões. Enquanto Duxiu representava o Partido Comunista, Cai Yuanpei aliava-se ao Partido Nacionalista. Esses dois partidos se enfrentaram por mais de trinta anos, disputando o poder. Ainda em 1920, a recém-fundada União Soviética (URSS) auxiliou ambos partidos, fundando o Partido Comunista e auxiliando na reestruturação do Partido Nacionalista. Com a morte de Sun Yat-sem em 1925, Chiang Kai-shek assume a liderança do Partido Nacionalista e promove uma série ações e traições contra o Partido Comunista e seus aliados. A traição transformou os partidos em inimigos mortais, unindo-se apenas de maneira episódica contra a invasão japonesa em 193744. Chiang estabeleceu um governo autoritário, embora tenha contribuído para melhorias significativas nos transportes, energia e comunicação, bem como unificou as moedas e serviços como educação e saúde melhoraram (idem, p. 216). Enquanto Chiang atuava nas cidades, Mao Tsé-Tung espalhava as raízes do movimento revolucionário comunista no campo, que compunha grande parte da população chinesa. Essa postura o ajudou a se transformar no líder absoluto da China depois de 1949. 3.1.4. Revolução Comunista (1949) Os comunistas, liderados por Mao, estabeleceram sua base no sul da China, nas montanhas da província de Jiangxi. Em 1931, eles fundam a República Soviética da China, integrando o exército vermelho e empreendendo drásticas reformas no sistema de propriedade da terra. A fim de extinguir o movimento 44 Nesse período lideranças do Partido Nacionalista sequestraram Chiang e o obrigaram a assinar uma aliança com os comunistas para conter o avanço japonês sobre a China, esse episódio ficou conhecido como “O Incidente Xi’an”. 83 comunista, o governo Nacionalista promoveu quatro campanhas contra Jiangxi. Depois de uma jogada política com a intervenção da URSS, os Nacionalistas conseguiram afastar Mao da liderança dos Comunistas, e ainda modificar as táticas de guerrilha por ele comandadas, deixando os comunistas vulneráveis ao quinto ataque por parte dos Nacionalistas. Sem Mao à frente, os comunistas foram obrigados a fugir para o norte, iniciando “uma das mais emblemáticas passagens da história do século XX no país: a Longa Marcha, que se transformou em um evento épico para os futuros vitoriosos da Revolução de 1949” (idem, p. 221). Mais de oitenta e cinco mil pessoas marcharam em fuga do cerco nacionalista, caminhando durante um ano cerca de nove mil e seiscentos quilômetros, cruzando vinte e quatro rios e dezoito cadeias de montanhas. Do sul partiram para o sudeste e, depois, para o norte. Grande parcela dos caminhantes morreu no percurso, chegando apenas oito mil em Yan’an, nova base dos revolucionários comunistas a partir de 1935. A marcha serviu também para restituir o poder a Mao Tsé-tung, consolidando-o como líder absoluto do movimento revolucionário. Tanto a marcha quanto os deslizes do governo nacionalista colaboraram para o crescente aumento de simpatizantes do comunismo. O apoio popular, em 1949, ultrapassava quatro milhões de pessoas. A entrada dos Estados Unidos da América (EUA) na Segunda Guerra Mundial criou alianças políticas com os dois lados do poder na China. Embora tenham ajudado muito mais aos nacionalistas, os americanos se utilizaram da popularidade e do poder de persuasão de Mao para, estrategicamente, deter toda China ao seu lado contra o Japão, inimigo comum aos dois países. Além disso, a aproximação americana dos comunistas pretendia neutralizar qualquer ligação entre os chineses e a URSS, na hipótese dos comunistas subirem ao poder. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tentou promover a paz entre os dois poderes, entretanto, dos encontros entre as lideranças de ambos os lados, só resultou em confrontos abertos e o início oficial da guerra civil entre comunistas e nacionalistas. Os segundos detinham mais dinheiro, armamentos (fruto da aproximação com os EUA) e soldados, porém, a forte disciplina dos seguidores de Mao e a corrupção interna no partido fizeram com que os comunistas avançassem cada vez mais e retirassem territórios estratégicos controlados pelos nacionalistas. 84 Em 18 de janeiro de 1948 os comunistas ocupam Pequim (antiga capital imperial da China), apenas dez dias depois da fuga de Chiang Kai-shek para Taiwan, levando consigo quase toda riqueza do país. Alguns meses depois Chiang renuncia ao poder e no dia 1º de outubro de 1949, Mao Tsé-tung proclamou a vitória da revolução e a criação da República Popular da China. O líder comunista falou à população de um palanque montado sobre a entrada da Cidade Proibida, que havia sido a sede do poder imperial entre 1420 e 1911. Pequim voltava a ser capital do país, desta vez ocupada por um novo tipo de imperador (idem, p. 228). Durante os vinte e sete anos seguintes Mao Tsé-tung liderou a China, só deixando essa posição com sua morte em 1976. Quando assumiu o poder encontrou um país devastado pela guerra civil e pela invasão japonesa, reorganizando a China a partir do Partido Comunista da China (PCC), com células militantes espalhando por todo o país os ideais da revolução e as mudanças que estavam por vir (idem, p. 229). 3.1.5. A Era Mao (1949-1976) Dentre as primeiras ações de Mao estava a reforma agrária, implantada com o auxílio das células militares. Ele redistribuiu a terra dando direitos iguais para todas as pessoas, derrubando, por exemplo, a subordinação feminina, dando a elas terras, quer fossem separadas, solteiras ou viúvas. Combateu a propriedade e dessa forma conquistou ainda mais os camponeses pobres, cativando sua lealdade. Por se tratar de um regime totalitário, manejos como esse eram impostos à população, tendo em vista que a posse da terra é do governo, cabia ao povo obedecer o que lhe era designado e trabalhar para sobreviver. Em sessões públicas de confronto e humilhação, os antigos proprietários eram submetidos a críticas, ataques físicos e até a morte. Nas cidades, organizou os operários em unidades de trabalho, que cuidavam de questões como moradia, assistência médica, educação dos filhos e aposentadoria. Eles eram absolutamente subordinados às unidades, mas essa posição lhes garantia estabilidade e assistência do Estado. A inflação herdada do governo nacionalista foi controlada, criando uma nova moeda que perdura até hoje: o Renminbi, ou Yuan, sendo o primeiro nome da moeda e o segundo a unidade de medida na qual a moeda é contada. 85 Após um ano da Revolução de 1949, os chineses comandados por Mao ingressam na Guerra da Coreia (1950-1953). Nesse momento, o antigo aliado EUA torna-se o inimigo a ser combatido. Numa resposta à invasão da Coréia do Norte ao território da Coréia do Sul (com o apoio da URSS) os Estados Unidos, autorizados pela Organização das Nações Unidas (ONU), enviam tropas para defender seus aliados do sul, expulsando o exército invasor. No final de 1950, o general norteamericano promove uma invasão da região comunista e avança rumo à fronteira da China. Mao entende esse movimento como ameaça à segurança pública e envia o Exército da Libertação Popular, com 250 mil soldados, para atacar e defender seu território. Eles invadem a Coréia do Norte e vencem as forças da ONU, obrigando-os a recuar. Os confrontos seguem por três anos e terminam com a assinatura do armistício que manteve a fronteira entre as duas Coréias e criou uma zona desmilitarizada. A entrada da China na guerra contra os EUA representou um ataque direto ao imperialismo norte-americano, barrando o avanço das forças mais poderosas do mundo naquele período. Além disso, mostrou ao mundo o país que surgira em 1949. Enquanto ocupava-se com a guerra, Mao ainda promoveu campanhas contra grupos considerados inimigos, dentro da própria China. Faziam parte desse grupo pessoas que tinham qualquer ligação com o governo nacionalista ou que praticavam atividades ilícitas ao Estado, como: suborno, sonegação de impostos, roubo de propriedade estatal e etc. Empregados de todo país, em sessões públicas, atacaram seus patrões e os delataram ao Estado. O combate dessas ações, antes de tudo, era ao capitalismo. Com o objetivo de desenvolver rapidamente o país, Mao Tsé-tung implementa, em 1953, o Primeiro Plano Quinquenal, que consistia na criação de cooperativas nas quais os camponeses, ao invés de produzirem individualmente, produziriam em conjunto, aumentando assim os resultados. O líder chinês se inspirou na experiência soviética, priorizando o desenvolvimento da indústria em detrimento do campo. A esse respeito, Trevisan afirma que no período em que o plano vigorou, a produção industrial cresceu em média 18,7% ao ano, enquanto a renda nacional se expandiu a uma média de 8,9%. Os indicadores sociais também melhoraram, com redução da mortalidade infantil e do analfabetismo. Mas a ajuda soviética não saia de graça e a China teria que pagar os empréstimos e o apoio tecnológico recebidos do país vizinho. O problema é que a produção agrícola havia aumentado apenas 3,8% 86 ao ano no período do Primeiro Plano Quinquenal, apesar da coletivização, comprometendo o projeto de Mao TSE-tung de usar os camponeses para financiar a industrialização. Em 1957, a expansão foi de apenas 1%, para um crescimento populacional de 2% (idem, p. 234). Acreditando no sucesso de seu plano, Mao lança em 1958 o Grande Salto Adiante, tornando mais extremas as experiências de coletivização do campo, criando comunas e impondo um modelo no qual as fronteiras entre as ocupações não mais existiram. “O resultado foi uma das maiores tragédias da história da China – e do mundo. Cerca de trinta milhões de pessoas morreram de fome em razão da brutal queda na produção agrícola decorrente da desestruturação da produção” (idem, p. 235). Por medo de retaliações, os lideres regionais passaram a inflacionar a produção, enviando ao governo central tudo que era produzido, deixando os camponeses sem o mínimo para sobreviver. Diante da ilusão de sucesso, as metas tornaram-se cada vez mais absurdas, e os camponeses cada vez morriam mais para tentar cumpri-las. Em 1959 Mao Tsé-tung se retira da linha de frente do governo, quando ficou evidente o fracasso do Grande Salto Adiante. Quem assume em seu lugar é Liu Shaoqi, que reorganiza o país, acabando com muitas das políticas radicais do plano e liberando novamente o cultivo de pequenos pedaços de terra aos camponeses. Milhares de fábricas são fechadas e seus trabalhadores retornam para o campo. Num país de regime capitalista, essas pessoas engrossariam o grande caldo do desemprego e assumiriam atividades subalternas na sociedade. Entretanto, em ambos os regimes (capitalismo e comunismo), os subalternos sempre sofrem com os desígnios hegemônicos e subvertem-no da maneira que podem. Para intensificar o controle, o governo reduz a ênfase à indústria e estimula a fabricação de bens de consumo. Em 1963 rompe os laços com a URSS e, mesmo sem ajuda de externa, a economia retornara ao controle rumo a um crescimento sustentado. Descontente com a crescente popularidade de seu sucessor e divisão interna do partido, Mao resolve agir. 3.1.5.1. Grande Revolução Cultural Proletária da China (1966-1969) Com o auxílio do então ministro da defesa Lin Biao, Mao Tsé-tung inicia um culto a sua personalidade, marcando a China para sempre. Em 1964, Biao seleciona trechos dos discursos de Mao e monta “As citações do presidente Mao” ou “O livro 87 vermelho de Mao”. Essa publicação, inicialmente, foi distribuída aos soldados sob o comando de Biao e, posteriormente, passou a ser leitura obrigatória em escolas e unidades de trabalho, estratégia persuasiva de regimes totalitários. Com pouco tempo de distribuição, a imagem de Mao volta a ser venerada. Em maio de 1966, aos 73 anos, ele lança a Grande Revolução Cultural Proletária da China, que durou até sua morte em 1976. Para essa revolução dentro da Revolução, Mao conclama aos jovens e os instiga a atacar aos dirigentes do Partido Comunista bem como as instituições de controle do Estado, como a escola, por exemplo. Na incitação à rebeldia, o “ocidente e tudo o que tivesse relação com o exterior passaram a ser demonizados, incluindo livros, música, filmes e vínculos pessoais” (idem, p. 242). Há então um ataque à tradição, destruindo templos, museus, bibliotecas, escolas e tudo mais que representasse aquilo que estava sendo combatido. “A palavra de ordem era destruir os quatro velhos – velhas ideias, velhos hábitos, velhos costumes e velha cultura” (idem, p. 243). Mao retorna ao poder, novamente, conclamado pelo povo e protegido por seus “Guardas Vermelhos”, jovens que atuavam em nome da Revolução espalhando o terror pelo país. Eles usavam braçadeiras vermelhas e se utilizavam de técnicas de tortura e humilhação para combater qualquer resquício do que ocorrera outrora. Sobre esse período, Trevisan nos fala que Os “crimes” podiam ser os mais variados, desde ter tido um pequeno negócio no passado, ter proferido em algum momento qualquer frase que pudesse ser interpretada como contrarevolucionária, ser filho ou neto de antigos empresários e donos de terra ou ter qualquer forma de ligação com o Ocidente. Os suspeitos eram submetidos a embates públicos com seus acusadores e interrogados de maneira incessante até que confessassem o que os Guardas Vermelhos queriam ouvir. Muitos eram torturados ou espancados até a morte. Vários cometiam suicídio (idem, p. 243). Com os crescentes confrontos entre grupos de Guardas Vermelhos e a situação cada vez mais fora de controle, em 1968, Mao ordena a desmobilização da Guarda, que prontamente o atendeu. No ano seguinte, ele os envia para o campo, onde seriam reeducados pelos camponeses e seriam mantidos sobre controle. Para Trevisan, essa foi a maneira que Mao encontrou de acabar com o monstro que havia criado. Mesmo em meio ao clima de tensão instaurado por suas ordens, Mao Tsé- 88 tung conseguiu sair dessa situação ainda mais forte, aclamado pelos chineses que tinham nele quase uma figura de Deus. 3.1.5.2. Os últimos anos do timoneiro (1969-1976) Após a morte de Lin Biao, em setembro de 1971, o escândalo que uma possível traição por parte dele a seu líder Mao abalou a crença cega do povo. Depois de alguns incidentes, Mao começa a reconstrução do PCC e do aniquilado Exército de Libertação Popular. Além disso, os anos 1970 marcam a reabertura na política externa chinesa representada pela retomada do diálogo com os EUA. Em 1972, o então presidente norte-americano Richard Nixon visita Pequim e Xangai, com o propósito de reaproximar os interesses das nações contra um inimigo comum: a URSS. O responsável pela visita de Nikon foi o primeiro-ministro Zhou Enlai. Junto a outros líderes do PCC, consegue ascender ao poder do mesmo, reabilitando outros líderes perseguidos durante a Revolução Cultural. Juntos eles compunham a “Gangue dos Quatro”, liderada por Jiang Qing, em oposição interna a Mao Tsé-tung. Doente, Enlai esperava que Deng Xiaoping (vice-primeiro-ministro) assumisse seu cargo no governo. O ano de 1976 foi marcado por uma sucessão de mortes. Em 8 de janeiro do chamado “ano da desgraça”, Zhou Enlai morre por causa do câncer. Sua morte é sentida pelo povo que entrega tributos em sua homenagem na Praça da Paz Celestial. No dia seguinte, a polícia recolhe os tributos, causando uma comoção popular contra a “Gangue dos Quatro” e Mao Tsé-tung. Deng Xiaoping é responsabilizado e novamente afastado no PCC. Em 9 de setembro do mesmo ano, Mao Tsé-tung morre, indicando para sua sucessão Hua Guofeng. Guofeng assume o comando ordenando a prisão da “Gangue dos Quatro” e esses foram levados a julgamento em novembro de 1980. “Os quatro foram responsabilizados por terem perseguido e incriminado falsamente 729.511 pessoas durante a Revolução Cultural, das quais de 34,8 mil até a morte” (idem, p. 249). Jiang Qing cometeu suicídio no dia 14 de maio de 1991, aos 77 anos e os outros três integrantes do grupo morreram entre 1992 e 2005. Hua conseguia agradar ao povo em suas primeiras decisões, porém, ao tentar manter obediência aos ensinamentos de Mao Tsé-tung, minou suas chances de se 89 manter no poder e permitiu a ascensão de Deng Xiaoping ao comando do PCC. “Depois da prisão da ‘Gangue dos Quatro’, Deng retomou o cargo de vice-primeiroministro da China e acabou personificando o espírito da reforma” (ibidem). A China tinha um novo líder (sem superar Mao, obviamente), aclamado por seu povo. 3.1.6. Deng e o capitalismo chinês (1976-2011) As reformas instituídas por Deng Xiaoping fizeram da China o mais espetacular caso de reestruturação econômica da história. Graças à disciplina culturalmente estabelecida, com jornadas de trabalho exorbitantes e um grande regime de controle sobre a produção, a China prosperou, sobre o suor de seu povo, sobre a disciplina oriental, tão diferente da disciplina ocidental. A abertura do país à globalização e as regras de mercado fizeram com que ocupassem lugar de destaque na produção e circulação de mercadorias em escala global. As reformas começaram com a extinção do regime de comunas agrícolas e a permissão de cultivo de pedaços de terra de maneira individual e venda de parte da colheita a preço de mercado. Essa mudança permitiu um rápido aumento na produção e melhora na vida dos camponeses. No começo da década de 1980, são instituídas as Zonas Econômicas Especiais (ZEE) que concediam incentivos fiscais para investimentos estrangeiros e possuíam relações trabalhistas mais flexíveis. Voltadas à exportação, as ZEE foram criadas em pontos estratégicos da China, em sua maioria perto da capitalista Hong Kong e, com o sucesso, se espalharam pelo restante do país. Fora dessas zonas as famílias começaram a abrir pequenos negócios, aproveitando a liberdade concedida pelo Estado. Com essas reformas Deng conseguiu mudar a paisagem da China e impulsionar um rápido crescimento econômico para o país. Por todos os lados havia obras de infraestrutura preparando as cidades para sua urbanização. Ao mesmo tempo, os jovens degredados no período da Revolução Cultural retornavam gradativamente para as cidades, retomando seus estudos. Para atendê-los e compreendendo a necessidade de mão de obra cada vez mais qualificada, Deng fez maciços investimentos na educação (básica e superior), abrindo as portas das universidades. O líder supremo da China arrumava seu país e esticava a mão para os demais. 90 Deng visitou diversos países do ocidente (como EUA, Europa Ocidental e Sudeste Asiático) e ainda restituiu relações com o Japão, superando as feridas históricas que os separavam. Ele ainda levou o país a integrar organizações multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Além disso, unificou novamente os territórios chineses colonizados por outros países, realizando acordo a longo prazo com o propósito de beneficiar ambos os lados. Em se tratando das cifras, nos aponta Trevisan que na medida em que o processo de abertura progrediu, a China passou a receber quantidades crescentes de investimento estrangeiro direto, aquele que é destinado à construção de fábricas, lojas, supermercados, edifícios e obras de infraestrutura. Entre 1980 e 2007, o país foi o destino de US$ 734,5 bilhões em investimento estrangeiro direto, o que o colocou na liderança absoluta entre todas as nações em desenvolvimento. O fluxo se acelerou ainda mais depois de 2001, quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC) e passou a fazer parte do sistema que rega as trocas globais de bens e serviços (idem, p. 256). O fim do Império do Meio e o longo período de fechamento e repressão da Era Mao fizeram com que muitos chineses fugissem de seu país. Dessa maneira, surgiram em diversos pontos do mundo aglomerados chineses, os Chinatowns, “que tentam replicar nos países de destino o universo que os imigrantes haviam abandonado” (idem, p. 258). Dentre elas, a língua corrente (o mandarim e o cantonês do sul da China), a arquitetura e pequenos costumes culturais próprios de uma sociedade rígida e milenar como a chinesa. Nesses espaços surgiam redes de proteção e solidariedade, junto aqueles que não tinham mais um lugar no mundo. Esses chineses emigrantes se espalharam pelo mundo, muitos deles encontrados em Ciudad Del Este, como vimos no capítulo 02. Em suas novas cidades, ou Chinatowns, criam pontos de conexão entre a China e o lugar. Importam mercadorias produzidas lá, trazendo para ali ou para aqui. Vi muitos desses chineses em São Paulo, na conhecida Rua 25 de março, falando seu “português achinezado” que tanto nos lembrava do Paraguai. Embora tenha se aberto às regras de mercado, abraçando a globalização e seduzindo o capital internacional, o Estado continua a comandar a economia chinesa. O “capitalismo chinês” é comandado pelo Estado, através das empresas estatais, do investimento público em infraestrutura e de associações com empresas privadas nacionais e internacionais. Mesmo as empresas de capital privado 91 representando a maior parte do PIB do país, são os dirigentes chineses quem controlam o “modo socialista do capitalismo”. Eles sustentam que “capitalismo” não é o termo adequado para definir as transformações pelas quais passa o país. Segundo eles, a China é uma “economia socialista de mercado”, que aderiu às leis de mercado, mas não aos elementos do capitalismo – entre os quais está a primazia da propriedade privada (idem, p. 311). Nessa “poética” econômica chinesa, a presença marcante do Estado em conjunto com a integração à economia global permite a China localizar-se enquanto um poder diferenciado das demais potências mundiais. Eles se apropriam do capitalismo sem levar consigo parte dos problemas que esse sistema econômico acarreta (como a pobreza extrema, favelamento, entre outros) embora não estejam livres de questões como pobreza e criminalidade. O que de fato impressiona e justifica este recorde histórico é compreender como a produção de mercadorias chinesas se espalhou pelo mundo e como esses objetos modificam a vida de vendedores ambulantes, através de nossa globalização subalterna. 3.1.7. Algumas considerações à cerca Guangdong e suas bugigangas Como apresentei nas páginas anteriores, determinados fatores históricos foram cruciais para a consolidação da China como a potência mundial vista hoje. Com Rosana Pinheiro-Machado retornaremos ao Delta do Rio da Pérola. De acordo com sua pesquisa de campo (PINHEIRO-MACHADO, 2009, p. 67), a região do “Grande Delta” é o maior polo industrial do mundo, se valendo também das condições geográficas, hidrográficas e do posicionamento dos portos. As reformas adotadas por Deng fomentaram a industrialização acelerada e permitiram que Guangdong retornasse ao destaque na economia chinesa e ocupasse o posto de província mais urbanizada do país. De acordo com a autora a região mais industrializada concentra pequenas, médias e grandes indústrias da China e produz desde a mais corriqueira bugiganga de plástico até a mais sofisticada high-technology, como a indústria química, a petroquímica, automobilística e a produção de navios (idem, p. 68). Guangdong concentra as principais ZEE instituídas por Deng. As características atrativas dessas zonas atraíram investimento externo para a região 92 com os olhos voltados para a exportação. Como já foi dito, essa região concentra 1/3 de toda a indústria chinesa de produtos Made in China. Lá estão aproximadamente 100 mil fábricas45, excluindo as pequenas fabriquetas ilegais não contabilizadas. Dentre as 500 maiores multinacionais do mundo, 400 têm negócios em Guangdong, “há mais de noventa mil investimentos estrangeiros e aproximadamente três mil representações de empresas instaladas na província – o que marca definitivamente a sua vocação para o mercado externo” (idem, p. 72). Além de todo esse massivo investimento multinacional, o mercado cantonês é dominado por pequenas e médias empresas, muitas delas informais (logo, subalternas!), que produzem pequenas mercadorias, além da indústria da cópia especializada nos mais diversos produtos. Não é possível afirmar com certeza que o nosso Maneki Neko seja produzido em Guangdong, porém, utilizá-lo bem como narrar a história dessa província e de toda a China serviu para arrematar a compreensão da ligação entre China-ParaguaiBrasil, feita através da economia, mas, principalmente através das pessoas e das mercadorias que carregam. No título desta dissertação falo de “objetos para pensar”. Esses objetos são singularizados, por mim, na figura do Maneki Neko, esse gatinho da sorte que ganhou o mundo balançando seu braço e do qual falarei a seguir. 3.2. Maneki Neko 3.2.1. As lendas O “Gato da Sorte” ou Maneki Neko foi o objeto que escolhi para exemplificar a globalização subalterna, realizada através de mercadorias de baixo valor econômico, bugigangas, que habitam todo o mundo partindo do porto de Guangzhou, na China pós-Mao. Com o propósito de entendermos melhor do que se trata esse objeto, realizei uma vasta pesquisa em sites na internet, que tratam de assuntos relacionados à cultura japonesa e, seguindo os hiperlinks criados, chegamos a algumas histórias que se repetem. Dessa forma, contaremos a seguir algumas das versões encontradas para a lenda do gatinho. 45 Idem, p. 70. 93 Figura 26 Algumas versões do Maneki Neko O nome Maneki Neko significa, em uma tradução literal46, “gato que acena” e é um dos talismãs (Engimonos) mais conhecidos da cultura japonesa. Em Tokyo, no bairro de Setagaya, há um templo chamando Gôtokuji dedicado aos seguidores do gatinho com jardins bem cuidados e oratórios com estátuas do talismã. Ele data do Período Edo (1615-1868) e possui inúmeras representações, podendo ser de diversas cores e com a pata esquerda ou direita ou as duas levantadas, usar ou não coleira, guizo e moeda em uma das mãos. Geralmente é colocado em frente de portas ou caixas de estabelecimentos comerciais, como vimos em Ciudad Del Este. O gato da sorte é, tradicionalmente, inspirado na raça Bobtail Japonês e quando manchado (como o da direita na figura 26), dá boas-vindas para os clientes e deseja sucesso empresarial e felicidade pessoal. O gato preto deseja uma boa saúde e o dourado riqueza e prosperidade. Além disso, quando a pata esquerda está levantada é relacionado à atração de riqueza e bens materiais. Quando a pata direita está levantada é relacionado à atração da pessoa amada ou ao encontro de um grande amor. Existem versões em que a pata esquerda levantada atrai dinheiro enquanto a pata direita atrai clientes. De acordo com o site Aliança Cultural Brasil-Japão (2011), O gesto do manekineko que parece ser um convite, na verdade é o gesto de um gato limpando seu rosto. O gato é um animal tão sensitivo, que pressente a chegada de uma pessoa ou a aproximação de chuva. Essas mudanças em sua rotina, o deixam 46 http://www.urawazabugeikai.com.br/index.php/cultura/59/81-manekineko 94 inquieto. Então, ele começa a dar voltas ou esfregar seu rosto, pois esse tipo de comportamento tranquiliza-o. Mas para um ser humano isso pode ser interpretado como "se o gato esfrega seu rosto, é sinal de chuva ou de visita". Essa pode ser uma das origens da lenda do manekineko. Como o gesto do gato esfregando seu rosto assemelhase a um aceno, as pessoas começaram associar que, colocando a figura de um gato levantando uma pata dianteira, as pessoas viriam. Por se tratar de uma lenda, existem divergências quanto a versões e origens. Seguindo, vamos às versões da lenda. A mais conhecida delas se refere ao encontro do Maneki Neko com o lorde guerreiro Naotaka Li (1590-1659). Segundo o site Nikkeypedia47 (2011), o guerreiro voltava da Batalha de Tennoji, pelo Castelo de Osaka, no qual comandou mais de três mil homens em março de 1615 quando, surpreendido por uma chuva, posicionou-se debaixo de uma árvore, próxima ao Templo Gôtokuji, em Setagaya. O Templo, na época, encontrava-se em estado decadente, com poucos fiéis e, consequentemente, sem recursos. No templo viviam um monge budista e sua gata, Tama, única companhia para ele. O monge conversava com Tama e lamentava a situação de ambos e do templo. Quase sem ter o que comer, o monge repartia com sua gata o pouco que dispunha e pedia a ela que o ajudasse a sair dessa situação. Esperando o fim da chuva sob a árvore, Naotaka Li olhou para a porta do templo e viu Tama sentada sobre suas patas traseiras. Curiosamente, a gata acenava com uma das patas dianteiras para o guerreiro. Encantando com tal façanha, Naotaka Li foi em direção a Tama junto ao templo. Derrepente, um raio atingiu em cheio a árvore na qual ele se abrigava. Imediatamente, o guerreiro percebeu que o gesto de Tama havia salvado sua vida, assim, entrou no templo e rezou agradecendo à graça que acabara de alcançar. Percebendo a situação do Templo, Naotaka ofereceu todo o dinheiro que levava consigo ao altar e, conversando com o monge, pediu que fosse utilizado para reformar o Templo. Após esse incidente, Naotaka Li e sua família passaram a frequentar Gôtokuji e, consequentemente, todas as pessoas do feudo também visitavam o local. Para homenagear Tama, o monge mandou esculpir uma estátua dela e colocou-a na porta do Templo. Aos visitantes, ofertava miniaturas como lembrança, para trazer boa sorte e espalhar a história pelo mundo. A segunda versão, também retirada do site Nikkeypedia (2011), retorna a meados da Era Edo (1615-1868), contando que no bairro de Imado, em Edo (hoje 47 http://nikkeypedia.org.br/index.php/Maneki_Neko 95 Tóquio), existia uma velha senhora e seu gato de estimação. A senhora passava por severas restrições financeiras, pois, devido a sua idade avançada, não conseguia um trabalho que lhes garantisse o sustento. Desesperada, a velhinha decide abandonar seu gato, já que não tem mais como alimentá-lo. Chorando, ela decide dormir, e no dia seguinte concretizar sua difícil decisão. Em seu sonho, a velhinha encontrava-se com seu gato, que lhe dizia para moldar sua forma que lhe traria muita sorte. No dia seguinte, ao acordar, a senhora começa a moldar seu gatinho que estava, curiosamente, “lavando a cara”, como quem acena. Achando graça na postura do animal, a velhinha o molda assim, com a pata levantada. Enquanto moldava, uma pessoa passa em frente à sua casa e, fascinado pela escultura, decide comprá-la. Como estava em dificuldades, a velhinha vende sem recusa e, com o dinheiro da venda, compra alimento para si e para seu gatinho. Alimentada, ela decide fazer uma nova escultura, como recordação da boa sorte trazida por seu gato. Curiosamente, outra pessoa a vê e compra segunda estátua. Quanto mais estatuetas eram feitas, mais eram vendidas. Assim, nunca mais a velhinha e seu gatinho passaram fome e a estatueta do gatinho que lhe deu sorte passou a ser chamada de Maneki Neko. A terceira e, talvez, mais curiosa das lendas conta que, na Era Meiji, o Japão tinha planos de se ocidentalizar e, para tal feito, proibiu a exposição de símbolos sexuais e de fertilidade utilizados nos bordéis da época. Assim sendo, inspirado no aceno das prostitutas, surgiu o gato com a pata levantada, que demarcava aos inscritos nesse código os pontos para diversão. Com o passar das eras, o Maneki Neko ganhou significados mais nobres e difundiu-se como símbolo atrativo da boa sorte, fregueses e, consequentemente, dinheiro. 3.2.2. O nosso aqui, comprado ali, vindo de lá Quando estive no Paraguai pude ver a vastidão de possibilidades para o nosso gatinho da sorte. Ali, em meio às prateleiras de vidro abarrotadas de bibelôs, o vi em várias formas, materiais, cores e tamanhos. Ele podia ser branco, preto, amarelo, verde ou dourado. Mover seu braçinho sem sair do lugar ou, alimentado por uma pilha, chamar quem quer que fosse pelo tempo da energia. Como grande parte dos produtos tratados neste trabalho, reproduzem-se a exaustão as 96 possibilidades e materiais do Maneki Neko, para que pelo menos um conquiste o seu coração. Fui conquistado por três, dois em uma espécie de “porcelana não tão fina assim” e um feito de um plástico duro e luminosamente dourado. É no dourado que vamos nos aprofundar. Comecemos pela caixa. Feita em papelão, ela é repleta de escritos em ideogramas japoneses e colorida de um amarelo que chega ao ocre. Em seus cantos, encontramos arabescos em vermelho que se misturam com os escritos e as fotos, parecem deslocados, mas necessários nesse contexto. Com escritos em vermelho, apresenta em três de suas faces fotos do produto em diferentes cores e posições. Ao fundo de suas fotos se espalham moedas de todas as cores, reforçando a “função” desse bibelô. Abaixo de cada foto, encontramos um código de identificação do produto (analisaremos o NO: 0256A) e na tampa, as letras “A”, “B”, “C” e “D”. Logo, podemos constatar que essa mesma caixa atende a quatro demandas diferentes, atende a quatro modelos de gatinho da sorte e serve como padrão organizador para os futuros revendedores em qualquer lugar do mundo, em especial no Paraguai. Ainda falando da caixa, o enorme “MADE IN CHINA” na lateral da caixa demarca a “origem do produto”. Na outra face lateral encontramos instruções em inglês que orientam a instalação da pilha e alertam para possíveis problemas. Evoco aqui novamente algumas considerações de Massimo Canevacci, utilizadas no começo desta dissertação. Posso afirmar que o objeto dourado que descrevo é um body-corpse. Um organismo cadáver, inerte, envolto em plástico bolha pronto para viajar o mundo em suas memórias póstumas. Porém, as instruções dizem para inserir em sua base uma pilha tamanho AA. Essa pilha então, é responsável por “dar vida” ao gatinho, religar o sistema de body-corpse, dar a ele um movimento, uma interação com o espaço no qual irá habitar. O nosso gatinho dourado tem então vida, na prateleira de livros a frente da mesa onde esta dissertação foi escrita. De dentro da caixa saiu o gatinho. Como já dissemos, ele é dourado. Um dourado meio cobre, meio vermelho, meio um dourado kitsch. Na parte interna de suas orelhas encontramos um vermelho sangue, no mesmo tom de sua coleira infestada de bolinhas brancas com um pingente igualmente dourado. A coleira com o pingente advém das histórias que contamos acima, ele, o Maneki Neko, era um gato doméstico que foi eternizado e passou a habitar casas e comércios por todo o mundo. Abaixo da coleira vemos um lenço verde. Seus olhos são bem abertos, 97 quase que arregalados e profundos na profusão do plástico. Sua mão direita carrega uma placa enquanto a esquerda movimenta-se no compasso de um coração batendo. A vida do Maneki Neko está no seu braço e no que ele atrai. Figura 27 Maneki Neko adquirido no Paraguai e habitante da estante de livros Sentado, nosso gatinho acena. Nas suas costas seu singelo rabinho faz uma pequena oscilação na circunferência. Em toda sua parte superior não encontro parafusos ou sinais de cola, ele é todo encaixado, precisamente, bem acabado. Ele é feito em um plástico bem duro, bem resistente, curiosamente feito para durar enquanto muitos discutem a fragilidade e efemeridade dos produtos que trabalho. Embaixo dele está o espaço para o encaixe da pilha e um pequeno buraco, que não entendi sua função48, se é que preciso de uma. A partir dessa descrição detalhada sigo com as reflexões a respeito do Maneki Neko, partindo para uma análise dele no contexto econômico e cultural global. 48 Embora utilizado diretamente neste escritos, faz-se necessário destacar a importância do trabalho O sistema dos Objetos de Jean Baudrillard a esse propósito. 98 3.3. As mercadorias Made in China 3.3.1. Entre sacrifícios e biografias, com quem dialogo Dialogarei novamente com o indiano Arjun Appadurai e seus prepostos para entender “a vida social” das coisas em questão, as mercadorias Made in China (MIC), mais especificamente o Maneki Neko. Segundo Appadurai (2008) as mercadorias circulam pelo globo em uma vida social que, para além da visão econômica simplista, realizam transformações na vida social. Para ele Tal perspectiva pode ser sintetizada da seguinte forma: a troca econômica cria o valor; o valor é concretizado nas mercadorias que são trocadas; concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas nas formas e funções da troca, possibilita a argumentação de que o que cria vínculo entre a troca e o valor é a política, em seu sentido mais amplo. Esse argumento [...] justifica a tese de que as mercadorias, como as pessoas, têm uma vida social (APPADURAI, 2008, p. 15). Até o presente momento neste capítulo encaminhei a discussão para culminar nesse argumento. Concentrei esforços em apresentar, do fim para o começo, a circulação de um objeto confeccionado na China, exportado ao Paraguai e revendido no Brasil. É na seara dessa circulação que está a parte que discutimos da globalização subalterna. O que proponho então, neste derradeiro capítulo, é tratar dessas mercadorias que circulam pelo mundo, subalternas desde sua confecção até seu destino final e concretizam tudo que disse neste trabalho. De modo claramente provisório, Appadurai define mercadorias como “objetos de valor econômico”. Para definir valor econômico, o autor se utiliza da definição de Georg Simmel (1907) que entende esse termo como o julgamento que os sujeitos fazem sobre os objetos e não uma característica inerente a eles. Ou seja, os objetos MIC são de baixo valor econômico pela avaliação subjetiva dos sujeitos que os qualificam (em muitos casos, desqualificam) e essa avaliação pode ainda ser relativizada dependendo de diversos fatores como o grupo social ao qual se pertence ou se almeja pertencer. Como já disse Canclini, o consumo desenha pertencimentos e esses pertencimentos delimitam subjetividades valorativas. Em uma citação de Simmel, Appadurai (idem, p. 16) fala que os objetos só são valiosos quando opõem resistência a nosso desejo de adquiri-los. Ele segue em sua interpretação dizendo que quando decidimos adquirir um objeto 99 automaticamente estamos sacrificando outro que se tornará desejo de outrem. Segundo o autor, para Simmel, o que gera o valor econômico é essa espécie de troca de sacrifícios. Dessa forma a troca assume o lugar de fonte da valoração mútua do objeto. Ou seja, são as trocas, suas quantidades e subjetividades que determinam o valor do objeto. No caso dos MIC, no circuito subalterno de consumo, quanto mais procurado é o objeto, maior valor ele tem. Essa questão extrapola a conhecida “lei da oferta e da procura”, ela se emaranha pelos campos da subjetividade que determinam a escolha e o sacrifício, é o sujeito e sua subjetividade quem determinam o destino das mercadorias em sua vida social. Outro termo importante que trata Appadurai (ibidem) e que vale o destaque é “regimes de valor”. Esses regimes são determinantes na compreensão da circulação das mercadorias pelo globo. O Maneki Neko, a meu ver, está inscrito em um regime de valor cultural, que extrai da mitologia japonesa os elementos que crenças e desejos podem revelar. Independente de acreditar ou não no “poder” sobrenatural atrativo do objeto, a subjetividade que escolhe o transporta para seu mundo e lhe confere um lugar. O meu habita a estante de livros, o dos chineses no Paraguai habitava os caixas e tantos outros habitam tantos outros lugares que nem posso imaginar. É no regime de valor cultural que encontramos a integração globalizadora desse objeto em sua vida social. Igor Kopytoff, colega de Arjun Appadurai na Universidade da Pensilvânia, assina o segundo capítulo do livro que trabalho neste tópico. Intitulado A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo, o capítulo inicia apresentando, como fez Appadurai, a perspectiva simplista dos economistas sobre as mercadorias no contemporâneo. Segundo Kopytoff, para eles, as mercadorias simplesmente existem, Ou seja, certas coisas e certos direitos a coisas são produzidos, existem e podem ser vistos circulando por meio do sistema econômico, conforme vão sendo trocados por outras coisas, geralmente por dinheiro. Essa visão, evidentemente, abarca a definição de mercadoria segundo o senso comum: um item com valor de uso e que também tem valor de troca (Kopytoff in APPADURAI, 2008, p. 89). O que Kopytoff faz é manipular o conceito como definiu Appadurai em suas leituras de Simmel e Marx e simplificá-lo enquanto valor de uso e troca. O autor segue afirmando que da perspectiva cultural, produzir mercadorias é também um processo cognitivo, ao passo que as mercadorias não devem apenas ser produzidas 100 como coisas, mas sinalizadas como um determinado tipo de coisa. Além disso, a classificação dos objetos como mercadorias depende de diversas situações, saltando de categorias ora como objeto ora como mercadoria. Em outras situações, a mercadoria pode ser vista como tal por uma pessoa e como objeto por outra. “Essas mudanças e diferenças nas circunstâncias e nas possibilidades de uma coisa ser uma mercadoria revelam uma economia moral subjacente à econômica objetiva das transações visíveis” (ibidem). Estamos diante, novamente, da subjetividade. Figura 28 Maneki Neko numa loja de chineses no Paraguai, alternando entre objeto e mercadoria Por serem produzidos na China, os MIC são sinalizados como produtos de baixa qualidade dada sua produção em larga escala e com custo reduzido. Essa sinalização é feita na esfera social e pôde ser observada nas conversas com os consumidores do SP em Cuiabá. O imaginário social que permeia essas mercadorias é imbricado do valor atribuído por quem consome. De quando são produzidas até chegar à mão do consumidor final, o Maneki Neko saltou de categorias, de mercadoria para contrabando, de contrabando para mercadoria, de mercadoria para desejo, de desejo para objeto. Em outros casos, principalmente no comércio subalterno, estar na categoria de objeto não garante a segurança da coisa, 101 já que dependendo do desejo de outrem, ela pode retornar a categoria de mercadoria por parte de seu dono. 3.3.2. Biografia do Maneki Neko O que fiz no tópico anterior foi preparar o terreno para a constituição da biografia dos objetos MIC, singularizadas no Maneki Neko. Kopytoff, a propósito da abordagem biográfica nos diz As biografias têm sido abordadas de várias maneiras na antropologia [...]. Pode-se apresentar uma biografia de verdade, ou construir um modelo biográfico típico a partir dos dados biográficos montados aleatoriamente, tal como se faz nos recorrentes capítulos das etnografias dedicados ao Ciclo da Vida. Um modelo biográfico dotado de maior consciência teórica é um tanto mais complicado. Ele é baseado num número razoável de histórias verdadeiras. Apresenta uma variedade de possibilidades biográficas oferecidas pela sociedade em questão e examina a maneira pela qual essas possibilidades são concretizadas nas histórias de vida de várias categorias de pessoas. Ele examina, ainda, biografias idealizadas, eleitas pela sociedade como modelos desejáveis, e como são percebidas as variações reais do modelo. [...] Parece-me que é vantajoso fazer a mesma variedade e modalidade de perguntas culturais para desvendar as biografias das coisas (idem, p. 91-2). A abordagem de Kopytoff me motivou a adotá-la como método de análise dos MIC na globalização subalterna. Segundo o autor, para fazemos a biografia de uma coisa, faremos perguntas similares às feitas às pessoas, como Quais são, sociologicamente, as possibilidades biográficas inerentes a esse “status”, e à época e à cultura, e como se concretizam essas possibilidades? De onde vem a coisa, e quem a fabricou? Qual foi a sua carreira até aqui, e qual é a carreira que as pessoas consideram ideal para esse tipo de coisa? Quais são as “idades” ou fases da “vida” reconhecidas de uma coisa, e quais são os mercados culturais para elas? Como mudam os usos da coisa conforme ela fica mais velha, e o que lhe acontece quando a sua utilidade chega ao fim? (idem, p. 92). Embora muitas dessas perguntas já tenham sido respondidas no decorrer de toda a dissertação, as reuno a seguir, na sequencia proposta para esquematizar um escopo da biografia do Maneki Neko na globalização subalterna contemporânea. Socialmente, como já disse em diversas passagens, os produtos MIC são estigmatizados como de baixa qualidade em consequência de sua geral fragilidade e pouca durabilidade. Esse status de “baixo valor” acompanha a emergência da China como potência mundial em exportação de produtos industrializados em larga escala, 102 em sua maioria copiados de outros circuitos comerciais. Os Chineses são os “mestres da cópia”, sendo esta atividade culturalmente legitimada. Assim sendo, todos esses fatores devem ser considerados ao tentarmos traçar uma biografia dos MIC, representados pelo Maneki Neko. Figura 29 Maneki Neko em cerâmica numa loja de japoneses no Paraguai A história do Maneki Neko advém da lenda japonesa difundida por todo o mundo. A partir da representação em argila do gatinho da sorte e sua forte carga cultural no Japão, os chineses “importaram” essa figura do imaginário japonês replicando-a em suas fábricas e fabriquetas clandestinas, exportando em caixas como a descrita anteriormente. Como afirma Pinheiro-Machado (2009), diversas fábricas chinesas abrigam em seu subsolo outras fábricas, que confeccionam outros produtos além dos autorizados pelo governo. Possivelmente, é de uma dessas fabriquetas que saiu meu Maneki Neko, o da estante de livros. Uma vez confeccionado na China, o Maneki Neko parte do Porto de Guangzou ou outro do ZEE e viaja pelo oceano em enormes containers repletos de 103 MIC. São descarregados na América do Sul e viajam para o Paraguai dentro de caminhões sem identificação, no interior das enormes caixas que vi transitando pelas vielas de Ciudad Del Este (no capítulo 2). Essas caixas são distribuídas pelas “lojas” e shoppings e são rapidamente desmanteladas, acomodando os MIC de acordo com a praticidade diária do comércio. Embora pareça que finalmente as mercadorias chegaram ao seu destino, elas estão apenas na metade de seu caminho. Instalados em seus lugares, os objetos MIC esperam o momento no qual serão novamente escolhidos. Figura 30 Vários Maneki Nekos em diferentes materiais Já no Paraguai as mercadorias são novamente selecionadas pelos atores sociais que naquele momento desempenham o papel de compradores, mas que posteriormente tornar-se-ão intermediários ou vendedores. Novamente adquiridos, os MIC voltam a ser embalados e novamente são desidentificados para enfrentar a fiscalização brasileira. Em meio aos jogos de poder e recursos, esses objetos entram e viajam Brasil adentro, espraiando-se por cidades de todos os portes, no Norte ao Sul do país. Aqui dentro, os MIC voltam a ocupar as vitrines, voltam à 104 condição de mercadorias, como vemos na figura 28, uma vitrine na famosa Rua Vinte Cinco de Março, na cidade de São Paulo. O gatinho da sorte inventado no Japão, que veio da China, passou pelo Paraguai, ocupa as vitrines de lojas do comércio popular brasileiro, como no caso da Vinte Cinco de Março, e fica novamente exposto à produção e consumo subjetivos. Já no Brasil, os MIC estão mais expostos ao consumidor final, estão mais próximos de deixar o status de mercadoria e passar a objeto, seja de decoração ou superstição. Entretanto, os comerciantes ambulantes que não dispõem da possibilidade de ir ao Paraguai para comprar suas mercadorias, acabam por adquirilas em São Paulo e, nesses casos, os MIC voltam a transitar para ainda mais longe. Figura 31 Maneki Nekos no caixa da loja na Galeria do Rock – SP Durante as pesquisas de campo, encontrei similitudes de hábitos e usos do Maneki Neko que, sem dúvidas, fazem parte da biografia desse. Como já sabemos, no Paraguai alguns chineses utilizam o Maneki Neko em seus caixas, para que ali ele possa executar sua função atrativa monetária. Em São Paulo, visitando a Galeria do Rock, espaço que, como o próprio nome já diz, abriga produtos e serviços relacionados a esse estilo musical, encontrei numa loja de tênis um Maneki Neko no 105 caixa. Curiosamente, lá estava ele, como no Paraguai, balançando seu bracinho para atrair clientes. Pelo sim, pelo não, fui atraído, sem saber se pelos tênis ou pelo gatinho. De volta a Cuiabá, continuei com a pesquisa de campo e, numa noite despretensiosa, encontrei no balcão de um restaurante de comida oriental instalado em um Shopping Center da cidade, ele, o nosso gatinho da sorte. Estava assentado no balcão, de frente para a entrada, ao lado do caixa, como em São Paulo, como em Ciudad Del Este, provavelmente como na China e no Japão. Perguntamos ao proprietário do restaurante onde ele o havia adquirido. Disse que foi no camelódromo e que acreditava na lenda que veio escrita junto ao Maneki Neko, ele acreditava no poder do objeto, eles ajudaram a concluir esta biografia. Figura 32 Maneki Neko no caixa do restaurante em Cuiabá – MT No que tange às “idades” ou “fases da vida” do Maneki Neko, acredito que pelo próprio percurso que faz desde sua confecção, já chega nas mãos do consumidor final em sua “fase adulta”, estando fadado ao envelhecimento, por vezes 106 precoce e, quando já não funciona mais ou adquire outro sinal de uso, é descartado em sua maioria no lixo, salvando apenas os que por sua relação afetiva com seus donos, vão para um cantinho do armário como recompensa pelos anos de serviços prestados. A proposta de apresentar a biografia do Maneki Neko serve para compreendermos como nesse percurso encontrei a globalização realizada por uma parcela grande da sociedade que está fora dos grandes fluxos hegemônicos de importação e exportação. É na vida social do Maneki Neko, aqui representando os produtos MIC em geral (ao menos os de sua categoria de “quinquilharias”) que a prática contemporânea do comércio popular subalterno se materializa, se realiza de fato. São nessas práticas que as pessoas comuns, subalternas, têm a possibilidade de participar ativamente de um processo global de circulação de mercadorias. Seja como vendedor ou consumidor é com os MIC que nós, sul-americanos, subalternos perante o mundo, desenhamos os nossos pertencimentos no comércio mundial e inscrevemos nossas práticas na economia internacional. 107 FECHANDO Depois de tantas viagens chega o momento de retornar. Escrever apenas conclusões sérias e repetitivas, ao passo que muito do que conclui escrevi durante todo o texto, ruiria com a leveza que tentei dar a este trabalho que tem tanto de mim. Acredito que o importante nessas derradeiras páginas seja apresentar o que aprendi com todo esse percurso, para além da titulação, sem desmerecê-la. Esse aprendizado que extrapola não apenas a erudição, mas transforma a vida do pesquisador e instaura um novo modo de fazer pesquisa no contemporâneo. Parti do aqui, fui para ali e, por meio das palavras, cheguei lá. O aqui representado pelo camelódromo fica para mim como esse marco representativo do trabalho no contemporâneo. Seja pela informalidade, pelo arranjo com pouco, pela subversão, o camelódromo em si representa os modos pelos quais operamos para dar conta da vida cotidiana. No caso deles, diante da adversidade da expulsão do centro para a borda, encontraram forças para erguer um prédio e mantê-lo em funcionamento por mais de uma década e meia, afrontando delicadamente os desígnios das forças hegemônicas. Aprendi com os camelôs que a criatividade é um estado de espírito que extrapola qualquer formação acadêmica. Ser criativo é sobreviver aos desafios que são impostos e fazer curvas, quando estas forem necessárias para cumprir o objetivo final. É ter determinação para ultrapassar fronteiras aparentemente fechadas, impossíveis, fiscalizadas. Traçar táticas para oferecer a outras pessoas um contato com o mundo de possibilidades que sai das fábricas. Aprendi a valorizar o trabalho de todas as pessoas, inclusive das que estão do outro lado da força, mesmo não concordando com as atitudes por elas tomadas. Compreendi que ter um espaço é de suma importância para efetivamente poder transitar e organizar esse espaço ajuda a mantê-lo ainda mais forte. Da convivência com esses camelôs, da escuta de suas falas, nasceu o desejo de vivenciar efetivamente a condição subalterna a qual eles eram submetidos, também, durante suas viagens. Mergulhar em uma viagem de campo sem qualquer auxílio de alguém já “iniciado” ou de um “informante”, por si só, já ensinaria muita coisa. No meu caso, mesmo desfrutando da companhia de Hugo, a viagem representava um transporte à outra realidade, longe da segurança de minhas manias e perfeccionismos. Longe de minha cidade, do camelódromo e da segurança de meu escritório, de onde sempre 108 escrevi meus trabalhos. Ir a um campo “exótico” fez com que me sentisse um etnógrafo de outra década e minha postura severa com o método, nas primeiras horas de investigação, confirmou tal erro. Felizmente, naquele momento crucial, tive alguém para me mostrar que as sensações e experiências são fundamentais, até mesmo na academia. Nas ruas do Paraguai aprendi a ouvir e valorizar a fala dos desconhecidos. A ouvir a experiência das pessoas e aprender com elas e utilizá-las como preciosos dados para minha pesquisa. Descontrolei-me e me entreguei às mercadorias como faziam os ”perambulantes” do camelódromo que tanto descrevi e observei. Mudei de lado e experimentei na prática a adrenalina de um ilegal, contrabandista, sonegador e demais adjetivos comumente atribuídos aos camelôs que, a meu ver, são só trabalhadores. Cruzei e recruzei a fronteira, afrontado a um sistema que só tinha ouvido falar. Ainda nas ruas de Ciudad, aprendi que a economia e demais assuntos comumente sérios e ensimesmados, ali, são reinterpretados, desconstruindo variações da bolsa de valores e taxas de câmbio. O câmbio ali é cultural, é praticado, é entre pessoas e não entre dígitos. Expus todos os meus sentidos andando nas vielas e becos, desviando de montanhas de caixas, entendi que as aparências, efetivamente como diz o ditado, enganam. Transformam imensos cubos de papelão em pequenos bibelôs de plástico, num processo quase de escavação artesanal no desembrulhar. Imprimem velocidade aos fluxos, com entradas e saídas delimitadas. Da viagem de campo a Tríplice Fronteira, ao final, ficou a certeza de que esse era o caminho que minha pesquisa deveria tomar. De volta ao aqui, pude pensar nesses fluxos que durante aqueles dias vivenciei e entendê-los dentro de uma dinâmica muito maior, uma dinâmica planetária de circulação de mercadorias. Pude pensar a globalização que se realiza, não diante das grandes multinacionais e potências, mas diante de uma parcela da população mundial que está subjulgada a esses poderes. A globalização subalterna que desemboca em Cuiabá, passa por aquele lugar ali, onde estive e onde desejo voltar, dentro daquelas caixas, na mão daquelas pessoas, nas mercadorias que vêm de lá. Infelizmente não fui à China. Entretanto, com a ajuda de outros pesquisadores que, como eu, compartilham desse interesse, o lá ficou mais perto do aqui. Esse dragão, como comumente é chamado, produz de maneira assustadora e espraia 109 para o mundo suas mercadorias, num processo de crescimento vertiginoso. Aprendi com a China que obstinação é a razão de seu sucesso. A superação permanente e o aproveitamento daquilo que lhe é ofertado ajudou e ajuda a legitimação dessa grande potência mundial. Entretanto, mesmo forte, a China continua cuidando dos detalhes, executando as minúcias, exportando quinquilharias. Difundindo seus Made in China. É nesses objetos, nos MIC, que minha atenção se encaminha para o fim. Por meio do Maneki Neko, esse adorável gatinho da sorte, que me trouxe muita sorte, pude pensar como o percurso que ele fez para chegar até minhas mãos reflete um fenômeno tão grande quanto a globalização. Além disso, como ele, tão desvalorizado socialmente, me ajudou a compreender como se constitui, efetivamente, a globalização subalterna. Esse movimento que experimentei nas viagens e acompanhei durante a pesquisa com os camelôs de Cuiabá, esse fenômeno pouco estudado que ainda alimenta minha curiosidade para além deste trabalho que finda. Encerrando minha lista de aprendizados está o pensar. Não o mecânico que o cérebro realiza, mas o pensar criticamente, o relacionar, o compreender, o não compreender. O amadurecimento de minha escrita e a articulação entre ideias e palavras, construindo um produto tão substancial como este que você, caro leitor, teve em mãos durante as últimas cento e tantas páginas. O que aprendi, para encerrar, foi a pesquisar, a indagar, a produzir muito singelamente, conhecimento. Agradeço por sua atenção e espero que tenha gostado dessa viagem a ChinaParaguai-Brasil ou vice-versa. 110 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. 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