Monografia de Mariana Vannuchi Tomazini
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Monografia de Mariana Vannuchi Tomazini
INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE MARIANA VANNUCHI TOMAZINI RESILIÊNCIA E EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL PELA AVENTURA EM AMBIENTES NATURAIS SÃO PAULO 2011 MARIANA VANNUCHI TOMAZINI RESILIÊNCIA E EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL PELA AVENTURA EM AMBIENTES NATURAIS Monografia apresentada ao Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo para obtenção do título de Especialista em Psicologia do Esporte Área de Concentração: Psicologia do Esporte Orientadora: Profª. Drª. Simone Sanches SÃO PAULO 2011 DEDICATÓRIA A todas as pessoas que enfrentam adversidades. Para que não esqueçam que há sempre algum recurso, interno ou externo, a ser mobilizado para enfrentá-las. AGRADECIMENTOS - À Minha família, meu apego seguro, que, com amor, limites e sabedoria, proporcionou-me autonomia progressivamente e me auxiliou a desenvolver recursos para enfrentar os desafios da vida. Obrigada por serem meu porto e me darem forças para desbravar os mares da existência. - À minha orientadora, Professora Doutora Simone Sanches, pela paciência, afeto e sabedoria. Sua presença foi de extrema importância. - À Outward Bound Brasil, por abrir suas portas e possibilitar esta pesquisa com tamanha gentileza e atenção. - Ao Flávio Kunreuther. Instrutor da Outward Bound Brasil e pesquisador da área da aprendizagem experiencial ao ar livre. Obrigada pelo seu tempo, atenção e palavras que me inspiraram. - Aos instrutores e alunos do FEAL (janeiro de 2011), pela receptividade e colaboração com a pesquisa. Obrigada por me permitirem adentrar seu universo interior, compartilharem seus aprendizados e, com eles, me ensinarem sobre a vida. - Aos meus Professores e Colegas da Pós-graduação, pelo afeto e sabedoria compartilhados. Obrigada por me auxiliarem a enxergar meus recursos internos e a ser mais resiliente, apesar das adversidades. Vocês ficarão sempre nas minhas lembranças e em meu coração. - Ao Instituto Sedes Sapientiae, por promover o curso de Formação em Psicologia do Esporte. - Aos meus amigos, pela hospitalidade, por serem minha “rede de apoio social” e um grande fator de proteção em minha vida. - A Deus, por ser meu apego seguro invisível. - À natureza, por ser meu Deus personificado. Sem vocês, esta pesquisa não seria viável! Obrigada EPÍGRAFE “Só o que está morto não muda. Repito por pura alegria de viver. A salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena”. (Clarice Lispector) RESUMO TOMAZINI, M. V. Resiliência e Educação Experiencial pela Aventura em Ambientes Naturais. 2011. Monografia (Pós graduação latu sensu ) - Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, 2011. Na atualidade, o método pedagógico da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais vem sendo bastante utilizado como ferramenta facilitadora do processo de ensino-aprendizagem e do desenvolvimento físico, cognitivo, emocional, moral, pessoal e social dos indivíduos. O presente método tem como princípio básico o potencial educativo das experiências seguidas de reflexão e, utiliza os desafios intrínsecos da natureza como recursos pedagógicos, impondo aos educandos situações de enfrentamento e superação de riscos. A resiliência, no âmbito da saúde mental, denota a capacidade dos indivíduos de, frente às adversidades inerentes ao desenvolvimento humano, preservarem a própria integridade psíquica e agirem de modo perseverante, flexível, adaptativo e construtivo. A resiliência compreende um processo complexo de interação entre fatores de risco e de proteção e os estudos acerca desta temática evidenciam a importância de se compreender quais são os fatores que prejudicam ou favorecem o desenvolvimento da capacidade de resiliência dos indivíduos. Neste ínterim, esta pesquisa possui como objetivo investigar o processo de resiliência no contexto da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais e, mais especificamente, os fatores de risco e de proteção nele envolvidos. Para tanto, foi realizada uma pesquisa de campo, de caráter qualitativo. Os dados foram coletados em um curso de Formação de Educadores ao ar Livre (FEAL), ministrado pela Outward Bound Brasil e, posteriormente, foram submetidos ao processo de Análise de Conteúdo de Bardin (1977). Os dados obtidos demonstram que os fatores de proteção à disposição dos educandos ao longo do curso superaram os fatores de risco enfrentados, tanto quantitativa como qualitativamente. Destarte, ao enfrentar situações desafiadoras, porém transponíveis, os educandos tiveram a oportunidade de vivenciar uma experiência positiva de superação de adversidades, o que por sua vez favoreceu o desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais, de recursos internos e externos de proteção e facilitou o aprimoramento da capacidade de resiliência destes. Os dados encontrados também apontam aspectos significativos acerca da aplicabilidade dos aprendizados e habilidades desenvolvidos durante o curso em outros âmbitos da vida dos educandos. Visto que os eventos estressores são indissociáveis do desenvolvimento humano e, a capacidade de enfrentá-los de modo construtivo é imprescindível à manutenção da saúde psicológica, o método pedagógico da educação experiencial evidencia sua relevância à área da saúde mental, na medida em que compreende uma ferramenta potencial de desenvolvimento da capacidade de resiliência dos indivíduos. Palavras-chave: Resiliência; Fatores de Risco e de Proteção; Educação Experiencial Pela Aventura; Ambientes Naturais. ABSTRACT TOMAZINI, M. V. Resilience and experiencial education through wilderness challenges. 2011 305 f. Monograph (latu sensu post-graduation) - Sedes Sapientiae Institute. São Paulo, 2011. Nowadays, the pedagogical method of experiential education through wilderness challenges has been widely used as a facilitating tool of the teaching-learning process, and of physical, cognitive, emotional, moral, personal and social development of individuals. This method has as basic principle the educational potential of experiences followed by reflection and, uses the inherent challenges of nature as pedagogical resources, so that imposes on learners situations of coping and overcoming risks. The resilience at mental health context, denotes the ability of individuals to, while facing the inherent adversity of human development, preserve their mental integrity and act in a tenacious, flexible, adaptive and constructive way. The resilience comprises a complex process of risk and protective factors interaction and the studies about this theme show the importance of understanding which factors promotes or harms the development of individual’s resilience. Thus, this research has as objective the investigation of the resilience process at experiential education through wilderness challenges context and, more specifically, the risk and protection factors involved in it. On this purpose, a qualitative field research was conducted. The data were collected at an Outdoor Educators Formation course (FEAL), ministered by Outward Bound Brazil, and submitted to the Content Analysis process of Bardin (1977). The results show that the protective factors available to educators throughout the course, overcame the risks factors faced, quantitative and qualitatively. Therefore, by facing challenge but also transposable situations, the educators had the opportunity to live a positive experience of adversities overcoming, which favored the development of personal and social abilities, of intern an extern protection resources and facilitated the improvement of their resilience capacity. The obtained data also show significant aspects about the applicability of learning and abilities developed during the course in other areas of the educators’ lives. Since the stressful events are inseparable of human development and, the capacity of facing them on a constructive way is indispensable to psychological health maintenance, the pedagogical method of experiential education demonstrates its relevance to the mental health area, because comprises a potential tool of individuals resilience development. Key words: Resilience; Risk and Protection Factors; Experiential Education Through Wilderness Challenges; Natural Environments SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................10 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 1.1. ADVERSIDADES INERENTES AO CICLO VITAL E RESILIÊNCIA....12 1.2. RESILIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO POR MEIO DA PRÁTICA ESPORTIVA....................................................................................18 1.3. ATIVIDADES FÍSICAS DE AVENTURA NA NATUREZA (AFAN), RISCO E RESILIÊNCIA...................................................................................21 1.4. EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL.......................................................................25 1.5. EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL PELA AVENTURA EM AMBIENTES NATURAIS E RESILIÊNCIA..........................................................................27 1.6. A OUTWARD BOUND E A EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL PELA AVENTURA........................................................................................................33 1.6.1. O Curso de Formação de Educadores ao Ar Livre (FEAL) da Outward Bound Brasil (OBB)......................................................37 2. MÉTODO 2.1. Objetivos.............................................................................................................43 2.1.1. Objetivo Geral.........................................................................................43 2.1.2. Objetivos Específicos..............................................................................43 2.2. Justificativa.......................................................................................44 2.3 Participantes..................................................................................................44 2.4 Instrumentos..................................................................................................46 2.5. Procedimentos........................................................................................46 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO..........................................................................48 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................144 5. REFERÊNCIAS..................................................................................................148 6. ANEXOS 6.1. Anexo I: Roteiro de entrevista realizada com alunos do FEAL............152 6.2. Anexo II: Roteiro de entrevista realizada com instrutores do FEAL...154 6.3. Anexo III: Questionário online aplicado aos alunos do FEAL..............156 6.4. Anexo IV: Termo de Consentimento Institucional.................................157 6.5. Anexo V: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.......................159 10 INTRODUÇÃO Atualmente, um dos recursos que vem sendo bastante utilizado como método pedagógico e ferramenta de desenvolvimento pessoal e social é a educação experiencial realizada em ambientes naturais, também conhecida como educação pela aventura. A educação experiencial parte do princípio de que as experiências seguidas de reflexão são potencialmente educativas. A frase: “O que ouço, esqueço; o que vejo lembro e o que vivo aprendo” sintetiza a importância da aplicação prática dos ensinamentos teóricos aos processos de aquisição, interiorização, e aplicação da aprendizagem. Na medida em que no ambiente natural o controle das variáveis é realizado pela natureza, a educação experiencial pela aventura envolve riscos e a superação de desafios. Neste contexto, o ambiente natural, seus desafios intrínsecos e as experiências nele vivenciadas, são utilizados como recursos pedagógicos. Os estudos sobre resiliência, no âmbito da saúde mental, investigam a capacidade dos indivíduos de superarem as adversidades de modo adaptativo e construtivo. Além disso, buscam compreender quais são os contextos que favorecem ou prejudicam o desenvolvimento do processo de resiliência. Visto que as adversidades são aspectos indissociáveis do desenvolvimento humano, a capacidade de enfrentamento dos fatores adversos de modo construtivo torna-se condição sine qua non à promoção da saúde psicológica. Neste ínterim, esta pesquisa parte da hipótese de que a educação experiencial pela aventura na natureza compreende um contexto de capacitação dos indivíduos para enfrentarem as adversidades inerentes à vida, ou seja, de facilitação do desenvolvimento da resiliência. Afinal, neste contexto, o educando sai de sua zona de conforto socioambiental para aventurar-se em um processo pedagógico no qual irá enfrentar inúmeros desafios e variáveis do ambiente natural, sob os quais não tem controle total, interagindo apenas com os educadores e outros educandos. A superação de desafios propostos por esta experiência demanda dos educandos, a aprendizagem e o aprimoramento de habilidades pessoais e sociais e a mobilização e desenvolvimento de recursos internos e externos de enfrentamento. Sabe-se que a superação de desafios facilita o desenvolvimento da autoestima, da auto-eficácia e da autoconfiança, aspectos essenciais ao desenvolvimento da resiliência. Neste sentido, na medida em que os programas educacionais norteados pela educação experiencial pela aventura visam promover o desenvolvimento integral 11 do ser humano, buscamos investigar se os benefícios propiciados por este método pedagógico também incluem o aprimoramento da capacidade dos educandos lidarem com as adversidades de modo mais positivo. 12 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 1.1.ADVERSIDADES INERENTES AO CICLO VITAL E RESILIÊNCIA A resiliência compreende a capacidade de, frente às adversidades, reagir de forma consistente, flexível, positiva e perseverante; buscar estratégias para preservar-se psicologicamente e recuperar-se; manter um equilíbrio dinâmico durante e após os embates; não se deixar consumir pelas demandas adversas e superar-se e superar as pressões de seu mundo com um autoconceito realista, autoconfiança e senso de autoproteção (PLACCO, 2002). De acordo com Yunes (2006), a origem do termo resiliência se deu na área de exatas, mais especificamente na Física, que a define como: “Capacidade de resistência de um material ao choque; energia potencial acumulada por unidade de volume de uma substância elástica, quando deformada elasticamente” (Dicionário Editora da Língua Portuguesa, 2009). Atualmente o tema da resiliência está bastante em voga nas áreas das ciências sociais e humanas. Sanches (2009) ressalta que a partir do final da década de 1970 a resiliência passou a ser objeto de estudo da psicologia e da psiquiatria, passando a ser investigada em inúmeras pesquisas cientificas. Na área da saúde mental, o conceito de resiliência adquiriu nova conotação, passando a ser definida como: A capacidade de resistir às adversidades, a força necessária para a saúde mental estabelecer-se durante a vida, mesmo após a exposição a riscos (...), a habilidade de se acomodar e de se reequilibrar constantemente frente às adversidades (ASSIS; PENCE; AVANCI, 2006, p. 18). 13 É imprescindível ressaltar que o conceito de resiliência investigado pelo presente estudo vai ao encontro da definição empregada pela Psicologia e pela Psiquiatria. De modo que, ao longo deste trabalho, utilizamos o termo como a capacidade de um indivíduo de defender-se e recuperar-se diante de fatores ou condições adversas (Dicionário Editora da Língua Portuguesa, 2009). Apesar de a resiliência ser objeto de pesquisa há apenas quatro décadas, desde os primórdios a sobrevivência do homem esteve condicionada à superação de adversidades. O enfrentamento delas é inerente à condição humana. O desenvolvimento humano é constante, dá-se através da relação dialética entre o homem e o meio ambiente e é permeado por adversidades em todas as suas fases. Logo, todos os indivíduos estarão sempre sujeitos a enfrentar situações adversas. Porém, alguns indivíduos conseguem superar-se, vivenciando as adversidades de forma construtiva, desenvolvendo recursos de enfrentamento e transformando a vulnerabilidade em potencialidade e amadurecimento, enquanto outros se tornam mais vulneráveis e sucumbem frente às circunstâncias adversas (ASSIS; PENCE; AVANCI, 2006). O conceito de “crise” do psicanalista Erikson (1972) também enfatiza a inerência dos períodos adversos ao longo do desenvolvimento humano. A crise não denota catástrofe iminente, mas um período de transição presente em todas as fases do desenvolvimento humano, em que a capacidade do indivíduo de responder adequadamente às demandas do seu meio torna-se defasada, demandando um salto qualitativo, para que ele possa readequar-se à nova realidade e desenvolver-se plenamente. Tal qual no processo de resiliência, se o indivíduo conseguir mobilizar e desenvolver recursos suficientes para enfrentar e ressignificar a nova realidade imposta pelo meio, o período de crise será uma oportunidade de desenvolvimento da autoconfiança, de reestruturação e fortalecimento de sua identidade. Ou seja, o fortalecimento ou a vulnerabilidade dos indivíduos depende da forma como reagem às crises e adversidades. Nos estudos iniciais acerca da resiliência, sua definição estava associada à invencibilidade ou invulnerabilidade, o que denota resistência absoluta ao estresse e imunidade a qualquer tipo de desordem, independente da situação vivenciada. Porém, visto que a invencibilidade e a invulnerabilidade não traduzem a resiliência de modo fidedigno, o termo evoluiu. Atualmente, sabe-se que o conceito de resiliência deve ser 14 analisado sempre de forma relativa, visto que ela está associada tanto a aspectos individuais e constitucionais dos sujeitos, quanto às variáveis ambientais. Logo, os estudos sobre a temática não podem negligenciar o amplo conjunto de fatores intrínsecos e extrínsecos ao indivíduo que influenciam na sua capacidade de enfrentamento das adversidades (YUNES; SZYMANSKY, 2002). Sanches (2009) afirma que não há uma receita para o desenvolvimento da resiliência. Mas é possível investigar quais são os contextos favoráveis ou desfavoráveis ao desenvolvimento do processo desta e quais são os aspectos que permeiam esse processo, através da identificação dos fatores de risco, que são eventos negativos que ocorrem ao longo do desenvolvimento de um indivíduo, podendo favorecer a ocorrência de problemas físicos, sociais ou emocionais e, dos fatores de proteção, que são os recursos internos e externos que cada indivíduo possui para lidar com esses riscos e que atuam reduzindo os efeitos e consequências negativas de estressores e de situações adversas, protegendo sua integridade física e psíquica e capacitando-os para o enfrentamento de riscos durante o ciclo vital. O processo de resiliência não existe sem os fatores de risco. Afinal, os fatores de proteção não possuem efeito na ausência dos fatores de risco, visto que o que o papel dos fatores de proteção é amenizar consequências negativas das situações adversas. Portanto, é justamente o enfrentamento do estímulo estressor que faz com que os indivíduos possam desenvolver e mobilizar fatores internos e externos de proteção (YUNES; SZYMANSKY, 2002). Dessa forma, resiliência compreende “um processo dinâmico que envolve a interação entre processos sociais e intrapsíquicos de risco e proteção” (ASSIS, PESCE; AVANCI, 2006). Apesar de didaticamente o haver a divisão entre os fatores de risco e de proteção, para auxiliar a melhor compreensão acerca dos aspectos que envolvem a resiliência, na realidade a relação entre ambos é bastante dinâmica e a linha que os divide, muito tênue. Assim, as pesquisas acerca desta temática nunca devem investigar os fatores de risco e os fatores de proteção como variáveis isoladas, devem sim, fazê-lo de modo contextualizado, processual e interativo. Segundo Yunes (2001), a maioria das pesquisas acerca do processo de resiliência utilizam métodos quantitativos de avaliação de dados, através da aplicação de testes psicométricos, questionários e testes de personalidade, associados a complexas análises 15 estatísticas. Apesar de evidenciar a grande contribuição destes estudos para a construção do conceito acerca do que é um indivíduo resiliente ou não-resiliente, a autora discorda de seu caráter classificatório e compreende que o modelo de investigação acerca desta temática deve ser reavaliado. Na medida em que a resiliência compreende um processo complexo de interação entre fatores de risco e de proteção, a sua investigação demanda uma análise mais qualitativa, pormenorizada e individualizada. Não se pode considerar a resiliência como um atributo fixo dos indivíduos, pois um indivíduo pode apresentar respostas adaptativas e positivas às adversidades em um dado contexto, e não necessariamente fazê-lo em outros. A intensidade com que os riscos são vivenciados pelos indivíduos e os efeitos deletérios que podem acarretar ao seu desenvolvimento dependem da qualidade e da quantidade de fatores de proteção que ele dispõe em cada contexto. Assim, o que é adverso para um indivíduo, não necessariamente o é para outro, pois, em função de suas idiossincrasias e experiências de vida, cada qual significa a realidade de modo diverso e possui um repertório de fatores protetores único, que poderão amenizar em maior ou menor grau os efeitos nocivos das adversidades (RUTTER, 1999 apud SANCHES, 2009). Yunes e Szymansky (2000) apontam que, não raro, um mesmo fator pode atuar, para um mesmo indivíduo, como um fator de proteção em dado contexto e como um fator de risco, em outro. Ademais, o conceito de risco também é relativo: o que pode ser um risco para um indivíduo, pode não ser para outro, pois a forma como as pessoas significam a realidade varia, de acordo com suas experiências de vida, características e recursos pessoais. Portanto, as variáveis contextuais e a complexa interação entre os fatores de risco e de proteção devem ser sempre consideradas ao se investigar o processo de resiliência. Segundo a literatura acerca da resiliência, alguns aspectos que atuam como fatores de proteção são: otimismo; flexibilidade; afetividade; sociabilidade; apoio social; autoestima; auto-eficácia; controle de impulsos e espiritualidade. (DE ANTONI; BARONE E KOLLER, 2006). Outros aspectos apontados como componentes de personalidades resilientes e, portanto, fatores protetivos da saúde psicológica são: criatividade; equilíbrio emocional; empatia; autenticidade; habilidades de comunicação; autoconhecimento; capacidade de encarar as adversidades como desafios; autoconceito positivo; esperança; capacidade de se auto regular; abertura às experiências e às mudanças; autonomia; responsabilidade; autoconfiança; tolerância; capacidade de 16 analisar situações e tomar decisões (TAVARES, 2002); senso de humor; assertividade; identificação com modelos positivos; capacidade de adaptação; disciplina; comportamento direcionado a metas, dentre outros (TROMBETA, 2000 apud SANCHES, 2009). Os estudos acerca do processo de resiliência ressaltam a extrema relevância da existência de redes de apoio social para o desenvolvimento humano, na medida em que atuam como um fator externo de proteção imprescindível ao desenvolvimento de recursos internos de enfrentamento. Porém, é necessário que os vínculos que compõem as redes de apoio sejam significativos, sólidos e permeados por afeto, presença e confiança. (ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006). A importância de vínculos significativos para a promoção da saúde mental e física também foi enfatizada por Bolwby (1984), o principal teórico do comportamento de apego. Bolwby (1984) compreende que os vínculos estabelecidos ao longo do ciclo vital, não são essenciais apenas ao ser humano, mas à maioria das espécies. Ao investigar o comportamento de apego em diversas espécies, o presente autor constatou que o bebê humano é, dentre os seres vivos, o que nasce mais vulnerável e possui o período mais longo de dependência da presença e atenção de cuidadores. A teoria do apego enfatiza que o indivíduo que satisfaz as necessidades fisiológicas e afetivas primitivas e primordiais do bebê, torna-se, para ele, uma figura de apego significativa. No mundo ocidental, esta figura é representada na maioria das vezes pela mãe, que é quem costuma exercer o papel da maternagem. Porém, qualquer indivíduo que exerça este papel, pode vir a ser a figura de apego. A figura de apego ideal para propiciar o desenvolvimento saudável do bebê, denominada apego seguro, deve ser afetiva, sensível às suas necessidades, acessível, confiável e presente. A ausência de figuras de apego na infância está intimamente associada com comportamentos desadaptados durante a vida. Porém o presente autor enfatiza que a presença de múltiplas figuras de apego, no caso de o bebê possuir inúmeros cuidadores, apesar de não ser tão eficaz quanto uma única figura de apego seguro, ainda é melhor do que nenhuma (BOLWBY, 1984). A existência de um apego seguro é imprescindível para que o bebê adquira confiança e se sinta seguro para, gradativa e progressivamente, explorar o ambiente e desenvolver sua autonomia. Ao longo do desenvolvimento da autonomia, a dependência 17 do vínculo com a figura de apego inicial vai diminuindo e novas figuras de apoio são eleitas, como por exemplo, o “grupo de iguais” na adolescência. O comportamento de apego em relação a figuras significativas está presente em todas as fases do desenvolvimento humano. Mas o vínculo estabelecido com a figura de apego inicial e a natureza deste vínculo são os mais relevantes ao longo do desenvolvimento humano, visto que facilitarão e influenciarão o estabelecimento e a natureza dos vínculos subsequentes do indivíduo (BOLWBY, 1984). Ao discorrermos acerca do desenvolvimento humano e do desenvolvimento da capacidade de resiliência, não podemos deixar de enfatizar o papel da escola, componente de extrema relevância da rede de apoio social dos indivíduos. Para Assis, Pesce e Avanci (2006), a escola é um dos tutores da resiliência mais importantes e potentes em nossa sociedade, visto que os educadores e profissionais que atuam neste contexto têm a oportunidade de estabelecer um contato diário intenso com os educandos e de acompanhá-los de perto em diversas fases do desenvolvimento humano. Neste mesmo sentido, Castro (2002) ressalta que a Educação deve facilitar o desenvolvimento da resiliência não apenas dos educandos, mas dos educadores. Ou seja, As instituições responsáveis pela formação dos educadores deve prepará-los para lidar com as adversidades do âmbito escolar e da vida. De acordo com Tavares (2002) uma demanda nuclear da sociedade atual é o desenvolvimento da habilidade de lidar com os riscos e eventos estressores, cada vez mais frequentes. Assim, os sistemas de Educação e de promoção da cidadania devem facilitar o desenvolvimento de mecanismos físicos, psíquicos, sociais, éticos e religiosos que favoreçam a capacidade de resiliência dos indivíduos. Para tanto, é necessário que os métodos, os meios, os conteúdos e os processos de ensino-aprendizagem sejam revistos, pois, para facilitar o desenvolvimento da capacidade de resiliência dos indivíduos, uma nova dinâmica de ensino-aprendizagem deve ser criada: uma dinâmica dialética, desafiadora, inovadora, que permita as educandos serem atores do processo de aprendizagem e vivenciarem situações reais, do mundo e da vida como o são. A temática da resiliência é bastante relevante e está cada vez mais presente nas investigações e intervenções da Psicologia. Afinal, na medida em que é impossível impedir a sujeição dos indivíduos às situações adversas ao longo de suas vidas, para a manutenção da integridade física e mental, é essencial que eles estejam aptos a lidar 18 com elas. Logo, a identificação e a compreensão dos aspectos individuais, ambientais e contextuais que atuam como agravantes ou protetores das adversidades, permite a construção de estratégias de proteção e promoção à saúde que objetivam facilitar o desenvolvimento de recursos de enfrentamento e auxiliar os indivíduos a vivenciar as situações de risco de modo mais efetivo e construtivo (POLETTO; KOLLER, 2002 apud SANCHES 2009). 1.2.RESILIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO POR MEIO DA PRÁTICA ESPORTIVA A prática e o contexto esportivos compreendem ferramentas importantes na facilitação da educação, do desenvolvimento humano integral e no aprimoramento da capacidade de resiliência dos indivíduos. Uma pesquisa realizada por Sanches (2004) evidencia o potencial psicoprofilático da inserção no contexto esportivo, visto que esta favorece o desenvolvimento de habilidades de socialização e comunicação; o autocuidado com o corpo e a saúde; a formação de uma rede de apoio social e afetivo entre os participantes, o aprimoramento da autoestima, a capacidade de trabalhar em grupo e de respeitar os próprios limites e os limites do outro. Porém, para que este potencial seja efetivado, o universo esportivo deve propiciar o estabelecimento de uma rede de apoio social segura, composta por vínculos significativos e a atuação dos educadores deve estar comprometida não apenas com os aspectos técnicos e táticos das modalidades esportivas, mas também com a formação do praticante como cidadão e ser humano (SANCHES, 2009). Ao investigar a relação entre a prática esportiva e o processo da resiliência, a autora verificou que a socialização e os vínculos estabelecidos no contexto esportivo podem atuar como fator externo de proteção e favorecer o desenvolvimento de recursos internos de proteção, fortalecendo a capacidade de enfrentamento de adversidades dos indivíduos. Porém, para tanto, a socialização propiciada pelo contexto esportivo deve basear-se em atividades que favoreçam a ampliação e o fortalecimento da rede de apoio afetivo e social de seus atletas e praticantes, para que a inserção no universo esportivo atue como fator de proteção. Deste modo, a ampliação e o fortalecimento da rede de 19 apoio, possibilitada pela prática esportiva, facilita o desenvolvimento da autoconfiança e autoestima, recursos internos essenciais no enfrentamento das adversidades. Além da rede de apoio social e afetivo, o contexto desafiador da prática esportiva e da atividade física possibilita inúmeras experiências de superação e frustração. Experiências estas que influenciam na imagem e avaliação que o praticante faz de si mesmo e facilitam a percepção de seus defeitos e potencialidades, catalisando o autoconhecimento. Logo, ao transpor as dificuldades intrínsecas ao contexto esportivo, o indivíduo pode manifestar sua capacidade de resiliência, ou seja, pode descobrir seu potencial de superação e desenvolve autoconfiança e recursos internos, necessários para o enfrentamento das adversidades de sua vida (SANCHES, 2009). A presente autora enfatiza que os indivíduos expostos repentinamente a fatores de risco extremos, que ultrapassem demasiadamente seus repertórios de enfrentamento, possuem menos probabilidade de obter êxito no enfrentamento das adversidades. Por outro lado, quando os fatores de risco são apresentados de modo gradual e progressivo, os indivíduos possuem maior capacidade de mobilizar e desenvolver recursos para superá-los. Pois a autoestima, a autoconfiança e a auto-eficácia do individuo aumentam a cada pequeno desafio superado, capacitando-o a enfrentar os desafios mais complexos. O esporte se insere nesta mesma lógica. Na medida em que impõem desafios progressivos a seus praticantes, possibilitam que a superação dos obstáculos mais simples os instrumentalize, gradualmente, a superar os mais complexos. Assim, as experiências do contexto esportivo, desde que mediadas de forma crítica e responsável, podem favorecer a melhoria da autoestima, da autoconfiança e da auto-eficácia; promover a saúde e o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, social e moral e auxiliar no desenvolvimento da resiliência (SANCHES, 2009). Esta autora ressalta que, para que o esporte seja uma potente ferramenta de prevenção e promoção da saúde mental de todos os envolvidos nesse contexto, é imprescindível identificar quais são os potenciais fatores de risco e de proteção que permeiam o universo esportivo. Dentre os principais fatores atuantes neste âmbito, estão os colegas, praticantes da mesma modalidade esportiva e os técnicos esportivos. Principalmente no que tange às modalidades coletivas, a prática esportiva permite que o indivíduo tenha contato com colegas praticantes da mesma modalidade esportiva, o grupo de iguais, com os quais costumam identificar-se, devido à similaridade do estilo de vida e dos interesses comuns. O grupo de iguais, elemento de extrema importância à 20 rede de apoio estabelecida no universo esportivo, atua como um fator de proteção, na medida em que possibilita que o indivíduo pertença a um grupo que o aceite, que lhe forneça modelos positivos e que represente um espaço de suporte emocional e de compartilhamento de informações, angústias, desejos e emoções em relação ao contexto esportivo e à vida (SANCHES, 2009). Ainda de acordo com esta autora, além dos colegas da mesma modalidade, os técnicos esportivos, ou mediadores da prática esportiva surgem como pessoas de grande relevância, visto que, dependendo de sua postura e conduta, podem tanto favorecer, quanto prejudicar a saúde psicológica e o desenvolvimento dos atletas e praticantes de atividade física: a assunção da postura de educador comprometido, de forma crítica, com o desenvolvimento físico, psíquico e social dos praticantes os favorece, enquanto o papel de técnico autoritário, inacessível e mero transmissor de conhecimentos técnicos e táticos, os prejudica. Para que o contexto esportivo efetivamente favoreça o desenvolvimento humano, o aprendizado deve ser construído em uma relação dialética entre educador e educando. Assim, a atuação do mediador da prática esportiva deve ser mais ampla do que a simples transmissão de aprendizados técnicos e táticos; ser exercida de forma responsável, ética, crítica e comprometida com a promoção do desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, social e moral do educando; respeitar o educando como ator de seu próprio aprendizado; estimular a reflexão crítica acerca do que é aprendido, criar oportunidades para que o aluno possa participar da construção e significação do conhecimento, desenvolver e aflorar suas potencialidades; facilitar a construção de identidades e a edificação de valores; estimular e propiciar o exercício e a construção da cidadania e da autonomia; facilitar o desenvolvimento de fatores de proteção e a capacidade de lidar com desafios tanto no âmbito esportivo, quanto nos diversos contextos de suas vidas (RUBIO; QUEIROZ; MONTORO; KURODA; MARQUES, 2000). Sanches (2009) ressalta que a criação de um ambiente acolhedor, aberto a críticas, que permita a formação de vínculos significativos e favoreça os relacionamentos interpessoais, são condições nucleares para que haja a participação ativa do educando no processo de aprendizagem. Diversos pesquisadores que investigam o potencial educativo e de desenvolvimento humano da prática esportiva, destacam que diversos valores, habilidades e recursos podem ser desenvolvidos através do esporte e da atividade física, 21 dentre eles: superação de desafios; tolerância; integração; solidariedade; autonomia; igualdade; autocontrole; capacidade de lidar com vitórias e fracassos, habilidade e prontidão física; sociabilidade; criatividade; estabelecimento e alcance de objetivos e metas; cooperação; companheirismo; diversão; autoimagem positiva; autoconhecimento; esportividade e jogo limpo; habilidades pessoais e sociais; expressão de sentimentos; responsabilidade; sinceridade; percepção dos próprios limites e potencialidades; diálogo; autocuidado; desenvolvimento da autoestima e da autoconfiança; paz; amizade; respeito; justiça (GUTIÉRREZ, 1995; GÓMEZ RIJO, 2003; RUIZ; CABRERA, 2004; CARRERAS; EIJO; ESTANY; GÓMEZ; GUICH; MIR; OJEDA; PLANAS; SERRATS, 2006 apud SANCHES, 2009). Todas as habilidades e recursos mencionados acima podem atuar direta ou indiretamente, como fatores de proteção, favorecendo o desenvolvimento da resiliência. A prática esportiva pode ser considerada uma excelente ferramenta de profilaxia e de promoção à saúde física e mental dos indivíduos e, portanto, de desenvolvimento da resiliência. Logo, o desenvolvimento de recursos protetores de enfrentamento através da inserção no universo esportivo bem como a aplicabilidade dos aprendizados adquiridos através desta prática em outros âmbitos da vida dos seus praticantes, são questões de extrema relevância para a Psicologia do Esporte e demandam maior investigação científica para sua compreensão e para o benefício dos atores nela envolvidos. 1.3.ATIVIDADES FÍSICAS DE AVENTURA NA NATUREZA (AFAN), RISCO E RESILIÊNCIA Segundo Azevedo (2006), apesar de não haver um marco cronológico que demarca o início das práticas corporais na natureza com finalidade competitiva ou de lazer, estas práticas são bastante antigas. No final do século XV, o montanhista Antonie de Ville escalou o Monte Aiguille nos Alpes, em 1778, o capitão da marinha britânica James Cook presenciou a prática do surf em expedição às Ilhas Sandwich, hoje denominadas Havaí. As práticas corporais na natureza com finalidade de lazer ou de competição recebem diversas denominações, como esportes ao ar livre, esportes radicais, esportes de aventura, esportes alternativos, atividades e lazer na natureza, atividades ao ar livre, prática de tempo livre na natureza, dentre outros. Dada a multiplicidade de termos 22 nominativos, o presente estudo adotará o termo Atividades Físicas de Aventura na Natureza (AFAN). O termo AFAN engloba todas as atividades físicas que são realizadas no ambiente natural e que permitem aos seus praticantes uma intensa interação com a natureza e a vivência de aventuras que despertam sensações e emoções hedonistas. Logo, as AFAN englobam as atividades esportivas, de lazer e de turismo no qual há o movimento corporal em interação com o meio natural (BETRÁN, 1995). Humberston (2007) ressalta que em sua origem, os esportes e atividades de aventura na natureza eram práticas restritas a um universo masculino, composto por indivíduos que buscavam sensações e emoções intensas e desejavam desafiar-se através do enfrentamento de elementos do ambiente natural. Apesar de no imaginário social as práticas de aventura na natureza ainda serem mais associadas a entusiastas do sexo masculino, nas últimas décadas está havendo um movimento mais global de retorno à natureza, de modo que, independente do sexo, os indivíduos têm buscado o contato com a natureza, para diversos fins: esportivos, recreativos, educativos, terapêuticos e de lazer, viabilizados pela “indústria outdoor”. Segundo a autora, a aventura e o desafio são aspectos inerentes da existência do ser humano. Na era nômade do homo sapiens, a luta pela sobrevivência demandava o engajamento em constantes aventuras, afinal, para suprir suas necessidades fisiológicas, era necessário transpor situações de verdadeiro risco. Nas últimas décadas, o movimento de retorno à natureza na busca de vivenciar aventuras deliberadamente tem se intensificado sobremodo. Porém, o que motiva os praticantes de AFAN não é mais a busca pela sobrevivência, como o faziam nossos ancestrais. Atualmente, para os praticantes de atividades de aventura na natureza, o ambiente natural adquire o sentido de lugar de realização de atividade física e de manutenção da boa forma, de interação social, de busca de sensações, de adoção de um estilo de vida mais natural ou saudável e de desenvolvimento e superação pessoal (HUMBERSTON, 2007). O fato de os praticantes destes esportes de risco desafiarem a vida, não implica na intenção de morrer, não se enquadrando, pois, na classificação de suicídio de Durkheim, para quem a intencionalidade é um fator determinante deste, definindo-o como “[...] todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria vitima, ato que a vítima sabia dever produzir este resultado” (DURKHEIM, 1983). Segundo o existencialismo, a prática de esportes de aventura é motivada pela busca de algo que auxilie os praticantes a suportarem a angustiante 23 condição finita do ser humano e visa à significação e à legitimação da vida através do desafio lúdico da morte (FERREIRA JÚNIOR, 2000). Como teoriza Costa (2000), o crescimento dos esportes de aventura na natureza nas últimas décadas está intimamente relacionado à tecnologização da vida, associada à dessubstancialização na era do vazio e ao aumento progressivo da incerteza na sociedade, que impõem aos seres humanos a demanda de saber lidar com os riscos. Por conseguinte, os homens buscam reestruturar-se, reequilibrar-se e aprender a lidar com os riscos de modo lúdico através das aventuras na natureza, sem, no entanto, abandonar a urbanização e a vida nas cidades. Neste mesmo sentido, Ferreira Júnior (2000) defende que na era da sociedade da informação, em que o vínculo real entre os indivíduos vem se afrouxando em detrimento da formação de vínculos virtuais, a ludicidade possui importância existencial como elo de preenchimento de significação da vida moderna. Neste ínterim, a busca pelo resgate da ludicidade, que confere sentido à existência, é um dos aspectos que motivam os indivíduos a se engajarem em atividades e esportes na natureza. Afinal, na medida em que neste contexto as adversidades podem ser relativamente gerenciadas, é possível aprender a lidar com riscos de maneira mais lúdica. Em uma pesquisa sobre o discurso de praticantes de esportes de aventura, Costa (2000) constatou que não apenas o exercício físico, o entretenimento e a descarga de adrenalina do esporte seduzem esportistas. Em seus discursos, aspectos como riscos, desejos, aventuras e esforços humanos também são explicitados. Os obstáculos naturais, no caso a montanha, aparecem em suas falas como um objeto de sedução. A autora compreende que o símbolo da aventura vinculado à prática esportiva em meio à natureza e em meio ao selvagem, mobiliza o imaginário de seus atores sociais. O desejo de superar as adversidades do ambiente natural e alcançar o objetivo proposto mobiliza nos praticantes de esportes de aventura uma multiplicidade de sentimentos e sensações. Falar do Esporte de aventura significa falar do risco, da magia, da aventura, do lúdico, do sofrimento, dos rituais e dos símbolos que envolvem seus atores. Atualmente, não apenas os esportistas associam as práticas de aventura e o risco ao seu estilo de vida. Os segmentos ecoturísticos, empresariais e educacionais, motivados pela incerteza característica da aventura e pela interação com os elementos da natureza, também os têm adotado em suas práticas, de modo que, desafiando 24 calculadamente os riscos inerentes da prática de atividades em áreas naturais, utilizam o contexto do esporte de aventura como um simulacro da vida e de aprendizagem da arte de viver (COSTA, 2000). A autora enfatiza que quando o praticante de esportes de aventura adentra a natureza e inicia seu percurso, inicia-se uma fase de adaptação, ou seja, faz-se necessário um período de ambientação para que o organismo se adapte ao esforço físico e às novas variáveis ambientais. Logo, a realização de AFAN deve ser realizada de modo a respeitar este período de adaptação para que os indivíduos possam aproveitar da ludicidade desta experiência sem colocar-se em perigo. Além da ambientação física, a prática de AFAN também demanda a ambientação emocional e comportamental ao ambiente natural. Na medida em que no ambiente natural, as variáveis e os acontecimentos estão submetidos ao controle da natureza, os praticantes de aventura em ambientes naturais, necessitam desenvolver alguns recursos e habilidades comportamentais e emocionais, para estarem aptos a lidar com as adversidades e desafios intrínsecos do contexto de aventura na natureza, como intempéries, possíveis incidentes e acidentes. Dentre as habilidades e recursos importantes à prática de AFAN estão: equilíbrio emocional; capacidade de análise e resolução de problemas inesperados com prontidão e maturidade; capacidade de adaptar-se física e emocionalmente a novos contextos; autocuidado; percepção das próprias limitações e potencialidades; autoconfiança; dentre outros. Ademais, a prática de AFAN inclui a superação de desafios que facilitam o desenvolvimento da autoestima, da autoconfiança e da auto-eficácia do praticante (COSTA, 2000). Neste sentido, a prática de AFAN pode compreender uma ferramenta importante de desenvolvimento da resiliência, pois as habilidades e recursos desenvolvidos pela prática de AFAN, mencionados acima, podem atuar como fatores de proteção no enfrentamento de situações adversas, protegendo o desenvolvimento humano da vulnerabilidade. 25 1.4.EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL A aprendizagem experiencial se baseia no potencial pedagógico da experiência seguida de reflexão, ilustrado pela máxima “O que ouço, esqueço; o que vejo, lembro; o que vivo, aprendo”. Apesar de atualmente haver inúmeros programas de aprendizagem experiencial, principalmente na Inglaterra, na Austrália, nos Estados Unidos e no Canadá, o reconhecimento do valor da experiência como ferramenta de promoção do desenvolvimento humano não é recente. Diversos filósofos e teóricos, ao longo da historia humana já enfatizavam a relevância da educação experiencial, dentre eles Aristóteles, Confúcio, John Dewey, Kurt Hahn, Maria Montessori, Carl Rogers e Paulo Freire, dentre outros (KUNREUTHER, 2011). Segundo o presente autor existem diversos modelos de educação experiencial, porém, todos os autores que teorizam sobre este tema concordam que o ciclo de aprendizagem experiencial é composto por quatro estágios: experiência, reflexão, generalização e aplicação. Segue abaixo o ciclo de aprendizagem experiencial descrito por Luckner & Nadler (1992 apud KUNREUTHER), para ilustrar os estágios do ciclo de aprendizagem experiencial: Os estágios desse ciclo serão descritos de forma mais detalhada a seguir: 26 - Primeiro estágio do ciclo: a vivência da experiência De acordo com KUNREUTHER (2011), visto que as experiências são potencialmente educativas, elas podem ser planejadas e organizadas para que determinado aprendizado seja atingido. Desse modo, na aprendizagem experiencial os objetivos de aprendizados específicos são definidos e, posteriormente é desenvolvida uma sequência de atividades (experiências) que contribuirão para atingir tal aprendizado. Portanto, a fase da experiência do presente ciclo é o momento em que os educandos vivenciam as experiências, potencialmente facilitadoras do aprendizado que se deseja atingir. Se o processo de aprendizagem é interrompido após este estágio de vivência da experiência, não há garantia de aprendizado. Vygostsky (1984) ressalta a existência de três zonas de desenvolvimento: a zona de desenvolvimento real, a de desenvolvimento potencial e a de desenvolvimento proximal. A zona de desenvolvimento real compreende os aprendizados que os educandos são capazes de atingir de forma autônoma, através de seus próprios recursos, ou seja, independem de mediadores para obtê-los. Já a zona de desenvolvimento potencial, compreende os aprendizados que o educando é capaz de aprender, mas para que isso ocorra, a mediação de um educador faz-se necessária. E, por fim, a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível potencial é denominada de zona de desenvolvimento proximal. Nesta fase do ciclo, o educador deve proporcionar uma experiência desafiadora, relevante e adequada à zona de desenvolvimento real do educando e dentro da sua zona de desenvolvimento potencial para que o educando não se sinta em perigo, o que poderia prejudicar a vivência da experiência. - Segundo estágio do ciclo: a reflexão acerca da experiência Na medida em que vivência da experiência por si só não é capaz de garantir que haja aprendizado, o processo reflexivo sobre o que foi vivenciado é fundamental para que a experiência seja transformada em aprendizado experiencial. Sabe-se que através da reflexão e da análise do que foi vivenciado, é que o educando pode significar a experiência e integrá-la às experiências vividas ao longo de sua vida. Kunreuther (2011) enfatiza que nesta fase do ciclo, o educador deve propiciar aos educandos momentos de reflexão, individuais ou coletivos, para que cada qual possa compreender sua própria vivência. E caso o aprendizado em questão esteja fora da zona de desenvolvimento potencial dos educandos, cabe ao educador auxiliá-los a significar a experiência vivida. 27 - Terceiro estágio do ciclo: a generalização do aprendizado Para que o aprendizado adquirido através da experiência seja generalizado, é essencial que ele seja transponível a outros contextos da vida do educando. A generalização, segundo Kunreuther (2011), compreende a fase do ciclo na qual o aluno generaliza a compreensão de um fenômeno ou experiência isolada para outras situações correlatas. Nesta fase, cabe ao educador auxiliar o educando a fazer inferências, ressignificar conceitos e fazer correlações acerca da transposição e aplicabilidade do aprendizado em seus cotidianos. - Quarto estágio do ciclo: a aplicação do aprendizado No quarto e último estágio do ciclo da aprendizagem experiencial, os educandos são estimulados a colocar em prática as generalizações que eles identificaram no estágio anterior. Esta é a fase em que o educando testa o aprendizado recém-adquirido em uma nova situação real, para validar e solidificar o novo aprendizado, ou desconstruí-lo. Se essa fase do ciclo de aprendizagem não for efetivada, o aprendizado tende a ser superficial e efêmero. Na medida em que o processo de aprendizagem experiencial compreende um ciclo, o término do quarto estágio leva o educando novamente ao primeiro estágio (KUNREUTHER, 2011). Ou seja, se o educando obtiver sucesso em todos os estágios do ciclo de aprendizagem experiencial, o novo aprendizado passa a fazer parte de seu background cognitivo, afetivo e comportamental, que por sua vez, servirá como base para a vivência de novas experiências e a para a construção de novos aprendizados. 1.5.EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL PELA AVENTURA EM AMBIENTES NATURAIS E RESILIÊNCIA A educação experiencial por meio da aventura na natureza compreende o método pedagógico que utiliza como ferramentas educacionais o ambiente natural e seus intrínsecos desafios, bem como as experiências vivenciadas pelos educandos neste contexto. Há diversos termos para designar este tipo de educação. Na língua portuguesa, 28 os termos utilizados são: educação pela aventura; educação ao ar livre; educação experiencial ao ar livre; dentre outros, enquanto, na língua inglesa, os termos compreendem: experiencial education through wilderness challenges; outdoor education; wilderness education; challenge education; outdoor education, dentre outros (KUNREUTHER, 2011). Portanto, a citação de qualquer um destes termos ao longo deste texto, diz respeito à educação experiencial pela aventura em ambientes naturais. O presente método pedagógico foi sistematizado no contexto da Segunda Guerra Mundial. Como evidencia Dinsmore (2004), que relata que durante essa guerra os Aliados perderam centenas de embarcações e milhares de marinheiros para os submarinos alemães. Sir Lawrence Holt, proprietário de uma Companhia Marítima que havia cedido seus navios à Grã-Bretanha para suporte bélico, contratou Kurt Hahn, professor de educação progressiva, para investigar a razão de os marinheiros mais jovens e, teoricamente os mais fortes, curiosamente terem maior índice de mortalidade. Após análise, Hahn observou que a alta mortalidade dos marinheiros jovens devia-se à menor experiência de vida e à consequente falta de autoconfiança para enfrentar os perigos e intempéries do combate marítimo (KURT HAHN, s.d., apud DINSMORE, 2004). O autor também destaca que, no intuito de reduzir a grande quantidade de marinheiros perdidos no mar, Hahn fundou no país de Gales um método de treinamento experiencial denominado, Outward Bound. O termo Outward Bound compreende um jargão náutico que denota a saída dos navios do porto-seguro com destino aos desafios do alto-mar e foi utilizado para ilustrar a saída dos jovens marinheiros da segurança do lar, para os perigos de assumir o papel de marinheiro em plena guerra mundial. O presente método consistia em um programa de treinamento progressivo, para auxiliar os jovens marinheiros a desenvolverem autoconfiança e recursos internos de enfrentamento das adversidades intrínsecas ao ambiente marinho e ao contexto bélico. Um programa padrão de Outward Bound possuía a duração de um mês e incluía provas de atletismo; treinos de manobras de pequenas embarcações; trekking nas montanhas; treinamento em segurança e salvamento; provas de obstáculos e serviços à comunidade. O programa de treinamento desenvolvido por Hahn foi extremamente exitoso, auxiliando os jovens marinheiros a desenvolverem a capacidade de solucionar problemas, a autoconfiança e a coragem para lutar pela sobrevivência. Porém, apesar destes programas visarem o aprimoramento do desempenho bélico dos marinheiros, o treinamento realizado no mar era o meio, não o fim, pois as habilidades, os recursos e os 29 aprendizados desenvolvidos neste contexto não preparavam os marinheiros apenas para enfrentar o mar, mas para enfrentar as adversidades da vida, como ressalta Hahn: O treinamento deve ser entendido menos como um treinamento para o mar e mais como um treinamento pelo mar, beneficiando todos os aspectos da vida (KURT HAHN, s.d., apud, DINSMORE, 2004). De acordo com Dinsmore (2004), na década de 70, o Project Adventure Inc., uma adaptação do Programa Outward Bound de Hahn para a educação social, foi implementado em aproximadamente 400 escolas dos Estados Unidos, com o objetivo de inserir nos currículos das escolas secundárias americanas o método pedagógico da aprendizagem experiencial ao ar livre. O autor ressalta que nos dias de hoje é grande o número de organizações que utilizam o método de outdoor education em cursos ou programas para fins organizacionais, terapêuticos, educacionais e para facilitar a transformação de atitudes e comportamentos, o desenvolvimento e a capacitação dos indivíduos para a vida. Segundo Kunreuther (2011), atualmente a aprendizagem experiencial pela aventura na natureza é utilizada como método educativo no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália e na Inglaterra. Nestes países, diversas escolas e universidades possuem programas de educação ao ar livre, departamentos de educação ao ar livre e há também, é necessário ressaltar, uma extensa bibliografia na área. As escolas de adventure education, como a Outward Bound (OB) e a National Outdoor Leadership School (NOLS) são referência na área. Estas escolas utilizam em seus cursos ao ar livre, técnicas de canoagem e de montanhismo, dentre outros esportes de aventura. O formato dos cursos e as técnicas utilizadas variam, adequando-se ao respectivo relevo e ambiente natural no qual é realizado. Por exemplo, em um país em que há neve, um curso de aprendizagem experiencial na natureza pode se apropriar de técnicas do esqui. Porém, o recurso pedagógico da educação ao ar livre em formato de expedições na natureza ainda é pouco utilizado no Brasil de modo regulamentado. Dentre as poucas instituições que o fazem, destacam-se os cursos da escola Outward Bound (OB). 30 Diversos teóricos da educação experiencial pela aventura ressaltam que este método pedagógico facilita o desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais, tais como habilidades de comunicação; autonomia; autoconfiança; capacidade de analisar situações e tomar decisões; comportamento direcionado a metas; identificação com modelos positivos; autoconceito positivo; dentre outros (FERREIRA JÚNIOR; 2000, CARVALHO, 2002). Estas habilidades são apontadas pelos teóricos da resiliência como fatores de proteção às adversidades (TAVARES, 2002; ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006; DE ANTONI; BARONE E KOLLER, 2006; TROMBETA, 2000 apud SANCHES, 2009). Logo, é possível afirmar que a educação experiencial pela aventura pode ser utilizada como uma ferramenta de facilitação do desenvolvimento de recursos de proteção e, portanto, da resiliência. Kunreuther (2011) afirma que a educação experiencial ao ar livre possibilita aos educandos uma oportunidade significativa de superação de limites físicos e emocionais; de autoconhecimento; de desenvolvimento da autoestima; de reflexão acerca de quais limites devem ser traspostos e quais devem ser respeitados; de aprendizado de valores morais; e desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais; de socialização positiva; de aprimoramento da capacidade de resolver problemas e de enfrentar situações adversas. Tais aspectos foram apontados por Assis, Pesce e Avanci (2006) como fatores de proteção relevantes à promoção da capacidade de resiliência dos indivíduos. Dinsmore (2004) compreende a educação pela aventura como ações educacionais heterodoxas, que incluem alguma forma de risco e diferem de métodos pedagógicos ortodoxos por possibilitar a união do corpo e da mente e desenvolver as potencialidades do educando através da superação de situações adversas e inesperadas do ambiente natural. Estas atividades facilitam o autoconhecimento, o desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais, da autoestima, da autoconfiança e da capacidade de enfrentar dificuldades. O autor define como objetivo primordial deste método pedagógico, a conscientização dos educandos acerca da existência de forças e recursos interiores em todo ser humano, bem como auxiliá-los a acessar e desenvolver seus próprios recursos internos. De acordo com Assis, Pesce e Avanci (2006), as pesquisas acerca do processo de resiliência evidenciam que a mobilização e o desenvolvimento de recursos internos de proteção diminuem a vulnerabilidade dos indivíduos e que, as habilidades e recursos mencionados acima por Dinsmore (2004), como passíveis de serem desenvolvidos pela 31 educação experiencial pela aventura em ambientes naturais, compreendem importantes fatores de proteção. Neste sentido, é possível pensar a educação experiencial pela aventura como um método facilitador do desenvolvimento da resiliência. A existência de forças internas nos seres humanos sempre instigaram filósofos e grandes pensadores. Na Grécia Clássica, filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles tentavam decifrar como o ser humano poderia acumular tanta sabedoria, tendo uma existência tão finita e limitada. Daí a hipótese de que forças internas desconhecidas, ou melhor, não acessadas, habitariam o interior dos seres humanos. Durante o período da Renascença, Descartes, Leibnitz e Spinoza também tentavam compreender este fenômeno. E atualmente, a filosofia moderna possui diversos pensadores, dentre eles Chomsky e Gurdjieff, que ainda procuram compreender o fenômeno e acreditam que o ser humano possui em seu interior muito mais conhecimento do que supõe. Afinal, como teorizou Darwin, a espécie mais forte e adaptada evolui e se perpetua. Portanto, se o homo sapiens ainda habita a face da terra, é porque sua espécie possui recursos para enfrentar as adversidades do meio que a cerca. Assim, acredita-se que há, no interior de todo ser humano, um patrimônio de forças internas, acumuladas ao longo da evolução de gerações antepassadas que lutaram para sobreviver. Porém, uma questão que sempre intrigou os pensadores acerca das forças interiores dos seres humanos está relacionada ao descobrimento de formas adequadas de desenvolvê-las e acessá-las (RINK 2004). Como mencionado, Sócrates acreditava que todo ser humano possuía “uma verdade interior”, representada pelas potencialidades, recursos e sabedoria de cada indivíduo. A Maiêutica é o método dialético criado pelo filósofo para facilitar os indivíduos a entrarem em contato com sua própria verdade interior. Através da Maiêutica, ele questionava as premissas equivocadas de seu interlocutor, até que este caísse em contradição e percebesse sua ignorância acerca do que acreditava saber. Assim, Sócrates mediava os processos de desconstrução de conceitos errôneos e de ressignificação dos dogmas e verdades prontas, para que seu interlocutor pudesse desenvolver o pensamento crítico e autônomo e descobrir sua “verdade interior”. Do mesmo modo, os métodos pedagógicos que se fundamentam na Maiêutica, como o é a educação experiencial ao ar livre, são ferramentas importantes para facilitar o desenvolvimento das potencialidades dos educandos e para auxiliá-los a entrarem em contato com os próprios recursos internos. A postura dos educadores que atuam norteados por tal método assemelha-se à postura de Sócrates na Maiêutica, na medida 32 em que inserem conteúdos e questões contextualizadas, visando propiciar aos educandos experiências que estimulem a capacidade de agir, aprender, refletir e pensar de modo crítico, responsável e autônomo para que possam ter confiança em suas próprias capacidades e recursos internos (RINK, 2004). A educação experiencial através da aventura na natureza parece propiciar o contexto ideal ao acesso e desenvolvimento dos recursos internos dos indivíduos. Afinal, além de basear-se na maiêutica, método “revelador da verdade interior”, o presente método pedagógico une mente, corpo e movimento em ambiente natural, aspectos apontados como facilitadores do acesso aos recursos internos dos seres humanos. De acordo com Rink (2004), em estudo antropológico acerca da educação pela aventura, os antropaleontólogos e os neurologistas do século XX concluíram que há pelo menos trinta mil anos o cérebro humano atingiu sua atual capacidade intelectual. O que denota que a capacidade cognitiva do homem está mais preparada para solucionar questões do ambiente natural do que do meio urbano. O autor também enfatiza que o cérebro aprende e funciona melhor em contextos nos quais a dicotomia cartesiana mente-corpo é desfeita. Logo, o ser humano não é capaz de utilizar toda sua potencialidade cognitiva no ambiente urbano, pois a demanda de esforço mental dos centros urbanos, associada ao convite ao sedentarismo da sociedade do consumo, gera a desarmonia mente-corpo, tão característica da atualidade. Alguns dos grandes pensadores como Aristóteles, Rousseau e Darwin, acreditavam na maior efetividade da aprendizagem e do acesso aos recursos naturais em contextos em que o pensamento é estimulado em movimento e em ambiente natural. Eles defendiam que a realização do movimento corporal em ambiente natural estimula a capacidade cognitiva do homem e possibilita o resgate de recursos ancestrais de enfrentamento, por recriar o ambiente dos primórdios, no qual o ser humano nômade precisava utilizar sua capacidade cognitiva para desenvolver estratégias de transposição das adversidades do ambiente natural para garantir sua sobrevivência (RINK, 2004). Dinsmore (2004) ressalta que a educação experiencial através da aventura na natureza facilita o aprimoramento de capacidades física, motoras, cognitivas e afetivas dos educandos, pois, ao estar no ambiente natural e ampliar o horizonte físico, o corpo é convidado ao movimento e, fisiologicamente, o movimento e a expansão corporal estimulam o movimento e a expansão do pensamento e dos afetos. Assim, o autor enfatiza que este método pedagógico propicia aos educandos um contexto de ampliação 33 de paradigmas, de maior acesso aos recursos internos, de aprimoramento de potencialidades e, portanto, de expansão do repertório de recursos internos de proteção. Apesar dos inúmeros benefícios da educação experiencial pela aventura, uma das críticas à este método pedagógico, é que o contexto da “vida real” é muito diferente do da aprendizagem experiencial no ambiente natural. E, portanto, questiona-se a aplicabilidade dos aprendizados e recursos desenvolvidos no contexto natural ao contexto urbano. Porém, Dinsmore (2004) afirma que a educação experiencial ao ar livre é capaz de gerar aprendizados cognitivos, afetivos e comportamentais tenazes, pois, as situações vividas no contexto da educação experiencial ao ar livre deflagram a cooperação entre mente e corpo para a resolução de problemas e o enfrentamento de adversidades e, por conseguinte, a construção de conhecimento associada à atividade física facilita a memorização do que foi aprendido e faz com que a memória do aprendizado não seja apenas cognitiva, mas também muscular e, portanto, mais sólida. Sabe-se que um dos principais objetivos da educação ao ar livre no formato de expedições na natureza é o desenvolvimento pessoal. O desenvolvimento pessoal, que compreende a facilitação da aprendizagem de repertórios, comportamental e emocional, mais adequados às demandas do meio ambiente, bem como o processo de tornar manifesto as habilidades e capacidades latentes dos indivíduos. Neste sentido, a educação experiencial apela aventura em ambientes naturais, possui como objetivo “despertar as forças adormecidas” no interior de cada indivíduo. Porém, resta saber se este método pedagógico efetivamente alcança os objetivos aos quais se propõe. E é com a motivação de responder a esta questão que o presente estudo foi desenvolvido. 1.6.A OUTWARD BOUND E A EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL PELA AVENTURA1 As escolas Outward Bound (OB) são organizações educacionais, sem fins lucrativos e compreendem a maior instituição mundial em educação experiencial ao ar livre. A Outward Bound, pioneira na utilização deste método pedagógico, possui mais 1 Todas as informações acerca da organização Outward Bound e Outward Bound Brasil foram obtidas no site: http://www.obb.org.br 34 de 70 anos de história e atualmente possui sedes em mais de trinta países, entre eles o Brasil. A missão da presente instituição é promover o desenvolvimento humano e o potencial de cada indivíduo para cuidar de si, do outro, do mundo à sua volta e da natureza, através de experiências grupais desafiadoras na natureza que utilizam da metodologia da educação experiencial. Para propiciar o aprendizado através da experiência, processo pedagógico baseado na ação e na reflexão, a OB planeja e possibilita deliberadamente as experiências, para que elas sejam atraentes, relevantes e sequenciais e promovam o desenvolvimento de habilidades e saberes dos educandos, que possam ser aplicadas aos diversos âmbitos de suas vidas. Para tanto, são propiciadas atividades ao ar livre e desafios físicos, mentais e emocionais, dentro de uma margem de segurança física, psíquica e social para que o aprendizado através da experiência ocorra em um ambiente seguro de aprendizagem e dentro de uma cultura de grupo positiva e inclusiva, que permita a livre expressão dos sentimentos e opiniões dos educandos. Ademais, todos os programas da OB são realizados com ética ambiental e respeito aos ambientes naturais nos quais são desenvolvidos, utilizando sempre, técnicas de mínimo impacto na natureza. A Outward Bound Brasil (OBB), instituição que oferece o Curso de Formação de Educadores ao Ar Livre (FEAL), no qual a coleta de dados do presente estudo foi realizada, pertence a um segmento educacional das AFAN. A OBB é referência nacional e internacional, no uso das práticas de aventura na natureza como método pedagógico e como ferramenta de desenvolvimento pessoal. A OBB oferece cursos a jovens e adultos desde 2001, visando auxiliá-los a desenvolver habilidades e a realizar suas potencialidades. Apesar do primeiro curso da OBB ter sido ministrado em 2001, o primeiro estudo aferindo o resultado de seus cursos data de 2011. Flávio Kunreuther, instrutor da OBB e mestre em educação física, realizou sua dissertação de mestrado sobre o tema: “Educação ao ar livre pela aventura: o papel da experiência e o aprendizado de valores morais em expedições à natureza”. Esta realidade diverge bastante de países como Canadá, Austrália, Inglaterra e Estados Unidos, nos quais as escolas Outward Bound e outras instituições que se utilizam deste método pedagógico, possuem extensa bibliografia na área. Neste ínterim, faz-se necessário que novas pesquisas sejam realizadas, para verificar a realidade brasileira do uso da aprendizagem experiencial ao ar livre. 35 Os programas da OBB objetivam promover em seus educandos o desenvolvimento pessoal e social e a educação ambiental. Por desenvolvimento pessoal, a presente instituição entende: a melhoria da autoconsciência e da autoconfiança; o desenvolvimento do autocuidado; o aumento da motivação e da persistência para superar dificuldades e o reconhecimento pelo educando de seu próprio potencial. Já o desenvolvimento social implica no aumento da percepção social e das habilidades de comunicação dos educandos; a construção de relações interpessoais positivas; o desenvolvimento da capacidade de atuar com sucesso como membro ativo de uma equipe e o desenvolvimento da capacidade de cuidar dos outros e do mundo à sua volta, com solidariedade. Por fim, por educação ambiental a OBB compreende: a vivência de uma educação na, sobre e para a natureza, que desenvolve a apreciação, a consciência e a responsabilidade ambiental. A OBB atua norteada por um padrão internacional de Gestão de Segurança e Prevenção de Acidentes, seguindo normas de segurança reconhecidas pela Outward Bound Internacional e que serviram de referência para a construção das Normas de Turismo de Aventura publicadas pela ABNT. A presente instituição possui um comitê de segurança, conta com o sistema vinte e quatro horas de resposta a emergências, realiza relatórios de segurança e de incidente periodicamente e passa por auditoria externa a cada dois anos, para que seu padrão de gestão de segurança seja sempre aprimorado. Ou seja, embora as atividades realizadas pela OBB envolvam experiências desafiadoras em áreas remotas da natureza, tendo como educandos indivíduos com diferentes níveis de condicionamento físico e de habilidades, elas são conduzidas com vigilância, responsabilidade e segurança. Ao se realizar atividades na natureza, é necessário considerar sempre a existência do perigo e dos riscos. O perigo é algo que a ação dos indivíduos não pode mudar: é algo que está no ambiente natural, que é como é. Já o risco, compreende a relação que os indivíduos estabelecem com o perigo, sobre as quais têm poder e podem manejar conforme a necessidade. Neste sentido, o objetivo do gerenciamento de riscos da OBB é minimizar ao máximo a probabilidade de ocorrência de incidentes graves e fatalidades e ainda oferecer programas que incluam experiências desafiadoras. O padrão de gerenciamento de riscos da OBB inclui o manejo dos riscos, processo essencial à educação experiencial ao ar livre. O manejo de risco compreende o processo de reconhecimentos e análise dos perigos inerentes às atividades e ambientes, para que 36 estratégias de manejo de risco sejam cuidadosamente traçadas e administradas. Assim a análise dos riscos de cada contexto é seguida pela tomada de decisões que visam manter as ações dentro da margem de segurança desejada. O manejo de risco deve ser um processo responsável, ativo e constante de monitorar o grupo, as atividades, o ambiente e tomar decisões conscientes e cuidadosas. É essencial ressaltar que o processo de manejo de riscos não implica em evitar atividades inerentemente arriscadas. O seu objetivo é capacitar os participantes técnica, física e psicologicamente, respeitando sempre os limites das capacidades de cada indivíduo, para que estejam habilitados a lidar de modo competente com os riscos e situações adversas. A atuação dos instrutores durante os cursos e atividades desenvolvidos pela OBB é bastante complexa, pois eles necessitam estar bem preparados para realizar o gerenciamento dos riscos e dividir continua e constantemente sua atenção e energia entre a função de educador e supervisor da segurança dos alunos, os desafios intrínsecos ao ambiente natural, as necessidades dos alunos, enquanto indivíduos e grupo, além de sua própria segurança. Logo, é imprescindível que o instrutor possua capacidade de analisar prioridades e gerenciar todas as demandas desse contexto extremamente dinâmico. O gerenciamento de riscos realizado pelos instrutores da OBB é norteado por protocolos e normas de segurança e de primeiros socorros e eles passam por reciclagem em primeiros socorros a cada dois anos e utilizam os standards de resposta a ferimentos e enfermidades desenvolvidos pela Wilderness Medical Society para programas em áreas silvestres. Para a realização do manejo de riscos de modo satisfatório, os instrutores devem possuir conhecimentos técnicos e experiência suficientes para poder antecipar e lidar com riscos de maneira consciente, responsável e segura, e saber responder a situações de risco de forma conservadora e eficaz, nunca realizando a análise dos riscos sob o efeito da adrenalina. Em se tratando de uma organização educacional, os instrutores da OBB não devem somente supervisionar e monitorar a segurança dos alunos, mas também capacitá-los para que também possam assumir essa responsabilidade. Os cursos e atividades da OBB se baseiam no conceito de safety net, ou teia de segurança. Ou seja, não somente o instrutor cuida da segurança grupal, mas cada membro da equipe de alunos deve se responsabilizar pela própria segurança e pela segurança grupal, facilitando a criação dessa rede. A segurança propiciada por essa teia de segurança 37 permeia toda a experiência e objetiva manter os indivíduos focados, mesmo em momentos difíceis. Mas isso só é viável após a capacitação dos alunos para que possam atuar no ambiente natural com segurança. Alguns fatores podem influenciar no grau do risco durante as atividades realizadas ao ar livre, sendo eles fatores ambientais, humanos e técnicos. Dentre os fatores ambientais estão topografia, visibilidade, clima, hora do dia, exposição e outros. Já dentre os fatores humanos estão cansaço, atenção/distração, complacência, audácia, nível de experiência, competência técnica e outros. E, por fim, dentre os fatores técnicos estão equipamentos e técnicas utilizadas; nível de treinamento e experiência em primeiros socorros e em resposta à emergência, distância ao atendimento médico e outros. Logo, no que tange à realização de atividade em ambiente natural, todos estes fatores demandam atenção ao se realizar o processo de manejo de risco, para que os participantes possam desfrutar da aventura dentro de uma margem mínima de segurança. 1.6.1. O CURSO DE FORMAÇÃO DE EDUCADORES AO AR LIVRE (FEAL) DA OUTWARD BOUND BRASIL (OBB) O FEAL compreende um curso ministrado pela Outward Bound Brasil (OBB) no formato de expedição na natureza, com a duração de quatorze dias, que objetiva a capacitação teórico-prática de indivíduos que desejam se aprimorar profissional, social e pessoalmente, através do método pedagógico da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais. Os cursos no formato de expedição são cursos de longa duração, desenvolvidos em ambientes naturais remotos, que possibilitam vivências educacionais contínuas, progressivas e desafiadoras aos educandos. Neste contexto, alunos e instrutores percorrem trajetos em ambientes naturais, de modo autossuficiente, munidos dos alimentos e equipamentos necessários para que a expedição seja realizada com segurança (KUNREUTHER, 2011). O FEAL envolve a realização de duas modalidades de AFAN associadas, o trekking e o montanhismo. A palavra trekking é originária do vocabulário inglês e 38 significa “grande marcha”. O trekking compreende caminhadas de longo curso, em ambientes naturais, com mínima infra-estrutura, o que demanda que seus praticantes carreguem os equipamentos e os mantimentos que irão necessitar ao longo da prática. Esta modalidade de AFAN possibilita aos seus praticantes o contato com ambientes naturais de grande beleza e de difícil acesso ou desprovidos de via de acesso. Os caminhos e trilhas utilizados na prática do trekking são geralmente difíceis de percorrer, devido à topografia e aos obstáculos naturais. Para tanto, é necessário que os praticantes dominem técnicas de orientação e navegação, incluindo o uso de mapas topográficos e bússolas. Ademais, as longas caminhadas demandam planejamento e o controle da quilometragem diária percorrida, para que os trajetos sejam realizados em segurança, visto que é a natureza quem controla as variáveis onde o trekking é realizado (ROMANO, 2009 apud ABETA - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE ECOTURISMO E TURISMO DE AVENTURA, 2005). De acordo com este autor a prática de trekking tira os praticantes da zona de conforto, impondo a necessidade de adaptação a condições climáticas frequentemente adversas e a renúncia a confortos da vida urbana. Nestes contextos, os praticantes têm que satisfazer suas necessidades diárias e dormir de modo desconfortável, o que pode potencializar ainda mais o desgaste decorrente da prática. O trekking é praticado por indivíduos que buscam contemplação ou superação de limites. Além disso, os praticantes de trekking abandonam temporariamente suas zonas de conforto para enfrentar uma infraestrutura precária. Já o montanhismo consiste em uma espécie de trekking por morros e montanhas. O objetivo desta modalidade de AFAN é alcançar o cume de uma montanha ou um de seus picos. O montanhismo impõe a seus praticantes o enfrentamento de subidas e descidas exaustivas, por entre frestas e sobre grandes rochas, sob intensas variações de relevo, temperatura e altitude em curto espaço de tempo (FERREIRA JÚNIOR, 2000). Para a prática de trekking e do montanhismo, recomenda-se a realização prévia de um treinamento físico com enfoque no desenvolvimento e aprimoramento de força resistência, flexibilidade, capacidade cardiorrespiratória, além de atividades que facilitem a ampliação do repertorio de habilidades motoras, afinal, estas são modalidades de AFAN que demandam bom condicionamento físico, boa capacidade cardiovascular e amplo repertório motor (SCHURMAN; SCHURMAN, 1966). 39 De acordo com informações disponibilizadas pelos coordenadores do FEAL antes do início do curso, os alunos respondem a uma ficha médica e a um questionário, contendo informações sobre saúde, condicionamento físico, motivações e expectativas em relação ao curso. No início do curso a atuação dos instrutores é diretiva e envolve a apresentação aos alunos da instituição, do método pedagógico utilizado, das atividades que serão desenvolvidas e dos desafios e riscos intrínsecos aos ambientes naturais; o desenvolvimento de atividades lúdicas que objetivam a integração e o estabelecimento de vínculo entre alunos e instrutores; a explicação aos alunos sobre a progressão do curso e as normas de segurança utilizadas; a co-construção junto aos alunos e de forma democrática, das regras que permearão o convívio social ao longo da expedição; supervisão e delegação de funções aos alunos; a capacitação técnica dos alunos, através da promoção de treinamento básico em técnicas outdoor, necessárias à viabilidade e à segurança da expedição. Em síntese, esta fase se caracteriza pelo aprendizado técnico, que propicia aos alunos, a segurança, o conforto e a autonomia durante o curso. Na medida em que os alunos aprendem e aplicam as técnicas básicas, os instrutores lhes ensinam as mais avançadas e passam a atuar de modo menos diretivo, dedicando-se ao desenvolvimento pessoal e social dos alunos; à consultoria de eventuais dúvidas técnicas; à mediação de eventuais conflitos e de compartilhamento de ideias, à promoção de atividades, aulas, leituras e ensinamentos específicos e à realização de feedbacks. Ao longo da expedição, ao final de cada atividade específica e de cada dia do curso, há momentos de reflexão e debates, para facilitar a significação do que foi vivenciado. Estes são momentos propícios para a abordagem de temas coerentes com o contexto de superação de desafios e riscos, de relacionamentos interpessoais que podem incluir eventuais conflitos, de desconstrução e ressignificação de paradigmas e, do mesmo modo, para o compartilhamento e elaboração dos sentimentos, atitudes, comportamentos e aprendizados propiciados pelo contexto da educação experiencial em ambientes naturais. A expedição na natureza compreende dias desgastantes e longos. Além do desgaste físico, os cursos neste formato também geram desgaste cognitivo e emocional. Para que o grupo de alunos obtenha êxito em gerenciar a progressão da expedição com 40 autonomia, seus integrantes devem saber o trajeto total a ser percorrido ao longo do curso; possuir habilidades sociais e de liderança para conseguir organizar-se, delegar funções, assumir tarefas, tomar decisões constantes e lidar com as consequências destas. O método de educação experiencial pela aventura possibilita que os educandos tenham autonomia para decidir os aspectos relativos à progressão da expedição e possam aprender com os próprios erros e acertos e com as consequências das próprias decisões e atitudes. Porém, no ambiente natural as reações são imediatas às ações e, neste sentido, os educadores/instrutores só podem delegar a tomada de decisão aos alunos se estes tiverem sido capacitados e possuírem ferramentas que viabilizem o enfrentamento das eventuais consequências das decisões. Ou seja, os desafios propostos devem ser justos para que os alunos tenham a possibilidade de transpô-los com sucesso. É fundamental que, na educação experiencial pela aventura, os educadores não permitam que os educandos realizem ou liderem atividades que possam vir a comprometer sua integridade física e psíquica. Segundo Kunreuther (2011) os cursos no formato de expedição das escolas Outward Bound podem ter estruturas diversas, que variam de acordo com alguns aspectos, como por exemplo, o relevo e o clima do local em que o curso acontece, a quantidade de alunos inscritos. Porém, apesar destas nuances, os cursos em formato de expedição possuem etapas e componentes fixos, que serão descritas a seguir: - A atividade Solo A atividade solo é considerada pela maioria dos alunos como o ápice dos cursos da Outward Bound no formato de expedição na natureza, pois é o momento em que cada educando é conduzido pelos instrutores a um local isolado em meio à natureza, onde ficarão apenas consigo mesmos. Esta atividade compreende o momento da expedição no qual há a quebra das atividades coletivas intensas, para propiciar aos educandos a oportunidade de vivenciar um momento de isolamento social, de redução de estímulos externos e de silêncio, de reflexão, de introspecção, de autocontemplação e de contemplação da natureza, de encontro e de contato apenas consigo mesmo e com o ambiente natural. Os educandos têm a liberdade de aceitar ou não vivenciar esta experiência. E os instrutores devem analisar se os alunos estão aptos a fazê-lo. Acredita-se que o contexto 41 da atividade solo facilita que os educandos entrem em contato com suas deficiências, potencialidades, temores e forças internas, favorecendo o autoconhecimento e, auxiliaos a visualizarem a própria vida através de uma perspectiva diferente, que favorece a avaliação de problemas, as tomadas de decisão, o estabelecimento de metas e a ocorrência de insights. A única atividade a ser realizada pelos educandos durante a atividade solo é escrever uma carta sobre si mesmo e para si mesmo, que lhe será enviada pela OBB transcorrido alguns meses da realização do FEAL. O objetivo desta carta é auxiliar os educandos a reviverem as experiências do FEAL e seus respectivos aprendizados, relembrar aspectos que consideraram importante durante a atividade solo, como os planos, decisões e insights acerca de si mesmos e de suas próprias vidas, além de fazêlos refletir se estão efetivamente aplicando estes aspectos em suas vidas e em seus cotidianos. - O Trabalho Comunitário Ao longo de todo o curso, os educandos auxiliam-se mutuamente na realização de todas as tarefas, de modo cooperativo para atingir metas coletivas. Ademais, normalmente ao fim da expedição, os educandos atuam em conjunto em um trabalho comunitário que favoreça alguma comunidade ou organização existente nas proximidades de onde o curso é realizado. Além dos benefícios inerentes ao trabalho comunitário final, este é um momento que possibilita a aplicação dos aprendizados decorrentes das experiências vividas no FEAL e que visa estimular o educando a atuar como multiplicador de benefícios sociais e ambientais em seu próprio cotidiano e círculo social. - A Expedição final A expedição final compreende o momento - dia ou horas finais do curso - nos quais o grupo de educandos gerencia, com autonomia e sem a presença dos instrutores, a progressão do trajeto até o ponto final da expedição, tendo a possibilidade de aplicar o que aprenderam durante o curso. A duração da expedição final depende da idade, maturidade e desempenho técnico e relacional dos alunos. Porém, esta atividade somente acontecerá se os instrutores considerarem o grupo de educandos aptos a fazê-lo com sucesso e segurança e se a condição climática e o relevo forem favoráveis para tal. 42 E, além disso, os educandos podem escolher se desejam, ou não, realizar a presente atividade. Para proteger a integridade dos educandos, a expedição final só pode ocorrer se os alunos forem capacitados para lidar com incidentes de primeiros socorros e possuírem aparato técnico de segurança. - Encerramento O encerramento do curso é momento em que há o compartilhamento de ideias, reflexões e aprendizados propiciados pela expedição final e por todo o curso entre alunos e instrutores; os instrutores fornecem feedbacks individuais acerca da atuação de cada aluno ao longo do curso e abordam temas acerca da aplicabilidade dos aprendizados adquiridos no contexto do FEAL no cotidiano dos educandos e em outros âmbitos de suas vidas, realizam o ritual de entrega de diplomas de conclusão do curso e solicitam que os educandos avaliem o curso realizado. De modo geral, o curso de formação de educadores ao ar livre (FEAL) é estruturado de modo a propiciar experiências individuais e grupais peculiares em um contexto de intensos desafios ambientais, físicos, psíquicos, cognitivos e sociais, objetivando facilitar o desenvolvimento de habilidades físicas, psíquicas, cognitivas, comportamentais, morais e sociais em seus educandos. 43 2. MÉTODO O método de investigação escolhido para nortear esta pesquisa possui um caráter qualitativo, visto que o enfoque quantitativo propicia a generalização estatística dos dados e uma visão homogênea e estática do objeto investigado e, portanto, não possui a profundidade necessária à compreensão do complexo processo da resiliência, que compreende um fenômeno heterogêneo e processual. Já a abordagem qualitativa, se mostra coerente com a investigação da resiliência, pois não negligencia aspectos essenciais à compreensão desta temática, dentre eles, as nuances significativas de como o processo de resiliência se dá para cada indivíduo e em cada contexto. 2.1.OBJETIVOS 2.1.2. OBJETIVO GERAL O objetivo geral desta pesquisa é investigar, no contexto de um curso de Formação de Educadores ao ar Livre (FEAL) no formato de expedição na natureza, a relação do método da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais com o desenvolvimento da capacidade de resiliência dos educandos. 2.1.3. OBJETIVOS ESPECÍFICOS - Investigar quais aspectos do FEAL foram vivenciados por cada educando como fatores de risco e fatores de proteção - Investigar a visão dos instrutores acerca dos fatores de risco e de proteção atuantes no contexto deste curso e, de modo geral, no contexto da educação experiencial pela aventura - Investigar o aprendizado que um curso como o FEAL possibilita aos seus alunos 44 - Investigar a relação das atividades físicas de aventura na natureza (AFAN) com o processo de resiliência no contexto da educação experiencial - Investigar os aprendizados facilitados pelo FEAL e sua aplicabilidade em outros âmbitos da vida dos educandos. 2.2. JUSTIFICATIVA Os estudos acerca do processo de resiliência evidenciam a necessidade de se buscar compreender os processos educativos e de interação social que auxiliam os indivíduos a desenvolverem mais resistência e maturidade para lidar com as adversidades intrínsecas ao desenvolvimento humano, bem como quais são os contextos facilitadores e prejudiciais ao desenvolvimento da capacidade de resiliência dos indivíduos. Na medida em que a educação experiencial pela aventura favorece o desenvolvimento integral dos educandos, partimos da hipótese de que este método pedagógico pode atuar como uma ferramenta facilitadora do desenvolvimento da capacidade de resiliência dos indivíduos. Neste ínterim, a relevância científica desta pesquisa reside na escassez de estudos referentes à temática da resiliência no contexto da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais, tanto no Brasil quanto nos demais países. E, no que tange à sua relevância social, acreditamos que a investigação dos fatores de risco e de proteção existentes neste contexto, poderá produzir dados importantes para o desenvolvimento de programas de prevenção e de promoção da saúde psicológica dos indivíduos envolvidos nesta atividade. 2.3. PARTICIPANTES Dentre os participantes do presente estudo, a seguir discriminados, seis são alunos e dois são instrutores do Curso de Formação de Educadores ao Ar Livre (FEAL), da Outward Bound Brasil (OBB). Dentre os alunos, dois pertencem ao sexo feminino e quatro ao sexo masculino, faixa etária entre 19 e 32 anos. Metade dos alunos possui 45 nível superior completo, enquanto a outra metade está cursando o ensino superior. De modo geral, a área de atuação dos alunos está relacionada à educação e a atividades ao ar livre. Alunos do FEAL • ALUNO 1: Sexo Feminino; 28 anos; solteira; Professora e Bióloga (Educadora Ambiental); Já havia praticado expedições e travessias na natureza antes do FEAL; pratica escalada há onze anos. • ALUNO 2 : Sexo Masculino; 32 anos; casado; Psicólogo, Empresário e Coach; nunca havia realizado uma expedição na natureza antes do FEAL já praticou arborismo, rapel, rafting e pratica caminhada e corrida; promove treinamentos empresariais utilizando jogos, arborismo, rapel e técnicas outdoor de navegação com bússola. • ALUNO 3: Sexo Feminino; 27 anos; solteira; estudante de Biologia. Não possuía experiência em expedições na natureza antes do FEAL; já havia realizado travessia em grupo em ambiente natural durante quinze dias antes do FEAL; já fez rapel; sua motivação para participar do FEAL não foi a prática de esportes de aventura, mas a educação ao ar livre. • ALUNO 4: Sexo Masculino; Idade: 28 anos; solteiro; Professor e Psicólogo (doutorando em Psicologia); pratica uma variedade grande de esportes na natureza, como prática de tempo livre: canoagem, trekking, escalada, mergulho e cicloturismo; aprecia bastante o contato com o ambiente natural; antes do FEAL, já havia realizado expedições de longo curso na natureza no Brasil e fora do Brasil. • ALUNO 5: Sexo masculino; 19 anos; solteiro; Estudante de Educação Física; pratica atividades físicas ao ar livre como escalada, já havia realizado travessia na natureza antes do FEAL, por lazer, há uma no pratica trekking. • ALUNO 6: Sexo masculino; 22 anos; solteiro; Estudante de Turismo; não possuía experiência anterior ao FEAL com expedição na natureza, mas já havia acampado, praticado trekking e escalada na natureza. 46 Como é possível perceber através da caracterização dos participantes, a grande maioria possui experiência anterior com atividades físicas de aventura na natureza e nenhum deles pode ser considerado sedentário. Instrutores do FEAL • INSTRUTOR 1: Sexo masculino; casado; Empresário; instrutor da Outward Bound Brasil desde 2000 e do FEAL desde 2003. • INSTRUTOR 2: Sexo feminino; 38 anos; casada Instrutora; Veterinária e Educadora ao ar livre; instrutora da Outward Bound Brasil desde 2004 e do FEAL, desde 2006. 2.4. INSTRUMENTOS Foram utilizados dois roteiros de entrevista semiestrurada, um para o grupo de alunos (anexo I) e um para a dupla de instrutores (anexo II). Foi elaborado também um questionário com três perguntas abertas somente para os alunos, para serem enviadas por e-mail seis meses após o término da expedição (anexo III). 2.5. PROCEDIMENTOS Após o contato com a Outward Bound Brasil, a permissão para a realização desta pesquisa e a assinatura do Termo de Consentimento Institucional (anexo IV) pelo responsável pela presente Instituição, realizou-se a coleta de dados. Os dados foram coletados no dia dois de fevereiro de 2011, último dia da expedição do FEAL, imediatamente após o encerramento do curso. As entrevistas foram realizadas no alojamento do IBAMA, na Serra do Cipó - MG, local em que terminava o trajeto da expedição e no qual os sujeitos pernoitaram antes de voltar às suas respectivas cidades de residência. 47 A coleta de dados foi realizada em duas etapas. A primeira etapa consistiu em uma entrevista semiestruturada, realizada com os participantes e instrutores do FEAL, ao final do curso, no local onde foi realizada a expedição. Logo após a última atividade do curso, a proposta da pesquisa foi apresentada aos participantes do FEAL e eles foram convidados a participar desta. Dentre os dez alunos e dois instrutores participantes do curso, seis alunos e os dois instrutores aceitaram fazêlo. As entrevistas foram realizadas individualmente, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (anexo V) pelos sujeitos. Face à permissão dos sujeitos, as entrevistas foram gravadas em áudio para posterior transcrição e análise dos dados. A segunda etapa da coleta de dados consistiu na aplicação de um questionário com três perguntas abertas, enviado via e-mail apenas ao grupo de alunos, seis meses após a realização do FEAL. Após a transcrição das entrevistas, os dados obtidos foram categorizados de acordo com o procedimento de Análise de Conteúdo de Bardin (1977), para posterior discussão dos dados. A Análise de Conteúdo consiste em descobrir e categorizar os núcleos de sentido presentes nos dados obtidos, cuja presença e frequência significam algo sobre o objeto investigado. 48 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO A seguir, os relatos dos participantes desta pesquisa serão apresentados e discutidos a partir da análise qualitativa e da correlação dos resultados encontrados com as informações presentes na literatura específica da área. Os dados obtidos foram submetidos à análise e subdivididos em categorias, de acordo com o procedimento de Análise de Conteúdo de Bardin (1977). As categorias obtidas foram: motivações dos educandos para realizar o Curso de Formação de Educadores ao Ar livre (FEAL); fatores de risco atuantes durante a realização do FEAL; fatores de proteção disponíveis aos educandos durante a realização do FEAL; aprendizados adquiridos através do FEAL e aplicabilidade dos aprendizados adquiridos através do FEAL em outros âmbitos da vida dos educandos. Estas categorias serão apresentadas e discutidas ao longo deste capítulo. É imprescindível ressaltar que a análise dos dados foi realizada de modo ético, preservando a identidade dos participantes. 3.1. MOTIVAÇÕES DOS EDUCANDOS PARA REALIZAR O FEAL Dentre os aspectos que motivaram os participantes a realizar o FEAL destacamse: a busca pelo aprimoramento profissional, através da capacitação teórica e prática em técnicas outdoor e em educação pela aventura, pois a maioria dos sujeitos atua ou almeja atuar em áreas relacionadas às atividades educacionais ao ar livre. Os participantes destacaram também a busca pelo desenvolvimento pessoal, como ilustram as falas de alunos abaixo: Eu trabalho com educação ambiental, educação ao ar livre, monitoria de acampamento, programas de trilha e de expedição com jovens (...) meus objetivos e expectativas em relação ao curso eram principalmente profissionais...aprender mais sobre educação ao ar livre e técnicas outdoor. Não que não houvesse objetivos pessoais, porque sei que quando você está em um de seus limites, você desenvolve muito do lado pessoal e psicológico (Aluno 1). 49 Além da busca profissional, vim pro FEAL pra trabalhar meu lado pessoal e me conhecer melhor no contexto do curso (...) minhas motivações para participar do curso foram o desafio de subir e atravessar a serra, o aprendizado da educação experiencial ao ar livre e o desenvolvimento pessoal “através” da realização de atividade física na montanha (...) e a OBB é uma empresa de referência neste setor (Aluno 3). Na fala do Aluno 1, podemos perceber que, apesar de sua motivação principal para participar do FEAL ter sido a busca pelo aprimoramento profissional, a aluna tinha a consciência de que as experiências desafiadoras vivenciadas no contexto do curso poderiam facilitar seu desenvolvimento pessoal e emocional. Já na fala do Aluno 3, percebemos que o desafio de praticar uma atividade física exploratória na natureza atuou como fator de motivação para a realização do curso. Porém, a prática de AFAN durante o FEAL não aparece apenas como fim, mas como meio de desenvolvimento pessoal e profissional. O que vai ao encontro da definição de Hahn (s.d., apud DINSMORE, 2004) sobre o treinamento experiencial Outward Bound, que propiciava a aprendizagem pelo mar e não para o mar. Neste sentido, a educação experiencial ao ar livre no FEAL aparece na fala do Aluno 3 como um treinamento “pela serra” e não apenas “para a serra”. Percebe-se assim que o objetivo não se concentra apenas na prática de trekking em si ou a reprodução de técnicas outdoor, mas o desenvolvimento profissional e pessoal dos alunos, utilizando os desafios inerentes da prática das AFAN como ferramenta pedagógica. Este potencial de desenvolvimento profissional e humano através das atividades realizadas no FEAL mostrou-se efetivo de acordo com os dados obtidos no relato dos alunos ao longo desta pesquisa. Estes aspectos serão discutidos no capítulo acerca dos aprendizados adquiridos durante o FEAL. 50 3.2. FATORES DE RISCO ATUANTES DURANTE A REALIZAÇÃO DO FEAL Segundo o protocolo de gerenciamento de riscos da OBB (OUTWARD BOUND BRASIL, 2011) alguns fatores ambientais, humanos e técnicos podem influenciar, amenizando ou potencializando, o grau do risco durante as atividades realizadas em ambiente natural. Os fatores ambientais incluem a topografia, a visibilidade, o clima, a hora do dia, dentre outros. Os fatores humanos incluem cansaço, atenção/distração, complacência, audácia, nível de experiência, competência técnica e outros. E, os fatores técnicos incluem equipamentos e técnicas utilizadas; nível de treinamento e experiência em primeiros socorros e em resposta à emergência, distância ao atendimento médico e outros. Vários destes fatores foram encontrados nos relatos dos alunos acerca dos fatores de risco encontrados ao longo da expedição. Antes de discorrer acerca dos fatores de risco percebidos pelos alunos durante o FEAL, é importante ressaltar que a forma como as pessoas significam os riscos não é unânime, portanto, o que significa um risco para um indivíduo, pode não ser um risco para outro, ou pode até ser um fator de proteção para este outro. Os indivíduos vivenciam as situações adversas de forma distinta, pois cada qual possui um conjunto de fatores de proteção intrínsecos e extrínsecos únicos, que interagem com a realidade e influenciam sua percepção (ASSIS, PESCE; AVANCI, 2006). Kunreuther (2011) ressalta que a existência de riscos é imprescindível para a viabilidade da educação pela aventura, porém, isto não implica que os educandos sejam colocados em perigo ou expostos a risco que lhes sejam nocivos. Afinal, na medida em que neste contexto há o gerenciamento de riscos, o risco real é menor do que o risco percebido pelos educandos. Le Breton (2009) afirma que o receio eliciado pelos riscos está mais relacionado ao modo subjetivo como os indivíduos avaliam-nos e às fantasias que neles despertam, do que efetivamente à concretude e objetividade destes. Mas, não se pode negligenciar a ocorrência de eventos naturais imprevisíveis, que possam vir a afetar a dimensão dos riscos ao longo de uma expedição na natureza. A seguir, encontra-se uma tabela que sintetiza os fatores de risco, ou seja, aspectos existentes ao longo da expedição do FEAL, que foram avaliados pelos alunos como fatores de risco potenciais e reais. 51 TABELA I: RELAÇÃO DOS FATORES DE RISCO ATUANTES DURANTE A REALIZAÇÃO DO FEAL 3.2.1. Perigos intrínsecos das Atividades Físicas de Aventura na Natureza (AFAN) 3.2.2. Imprevisibilidade dos acontecimentos em ambientes naturais 3.2.3. Sair da zona de conforto socioambiental habitual 3.2.4. Desconforto fisiológico 3.2.4.1. Sobrecarga física 3.2.4.2. Prática de atividade física sob condição climática extrema 3.2.4.3. Condicionamento físico insuficiente à demanda de atividade física do FEAL. 3.2.5. Demandas de navegação e orientação outdoor 3.2.6. Formato não diretivo do curso (lidar com a autonomia durante a expedição) 3.2.7. Desconforto emocional 3.2.8. O contexto de interação grupal do FEAL 3.2.9. Baixo nível de autoconhecimento e de consciência acerca das limitações pessoais 3.2.10. Fator de Risco interno 3.2.11. Fatores de risco durante a Atividade Solo 3.2.11.1. Quebra do coletivo: atividade solitária após inúmeras e intensas atividades grupais 3.2.11.2. Caráter repentino e inesperado da atividade 3.2.11.3. Estar sozinho no contexto do FEAL 3.2.11.4. Não estar habituado ao ambiente natural 3.2.12. Fatores de risco durante a Expedição Final 3.2.12.2. Ausência das figuras de apego seguro (instrutores) 52 3.2.1. PERIGOS INTRÍNSECOS DAS ATIVIDADES FÍSICAS NA NATUREZA (AFAN) Nas atividades de aventura realizadas em ambientes naturais, o controle das variáveis ambientais é realizado pela natureza. Deste modo, os indivíduos engajados neste tipo de atividade tornam-se dependentes da natureza e vulneráveis aos seus perigos intrínsecos, visto que não podem controlá-los, como diz um dos alunos entrevistados: Em uma expedição na natureza, você tem n fatores pra conseguir terminar a expedição com todo mundo bem e não se colocar, nem colocar ninguém em risco (...) no ambiente natural, somos de certo modo reféns dos desejos da natureza (Aluno 1) Apesar de o ser humano não ter controle sobre os perigos da natureza, ele o tem sobre os riscos, que são as relações que estabelece com estes perigos. (OUTWARD BOUND BRASIL, 2011). O risco pode ser gerenciado através do manejo de riscos, processo que será discutido no item fatores de proteção. 3.2.2. IMPREVISIBILIDADE DOS ACONTECIMENTOS EM AMBIENTES NATURAIS Nos ambientes naturais, as variáveis são controladas pela própria natureza, o que faz com que os eventos sejam imprevisíveis e o grau de controle dos indivíduos sobre o ambiente diminua. Como podemos perceber na fala de um dos alunos a seguir, a imprevisibilidade das variáveis ambientais no contexto do FEAL, atuou negativamente sobre sua autoconfiança, deixando-o inseguro acerca de sua auto-eficácia e sua capacidade de superar desafios desconhecidos: 53 O FEAL não é nada fácil...tem muitas variáveis que você não controla...que você nem imagina que vai ter lá. E quando você vê, você já está na situação...e tem que dar um jeito de se virar (...) isso amedronta...dá insegurança...porque...e se eu não desse conta de me virar com algo que acontecesse? (Aluno 2) De acordo com os instrutores do FEAL, nas experiências educacionais na natureza para que a imprevisibilidade dos acontecimentos não comprometa a integridade física e psíquica dos educandos, além do gerenciamento e do manejo de riscos, é necessário que eles sejam capacitados para que possam apresentar: prontidão; agilidade; flexibilidade; assertividade e eficiência nos processos decisórios; capacidade de discernir e avaliar as variáveis ambientais; maturidade para evitar atitudes impulsivas e imprudentes; atenção ao autocuidado e ao cuidado grupal; habilidades sociais, como, por exemplo, a capacidade de comunicar-se e de viver em grupos; conhecimento acerca da dinâmica dos ambientes naturais; aparato técnico seguro; domínio técnico suficiente para proteger-se das intempéries. Na capacitação dos educandos realizada durante o FEAL, a maioria destes aspectos foi trabalhada pelos instrutores e serão discutidos com mais profundidade na categoria dos fatores de proteção. 3.2.3. SAIR DA ZONA DE CONFORTO SOCIOAMBIENTAL HABITUAL O ambiente modifica o homem e é por ele modificado. A Psicologia Ambiental é a área de conhecimento que investiga as relações do comportamento humano com seu ambiente físico. Há consenso entre diversos teóricos da Psicologia Ambiental acerca da existência da territorialidade no repertório comportamental do ser humano. A territorialidade é um comportamento espacial humano, que compreende a delimitação e a manutenção de um espaço pessoal, visando obter conforto, privacidade e segurança. Esta demarcação não é apenas física, mas também social a psíquica. A família, por exemplo, é um dos maiores exemplo da territorialidade humana (HEIMSTRA, MCFARLING, 1978). 54 Os autores enfatizam que apesar do ser humano apresentar o comportamento de territorialidade, ele tem a capacidade de se adaptar psíquica e fisiologicamente a uma ampla série de ambientes, através do processo de adaptação ambiental, que compreende a modificação do sistema sensorial pela apresentação contínua de estímulos. Porém é difícil precisar a quantidade de tempo e de estimulação necessárias para que cada indivíduo se adapte a cada tipo de ambiente, bem como os efeitos causados pelo processo de adaptação em cada organismo. A participação em um curso como o FEAL, implica que os educandos abandonem temporariamente seus respectivos territórios pessoais e zonas de conforto ambiental e social. Sabe-se que os ambientes e as mudanças ambientais despertam diferentes tipos de atitudes e reações afetivas em cada indivíduo (HEIMSTRA, MCFARLING, 1978). Logo, ao longo do processo de adaptação ao novo contexto ambiental e social do curso, diversos afetos são mobilizados e diversos tipos de atitudes e comportamento são estimulados em cada educando. E, dependendo das histórias de vida e das idiossincrasias de cada um deles, este processo pode até ser vivenciado como um fator de risco. Abaixo, encontram-se falas dos alunos acerca da mudança e da adaptação ambiental vivenciadas no curso: Por estar fora do seu lugar e do seu grupo habituais, seu psicológico já começa a pender algumas vezes (Aluno 1). O FEAL são quatorze dias bem difíceis...em termos de mudança de ambiente...de cenário comportamental. Não é nada fácil quatorze dias em cima da montanha com frio, vento, calor excessivo, mosquitos, insetos, pernilongos...dividindo tudo com pessoas que você nem conhecia (...) pra mim a sensação emocional de estar longe de casa...a saudade da família foi bem difícil...pegou bastante (Aluno 2). Além das intempéries inerentes ao ambiente natural (citada pelo Aluno 2), às quais os alunos devem se adaptar ao longo do curso, ambos os alunos ressaltam o desconforto afetivo gerado pela falta do espaço pessoal cotidiano e da rede de apoio social e familiar habituais. 55 Eu vim de um lugar que é mata atlântica...cerrado pra mim é coisa nova. É muito diferente andar no cerrado, pra se localizar, inclusive. Isso dificultou bastante o curso pra mim...porque não estou acostumado...tive que me adaptar ao longo do curso (Aluno 4) Já nesta fala, o aluno demonstra que a mudança de bioma, de seu “habitat natural”, a mata atlântica para o cerrado, dificultou a realização do curso e, enfatiza a importância do processo da adaptação ambiental ao longo do curso. 3.2.4. DESCONFORTO FISIOLÓGICO O desconforto fisiológico ao realizar o FEAL foi um aspecto unânime na fala dos alunos. Os aspectos causadores deste desconforto foram: a sobrecarga física e a condição climática extrema durante a travessia. 3.2.4.1.SOBRECARGA FÍSICA De modo geral, os alunos do FEAL consideraram as AFAN realizadas durante o curso, o trekking e o montanhismo, difíceis e desgastantes, o que reforça a definição da Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura (ABETA) cerca de ambas as modalidades como práticas exaustivas. De acordo com a presente associação, o trekking, associado ao montanhismo, consiste uma prática bastante desgastante, na medida em que consiste em caminhadas de longo curso, que percorrem ambientes naturais, de topografia extremamente desafiadora, sob o peso de cargas pesadas (todo o aparato técnico e mantimentos utilizados no trajeto), durante dias a fio. (ROMANO, 2009 apud – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE ECOTURISMO E TURISMO DE AVENTURA, 2005). 56 Em consonância com os apontamentos realizados pela ABETA sobre a prática do trekking e do montanhismo, segundo os alunos, os principais motivos de sobrecarga física durante a realização do curso foram: a intensidade e a duração das atividades desenvolvidas durante o curso e da atividade física; o ambiente natural no qual a atividade física foi realizada e o peso dos equipamentos e mantimentos, que todos os integrantes do grupo tinham que carregar durante a expedição. Segue abaixo as fala de dois alunos acerca do grau de dificuldade da atividade física realizada no contexto do FEAL: A caminhada do FEAL é difícil porque não é uma simples caminhada...são vários quilos dentro de uma mochila, debaixo de sol, em um ambiente que você pega serra, montanha, descida, cruze de rio...o que com certeza gera um desgaste maior (Aluno 1) Para esta aluna, o grau de dificuldade da atividade física torna-se maior quando realizada em ambiente natural, o que exige mais do organismo. Afinal, a natureza impõe obstáculos naturais que devem ser transpostos ao longo da expedição. Além disso, a atividade física do FEAL foi realizada no formato de expedição, o que implica que todos os equipamentos e pertences, individuais e grupais, além do montante de alimentos consumido pelo grupo durante uma semana (apesar de a expedição ter durado quatorze dias, no meio do curso houve o reabastecimento de alimentos) eram carregados em mochilas, por todos os participantes do grupo, todos os dias. Logo, passar inúmeros dias transpondo obstáculos naturais carregando muito peso, em relevo acidentado, exige bastante da capacidade física dos alunos, o que ficou claro na fala de ambos os alunos. Na seguinte fala a sobrecarga física sentida durante a realização do curso também está associada à intensidade da carga e à duração da atividade física realizada O FEAL não é só alegria, não é só ver paisagem bonita...é um curso difícil...super intenso (...) É esforço físico e atividade o dia inteiro...o dia todo...a gente não parava. O dia começava às sete da manhã e acabava meia noite. Pra mim isso foi o mais difícil de superar....e o que às vezes me fazia pensar em desistir (...) A maior dificuldade do 57 curso é física...a ralação é muito grande...as caminhadas são muito longas e intensas...10 horas ou mais de caminhada por dia...muito cansaço e dores no pé (Aluno 6) Além de passar quase metade do dia realizando a travessia do FEAL, ou seja, realizando uma atividade física exaustiva, ao fim do dia os integrantes do grupo montavam acampamento, preparavam a própria refeição e lavavam os utensílios utilizados. Ao acordar, o grupo só voltava a caminhar após se alimentar e desarmar o acampamento. Todo esse trabalho era dividido e realizado coletivamente, de modo que todos os integrantes do grupo estavam sempre realizando alguma atividade. Nesta fala, é possível perceber que o fato de praticamente não haver tempo ocioso durante o curso, no qual os alunos pudessem descansar e se refazer do desgaste físico provocado pelas longas caminhadas diárias, potencializou ainda mais a sobrecarga causada pela atividade física. 3.2.4.2. PRÁTICA DE ATIVIDADE FÍSICA SOB CONDIÇÃO CLIMÁTICA EXTREMA Além da sobrecarga física, outro aspecto apontado pelos alunos do FEAL como responsável pelo desconforto fisiológico sentido durante o curso, foi a realização de atividade física sob condição climática extrema, dado que em alguns momentos durante a travessia, a temperatura elevou-se significativamente. O ser humano pertence ao grupo dos animais homotérmicos, nos quais os processos químicos (função química), físicos (funções mecânicas), as funções corporais e, de modo geral, a vida, dependem da constância da temperatura, pois o funcionamento das enzimas e a reação dos processos químicos somente ocorrem dentro de um limite ótimo de temperatura. Logo, tanto a hipertermia, quanto a hipotermia, podem prejudicar o funcionamento do organismo homotérmico em diversos graus, inclusive causando a falência orgânica e a morte (GANONG 1972, apud WEINECK, 2000). No que tange à elevação da temperatura corporal, apesar de o corpo humano suportar altas temperaturas ambientais, por um curto espaço de tempo, sem sofrer uma 58 hipertermia, isso acarreta uma sobrecarga ao sistema cardiocirculatório. A temperatura média do ser humano é de 37 graus Celsius. O aumento da temperatura interna corporal acima de 41 graus Celsius, pode acarretar déficit de células ganglionares importantes e lesão cerebral (WEINECK, 2000). A atividade física realizada no contexto deste FEAL incluiu a associação de diversos fatores que causam um aumento significativo da temperatura corporal. Dentre estes fatores estão: a temperatura do local em que o FEAL foi realizado: segundo um dos participantes, a sensação térmica chegou próxima aos 50 graus Celsius durante o curso e a atividade física desgastante realizada com carga intensa. Segundo Weineck (2000), a realização da atividade física influencia na temperatura corporal, elevando-a, devido à intensificação da atividade muscular durante o trabalho corporal. E, do mesmo modo quanto maior a elevação da carga durante o exercício, maior a temperatura corporal. Logo, a elevação térmica, associada ao desgaste físico devido ao trekking, trouxe um grande desgaste fisiológico à maioria dos alunos do FEAL, como pode ser verificado na fala abaixo: Eu senti bastante cansaço no FEAL. Principalmente no último dia, que o sol tava muito, muito forte...muito sol na cabeça, sensação térmica acima de 50 graus. Tinha hora que eu pensava que se eu andasse por mais um tempo, eu não ia aguentar. Nesse momento eu me senti pior, mais frágil...eu tava muito cansado mesmo (...) O calor judia da gente. Você perde muito líquido. Caminhar com sombra ou quando tá nublado é uma delícia, uma beleza, mas debaixo do sol... (...) Os piores momentos eram os de sol intenso, o sol queimando...caminhando ao sol do meio-dia, da uma hora...subindo e descendo serra...Naquele momento a gente tava baqueando...se não tivesse parado, ido pro rio e se hidratado logo, talvez cinco, dez minutos depois tivesse complicações (Aluno 4) De acordo com a Biologia do Esporte, a termorregulação, mecanismo de regulação da temperatura corporal é extremamente importante para a prática esportiva e de exercícios físicos, na medida em que as oscilações da temperatura podem provocar alterações funcionais da musculatura, da respiração, da circulação e do sistema nervoso central. (FINDEISEN; LINKE; HAIN 1980, apud WEINECK 2000). Esta fala corrobora a teoria na medida em que o cansaço físico do aluno, somado à elevação de 59 sua temperatura corporal, afetaram o funcionamento de seu organismo, prejudicando seu desempenho físico e fazendo-o sentir-se fragilizado. Um contexto de intensa carga corporal, de longa duração, sob alta temperatura ambiental, como era o do FEAL, pode afetar não apenas o equilíbrio orgânico de um organismo, mas o psíquico também. O distúrbio de esgotamento de calor, por exemplo, pode afetar o funcionamento psíquico, causando alterações comportamentais e de humor, tais como: diminuição da capacidade de discernimento e de autocontrole, perturbação da consciência, estados de ansiedade, excitação, agressividade, histeria, apatia e psicose, dentre outros. (ISRAEL 1982, WEINECK, 2000). Os alunos não desenvolveram este distúrbio. Mas, o desconforto fisiológico gerado pelo desgaste físico e pela elevação térmica, atuou como um fator de risco potencial para eventuais divergências grupais e fragilidades emocionais, como podemos conferir na fala de um dos alunos: A região onde o curso foi realizada é seca e não choveu...A gente passou por algumas situações de extremo calor, bem perrengues....a sensação térmica neste curso chegou várias vezes ao extremo (...) Quando você tá andando debaixo de um sol de quarenta graus, com trinta quilos nas costas, cansado, fica mais fácil ficar incomodado, colocar barreiras e brigar um com o outro. Passar por necessidades fisiológicas durante o curso altera o seu psicológico (...) Em um contexto como o do FEAL, o fato de você sair da sua zona de conforto física ou chegar no seu extremo físico, já começa a alterar o seu psicológico (Aluno 1) 3.2.4.3.CONDICIONAMENTO FÍSICO INSUFICIENTE À DEMANDA DE ATIVIDADE FÍSICA DO FEAL Para a prática de trekking e de montanhismo, atividades físicas realizadas durante o FEAL, recomenda-se a realização prévia de um treinamento físico com enfoque no desenvolvimento e aprimoramento de força resistência, flexibilidade, capacidade cardiorrespiratória, além de atividades que facilitem a ampliação do repertorio de habilidades motoras (SCHURMAN; SCHURMAN, 1966). Neste sentido, a ausência de 60 condicionamento físico, ou um condicionamento físico insuficiente à prática de AFAN sob condições extremas de temperatura, como o era no contexto do FEAL, torna-se um fator de risco potencial para a vulnerabilidade física e psíquica dos alunos, como vemos na fala de um aluno: Alguns dos colegas do curso estavam fisicamente mais abalados...porque apesar de trabalharem com atividades físicas, não tinham tanto preparo físico...e não estar preparado fisicamente no contexto do curso, é algo que fragiliza...física e psicologicamente (Aluno 1) Na fala seguinte, um dos instrutores afirma que possuir pouca experiência com atividades físicas e com atividades ao ar livre pode prejudicar a adaptação dos alunos ao ambiente do FEAL: Para os alunos mais sedentários ou menos acostumados à vida ao ar livre...certamente o FEAL foi desafiador (...) quem não tem vivência ao ar livre...e com esportes...atividade física...tem mais dificuldades pra se adaptar a este contexto do curso (Instrutor 1). Na fala abaixo um dos alunos demonstra que a ausência de treinamento físico antes do início do curso pode ser um fator de risco para a adaptação ao contexto de atividades físicas durante o FEAL: A atividade física do FEAL é intensa...o mais difícil e impactante foram os primeiros dias...tinha subidas longa e muito íngremes...faltava até o ar...e eu não tava acostumado ainda com a mochila nas costas e com aquele peso todo (...) apesar de praticar esportes regularmente, eu não tinha feito um preparo físico muito forte antes...isso potencializou a dificuldade (Aluno 6). Na fala, percebe-se a dificuldade sentida pelo aluno no processo de adaptação física à intensidade da carga e à demanda cardiorrespiratória elevadas da atividade física realizada durante o curso. Seu processo de ambientação poderia ter sido menos desgastante se a intensidade da carga e do exercício físico fosse elevada progressiva e 61 gradualmente. Porém, o FEAL é realizado em formato de expedição e não há outra opção a não ser levar, desde o primeiro dia, toda a carga que será utilizada durante todo o curso. Ademais, um treinamento progressivo durante o FEAL torna-se impossível, pois quem determina a intensidade da atividade a ser realizada é a topografia local. Logo, para facilitar o processo de ambientação física, o ideal seria que os indivíduos que participassem do FEAL, realizassem um programa de treinamento físico antes de iniciar o curso. 3.2.5. DEMANDAS DE NAVEGAÇÃO E ORIENTAÇÃO OUTDOOR No início do FEAL os instrutores ensinam aos alunos a teoria e prática de técnicas de navegação e orientação outdoor (leitura de mapas cartográficos, entornos e uso da bússola), necessárias para que a travessia seja realizada. No início, os instrutores são mais diretivos no gerenciamento da expedição. Após o aprendizado das técnicas, os instrutores passam a ser apenas “staff” dos alunos e quem assume o comando da expedição e decide os trajetos a serem seguidos, é o grupo de alunos, através da leitura dos mapas cartográficos, dos entornos e do uso da bússola. Vários alunos encontraram bastante dificuldade perante as demandas de navegação e de orientação durante a travessia do FEAL, como ilustram as falas abaixo: O mais difícil do curso é a parte de navegação (...) conseguir estabelecer uma rota só olhando pra mapa e lendo o ambiente era o grande desafio... que forçava a gente a ficar pensando demais o tempo todo...que tirava a gente um pouco do sério (...) durante a expedição você tem que tentar ajudar o grupo a se orientar...a sua cabeça está pensando o tempo todo e isso exige mais de você e do seu físico e do seu mental...traz um desgaste maior (Aluno 4). Segundo este aluno, as demandas de navegação e orientação exigem bastante do funcionamento cognitivo o que potencializa o desgaste físico e emocional durante o curso. 62 Se você não aprende a usar a bússola, a carta de navegação e estiver sozinho na montanha, você não se mexe...ou se perde cada vez mais....pode até acabar se colocando em alguma situação arriscada (Aluno 6). De acordo com este aluno, o não domínio das técnicas de orientação e navegação outdoor durante o FEAL, dificultam a localização dos caminhos e prejudicam a locomoção no ambiente natural, podendo atuar como um fator de risco a segurança dos participantes. Porém, a fala de outro aluno, apresentada a seguir, enfatiza que apesar de essas técnicas serem imprescindíveis às atividades de aventura na natureza, mesmo indivíduos que não as dominam podem realizar este curso, pois a capacitação técnica dos instrutores foi suficiente para instrumentaliza-los neste sentido: A orientação e navegação são aspectos difíceis do curso...não há como fazer o curso sem saber estas técnicas (...) mas nada impede que quem não domina estas técnicas façam um curso experimental ao ar livre e aprendam no curso o que precisam saber pra se virar (Aluno 2). 3.2.6. FORMATO NÃO DIRETIVO DO CURSO (LIDAR COM A AUTONOMIA DURANTE A EXPEDIÇÃO) Como já mencionado, após os alunos aprenderem as técnicas, habilidades e conhecimentos necessários ao gerenciamento da expedição, a responsabilidade de liderar o grupo de alunos passa a ser do próprio grupo. A partir de então, é o grupo de alunos que, de modo democrático, toma todas as decisões necessárias durante a travessia e, consequentemente, lida com as consequências das próprias decisões. O formato não diretivo do curso e a atribuição de autonomia aos alunos podem atuar como fator de risco para alguns educandos, como podemos conferir na fala a seguir: Por ser um curso, eu achava que no FEAL eu ia aprender um monte de técnicas, modelinhos e receitinhas prontas de educação ao ar livre a seguir. E foi completamente diferente (...) o curso é muito mais do que aprender receitinhas prontas (...) de repente você vê que o curso é seu...que é você que tem que fazê-lo...isso é assustador...dá vontade de 63 falar: ‘Me dá uma receita, não quero ir sozinha’...mas você tem que ir sozinha sim...e ainda em uma ambiente de natureza...e sem as pessoas que costumam te dar apoio no cotidiano (Aluno 3). Na fala percebemos que esta aluna tinha a expectativa de que o método pedagógico utilizado no FEAL tivesse um formato mais diretivo de educação. Deste modo, lidar com a própria autonomia, repentinamente, em um ambiente novo, repleto de desafios naturais e sem a sua rede habitual de apoio, lhe pareceu assustador. Na fala a seguir, um dos instrutores discorre acerca da autonomia dos alunos nas tomadas de decisão durante o curso: Na cidade pra ter conforto você adquire o que quiser. Já no ambiente do FEAL são suas escolhas te propiciam conforto ou não...então o conforto dos alunos vai depender muito das escolhas e da disciplina deles (...) os alunos é que vão escolher os caminhos, a hora de parar de caminhar, onde vão dormir, o que vão cozinhar...e as consequências das decisões em um ambiente natural são imediatas (Instrutor 2). Através desta fala, percebe-se a importância das decisões tomadas pelos alunos durante a expedição. Na medida em que as escolhas dos alunos definem ações que, por sua vez geram consequências, é importante que a autonomia seja exercida com cuidado e responsabilização no processo de tomada de decisões, para que os alunos não tenham que lidar com consequências negativas. Neste sentido, a seriedade da assunção da autonomia no contexto do FEAL, pode potencializar o temor ao formato não diretivo do curso. Ademais, os indivíduos que não estão acostumados a exercer a própria autonomia, a responsabilizar-se pelas próprias atitudes e que são dependentes do apoio de sua rede social habitual, estão mais sujeitos a vivenciar o formato não diretivo do FEAL como uma adversidade. 3.2.7. DESCONFORTO EMOCIONAL A maioria dos alunos relata ter sentido algum tipo de desconforto emocional durante a realização do curso, como podemos conferir a seguir: 64 Em diversos momentos do curso, várias pessoas ficaram bastante incomodadas emocionalmente (...) na verdade todos, inclusive eu, ficamos psicologicamente fragilizados...em termos de sentimentos e emoções (Aluno 2) Muitos alunos sentiram medo durante o FEAL. Mas não considero que algum participante tenha se sentido em perigo (Instrutor 1). A vivência de desafios físicos, cognitivos, sociais e emocionais em um contexto de adaptação a uma nova realidade social e ambiental, como o era no FEAL, mobilizam inúmeros afetos, tanto positivos, quanto negativos, podendo causar fragilidade emocional. Porém, a fala deste aluno não especifica quais aspectos desta experiência causaram a referida fragilidade emocional. De acordo com a avaliação de um dos instrutores, apesar de os alunos do FEAL terem sentido medo em algumas situações, eles não chegaram a se sentir em perigo. Ou seja, apesar de os alunos terem vivenciado desconfortos emocionais durante o curso, aos olhos da instrutora, isso não foi um fator de risco para esses participantes. 3.2.8. O CONTEXTO DE INTERAÇÃO GRUPAL DO FEAL O FEAL impõe aos seus participantes uma situação de interação social bastante peculiar, pois propicia um contato grupal extremamente intenso entre indivíduos que não se conheciam antes do curso, em meio ao ambiente adverso da natureza. No relato dos alunos, a convivência grupal no contexto do FEAL foi caracterizada tanto como um fator protetor, por propiciar uma rede de apoio social necessária à segurança física e psíquica dos integrantes em meio ao ambiente natural, quanto como um fator de risco predisponente da fragilidade emocional. Essas premissas corroboram o que teorizam Yunes e Szymansky (2002), que ressaltam que um mesmo fator pode atuar, ao mesmo tempo, como um fator de proteção e como um fator de risco. Segue abaixo a fala de um dos alunos sobre o contexto grupal do curso: 65 O mais desafiador pra mim foi a convivência em grupo...a dificuldade psicológica de estar ali conhecendo as pessoas, respeitando o jeito, as características de cada um (...) mesmo com o limite físico estabilizado, a convivência em grupo no FEAL às vezes abala o psicológico (Aluno 1). Em sua fala, esta aluna afirma que, mesmo na presença do fator de proteção ‘limite físico estabilizado’, a intensa convivência com pessoas que até o curso eram desconhecidas e ter que lidar com a alteridade e respeitar as idiossincrasias dos integrantes da equipe, foram aspectos que potencializaram as dificuldades enfrentadas no curso. No curso você precisa respeitar o seu processo, o seu tempo e ao mesmo tempo acompanhar os processos e o tempo do grupo...com pessoas que você nunca viu. É um desafio enorme (Aluno 3). Esta fala explicita alguns desafios impostos pelo convívio grupal no FEAL, como a necessidade de harmonizar as necessidades e características individuais e grupais e fazê-lo entre indivíduos que se conheceram apenas no início do curso. 3.2.9. BAIXO NÍVEL DE AUTOCONHECIMENTO E DE CONSCIÊNCIA ACERCA DAS LIMITAÇÕES PESSOAIS O autoconhecimento insuficiente e a falta de noção acerca das próprias potencialidades, limitações e deficiências foram mencionados como fatores de risco para a exposição dos educandos a situações para as quais não possuem recursos de enfrentamento suficientes, aumentando a probabilidade de se submeterem a situações de perigos que lhes sejam nocivas, como nos mostra a fala de um aluno: Têm pessoas que querem ir além...querem ser o rambo...o he-man, (risos) e acabam se dando mal...por não conhecerem até onde podem ir...até onde aguentam...acabam se colocando em risco (Aluno 6). 66 3.2.10. FATOR DE RISCO INTERNO Além dos aspectos externos que atuaram como fatores de risco, alguns alunos também mencionaram como fator de risco interno alguns aspectos da própria personalidade, que prejudicaram o enfrentamento das dificuldades vivenciadas durante o curso, como podemos conferir na fala abaixo: O que me atrapalhou a enfrentar as dificuldades do curso não foi nada externo, foi minha mente....uma luta interna comigo mesma (Aluno 1). Esta fala reforça o fato de que as AFAN, apesar de serem atividades físicas de caráter predominantemente cooperativo, impõem ao praticante uma disputa a ser travada com os riscos intrínsecos ao ambiente natural e com seus próprios temores, limites e monstros internos (COSTA, 2001). 3.2.11. FATORES DE RISCO DURANTE A ATIVIDADE SOLO A atividade solo foi apontada por todos os alunos do FEAL como uma das atividades mais difíceis e desafiadoras do curso, devido a três aspectos, dentre eles o fato desta atividade ter representado a separação do grupo para a realização de um desafio individual após diversos dias de atividades grupais; o caráter repentino e inesperado da atividade e o fato do educando ficar sozinho durante a atividade solo no contexto do FEAL. 67 3.2.11.1. QUEBRA DO COLETIVO: ATIVIDADE SOLITÁRIA APÓS INÚMERAS E INTENSAS ATIVIDADES GRUPAIS Na visão dos instrutores, uma das dificuldades impostas pela atividade solo é a quebra repentina do coletivo, afinal, durante toda a expedição os alunos realizam todas as atividades em grupo e de repente, devem ficar sós: Durante todo o FEAL o grupo de alunos tá muito unido...é tudo muito coletivo...eles processam tudo junto...são cobrados por metas coletivas, comem junto, dormem junto e fazem tudo junto (...) a atividade solo, após tanta atividade coletiva, num primeiro momento assusta muito. E de repente há a quebra deste conjunto (Instrutor 2). Através desta fala, percebe-se que a atividade solo é o único momento durante o FEAL em que os alunos devem contar apenas com os próprios recursos de enfrentamento das adversidades e ela ocorre após os alunos terem se acostumado a contar com a soma dos recursos individuais e com os recursos grupais. Logo, a atividade solo é também um processo de mudança e demanda a adaptação dos alunos a esta nova realidade. 3.2.11.2. CARÁTER REPENTINO E INESPERADO DA ATIVIDADE Um dos aspectos que potencializaram a dificuldade imposta pela atividade solo, foi o fato de que esta foi uma atividade surpresa, visto que os alunos souberam de sua existência apenas na iminência de sua realização, como evidencia a fala de um aluno: A gente não sabia da atividade solo...de repente os instrutores falaram...peguem as lanternas...sacos de dormir...que vocês vão dormir fora...aí eles ensinaram a fazer bivack...uma cama pra dormir ao relento...com uma lona...em caso de chuva (...) o fato de ser uma 68 atividade inesperada...assusta bastante...porque a gente não se preparou conscientemente pra isso (Aluno 5). Para este aluno, o fato de não saber da existência da atividade solo e de esta ter sido proposta repentinamente, fez com que ele se sentisse mais temeroso e despreparado para enfrentar este desafio. 3.2.11.3. ESTAR SOZINHO NO CONTEXTO DO FEAL O fato de estar só durante a atividade solo, em um contexto de ambiente natural com seus perigos intrínsecos, foi apontado pelos alunos, de modo unânime, como um grande e difícil desafio. Apesar de estarem a sós na atividade solo, era possível que os alunos chamassem os instrutores através de um apito. E havia uma luz distante sinalizando o local no qual os instrutores estavam. Ou seja, era possível solicitar apoio caso fosse necessário. Porém, a fala abaixo demonstra que mesmo tendo a possibilidade de pedir auxílio frente a alguma adversidade, a ausência física dos instrutores tornou alguns dos alunos mais vulneráveis: Fiquei inseguro na atividade solo...você está no meio do mato sozinho. Apesar de saber que tem gente por perto, dá receio...qualquer barulhinho você fica meio esperto (Aluno 6). A fala seguinte demonstra que, apesar do caráter adverso de se estar sozinho no contexto do FEAL, a atividade solo é um momento que favorece que os alunos entrem em contato com os próprios recursos de enfrentamento e percebam se estes são ou não suficientes para enfrentar os desafios que lhe são impostos. Desta forma, essa vivência de configura como uma oportunidade de autoconhecimento: 69 Na atividade solo tive que lidar com um medo que não tinha sentido até então...no começo do solo eu me desesperei e chorei pensando que eu sou fraca...que não consigo ficar sozinha...que quando depende de mim eu não consigo (...) foram uns vinte minutos de desespero (...) mas depois consegui superar esse momento de desespero, porque eu tinha recursos pra isso (Aluno 3). Por meio desta fala, é possível perceber que este aluno sentiu-se vulnerável no início da atividade solo, frente à ausência da rede de apoio social à qual estava habituada durante a expedição. De modo que, ao se perceber só em pleno contexto do FEAL, não acreditou possuir recursos suficientes para enfrentar esse desafio, o que resultou em descontrole emocional. Porém, após o desespero inicial, o fato de estar só neste contexto possibilitou o contato com os próprios recursos de enfrentamento e o reconhecimento de sua capacidade de superação de desafios. Assim, para este aluno o fator de risco externo (estar só) facilitou a mobilização do fator de proteção interno (confiança na própria capacidade de transpor adversidades). Isto corrobora a evidência de que um mesmo aspecto pode atuar, para um mesmo indivíduo, como um fator de risco e, ao mesmo tempo, estimular a mobilização e o desenvolvimento de fatores de proteção (ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006). E, além disso, vai ao encontro do que enfatizam Yunes e Szymansky (2002) sobre o processo de resiliência. As autoras ressaltam que a resiliência não existe sem os fatores de risco, afinal, os fatores de proteção não possuem efeito na ausência de um fator de risco, visto que sua função é atenuar os efeitos adversos dos estressores. Logo, é necessário que um indivíduo esteja exposto a uma situação de risco, para que, no intuito de superá-la, possa descobrir e mobilizar fatores externos e internos de proteção. 3.2.11.4. NÃO ESTAR HABITUADO AO AMBIENTE NATURAL Segundo um dos instrutores, a não familiaridade com o ambiente natural aumenta a probabilidade de a atividade solo ser vivenciada como um fator de risco pelos alunos: 70 O solo é uma atividade muito exigente, porque coloca os alunos em contato com eles mesmos e em contato com o ambiente natural...a pouca familiaridade com o ambiente natural pode fazer com que o solo seja um momento bem adverso...neste grupo tinha alguns alunos que não tinham tanto problema com este ambiente...mas os que não estavam acostumados a este tipo de ambiente, com certeza sofreram mais...tiveram mais medo (Instrutor 2). Ou seja, aqueles alunos menos habituados ao contato com ambientes naturais antes do FEAL, ficaram mais vulneráveis e fragilizados ao estar só em meio à natureza, durante a atividade solo. 3.2.12. FATORES DE RISCO DURANTE A EXPEDIÇÃO FINAL A expedição final consiste em uma atividade realizada no último dia da expedição do FEAL, na qual os instrutores se retiram da equipe e apenas o grupo de alunos deve gerenciar a expedição e seguir sozinhos, até o ponto de chegada da travessia. A ausência dos instrutores, que representaram figuras de apego seguro (BOLWBY, 1984) aos educandos ao longo da expedição, foi apontada pelos alunos como potencializadora da dificuldade desta atividade, como podemos verificar a seguir. 3.2.12.1. AUSÊNCIA DAS FIGURAS DE APEGO SEGURO (INSTRUTORES) Os instrutores foram apontados por todos os alunos como um fator de proteção essencial para a segurança física e emocional da equipe. Logo, a ausência das figuras de apego seguro, representadas pelos instrutores, favoreceu a vulnerabilidade e o aumento da insegurança dos educandos durante a expedição final. Como ilustra a fala de um dos alunos destacada a seguir: 71 Na expedição final, tava só o grupo de alunos...os instrutores não estavam próximos da gente...eu fiquei com mais receio, mais insegura... porque não tinha aquele alicerce, aquela base. Eu ficava assim: ‘nossa, vai chover, você têm certeza que esse é o melhor lugar pra acampar?’ (...) se acontecesse alguma coisa com qualquer um durante a expedição final, como é que a gente ia conseguir sanar esse problema? (Aluno 1). Porém, apesar da maior vulnerabilidade do grupo de alunos durante a expedição final, devido à ausência dos instrutores, esta atividade não chegou a ser um fator de risco para os alunos. Evidencia-se que eles estavam instrumentalizados para transpor este desafio, ou seja, possuíam fatores de proteção suficientes para fazê-lo. Como ilustra a fala a seguir: Apesar da insegurança maior na expedição final...por não ter os instrutores...o grupo de alunos estava preparado para enfrentar este desafio...porque tínhamos aprendido com os instrutores o necessário para conseguir...e nós conseguimos (Aluno 6). Esta fala também evidencia que a capacitação dada ao longo do curso efetivamente propiciou a aprendizagem de aspectos suficientes para permitir aos alunos a assunção da autonomia em segurança, mesmo na ausência dos instrutores. 3.2. FATORES DE PROTEÇÃO DISPONÍVEIS AOS EDUCANDOS DURANTE A REALIZAÇÃO DO FEAL A partir das entrevistas realizadas com os participantes do FEAL, foram encontrados fatores externos e internos de proteção, ou seja, aspectos disponíveis durante a realização do curso, que amenizaram os efeitos negativos dos fatores de risco atuantes. Os fatores de proteção internos encontrados compreendem os aspectos referentes às características pessoais dos participantes do curso. Enquanto os fatores de proteção externos estão relacionados às medidas de segurança propiciadas pela instituição responsável pelo curso (OBB); à estrutura da educação experiencial pela 72 aventura e do processo de ensino-aprendizado norteado por este método pedagógico; ao contexto de interação grupal do curso; dentre vários outros aspectos, explanados a seguir. TABELA II: RELAÇÃO DOS FATORES DE PROTEÇÃO DOS EDUCANDOS DURANTE A REALIZAÇÃO DO FEAL 3.3.1. Segurança institucional (Outward Bound Brasil) 3.3.1.1. Padrão de gestão de segurança e de prevenção de acidentes dos cursos da OBB 3.3.1.2. O processo de gerenciamento e manejo de riscos no ambiente natural 3.3.1.3. Instrutores devidamente capacitados para atividades outdoor 3.3.1.4. Estabelecimento da Safety net (rede de segurança) 3.3.1.5. Capacitação dos educandos 3.3.1.5.1. Capacitação em técnicas outdoor 3.3.1.5.2. Capacitação para o desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais 3.3.1.6. Respaldo dos instrutores (figuras de apego seguro): da capacitação à atribuição de autonomia aos educandos 3.3.1.6.1. 3.3.2. Debriefing e Feedbacks fornecidos pelos instrutores O Método de Educação Experiencial pela Aventura 3.3.2.1. Capacitação experiencial contextualizada 3.3.2.2. Capacitação gradual através de desafios progressivos 3.3.2.3. Método pedagógico não diretivo e embasado na Maiêutica 3.3.3. Saúde (bem-estar físico) 3.3.4. Condicionamento físico 3.3.5. Autocuidado 3.3.6. Atenção às necessidades fisiológicas 3.3.7. Condição climática relativamente favorável (ausência de chuva) 3.3.8. O estabelecimento de metas coletivas tangíveis 3.3.9. Relação com o ambiente natural 3.3.9.1. Experiência prévia com Atividades Físicas de Aventura na Natureza (AFAN) 3.3.9.2. Apreço pelo ambiente natural 73 3.3.9.3. Conhecimento sobre a dinâmica dos ambientes naturais 3.3.10. Rede de apoio social 3.3.10.1. Respaldo do grupo de iguais 3.3.11. Capacidade de enfrentar as dificuldades com bom humor 3.3.12. Recursos internos de proteção 3.3.12.1. Abertura para vivenciar as experiências 3.3.12.2. Autoconhecimento (consciência acerca das próprias limitações) 3.3.12.3. Capacidade de utilizar os recursos ambientais no enfrentamento das adversidades 3.3.12.4.Conceito pessoal de necessidades básicas 3.3.12.5. Habilidades sociais 3.3.12.6. Capacidade de expressar sentimentos (Catarse) 3.3.12.7. Experiência prévia em se afastar da zona de conforto socioambiental pessoal 3.3.13. Caráter temporário das adversidades do FEAL 3.3.14. Questões de gênero 3.3.15. Vivenciar o desconforto 3.3.16. Ritual Social de Reforço Positivo (O “Ritual da Gravata”) 3.3.17. 3.3.17.1. 3.3.17.2. 3.3.18. Fatores de Proteção durante a atividade solo Recursos Internos de Proteção Viabilidade de acesso às figuras de apego seguro Fatores de proteção durante a Expedição Final 3.3.18.1. 3.3.18.2. 3.3.18.3. 3.3.18.4. 3.3.18.5. Ambientação Disposição das atividades do curso Rotinas de expedição O respaldo do grupo de iguais Capacidade de aprender com os próprios erros 3.3.19. Superação de trauma pessoal 3.3.20. Ausência de situação adversa extrema 3.3.1. SEGURANÇA INSTITUCIONAL Diversos aspectos referentes à organização estrutural do FEAL foram mencionados pelos alunos como fatores protetores ao longo da expedição. Estes aspectos, discutidos a seguir, compõem a categoria segurança institucional, por serem providos pela Outward Bound Brasil (OBB). 74 3.3.1.1.PADRÃO DE GESTÃO DE SEGURANÇA E PREVENÇÃO DE ACIDENTES DOS CURSOS DA OBB Segundo os alunos, o padrão de segurança propiciado Outward Bound Brasil (OBB) é um fator de proteção importante para que a expedição seja realizada em segurança. Afinal, os cursos desenvolvidos pela OBB baseiam-se no padrão internacional de Gestão de Segurança e Prevenção de Acidentes, aprovado pela Outward Bound Internacional, que foram utilizados como referência na elaboração das Normas de Turismo de Aventura publicadas pela ABNT, para que os participantes possam desfrutar da aventura dentro de uma margem mínima de segurança. Ademais, atuação da OBB é norteada por protocolos e normas de segurança e de primeiros socorros e por standards de resposta a ferimentos e enfermidades desenvolvidos pela Wilderness Medical Society para programas em áreas silvestres. E os cursos da OBB são facilitados por instrutores constantemente capacitados e experientes em atividades outdoor, que realizam o gerenciamento e manejo de riscos em ambientes naturais e capacitam os alunos a fazê-lo. Segue abaixo a fala de um aluno acerca do caráter protetor do padrão de segurança utilizado pela OBB em seus cursos: Realizar o FEAL foi muito legal do início ao fim (...) desde a inscrição no curso, temos a sensação de conforto, de que é tudo bem organizado, bem projetado (...) a Outward Bound é referência em atividades experienciais na natureza...eles possuem um padrão internacional de segurança...e isso é levado muito a sério pelos instrutores (...) saber que você está lidando com pessoas sérias e não com algum aventureiro qualquer, dá muita segurança (Aluno 4). Nas últimas três décadas, as atividades de aventura na natureza estão sendo utilizadas em grande escala, para fins empresariais, educacionais, recreativos e terapêuticos. Porém, infelizmente, nem todas as instituições que promovem este tipo de programa, baseiam-se em padrões de segurança reconhecidos pela ABNT (OUTWARD BOUND BRASIL, 2011). A fala deste aluno demonstra que o padrão de gestão de segurança da OBB, norteado pelas normas da ABNT para atividades de aventura na natureza e a excelência profissional dos instrutores no contexto outdoor, atuaram como fatores de proteção por inspirarem confiança ao longo de todo o curso. 75 3.3.1.2. O PROCESSO DE GERENCIAMENTO E MANEJO DE RISCOS NO AMBIENTE NATURAL De acordo com a OBB (OUTWARD BOUND BRASIL, 2011) a existência de perigos e de riscos é inerente aos ambientes naturais. O perigo compreende as adversidades intrínsecas da natureza, sobre as quais o homem não tem controle. Já os riscos, são as relações que o homem estabelece com os perigos da natureza, mais passíveis de serem controladas. Dentre as medidas da Gestão de Segurança e prevenção de acidentes da OBB estão o gerenciamento e o manejo dos riscos em ambientes naturais, que compreendem o reconhecimento e a análise dos perigos inerentes às atividades em ambientes naturais, possibilitando que estratégias de gerenciamento de riscos e de promoção da segurança grupal sejam desenvolvidas. De acordo com os instrutores da OBB, o gerenciamento e manejo de riscos é o que permite que o FEAL seja um curso desafiador e ao mesmo tempo seguro, como podemos conferir na fala abaixo: É possível propor um contexto de experiências desafiadoras e ao mesmo tempo buscar a segurança dos alunos (...) a gente [instrutores] têm o controle do que é seguro e do que é inseguro...não vamos expor o participante a um risco desnecessário...porque o intuito do curso não é traumatizar ninguém (...) a gente [instrutores] avalia os riscos previamente, ainda na fase de escritório, na preparação dos instrutores antes de ir a campo e durante o curso (...) temos consciência dos riscos envolvidos na realização de um curso como este e assumimos o gerenciamento dos riscos (...) é claro que o risco percebido pelo participante, às vezes é muito mais alto do que o risco real. O que não significa que não existem riscos. Existem, mas tem toda uma gestão desses riscos (...) a gente [instrutores] tá preparado pra lidar com riscos e pra minimizar a exposição a riscos maiores e as eventuais consequências de algum incidente ou um acidente (Instrutor 1). De acordo com esta fala, percebemos que os riscos dos programas da OBB são seriamente calculados e os instrutores estão capacitados para gerenciar estes riscos e lidar com eventuais acidentes. Esta fala corrobora os dados trazidos pela OBB (OUTWARD BOUND BRASIL, 2011) acerca do manejo de riscos, que evidenciam que apesar de os alunos possuírem autonomia durante a expedição, os instrutores estão 76 sempre atentos aos riscos, gerenciando-os, de modo que a percepção dos riscos pelos educandos é maior do que estes efetivamente o são. O gerenciamento de riscos não significa impedir que os alunos vivenciem os riscos...significa capacitá-los para que se “arrisquem em segurança”...e estamos [instrutores] sempre atentos à segurança deles [alunos] durante a vivência dos riscos (...) mas entrar em pânico desnecessariamente é uma prática que não existe em campo...não ficamos pensando: ‘ai meu deus, ai meu deus...o que pode acontecer?’...a gente [instrutores] deixa as coisas acontecer e aprende a lidar com o que acontece...não ficamos antecipando problemas...que podem nem vir a acontecer...então a gente [instrutores] deixa eles [alunos] vivenciarem os processos...deixa eles lidarem com as consequências das próprias ações...e quando necessário, temos a opção de fazer uma remoção de alguém...porque sempre temos suporte pra isso (...) mas claro que se for algo sério, a gente [instrutores] intervêm pra evitar qualquer fatalidade (Instrutor 2) De acordo com a fala deste instrutor, percebe-se que o gerenciamento e o manejo dos riscos não implicam em eximir os alunos dos riscos, mas sim em capacitá-los para que sejam capazes de enfrentá-los e manejá-los a seu favor. E, quando os alunos já estão autônomos no gerenciamento e manejo de riscos, os instrutores continuam monitorando a segurança grupal, mas de modo menos interventivo e menos preventivo, para permitir que os alunos vivenciem as experiências e lidem com as consequências de suas próprias decisões e ações, para que possa haver aprendizado. Se por uma eventualidade um educando necessitar de auxílio médico, ele será removido do curso e receberá atenção médica, pois os cursos da OBB possuem o sistema 24 horas de resposta a emergências. E, além disso, se o grupo de educandos ou algum deles for realizar algo que comprometa sua integridade física e psíquica de modo mais severo, os instrutores intervirão, impedindo-o de fazê-lo. Segundo o relato de todos os alunos do FEAL, o processo de gerenciamento e de manejo de riscos da OBB é um importante fator de proteção durante a expedição, como ilustra a fala a seguir: São vários os riscos em uma expedição na natureza. Mas a OBB é bem rígida nesta questão de segurança...eu considero o padrão de segurança deles ideal (...) os riscos acontecem, mas são riscos 77 controlados, na maneira do possível...os instrutores gerenciavam os riscos durante a expedição...e ensinaram os alunos a fazer o mesmo. Esse gerenciamento é essencial pra gente poder passar a expedição com segurança (Aluno 1). 3.3.1.3. INSTRUTORES DEVIDAMENTE CAPACITADOS PARA ATIVIDADES OUTDOOR Os instrutores da OBB devem estar capacitados para gerenciar os riscos do ambiente natural e, ao mesmo tempo, educar e supervisionar a segurança dos alunos e garantir sua própria segurança. Logo, para que os instrutores estejam aptos para assumir uma função tão complexa e dinâmica, a capacitação e o aprimoramento contínuo são imprescindíveis. Pois os cursos em formato de expedição só podem ser conduzidos por instrutores que possuem bastante experiência em áreas naturais, como explicitam as falas de ambos os instrutores a seguir: Quem vem ser instrutor em um curso longo como esse, em área remota da natureza, é quem já tem uma experiência acumulada pra se sentir suficientemente à vontade pra lidar com o que surgir (...) a gente [instrutores] tá bastante confortável com esse tipo de ambiente natural...porque a gente foi capacitado de todas as maneiras pra isso...temos treinamento e reciclagem em primeiro socorros contínuos...e treinamento para lidar com qualquer eventualidade que surgir...estamos sempre nos capacitando pra isso (Instrutor 1) Grande parte dos instrutores da OBB praticam esportes de aventura na natureza...nos quais há risco e a necessidade de gerenciamento de riscos (...) e as experiências em expedições e em cursos ao ar livre nos faz [instrutores] adquirir tranquilidade e maturidade (...) criamos uma “casca” de experiência e vamos aprendendo a lidar com nosso próprio medo e com o medo dos alunos com tranquilidade...isso faz com que a gente passe tranquilidade para os alunos no campo (Instrutor 2). Ambos os instrutores apontam a relevância do instrutor possuir experiência em atividades de aventura em ambientes naturais e de capacitar-se constantemente, para que 78 possa lidar com os perigos imprevisíveis da natureza, com os próprios medos e com o medo dos alunos com excelência e tranquilidade. Todos os alunos do FEAL mencionaram a excelência da capacitação teórica, técnica e prática dos instrutores em conduzir atividades experienciais pedagógicas na natureza e em lidar com os educandos neste contexto, como um fator de proteção de extrema relevância durante a expedição. Como refere um dos alunos no trecho seguinte: A OBB possui curso de formação e capacitação de instrutores com alto padrão de qualidade (...) fiquei realmente admirada com a capacitação, a inteligência, a gama de conhecimentos dos instrutores e com a forma deles de lidar com os alunos...eles estão muito bem preparados pra dar nos dar suporte...físico...técnico...emocional...o que nos deixa [alunos] tranquilos (...) é necessário que o educador ao ar livre esteja seguro de quais são as habilidades necessárias para uma expedição e como atuar para que os alunos possam desenvolvêlas...quais são os recursos para enfrentar as dificuldades e dar segurança na expedição...prestar atenção às pessoas que estão sendo educadas...os instrutores sabiam e faziam tudo isso (Aluno 1). Através desta fala, verifica-se que o padrão de formação e capacitação dos instrutores que atuam nos cursos da OBB, contribui para que os alunos sintam-se seguros durante o FEAL. Afinal, além dos instrutores possuírem capacidade suficiente para suprir as necessidades de segurança dos alunos, supervisionando-os e protegendo sua integridade física e psíquica ao longo da expedição, eles também estão aptos a capacitar os educandos a fazê-lo. 3.3.1.4. ESTABELECIMENTO DA SAFETY NET (REDE DE SEGURANÇA) Uma medida de segurança relevante do processo de gerenciamento de riscos em ambientes naturais, utilizada pela OBB em seus programas de outdoor education, é o desenvolvimento da Safety Net, ou rede de segurança, na qual cada indivíduo da equipe deve zelar pelo autocuidado, o cuidado dos outros indivíduos e o cuidado grupal. Desde o início do curso, os alunos são orientados pelos instrutores a atuar na construção desta 79 “teia” de cuidado mútuo intra-grupo, como demonstra a fala de um dos instrutores a seguir: Logo no início do curso nós [instrutores] frisamos a importância do cuidado mútuo entre os alunos...a importância de se criar e manter um clima de acolhimento e segurança...não só física...mas também social e emocional...pros alunos se sentirem à vontade pra ousar...pra aprender...e não se sentirem constrangidos por enfrentar dificuldades ou não saber sobre algo (Instrutor 1). Esta fala demonstra que a estratégia do estabelecimento da safety net favorece a segurança física, emocional e social e propicia um clima favorável à aprendizagem. Alguns alunos apontaram o desenvolvimento da safety net como um fator de proteção durante a prática de AFAN no FEAL, na medida em que favorece a promoção da segurança e a prevenção da vulnerabilidade dos alunos durante a expedição: Os instrutores sempre colocavam a segurança em primeiro lugar. A própria segurança e a do outro...eu não tinha que cuidar só de mim...mas do grupo todo (...) sempre todo mundo atento a si mesmo e ao outro...o que trazia uma sensação de “ninho”...de cuidado e proteção...proteção física...psicológica...e fazia com que as dificuldades fossem menos...difíceis...essa estratégia de cuidado mútuo entre os membros da equipe é necessária em atividades físicas em ambientes naturais. (Aluno 2) De acordo com esta fala, percebe-se que a safety net, estabelecida entre os membros da equipe do FEAL, propicia proteção física e psíquica aos seus integrantes, possibilitando que as experiências desafiantes do curso sejam vivenciadas em menor vulnerabilidade. 3.3.1.5.CAPACITAÇÃO DOS EDUCANDOS O processo de manejo de riscos em ambientes naturais não compreende evitar atividades inerentemente arriscadas, mas possui como objetivo a capacitação dos 80 participantes, técnica, física e psicologicamente, respeitando sempre os limites das capacidades de cada indivíduo, para que estejam preparados para lidar de modo competente com os riscos e as situações adversas. A capacitação dos alunos realizada pelos instrutores compreende tanto a capacitação em técnicas outdoor, quanto o desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais necessárias à realização da expedição. 3.3.1.5.1. CAPACITAÇÃO EM TÉCNICAS OUTDOOR Na medida em que a finalidade do FEAL é educacional, os instrutores da OBB não atuam apenas monitorando a segurança dos alunos, mas também os capacitam para que eles mesmos sejam capazes de fazê-lo. Ao longo do curso, os instrutores ensinaram aos alunos do FEAL diversas técnicas outdoor: como técnicas de montanhismo, de trekking, de navegação e de orientação, dentre outras, instrumentalizando os alunos para que eles pudessem superar os desafios da expedição em segurança: Durante o curso aprendemos várias técnicas de navegação e orientação outdoor...uso de bússola...leitura da carta de navegação e dos entornos...treino de percepção do ambiente e da geografia do lugar...pra gente conseguir escolher os caminhos (...) uso correto dos equipamentos...toda a logística de uma expedição...técnicas de camping...cozinha outdoor...técnicas de mínimo impacto na natureza...cruze de rio com um monte de equipamento nas costas...o que calçar, o que vestir...como montar um fogareiro...organização da mochila e a maneira correta de usá-la pra sentir menos o peso e prejudicar menos a coluna (...) a questão de afrouxar a bota em alguns momentos e apertar em outros, dependendo da subida ou da descida ...e muitas outras coisas (Aluno 1). De acordo com todos os alunos do FEAL, a capacitação técnica realizada pelos instrutores foi um fator de proteção durante o curso, por permitir que pudessem enfrentar as dificuldades ao longo do curso com estabilidade, confiança e segurança, como conferimos na fala a seguir: 81 Eu nunca fiz montanhismo...nunca acampei...e não sabia nem montar uma barraca ou uma mochila antes do FEAL (...) esse curso tem todo um processo de capacitação pro montanhismo, que nos protege muito (...) as técnicas ensinadas e as dicas, ferramentas e instruções dadas pelos instrutores foram essenciais...me ajudaram a estar bem estável, seguro e a ter confiança pra realizar a expedição e o curso...e principalmente as dificuldades do curso (...) estas técnicas nos permite nos localizar, sair de alguma situação perigosa...realizar tomada de decisão acertadas...e resolver os eventuais problemas (Aluno 2) Segundo este aluno, a capacitação técnica do FEAL favorece o desenvolvimento de habilidades necessárias à realização da expedição em segurança, tais como: a habilidade de orientar-se no ambiente natural; a habilidade de solucionar problemas; a habilidade de proteger-se frente às adversidades e a habilidade de tomar decisões e desenvolver estratégias mais acertadas. Além disso, esta fala demonstra que a capacitação técnica do curso permite que, mesmo aos alunos com pouca experiência em atividades outdoor, possam realizar a expedição em segurança. Além disso, o domínio das técnicas de navegação e orientação forneceram parâmetros norteadores para as decisões grupais durante a expedição, dificultando a ocorrência de conflitos decorrentes de divergência de opiniões e facilitando a resolução destes quando ocorrem. Como ilustra o trecho abaixo: As técnicas ensinadas pelos instrutores ajudam a contornar as dificuldades de navegação e orientação (...) ter um sentido de orientação ajuda a dar um norte ao grupo de qual caminho seguir...facilita que os conflitos de qual caminho seguir sejam resolvidos...ou que eles não aconteçam (...) se você consegue se orientar, manusear as coisas, dominar a técnica, você tem muito mais facilidade e aquilo deixa de ser um problema (...) as técnicas de montanhismo que os instrutores ensinam ajudam a sentir-se mais seguro pra saber o que fazer (Aluno 3) A fala a seguir ilustra a visão de ambos os instrutores acerca da capacitação técnica do FEAL: neste contexto, o ensino das técnicas outdoor e das técnicas das AFAN, não compreende um fim em si, mas oferece meios que permitem aos alunos a vivência dos processos, experiências e aprendizados com segurança e autonomia: 82 Não tem como dizer separadamente sobre o papel da atividade física e de esportes como o montanhismo neste contexto do FEAL. Porque é um todo, uma coisa depende da outra (...) a atividade física nesse contexto...as técnicas de caminhada, trekking e montanhismo ensinadas no FEAL são o meio, não o fim (...) são ferramentas para viabilizar a expedição, os processos, o aprendizado e para dar segurança. (...) a importância de você ensinar as técnicas destes esportes é justamente para que as pessoas possam adquirir autonomia no ambiente natural. Porque aí quando você ensina, o aluno tem escolhas...a escolha e as consequências dessa escolha são dele são imediatas (Instrutor 1). 3.3.1.5.2. CAPACITAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES PESSOAIS E SOCIAIS Apesar da importância da capacitação técnica para a viabilização do curso, o conteúdo didático do FEAL não visa apenas o aprendizado técnico. Durante o programa, os instrutores também desenvolvem atividades e ministram aulas sobre determinados temas, com o objetivo de facilitar o desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais necessárias ao contexto do curso, como ilustra a fala de um aluno, apresentada a seguir: Além da capacitação de técnicas outdoor os instrutores desenvolveram algumas atividades grupais...pra trabalhar alguns conteúdos como liderança...comunicação...tomada de decisão (...) esse aprendizado não técnico...mais comportamental...foi essencial pra mediar as relações em grupo...pra manter uma interação grupal positiva...e pra desenvolver habilidades pessoais e grupais necessárias ao contexto de natureza...que são importantes pra realização da expedição em segurança física e emocional (Aluno 1) Para esta aluna, a capacitação pessoal e social facilitou o estabelecimento de um bom relacionamento grupal e desenvolveu nos alunos habilidade pessoais e sociais, necessárias à manutenção da integridade física e psíquica durante o curso. O instrutor também complementa apontando que: 83 Nós [instrutores] damos aulas sobre comunicação, resolução de conflito, liderança...trabalhamos um pouco sobre a “escuta ativa” e a questão da tomada de decisão...de analisar um processo de tomada de decisão com método e não simplesmente decidir a esmo. Porque são aspectos que eles vão precisar durante toda a expedição...para realizar o curso em segurança...física e psicológica...e para mediar o contato pessoal...o contato social...e o contato com o ambiente natural (Instrutor 2). Por meio desta fala é possível perceber que a capacitação pessoal e social durante o curso possibilita o desenvolvimento de habilidades necessárias para que as relações: do aluno consigo mesmo, do aluno com o grupo e do grupo com o ambiente natural, sejam desafiadoras, memoráveis e ocorram dentro de uma margem de segurança física, psíquica e social. 3.3.1.6. RESPALDO DOS INSTRUTORES (FIGURAS DE APEGO SEGURO) Todos os alunos do FEAL citaram o respaldo técnico e afetivo dos instrutores como um dos fatores de proteção primordiais ao longo do curso. Porém, antes de discorrer acerca da função protetora dos instrutores, faz-se necessário clarificar o papel desempenhado por eles no FEAL. De modo geral, a função dos instrutores durante o FEAL é facilitar os processos de aprendizagem e de interação social; gerenciar os riscos da expedição; zelar pela integridade física e psíquica dos alunos e capacitar o grupo de alunos para que possam vivenciar o curso em segurança. Porém, o papel desempenhado por eles se transforma ao longo do curso. No início do curso, momento em que os alunos estão em período de adaptação ao ambiente natural e ao novo ambiente social, faz-se necessário que a ação dos instrutores seja mais interventiva e direta. Neste período inicial do curso, os alunos são instrumentalizados pelos instrutores a utilizar as técnicas outdoor, necessárias à realização da expedição, tais como: técnicas de montanhismo e trekking; técnicas de orientação e navegação em ambiente natural, através da leitura de entornos e de mapas cartográficos e a utilização correta da bússola; técnicas de acampamento e cozinha outdoor, técnicas de mínimo impacto na natureza, dentre outras. Conforme os alunos 84 aprendem os ensinamentos técnicos, táticos e atitudinais necessários à realização da expedição, os instrutores passam a atuar progressivamente de modo mais indireto e permitir que os alunos se responsabilizem pela expedição. Como ilustra a fala de um dos instrutores abaixo: Nosso papel [instrutores] muda ao longo do curso...no início a gente tem um papel muito mais presente, porque tudo é novo para os alunos. É quando ensinamos a arrumar a mochila, a armar barraca e...todas as técnicas necessárias à realização da expedição em segurança (...) e conforme os alunos vão se habituando a esses processos técnicos, a gente [instrutores] vai se ausentando gradativamente. E depois a gente cobra que o grupo tenham a autonomia de se responsabilizar pela expedição e eleger mediadores e facilitadores dentro do próprio grupo (Instrutor 2) Bolwby (1984) enfatiza a importância de o bebê humano ter a possibilidade de desenvolver um vínculo constante e seguro com uma figura de apego, representada por alguém que possa suprir suas necessidades fisiológicas e afetivas. De acordo com os dados obtidos por esta pesquisa, é possível perceber que a presença e o respaldo dos instrutores estão para os educandos ao longo da expedição, como a figura de apego seguro está para o bebê ao longo do desenvolvimento infantil. Afinal, ao proteger a vulnerabilidade inicial dos educandos durante o período de ambientação ao contexto do curso e ao suprir suas necessidades primordiais de segurança e de orientação, os instrutores se tornaram figuras de apego significativas para o grupo de alunos durante o FEAL. Além disso, os instrutores apresentaram todos os aspectos mencionados pelo autor como essenciais às figuras de apego seguro: eram acessíveis, afetivos, presentes, confiáveis e sensíveis às necessidades dos alunos, como podemos verificar nos relatos dos alunos abaixo: Os instrutores foram muito importantes em todos os momentos...sempre presentes...nos apoiando, nos confortando, dando bastante suporte nas dificuldades...sempre atenciosos às nossas necessidades (...) pra mim, eles eram como pai e mãe...quando eu precisava, conversava com eles...eles nos acolhiam com carinho, davam conforto com palavras de sabedoria e passavam confiança com a experiência e o conhecimento deles (...) a sabedoria, o bom-humor, a energia e a tranquilidade deles ao mediar a relação dos alunos...e em qualquer situação, passava muita confiança (...) admiro muito eles. 85 Eles têm capacidade de promover a integridade física e psicológica dos alunos, tanto que eles conseguiram fazer isso com todo mundo (Aluno 6). Os instrutores...o cuidado deles com os alunos...a sabedoria técnica que eles tinham pra se virar naquele ambiente foram essenciais durante a expedição (...) me senti plenamente confortável e segura com a presença dos instrutores...principalmente no início do curso...quando a gente [alunos] tava menos ambientado e mais inseguros...quando eles estavam junto, eu sentia uma segurança muito grande, porque eles têm tudo muito sobre controle. Eu tinha certeza que se acontecesse algum problema físico ou psicológico...que ninguém do grupo ficaria sem auxílio, porque a gente tava com profissionais que iam conseguir nos orientar e sanar nossas necessidades...a gente podia conversar sobre qualquer coisa que precisasse com eles, pois eles são muito éticos (...) se o grupo estivesse só no curso, sem os instrutores, eu não sentiria tamanha segurança e não teria aproveitado tanto o curso (Aluno 1) A segurança propiciada pelo apego seguro é imprescindível ao desenvolvimento da autoconfiança necessária à exploração do ambiente e ao desenvolvimento da autonomia (BOWLBY, 1984). De modo análogo, o vínculo sólido estabelecido entre alunos durante o curso, atuou, concomitantemente, como porto seguro, possibilitando a manutenção da integridade física e psíquica dos alunos durante o curso e, como estímulo ao desenvolvimento da autoconfiança e da autonomia necessárias à exploração do ambiente natural. Como podemos conferir na fala do aluno a seguir: Os instrutores são essenciais pra dar segurança...a conduta deles é o que suporta a gente em cima da montanha (...) no processo do FEAL é como se a gente [alunos] fosse filhos dos instrutores. Eles nos ensinaram o que precisávamos aprender pra nos virar. E depois que aprendemos e estávamos “prontos pro mundo”...pra fazer e experimentar as coisas com responsabilidade, mesmo longe dos "pais", eles nos deram autonomia e liberdade total para explorar o ambiente e para fazermos as escolhas durante a expedição. Mas isso depois de termos passado por várias experiências, que nos prepararam para enfrentar o que pudesse acontecer (Aluno 3). Esta fala demonstra que, tal qual a criança em desenvolvimento, o fato de os educandos no FEAL terem cuidadores responsáveis e atenciosos, que os capacitaram e os respaldaram e, ao mesmo tempo, lhes permitiram o exercício da liberdade, foi 86 essencial para o desenvolvimento da autonomia, da maturidade e de recursos internos de enfrentamento das adversidades durante o curso. Mesmo quando os alunos já possuíam autonomia suficiente para gerenciar a expedição, os instrutores continuaram atuando como staff, educadores e mediadores de processos, sem intervir diretamente, mas representando um porto-seguro que podia ser acessado caso houvesse alguma necessidade, como explicitado na fala do aluno, apresentada a seguir: Em nenhuma hora me senti em risco físico ou psicológico, porque apesar dos instrutores terem nos dado autonomia rapidinho depois que aprendemos as técnicas necessárias pra gente [alunos] se virar no ambiente natural...eles deixaram de intervir diretamente, mas sempre ficavam na retaguarda...intervindo indiretamente...nos acompanhando e nos deixando viver nossas experiências (...) eles são um suporte gigantesco...um porto-seguro sempre presente...durante todo o curso você sabe que os dois instrutores estão ali do lado e você pode pedir uma informação se precisar...mesmo quando os alunos já conseguiam gerenciar a expedição, ele eram um porto-seguro (Aluno 2) Apesar dos instrutores estarem sempre atentos ao gerenciamento dos eventuais riscos durante a expedição e simbolizarem um apego seguro para os participantes, a postura assumida por ambos é menos diretiva e paternalista possível. Afinal, o papel dos instrutores não compreende apenas proteger a integridade física e psíquica dos alunos, mas também, auxiliá-los a perceber, a mobilizar e a desenvolver os próprios recursos internos de enfrentamento, como ilustra a fala de um dos instrutores: A gente [instrutores] tá muito atento aos alunos, pra intervir e auxiliar nas horas de fragilidade física e emocional. Mas a gente não é paternalista, porque queremos que o aluno entenda que as respostas...e a força maior tá dentro dele e não num abraço amigo, numa “asa de galinha” ou num “colo de mãe” (...) tivemos um exemplo concreto de fragilidade emocional durante o curso. Uma participante, diante de uma situação mais difícil, perdeu o controle e chorou. Ao vê-la chorar, nossa preocupação [instrutores] principal foi se ela estava chorando por algum problema físico, algum machucado ou algo mais grave. Mas não era. Então, deixamos ela viver esse processo de chorar sem interferir (...) quando as pessoas entram na zona do medo, elas normalmente choram e têm reações emocionais exageradas porque querem sensibilizar as pessoas para que sejam acolhidas...e é justamente isso que a gente [instrutores] desconstrói. Sofrer faz parte de viver e se conhecer dói. (...) a gente respeita esse processo, gerenciando à distância e depois a gente conversa com os alunos sobre 87 como está sendo esse processo (...) ao final do curso essa aluna disse que pra ela foi extremamente importante não ter sido acolhida pelos instrutores no momento do seu choro. Porque em sua vida, ela se apoia muito nos outros e isso faz com que ela se acomode e não descubra que tem capacidade para fazer as coisas sozinha...e a nossa atitude, cuidadora, porém não paternalista, auxiliou ela a perceber sua própria força interior (Instrutor 1) A atitude de não acolhimento imediato, fez com que a aluna conseguisse perceber seus próprios recursos de enfrentamento das adversidades, o que talvez não ocorresse se todos à sua volta tivessem se mobilizado para acolhê-la. Porém, é importante ressaltar que apesar de a aluna não ter sido acolhida durante este momento de fragilidade emocional, havia um contexto relativamente acolhedor à sua volta, visto que os riscos são gerenciados no FEAL, de modo que ela teria respaldo se efetivamente estivesse em perigo. Esta fala explicita a confiança desse instrutor no potencial de superação das adversidades de cada indivíduo e nas situações adversas como oportunidades para o desenvolvimento dos recursos e das forças internas. Assim, o fato de não ter havido um acolhimento externo, permitiu que a aluna desabafasse sua fragilidade emocional e acolhesse a si mesma, percebendo-se como um apego seguro interno e reconhecendo sua própria força interior. No que tange à resiliência, sabe-se que a existência de uma rede de apoio social é um fator de proteção externo de grande relevância no enfrentamento de adversidades. Porém, a superproteção pode atuar como fator de risco, prejudicando a percepção do indivíduo superprotegido acerca de seus próprios recursos internos (ASSIS; AVANCI; PESCE; 2006) Logo, fica a questão: qual intensidade de acolhimento afetivo e apoio social favorecem o desenvolvimento da resiliência? Esta é uma questão de difícil resposta. Já que depende da história de vida de cada um e do significado desse apoio dentro do contexto vivenciado. Mas ao menos, podemos afirmar, através dos dados coletados pelo presente estudo, que um acolhimento ótimo para facilitar o desenvolvimento de recursos internos de enfrentamento, não seria a superproteção, nem um abandono. Mas o equilíbrio entre estes extremos, resultando em um cuidado acolhedor, responsável e seguro, que não negligencie as necessidades de quem é acolhido e, ao mesmo tempo, não mascare suas capacidades internas, nem tolha seu potencial de desenvolvimento. 88 3.3.1.6.1. DEBRIEFINGS E FEEDBACKS FORNECIDOS PELOS INSTRUTORES Por debriefing entendem-se reflexões grupais, mediadas pelos instrutores, realizadas aos finais de cada atividade ou de cada dia da expedição do FEAL. Por meio de debriefings, os instrutores colocam questões para o grupo de alunos, no intuito de estimulá-los a avaliar e significar o que foi vivenciado, desconstruir e a ressignificar paradigmas, observar a própria atuação, reações e atitudes perante as atividades propostas e consolidar aprendizados. Além dos momentos de reflexão propiciados pelos debriefings, ao longo da expedição, os instrutores forneciam feedbacks individuais e grupais aos alunos, no intuito de avaliar o desempenho grupal e individual e auxiliá-los a reconhecer seus próprios defeitos, qualidades e potencialidades. Tanto os debriefings realizados, quanto os feedbacks fornecidos pelos instrutores aos alunos, foram mencionados pelos alunos como fatores de proteção durante o curso por facilitarem o autoconhecimento, auxiliando-os a reconhecer as próprias deficiências, potencialidades e recursos internos. E, por conseguinte, o reconhecimento dos próprios recursos foi apontado pelos alunos como pré-requisito para o desenvolvimento da autoconfiança necessária à mobilização e emprego destes. Como evidenciado na fala de um deles: Após cada atividade, cada dia de expedição, os instrutores nos estimulavam a refletir sobre o que foi vivenciado, as dificuldades enfrentadas e a forma como cada um lidou com elas (...) os instrutores nos deram feedbacks grupais e individuais sobre o que precisávamos melhorar, potencialidades e recursos de cada um. Mas eles eram muito éticos...sem expor ninguém (...) os feedbacks e as reflexões grupais após as experiências foram essenciais...nem sempre você consegue enxergar o que tem dentro de você...e pude ter uma visão melhor sobre meus defeitos e qualidades...isso me estimulou muito a tentar desenvolver minhas potencialidades e cuidar dos meus defeitos...me ajudou a me conhecer e a enxergar melhor quais são meus recursos. (...) saber dos nossos recursos é muito importante, porque pra poder usar seus recursos, você precisa saber quais são eles (Aluno 1). Esta fala ratifica um aspecto mencionado por Assis, Avanci e Pesce (2006) como um fator de proteção: a reflexão acerca das adversidades. Isto porque, ao refletir sobre o 89 os aspectos que lhe são adversos e lhe afetam negativamente (fatores de risco) o indivíduo tem a oportunidade de se conhecer melhor e entrar em contato com os mecanismos internos que possui para enfrentá-los (fatores de proteção). 3.3.2. O MÉTODO DA EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL PELA AVENTURA De acordo com Kunreuther (2011), a educação experiencial é um método pedagógico que se baseia na construção do aprendizado a partir da vivência da experiência, seguida de pensamento reflexivo. Segundo o relato dos alunos do FEAL, o presente método pedagógico mostrou-se como um dos fatores de proteção mais relevantes durante a realização do curso. Para melhor entendimento da educação experiencial enquanto fator de proteção, esta será dividida didaticamente em dois subtópicos: capacitação experiencial contextualizada e capacitação gradual para desafios progressivos. 3.3.2.1. CAPACITAÇÃO EXPERIENCIAL CONTEXTUALIZADA O método pedagógico utilizado durante o FEAL insere os conteúdos e os recursos didáticos de modo experiencial e contextualizado. Ao longo do curso, os instrutores somente ensinam aos alunos as técnicas que efetivamente serão necessárias à realização da expedição. Logo, a sequência dos ensinamentos é determinada pela experiência vivenciada e pela demanda de utilização destes, como ressalta um dos instrutores: Nós, instrutores, ministramos conteúdos que os alunos precisam pro sucesso da expedição e eles procuraram aplicá-los ao longo do curso. Nós estamos sempre atentos às necessidades deles pra perceber qual ensinamento será inserido e quando será inserido (...) só são inseridos conteúdos que vão ser imediatamente aplicados. Não tem ensino de técnica pela técnica (...) didaticamente, o ideal é você ensinar o 90 conteúdo o mais próximo possível do momento dos alunos o aplicarem (...) mas o que pode acontecer é, por questões de segurança, você ensinar determinadas técnicas que não precisem ser usadas, porque o fator de risco não aconteceu (Instrutor 1) Como ressalta o instrutor, na educação experiencial pela aventura, o encadeamento dos conteúdos pedagógicos é realizado de modo lógico e coerente com a experiência a ser vivenciada, propiciando a aplicabilidade imediata do aprendizado e instrumentalizando os alunos para vivenciarem a expedição. Os conteúdos só não serão imediatamente aplicados quando o fator de risco não acontecer, pois o gerenciamento de riscos também é realizado de modo preventivo, para proteger a integridade física e psíquica dos alunos e prepará-los para lidar com demandas inesperadas. Esse preceito é muito pertinente, afinal o FEAL é realizado em ambiente natural, um ambiente repleto de variáveis imprevisíveis, sob as quais o ser humano, mesmo o mais capacitado, não possui total controle. Seguem abaixo impressões de dois alunos acerca da contextualização dos ensinamentos durante a expedição: O modelo de aprendizagem experiencial é fundamental pro processo vivido no FEAL (...) os instrutores ensinam gradativamente as técnicas que a gente precisa usar durante a expedição...só é ensinado o que vai ser usado no curso (...) aprendemos todas as técnicas de montanhismo que precisamos utilizar durante a expedição, cada uma aplicada no momento certo. Por isso é experiencial...aprendemos mais com esse método e nos sentimos mais seguros de que somos capazes de aplicar esse aprendizado (Aluno 2) O FEAL é um curso excelente pela forma que é conduzido, é experiencial mesmo: você ir e fazer (...) os conteúdos e as técnicas ensinadas pelos instrutores são muito bem escolhidos...e são aplicados em uma sequência bem lógica...de modo experiencial...os instrutores davam as instruções nos momentos que você ia precisar delas...não tinha uma instrução que era dada sem ser usada na hora (...) isso nos capacita melhor pra enfrentar a expedição...ajuda a absorver e a aplicar os conteúdos...e nos dá a sensação de que a gente realmente aprendeu...de que a gente é capaz (Aluno 6). Estas falas são emblemáticas, pois todos os alunos do FEAL concordam que a ordenação contextualizada dos conteúdos didáticos atua como facilitador da aquisição, interiorização e aplicação do aprendizado; fortalecedor da autoconfiança, autoestima e 91 auto-eficácia, que são conhecidos como fatores de proteção (ASSIS; AVANCI; PESCE; 2006). Além de instrumentalizá-los para transpor as adversidades ao longo do curso em segurança. 3.3.2.2. CAPACITAÇÃO GRADUAL ATRAVÉS DE DESAFIOS PROGRESSIVOS De acordo com Sanches (2009) a transposição gradual de desafios facilita o desenvolvimento da resiliência, pois o êxito no enfrentamento de obstáculos de menor dificuldade favorece o fortalecimento da autoestima e da confiança na própria capacidade de superação, o que contribui para que o indivíduo desenvolva recursos internos que o auxiliarão na transposição de obstáculos mais complexos que ele venha a enfrentar posteriormente. Assim, o método da educação experiencial utilizado no FEAL pode vir a ser uma ferramenta importante no desenvolvimento de recursos internos de enfrentamento de seus educandos, pois lhes possibilita a transposição de desafios progressivos, para os quais são capacitados gradualmente, de modo que tais desafios tornam-se transponíveis. Seguem abaixo relatos de um aluno e de um instrutor que ilustram esta afirmativa: É muito importante a atividade solo e a expedição final serem no final do curso, porque elas são as experiências mais desafiadoras (...) no final do curso os instrutores já tinham nos instrumentalizado, a gente já tinha interiorizado os conteúdos e estava mais preparado do que no começo (...) durante o FEAL vai tendo literalmente um processo de aproximação sucessiva em relação a este desafio final...cada experiência vivida vai te preparando pra outra...são desafios graduais...o desafio menor te capacita pro maior...a cada desafio superado, nossa confiança aumenta e a gente se sente mais forte pra enfrentar o próximo (...) esse aprendizado gradual e experiencial nos deixa confiantes em nossa capacidade (Aluno 2). Os cursos da OBB oferecem experiências desafiadoras, que tiram os alunos da zona de conforto. Mas isso é colocado de uma forma progressiva, pro aluno conseguir ir crescendo aos poucos nestes desafios, pra não entrar em pânico. A ideia do curso não é traumatizar 92 ninguém. Não é um curso de sobrevivência, mas uma oportunidade de aos poucos as pessoas irem aceitando desafios cada vez maiores. E a expedição final é a coroação deste processo (Instrutor 1). Através destes relatos, percebe-se a importância de os obstáculos iniciais do FEAL terem sido apresentados de forma proporcional à capacidade de enfrentamento dos alunos. Afinal, isso os auxiliou a desenvolver autoconfiança e auto-eficácia suficientes para enfrentarem os desafios mais complexos do curso. Ou seja, ao longo do curso, a superação gradual de desafios progressivos favoreceu a mobilização e o desenvolvimento dos recursos internos de enfrentamento dos alunos. Ademais, sabe-se que quando os indivíduos são expostos a fatores de risco maiores que sua capacidade de enfrentamento, eles se tornam mais vulneráveis (ASSIS; AVANCI; PESCE; 2006). E, estar vulnerável em um ambiente inóspito da natureza, como o do FEAL, colocaria a segurança dos alunos em risco e prejudicaria o aprendizado e os potenciais benefícios desta experiência. 3.3.2.3. MÉTODO PEDAGÓGICO NÃO DIRETIVO E EMBASADO NA MAIÊUTICA Para que a educação atue como um fator de proteção na vida dos indivíduos, o método pedagógico adotado deve transpor a simples reprodução de conhecimentos prontos, abordar conteúdos e questões contextualizadas e proporcionar aos educandos experiências que demandem reflexão e pensamento críticos, atitude, resolução de problemas, assunção de responsabilidades e autonomia, para que possam aprender e desenvolver confiança em suas próprias capacidades e recursos internos. Segue abaixo a fala de um dos instrutores acerca da mediação promotora, porém não diretiva, dos processos de aprendizado e desenvolvimento dos alunos, realizada pelos instrutores durante o FEAL: 93 A gente [instrutores] observa, apoia, facilita e media os processos...e em alguns momentos a gente propõe algumas reflexões ou faz perguntas pra um ou outro aluno, ou pro coletivo... pra que eles reflitam sobre alguma coisa (...) mas as escolhas durante a expedição são deles...os alunos é que tomam as decisões ou tentam achar soluções para os problemas que surgirem durante o curso...então o curso é deles (...) e esta é uma forma de atuar que realmente gera desenvolvimento pessoal e cognitivo dos alunos (Instrutor 2). Como frisa Rink (2004), os métodos pedagógicos baseados na maiêutica são mais efetivos em facilitar o desenvolvimento das potencialidades e dos recursos internos dos educandos. Essa questão pode ser ratificada pela fala do aluno a seguir: Os instrutores não nos lideravam diretamente, nunca impunham nada...nenhum conhecimento...não mandavam a gente fazer as coisas nem faziam as coisas pela gente (...) eles proporcionavam situações pra gente vivenciar os processos...e nos e instrumentalizaram pra gente poder enxergar algumas coisas e lidar com elas...pra gente se organizar e fazer nosso próprio curso... eles deixavam acontecer e sempre colocavam perguntas, questionamentos, até “cair a ficha”...pra nós mesmos chegarmos às conclusões (...) a forma que os instrutores agiram é a forma adequada de um educador agir...porque fez com que a gente [alunos] descobrisse que a gente era mais capaz do que imaginava (Aluno 6). Os educadores, norteados pelo método da educação experiencial pela aventura, assumem uma postura pedagógica de caráter não diretivo, baseada na maiêutica (RINK, 2004). A fala deste aluno evidencia que a postura assumida pelos instrutores, atuou como um fator de proteção ao longo do curso. Afinal, ao confiar na capacidade dos alunos de gerenciar a expedição com autonomia; mediar o processo de construção da aprendizagem, respeitando os alunos como atores deste processo; favorecer a aquisição de aprendizados da zona proximal e potencial de aprendizagem, bem como o pensamento reflexivo e crítico, os instrutores, tal qual Sócrates norteado pela Maiêutica, criaram condições para que os educandos desenvolvessem suas potencialidades e recursos internos. Porém é importante ressaltar que a postura menos diretiva dos instrutores só é passível de ser assumida após os alunos já terem sido capacitados tecnicamente no início do curso e estarem aptos a gerenciar a expedição em segurança. 94 3.3.3. SAÚDE (BEM-ESTAR FÍSICO) A saúde, em termos de bem estar físico, foi um dos critérios mencionados pelos alunos como pré-requisito para que a participação do FEAL seja viável e positiva: Pra participar desse curso você não precisa ter um grande condicionamento físico. Mas precisa estar bem de saúde (...) se você estiver bem fisicamente...se tiver bem estar físico...acho que você trabalha tudo psicologicamente...o bem-estar físico dá um suporte pros desafios físicos e psicológicos da expedição (Aluno 1) De acordo com este aluno, o condicionamento físico não é imprescindível para a realização do FEAL, de modo que a ausência deste não configura um fator de risco durante o curso. Já a saúde e o bem estar físico aparecem como critérios para a realização do curso e como fatores de proteção para eventuais intercorrências físicas e emocionais. 3.3.4. CONDICIONAMENTO FÍSICO Apesar da ausência de condicionamento físico não ter sido avaliada na fala anterior como um fator de risco para a realização do FEAL, o relato de alguns alunos apontam que a presença deste aparece como um importante fator de proteção perante as eventuais adversidades da expedição. A presença do condicionamento físico neste contexto propicia ao aluno aspectos essenciais ao desempenho da atividade física em ambientes naturais, que atuam amenizando o desgaste fisiológico e protegendo-os de acidentes físicos. Dentre estes aspectos estão: prontidão motora e física; força; condicionamento cardiovascular; coordenação; equilíbrio; resistência e flexibilidade (CARVALHO, 2002). E, além disso, de acordo com estes alunos, o condicionamento físico fornece a autoconfiança necessária ao enfrentamento dos desafios impostos pela realização do curso; protegendo nãos apenas a integridade física dos educandos, mas também a psíquica, como podemos conferir na fala abaixo: 95 Eu tenho treinamento e condicionamento físico e isso me ajudou a ter autoconfiança e a me virar muito bem durante o curso, tanto em relação aos aspectos físicos...quanto aos emocionais (...) o que me dava força pra enfrentar os momentos mais difíceis da expedição era saber que eu estava bem fisicamente...que eu teria suporte físico pra poder suportar alguma coisa psicológica que acontecesse (...) meu condicionamento físico me dá segurança, pois eu sei como me virar se eu tiver algum problema ali (Aluno 1) Esta fala é bastante representativa, na medida em que não apenas um aluno do FEAL avaliou o condicionamento físico como um fator facilitador da superação dos desafios e de prevenção e proteção a eventuais fragilidades físicas e psicológicas. Logo, pode-se dizer que no contexto desafiador da educação experiencial em ambientes naturais, “o corpo são predispõe a mente sã”. 3.3.5. AUTOCUIDADO O autocuidado foi mencionado como um fator de proteção primordial para que os alunos pudessem suportar as dificuldades e a intensidade do curso sem desistir de realizá-lo, como ilustra a fala de um aluno: Você tem que se cuidar no FEAL, senão você não dá conta...senão você desiste. Porque o curso é muito pesado, muito forte...se você não se cuidar, nem o corpo, nem a mente agüentam (Aluno 6). Esta fala demonstra a percepção do aluno acerca da importância do autocuidado ao longo do curso, devido à sua função protetora e mantenedora da saúde física e psicológica. 96 3.3.6. ATENÇÃO ÀS NECESSIDADES FISIOLÓGICAS A partir do relato dos alunos, um fator de proteção importante para promover a integridade física e psíquica do grupo durante a prática de trekking, mesmo sob condições climáticas extremas, foi a atenção às necessidades fisiológicas, como conferimos na fala de um aluno: Durante a caminhada sob calor intenso, a atenção às necessidades fisiológicas ajudou a enfrentar momentos difíceis (...) a gente precisava se hidratar muito, parar pra dar uma descansada e abaixar a temperatura do corpo, senão o bicho pegava...tanto física...como psicologicamente (Aluno 4). 3.3.7. CONDIÇOES CLIMÁTICAS RELATIVAMENTE FAVORÁVEL (AUSÊNCIA DE CHUVA) Os instrutores avaliaram as condições climáticas durante o curso como um fator de proteção, pois, apesar de ter havido momentos de extremo calor, não houve chuva ou tempestades elétricas, aspectos que atuam como fatores de risco, pois predispõem o desgaste físico e emocional dos alunos e potencializam a ocorrência de adversidades mais severas, como podemos constatar na fala de um dos instrutores: Pra o grupo desse FEAL as adversidades não foram tão grandes. A gente teve um fator bem positivo, no aspecto até de segurança, que foi o aspecto do tempo (...) apesar de ter feito um calor extremo durante alguns dias, não teve chuva. Os processos teriam sido talvez mais intensos se houvesse chuva. Porque o desconforto da chuva mexe com as pessoas...em todos os sentidos. Então o desconforto físico não foi tão grande, exceto pelo calor que eles passaram ao longo do curso (Instrutor 1). Apesar deste instrutor não avaliar a presença do calor extremo durante o curso como um fator de risco à segurança e à integridade dos educandos, a maioria deles relata ter sofrido bastante com a temperatura elevada em alguns momentos do FEAL. 97 3.3.8. O ESTABELECIMENTO DE METAS COLETIVAS TANGÍVEIS Segundo Sanches (2009), em pesquisa acerca do processo de resiliência na prática esportiva, o comportamento direcionado a metas e a luta constante para atingi-las foram apontados como fatores de proteção. Neste mesmo sentido, vários alunos mencionaram o estabelecimento de metas coletivas durante a expedição como um fator de proteção, pois além de facilitar a coesão grupal, norteava as ações do grupo de alunos no gerenciamento da expedição. A fala de um dos educandos a seguir, demonstra a importância da adoção de metas coletivas ao longo da expedição e enfatiza a relevância delas serem realistas e tangíveis, para que pudessem efetivamente ser alcançadas. Como ilustra a fala do aluno a seguir: Todo dia tínhamos um objetivo coletivo, um ponto a chegar (...) ter um objetivo comum unia o grupo...dava segurança...e também ajudava a ter um norte...pra gente saber o que deveria ser feito (...) eventualmente tínhamos um ou outro fracasso em relação a metas...mas de modo geral sempre alcançávamos (...) porque eles eram possíveis de ser alcançados...no curso são criadas condições pro grupo ter desafios, com metas que são compatíveis com o que éramos capazes de fazer (...) como na maioria das vezes dávamos conta do que era solicitado, durante grande parte do curso o clima era de brincadeira...de prazer...de piada...de diversão e de risada (...) e alcançar as metas nos motivava a vencer mais desafios (Aluno 4) Através desta fala, percebe-se que as metas coletivas estabelecidas durante o FEAL, por serem compatíveis com a capacidade de realização do grupo de educandos e, portanto, realistas e tangíveis, são passíveis de ser atingidas. Por conseguinte, a probabilidade de sucesso no alcance das metas propostas atua como um fator de proteção, pois favorece alguns aspectos que facilitam o enfrentamento construtivo das adversidades durante a expedição, dentre eles: a ludicidade na vivência dos desafios; o estabelecimento da coesão e do bom relacionamento grupal e o fortalecimento da autoestima e da confiança dos educandos em sua capacidade de superação. E, além disto, a cada meta atingida, os alunos tornam-se mais motivados, engajados e instrumentalizados a superar novos desafios. 98 3.3.9. RELAÇÃO COM O AMBIENTE NATURAL A análise dos relatos dos alunos evidencia que o histórico de atividades físicas na natureza (AFAN), bem como o tipo de relação estabelecida pelos educandos com o meio ambiente natural, influenciam sua adaptação ao contexto do FEAL. Neste sentido, tanto a experiência em AFAN quanto o apreço pela natureza e o conhecimento acerca da dinâmica dos ambientes naturais, foram mencionados pelos alunos como fatores facilitadores da ambientação ao contexto do curso e do enfrentamento das adversidades ao longo da expedição. 3.3.9.1. EXPERIÊNCIA PRÉVIA COM ATIVIDADES FÍSICAS DE AVENTURA NA NATUREZA (AFAN) A maioria dos alunos desta edição do FEAL relata possuir experiências prévias com AFAN, tanto no âmbito profissional, quanto na prática de esportes e de atividades físicas de tempo livre. Estas experiências foram apontadas como fator de proteção à prática de exercício físico, às demandas de orientação e navegação em contexto outdoor; à segurança dos alunos no relacionamento com o ambiente natural, à ambientação à natureza e, de modo geral, ao enfrentamento de adversidades no contexto do FEAL. Ademais, de acordo com os alunos, a experiência prévia com AFAN favorece o desenvolvimento da autoconfiança, a capacidade de empregar os recursos do ambiente natural a favor da manutenção da estabilidade física e emocional durante o curso, além de propiciar ao educando habilidades e estabilidade físicas, motoras, cognitivas e emocionais, como ilustra a fala de um dos alunos: Eu já pratico bastante atividade ao ar livre...vivo na roça e dou aula em área rural (...) esse contexto natural do FEAL foi extremamente prazeroso pra mim...foi um acréscimo, porque eu me sinto forte...fisicamente e emocionalmente neste ambiente (...) o exercício físico do FEAL foi tranquilo pra mim, porque eu tenho experiências anteriores com travessias e com escalada e estou preparada pra esse tipo de ação (...) a travessia do curso teve uma durabilidade maior do 99 que as que eu costumava fazer, mas não foi nada que chegasse ao meu extremo...porque minha experiência com atividades na natureza me deixou mais estável no curso (Aluno 1). As atividades físicas ao ar livre demandam o emprego de amplo repertório motor, de força, resistência e flexibilidade (SCHURMAN; SCHURMAN, 1966). Deste modo, os alunos praticantes de AFAN possuem maior prontidão física e motora, fazendo com que a adaptação à demanda física do FEAL seja realizada de modo mais natural. Como ressalta a fala deste aluno, quem possui experiência em AFAN, está mais apto para enfrentar não apenas os desafios físicos impostos pelo contexto do FEAL, mas também os desafios emocionais. Na fala a seguir, um dos alunos ressalta que a sua experiência de escoteiro e em brincadeiras infantis ao ar livre durante sua infância, atuaram como fatores de proteção na atividade solo, considerada a atividade mais difícil do FEAL pela maioria dos alunos: Quando me vi sozinho na atividade solo, comecei a estudar o ambiente...ver o que eu ia fazer, onde ia dormir, que recurso da natureza usar pra me abrigar (...) eu fui escoteiro, então sei fazer vários nós, sei como e quando usar os recursos da natureza ao meu favor (...) essa minha vivência pregressa de aprendizagem e de interação com a natureza, faz com que eu saiba lidar com os limites dela...que eu saiba onde posso e onde não posso me enfiar (...) mesmo estando em um ambiente selvagem, minha sensação de controle e de previsibilidade sobre os eventos desse ambiente é muito grande (...) então eu vivenciei a atividade solo como uma grande brincadeira, uma experiência muito tranquila e divertida...até lembrei muito das brincadeiras de infância...e a minha bagagem prévia na relação com a natureza que ajudou a dar um conforto danado (Aluno 4). Deste modo, a experiência deste aluno com AFAN fez com que ele vivenciasse uma atividade potencialmente desafiadora com maior controle ambiental, físico e emocional, maturidade, conforto, ludicidade, prazer e autoconfiança, permitindo o melhor aproveitamento desta experiência tão rica em termos de desenvolvimento pessoal, que é a atividade solo. Porém, apesar da experiência prévia com AFAN atuar como fator de proteção durante o FEAL, a falta de experiência com este tipo de atividade não foi caracterizada 100 pelos alunos como um fator de risco. Afinal, a capacitação teórica e técnica realizada pelos instrutores ao longo do curso é, segundo os alunos, suficiente para que os educandos possam desenvolver os aprendizados e habilidades necessárias a uma adaptação segura ao contexto do FEAL, como ilustra a fala abaixo: Ter experiência anterior com atividades de aventuras na natureza e dominar técnicas ajuda bastante durante o curso. Mas pra quem não teve uma vivência anterior na natureza, como eu tive, as informações e técnicas que os instrutores passam possibilitam fazer o curso em segurança e com um grau de tranquilidade (...) tinha colegas no curso que não tinham essa experiência...um deles nunca tinha acampado...e eles conseguiram desenvolver habilidades durante o curso para superar desafios e dificuldades (...) acho até mais interessante desenvolver isso na prática...porque você consegue perceber mais os seus limites e se conhecer melhor (Aluno 1). 3.3.9.2. O APREÇO PELO AMBIENTE NATURAL De acordo com a Psicologia Ambiental, o ser humano influencia o meio no qual está inserido e é por ele modificado. Desse modo, os ambientes são capazes de despertar nos indivíduos afetos, atitudes e comportamentos, tanto positivos, quanto negativos (HEIMSTRA; MCFARLING,1978). Logo, ao estar em um ambiente no qual aprecia, o indivíduo possui maior probabilidade de apresentar pensamentos, sentimentos e atitudes construtivos e adaptados. Os relatos dos alunos evidenciam que, aqueles que apreciam o contato com a natureza, tiveram mais facilidade para se adaptar positivamente ao contexto do FEAL, como podemos conferir nas falas dos alunos a seguir: Eu gosto mesmo desse contato com o ambiente natural, sou muito apegada à natureza. A natureza é um ambiente onde eu me sinto muito bem...muito forte...muito à vontade...muito tranquila (...) isso ajudou com que o curso fosse extremamente prazeroso pra mim. O tempo todo eu estava positiva, vendo o lado bom das coisas (Aluno 1). 101 Para a aluna, o hábito de estar na natureza atuou como fator de proteção durante o curso, favorecendo que o contexto e as experiências do FEAL fossem vivenciadas positivamente e, contribuindo para o desenvolvimento de força, bem-estar, tranquilidade, prazer e otimismo. O apreço pelas paisagens naturais também foi mencionado pelos alunos como um estímulo para prosseguir com a expedição mesmo nos momentos de dificuldade, como nos mostra a próxima fala: Eu adoro estar na natureza, no mato. Às vezes eu tava cansada no curso, mas via que um pouco mais pra frente tinha um lugar de visual lindo. Então a vista da natureza era uma recompensa nos momentos difíceis, uma coisa que motivava a seguir (...) o contato com a natureza é pra mim a melhor coisa que tem, é um presente, isso não tem preço. E só isso já vale a pena (Aluno 3). 3.3.9.3. CONHECIMENTO SOBRE A DINÂMICA DOS AMBIENTES NATURAIS Além das técnicas outdoor ensinadas pelos instrutores ao longo do curso, os educandos também aprendem sobre a dinâmica dos ambientes naturais e sobre formas viáveis de lidar com as variáveis deste contexto com segurança e harmonia. Os saberes acerca do ambiente natural foram apontados como fatores de proteção por alguns alunos, pois lhes possibilitaram atuar na natureza com autonomia, sem, no entanto, negligenciar os limites naturais ou colocar-se em perigo desnecessariamente, o que nos mostra a fala de um dos alunos a seguir: O aprendizado sobre a dinâmica da natureza, dos animais...a informação e a preparação pra lidar com os fenômenos da natureza, com condições climáticas...a forma correta de agir em um ambiente natural...são recursos que te capacitam e te deixam seguro e tranquilo pra lidar com qualquer coisa...porque te deixa ciente de que independente do que acontecer, você vai tá bem (...) a gente aprende com os instrutores a manejar o ambiente de maneira a criar condições de melhor segurança...o que possibilita criar condições pra poder ficar tranquilo (...) se cair uma tempestade ou aparecer um animal peçonhento, tá tudo bem, porque aí você já sabe o que está em jogo, o 102 risco que corre, que não corre, o que fazer em relação a isso (...) você aprende a conviver de maneira harmônica com a natureza...e sem danificá-la (Aluno 4). Nesta fala, percebe-se que a capacitação realizada pelos instrutores, acerca da dinâmica dos ambientes naturais, além de atuar como um fator de proteção durante a expedição, instrumentalizando os educandos a lidar com a natureza em segurança, também alcançou o objetivo de educação ambiental e difusão de princípios de conduta ética e sustentável em áreas naturais, proposto pelos cursos de educação pela aventura da OBB (KUNREUTHER, 2011). 3.3.10. REDE DE APOIO SOCIAL O apoio social é uma base fundamental, segura, e protetora em todas as fases do ciclo vital (ASSIS; AVANCI; PESCE, 2006). De acordo com o relato de todos os alunos do FEAL, a rede de apoio social, composta, tanto pelo respaldo dos instrutores, quanto pelo respaldo do grupo de iguais, composto pelos educandos, foi um fator de proteção significativo durante o curso, por propiciar acolhimento, cuidado mútuo, proteção à integridade física e psíquica e promoção da segurança integral dos alunos, como podemos conferir na fala abaixo: Tanto os alunos quanto os instrutores, sempre davam uma mão amiga e faziam com que eu me sentisse protegido, seguro e confortável (...) não teve nenhuma intercorrência, ninguém se machucou no curso todo...nem surtou emocionalmente...porque todo mundo ali cuidava um do outro (Aluno 2) Na medida em que a relevância do respaldo dos instrutores já foi discutida anteriormente, cabe agora discutir o apoio social propiciado pelo grupo de iguais. 103 3.3.10.1.RESPALDO DO GRUPO DE IGUAIS Como teoriza Bowlby (1984) o comportamento de apego em relação a figuras significativas não está presente apenas na infância, mas em todas as fases do ciclo vital e é de extrema importância ao desenvolvimento humano. Ao longo do ciclo vital, novas figuras de apego serão eleitas, a exemplo do vínculo estabelecido entre o grupo de iguais durante a adolescência. Neste mesmo sentido, Sanches (2009) nos traz que, no universo esportivo, o grupo de iguais compreende os colegas praticantes de uma mesma modalidade. Segundo a autora, o estabelecimento de vínculo com o grupo de iguais no universo esportivo é facilitado pela identificação entre eles devido à similaridade de estilo de vida e de interesses. Este vínculo estabelecido entre o grupo de iguais atua como um fator de proteção, pois: amplia a rede de apoio social de seus integrantes; permite que façam parte de um grupo que os compreenda, os aceite e os acolha; oferece modelos positivos; possibilita o suporte afetivo e o compartilhamento de emoções positivas e negativas e, facilita o enfrentamento de adversidades, tanto no âmbito esportivo, quanto nos diversos contextos de suas vidas. Do mesmo modo, no âmbito do FEAL o suporte social propiciado pelo grupo de iguais, também atuou como fator de proteção aos educandos. Dentre os aspectos do grupo de alunos que favoreceram a segurança física, psíquica e social durante o curso estão: os diferentes perfis dos alunos, na medida em que cada qual possuía habilidades diversas e complementares, necessárias ao sucesso da expedição; a cooperação grupal para o alcance de objetivos comuns, que favorecia a união e coesão grupal; o afeto e a sintonia desenvolvidos entre os alunos; a empatia por vivenciarem a mesma situação, o que facilitava atitudes de solidariedade, acolhimento, respeito à alteridade e de cuidado mútuo; o bom relacionamento grupal e baixo grau de conflito intra-grupo; a maturidade do grupo devido à idade dos participantes; a confiança estabelecida entre os alunos; a identificação com modelos positivos de comportamento, de atitudes e de superação e questões de gênero (homens e mulheres desenvolvendo as mesmas atividades durante a expedição e o receio de alunos do sexo masculino de apresentarem desempenho físico inferior às alunas do sexo feminino, o que os motivava a continuar quando desejavam desistir da expedição). Alguns destes aspectos serão ilustrados nas seguintes falas dos alunos: 104 Alguns alunos tinham muito conhecimento, habilidades e técnicas pra atividade ao ar livre. E alguns não tinham tanto domínio da técnica ou a capacidade física tão desenvolvida, mas tinham um companheirismo, uma habilidade mais psicológica de acolhimento. Esses dois aspectos do grupo se complementavam e eram importantes pra dar segurança durante a expedição (Aluno 1). Com esta fala podemos perceber a importância da diversidade de perfis dos alunos, no que tange à complementariedade de habilidades técnicas e humanas, ambas protetoras da equipe durante a expedição. Assim, mesmo os integrantes que possuíam pouca capacitação técnica também eram essenciais à equipe, na medida em que atuassem como suporte afetivo e vice-versa. O suporte afetivo propiciado pelo grupo de iguais também foi apontado pelos alunos como fator de proteção ao fator de risco representado pela ausência da zona de conforto social e da rede de apoio cotidiana dos participantes, mais precisamente a família, como podemos conferir na fala a seguir, de um dos alunos: Nosso grupo era muito sintonizado, afetivo, a gente dava abraço de bom dia, de boa noite...isso faz um bem danado, dá forças, agrega (...) pra mim a falta da família foi uma dificuldade grande durante o curso...e o afeto do grupo ajudou a amenizar isso...nosso grupo parecia uma família mesmo (...) todo mundo tava vivendo a mesma situação e sempre havia alguém pronto a apoiar bastante o outro...essa troca fluiu...quando alguém tava triste, sempre chegava alguém pra oferecer um ombro amigo, pra conversar, chorar, desabafar (...) fazíamos tudo junto...éramos realmente uma equipe...tínhamos muita intimidade e parecia que nos conhecíamos há muito tempo (...) teve pouco abalos psicológicos entre a gente e nas poucas vezes que aconteceu, o próprio grupo resolveu. Os instrutores mal precisaram interferir na dinâmica do grupo de alunos...até por ser um grupo adulto...maduro (Aluno 2). Outro aspecto mencionado nesta fala compreende a empatia sentida pelos integrantes do grupo de iguais por estarem submetidos ao mesmo contexto desafiador, o que, por conseguinte, favorecia o acolhimento e o cuidado mútuos. Além disso, apesar do convívio e da intimidade grupal terem sido intensos entre os alunos durante o curso, para este aluno, o fato da grande maioria dos participantes ser adulto, foi um fator de proteção à ocorrência de conflitos intra-grupo. 105 No relato dos alunos, o pertencimento ao grupo de iguais também foi apontado como um fator de proteção que motivava os alunos a não desistirem do curso nos momentos adversos, como conferimos na fala do aluno abaixo: O grupo me motivava a continuar nas horas difíceis em que eu tinha vontade de desistir, tanto pelo cuidado mútuo, quanto por ver outros alunos cansados, lutando para conseguir vencer os desafios sem desistir (...) eu e todos os alunos procurávamos as pessoas do grupo quando precisávamos de apoio (...) é muito importante ter um grupo unido, em que as pessoas se ajudam nas horas de cansaço, te veem, te estimulam, se preocupam com você, se você comeu, se bebeu água, se passou protetor solar...no nosso grupo um sempre tava cuidando do outro...a gente se sente integrado de ver que as pessoas se preocupam com a gente, que estão ali do seu lado (Aluno 6). Esta fala vai ao encontro dos resultados encontrados por Sanches (2009), que evidenciam que os vínculos estabelecidos entre o grupo de iguais durante a prática esportiva, favorecem a mobilização e o desenvolvimento dos fatores de proteção de seus integrantes, facilitando o enfrentamento das adversidades. Na fala a seguir, um dos instrutores aponta a sociabilidade, o convívio harmonioso, a coesão e o bom humor existentes entre o grupo de alunos, como aspectos protetores, que amenizaram a ocorrência de adversidades durante o curso: Pra esta equipe o FEAL não foi tão desafiador. Porque era um grupo muito coeso, muito equipe, muito bem humorado, sociável...isso tudo ajudou bastante no convívio (Instrutor 1). A rede de apoio estabelecida entre o grupo de iguais também favoreceu a realização da atividade física durante o curso e amenizou o desgaste fisiológico propiciado pelas intensidades destas, como ilustra a fala a seguir de um dos alunos: No FEAL é muita dificuldade física, cansaço, dor de tanto andar...mas tá todo mundo na mesma situação, com dor, cansado, com fome, sono...e isso causa uma cooperação maior, de um querer ajudar o outro (...) estar inserido no grupo me motivava a continuar nas horas que eu queria parar, porque se eu parasse todo mundo teria que parar. E eu também não fiquei desesperada a ponto de atrapalhar o andamento do grupo (...) apesar da atividade física ser pesada, muito 106 desgastante, não é impossível de ser realizada...porque o grupo acaba equilibrando tudo isso...se as pessoas do grupo quando perceberem que você não agüenta, não consegue e estiverem disponíveis, elas te ajudam a carregar o peso dos equipamentos (Aluno 3). Esta fala demonstra que o fato de estar inserido em um grupo submetido às mesmas adversidades, auxilia a elevar o limiar de resistência e de persistência individual frente às dificuldades, pois o grupo fornece modelos positivos de superação e faz com que a realização das metas coletivas seja mais relevante que os interesses individuais. Neste sentido, como ilustra o relato desta aluna, um grupo harmônico está mais apto a enfrentar as adversidades intrínsecas às atividades de aventura na natureza do que um só indivíduo. Desta forma, o fato dos integrantes do grupo compartilharem as adversidades, favorece o senso de coletividade, a empatia, a coesão, a solidariedade e o cuidado mútuo entre eles. As AFAN não são práticas tipicamente coletivas em vão. Afinal, elas objetivam, concomitantemente, propiciar experiências desafiadoras e seguras aos seus praticantes. Segundo Rink (2004), um dos fatores de proteção à sobrevivência do homo sapiens em ambientes naturais nos primórdios da humanidade, era o fato dos indivíduos se agruparem, para viabilizar a promoção do cuidado e da proteção mútuos. Os dados encontrados sobre o estabelecimento da rede de apoio social no FEAL reforçam o que teoriza este autor: o grupo no FEAL é essencial para a manutenção da integridade do educandos e para a mobilização e o desenvolvimento de recursos individuais e grupais de enfrentamento das adversidades. 3.3.11. CAPACIDADE DE ENFRENTAR AS DIFICULDADES COM BOM HUMOR A capacidade de manter o bom humor frente aos desafios enfrentados durante o FEAL foi um fatores de proteção mencionados pelos alunos, como ilustra a fala a seguir: O grupo de alunos foi algo positivo, que trouxe proteção e segurança durante o curso. Nosso grupo era muito sólido, coeso, forte, 107 respeitador, bem-humorado...mesmo nas dificuldades, o grupo cantava, brincava...isso trouxe união e ajudou a superar as dificuldades (Aluno 2). Esta fala reforça o que Assis, Avanci e Pesci (2006) ressaltam acerca da relação entre bom humor e resiliência: a capacidade de utilizar a criatividade e o humor no enfrentamento das adversidades é um importante fator de proteção, na medida em que facilita a sublimação do sofrimento de forma reparadora. Além disso, as autoras enfatizam que o bom humor, na medida em que é visto como algo positivo costuma trazer a simpatia e o apoio dos pares, favorecendo a ampliação e o fortalecimento da rede de apoio social. Esta afirmação é ilustrada por este aluno, ao dizer que o bom humor grupal utilizado na superação das dificuldades promovia a união do grupo. 3.3.12. RECURSOS INTERNOS DE PROTEÇÃO Além dos aspectos contextuais do FEAL, externos aos educandos, que atuaram como fatores de proteção ao longo do curso, a análise dos dados obtidos nesta pesquisa também evidenciaram a função protetora de alguns aspectos internos dos alunos. Dentre os fatores internos de proteção mencionados pelos alunos estão: a abertura para vivenciar as experiências; autoconhecimento; capacidade de utilizar os recursos ambientais no enfrentamento das adversidades; conceito pessoal de necessidades básicas; habilidades sociais; capacidade de expressar sentimentos (catarse) e experiência prévia em deixar a zona de conforto socioambiental. 3.3.12.1. ABERTURA PARA VIVENCIAR AS EXPERIÊNCIAS A capacidade de estar disponível às vivências, às experiências e ao relacionamento interpessoal durante o FEAL, foi citada pelos alunos como imprescindível ao aproveitamento do curso, à aprendizagem, ao desenvolvimento 108 pessoal e à proteção ao desgaste causado pelo curso e às dificuldades encontradas ao longo deste. E, do mesmo modo, a ausência desta capacidade foi apontada como potencializadora das dificuldades impostas pelo curso, como enfatiza um dos alunos: É preciso estar aberto pra receber as experiências do FEAL...pra poder aprender e evoluir. Se você se fechar, vai se desgastar mais, o curso vai ser bem mais difícil e você não vai conseguir experienciar de verdade os processos do curso (Aluno 1). A abertura para vivenciar as experiências também foi mencionada como um fator de proteção por outros autores que investigam o desenvolvimento da resiliência (ASSIS; AVANCI; PESCE; 2006). 3.3.12.2. AUTOCONHECIMENTO (CONSCIÊNCIA ACERCA DAS PÓPRIAS LIMITAÇÕES) O autoconhecimento foi mencionado pelos participantes desta pesquisa como um fator de proteção ao contexto adverso do FEAL. Afinal, ter consciência acerca dos próprios limites, deficiências e potencialidades, possibilita ao educando a opção de respeitar suas próprias limitações, evitar realizar algo que lhe seja prejudicial, que esteja além de sua capacidade, ou que lhe coloque em risco desnecessariamente e de submeterse aos desafios para os quais possui recursos de enfrentamento suficientes, como podemos conferir na fala de um dos alunos: É essencial ter um mínimo de autoconhecimento e saber dos próprios limites pra participar desse curso e estar seguro durante ele. Porque o ambiente e as condições são muitas vezes adversas...e o tempo inteiro nossos limites são testados no FEAL (...) tem que saber a hora de pedir pra parar, tomar uma água, se hidratar, de comer e de assumir que precisa descansar (...) tem que se conhecer pra saber onde você pode se enfiar...o que você aguenta...pra não assumir algo que você não dá conta e que possa te prejudicar (Aluno 6). 109 O autoconhecimento também foi apontado como fator de proteção em outras pesquisas acerca do processo de resiliência (TROMBETA, 2000 apud SANCHES) 3.3.12.3. CAPACIDADE DE UTILIZAR OS RECURSOS AMBIENTAIS NO ENFRENTAMENTO DAS ADVERSIDADES Como podemos conferir na fala de um dos alunos abaixo, a capacidade de reconhecer os recursos disponíveis nos ambientes naturais e a habilidade de utilizá-los a favor do enfrentamento das adversidades intrínsecas ao contexto do FEAL, também foi apontada como um fator de proteção: A principal coisa pra você ficar tranquilo no meio do mato é ter habilidade de perceber e de saber utilizar os recursos que você tem disponíveis para enfrentar as situações e adversidades que existem em ambientes naturais (Aluno 4). 3.3.12.4. CONCEITO PESSOAL DE NECESSIDADES BÁSICAS O FEAL é realizado na Serra do Cipó - MG, onde os alunos passam duas semanas em travessia, em condições de pouco conforto. Neste sentido, de acordo com os instrutores, os alunos que possuem um nível de exigência de conforto menor e para os quais o suprimento das necessidades básicas compreende o conforto fisiológico, possuem maior probabilidade de se adaptar ao contexto do FEAL e de enfrentar as adversidades encontradas no curso de modo positivo, como nos mostra a fala a seguir: Alguns alunos já vêm com o exercício de querer desapegar de algumas coisas. Até para adequar sua renda àquilo que consome. Pra esses alunos, o desconforto não é um risco. Porque se você tiver como se abrigar, se você tiver comida, se você tiver como fazer um fogo, se você tá cumprindo suas necessidades básicas, pronto, você está 110 protegido. Mas esse conceito de básico varia muito entre os indivíduos e depende do momento de vida de cada um também...e as nossas necessidades básicas já extrapolaram pra muito menos básicas do que a gente pode imaginar. Então muitos alunos vêm com este conceito errado do que é básico. E aí pega bastante essa questão da vida simples (Instrutor 2). Porém, segundo o relato deste instrutor, os alunos que possuem um conceito de necessidades básicas que extrapola o conforto fisiológico, possuem maior probabilidade de vivenciar o desconforto do contexto do FEAL como um risco. Esse é um exemplo ilustrativo de que os indivíduos vivenciam e avaliam a realidade de modo diverso, de modo que o que pode significar um risco para um indivíduo pode não o ser para outro (ASSIS; AVANCI; PESCI, 2006). 3.3.12.5. HABILIDADES SOCIAIS A análise dos dados obtidos evidencia a importância do fator de proteção compreendido pela rede de apoio social estabelecida entre os participantes do FEAL. Porém, o relato dos participantes mostra que o bom relacionamento grupal é prérequisito para que a rede de apoio social seja efetivamente protetora. Logo, na medida em que o contexto social no FEAL é bastante peculiar, devido à intensidade do contato grupal em meio a um contexto repleto de desafios ambientais, algumas habilidades sociais foram apontadas como imprescindíveis à mediação do convívio grupal e à promoção de um relacionamento grupal harmônico, como nos mostra a fala de um dos alunos abaixo: O FEAL é realizado num ambiente adverso, com pessoas que você não conhece e que você vai ter que conviver intensamente o curso inteiro...então você vai ter que aceitar essas pessoas e as diferenças entre elas...se você não aceitar, talvez a convivência seja mais difícil (...) e o relacionamento tem que ser bom...porque o grupo tem que ser unido neste contexto pra garantir a segurança de todos (...) na sociedade as pessoas causam atrito por não se identificarem ou por haver discordância de ponto de vista. Mas no FEAL quando há diferença de ponto de vista, você tem que relevar isso, saber conviver com as diferenças e procurar dar valor no que vocês têm em comum. 111 E ali tem muita coisa em comum, porque todo mundo tá realizando a mesma atividade (Aluno 6). Além da capacidade de lidar com a alteridade e de relevar as divergências e valorizar as semelhanças entre os indivíduos, mencionadas pelo presente aluno, outras habilidades sociais foram citadas como facilitadoras do estabelecimento de um vínculo positivo e protetor entre os participantes do FEAL, sendo elas: habilidades de comunicação como saber ouvir e se expressar; espírito de coletividade; paciência e respeito aos outros e às diferenças; saber se posicionar; capacidade de compartilhar e dividir uma eventual angústia e, de modo geral, saber conviver em grupo. Estas habilidades sociais, que atuaram no FEAL como fatores de proteção, também são apontadas por teóricos da resiliência como fatores protetores do desenvolvimento humano em diversos contextos (TAVARES, 2002; DE ANTONI; BARONE E KOLLER, 2006). 3.3.12.6. CAPACIDADE DE EXPRESSAR SENTIMENTOS (CATARSE) A capacidade de expressar os sentimentos, positivos e negativos, despertados pelas experiências vivenciadas ao longo do FEAL, foi apontada tanto pelos alunos quanto pelos instrutores como um aspecto catártico, protetor da integridade emocional e facilitador da mobilização de recursos internos frente ao enfrentamento das dificuldades durante o curso. Segue abaixo um trecho ilustrativo da fala do instrutor: Há momentos no curso, diante de uma situação mais difícil, que os alunos podem chorar. Nesse curso aconteceu de alguns alunos chorarem em momentos de dificuldade, mas isso faz parte....faz parte do ser e do viver, né? E o choro é um desabafo...é expressão de sentimentos...que acaba dando até mais força (Instrutor 1). 112 3.3.12.7. EXPERIÊNCIA PRÉVIA EM SE AFASTAR DA ZONA DE CONFORTO SOCIOAMBIENTAL PESSOAL Os alunos que possuem experiência anterior à realização do curso com novos contextos sociais e ambientais, demonstraram mais facilidade em deixar a zona de conforto habitual e adaptar-se ao novo contexto socioambiental do FEAL, sem que isto lhes fosse nocivo. Na medida em que o FEAL exige que os educandos abandonem temporariamente as próprias zonas de conforto, este pode compreender um importante fator de proteção para a realização do curso, como explicita a fala de um aluno: Eu gosto muito de ter contato grupal com pessoas que não conheço (...) já morei fora, viajei um tempo sozinho e sempre conhecia novas pessoas...então eu não tenho medo ou receio quanto a isso e eu estava bem aberto ao relacionamento grupal no curso (Aluno 6). 3.3.13. CARÁTER TEMPORÁRIO DAS ADVERSIDADES DO FEAL A consciência acerca da finitude das adversidades do FEAL foi um dos aspectos mencionado pelos participantes como algo que auxiliava a suportar o desgaste físico e emocional ao longo do curso. Afinal, as adversidades às quais estavam expostos acabariam ao findar do curso, como assinala um dos alunos entrevistados: Apesar de dar vontade de ficar deitado na barraca e descansar, pra parar as dores no corpo de tanto andar, pra relaxar...não dá pra parar com a expedição. Então você tem que suportar as dores físicas...os desconfortos psicológicos (...) o que faz a gente conseguir suportar é saber que aquilo não vai durar um mês...ou pra sempre...vão ser alguns dias difíceis e ‘vamo que vamo’ (Aluno 6). 113 3.3.14. QUESTÕES DE GÊNERO Apesar de atualmente estar havendo um movimento mais global de retorno à natureza, fazendo com que a participação de mulheres no contexto das AFAN se torne mais significativa, Humberston (2007) evidencia que a ideia de fragilidade e inferioridade física feminina ainda é extremamente arraigada no imaginário social. Nele, as AFAN, são frequentemente designadas como território hegemônico masculino, na medida em que a natureza representa um lugar rústico, habitat do “homem selvagem”, do “herói”, do “guerreiro” e cenário no qual o homem, ao longo de sua evolução, testa sua virilidade contra os perigos dos elementos naturais por meio da exploração e da aventura no ambiente natural. Deste modo, enquanto no imaginário social o sexo masculino está comumente associado à aventura, à potência, ao desafio e à força, o sexo feminino está associado à aventura comedida, à potência controlada, à força mensurada e ao desafio ameno. Porém, para a autora, as AFAN também podem oferecer oportunidades sociais significativas de desconstrução de ideologias sexistas e reducionistas de gênero, na medida em que impõem obstáculos naturais aos seus praticantes, que devem ser transpostos, independente de seu sexo. Assim, ao superar os mesmos desafios, as diferenças entre mulheres e homens tornam-se tênues e, as semelhanças, mais marcadas. Os relatos de alguns alunos vão ao encontro desta constatação de Humberston (2007), como nos traz a fala de um dos participantes do sexo masculino: No FEAL todos são iguais...homens e mulheres fazendo as mesmas coisas, carregando os mesmos pesos, a diversidade é gostosa, diferente. É gostoso você não ver só a menina como aquela que não vai conseguir fazer, mas ela te mostrar que é possível ser feito, da mesma maneira com que o homem faz (Aluno 2). A despeito desta fala evidenciar a negação da fragilidade e da inferioridade femininas através do compartilhamento equitativo de atividades e da vivência de desafios conjuntos na prática de AFAN durante o FEAL, também houve relatos que reforçaram a desigualdade entre gêneros, como nos mostra a fala de outro aluno do sexo masculino a seguir: 114 Tinha hora que eu não tava agüentando aquelas subidas muito grandes...dava vontade até de desistir. Mas eu não falava nada porque tinha menina que tava bem, com mochila tão pesada quanto eu (risos). As meninas são pequenas e subiram e não estavam reclamando e eu vou reclamar? (risos) Não dá, fica feio, né? Então, acho que isso também estimulava a prosseguir (Aluno 6). Curiosamente, esta fala demonstra que a vergonha sentida por um dos alunos do sexo masculino de demonstrar menos resistência e um desempenho físico inferior às alunas, favoreceu sua persistência, motivando-o a prosseguir com a expedição, mesmo quando sentia vontade de desistir dela. Logo, para este aluno, a persistência, resistência e bom desempenho físico das alunas atuaram como um modelo positivo a ser seguido. Ou seja: a prática de AFAN tanto pode ser um contexto de reforço e propagação sexista, quanto de desconstrução de conceitos reducionistas de gênero. 3.3.15. VIVENCIAR O DESCONFORTO De acordo com um dos instrutores, o conforto propiciado pelo FEAL se restringe ao suprimento das necessidades fisiológicas básicas, imprescindível à segurança dos alunos durante o curso. Neste sentido, o contexto rústico do FEAL pode ser vivenciado por alguns alunos como um risco, devido à ausência de sua zona habitual de conforto. Porém, a instrutora ressalta que os educandos que estiverem disponíveis a vivenciar este relativo desconforto durante o curso, descobrirão que não estão em risco, visto que suas necessidades de sobrevivência estão sendo providas, como nos traz a fala a seguir: No FEAL os alunos aprendem técnicas que precisam pra poder passar pelos desafios com segurança...não com conforto (risos). Quer dizer, com conforto térmico e alimentar sim (...) mas se os alunos vivenciarem o desconforto, eles descobrirão que o desconforto é a ausência de recursos que você está acostumado, mas não é risco. Se a ausência de desconforto fossem vitais pra sobrevivência da espécie humana, a gente não teria gente habitando o sertão do país, a gente não teria povos embrenhados no meio da mata, a gente não teria fugitivos de guerra e sobreviventes. Mas em relação a essas coisas, pra uns alunos ‘caem fichas’, pra outros não...e para quem não compreende isso, o curso com certeza será mais difícil (Instrutor 2). 115 Ao citar exemplos de seres humanos que se embrenham em ambientes naturais sem, no entanto, estarem em risco, a instrutora enfatiza a capacidade do homem de superar adversidades intrínsecas a este contexto. Porém, ela aponta que nem todos os educandos são capazes de compreender que o desconforto não denota risco e, por conseguinte, a ausência desta percepção pode atuar como fator de risco potencial para a realização do curso. 3.3.16. RITUAL SOCIAL DE REFORÇO POSITIVO (“RITUAL DA GRAVATA”) Durante o FEAL, havia um ritual grupal de reforço positivo aos educandos que se destacassem positivamente ou que superassem alguma adversidade externa ou interna ao longo da expedição diária. Este ritual era representado por um símbolo de superação: uma gravata. Segundo um dos educandos, este ritual se iniciou quando a gravata foi dada pela instrutora a um integrante que superou um trauma pessoal em relação à água durante a expedição. Posteriormente, o detentor da gravata elegia alguém para recebêla, de modo que isso virou um ritual diário. Segue no trecho abaixo, o relato de uma aluna sobre a relevância deste ritual: Uma aluna deu a gravata para um cara que deu muita força pra ela quando ela tava mal...eu dei pra um cara que estava muito doente e ficava falando em desistir do FEAL...mas não desistiu (...) eu recebi a gravata de um dos meninos do grupo e ele disse ao grupo que ia dar a gravata pra uma pessoa que tinha se esforçado muito na noite anterior, que estava confusa e atrapalhada, mas todo tempo esteve firme pra contribuir com o grupo (...) quando recebi a gravata eu percebi que eu podia me permitir ser frágil. Percebi que as pessoas estavam me percebendo lá e que eu não precisava aguentar tudo sozinha...que as dificuldades que o grupo enfrentava, eram do grupo e não só minhas (Aluno 3). A fala desta aluna demonstra o efeito motivador e protetor deste ritual. Afinal, ao receber este reforço social positivo pelas atitudes e recursos pessoais que se mostraram 116 adaptativos no enfrentamento das dificuldades do curso, o educando possui a oportunidade de desenvolver sua autoconfiança e autoestima e de reconhecer, legitimar e desenvolver seus recursos internos de proteção. Esta fala também demonstra que, o fato de receber a gravata, fez com que esta aluna se sentisse mais acolhida e integrada ao grupo e reconhecesse a rede de apoio social e afetivo com o qual podia contar neste contexto. Em síntese, ao longo do FEAL, o ritual da gravata atuou como um fator lúdico de proteção diário, que beneficiou os educandos em diversos aspectos. 3.3.17. FATORES DE PROTEÇÃO DURANTE A ATIVIDADE SOLO Segundo os alunos, a atividade solo foi o momento mais difícil do FEAL, pois foi o primeiro e único momento no qual cada aluno teve a oportunidade de estar só em meio à natureza, contando apenas com seu próprio respaldo e companhia. Além disso, cada aluno foi instruído pelos instrutores a escrever uma carta sobre si e para si mesmo durante a atividade solo. O conteúdo da carta deveria ser resultado de uma reflexão realizada por cada aluno acerca de si e de sua vida. Logo, o contexto da atividade solo propicia aos educandos um momento de solidão, silêncio, introspecção e de encontro consigo mesmos, em meio à natureza. Este encontro pode atuar tanto como um fator de proteção, quanto como um fator de risco, dependendo das idiossincrasias e da história de vida de cada aluno, como ilustra o poema a seguir: “Algum dia, em qualquer parte, indefectivelmente, você há de se encontrar consigo. E só de você depende que esta seja sua hora mais amarga, ou o seu melhor momento” (PABLO NERUDA). 3.3.17.1. RECURSOS INTERNOS DE PROTEÇÃO Apesar das potenciais adversidades possibilitadas pelo contexto da atividade solo, os educandos mencionaram diversos fatores de proteção internos, que ao serem 117 mobilizados, amenizaram as dificuldades desta atividade e favoreceram a manutenção da segurança física e psíquica dos educandos durante ela. Dentre os fatores de proteção mencionados, estão: controle emocional; serenidade; tranquilidade; capacidade de reconhecer e utilizar os recursos do ambiente natural; capacidade de expressar os próprios sentimentos; emprego de técnicas de treinamento mental como o uso de auto-falas positivas e motivadoras acerca da própria capacidade de superação, visualização e mentalização positiva e o controle da ansiedade; técnicas de relaxamento, de controle de respiração e contemplação meditativa da paisagem; foco em superação de desafio; otimismo; autoconfiança; persistência; desejo de auto superação; comportamento orientado para a realização de metas; vergonha de desistir da expedição; desejo de cumprir todas as atividades propostas pelo curso; diálogo interno com as figuras de apego seguro (instrutores) internalizadas; medo de decepcionar os instrutores; experiência em AFAN e hábito de estar só em ambientes naturais; o apreço pela própria companhia e pela solitude; o hábito de vivenciar momentos de introspeção e de reflexão sobre si mesmo; orgulho e vergonha de desistir de um desafio que foi assumido deliberadamente; determinação; desejo de terminar a expedição e vontade de sentir a sensação de tarefa cumprida. Segue abaixo a fala de dois alunos que contêm alguns dos fatores de proteção mencionados: Eu gosto de caminhar sozinha (...) eu passo muito tempo sozinha, porque gosto de passar tempo comigo mesma...eu fico bem só...talvez se eu não fosse assim, a atividade solo teria sido bem difícil...surtante até (Aluno 1). Tive um momento de desespero no começo da atividade solo. Mas depois passou, porque eu tinha recursos para enfrentar isso (...) o que me ajudou a enfrentar esse momento foi uma coisa que tava dentro de mim...tipo uma conversa interna: ‘eu sei que posso, eu consigo, eu sou forte, então vamos lá, agora eu vou ficar tranquila’ (...) também foi importante ter chorado, dado uns chiliques, desabafado...ter pensado em desistir e falar pra mim mesma: ‘ai instrutores, venham aqui’...como se fossem meus pais (...), eu pensei que se os instrutores deram essa oportunidade pra gente e estão seguros de que cada um aqui consegue fazer isso, então eu posso fazer (...) aí achei um lugar tranquilo na beira do rio, fiquei olhando o céu e tentei me tranquilizar controlando minha respiração...e aí pronto, passou (...) serenidade e tranquilidade são características importantes para não entrar em pânico e enfrentar as situações difíceis no FEAL e na atividade solo (Aluno 3). 118 Alguns dos mecanismos de proteção mencionados pelos alunos no enfrentamento das dificuldades da atividade solo, também foram encontrados por Sanches (2009) em pesquisa sobre a resiliência e a prática esportiva, sendo eles: as técnicas de treinamento mental como o uso de auto-falas, visualização, mentalização e controle da ansiedade; a capacidade de expressão; o controle emocional; a autoconfiança; o comportamento orientado para a realização de metas; o foco em superação de desafio e o otimismo. 3.3.17.2.VIABILIDADE DE ACESSO AOS INSTRUTORES (FIGURAS DE APEGO SEGURO) De acordo com os alunos, a viabilidade de acesso aos instrutores, caso necessário, compreendeu um importante fator de proteção durante a atividade solo. Afinal, durante esta atividade, todos os alunos possuíam um apito para que pudessem chamar os instrutores no caso de qualquer emergência e também havia uma luz indicativa da direção onde os instrutores estavam acampados. Segue abaixo a fala de um dos alunos ilustrando a importância deste fator de proteção: Até durante a atividade solo, mesmo sem os instrutores, eles eram um porto-seguro. Não dava pra ver a luz de onde eles estavam acampados, mas era só andar na direção da bússola que eles estavam uma hora você via a luz. Então a referência tava lá, presente o tempo todo conosco. Você sabia não tava sozinho...que tinha recursos em casos de emergência (Aluno 4). Bowlby (1984) ressalta que durante o desenvolvimento infantil, após o vínculo com a figura de apego ter sido estabelecido de forma segura e tenaz, a criança adquire mais confiança para explorar o ambiente. E, conforme a criança vai adquirindo autonomia, a ausência da figura de apego passa a ser mais tolerável. Porém, mesmo quando a criança já adquiriu independência, a proximidade da figura de apego, ainda que ela esteja distante do alcance da visão, fornece à criança segurança e conforto, atuando como um fator de proteção. Do mesmo modo, a fala deste aluno evidencia que a consciência da possibilidade de acesso aos instrutores, atuava como um fator de 119 proteção durante a atividade solo, pois representava uma referência e uma base de segurança. Tal qual um barco que desbrava as adversidades do mar necessita de um porto para poder ancorar, a existência de um porto-seguro, ainda que simbólico, mostrou-se essencial para que os educandos enfrentassem as dificuldades durante a atividade solo e demais atividades do FEAL. 3.3.18. FATORES DE PROTEÇÃO DURANTE A EXPEDIÇÃO FINAL Na medida em que a expedição final significa a saída dos instrutores de cena para a consequente responsabilização total do grupo de alunos pela expedição, esta atividade poderia ser considerada um fator de risco potencial. Porém, os dados obtidos através do relato dos alunos e instrutores evidenciam que a presença de alguns fatores de proteção tornou a expedição final menos adversa. Seguem abaixo a apresentação e discussão destes fatores. 3.3.18.1. AMBIENTAÇÃO Um fator que atuou como protetor da segurança dos alunos durante a expedição final foi o fato de esta atividade ter sido realizada apenas no último dia da expedição, permitindo que eles já estivessem familiarizados com o ambiente natural e a navegação e orientação em meio à natureza, como podemos observar na fala de um dos alunos: Na expedição final, o grupo de alunos seguiu sem os instrutores. Mas como foi realizada no último dia do curso, a gente já conhecia o relevo do terreno, já estava familiarizado com o mapa, com a bússola. A gente já tinha tido essa experiência anterior, então não teve nenhuma insegurança...todo mundo tava tranqüilo. (...) se a expedição final tivesse sido no primeiro dia do FEAL, seria inviável seguir sem os instrutores. A gente [alunos] ficaria completamente inseguro e 120 provavelmente se perderia no meio do mato, porque a gente ainda não tinha andado nada e não conhecia o local, a vegetação, o ambiente hostil que é aqui...e no começo ninguém saberia ler uma carta de navegação, nem usar a bússola direito (Aluno 6). Nesta fala, o aluno enfatiza a importância da adaptação prévia ao contexto ambiental do FEAL antes da exposição dos alunos a desafios maiores e supõe que a falta de ambientação ao ambiente natural e às técnicas outdoor poderia atuar como um fator de risco à segurança dos alunos durante a expedição final. 3.3.18.2.DISPOSIÇÃO DAS ATIVIDADES DO CURSO O fato de a expedição final ter sido realizada no último dia da expedição, associado à capacitação e atribuição de autonomia gradativa que os instrutores fornecem ao grupo de alunos ao longo do curso, fez com que os alunos já estivessem preparados para enfrentar um desafio maior, como o era a expedição final. Além disso, o fato da expedição solo ter sido realizada um dia após a atividade solo é essencial, pois, na visão dos instrutores, a atividade solo é considerada um preparo para a expedição final, como podemos conferir na fala adiante: É essencial que a atividade solo anteceda a expedição final. Porque o solo é fundamental pra ter essa quebra do coletivo e a pessoa realmente entrar numa reflexão, numa introspecção e descobrir do que ela é capaz, pra depois, na expedição final, aplicar seus potenciais no grupo (Instrutor 2). Nesta fala da instrutora, o solo aparece como um momento em que os recursos internos dos alunos seriam mais facilmente acessados por eles, devido ao “convite” à interiorização que esta atividade propõe. 121 3.3.18.3. ROTINAS DE EXPEDIÇÃO Ao longo do curso, a equipe do FEAL estabeleceu uma rotina diária de expedição, com o objetivo de proteger a equipe, organizar as atividades desenvolvidas e favorecer o engajamento grupal na realização destas. Estas rotinas foram definidas tanto pelos instrutores, incluindo procedimentos importantes à segurança em ambientes naturais, quanto pelo grupo de alunos, incluindo aspectos que julgavam necessários e coerentes ao contexto. No relato de alguns alunos, os rituais e rotina diários, na medida em que representavam variáveis estáveis em um contexto de tamanha imprevisibilidade ambiental, eram elementos que proporcionavam conforto e segurança ao longo do curso. Ademais, a manutenção da rotina de expedição foi mencionada como um fator de proteção à ausência do respaldo dos instrutores ao grupo de alunos, durante a expedição final, pois forneceu um parâmetro norteador de procedimentos, trazendo a eles autonomia, conforto e segurança. Como ressalta a fala de um dos alunos: Durante a expedição, tínhamos uma espécie de rotina... rituais de início de dia, de fim de dia...que dão uma sensação de conforto, de segurança...a gente sabe que é uma coisa estável, que se mantém. (...) algumas coisas destas rotinas os instrutores que ensinaram ao longo da expedição e outras o grupo foi criando (...) eram rituais que se mantiveram do inicio até o fim do curso. Na expedição final, a gente também manteve estas rotinas, mesmo sem a presença dos instrutores... saber que tem uma rotina, deu muita segurança pro grupo...‘agora é horário disso, agora é horário daquilo’ (Aluno 4). 3.3.18.4. O RESPALDO DO GRUPO DE IGUAIS Como já mencionado anteriormente, o grupo de iguais foi um fator de proteção de extrema relevância ao longo do curso. Porém, durante a expedição final, as figuras de apoio seguro dos educandos, os instrutores, estavam ausentes, de modo que o respaldo técnico, afetivo e social do grupo de iguais tornou-se ainda mais importante, como verificamos na fala da aluna a seguir: 122 Na expedição final, que os instrutores não estavam, o que ajudou a dar segurança e a superar os problemas, foram os colegas, que dominavam as técnicas de navegação e sabiam se orientar...e também a ajuda mútua... o bom humor...a sintonia...a coesão e a confiança ente o grupo de alunos...que ajudaram a ir além (Aluno 1). Assim, é possível perceber que, mesmo na ausência das figuras de apego seguro, representadas pelos instrutores, o respaldo do grupo de iguais foi suficiente para proteger a integridade dos educandos e facilitar o enfrentamento adaptativo das adversidades durante a expedição final. De acordo com a fala desta aluna, na ausência das figuras de apego seguro, os alunos que possuíam o maior domínio das técnicas outdoor e os aspectos positivos intra-grupo passaram a representar o porto-seguro dos educandos. 3.3.18.5. CAPACIDADE DE APRENDER COM OS PRÓPRIOS ERROS De acordo com um dos instrutores, durante a expedição final os alunos já estavam autoconfiantes em sua capacidade de finalizar a travessia, mesmo sem a presença dos instrutores, pois já haviam errado bastante ao longo do gerenciamento da expedição diária e aprendido com os próprios erros, de modo que, ao chegar o momento de vivenciarem a expedição final, já tinham aprendido a lidar com os próprios erros de forma mais lúdica e já possuíam relativa experiência em aventura outdoor, como ilustra a fala a seguir: Este grupo se saiu bem na expedição final. E eu não tinha dúvida que seria assim. Porque eles estavam bem confiantes, até porque já tinham errado e repetido o erro inúmeras vezes. Eles já estavam até satirizando os próprios erros e a repetição destes erros. E isso é muito rico. Quando você vê que mesmo errando, você aprende (Instrutor 2). 123 3.3.19. SUPERAÇÃO DE TRAUMA PESSOAL De acordo com os instrutores, um dos alunos do curso, que não participou da coleta de dados da presente pesquisa, possuía um trauma pessoal em relação à água, que, ao longo da expedição pôde ser superado, como conferimos na fala a seguir: Um participante tinha trauma em relação à água. Diante um pouco maior de água, ele entrava quase que em pânico (...) e no curso, teve bastante atividade com água...cachoeira, cruze de rio...e ele conseguiu superar esse trauma durante o FEAL...o que o ajudou a superar esse medo foi uma combinação de suportes: primeiro o suporte da instrutora e depois de alguns outros participantes. Esse participante foi um exemplo de superação....foi pra quem talvez o desafio físico e emocional tenha sido maior. E ele ficou emocionado por ter se superado (Instrutor 1). Por meio desta fala, é possível perceber a realização de atividades com água, ou seja, a exposição ao estímulo aversivo, respaldada pela rede de apoio social, auxiliou este educando a superar seu trauma. Logo, a rede de apoio social e afetivo estabelecida durante o FEAL facilita a mobilização e o desenvolvimento de fatores de proteção internos, favorecendo não apenas a superação das adversidades intrínsecas ao contexto do curso, mas também, a elaboração de traumas e a transposição de dificuldades em outros âmbitos de suas vidas. 3.3.20. AUSÊNCIA DE SITUAÇÃO ADVERSA EXTREMA Apesar de todas as dificuldades relatadas pelos alunos na realização do FEAL, a maioria deles não se sentiu em risco em nenhum momento: O curso foi muito desafiador...me senti frágil e tive dificuldades em muitos momentos...mas eu não cheguei ao meu extremo... nem me senti em risco em nenhum momento...até porque tinha coisas ao longo 124 do curso que compensavam estas dificuldades...que ajudavam a enfrentar as dificuldades (Aluno 2). Esta fala demonstra que, apesar de os alunos terem encontrado dificuldade na vivência de alguns aspectos do curso, eles não se sentiram em risco, porque havia mais fatores de proteção ao longo do curso, do que fatores de risco. O que vai ao encontro do que a literatura diz acerca Sanches (2009) acerca da resiliência, quanto mais fatores de risco, maior a vulnerabilidade e, quanto mais fatores de proteção, menor a vulnerabilidade. O fato de não ter havido nenhuma situação de risco extrema ao longo do FEAL foi apontado como um fator de proteção para o bom relacionamento grupal, como evidencia um dos alunos: O relacionamento interpessoal foi bom. Acho até que éramos meio contidos em relação a conflitos...acho que não teve conflito grupal sério por não termos enfrentado nenhuma situação extrema...e ter algum conflito sério no contexto do curso, poderia prejudicar todo mundo...porque a gente precisa do apoio do grupo (Aluno 3). Nesta fala, fica implícito que uma condição mais adversa do que a que os educandos vivenciaram no curso, poderia atuar como um fator de risco para a existência de conflitos grupais mais severos, o que por sua vez, poderia prejudicar a qualidade de um fator de proteção imprescindível à segurança integral dos educandos, a rede de apoio social estabelecida durante o curso. 3.4. APRENDIZADOS PROPICIADOS PELA REALIZAÇÃO DO FEAL De acordo com o Luckner & Nadler (1992, apud KUNREUTHER, 2011), o método de educação experiencial somente facilitará a aquisição de aprendizado quando o ciclo de aprendizagem experiencial for completo, ou seja, quando os quatro estágios 125 do ciclo, dentre eles o da experiência, da reflexão, da generalização e da aplicação, são atingidos e contemplados. É unânime nos relatos dos alunos que a realização do FEAL efetivamente possibilita a aquisição de diversos aprendizados e facilita o desenvolvimento pessoal. Porém, para que isso ocorra, todos os alunos mencionaram como pré-requisito a abertura para vivenciar as experiências propiciadas pelo curso. Ou seja, durante o primeiro estágio do ciclo de aprendizagem experiencial, o da experiência, não basta que os alunos realizem o curso, eles devem estar disponíveis para envolver-se com as atividades propostas ao longo deste, como podemos conferir na fala de um dos alunos: O FEAL realmente traz mudanças e aprendizados...mas desde que você esteja disponível, aberto para o novo e aberto pra essa experiência...porque o treinamento experiencial é um processo, então se você não se abrir pra viver o curso de verdade, não vai ser experimental e não vai te tocar de uma maneira profunda, a ponto de mudar um comportamento...o aprendizado e a reflexão são bem mais profundos se a pessoa estiver disponível a isso (...) se você vier preso ou fechado às experiências, não vai haver mudança (Aluno 2). No contexto de aprendizagem propiciado pelo FEAL, os educandos possuem autonomia para decidir sobre as condutas a serem tomadas durante a expedição. Na medida em que o fazem na natureza, as consequências das decisões tomadas são imediatas e os afetam diretamente e, por conseguinte, o fato de sentir “na pele” as reações de suas próprias ações, facilita que os educandos aprendam com os próprios erros e acertos. Como evidenciado na fala de um instrutor: No FEAL, depois de capacitados, os alunos tem a autonomia para decidir as ações que tomam. E consequências neste ambiente natural são imediatas...por exemplo, se os alunos escolhem trilhar por um trajeto mais acidentado, vão ter que lidar com obstáculos físicos maiores...se não gerenciarem bem o tempo da expedição, vão ter que caminhar à noite...e isso ensina bastante...porque permite a percepção do processo ação-reação (Instrutor 1). 126 Os alunos avaliaram a realização do FEAL não apenas como a vivência de uma aventura outdoor, mas também como um curso sério de capacitação em educação experiencial pela aventura, como nos mostra a fala de um deles: Durante a expedição, o tempo todo foram criadas experiências e possibilitadas condições para o desenvolvimento de aprendizagens. O FEAL não foi só uma aventura...não era só fazer atividade pela atividade...eu consegui enxergar aqui, de fato, uma formação em educação experiencial, um método pedagógico (...) e vivenciar na prática a metodologia da aprendizagem experiencial faz efeito. É diferente de simplesmente me ensinarem a teoria e falarem como aplicá-la (...) ao estar dentro do processo, você consegue ter uma visão melhor dele...você vive a experiência...passa pelos processos...sabe quais são as sensações...tem a visão de dentro... percebe como se dá essa estrutura de todas as técnicas (...) vivenciar na prática essa metodologia faz com que eu possa trabalhar o que é ensinado em mim e me deixa mais maduro pra trabalhar com isso e pra ensinar o que aprendi (Aluno 4). Nesta fala é possível perceber que a possibilidade de vivenciar concomitantemente a teoria e a prática da aprendizagem experiencial pela aventura, contribui sobremaneira para a facilitação do aprendizado acerca deste método pedagógico e do desenvolvimento profissional dos educandos. Além do maior conhecimento teórico-prático acerca da metodologia da educação experiencial pela aventura, os alunos relatam ter aprendido técnicas e ferramentas outdoor que os instrumentalizaram a se locomover e se orientar melhor no ambiente natural, como podemos conferir no trecho abaixo: Antes do FEAL eu já tinha experiência com ambiente ao ar livre e tinha noção básica de como me orientar com mapa e bússola...de percepção ambiental...mas nunca tinha aplicado isso...então não sabia me situar no ambiente natural (...) com esse curso eu realmente evolui em termos de aprendizagem técnica...depois do FEAL...de aprender a teoria e vivenciá-la na prática...sei realmente utilizar a bússola, o mapeamento e a carta de navegação topográfica...vivenciar e experimentar tudo isso na prática fez toda diferença pro conhecimento ser interiorizado (...) agora tenho mais confiança em mim pra me situar no ambiente natural e me sinto preparada pra aplicar as ferramentas e técnicas que aprendi no curso...fora daqui (Aluno 1). 127 Esta aluna enfatiza a relevância da aplicação das técnicas e ferramentas outdoor durante a travessia para que houvesse os processos de aquisição e de interiorização destes conhecimentos. De acordo com esta fala, percebe-se que não apenas a aquisição e a interiorização do conhecimento são facilitadas quando a experiência prática “ilustra” o aprendizado teórico, mas também, a transposição do aprendizado a outros contextos. A realização do FEAL também despertou, naqueles alunos que não atuam na área da educação ao ar livre, o desejo de utilizar a metodologia da educação experiencial pela aventura em sua atuação profissional: Minha experiência no FEAL incentivou meu desejo de trabalhar na escola...com atividades extraclasse ao ar livre...na Chapada Diamantina. Eu pretendo dar aula e tenho vários planos de levar os alunos aos lugares e instigá-los a aprender da mesma forma que a gente era instigado lá no FEAL. Eu já até pensei em bolar mini expedições (Aluno 3). Nesta fala, explicita-se a capacidade da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais, de despertar em seus alunos aspectos essenciais ao processo de aprendizagem: a curiosidade e a vontade de aprender. Esta fala também evidencia dois aspectos importantes propiciados pelo curso, a maior sensação de autonomia da aluna e o efeito multiplicador dos aprendizados adquiridos. Porém, os aprendizados facilitados pela realização do FEAL não se restringem apenas à capacitação técnica e ao aprimoramento ocupacional, mas também compreendem o desenvolvimento pessoal e interpessoal em diversos sentidos, como podemos observar na fala de um aluno: O curso superou minhas expectativas. Porque além de atingir meu foco principal, que eram minhas expectativas profissionais...de capacitação em técnicas outdoor, ao mesmo tempo a experiência e a transformação pessoal vão muito além do que a gente espera...foi trabalhado muito o meu psicológico...o autoconhecimento, o aspecto humano e comportamental...o que vai ajudar me muito como pessoa e como profissional (Aluno 1). 128 Dentre os participantes que compuseram o grupo do FEAL, havia indivíduos de ambos os sexos, de diferentes idades, pertencentes a diferentes áreas de atuação profissional (humanas, exatas e biológicas) e que possuíam diferentes graus de experiência em atividades outdoor e de condicionamento físico. A heterogeneidade do grupo de participantes e o contexto de atividades e experiências grupais intensas e desafiadoras de interação e cooperação, propiciados pelo FEAL, foram mencionados pelos alunos como facilitadores do desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais e da capacidade de estabelecer relacionamentos interpessoais saudáveis, harmônicos e construtivos, tais como: maior percepção de si e dos outros com os quais se relaciona; capacidade de respeitar e lidar com a alteridade; habilidades de comunicação como a assertividade e a capacidade de ouvir e compreender os outros; empatia; capacidade de cooperar e atuar em equipe para a realização de metas coletivas. Alguns destes aprendizados são evidenciados na fala dos alunos a seguir: As relações na vida nem sempre são estabelecidas tão rapidamente e de forma tão intensa quanto são no FEAL. No FEAL a relação com as pessoas é muito intensa, porque é bastante tempo de convívio...você fica vinte e quatro horas com aquelas pessoas...dorme junto...acorda junto...toma decisões junto...e você sabe que você tem que contribuir com o outro e respeitar o outro...então o relacionamento em grupo no FEAL traz amadurecimento em termos de relacionamento grupal, porque você se permite presenciar, compartilhar e respeitar...então você aprende a lidar melhor com...a respeitar mais a diferença das pessoas...aprende a ouvir o outro...a saber a hora e a forma correta de falar...de modo geral, as experiências grupais que a gente tem no FEAL, ensinam a conviver melhor em grupo (Aluno 1). A qualidade do vínculo estabelecido entre os participantes do FEAL foi mencionada pelos alunos como um estímulo à reflexão acerca de como atuam nas relações interpessoais que estabelecem em suas vidas, como nos traz a fala de um deles: O carinho e cuidado que um dava ao outro no grupo me fez perceber o quanto falta eu perceber mais a minha esposa no dia-a-dia, dar aquele beijo e abraço, por mais que o dia-a-dia seja cansativo (Aluno 2). 129 Assim, ao observar os benefícios que o afeto, o acolhimento e o cuidado compartilhados entre os participantes propiciaram ao relacionamento grupal durante o curso, este aluno percebeu a importância destes aspectos para o estabelecimento e a manutenção das relações interpessoais e a necessidade de se dedicar mais e dispender mais afeto e cuidado aos seus relacionamentos e às pessoas com as quais se relaciona. Visto que o FEAL é realizado em meio à natureza, o bom relacionamento entre os participantes é essencial para o desenvolvimento da safety net, a rede de segurança e de apoio social, imprescindível à integridade dos praticantes de AFAN. Assim, para facilitar uma interação grupal positiva, os instrutores propunham atividades que possibilitassem o desenvolvimento das habilidades sociais necessárias à mediação do convívio e da comunicação interpessoais durante o FEAL. De acordo com os alunos, tais habilidades não apenas foram extremamente importantes para que a interação social durante o curso fosse construtiva, mas possibilitaram a avaliação e a ressignificação da forma que se relacionam e se colocam nas relações que estabelecem em suas vidas: Um dos temas ressaltados nas aulas e nos feedbacks dos instrutores foi a “escuta ativa”, que é a importância de aprender a ouvir, entender e processar o que ouvimos...e a gente pôde aplicar este aprendizado de escuta ativa na relação com os outros participantes do curso...e saber ouvir era essencial pro convívio em grupo no contexto do FEAL (...) isso foi muito importante pra mim em termos de aprendizado pessoal e interpessoal...me deu uma nova visão das relações e me fez entender o que é ouvir realmente (...) tenho certeza que esse aprendizado será muito útil pra mim e que vou levar isso pra minha vida. Porque agora sei escutar as pessoas e me relacionar melhor com outros. (Aluno 1). O contexto de interação social intensa e interdependente, em meio a um ambiente repleto de desafios naturais, também foi mencionado pelos alunos como um fator facilitador do autoconhecimento, como evidencia a fala de um deles: Esse curso coloca você entre doze pessoas que você não conhecia em um ambiente adverso...isso facilita o autoconhecimento...pelo menos pra mim facilitou...o curso foi uma grande oportunidade para me conhecer mais (...) fora o convívio em república, o FEAL foi a melhor experiência que tive, em termos de viver no coletivo (...) o contexto do FEAL é o ambiente propício pra se expor e pra se descobrir, porque lá 130 as pessoas são obrigadas a estar juntas e dependem muito umas das outras (Aluno 3). Como evidenciam Assis, Pesce e Avanci, (2006), o autoconhecimento é um fator de proteção de extrema relevância para o desenvolvimento do processo de resiliência. Neste sentido, podemos considerar o FEAL um contexto facilitador do processo de resiliência, na medida em que foi apontado pelos alunos como um contexto catalizador do autoconhecimento e do desenvolvimento pessoal e interpessoal, tanto pelas atividades desenvolvidas ao longo do curso, quanto pelo relacionamento interpessoal e pelo contato com o próprio mundo interno, facilitado pelo ambiente natural. No que tange às atividades propostas ao longo do curso, diversos alunos mencionaram uma dinâmica sobre liderança facilitada pelos instrutores, na qual os educandos deveriam assumir diversos papéis: se posicionando ora no início da expedição e atuar como líder do grupo, ora no meio da expedição e ora no final desta. De acordo com os relatos dos alunos, a assunção de diferentes papéis permitiu que eles descobrissem com os quais se identificavam e se sentiam mais ou menos confortáveis, o que, por sua vez, facilitou o autoconhecimento e o desenvolvimento de habilidades de liderança, como exemplifica a fala de um dos alunos: O autoconhecimento foi um dos grandes desafios do FEAL...na dinâmica que os instrutores realizaram sobre liderança, eu aprendi que meu tipo de liderança é o tipo diretivo...aprender sobre isso na prática, me ajudou a me conhecer, a ver o que preciso melhorar pra poder contribuir com meu tipo de liderança pro grupo e pra que eu lidere de forma madura quando for preciso liderar...o FEAL despertou em mim a aceitação da minha habilidade de líder, de coordenar situações (...) os feedbacks dos instrutores também foram essenciais pra eu me conhecer mais...me fizeram “rebobinar” toda a expedição, fazer uma análise de mim mesma no curso e me questionar qual era o meu papel naquele grupo (...) tanto os feedbacks, quanto as atividades propostas pelos instrutores me fizeram pensar qual era o meu papel no grupo do FEAL e qual é o meu papel na vida...e pensar onde posso melhorar na minha vida, no meu trabalho e nos meus outros meios de interação social (Aluno 1). Esta fala demonstra que a intervenção dos instrutores durante o curso, através da proposição de atividades temáticas, coerentes com as experiências vivenciadas pelos alunos e, da realização de devolutivas acerca das atitudes, comportamento e 131 desempenho de cada aluno perante os desafios propostos pelo curso, bem como suas deficiências e potencialidades explicitadas no enfrentamento destes, facilitou o autoconhecimento dos alunos. A maior adaptabilidade ao ambiente natural, após a vivência de diversos e longos dias em expedição na natureza, também foi apontada como um dos benefícios da realização do FEAL, como ilustra a fala de um aluno: Na atividade solo cada participante tinha que dormir sozinho e em bivaque, que é um acampamento temporário ao ar livre, sem barraca. No dia seguinte, na expedição final, quase todo mundo dormiu fora da barraca por opção. Nós fizemos uma fila de bivaque, foi bem legal. E antes da atividade solo, só eu e mais um menino tínhamos dormido fora da barraca (...) no começo da expedição, a gente não molhava o pé no rio por nada. E no finzinho da trilha da expedição final, quase todos os alunos entraram de bota e roupa no rio. Essas coisas, pra mim, mostram como os 12 dias foram nos transformando...mesmo os alunos que se sentiam menos à vontade em estar na natureza, se adaptaram a este ambiente ao longo do curso (Aluno 3). Esta fala corrobora a afirmação de Heimstra e Mcfarling (1978), de que através da adaptação ambiental, processo que consiste na modificação do sistema sensorial pela apresentação contínua de estímulos, o homem é capaz de se adaptar psíquica e fisiologicamente a diversos ambientes. Deste modo, o processo de adaptação ambiental, fez com que estar em meio à natureza, o que inicialmente configurava um estímulo desafiador e potencialmente aversivo para alguns participantes, se tornasse um estímulo mais neutro. Todos os alunos relatam ter desenvolvido mais admiração, respeito e cuidado com a natureza, através do aprendizado de valores ambientais ao longo do FEAL, como podemos conferir na fala de um deles: Aprendemos bastante sobre a questão de mínimo impacto na natureza e de desperdício, coisas que a gente viu e vivenciou na pele. Nos doze dias que a gente ficou na serra, a quantidade de lixo que a gente produziu em doze pessoas é mínima. Até assusta quando comparamos com a quantidade enorme de lixo que a gente produz na cidade, em casa, num só dia, numa semana. Aprendi que a gente pode contribuir 132 com a natureza. E eu não tinha a mínima ideia sobre o mínimo impacto (Aluno 6). Atualmente, muito se fala de meio ambiente e da importância da sustentabilidade para a manutenção e harmonia da vida. Porém, inúmeros programas de educação ambiental são demasiadamente teóricos, dificultando que os aprendizados possam efetivamente ser aplicados no cotidiano dos educandos nos centros urbanos, ou mesmo, possuem uma retórica ambiental pouco coerente com a prática de sustentabilidade. Porém, a fala deste aluno demonstra que a educação ambiental, viabilizada pelo método de educação experiencial pela aventura em ambientes naturais, é eficaz em desenvolver valores ambientais potencialmente aplicáveis na vida dos educandos, na medida em que não apenas consiste em um discurso vazio acerca da sustentabilidade, mas oferece exemplos e vivências práticas de mínimo impacto e de seus benefícios para a natureza. Ao comparar a quantidade de lixo produzido ao longo da expedição com a quantidade produzida no cotidiano dos centros urbanos, este aluno está refletindo acerca desta experiência e generalizando os aprendizados para outros âmbitos além do qual foram adquiridos. Ou seja, este aluno vivenciou ou três estágios do ciclo de aprendizagem experiencial de Luckner & Nadler (1992 apud KUNREUTHER, 2011), pois ele viveu uma experiência significativa, refletiu sobre o que foi vivenciado e generalizou o que foi aprendido para outros âmbitos de sua vida. Por conseguinte, para que este aprendizado seja efetivo e tenaz, este participante deve ter a oportunidade de aplicar o que foi aprendido em sua vida, ou seja, atingir o último estágio do ciclo de aprendizagem experiencial, o da aplicação do que foi aprendido em outros contextos além do qual o aprendizado foi adquirido. Esse exemplo demonstra que as experiências propiciadas pelo FEAL, por serem significativas e ilustrarem o que é ensinado, possuem grande probabilidade de eliciar os processos de reflexão, generalização e aplicação dos aprendizados adquiridos, o que demonstra o grande potencial educativo e de desenvolvimento humano do método pedagógico da educação experiencial pela aventura. O desenvolvimento do apreço pela atividade física também foi mencionado como resultado da realização do FEAL. De acordo com Costa (2001), as práticas corporais em ambientes naturais, distanciam os praticantes de suas rotinas obrigatórias, oferecendo a 133 oportunidade de vivenciarem a sensação de resgate da liberdade e de regeneração de forças minadas pelo estresse do cotidiano. Os relatos de alguns alunos reforçam a afirmação da autora, como podemos constatar na fala de um deles: Eu tenho uma vida fisicamente ativa...gosto de esportes, de caminhar, correr...e tô saindo deste curso desejando praticar ainda mais atividades físicas na natureza (...) o esporte na natureza é muito bom...até as pessoas que não têm a cultura de praticar esporte, depois de um curso como esse vão ver que praticar atividade física é muito bom...traz muitos benefícios...pra tirar um pouco da rotina estressante das cidades...extravasar um pouco o estresse (...) até os alunos menos ativos fisicamente saíram do curso querendo implementar atividades físicas na natureza em seu cotidiano (Aluno 2). Para este aluno na medida em que a prática de atividade física no contexto do FEAL compreende uma oportunidade de renovação e de liberação do estresse causado pela rotina dos centros urbanos, a realização do curso favorece o apreço pela prática de esportes e de atividade física e despertam, mesmo nos educandos mais sedentários, o desejo de adotar um estilo de vida mais fisicamente ativo em seus cotidianos. Em síntese os aprendizados e as habilidades desenvolvidos através da realização do FEAL, relatados pelos alunos e que por sua vez compreendem recursos de proteção no enfrentamento e adversidades são: desenvolvimento humano integral (aprimoramento técnico, cognitivo, moral, emocional, físico, motor, pessoal e social); capacidade de autocuidado e desenvolvimento da noção de autocuidado ampliado, que inclui o cuidado com o meio-ambiente devido à percepção do ser humano como parte da natureza; desenvolvimento da autoestima, da auto-eficácia e da autoconfiança; capacidade de avaliar e manejar riscos; capacidade de reconhecer e utilizar recursos internos e externos no enfrentamento das adversidades; capacidade de análise e de tomada de decisões; capacidade de lidar com a própria autonomia e com as conseqüência das próprias ações; capacidade de aprender com os próprios erros; capacidade de lidar com as adversidades com maior equilíbrio emocional e bom humor; coragem para enfrentar mudanças e desafios; capacidade de adaptar-se a diversos contextos e de lidar positivamente com a ausência da zona de conforto socioambiental; autoconhecimento; desenvolvimento de diversas habilidades sociais, que por sua vez favorecem o estabelecimento de rede de apoio social segura; apreço por prática de 134 tempo livre saudáveis; contato com os próprios limites, potencialidades e recursos interiores e percepção da necessidade da introspecção, auto-reflexão e de autoconhecimento no cotidiano. 3.4.1. APRENDIZADOS PROPICIADOS PELA VIVÊNCIA DA ATIVIDADE SOLO A atividade solo foi caracterizada pelos alunos como um momento de bastante introspecção, aprendizado, desenvolvimento e transformação pessoal, como nos traz a fala de dois alunos: Na atividade solo trabalhamos muito o nosso psicológico. Foi uma experiência de autoconhecimento...de encontro comigo mesma...é muito difícil e muito prazeroso entrar em contato com a gente mesmo (...) foi um momento importante pra pensar em mim, nas minhas atitudes, nas minhas metas, objetivos e sonhos (...) é uma experiência muito forte...um momento de bastante reflexão...não dá pra dizer que você é a mesma pessoa depois da experiência do solo (Aluno 3). Eu nunca tinha feito nada como a atividade solo...foi muito bom porque foi um momento de tirar um tempo pra ficar sozinho e pensar sobre mim mesmo...faz refletir muito. (...) o solo me ensinou que às vezes é bom estar sozinho e que quando estamos somente na nossa companhia, aprendemos muito sobre nos mesmos (Aluno 5). Ambas as falas demonstram a importância de ao estar só, conseguir efetivamente contar com a própria companhia e entrar em contato com os próprios recursos internos, o que remete a um trecho de um poema de Clarice Lispector: Que a minha solidão não me destrua. Que minha solidão me sirva de companhia. Que eu tenha a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim, me sentir como se eu estivesse plena de tudo. 135 Através dos relatos dos alunos, podemos afirmar que a atividade solo, apesar de compreender um grande desafio, significou um contexto de mobilização e de desenvolvimento de recursos internos de proteção, ou seja, de facilitação do desenvolvimento do processo de resiliência. Afinal, tanto os alunos quanto os instrutores concordam que a atividade solo compreende um convite à introspecção e, portanto, uma oportunidade de autoconhecimento, reflexão e percepção das próprias potencialidades, deficiências, recursos e força interior, como evidencia a fala de um instrutor: No primeiro momento a atividade solo assusta, pois é um contexto nada familiar que envolve muitos medos, onde os alunos não tem o controle sobre as variáveis ambientais. Mas depois acaba sendo uma grande surpresa, porque é uma oportunidade rara e transformadora de aprendizagem e de ‘auto-revisão’...pros alunos ficarem sós, longe de estímulos externos e da dependência dos confortos do dia-adia...entrar em contato consigo mesmos, arrumar a ‘casa interna’, pensar em si e nas suas vidas, descobrir novas potencialidades e resgatar a força interior (...) o ambiente natural facilita o autoconhecimento, porque há o silêncio, os sons da natureza e menos estímulos ambientais pra competir com o pensar e com o refletir. Diferente da vida moderna na cidade, onde ficar só, em silêncio e entrar em contato consigo mesmo é muito difícil (...) A atividade solo foi um processo forte e emocionante para os alunos, que os ajudou a ter percepções e aprendizados bem importantes pra vida deles (...) o quanto esses aprendizados vão se transformar em ação efetiva, já não dá pra saber. Mas se perceber já é bem importante, já ganha boas sessões de terapia (risos) (Instrutor 2). Esta fala caracteriza o contexto urbano, devido à sua típica sobrecarga de estimulação ambiental, como um local que dificulta o contato do homem com seu próprio universo e recursos interiores. E, o ambiente natural, como um contexto que favorece a interiorização, visto que, ao amenizar a sobrecarga dos estímulos ambientais, oferece aos indivíduos a oportunidade de dirigir o foco atencional ao seu interior. Neste sentido, a atividade solo também foi mencionada como uma experiência que promove o despertar da consciência dos alunos sobre a importância e os benefícios da introspecção e do autoconhecimento, mesmo em meio à sobrecarga de estímulos ambientais características dos centros urbanos, como nos ilustra a fala de um dos alunos: 136 Na correria do cotidiano...na minha zona de conforto na cidade, eu me entretenho com muitas atividades ao mesmo tempo e tem muita coisa pra distrair a mente...é difícil ter o seu tempo pra se olhar, pensar e refletir sobre si mesmo e sobre sua vida, se conhecer...se perceber realmente...você acaba fugindo um pouco do seu eu (...) quando eu tô na natureza, é a hora que eu me encontro e entro em contato comigo mesma. Por isso todo final de semana eu faço questão de estar no ambiente natural. Mas o FEAL e a atividade solo me ajudaram a me conhecer melhor e me ensinaram algo que vou levar pra minha vida: eu não vivo só de fim de semana, então tenho que viver o meu eu todos os dias...apesar de tantos estímulos no cotidiano, é essencial separar um tempo pra mim mesma, pra me interiorizar, entrar em contato comigo, meditar, refletir e olhar para as coisas que são importantes pra mim e pra minha vida’ (Aluno 1). A fala desta aluna ilustra um consenso entre todos os alunos entrevistados: a realização da atividade solo e do FEAL de modo geral, facilitaram o autoconhecimento e o reconhecimento da necessidade e da importância da auto-percepção e da interiorização em suas vidas. A carta escrita durante a atividade solo pelos alunos, sobre e para si mesmos, também foi apontada por eles como um dos aspectos que facilita o autoconhecimento neste contexto, afinal, ao escreverem-na, possuem a oportunidade de entrar em contato com as próprias emoções, os próprios medos, sonhos, limitações e recursos. Outros aprendizados que foram propiciados pelo intenso contato com a natureza e com o próprio mundo interior durante a atividade solo, mencionados pelos alunos, foram: valorização da rede de apoio social habitual; ressignificação da visão de mundo e do modo de viver; maior percepção, valorização e respeito à própria vida e à natureza e compreensão do ser humano como parte integrante da natureza. A maioria dos alunos relata que, ao superar os desafios propostos pelo FEAL, percebeu ser mais forte e resistente, física e psicologicamente, do que julgava ser, como exemplificado no trecho a seguir: Com o FEAL, eu senti na pele qual é a carga que eu aguento...tanto psicológica, quanto fisicamente...e aprendi que sou muito mais forte e resistente e que aguento mais do que eu imaginava (...) nos primeiros dias pegamos trilhas bem pesadas e eu tava muito gripado...achava que não ia aguentar. Se eu estivesse em algum outro lugar que fosse mais fácil ir embora, eu teria desistido do curso. Mas além de não querer desisti, pra desistir era toda uma logística trabalhosa...porque a 137 gente tava no meio da serra. Então tentei aguentar e prosseguir...e vi que consigo prosseguir mesmo com adversidade...que eu sou forte. E isso é um grande aprendizado, porque em outros momentos da vida a gente tem que pensar bem antes de desistir...e tentar persistir, porque a gente muitas vezes é mais forte do que imagina...e eu quero aplicar todo esse aprendizado em minha vida...pra me tornar cada vez mais forte e capaz de enfrentar as dificuldades (Aluno 6). A fala deste aluno demonstra que, o fato de ter persistido mesmo frente a um desafio para o qual acreditava não possuir recursos internos de enfrentamento suficientes, fez com que ele descobrisse em si forças internas e a capacidade de superar adversidades, superiores às que julgava possuir. Assim, a experiência de responder positivamente às adversidades do FEAL e obter êxito no enfrentamento destas, fez com que este aluno descobrisse a resistência e a eficácia de seus recursos internos de enfrentamento; desenvolvesse confiança em sua capacidade de superação; percebesse a importância da persistência no enfrentamento das adversidades; aprimorasse seu potencial de resiliência e percebesse a possibilidade de aplicar este potencial em sua vida. APLICABILIDADE DOS APRENDIZADOS DO FEAL EM OUTROS 3.5. ÂMBITOS DA VIDA DOS EDUCANDOS Segundo o ciclo de aprendizagem experiencial, a educação experiencial somente é eficaz em promover aprendizados e o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e emocional dos educandos se os aprendizados suscitados pela experiência proposta forem aplicáveis também a outros contextos (LUCKNER & NADLER, 1992 apud KUNREUTHER, 2011). De acordo com o relato dos educandos e dos instrutores do FEAL, todos crêem que os aprendizados adquiridos no contexto do FEAL são passíveis de ser transpostos a outros âmbitos de suas vidas, como exemplificado nas falas a seguir: Acho que tudo o que aprendi no FEAL pode ser aplicado em meu diaa-dia...e vai influenciar minha vida...e não só psicológica, mas 138 fisicamente Essa experiência já começou a influenciar em meu cotidiano, só por ter me feito ver e aprender muitas coisas. E ainda vai me influenciar muito mais. Não só o que eu vivi aqui, mas também o que tá passando pela minha cabeça agora e o que eu vou analisar sobre essa experiência única depois que eu estiver fora daqui...quando chegar em minha rotina (...) as experiências que vivi no FEAL foram muito intensas, emocionantes, significativas, inesquecíveis...tenho certeza que o que vivi e aprendi...e as lembranças do que vivi aqui, vão influenciar minha vida (Aluno 1). De acordo com a avaliação desta aluna, mesmo antes de retomar sua rotina, ela percebe que a realização do curso lhe possibilitou a aquisição de aprendizados que eliciaram a ressignificação de seu cotidiano e de sua vida. E, além disso, ela acredita que ao retomar sua rotina, mesmo não estando mais no contexto do curso, a recordação e a reflexão acerca das experiências vivenciadas ao longo deste, irão promover novas ressignificações e novos aprendizados, A fala desta aluna corrobora o que teoriza Izquierdo (2002) sobre o processo de fixação da memória. De acordo com o autor o processo de fixação da memória é em sua maior parte, consolidado nas primeiras horas após a aquisição do aprendizado. Porém, para que a solidificação do aprendizado ocorra, durante a etapa de estabilização da informação armazenada, é importante que haja a reflexão acerca do que foi aprendido, pois a reflexão implica em uma reconstrução ativa do aprendizado e facilita sua fixação. Neste sentido, a fala desta aluna evidencia que a educação experiencial pela aventura, ao propiciar aos educandos experiências e aprendizados memoráveis, facilita não apenas o processo de aquisição dos aprendizados, mas também os processos de recordação e, portanto, de fixação destes. No que tange ao processo de evocação da memória, o conteúdo emocional das experiências e dos aprendizados afetam a maneira como são armazenados, de modo que os eventos mais facilmente lembrados são aqueles acompanhados de elevada emoção (IZQUIERDO, 2002). Através da fala desta aluna é possível verificar que as experiências propiciadas pelo FEAL, por seu caráter peculiar e intenso, possuem o potencial de mobilizar emocionalmente os educandos. Logo, na medida em que a educação experiencial pela aventura propicia aos educandos experiências passíveis de eliciar diversas emoções, ele método pedagógico possui o potencial de facilitar a aquisição de aprendizados tenazes e um desenvolvimento pessoal que não se limita ao contexto no qual a experiência é vivenciada. 139 Assim, apesar de o FEAL ser uma experiência singular, realizada em um contexto específico diferente do contexto cotidiano dos educandos, é possível perceber que o curso não consiste em um ‘treinamento para a montanha, mas pela montanha’. Ou seja, o método pedagógico norteador do curso possui o potencial de capacitar os educandos a atuar com mais maturidade não apenas no contexto do curso, mas nos diversos âmbitos de suas vidas. Afinal, os desafios propostos por este método pedagógico envolvem temáticas universais e, portanto, possibilitam o desenvolvimento de habilidades pessoais e interpessoais e a aquisição de aprendizados relevantes e aplicáveis a qualquer contexto humano, como afirma um dos alunos: Desde que você esteja aberto a aprender e a vivenciar as experiências do curso...todo esse aprendizado é totalmente aplicável na vida...não tem nada que eu vivi e experimentei nesses dias de curso que eu não faça uma analogia com o dia-a-dia...que não possa ser praticado no meu cotidiano. Porque no FEAL você tem que tomar decisões, administrar tempo e recursos individuais e grupais, tem momentos de exercer liderança, de criatividade, de ficar sozinho, de estar com o grupo, de alegria e de tristeza e...no seu dia-a-dia você tem tudo isso (...) no curso você experimenta realmente as coisas, é fisiológico...então isso realmente gera uma transformação pessoal e comportamental...por isso acredito que o que aprendi aqui é possível de ser aplicado no meu cotidiano...essa vivencia realmente me transformou (Aluno 2). Ao avaliar a aprendizagem possibilitada pelo FEAL como algo fisiológico e, portanto, mais eficiente em facilitar aprendizados transformadores e duradouros, este aluno corrobora a afirmação de Dinsmore (2004) acerca da capacidade da educação experiencial pela aventura promover aprendizados tenazes, por propiciar um contexto que favorece a integração mente e corpo, de modo que a memória do aprendizado não é apenas cognitiva, mas também muscular. Na fala a seguir, um dos alunos demonstra a importância de ao findar do curso e ao retornarem às suas respectivas rotinas, os educandos buscarem vivenciar experiências análogas às do FEAL, para que os aprendizados adquiridos ao longo do curso não se percam: Com certeza a experiência do FEAL vai influenciar no meu cotidiano...porque mexeu comigo como pessoa. Claro que tem que sempre reciclar, buscar novas experiências, tentar viver o que a gente 140 viveu no curso, de contato com a natureza, de autoconhecimento, de reflexão. Estou voltando pro meu cotidiano muito empolgado, querendo fazer tudo, mas se não praticar isso no cotidiano, depois passa. Como tudo na vida, o que não se pratica se esquece (Aluno 6). Esta fala confirma o que afirmam Luckner & Nadler (1992, apud KUNREUTHER, 2011) acerca do Ciclo de Aprendizagem Experiencial: se o último estágio do ciclo, o da aplicação do aprendizado recém-adquirido em uma nova situação real, não for realizado de forma completa, o aprendizado não será solidificado, tornando-se superficial e efêmero. Transcorridos seis meses da realização do FEAL, foi enviado aos educandos participantes desta pesquisa, via e-mail, um questionário contendo três perguntas, que visava investigar a repercussão do curso em suas vidas e a aplicabilidade dos aprendizados adquiridos no contexto do curso, em seus cotidianos e nos diversos âmbitos de sua vida. Porém apenas dois dos participantes responderam ao questionário. De acordo com os alunos que responderam a essas questões, após seis meses da realização do FEAL, os aprendizados e habilidades desenvolvidos através do curso que efetivamente foram transpostos aos seus cotidianos foram: autoconfiança e persistência para enfrentar desafios; habilidade de comunicar-se e expressar sentimentos e opiniões de modo assertivo; capacidade de vivenciar o momento presente; maior inteligência/equilíbrio/controle emocional e serenidade para lidar com conflitos e situações adversas; valorização, cuidado e respeito à natureza; adoção de um estilo de vida mais simples, ativo e saudável; busca pelo contato com a natureza; ressignificação da visão de mundo; maior aceitação e melhor uso da realidade; transformação pessoal; adoção de momentos de introspecção e de autoconhecimento à rotina; maior capacidade de resiliência; capacidade de atuar em equipe; dentre outros. A grande maioria destes aprendizados compreende importantes fatores de proteção no enfrentamento das adversidades (ASSIS, PESCE e AVANCI, 2006). De acordo com o relato de todos os alunos, o FEAL é efetivamente uma experiência que elicia grandes transformações pessoais em diversos aspectos. Porém, para que os educandos possam transpor os aprendizados, as habilidades e os recursos internos desenvolvidos no contexto de ambiente natural do curso ao contexto urbano no 141 qual vivem, é necessário que haja empenho em fazê-lo. Como nos mostra a fala de um dos alunos, seis meses após a realização do FEAL: Após seis meses do curso, vejo que é impossível vivenciar algo como o FEAL e sair ileso...o FEAL repercutiu muito em minha vida...me ajudou a entender melhor meus conflitos internos, a conhecer mais meus limites físicos e psicológicos (...) o curso potencializou um verdadeiro processo de transformação pessoal...de autoconhecimento, me deu mais coragem de experimentar o novo...me ajudou a desenvolver mais ferramentas para lidar com dificuldades...me fortaleceu pra enfrentar o mundo com coragem e vontade de viver (...) saí do curso me achando uma supermulher, transformada e renovada, cheia de ideias, sem medo de falar o que penso, o que sinto, de me impor...decidida a ir mais atrás das coisas que eu quero, a confiar mais em mim e no que penso...voltei pro meu cotidiano achando que poderia mudar o mundo com toda experiência vivida no FEAL (...) mas quando retornei ao meu mundo real, vi que as mesmas dificuldades estavam lá. A realidade do dia a dia é muito diferente do que vivemos no curso...a correria do cotidiano nos engole e nos faz esquecer um pouco as decisões, propósitos pessoais e aprendizados que tivemos (...) pra aplicar no cotidiano o que aprendi no FEAL, tem que ter um exercício contínuo de empenho pessoal (...) mas quando estou na natureza, quando me interiorizo e entro em contato comigo mesma, quando estou em uma situação de interação grupal, quando acontece algum conflito ou problema na minha vida...eu acesso na memória as experiências e as lembranças de superação do FEAL...e elas ajudam a sair da loucura do dia a dia, trazem força, poder e um sentimento de que sou capaz (Aluno 3). Esta fala demonstra que, apesar do cotidiano dificultar a aplicação dos aprendizados e habilidades desenvolvidos ao longo do FEAL na vida dos educandos, o resgate destes recursos internos é facilitado quando o educando vivencia alguma experiência que possua características análogas ao contexto do FEAL, por exemplo, ao estar no ambiente natural, ao vivenciar momentos de introspecção e de autorreflexão e ao deparar-se com situações de tomada de decisão, de resolução de conflitos, de interação grupal e de enfrentamento de adversidades. Fato este que pode estar associado ao que evidencia a Psicobiologia acerca dos processos de aquisição e de evocação da memória: a evocação da memória é favorecida em contextos que remetem ao contexto no qual a memória foi adquirida (IZQUIERDO, 2002). Apesar da diferença existente entre o contexto do FEAL e o contexto de vida dos educandos, a fala desta aluna demonstra que as experiências de enfrentamento e de 142 superação das adversidades durante o curso, efetivamente aprimoraram seu potencial de resiliência, na medida em que favoreceram o desenvolvimento de recursos internos de enfrentamento e fatores de proteção, passíveis de serem empregados no enfrentamento de adversidades ao longo de sua vida. Logo, se os recursos internos desenvolvidos ao longo do curso são mais facilmente acessíveis em situações que remetem ao contexto do FEAL, as práticas de interiorização e autoconhecimento, de contato com a natureza e de AFAN no cotidiano dos educandos, podem viabilizar a incorporação efetiva destes novos recursos ao repertório de recursos internos de proteção dos educandos. A educação experiencial somente é eficaz em promover aprendizados e o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e emocional dos educandos se as quatro etapas do ciclo de aprendizagem experiencial forem corretamente realizadas e concluídas (LUCKNER & NADLER, 1992 apud KUNREUTHER, 2011). Os dados obtidos por esta pesquisa demonstram que a estrutura do FEAL propicia que as quatro etapas do ciclo de aprendizagem experiencial sejam contempladas, de modo que a realização do curso efetivamente permite a aquisição de aprendizados e o desenvolvimento pessoal dos educandos. Uma das principais contribuições desta pesquisa é evidenciar o potencial da educação experiencial pela aventura em facilitar o desenvolvimento da resiliência dos educandos. Tavares (2002) aponta que a sociedade atual demanda que os indivíduos saibam lidar com os riscos e eventos estressores, de modo que os sistemas de Educação devem ser responsáveis não apenas pela promoção da cidadania, mas pela facilitação do desenvolvimento de mecanismos que favoreçam a capacidade de resiliência dos educandos. Por conseguinte, é necessário que os métodos, os meios, os conteúdos e os processos de ensino-aprendizagem possuam uma dinâmica de ensino-aprendizagem dialética, desafiadora, inovadora e que permita aos educandos serem atores do processo de aprendizagem e vivenciarem situações reais, do mundo e da vida como o são. Os dados obtidos nesta pesquisa evidenciam que o método pedagógico da educação experiencial pela aventura possui todas as características mencionadas pelo referido autor e, por conseguinte, é capaz de instrumentalizar os educandos a lidarem com os riscos de modo mais dinâmico e positivo. Partindo do princípio que a escola é um dos tutores da resiliência mais importantes e potentes da sociedade, por possibilitar aos educadores um 143 acompanhamento diário e longitudinal das fases do desenvolvimento humano dos educandos (ASSIS, PESCE e AVANCI, 2006), alguns países como a Austrália, os Estados Unidos e o Canadá, adotaram a educação experiencial pela aventura como método pedagógico integrado aos sistemas público e privado de Educação, objetivando o desenvolvimento integral dos educandos e obtiveram resultados extremamente benéficos aos âmbitos da Educação e da Saúde (DINSMORE, 2004). Logo, acreditamos que a adoção do presente método pedagógico pelos sistemas de Educação, principalmente por países com alto índice de populações em risco psicossocial, como o é o Brasil, é uma alternativa viável e eficaz à promoção da educação, da saúde, do desenvolvimento humano e do aprimoramento da capacidade de resiliência dos educandos. Além do mais, o Brasil é um país privilegiado para o desenvolvimento de programas de educação experiencial pela aventura, pois possui uma vasta área de ambientes naturais. E, na medida em que a educação experiencial é eficaz em desenvolver valores ambientais em seus educandos, através da intensa interação com a natureza e das práticas de mínimo impacto, além do desenvolvimento integral dos educandos, incluindo o desenvolvimento de fatores internos de enfrentamento de adversidades, este método pedagógico tem muito a contribuir à educação ambiental, tão necessária à sustentabilidade do meio ambiente em nosso país. 144 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de resiliência não existe sem os fatores de risco. Afinal, os fatores de proteção não possuem efeito na ausência dos fatores de risco, visto que o que o papel dos fatores de proteção é amenizar conseqüências negativas das situações adversas. Portanto, é justamente o enfrentamento do estímulo estressor que faz com que os indivíduos possam desenvolver e mobilizar fatores internos e externos de proteção (YUNES; SZYMANSKY, 2002). As experiências possibilitadas pelo método pedagógico da educação experiencial pela aventura na natureza possibilitam aos educandos o enfrentamento de desafios físicos, ambientais, cognitivos, psíquicos e sociais em meio à natureza. Neste contexto, os educandos abandonam temporariamente sua zona de conforto socioambiental para ingressar, deliberadamente, em uma aventura na qual enfrentarão adversidades inerentes ao ambiente natural, bem como dificuldades físicas e emocionais, decorrentes da grande demanda de esforço físico, do intenso contato com uma nova rede social e com o próprio mundo interno. Logo, o contexto de desafios propiciados pela educação experiencial pela aventura em ambientes naturais oferece aos educandos um simulacro das adversidades vivenciadas ao longo do desenvolvimento humano. E, desde que as experiências propostas sejam, concomitantemente, desafiadoras e transponíveis, este método pedagógico oferece aos educandos uma oportunidade de realizar um treinamento seguro de enfrentamento de riscos, que favorece a mobilização, o aprimoramento e o desenvolvimento de fatores internos e externos de proteção, capacitando os indivíduos a lidarem de modo mais resistente e construtivo com as adversidades da vida. Os dados coletados pela presente pesquisa evidenciam o potencial da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais, em facilitar o processo de ensinoaprendizagem, o desenvolvimento integral e o aprimoramento da capacidade de resiliência dos educandos, na medida em que este método pedagógico lhes possibilita a oportunidade de vivenciar experiências reais, significativas, positivas e bem sucedidas de superação das adversidades. Porém, para que este potencial efetivamente se concretize, a educação experiencial pela aventura deve propiciar aos educandos a vivência de experiências significativas e desafiadoras, que possam despertar a ânsia pelo aprendizado e eliciar 145 uma transformação pessoal; o contato com fatores de risco, para que a demanda de superação destes possa favorecer a mobilização e o desenvolvimento de recursos de enfrentamento; a resolução de desafios graduais, progressivos, tangíveis e proporcionais aos seus recursos internos de enfrentamento e externos de proteção. Em síntese, a quantidade e, principalmente, a qualidade dos fatores de proteção disponíveis aos educandos devem sobrepor a dos fatores de risco enfrentados, para que haja um contexto desafiador, transformador, sem, no entanto, que a segurança física e emocional dos educandos, necessárias ao aprendizado e ao desenvolvimento integral dos indivíduos, sejam negligenciadas. Neste ínterim, uma grande ênfase recai sobre um fator de proteção essencial no contexto da educação experiencial pela aventura na natureza: os mediadores do processo de ensino-aprendizagem, que devem estar devidamente capacitados para coordenar atividades de aventura ao ar livre; atentar-se às necessidades, à capacidade e aos recursos dos educandos para propor desafios progressivos, compatíveis, realistas e tangíveis; mediar relações grupais em meio ao ambiente de recursos e de conforto ínfimos, que o é a natureza; dominar técnicas de segurança outdoor; perceber, avaliar e manejar os riscos ambientais; possuir capacidade didática e ética; propiciar experiências educativas desafiadoras e, ao mesmo tempo, proteger a integridade física e psíquica dos educandos; capacitar progressivamente os educandos para que possam se responsabilizar pelo autocuidado, pelo cuidado grupal e pelo próprio aprendizado e desenvolvimento pessoal; fornecer feedbacks coerentes com as experiências vivenciadas; atuar como uma figura de apego seguro e, ao mesmo tempo, estimular a exploração do ambiente, a liberdade de escolha e atribuir autonomia aos educandos. Nesta pesquisa, os instrutores atuaram como um importante fator de proteção justamente por estarem capacitados a realizarem todas as exigências acima mencionadas. De acordo com a análise dos dados obtidos por esta pesquisa, verificamos que a quantidade e a qualidade dos fatores de proteção disponíveis aos educandos, durante o enfrentamento das dificuldades ao longo do FEAL, sobrepuseram os fatores de risco atuantes neste contexto. De modo que os alunos tiveram a oportunidade de mobilizar, desenvolver e aprimorar seus repertórios de recursos internos de enfrentamento de adversidades. Dentre os fatores de proteção desenvolvidos através da realização do FEAL estão: autoconhecimento; contato com os próprios limites, potencialidades e 146 recursos interiores; autoconfiança; capacidade de expressar sentimentos e opiniões assertivamente; autocuidado e capacidade de zelar pela própria segurança; capacidade de permitir-se ser cuidado; capacidade de zelar pelo outro e pelo meio ambiente; valorização da rede de apoio social pessoal; autoestima; auto-eficácia; capacidade de empregar recursos internos e externos no enfrentamento das adversidades; coragem para enfrentar desafios e mudanças; capacidade de admitir, avaliar e manejar riscos; capacidade de organizar-se, cooperar e resolver problemas em grupo; maturidade para a tomada de decisões; capacidade de lidar com a alteridade; habilidades sociais que favorecem o estabelecimento de uma rede de apoio social segura; capacidade de estabelecer vínculos mais harmônicos; valorização da introspecção e percepção da necessidade de autorreflexão e de autoconhecimento no cotidiano; habilidade de liderança; bom humor e equilíbrio emocional ao enfrentar adversidades; autonomia e capacidade de lidar com a própria liberdade de escolha; percepção da própria capacidade de superação; percepção da importância do controle emocional durante as situações adversas; capacidade de lidar com as dificuldades com mais serenidade e sofrer menos por antecedência; maior aceitação da realidade e das adversidades vivenciadas; capacidade de aprender com os próprios erros; capacidade de adaptação a contextos que oferecem menos recursos; capacidade de lidar positivamente com a ausência da zona de conforto; percepção da conseqüência das próprias ações; autoconceito positivo; capacidade de superar adversidades; dentre outros. Destacamos a relevância da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais ao campo da saúde mental e, mais especificamente, da psicologia do esporte. Afinal, na medida em que os resultados encontrados por esta pesquisa apontam este método pedagógico como ferramenta facilitadora do desenvolvimento da resiliência, seu emprego em ações e programas de prevenção, promoção e reabilitação em saúde, poderá beneficiar indivíduos e grupos, principalmente aqueles submetidos a riscos psicossociais, potenciais ou reais. E, além disso, os programas norteados por esta metodologia se apresentam à Psicologia do Esporte como uma alternativa saudável e edificante de lazer e de prática de tempo livre: a prática de AFAN como fim e como meio de desenvolvimento físico, motor, cognitivo, pessoal, emocional e social. Os dados obtidos por esta pesquisa são extremamente ricos e comprovam a hipótese inicial que motivou sua realização: efetivamente há uma relação positiva entre o método pedagógico da educação experiencial pela aventura em ambientes naturais e o 147 desenvolvimento de fatores de proteção em seus educandos. Porém, para compreender como o aprimoramento dos recursos de enfrentamento dos educandos através deste método se traduz em maior capacidade de resiliência, faz-se necessário que novas pesquisas investiguem, em caráter longitudinal, a relação entre a educação experiencial pela aventura na natureza e o processo de resiliência. Esperamos que esta pesquisa possa motivar não apenas novas investigação científicas acerca desta temática, mas também o desenvolvimento e a implementação de programas educativos que utilizem o método da educação experiencial pela aventura como uma ferramenta de desenvolvimento humano, de promoção da saúde integral dos indivíduos e do aprimoramento da capacidade de enfrentarem riscos e lidarem com as adversidades de modo mais adaptativo e construtivo. 148 5. REFERÊNCIAS ASSIS, S. G.; PESCE, R. P.; AVANCI, J. Q. Resiliência: enfatizando a proteção dos adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2006. AZEVEDO, C. B. A., Significados e representações da prática de atividade física na natureza, um caminho para a formação do indivíduo. Monografia (Bacharelado em Educação Física) apresentada à Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, 2006. BETRÁN, J. O. Rumo a um novo conceito de ócio ativo e turismo na Espanha: as atividades físicas de aventura na natureza. 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Em algum instante do FEAL você se sentiu em perigo físico ou psicológico? 12. Nos momentos de dificuldade, quais foram os fatores que te ajudaram a enfrentálas? 13. Em algum momento você pensou em desistir da expedição? Por quê? 153 14. Quais recursos e habilidades você considera importantes aos participantes do FEAL? 15. Como você avalia o FEAL em termos de aprendizagem pessoal? 16. Você considera que a participação no FEAL contribuiu para despertar em você alguma nova habilidade ou para desenvolver alguma habilidade que você já possuía? 17. Você considera que a experiência do FEAL poderá influenciar o seu cotidiano? 18. Para finalizar a entrevista, você teria algo a acrescentar? 154 6.2. ANEXO II: ROTEIRO DE ENTREVISTA REALIZADO COM OS INSTRUTORES DO FEAL Dados Pessoais: - Nome - Idade - Sexo - Profissão - Estado Civil - Número de Filhos - Cidade Natal e Cidade de Residência 1. Há quanto tempo você atua como instrutor da OBB? E do FEAL? 2. O que motivou seu engajamento nesse tipo de atividade? 3. Quais os objetivos do FEAL? 4. Qual o papel dos instrutores no FEAL? 5. Que tipo de aprendizado o método pedagógico utilizado pelo FEAL pretende propiciar aos seus participantes? 6. Quais recursos e habilidades pessoais você considera importantes aos participantes do FEAL? 7. Qual a relevância da aprendizagem de técnicas de montanhismo durante a expedição? 8. Você considera que o FEAL apresenta alguma dificuldade aos seus participantes? 9. Você considera que há algo que favoreça ou dificulte o enfrentamento de eventuais adversidades durante a expedição? 10. Como você lida com eventuais dificuldades dos alunos durante a expedição? 11. Você acredita que em algum momento do FEAL algum aluno se sentiu em perigo? 12. Esta edição do FEAL contou com atividade solo e expedição final? Como o grupo de alunos lidou com tais experiências? 155 13. Como você avalia o desempenho deste grupo de participantes deste FEAL? 14. Você considera que o FEAL contribui para o desenvolvimento pessoal dos alunos? 15. Você acredita que os ensinamentos do FEAL podem ser aplicados no cotidiano dos alunos? 16. Para finalizar a entrevista, você teria algo a acrescentar? 156 6.3. ANEXO III: QUESTIONÁRIO ONLINE APLICADO AOS ALUNOS DO FEAL 1. Transcorrido seis meses da realização do FEAL, você considera que o curso repercutiu em sua vida de alguma forma? 2. Você considera que foi possível transpor algum aprendizado adquirido no FEAL para sua vida e seu cotidiano? 157 6.4. ANEXO IV: TERMO DE CONSENTIMENTO INSTITUCIONAL 1. Nome da Pesquisa: “RESILIÊNCIA E APRENDIZAGEM EXPERENCIAL EM EXPEDIÇÕES NA NATUREZA”. 2. Justificativa e Objetivo geral: O presente estudo possui como objetivo investigar a resiliência no contexto de um curso de Formação de Educadores ao ar Livre da Outward Bound Brasil, que utiliza como método pedagógico a Aprendizagem Experiencial em Expedições na Natureza. 3. Procedimentos: Os sujeitos do presente estudo serão os participantes e instrutores do Curso de Formação de Educadores ao Ar Livre – FEAL, da Outward Bound Brasil. A coleta de dados será realizada em duas etapas. A primeira consistirá em uma entrevista presencial semi-estruturada, a ser realizada com os participantes e instrutores do FEAL, no último dia da expedição do presente curso, na Serra do Cipó - MG. As entrevistas serão gravadas em áudio, se cada sujeito assim o permitir. Os sujeitos terão acesso ao conteúdo de suas respectivas entrevistas a qualquer momento que o desejarem. A segunda etapa da coleta de dados será realizada dois meses após o FEAL, no formato de um questionário online, a ser enviado via e-mail aos participantes que responderem à primeira etapa da coleta de dados. Vale ressaltar que a primeira etapa da coleta de dados terá como sujeitos os alunos e instrutores do FEAL, enquanto da segunda etapa, participarão apenas os alunos do FEAL. Ademais, é imprescindível ressaltar direito dos sujeitos à confidencialidade em ambas as etapas deste estudo. 4. Garantia de acesso: Em qualquer etapa do estudo, você terá acesso aos profissionais responsáveis pela pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas. O orientador da presente pesquisa é a Profa. Dra. Simone Meyer Sanches, que pode ser encontrada no endereço Av. Comendador Enzo Ferrari, 280 – Swift – Campinas - SP, telefone (19) 3776-4000. Do mesmo modo, a orientanda da presente pesquisa pode ser encontrada no endereço Rua Joaquim Rodrigues de Oliveira, 1165 – Vila Cláudia – Limeira – SP, telefone (019) 82001888, e-mail: [email protected]. 5. Garantia de saída: É garantida a liberdade da retirada de seu consentimento a qualquer momento, deixando de participar deste estudo, sem qualquer prejuízo; 6. Direito de confidencialidade: Em todas as etapas deste estudo, Será preservada sua identidade, assim como a identidade de todas as pessoas por você referidas 158 Eu,______________________, responsável pela instituição ________________________ acredito ter sido suficientemente informado a respeito do que li ou do que foi lido para mim, descrevendo o estudo: ”Resiliência e Aprendizagem Experiencial em Expedições na Natureza”. Concordo voluntariamente em participar deste estudo, sabendo que poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento, antes ou durante a realização do mesmo, sem penalidades ou prejuízos. __________________ - __________________ - _______________ - ___ / ___ / 2011 Nome do participante Assinatura Local Data Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste sujeito para a participação. _________________ - ___________________ - _______________ - ___ / ___ / 2011 Nome do pesquisador Assinatura Local Data 159 6.5. ANEXO V: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO 1. Nome da Pesquisa: “RESILIÊNCIA E APRENDIZAGEM EXPERENCIAL EM EXPEDIÇÕES NA NATUREZA”. 2. Justificativa e Objetivo geral: O presente estudo possui como objetivo investigar a resiliência no contexto de um curso de Formação de Educadores ao ar Livre da Outward Bound Brasil, que utiliza como método pedagógico a Aprendizagem Experiencial em Expedições na Natureza. 3. Procedimentos: Os sujeitos do presente estudo serão os participantes e instrutores do Curso de Formação de Educadores ao Ar Livre – FEAL, da Outward Bound Brasil. A coleta de dados será realizada em duas etapas. A primeira consistirá em uma entrevista presencial semi-estruturada, a ser realizada com os participantes e instrutores do FEAL, no último dia da expedição do presente curso, na Serra do Cipó - MG. As entrevistas serão gravadas em áudio, se cada sujeito assim o permitir. Os sujeitos terão acesso ao conteúdo de suas respectivas entrevistas a qualquer momento que o desejarem. A segunda etapa da coleta de dados será realizada dois meses após o FEAL, no formato de um questionário online, a ser enviado via e-mail aos participantes que responderem à primeira etapa da coleta de dados. Vale ressaltar que a primeira etapa da coleta de dados terá como sujeitos os alunos e instrutores do FEAL, enquanto da segunda etapa, participarão apenas os alunos do FEAL. Ademais, é imprescindível ressaltar direito dos sujeitos à confidencialidade em ambas as etapas deste estudo. 4. Garantia de acesso: Em qualquer etapa do estudo, você terá acesso aos profissionais responsáveis pela pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas. O orientador da presente pesquisa é a Profa. Dra. Simone Meyer Sanches, que pode ser encontrada no endereço Av. Comendador Enzo Ferrari, 280 – Swift – Campinas - SP, telefone (19) 3776-4000. Do mesmo modo, a orientanda da presente pesquisa pode ser encontrada no endereço Rua Joaquim Rodrigues de Oliveira, 1165 – Vila Cláudia – Limeira – SP, telefone (019) 82001888, e-mail: [email protected]. 5. Garantia de saída: É garantida a liberdade da retirada de seu consentimento a qualquer momento, deixando de participar deste estudo, sem qualquer prejuízo; 6. Direito de confidencialidade: Em todas as etapas deste estudo, Será preservada sua identidade, assim como a identidade de todas as pessoas por você referidas. 160 Eu, _____________________________________________________, acredito ter sido suficientemente informado a respeito do que li ou do que foi lido para mim, descrevendo o estudo: ”Resiliência e Aprendizagem Experiencial em Expedições na Natureza”. Concordo voluntariamente em participar deste estudo, sabendo que poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento, antes ou durante a realização do mesmo, sem penalidades ou prejuízos. ______________ - ____________________ - _______________ - ___ / ___ / 2011 Nome do participante Assinatura Local Data Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste sujeito para a participação. __________________ - ___________________ - _______________ - ___ / ___ / 2011 Nome do pesquisador Assinatura Local Data