Análise de dicionários de uso do espanhol e do português
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Análise de dicionários de uso do espanhol e do português
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS Flávia Zanatta ANÁLISE DE DICIONÁRIOS DE USO DO ESPANHOL E DO PORTUGUÊS Porto Alegre, 2006 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS Flávia Zanatta ANÁLISE DE DICIONÁRIOS DE USO DO ESPANHOL E DO PORTUGUÊS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciada em Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras. Orientador: Prof. Dr. Félix Bugueño Miranda Porto Alegre, 2006 “Los diccionarios son el atajo para penetrar en el contenido de las unidades léxicas, los guías que nos orientan por el laberinto de las palabras – un laberinto en que vivimos inmersos desde el nacer”. Manuel Seco RESUMO O conceito de uso é empregado de forma bastante variada em lexicografia. Muitas obras lexicográficas, por exemplo, se intitulam “dicionários de uso” sem, no entanto, precisar tal conceito, que pode referir-se tanto ao conjunto léxico efetivamente utilizado por uma comunidade lingüística (norma real) quanto ao emprego prescritivo/normativo da língua (norma ideal). Em vista dessa polissemia que apresenta o termo “uso”, temos como objetivo no presente trabalho analisar e avaliar quatro dicionários monolíngües semasiológicos ditos “de uso”, um da língua portuguesa e três da língua espanhola, a fim de averiguar o que cada um deles entende por “uso”. A análise revelou que nem sempre essas obras deixam claro qual a concepção de uso adotada e que há, em alguns dos dicionários analisados, uma discrepância entre aquilo a que se propõem e aquilo que de fato realizam, o que as torna passíveis de críticas por apresentarem problemas quanto à sua concepção e realização. Palavras-chave: lexicografia, dicionário de uso, descrição, prescrição RESUMEN El concepto de uso es empleado de manera bastante variada en lexicografía. Innúmeras obras lexicográficas, por ejemplo, se dicen “diccionarios de uso” pero no precisan tal concepto, que puede referirse tanto al conjunto léxico efectivamente utilizado por una comunidad idiomática (norma real) como al empleo prescriptivo/normativo de la lengua (norma ideal). En vista de esa polisemia que presenta el término “uso”, tenemos como objetivo en este trabajo analizar y evaluar cuatro diccionarios monolingües semasiológicos titulados “de uso”, uno de la lengua portuguesa y tres de la lengua española, a fin de averiguar qué es que cada uno entiende por “uso”. El análisis reveló que no siempre dichas obras dejan clara qué concepción de uso es adoptada y que hay, en algunos de los diccionarios analizados, una discrepancia entre aquello a que se proponen y aquello que de hecho realizan, lo que los convierte en objeto de críticas por presentar problemas en cuanto a su concepción y realización. Palabras-clave: lexicografía, diccionario de uso, descripción, prescripción LISTA DE ABREVIATURAS UTILIZADAS ac. – acepção cf. – conferir p. – página ss. – [páginas] seguintes s.v. – sub voce v. – ver DICIONÁRIOS ANALISADOS DUE (1999) - Diccionario de uso del Español (1999) DUEAE (2002) - Diccionario de uso del Español de América y España (2002) DUPB (2002) - Dicionário de usos do Português do Brasil (2002) GDUEA (2001) - Gran Diccionario de uso del Español Actual (2001) DICIONÁRIOS MENCIONADOS Au (1999) - Aurélio Século XXI (1999) Hou (2001) - Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) DRAE (2001) – Diccionario de la Lengua Española (2001) DEA (1999) – Diccionario del Español Actual (1999) DPD (2005) – Diccionario Panhispánico de Dudas (2005) Mi (1998) – Michaelis. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (1998) DEMAIS ABREVIATURAS RAE – Real Academia Española VOLP – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................9 OBJETIVO DO TRABALHO.................................................................................................10 HIPÓTESES DE INVESTIGAÇÃO.......................................................................................11 ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO....................................................................................12 2 BREVE REVISÃO DA LITERATURA...........................................................................14 2.1 Origem e evolução dos dicionários.................................................................................14 2.1.1 O surgimento de uma intenção descritiva da língua e o aparecimento dos dicionários de uso............................................................................................................17 2.2 Surgimento da lexicografia enquanto ciência lingüística.............................................19 2.3 Tipologias de dicionários.................................................................................................23 2.3.1 Critérios para a classificação dos dicionários de uso......................................................26 3 ESTABELECENDO OS CRITÉRIOS DE ANÁLISE....................................................30 3.1 Descrição versus prescrição............................................................................................30 3.1.1 A norma real e a norma ideal..........................................................................................33 3.1.2 Os dicionários de uso e a questão da norma...................................................................34 3.2 A quantificação do uso: uso quantitativamente marcado versus uso não quantitativamente marcado............................................................................................36 3.3 Normatividade inerente aos dicionários: o efeito normativo de dicionários não normativos.................................................................................................................38 3.4 Aspectos normativos inerentes aos dicionários.............................................................41 3.4.1 Ortografia........................................................................................................................41 3.4.2 Pronúncia........................................................................................................................42 3.4.3 Marcas de uso.................................................................................................................43 3.4.3.1 Marcas diastráticas e diafásicas...................................................................................44 3.4.3.2 Marcas diatécnicas.......................................................................................................45 3.4.3.3 Marcas diatópicas........................................................................................................45 3.4.3.4 Marcas diacrônicas......................................................................................................46 3.4.4 Indicação de uso sintático..............................................................................................47 4 ANÁLISE DOS DICIONÁRIOS.....................................................................................48 4.1 DUPB (2002)...................................................................................................................48 4.2 GDUEA (2001)...............................................................................................................56 4.3 DUEAE (2002)...............................................................................................................63 4.4 DUE (1999).....................................................................................................................70 5 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................76 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................79 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha pequena grande família: minha mãe Anilde, meu irmão Joel e meu pai Faustino (in memoriam) pelo apoio incondicional e pelo incentivo constante. Ao meu noivo Fabiano, por todo amor a mim dedicado e por estar sempre ao meu lado, mesmo quando a distância nos mantinha afastados. Aos amigos conquistados ao longo de cinco anos, pelo companheirismo e troca de experiências. Aos meus professores, que me ensinaram a teoria e a prática para exercer minha profissão da melhor maneira possível e que dedicaram seu tempo e sua atenção para que minha formação fosse também um aprendizado de vida. Ao meu professor orientador, Félix Valentín Bugueño Miranda, não apenas pelo essencial auxílio na realização deste trabalho, mas, sobretudo, por ser um exemplo de pessoa e de profissional, com quem aprendi muito mais do que Língua Espanhola e Lexicografia, aprendi lições que são para a vida inteira. A você, mestre, meu mais profundo agradecimento. 1 INTRODUÇÃO Os dicionários em geral se caracterizam por se proporem a realizar uma descrição do léxico de uma língua de forma sistemática. São inúmeros os tipos de dicionários existentes no mercado editorial de obras lexicográficas. Dentre os classificados como monolíngües existem, por exemplo, os dicionários de língua, os ideológicos, os etimológicos, os históricos, os especializados, seja em um assunto específico (gíria, regionalismos, arcaísmos, etc.), seja lidando apenas com termos restritos à determinada área do conhecimento (medicina, direito, informática, etc.). Fazendo referência especificamente aos dicionários de língua, Biderman (2001, p. 131) diz que os mais comumente consultados pelos usuários são o dicionário padrão e o dicionário geral de língua (como Au (1999), Hou (2001) e Mi (1998))1, ademais de modelos reduzidos de emprego muito freqüente para a aprendizagem da língua materna2. Ainda no âmbito da lexicografia monolíngüe, o século XX viu surgir um tipo de dicionário bastante peculiar, designado “dicionário de uso”, que também vem conquistando espaço entre os usuários e que se distingue dos dicionários gerais porque seu objetivo não é ser o inventário do conjunto léxico total de uma língua, mas sim apresentar a língua em uso por uma comunidade lingüística, abarcando somente as palavras efetivamente empregadas pelos falantes bem como a maneira como são empregadas, já que, à primeira vista, essas obras se caracterizam por ter um objetivo eminentemente descritivo. 1 A autora utiliza um critério quantitativo (o total de entradas) para estabelecer a diferença entre o dicionário padrão e o dicionário geral. Este não teria um número específico ou limitado de entradas, posto que é um dicionário de inventário aberto, ou seja, o lexicógrafo tem a liberdade de incluir todas as palavras que julgue pertinentes. O dicionário padrão, por outro lado, se caracteriza por possuir uma macroestrutura que varia entre 50 e 70.000 entradas léxicas. 2 Referimo-nos ao minidicionário, aos dicionários escolares e aos dicionários infantis. Para uma abordagem bastante minuciosa do dicionário escolar, consultar Damin (2005) e Farias (2006). Logo, a primeira coisa em que um usuário pensa quando se depara com uma obra dessa natureza, é que vai encontrar documentadas apenas as palavras de uso freqüente na língua. Chega-se então à conclusão de que o uso para esses dicionários é entendido unicamente como freqüência, como aquilo que é corriqueiro entre os falantes. No entanto, veremos que essa conclusão não é de todo verdadeira e há que se ter certa cautela ao lidar com esse tipo de obra lexicográfica, posto que o conceito de “uso” é empregado de forma bastante variada em lexicografia. OBJETIVO DO TRABALHO Considerando as diversas possibilidades de se entender o termo “uso”, temos como objetivo no presente trabalho analisar quatro dicionários monolíngües semasiológicos3 ditos “de uso”, um da língua portuguesa e três da língua espanhola a fim de averiguar qual noção de uso é abarcada por cada um deles. Os dicionários em questão são: Dicionário de usos do Português do Brasil – DUPB (2002) Gran Diccionario de uso del Español Actual – GDUEA (2001) Diccionario de uso del Español de América y España – DUEAE (2002) Diccionario de uso del Español – DUE (1999)4 Os critérios adotados para a escolha desse corpus de análise são apenas dois. Optamos por trabalhar com dicionários que: 1) tratassem unicamente das línguas portuguesa e espanhola, dado que são as que temos maior interesse devido à nossa formação acadêmica; 3 Entendemos por dicionário de orientação semasiológica aquele que parte do significante para o significado, oferecendo definições lexicográficas. 4 Acompanhando a tendência da metalexicografia européia, utilizaremos abreviaturas para todos os dicionários mencionados no presente trabalho (cf. HARTMANN, 2001, p. 11). Portanto, a partir de agora, sempre utilizaremos essas abreviaturas para nos referir às obras analisadas. Essa decisão valerá também para os demais dicionários citados no corpo do trabalho, que terão indicada apenas a abreviatura, de acordo com a lista apresentada nas páginas de apresentação desse trabalho. Salientamos ainda que a presença de uma letra e, maiúscula ou minúscula, agregada a uma abreviatura, indica que foi consultada a versão eletrônica do dicionário em questão. 2) trouxessem o termo “uso” em seu título, já que nossa intenção é analisar a que se refere tal termo. Nosso interesse por tal tema surgiu porque esse tipo específico de dicionário foi ainda pouco estudado - em comparação com outros tipos de obras - dado que seu surgimento é recente5. Na lexicografia brasileira, por exemplo, o dicionário de uso passou a ser difundido há pouco tempo: a primeira obra assim designada foi publicada no ano de 2002. Já na lexicografia espanhola, há uma tradição maior quanto à elaboração de dicionários que se dizem “de uso”. O primeiro dicionário que se enquadra nessas características surgiu em 1967, e nos primeiros anos do século XXI veio à luz mais duas obras dessa natureza, uma publicada no ano de 2001 e a outra em 2002. Referimo-nos, respectivamente, ao DUPB (2002), ao DUE (1999), ao GDUEA (2001) e ao DUEAE (2002), nosso corpus de análise. HIPÓTESES DE INVESTIGAÇÃO Partindo do princípio de que o termo “uso”, em lexicografia, tem um caráter polissêmico, chegamos a duas proposições que nos permitiram estabelecer três hipóteses que servirão de guia para nosso estudo. A primeira proposição se refere justamente à polissemia do conceito de uso e a segunda às conseqüências que essa problemática pode ocasionar (e geralmente ocasiona) quando da elaboração dos dicionários ditos “de uso”: 1) o conceito de uso é, em sua imanência, polissêmico; 2) os lexicógrafos não deixam claro a qual conceito de uso se referem quando utilizam tal termo para nomear suas obras lexicográficas. Tais proposições nos levaram a levantar as hipóteses de que o termo “uso” que aparece nesses dicionários pode ser entendido como: a) o conjunto léxico efetivamente utilizado por uma comunidade lingüística; 5 No capítulo 1 deste trabalho faremos algumas considerações sobre a origem e evolução dos dicionários, inclusive dos dicionários de uso. b) o emprego prescritivo/normativo da língua; c) o conjunto léxico efetivamente utilizado e o emprego prescritivo/normativo da língua. Geralmente, tanto os autores quanto os usuários dessa classe de dicionários, entendem o termo “uso” com a primeira significação, porém, é mais comum do que se possa imaginar os dicionários ditos “de uso” adotarem ambas noções (ainda que sua pretensão seja abarcar apenas a primeira). Isso prova que até mesmo os autores dessas obras têm dificuldades de estabelecer uma distinção entre uso enquanto descrição da língua, ou seja, o uso entendido como aquilo que os falantes realizam e entre o uso prescritivo, o uso entendido como a maneira “correta”6 de se utilizar a língua. Portanto, quando falamos em dicionário “de uso”, temos, na verdade, três possibilidades de entender esse uso: apenas como freqüência, apenas como prescrição ou como freqüência e prescrição. É com base nessas considerações que desenvolveremos o presente trabalho. ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO Para proceder ao estudo das obras lexicográficas que constituem nosso corpus de análise, estruturaremos este trabalho da seguinte maneira: No primeiro capítulo, faremos uma breve revisão da literatura sobre a lexicografia a fim de apresentar as mudanças pelas quais ela passou até o surgimento dos dicionários de uso e tentaremos estabelecer o lugar que cabe a tais dicionários com base na tipologia de obras lexicográficas proposta por Haensch (1982). Além disso, situaremos a lexicografia no âmbito dos 6 Entenda-se “correto” aqui como a norma padrão, aquela privilegiada pelas gramáticas normativas. Sabemos, no entanto, que em Lingüística não há um uso “correto” ou “incorreto” da língua; o que há são variedades lingüísticas empregadas pelos usuários de acordo com a situação de interlocução em que se encontram e que são condicionadas por diversos fatores: social, idade, faixa etária, nível de escolaridade. Portanto, para os lingüistas, não há uma questão de correção ou incorreção quanto ao uso da língua, mas sim uma questão de adequação ao contexto em que a língua será usada. Rabanales (1984) em um trabalho no qual faz duras críticas ao professor chileno Mario Banderas (que pretendia definir o correto e o incorreto no espanhol falado no Chile), sugere que a oposição absoluta entre as categorias correto e incorreto, estabelecidas sem levar-se em conta o contexto da produção lingüística, seja abandonada. O autor propõe a adoção de outras categorias de oposições, tais como: culto/inculto, formal/informal, genuíno/falso, necessário/desnecessário, exato/inexato, de forma que seja possível avaliar o que é correto ou incorreto de acordo com a situação comunicativa. estudos lingüísticos, tecendo algumas considerações acerca do fazer lexicográfico, sobretudo no que concerne às obras lexicográficas ditas “de uso”. No segundo capítulo, nos ocuparemos do estabelecimento dos critérios de análise que serão aplicados ao estudo do nosso corpus de investigação, apresentando algumas considerações teóricas sobre cada um. No terceiro e último capítulo partiremos à análise dos dicionários, aplicando os critérios previamente estabelecidos e detalhados. Além disso, sempre que possível, buscaremos contrastar os dados obtidos através da análise das quatro obras lexicográficas com informações de ordem quantitativa oriundas de pesquisas feitas no site de busca Google, o qual instituímos como corpus representativo das línguas portuguesa e espanhola. Por fim, apresentaremos as conclusões a que chegamos bem como as considerações finais deste trabalho. 2 BREVE REVISÃO DA LITERATURA Decidimos apresentar neste primeiro capítulo uma breve revisão da literatura acerca da prática lexicográfica porque acreditamos ser importante situar o surgimento dos dicionários com ideal normativo bem como o aparecimento de um ideal descritivo da língua, estando este, por sua vez, diretamente ligado à criação dos dicionários de uso, objeto de nosso estudo. Além disso, dado o recente surgimento desse tipo de obra, falta ainda uma taxonomia que permita dar-lhes uma classificação adequada. Por isso, após tratar das tipologias de dicionários de acordo com Haensch (1982), proporemos uma classificação que nos permita identificar o lugar que os dicionários de uso ocupam dentro das tipologias. 2.1 Origem e evolução dos dicionários A prática lexicográfica é uma atividade antiga. Fernández-Sevilla (1974 apud Haensch (1982, p. 105, tradução nossa7)), diz que As manifestações mais antigas da lexicografia parecem estar ligadas à recopilação e explicação de palavras que, devido à evolução lingüística e cultural, haviam deixado de ser utilizadas pela maioria dos falantes, se tornaram raras e, conseqüentemente, incompreensíveis para a maioria8. 7 Nos casos de citações em língua estrangeira que sejam apresentadas no corpo do trabalho, faremos sempre a tradução e disponibilizaremos o texto na língua original em nota de rodapé. 8 [Las manifestaciones más antiguas de la lexicografía parecen estar encaminadas a la recopilación y explicación de palabras que, debido a la evolución lingüística y cultural, habían dejado de utilizarse por la masa de los hablantes, se habían hecho raras y, en consecuencia, incomprensibles para la mayoría]. Portanto, as primeiras manifestações lexicográficas surgiram a partir da necessidade de interpretar e de explicar a significação de unidades léxicas9. Foi na Antigüidade Clássica que apareceram as primeiras obras que tinham como objetivo auxiliar a compreensão de palavras que constavam nas obras dos escritores clássicos, mas que já não faziam parte da língua falada, os chamados glossários10. Posteriormente, na Idade Média, época em que o latim vulgar começava a se distanciar do latim culto, surgiram os léxicos, cujo intento era justamente preservar a língua culta, além de servir para explicar palavras que os falantes já não compreendiam. Na época do Renascimento, surge a lexicografia bilíngüe, cujo objetivo consistia unicamente em relegitimar o latim que vinha sendo suplantado pelas línguas vernáculas11. Porém, à medida que aumentava a necessidade de uma maior integração entre distintos povos em função da expansão dos horizontes políticos, econômicos e culturais, tais obras foram se desenvolvendo e se difundindo cada vez mais: Quando o homem renascentista começou a ampliar os seus horizontes culturais abandonando de vez a sua reclusão medieval dentro de sua própria cultura, descobriu a necessidade de aprender línguas, evidentemente as línguas européias mais faladas na época. Além da consciência adquirida da distância entre o latim e as línguas vernáculas do seu tempo, o homem renascentista precisava de outros instrumentos de intercâmbio lingüístico num mundo que se abria para um novo diálogo e trocas entre as jovens nações européias. Assim, multiplicam-se os dicionários bilíngües na Espanha, na França, na Itália e em Portugal. (BIDERMAN, 1984, p. 2) Os dicionários monolíngües surgiram nos séculos XVI e XVII e nessa época eram chamados Thesaurus12. De acordo com Hensch (1997, p. 97), “essas obras, que podem também ser chamadas de tesoros de la lengua, registram todas as palavras ou outras unidades léxicas que se apresentam nos textos de certas pessoas (geralmente escritores, poetas, etc.) representativos da 9 Diversos autores se ocuparam de traçar um panorama histórico das obras de cunho lexicográfico. Podemos citar Haensch (1982, p. 104-126), Weinrich (1979) e Van Hoof (1994). Especificamente sobre a lexicografia em língua espanhola, há o trabalho de Ezquerra (1992). 10 São exemplos desse tipo de obra o De Linguae Latinae, que data do século I a.C. e foi elaborado por Varrão e o Appendix probi, que consiste em uma lista na qual são arroladas 227 palavras do latim culto e sua forma correspondente em latim vulgar com a recomendação de estas não serem empregadas: apicula non apicla, nurus non nura, calidus non caldus, etc. Pode-se dizer, portanto, que já essa obra tinha um caráter fortemente normativo. 11 O Vocabulário de Romance en Latín (1492), de Antonio de Nebrija é um exemplo de dicionário bilíngüe surgido nesse período na Espanha. Em Portugal, a primeira obra importante da lexicografia bilíngüe foi o Vocabulário Português-Latino (1721), do padre Rafael Bluteau (cf. Biderman (1984, p. 2)). 12 Surgidos nesse período temos o Thesaurus linguae latinae (1532), de Robert Estienne, o Thesaurus graecae linguae (1572), de Henri Estienne e o Tesoro de la lengua castellana o española (1611), de Sebastián de Covarrubias, entre outros. língua de uma coletividade humana em uma época determinada”13. Ainda nos séculos XVI e XVII aparecem os primeiros dicionários especializados, isto é, as primeiras obras que se ocupam de tratar de assuntos específicos (como os arcaísmos, as gírias, os ditos populares, etc.) e de determinadas áreas do conhecimento (como a medicina, a botânica, a filosofia, etc.); nessa mesma época surgem os dicionários de caráter normativo, que tinham como objetivo fixar o uso correto da língua baseando-se nas obras de seus autores mais representativos, por serem considerados os usuários da norma standard da língua14. Assim, o critério que definia o conjunto de unidades léxicas que fariam parte do dicionário era o bom uso da língua15. No século XVIII continuam difundindo-se os dicionários de caráter normativo/prescritivo, mas dito século é marcado pelo amplo desenvolvimento da lexicografia enciclopédica, que ao contrário da lexicografia lingüística, tratava do mundo extralingüístico, buscando apresentar o repertório geral do conhecimento humano16. A França foi o principal celeiro desse tipo de obra e foi através dos enciclopedistas franceses que nasceu o modelo de enciclopédia até hoje adotado: uma obra que se constitui como o conjunto completo dos conhecimentos humanos. No século XIX, graças ao surgimento da lingüística histórica e da lingüística comparada, os dicionários etimológicos e históricos ganham novo impulso17. Ainda nesse século, 13 [esas obras registran todas las palabras u otras unidades léxicas que se presentan en los textos de ciertas personas, (por lo general escritores, poetas, etc.) representativos de la lengua de una colectividad humana en una época determinada]. 14 A primeira obra dessa natureza foi o Vocabulário degli Academici della Crusca (1612). Os dicionários das Academias, como o Dictionnaire de L’Académie Française (1694) e o Diccionario de Autoridades publicado pela Real Academia Espanhola no ano de 1793 e reeditado nos séculos XVIII, XIX e XX, são os maiores exemplos de obras lexicográficas monolíngües de caráter normativo. 15 Essa atitude trouxe consigo conseqüências que perduram até os dias de hoje, posto que uma das principais funções atribuídas aos dicionários – se não pelo lexicógrafo, pelos usuários – é apresentar a língua considerada correta, ou seja, a norma padrão. Na verdade, existe em todos os falantes uma busca pelo modelo de bem falar e de bem escrever, isso que os gramáticos latinos chamavam ars recte loquendi recteque scribendi. 16 Por isso se diz que as enciclopédias são dicionários de coisas e não de palavras. Jackson (2002, p. 21), por exemplo, diz que “a dictionary is a reference book about words. It is a book about language. Its nearest cousin is the encyclopedia, but this is a book about things, people, places and ideas, a book about the “real word”, not about language”. 17 Já no século XVII eram elaborados dicionários cujo propósito era apresentar a origem das palavras. O próprio dicionário de Covarrubias, que data de 1611, tinha um caráter etimológico, pois “la tarea principal [del Tesoro de la lengua castellana o española] consistió en averiguar el origen de todas las voces” (cf. Ezquerra, 1992). Outro exemplo é o Etimologicon linguae anglicanae, de 1671, primeira obra etimológica de importância na Inglaterra. a lexicografia francesa amplia consideravelmente seu número de obras, apresentando uma maior preocupação com o aspecto qualitativo18. Por fim, no século XX, há a publicação de todos os tipos de dicionários existentes e o surgimento de novos tipos de obras (como o dicionário de uso). Há também um melhor desenvolvimento da lexicografia dialetal principalmente em função do avanço dos estudos de dialetologia e geografia lingüísticas que dão novo impulso ao surgimento desse tipo de obra. Mais precisamente na segunda metade do século XX, graças aos avanços da lingüística, a produção lexicográfica passa a preocupar-se mais com a descrição, ou seja, o ideal purista até então vigente cede espaço ao critério do uso, seja ele o padrão culto ou não, de modo que surgem dicionários cuja intenção é representar a língua com base no uso efetivo que dela é feito pelos falantes, os dicionários de uso (v. 1.1.1). Atualmente, a produção de dicionários é vasta, assim como a tipologia dessas obras, que varia geralmente em função do grande público “consumidor” que há e que está sempre em busca de informações sobre sua própria língua, sobre línguas estrangeiras e sobre o universo em geral (nesse caso, têm vez as enciclopédias)19. 2.1.1 O surgimento de uma intenção descritiva da língua e o aparecimento dos dicionários de uso A principal responsável pelo surgimento e desenvolvimento de uma intenção descritiva da língua foi a lingüística estrutural. Saussure (2004, p. 13) diz que algumas das tarefas 18 São desse período os dicionários Landais (1835), Littré (1872) e Larousse (1866-1876), entre inúmeros outros. Segundo Biderman (1984, p. 2), o Littré pode ser considerado uma obra-prima da lexicografia francesa, dado seu caráter inovador. Já o Larousse impressiona por suas dimensões: 17 volumes. 19 A questão do público-alvo dos dicionários é um tema ainda pouco abordado em lexicografia. Não há estudos consistentes que sirvam para fundamentar a elaboração de dicionários a partir das necessidades do usuário a que se destinam. Muitos dicionários, por exemplo, dizem que se destinam a estudantes de Ensino Fundamental, Médio ou Superior, mas não adotam critérios para sua elaboração com base nas necessidades lingüísticas – geralmente bastante específicas – desses grupos de usuários. Na verdade, o público-alvo (quando lembrado!) é o último aspecto a ser levado em conta pelo lexicógrafo quando deveria ocorrer o contrário, pois, segundo Hernández (1996, p. 25 apud Damim, 2005, p. 52), “(...) se producirá una notable mejora cuando la lexicografía reconozca, de una vez por todas, la necesidad de adoptar en sus investigaciones una perspectiva orientada al usuario; plantearse si efectivamente existe relación entre los objetivos que se propone el elaborador del diccionario y el verdadero aprovechamiento del usuario, pues con mucha frecuencia se observa un elevado número de discordancias producidas por el hecho comprobado de que los diccionarios se elaboran, en el mejor de los casos, para unos destinatarios ideales que no se corresponden con las diversas realidades claramente diferenciadas de virtuales usuários que son los hablantes de una lengua”. Nesse âmbito, se destacam os já citados trabalhos de Damim (2005) e Farias (2006) porque desenvolvem um perfil de usuário para o dicionário escolar, de modo que as necessidades específicas desse público servem de ponto de partida para a definição das informações que deve conter esse tipo de obra. da lingüística são: “fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder abranger (...) e procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história”. Logo, os estruturalistas se ocupavam do estudo da língua em sua imanência, ou seja, levando em conta apenas a estrutura interna do sistema lingüístico e seu objetivo maior era observar e descrever as mudanças que ocorriam na estrutura da língua bem como buscar as regularidades da mudança lingüística. Graças aos seus objetivos bastante delimitados, a lingüística estrutural contribuiu com a lexicografia em pelo menos dois aspectos (cf. Haensch (1982, p. 125)): 1) deu maior importância ao estudo da língua contemporânea, pois até a metade do século XX, os estudos estavam voltados para a lingüística histórica. Dessa forma, na esfera da lexicografia, ganha maior força a elaboração de dicionários descritivos; 3) as idéias inovadoras da lingüística atenuaram o ideal excessivamente purista/normativo vigente na lexicografia tradicional. Saussure (2004, p.13) diz que A matéria da Lingüística é constituída inicialmente de todas as manifestações da linguagem humana, quer se trate de povos selvagens ou de nações civilizadas, de épocas arcaicas, clássicas ou de decadência, considerando-se em cada período não só a língua correta e a “bela linguagem”, mas todas as formas de expressão. Ocorre então um fortalecimento dos estudos sincrônicos da linguagem e a noção de “bom uso”20 da língua vai passar a coexistir com outras noções advindas da lingüística, posto que esta não queria (e não quer) julgar o emprego da língua como correto ou incorreto, mas sim descrever o que é de fato realizado pelos falantes de uma comunidade idiomática21. Baseados nessas mudanças fundamentais para o desenvolvimento da lexicografia, em meados do século XX, aparecem os primeiros dicionários de uso tal qual conhecemos hoje, ou seja, que têm por objetivo registrar o léxico empregado pelos falantes. O ideal normativo que 20 O “bom uso” aqui posto corresponde ao que os gramáticos latinos chamavam de ars recte loquendi recteque scribendi e o que os franceses entendiam como le bon usage. 21 Trask (2004, s.v. descritivismo) explica que numa abordagem descritivista, o lingüista procura descrever os fatos do comportamento lingüístico exatamente como são encontrados, abstendo-se de emitir juízos de valor sobre o modo como se expressam os falantes nativos da língua. regia a produção lexicográfica até então cede espaço a um ideal descritivo, isto é, o lexicógrafo busca, através da compilação de unidades representativas do léxico empregado realmente, descrever a língua em uso em um determinado período de tempo sem nenhum objetivo purista aparente. Assim, diferentemente do que ocorria nos dicionários de caráter normativo, nesses dicionários O dizer “correto” não está mais vinculado a um padrão modelar de expressão, mas sim à aceitabilidade do funcionamento de um idioma, pois é resultado de prática concreta, de utilização recorrente de unidades lexicais em suas formas e sentidos por uma comunidade lingüística, e não somente por uma classe intelectual. Dito de outra forma, nesse tipo de dicionário, não se trata mais de registrar o “melhor” da língua, mas a língua “concreta”. (KRIEGER (2003, p. 75)) Portanto, pode-se dizer que a lingüística exerceu grande influência sobre a lexicografia, dotando-a de princípios que contribuíram para seu desenvolvimento prático, mas principalmente teórico, como veremos mais detalhadamente no subcapítulo a seguir. 2.2 Surgimento da lexicografia enquanto ciência lingüística A palavra lexicografia vem do grego lexikon, “léxico” e graphein, “descrição”, ou seja, é a ciência que se ocupa da descrição do conjunto de palavras que conformam uma língua através da elaboração de dicionários. Pelo menos até meados do século XX essa era a única significação de tal palavra22, já que não havia nenhum tipo de arcabouço teórico que desse sustentação ao fazer lexicográfico23. A falta de formulação de uma teoria lexical que desse suporte à elaboração de dicionários serviu, por muito tempo, de argumento aos lingüistas para menosprezar a prática lexicográfica. Segundo Lara (2004, p. 89), isso é em parte culpa dos próprios lexicógrafos, pois “a maior parte [deles] tampouco se ocupou de reivindicar sua prática como disciplina lingüística, 22 A Real Academia Española, por exemplo, acrescentou a acepção “parte de la lingüística que se ocupa de los principios teóricos en que se basa la composición de diccionarios” ao verbete lexicografia somente na edição de 1984 do DRAE. Essa acepção pode ser encontrada também em HouE (2001), GDUEA (2001) e DUEAE (2002), mas não em Mi (1998), AuE (1999), DUE (1999) e DUPB (2002). 23 Há casos de dicionários anteriores ao século XX que tiveram algumas preocupações de cunho teórico, como o Diccionario de Autoridades (1724), que estabeleceu como critério para conferir ‘autoridade’ a todas as palavras que o compunham, apresentar citações de diversos autores clássicos. e muito menos de considerar sua obra, o dicionário, como um fenômeno verbal digno de teorização”24. Ainda segundo Lara (2004, p. 95), “a lexicografia nasceu como uma necessidade social e informativa muito tempo antes de que a lingüística se constituísse como ciência”25. Como já foi dito, os dicionários existem desde a Antigüidade Clássica e eram fruto de um trabalho compilatório de filólogos ou gramáticos preocupados com a compreensão de textos literários de épocas anteriores ou com a correção de erros lingüísticos. Essa organização de repertórios de palavras não obedecia a nenhum critério teórico-metodológico que fundamentasse as escolhas do lexicógrafo de acordo com os propósitos da obra a ser produzida, ou seja, não eram postulados princípios que regessem a produção lexicográfica. Nessa época, a lexicografia tinha apenas uma face prática; ela somente adquiriu uma face teórica na segunda metade do século XX, mais precisamente a partir da década de 50, vários anos após o estabelecimento da Lingüística. Os lexicógrafos começaram a perceber que a elaboração de dicionários deveria estar baseada em uma teoria lingüística, já que a prática lexicográfica ganha em qualidade ao se orientar por constructos teóricos, ou seja, por uma teoria que lhe dê sustentação26. Alguns dos primeiros estudos lexicográficos voltados para a teoria podem ser encontrados em Casares (1950) e em Zgusta (1971). É justamente com esses dois autores que começa a ganhar força a idéia de que havia necessidade de se estabelecer uma teoria que amparasse o fazer lexicográfico, isto é, a prática de elaborar dicionários. Assim, quando a lexicografia passou a ser considerada um ramo da lingüística aplicada, houve um considerável aumento de estudiosos que passaram a se dedicar mais ao estudo do que à elaboração de dicionários até chegar a um ponto em que a lexicografia teórica superou a lexicografia prática (cf. Seco (2003, p. 16)). A verdade é que talvez seja menos difícil discorrer sobre obras já existentes apontando falhas e propondo soluções para a sua melhoria do que compor um dicionário. Porém, é certo que ambas atividades exigem um grande esforço e 24 [la mayor parte de los lexicógrafos tampoco se ha ocupado de reinvindicar su práctica como una disciplina lingüística, y mucho menos de considerar su obra, el diccionario, como un fenómeno lingüístio verbal digno de teorización]. 25 [la lexicografía nació como una necesidad social e informativa mucho tiempo antes de que la lingüística se constituyera como ciencia]. 26 A essa face teórica da lexicografia deu-se o nome de metalexicografia, que pode ser definida como uma teoria que se ocupa dos princípios que embasam a produção e a análise das obras lexicográficas enquanto objetos lingüísticos (cf. Damin (2005, p. 26)). Para Dolores Fernández (2003 apud Pacheco (2005, p. 18)), a metalexicografia é um componente teórico da lexicografia que se ocupa dos princípios metodológicos que regem a compilação de dicionários e do estudo científico dos dicionários tanto do ponto de vista descritivo como do ponto de vista histórico. que, em última análise, uma depende da outra para o bom desenvolvimento da ciência lexicográfica. Estudos acerca de questões macroestruturais27 e microestruturais28 (como a seleção lexical e a construção de boas paráfrases definidoras, por exemplo) bem como considerações no tocante ao público-alvo dos dicionários possibilitaram e vêm possibilitando a elaboração de obras cada vez mais consistentes e coerentes. Um exemplo de dicionário baseado totalmente em uma teoria lexicográfica que forneceu critérios para a tomada de decisões com relação a sua elaboração tanto no aspecto macro- quanto no microestrutural é DEA (1999)29. Esse dicionário é fruto de quase trinta anos de estudos em lexicografia de seu idealizador, Manuel Seco, que estabeleceu como metodologia três pontos principais (cf. Seco, 2003, p. 424ss.): a orientação descritiva, uma definição precisa de sincronia para a descrição do léxico contemporâneo e a criação de um corpus para o estabelecimento do léxico a ser descrito. Apresentaremos aqui apenas alguns dos critérios utilizados por Seco para a elaboração de DEA (1999). No âmbito macroestrutural, o autor define o que estava sendo entendido por “espanhol atual”: a língua empregada em um período de 20 anos, de 1955 a 197530. Também estabelece que seria abarcado, por questões técnicas e de tempo, apenas o espanhol da Espanha, mais precisamente a língua comum em seus diversos níveis sócio-culturais e em seus distintos registros. No âmbito microestrutural, o lexicógrafo determina, entre outras coisas, que a definição deve descrever tanto o valor semântico quanto o valor sintático das unidades léxicas. Assim, há informações minuciosas sobre ambos aspectos. Quanto à definição propriamente dita, o autor se vale de dois tipos: a definição sinonímica (em metalinguagem de conteúdo) e a definição explicativa (em metalinguagem de signo). Os conceitos de metalinguagem de conteúdo e de metalinguagem de signo foram criados pelo próprio Seco (cf. Seco (2003, capítulo 1)), que 27 Para Haensch (1982, p. 452-457), a questão mais relevante com relação à macroestrutura de um dicionário é a organização dos materiais léxicos de acordo com uma orientação semasiológica ou onomasiológica. Nessa mesma linha, Hartmann (2001) define a macroestrutura como “o conjunto ordenado de todos os lemas” [the ordered set of all lemmata (headwords)]. Em suma, pode-se considerar como referentes ao âmbito macroestrutural todas as questões relacionadas com a seleção e a ordenação do material léxico. 28 De acordo com Haensch (1982, p. 461-463) e Hartmann (2001, p. 64-65), a microestrutura pode ser definida como o conjunto ordenado de todas as informações dentro do artigo léxico. Contidas na microestrutura temos as informações sobre a categoria gramatical, a separação silábica, a pronúncia, a etimologia, o conteúdo semântico da unidade léxica, etc. 29 Diccionario del español actual (1999). 30 Devido aos atrasos para o término da obra, o período de abrangência do critério de sincronia se estendeu até 1993, de modo que foi analisada a língua empregada em um período de 38 anos, em vez de 20, como previsto inicialmente. por muito tempo se ocupou da teoria lexicográfica, sobretudo no concernente à definição. Para esse autor, a função primeira da paráfrase definidora é explicar o que a palavra-entrada significa (metalinguagem de conteúdo) e não o que ela é, como e para que se emprega (metalinguagem de signo), de modo que a definição propriamente dita é a que se constrói em metalinguagem de conteúdo. A esta Seco chama “definição própria”31. Já a definição por metalinguagem de signo ele denomina “definição imprópria”32, posto que ela não se constitui propriamente uma definição, mas sim uma explicação da palavra-entrada. Ademais, DEA (1999) apresenta uma grande preocupação com relação ao contorno da definição, sendo entendido como contorno “aquele elemento da definição que na realidade não é parte substancial dela, mas sim do contexto no qual se usa a palavra”33 (cf. Seco (2003, p. 436)). Os aspectos teóricos acima arrolados foram publicados entre os anos de 1978 e 1979 e constituem apenas uma mostra da base teórica a partir da qual DEA (1999) foi elaborado34. Entretanto, essa não é a realidade da maioria das produções lexicográficas; o que se observa é que, apesar do avanço dos estudos sobre o fazer dicionarístico, são poucas as obras que estão totalmente baseadas em uma teoria que dê sustento a sua elaboração. Algumas estabelecem critérios para a construção das definições, outras para a seleção macroestrutural, mas poucos estabelecem critérios para todos os aspectos que conformam um dicionário. Dessa forma, as obras lexicográficas perdem em consistência e coerência, e, portanto, em qualidade. No tocante aos dicionários de uso, pode-se dizer que eles estabelecem pelo menos dois critérios para a seleção macroestrutural: fazem um recorte sincrônico da língua, ou seja, se ocupam das unidades léxicas utilizadas em um período de tempo bem delimitado; e se valem do critério da freqüência para decidir quais unidades léxicas deverão fazer parte da macroestrutura. Porém, ainda que sejam estabelecidos esses critérios, veremos que há grandes falhas nos dicionários analisados, de modo que não basta apenas ter um critério, é preciso avaliar cuidadosamente o material que deverá ser incluído no dicionário. 31 [definición propia]. [definición impropia]. 33 [aquel elemento de la definición que en realidad no es parte sustancial de ella, pero sí del contexto en que se usa la palabra definida]. 34 Isso prova que Seco se ocupou primeiramente da formulação de todo um aparato teórico que posteriormente serviu de suporte para a elaboração de DEA (1999). Para maiores esclarecimentos acerca de tais teorias, ver Seco (2003), especificamente os capítulos 1 e 2. 32 A importância do estabelecimento de uma teoria lexicográfica, então, foi de fundamental importância, pois ela dá sustentação à prática e torna o processo de elaboração de dicionários uma atividade realmente científica. A teoria também forneceu subsídios para o desenvolvimento de uma crítica lexicográfica consistente e embasada em critérios que possibilitam uma análise objetiva dos dicionários e não apenas considerações sobre aspectos muitas vezes secundários presentes nas obras lexicográficas (v. Seco (2003, p. 91-105)). 2.3 Tipologias de dicionários São inúmeros os critérios segundo os quais se pode classificar uma obra lexicográfica. Baseando-nos nas tipologias propostas por Haensch (1982)35 buscaremos elaborar uma taxonomia que nos permita identificar qual é o lugar que cabe aos dicionários de uso dentro das tipologias. O citado autor propõe três critérios para a classificação dos dicionários: lingüísticos, histórico-culturais e práticos. Essa atitude se deve ao fato de que para Haensch (1982, p. 96), “tanto os critérios lingüísticos quanto os fatores históricos e culturais influenciaram no nascimento e desenvolvimento dos distintos tipos de obras lexicográficas”36. Então, para o autor, segundo os critérios lingüísticos os dicionários podem ser classificados de acordo com os distintos modos de ser da língua e dos diferentes aspectos da descrição lingüística, de modo que as obras lexicográficas podem ser nomeadas como glossários, thesauri (tesoros), atlas léxicos, dicionário monolíngüe, bilíngüe, normativo, de uso, de regionalismos, de gírias, etc. Segundo os critérios histórico-culturais, os dicionários podem ser classificados de acordo com a necessidade que motivou sua criação. Para Haensch (1982), a influência da evolução sócio-cultural ao longo dos séculos tem maior força do que os critérios lingüísticos para denominar os diferentes tipos de dicionários. Então, sob essa óptica, o autor faz o percurso dos dicionários, desde seu surgimento até os dias atuais (semelhante ao que fizemos, resumidamente, no capítulo 1 do presente trabalho). 35 Muitos autores propuseram critérios para a classificação dos dicionários, entre eles Hausmann (1985), Hartmann, James (2001) e Zgusta (1971). Optamos pela taxonomia proposta por Haensch por ser, segundo nossa visão, a mais desenvolvida e, portanto, pode ser aplicada à classificação de um extenso número de obras, entre elas, os dicionários de uso. 36 [han sido no solo critérios lingüísticos, sino también factores históricos y culturales los que han influido en el nacimiento y desarrollo de los distintos tipos de obras lexicográficas]. Por fim, há a classificação dos dicionários sob a perspectiva dos critérios práticos. Haensch (1982, p. 126) diz que: Para de fato distinguir os diferentes tipos de obras lexicográficas, o mais indicado será [...] se perguntar, de modo pragmático, que características eles reúnem, aplicando uma série de critérios de ordem prática em cada caso individual, em vez de lhes dar um nome estereotipado, incapaz de refletir as distintas características que cada obra reúne em si37. Portanto, para o autor, o mais indicado é utilizar os critérios práticos para proceder a uma classificação das obras lexicográficas, sendo os critérios por ele estabelecidos: 1) formato e extensão Esses critérios não são suficientes para classificar uma obra lexicográfica, posto que são de caráter impressionista, ou seja, que estão baseados mais em impressões muitas vezes individuais do que em dados objetivos. Diversos aspectos devem ser levados em conta para se classificar uma obra a partir desses critérios: número de volumes, número de entradas que a compõe e se a estas estão somadas as subentradas, as colocações, etc. 2) caráter lingüístico, enciclopédico ou misto Segundo esse critério, os dicionários podem ser divididos entre os que possuem ou não um caráter lingüístico. Caso se ocupem exclusivamente das palavras, são considerados dicionários de caráter lingüístico e caso se ocupem das “coisas” (do universo extralingüístico), são classificados como de caráter enciclopédico. Os de caráter misto se caracterizam por apresentarem de forma separada uma parte dedicada à língua e outra voltada às informações de cunho enciclopédico. 3) sistema lingüístico em que se baseia o dicionário Refere-se ao fato de as obras lexicográficas poderem estar fundamentadas em um sistema de autor ou um sistema de corpus, ou seja, se a descrição semântica está baseada no 37 [Para distinguir de hecho los diferentes tipos de obras lexicográficas, lo más indicado será [...] preguntarse, de modo pragmático, qué características reúnen éstos, aplicando una serie de critérios de orden práctico en cada caso individual, en vez de darles un nombre estereotipado, incapaz de reflejar las distintas características que cada obra reúne en sí]. sistema lingüístico individual do autor ou se ela depende da informação reunida através do corpus. 4) número de línguas Refere-se basicamente à questão de o dicionário levar em conta apenas uma língua – monolíngüe – ou abarcar mais de uma língua – bilíngüe ou multilíngüe. 5) seleção do léxico registrado 5.1) vocabulário geral x parcial Se o dicionário se ocupa de representar o léxico sem nenhuma restrição, estamos diante de uma obra de caráter geral. Caso contrário, se há uma seleção do vocabulário de que se ocupam, nos referimos a dicionários parciais. Essa seleção pode limitar a seleção do léxico no âmbito diatópico, diastrático, diafásico, diatécnico, entre outros. 5.2) codificação exaustiva x seletiva Haensch (1982, p. 153) diz que tanto os dicionários gerais quanto os parciais podem ser seletivos. Para os gerais, é mais difícil que sejam exaustivos, já que o conjunto léxico de uma língua é muito grande, logo, difícil de ser abarcado em sua totalidade. Além disso, ele estaria desde sua elaboração defasado, porque à língua estão sempre se incorporando novas palavras ou novas significações. Já para os seletivos, é mais fácil conseguir abarcar a totalidade léxica da área pretendida, como a Filosofia, por exemplo. 5.3) critério cronológico De acordo com esse critério, os dicionários se dividem em sincrônicos e diacrônicos. 5.4) caráter prescritivo x descritivo Os dicionários de caráter prescritivo são os que têm efeito normativo e um ideal purista, enquanto que os de caráter descritivo, não têm uma intenção purista e se preocupam em descrever o emprego que os falantes efetivamente fazem da língua na sua atividade lingüística. 6) ordenação do material léxico Segundo esse critério, os dicionários dividem-se em semasiológicos ou onomasiológicos. Estes organizam sua estrutura por significado enquanto aqueles apresentam uma ordenação do léxico por significantes. 7) finalidade específica do dicionário Refere-se àquilo a que o dicionário se destina, ou seja, se é para aprendizagem, se apresenta definições, se é etimológico, histórico, etc. 8) dicionário tradicional x eletrônico Distinção entre os dicionários que se apresentam impressos ou os acessíveis através de computador. Apresentados, então, os oito critérios propostos por Haensch (1982), escolheremos aqueles passíveis de serem empregados para a caracterização dos dicionários de uso e que nos permitam proceder à identificação do lugar que ocupa nas tipologias essa categoria específica de obra lexicográfica. 2.3.1 Critérios para a classificação dos dicionários de uso Dos oito critérios propostos por Haensch (1982), acreditamos que apenas quatro são realmente funcionais para a caracterização dos chamados dicionários de uso, quais sejam: o caráter lingüístico/enciclopédico/misto, o sistema lingüístico em que se baseia, os princípios para a seleção do léxico (geral/parcial, exaustivo/seletivo, sincrônico/diacrônico, prescritivo/descritivo) e a finalidade do dicionário, ou seja, a que e/ou a quem se destina. Os demais critérios foram preteridos porque não nos parecem ter grande relevância para a diferenciação dos dicionários em questão de outros tipos de obras. O critério do formato e extensão do dicionário não permite o estabelecimento de uma oposição entre os demais tipos de dicionários porque tais critérios correspondem, na maioria das vezes, a características observadas e mediadas por um indivíduo, de modo que têm um caráter fortemente impressionista. Além disso, não há ainda um consenso entre quantas entradas um dicionário deve conter para ser considerado, por exemplo, um dicionário geral de língua38 e menos ainda para os dicionários de uso, que têm (pelo menos em teoria) especificações bastante rígidas quanto à seleção das entradas léxicas. No tocante ao número de línguas, pode-se dizer que tampouco é um critério de caráter diferenciador porque se aplica mais à classificação de dicionários bilíngües, visto que os dicionários semasiológicos em geral são monolíngües. O critério de ordenação dos materiais léxicos também é irrelevante, posto que nos dicionários monolíngües, normalmente, o material está disposto em ordem alfabética e partindo do significante para o significado, sendo este apresentado por meio de uma paráfrase definidora. Trata-se, portanto, de uma ordenação de caráter semasiológico. E por fim, no que concerne à apresentação do dicionário (formato tradicional ou eletrônico), acreditamos que não há como considerar tal critério como distintivo entre obras lexicográficas, dado que inúmeros dicionários se apresentam em ambos formatos sem que exista, no entanto, uma diferença qualitativa entre eles, ou seja, o que há é apenas dois tipos diferentes de suporte (como exemplo, podemos citar o AuE (1999), o HouE (2001) e o DUEe (2001)). Portanto, levando-se em conta a taxonomia proposta por Haensch (1982) e as decisões por nós tomadas quanto aos critérios relevantes para a caracterização dos dicionários de uso, definimos que eles podem ser classificados como dicionários: 1) de caráter lingüístico, pois se ocupam da definição das palavras (universo exclusivamente lingüístico) e não das “coisas” (universo extralingüístico) (v. nota 16); 2) baseados tanto em um sistema de corpus como em um sistema de autor. Especificamente nesse caso, acreditamos não ser possível estabelecer um dos critérios como único porque ambos estarão sempre presentes quando da elaboração dos dicionários de uso. Fato é que, atualmente, em função das facilidades que proporciona o uso de computadores, a elaboração de dicionários (sobretudo os que se dizem “de uso” ou contemporâneos) tem sido bastante favorecida pela utilização de corpus, mas ainda assim permanece a contribuição do autor para a realização de tarefas de sua inteira alçada, como a construção das definições, por exemplo. 38 Para Biderman (2001), por exemplo, um dicionário geral pode conter um número ilimitado de entradas, enquanto que para Rey-Debove (1970) um dicionário geral pode conter 200, 100 ou 50 mil entradas. De acordo com Bugueño (2002, 2003), o critério quantitativo não é suficiente para estabelecer uma tipologia de obras lexicográficas. Dessa forma, pode-se dizer que a classificação proposta por Biderman (2001) segundo o número de entradas é insatisfatória. Além disso, os números apresentados pela autora para o português são baseados em critérios estatísticos aplicados ao inglês e ao francês, o que compromete ainda mais sua proposta de classificação de obras lexicográficas, posto que o conjunto de unidades léxicas que conformam uma determinada língua varia com relação a outras línguas, de modo que um critério estabelecido com base em um sistema lingüístico não pode ser aplicado indiscriminadamente a diversas outras línguas. Afinal, é o lexicógrafo quem decide o que fazer com os materiais que tem à disposição a partir do corpus. É como disse Seco (2003, p. 86): Uma vez postos ao seu alcance todos esses preciosos materiais, ainda resta ao lexicógrafo a parte mais difícil, delicada e penosa, que somente o cérebro humano tem a capacidade de realizar: a organização inteligente de todas essas peças, dotando-as de sentido, para compor o dicionário39. Quanto à seleção do léxico, os dicionários de uso podem ser classificados como: 3) de vocabulário geral seletivo, já que pretendem abarcar o léxico efetivamente empregado por uma comunidade lingüística. Para Dubois (1978, s.v. uso), o dicionário de uso “é um dicionário cuja nomenclatura corresponde ao léxico comum do conjunto dos grupos sociais que constituem a comunidade lingüística” e para Haensch (1982, p. 156), o dicionário de uso “seleciona as palavras mais correntes, evitando a inclusão de termos técnicos e de regionalismos, para, dessa forma, poder ampliar o desenvolvimento do vocabulário mais corriqueiro quanto ao seu uso em um contexto (...)”40; 4) sincrônicos, pois tratam da língua usada em um período de tempo da contemporaneidade bem delimitado; 5) descritivos, porque seu objetivo maior é descrever a língua em uso pelos falantes em um determinado recorte temporal; Esses três últimos critérios, sobretudo o terceiro, conferem aos dicionários de uso características exclusivas, e por isso, acreditamos que são os que mais cumprem com a função de diferenciação entre esse tipo de obra e as demais categorias de dicionários. 6) e quanto à finalidade, os dicionários de uso não têm um público específico e bem delimitado (como é o caso dos dicionários escolares). Pode-se dizer que eles se destinam aos falantes nativos da língua em geral e têm como intuito dar-lhes informações quanto ao real uso que é feito da língua, bem como outras informações necessárias tanto para a decodificação quanto para a codificação, isto é, tanto para a compreensão do sistema lingüístico quanto para a produção na língua (seja oral ou escrita). Alguns ainda se destinam a falantes não nativos e por isso 39 [Una vez puestos a su alcance todos esos preciosos materiales, todavía le queda al lexicógrafo la parte más difícil, delicada y penosa, que solo el cerebro humano tiene capacidad de llevar a término: la organización inteligente de todas esas piezas, dotándolas creadoramente de sentido, para componer el diccionario]. 40 [selecciona las palabras más corrientes, prescindiendo de términos técnicos y regionalismos, para así poder ampliar el desarrollo del vocabulário más corriente en cuanto a su uso en un contexto (...)]. apresentam, além das informações acima arroladas, outras como a transcrição fonética e a separação silábica (é o caso de GDUEA (2001), que será analisado no capítulo 3 deste trabalho). Após essa breve contextualização do tipo de dicionário com o qual estamos tratando, bem como de suas características mais relevantes, que lhe conferem um lugar específico dentro das tipologias de obras lexicográficas, passaremos ao capítulo dois, no qual apresentaremos os critérios segundo os quais nosso corpus será analisado. 3 ESTABELECENDO OS CRITÉRIOS DE ANÁLISE41 A metodologia empregada para a realização de nosso estudo consiste em analisar e avaliar os quatro dicionários estabelecidos como nosso corpus a partir de três critérios principais: a) descrição (norma real) versus prescrição (norma ideal); b) quantificação do uso: uso quantitativamente marcado versus uso não quantitativamente marcado; c) normatividade inerente aos dicionários. Esses critérios principais serão subdivididos em outros menores, mas de fundamental relevância para o entendimento dos motivos que nos levaram à escolha de tais critérios como norteadores de nossa análise. Faremos, primeiramente, algumas considerações teóricas acerca desses critérios e subcritérios para, em seguida, aplicá-los à análise dos dicionários, no terceiro e último capítulo deste trabalho. 3.1 Descrição versus prescrição Esse critério tem função essencial para o desenvolvimento deste trabalho, pois baseados nas considerações teóricas acerca da descrição e da prescrição que seguem, estabeleceremos a que conceito de uso os dicionários analisados se referem: uso enquanto descrição da língua ou enquanto prescrição. 41 Os capítulos 2 e 3 deste trabalho são a versão expandida de uma comunicação apresentada no XVIII Salão de Iniciação Científica da UFRGS em outubro de 2006 (Zanatta, 2006b). Gostaríamos de salientar que foram ampliados os critérios que embasam a análise dos dicionários que conformam nosso corpus de estudo bem como o próprio corpus, ao qual acrescentamos uma nova obra, o DUEAE (2002). Todo dicionário de uso que entende esse “uso” apenas como freqüência tem, em princípio, um caráter unicamente descritivo, isto é, apenas descreve a língua usada pelos falantes em um determinado intervalo de tempo e em um determinado espaço, de forma que são registradas as estruturas da língua com uma primordial finalidade informativa e sem preocupação em estabelecer o que é certo ou errado. Assim, em lexicografia, a descrição poderia ser definida como o registro e apresentação do aspecto léxico de um sistema lingüístico. Por outro lado, o dicionário que entende o uso como prescrição se caracteriza por apresentar um modelo de língua que visa o “bom uso” quando da produção lingüística. Logo, a prescrição pode ser definida como um sistema de instruções que definem o que deve ser escolhido entre os usos de uma língua para um certo padrão estético ou sócio-cultural. Nesses termos, a prescrição se confunde com o “bom uso” da língua e tem uma finalidade pedagógica, já que recomenda certos usos como modelos a serem seguidos pelos falantes em determinadas circunstâncias comunicativas. O caráter prescritivo de determinados materiais, como as gramáticas e os dicionários, estabelece uma única forma como correta, a chamada norma padrão42 (normalmente empregada pelos falantes de classes sociais mais elevadas e com maior grau de instrução) que é tomada como modelo para a correção lingüística e à qual as demais variedades da língua, comumente tidas como desvios com relação a essa norma padrão, devem ajustar-se. Esse padrão é estabelecido a partir de determinados indivíduos, geralmente escritores que produziram obras literárias de grande destaque43, ou grupos de indivíduos, normalmente os que pertencem às classes sociais mais altas, pois são considerados aqueles que fazem “bom uso” da língua. São os 42 É comum encontrarmos tanto a expressão “norma culta” quanto a expressão “norma padrão” para designar o ideal de língua. No entanto, alguns autores estabelecem uma diferença entre essas duas expressões. Faraco (2002) considera a expressão “norma culta” para designar a norma lingüística praticada e norma padrão para norma estabilizada. Luchesi (2002, p. 65) emprega as mesmas designações de Faraco (2002) e afirma que a norma culta contém as formas efetivamente usadas pelos segmentos plenamente escolarizados enquanto que a norma padrão é uma imposição que reúne todas as formas prescritas pelas gramáticas normativas. Bagno (2002, p. 179), por sua vez, fala de “variedades cultas” e de “norma padrão”, definindo esta como um “ideal abstrato de língua ‘certa’ da tradição normativo-prescritiva”. Seguindo as considerações de tais autores, sempre que neste trabalho apareça a expressão “norma padrão”, estaremos nos referindo à língua prescrita pelos manuais normativos. Porém, utilizaremos majoritariamente as nomenclaturas “norma real” para referir-nos àquilo que de fato é realizado na língua e “norma ideal” para aquilo que deveria ser realizado (esses conceitos serão melhor desenvolvidos na seção 2.1.1). 43 Como exemplo podemos citar Camões, que no século XVI, época em que se estava fixando a língua portuguesa, foi tomado como ideal dessa língua, ficando estabelecido que a forma como Camões a utilizava era o padrão a ser seguido. gramáticos e lexicógrafos, que não raro recebem o apoio de academias da língua44, que sistematizam esses usos transformando-os em regras que são apresentadas à comunidade lingüística como padrão a ser seguido, a fim de que a língua seja usada de forma “correta”. No caso do espanhol, por exemplo, por muito tempo se considerou (e ainda há os que consideram) a língua falada nas regiões centro e norte da península como “la norma estándar” ou a norma padrão da língua espanhola, tida como a melhor maneira de falar dita língua em detrimento das inúmeras variedades estendidas pelos países da Hispano-América e também em outras regiões da própria Espanha. No português também ocorreu isso, sendo que em alguns aspectos ainda hoje prevalece como norma padrão a variedade falada em Portugal45. Com o advento da Lingüística, no entanto, a idéia de que as variedades regionais estão subordinadas a uma variedade ideal, aquela pertencente à norma padrão ou exemplar, foi cedendo espaço à noção de que todas as variedades devem ser consideradas igualmente, já que não há uma que seja mais correta que a outra. O que deve ser considerado é uma questão da ordem da adequação, isto é, existe uma variedade mais adequada às mais diversas situações comunicativas com as quais o falante possa se deparar. A delimitação de uma única norma padrão, tida como superior, tropeça continuamente com a pluralidade e com a relatividade que a adequação discursiva impõe. Podemos então substituir as categorias certo/errado por uma categoria de maior ou menor adequação ao contexto de uso da língua. Diante disso, se pode concluir que qualquer tipo de atitude normativa deve ser tomada sempre em função da adequação ao ato concreto de comunicação e não necessariamente às custas ou em detrimento de outra ou outras realizações. 44 Essas academias tinham (e ainda têm) a função principal de manter a língua uniforme. Podemos apontar como exemplo a Real Academia Espanhola (RAE), que consegue manter a língua espanhola, que é falada em mais de 20 países, completamente uniformizada pelo menos no que diz respeito à ortografia. 45 Podemos citar aqui o caso da colocação dos pronomes átonos, que, de acordo com as regras gramaticais vigentes, está baseada na variedade peninsular do português. Assim, o que é norma real para os portugueses, é norma ideal para os brasileiros, já que aqui o uso dos pronomes átonos é bem distinto do que propõem as gramáticas. As gramáticas prescrevem que se deve, em início de oração, utilizar o pronome enclítico, dizendo, por exemplo: Dá-me [algo], mas a norma real dos falantes é usar o pronome em posição proclítica e esse uso é amplamente difundido, sendo que o que é realizado é a forma Me dá [algo] (cf. Bechara (2001, p. 173-181) e Cunha & Cintra (2001, p. 296318)). Parece-nos que uma possível explicação para essa predominância da norma peninsular sobre as variedades americanas de ambas línguas pode estar calcada na história, já que o Brasil e os países que conformam a HispanoAmérica foram colonizados por essas nações e permaneceram sob seus domínios por muitos séculos, e ainda que todas as colônias tenham conquistado sua independência, o sentimento de dominação por parte dos colonizadores permaneceu (e permanece) através da língua e das indicações para fazer-se uso da mesma de acordo com a língua do país descobridor, considerada padrão. 3.1.1 A norma real e a norma ideal A dicotomia descrição/prescrição nos leva ainda a refletir sobre o papel da norma no âmbito da lexicografia. A noção de norma disseminada entre os falantes é a de norma enquanto modelo a ser seguido, daí as expressões “norma culta”, “norma padrão”, como vimos anteriormente. Porém, na lingüística moderna, é possível se fazer uma distinção entre uma norma que abarca tudo o que na língua é aceito como uso lingüístico, a chamada “norma de uso”, que pode ser analisada com base em dados estatísticos, e entre uma norma que prevê uma série de restrições de caráter normativo, a chamada norma prescritiva, que estabelece algumas condições aos falantes para que seja feito um “bom uso” da língua. Coseriu (1973 e 1980) denominou a primeira “norma real” e a segunda “norma ideal” baseado na noção de norma criada para “complementar” a dicotomia língua/fala (langue/parole) estabelecida por Saussure46. Coseriu trabalha com as noções de sistema, norma e fala, sendo que o sistema é o conjunto de possibilidades de uma língua, a norma é a realização do sistema em suas múltiplas possibilidades e a fala, por sua vez, é a realização da norma. Em palavras do autor, A língua é um conjunto de oposições funcionais; a norma é a realização “coletiva” do sistema, que contém o próprio sistema e, além disso, os elementos funcionalmente “não pertinentes”, porém normais no falar de uma comunidade. A fala é a realização individual-concreta da norma, que contém a própria norma e também a originalidade expressiva de cada falante47. (COSERIU (1973, p. 9798)) Pensando nesses conceitos e tomando como exemplo a língua portuguesa, teríamos que ela é o sistema; como norma teríamos um português “falado”, um português “escrito”, um português “familiar”, ou seja, as diferentes realizações do sistema. Portanto, a norma corresponde à descrição de diferentes línguas funcionais, que podem ser tanto reais (como realmente se usa a 46 Na dicotomia de Saussure, a língua representa um sistema homogêneo, e a fala corresponde às realizações desse sistema por parte de uma comunidade lingüística. Já para Coseriu (1973 e 1980), a língua estava dividida em sistema, norma e fala. Às duas primeiras corresponde a noção de língua saussiriana enquanto que à terceira corresponde a noção de fala proposta por Saussure. Coseriu (1980) define sistema como todas as opções possíveis de serem realizadas por um falante em sua língua materna; norma como tudo o que na língua não é funcional, mas que é fato de realização tradicional e fala como a técnica lingüística efetivamente realizada. 47 [La lengua es un conjunto de oposiciones funcionales; la norma es la realización “colectiva” del sistema, que contiene el sistema mismo y, además, los elementos funcionalmente “no-pertinentes”, pero normales en el hablar de una comunidad. El habla es la realización individual-concreta de la norma, que contiene la norma misma y además, la originalidad expresiva de los individuos hablantes]. língua) quanto ideais (como a língua deveria ser usada, de acordo com um modelo), de modo que há diferentes conceitos de norma: a norma que descreve o que é normal, isto é, o modo normal de falar dos indivíduos pertencentes a determinada comunidade lingüística e a norma estabelecida por critérios de correção, que mostra o que é correto ou incorreto (é o modelo do “bem falar”). A partir disso, é possível estabelecer uma divisão da norma em norma real e norma ideal, ou seja, entre aquilo que os falantes de fato realizam e aquilo que os manuais prescritivos sugerem que deva ser realizado, respectivamente48. 3.1.2 Os dicionários de uso e a questão da norma Como vimos anteriormente, a questão da norma nos dicionários de uso é crucial, pois dependendo da norma representada nessas obras é possível entendermos o uso como descrição ou prescrição. Se pensarmos que o uso se refere à norma real, teremos que levar em conta alguns pontos, como o fato de a língua ser um sistema dinâmico, que sofre mudanças permanentemente em função de seus falantes, sendo que estes, por sua vez, sofrem influências de fatores de ordem externa à língua, como o geográfico, o histórico, o cultural e o social, entre outros, que condicionam essas mudanças. Além disso, há os fatores de ordem interna que provocam mudanças lingüísticas, dado que toda língua tem um mecanismo intrínseco de mudança que não depende necessariamente da influência de fatores externos. Logo, é impossível um dicionário, ainda que se diga de uso e que se pretenda um reflexo da língua realmente usada em um determinado recorte de tempo, abarcar a totalidade dessa língua, porque, como bem colocou Rabanales (1984), desde o momento em que um dicionário é publicado, se pode dizer que já está defasado, pois certamente já terão surgido novas palavras de ampla ocorrência enquanto outras estão deixando ou deixaram de ser empregadas pelos falantes49. Ou ainda como poeticamente 48 Rodrigues (2002, p. 13) fala em padrões ideais e padrões reais. Estes derivam de observações sobre a maneira como as pessoas realmente se comportam em determinadas situações enquanto aqueles definem o que se espera que as pessoas façam ou digam em determinadas situações, no caso de elas se conformarem inteiramente com as normas estabelecidas por sua cultura. Béjoint (2000 apud Welker (2004, p. 187)), faz uma diferenciação entre uma “norma qualitativa” – aquela dos dicionários normativos, que se baseiam no uso e na opinião dos “melhores” falantes nativos – e uma “norma quantitativa” – fundamentada na observação do uso lingüístico de todos os falantes fluentes da comunidade. 49 Para Haensch (1982, p. 359), “los diccionarios monolingües o bilingües no pueden registrar más que lo lingüísticamente realizado y, por lo general, con algún retraso en el tiempo y de forma incompleta. En este sentido podrían definirse los diccionarios como registros retrasados e incompletos de la norma”. escreve Seco, no prefácio da segunda edição de DUE (1999): “(...) porém tudo nesse mundo envelhece desde o berço. E os dicionários, por melhores que sejam, começam a mostrar suas rugas muito antes e mais depressa que as catedrais e os palácios”50. E isso se aplica mais fortemente aos dicionários de uso, pois enquanto estão sendo elaborados, inúmeras novas palavras estão se incorporando à língua e sendo empregadas pelos falantes, de modo que deveriam também ser dicionarizadas. Suscitada por tais considerações emerge uma questão: seriam essas novas palavras, que surgem de forma incessante na língua, anomalias ou incorreções? Para os puristas certamente, pois as mesmas não têm status na variante padrão da língua por não estarem dicionarizadas ou não figurarem nos manuais que prescrevem o “bom uso” da língua. No entanto, nos parece claro que essas palavras, à medida que forem sendo usadas pelos falantes, obrigarão àqueles que se dizem responsáveis por manter o “bom uso” da língua a incluí-las nos dicionários. Afinal, é a comunidade lingüística que opera as modificações que ocorrem na língua, ou porque atribuem novas significações a palavras já existentes, ou criam, por associação/analogia ao que já existe no sistema, novas palavras ou novos usos que do ponto de vista prescritivo são incorretos; em outras palavras, são os falantes que fazem a língua e não os gramáticos ou os manuais de caráter prescritivo. Se fosse permitido utilizar somente aquilo que está documentado nos manuais prescritivos (dicionários e gramáticas) e que tenham o aval daqueles que fazem as regras da norma ideal, teríamos que esperar até que essas palavras fossem aceitas para poder utilizá-las. Sabemos, no entanto, que geralmente ocorre o contrário, pois quando uma nova palavra tem seu uso difundido entre os falantes, os manuais prescritivos da língua passam a documentar e a legitimar esses usos51. Segundo Bugueño (inédito), “(...) eles [os dicionários] nunca vão a priori 50 [(...) pero todo en este mundo envejece desde la cuna. Y los diccionarios, por excelentes que sean, empiezan a mostrar sus arrugas mucho antes y más deprisa que las catedrales y los palacios]. 51 Um exemplo disso na língua espanhola é a inclusão do verbete modisto no Diccionario de la Real Academia Española (DRAE (2001)). Em espanhol, a palavra modista é um substantivo de gênero comum de dois, isto é, o reconhecimento de seu gênero depende do artigo que lhe é anteposto. Logo, para referir-se ao gênero feminino, os falantes de espanhol diriam la modista e para referir-se ao gênero masculino diriam el modista. No entanto, a comunidade lingüística criou uma forma análoga a outros vocábulos da língua que apresenta, além do artigo definido masculino, o morfema que indica gênero masculino –o, qual seja, el modisto. O uso dessa forma passou a ser tão difundido entre os falantes de espanhol que a Real Academia Espanhola (RAE) a incluiu em seu dicionário, passando a aceitar como “correto” seu uso. Para o português, podemos citar o caso do adjetivo imexível, cujo surgimento data de 1990 (Cf. HouE (2001, s.v.)). Tal palavra foi criada por analogia a formas como inegável, imutável, imortal, a partir do acréscimo do prefixo indicativo de negação –i a palavras já existentes na língua, para denotar “aquilo que não está sujeito a”. Em princípio, essa unidade léxica não gozava de status na língua portuguesa porque não estava dicionarizada, mas após ter seu uso difundido entre os falantes, os dicionaristas se viram forçados a documentá-la, legitimando seu uso. fixando a língua, mas são sempre uma instância a posteriori do fato lingüístico, registrando-o”. É como disse acertadamente Alberdi (apud MOURE, 2004): As línguas não são obra das Academias; elas nascem e se formam na boca do povo, de onde recebem o nome de línguas que levam. As Academias, surgidas depois das línguas já formadas, não fazem mais do que registrá-las e protocolizá-las, tal como as formou o uso, que, segundo Cervantes, é o soberano legítimo das línguas, não o tirano (...)52. Considerando então a distinção entre norma real e norma ideal, acreditamos que, em um dicionário de uso, todas as decisões de caráter normativo devem ser justificadas levando em conta os falantes, devendo, dessa forma, estar de acordo com a norma real, ou seja, com o uso consagrado pela comunidade lingüística, já que o principal objetivo desses materiais é apresentar a língua como ela é de fato empregada pelos falantes. Ademais, todas as prescrições que uma atitude normativa implica devem estar fortemente baseadas na norma real e todas as razões que se apresentam para determinar o prestígio e a superioridade de certos usos não podem entrar em contradição com a realidade dos falantes, porque são estes, definitivamente, que decidem marginalizar, desprezar ou até mesmo abolir certos usos. Afinal, nada existe na língua sem que tenha existido antes na fala (cf. Coseriu (1973, p. 14)). 3.2 A quantificação do uso: uso quantitativamente marcado versus uso não quantitativamente marcado Nos dias atuais, a presença da informática na elaboração de dicionários é algo comum. Essa nova “arma” de que dispõe a ciência lexicográfica provocou e vem provocando uma mudança considerável no panorama da lexicografia prática. Graças a isso, o trabalho do lexicógrafo foi facilitado em inúmeros aspectos, entre eles, a possibilidade do estabelecimento de um corpus que permite o manuseio de um grande número de informações, além de agilizar o trabalho, que até então era feito manualmente. Através do corpus também fica mais fácil apresentar exemplos e/ou abonações, já que estão prontos e à disposição, livrando assim o 52 [Las lenguas no son obra de las Academias; nacen y se forman en la boca del pueblo, de donde reciben el nombre de lenguas, que llevan. Las Academias, venidas después que las lenguas existen ya formadas, no hacen más que registrarlas y protocolizarlas, tales como las ha formado el uso, que, según Cervantes mismo, es el soberano legítimo de las lenguas, no el tirano (...)]. lexicógrafo da preocupação de ter que elaborar exemplos (quando o dicionário fornece esse tipo de informação). Há também a questão de ser possível delimitar a língua a ser representada no dicionário de acordo com um recorte sincrônico, isto é, são adotados como corpus textos ou outros materiais que sirvam como exemplo da língua utilizada, por exemplo, em um período de 50 anos. Acerca da questão do corpus, Seco (2003, p. 83) diz que A revolução do computador mudou de maneira espetacular as perspectivas do trabalho dos lexicógrafos. A informática permitia e prometia, como material básico para a elaboração de dicionários, a criação de corpus textuais de grandes quantidades de dados léxicos53. Para esse autor, se produziu entre os lexicógrafos um fenômeno de mitificação da informática aplicada ao léxico. É inegável que o uso de corpus eletrônico para a elaboração de dicionários é um enorme avanço no campo da lexicografia e hoje em dia são considerados ferramentas quase que essenciais. O que vem ocorrendo, no entanto, é que muitos lexicógrafos delegam ao corpus um trabalho que seria exclusivamente deles, de modo que não há uma análise cuidadosa dos dados que fornece o corpus. Pascual (1996 apud Seco (2003, p. 81)), conclui que “muitos [lexicógrafos] esperam do corpus a solução para alguns problemas que, desde o princípio, a própria lexicografia (...) ou não os considerou, ou não se atreveu a resolver, ou simplesmente acreditava que não tinham solução”54. A verdade é que o corpus é uma ferramenta limitada e seu bom aproveitamento vai depender do tratamento que o lexicógrafo queira dar-lhe. Nesse âmbito, a primeira consideração a ser feita está relacionada à seleção dos materiais para a montagem do próprio corpus, que deve estar adequada aos objetivos a que se propõe o dicionário. Por exemplo, descrever a língua de um determinado período ou se ocupar apenas de termos da Biologia. No primeiro caso, haveria que, primeiramente, fazer um recorte sincrônico da língua, ou seja, estabelecer de qual período de tempo será analisada a língua e a partir disso coletar os textos e/ou outros materiais que irão conformar o corpus. No segundo caso, somente textos relacionados à Biologia deveriam ser aproveitados. Insistimos que o corpus se apresenta como 53 Lla revolución del ordenador cambió de manera espectacular las perspectivas de la labor de los lexicógrafos. La informática permitía y prometía, como material básico para la confección de diccionarios, la creación de corpus textuales de grandes cantidades de datos léxicos]. 54 [muchos [lexicógrafos] esperan de los propios corpus la solución a unos problemas que, desde sus comienzos, la propia lexicografía (...) o no se haya planteado, o no se atrevía a resolver, o simplemente creía que no tenían solución]. uma ferramenta importante para o trabalho do lexicógrafo, mas não se constitui o trabalho em si, dado que é função do lexicógrafo analisar e selecionar aquilo que é pertinente segundo os objetivos estabelecidos para o dicionário que será elaborado. No caso específico dos dicionários de uso, a maioria é elaborada a partir de um corpus que delimita e que serve de base para a escolha do conjunto das entradas do dicionário. Há então, graças à ajuda da tecnologia, uma maior facilidade de precisar quantitativamente o número de ocorrências de determinada palavra. Algumas obras lexicográficas transformam esses dados em informação para o usuário, apresentando uma escala numeral de freqüência, como ocorre com GDUEA (2001). No entanto, ainda são poucos os dicionários que aproveitam essa possibilidade de marcar quantitativamente o uso. Lidando com dados empíricos, os dicionaristas têm como quantificar o uso transformando (ou não) esses dados em informações ao consulente. Podemos dividir então os dicionários de uso entre: 1) os que apresentam o uso quantitativamente marcado; 2) os que apresentam o uso não quantitativamente marcado. Dizemos que um dicionário tem o uso quantitativamente marcado quando a quantidade de ocorrências é precisada numericamente e transformada em informação para o consulente. Já quando não há nenhuma indicação quantitativa do número de ocorrências, estamos diante de um dicionário no qual o uso é não quantitativamente marcado. 3.3 Normatividade inerente aos dicionários: o efeito normativo de dicionários não normativos Apresentaremos nessa seção alguns aspectos que conferem aos dicionários, independentemente de seus objetivos, um caráter normativo. Diante disso, poderíamos já aqui concluir que a especificação “uso” dos dicionários de uso se refere tanto à descrição quanto à prescrição. Resta-nos averiguar se esse caráter normativo dos dicionários de uso é explicitado ou velado, isto é, se o dicionário quer ser descritivo, mas, sem revelá-lo, privilegia certos usos (cf. Welker (2004, p. 188)). De acordo com Haensch (1982, p. 359-389), os dicionários não só informam sobre os elementos léxicos aceitáveis e suas significações, como também fazem afirmações sobre ortografia, pronunciação, nível lingüístico, freqüência de uso, etc. Dessa forma, eles contêm, em cada entrada, uma série de indicações prescritivas. Assim, ainda que um dicionário se defina de uso entendendo este como freqüência e que tenha, por isso, apenas o objetivo de descrever a norma real de uma dada língua, sempre vai carregar consigo uma certa normatividade. Ripfel (1989 apud Welker (2004, p. 186)) acerca dos dicionários descritivos, diz que geralmente essas obras não mencionam nenhuma atitude normativa; pelo contrário, deixam claro que seu objetivo é retratar a realidade lingüística. No entanto, a autora diz ainda que é possível fazer uma distinção entre os dicionários descritivos que são realmente descritivos e os que são veladamente normativos pelo fato de privilegiarem certos usos através, por exemplo, da omissão de determinadas unidades léxicas ou da apresentação de abonações oriundas de textos de certos grupos sociais. Ignácio (1996 apud Welker (2004, p. 189)) escreve o seguinte: Em princípio, um dicionário de usos não tem, evidentemente, como objetivo precípuo prescrever o uso da língua, mas sim descrever a maneira como a língua está sendo usada. No entanto, o usuário que se propõe consultar um dicionário o faz para se inteirar da maneira correta, ou usual, no emprego dos elementos lingüísticos. E aí o dicionário de usos passa a assumir também uma função normativa. Assim, a responsabilidade do dicionarista se avulta. Diante do exposto, podemos reforçar a conclusão de que, na verdade, toda obra lexicográfica é normativa por natureza, ainda que não pretenda sê-lo, posto que algumas informações que oferece são, indiscutivelmente, da ordem da prescrição. Quanto aos dicionários de uso, de caráter descritivo, nos resta verificar se o caráter normativo que apresentam é explícito ou velado. A partir disso, poderemos chegar a uma conclusão sobre como pode ser entendido o “uso” nos dicionários de uso. Welker (2004, p. 183-186), tratando da questão da norma representada nos dicionários, aponta para dois fatores: a existência de dicionários normativos (como os elaborados por instituições como as academias) e o efeito normativo de dicionários em geral. Tais fatores se devem ao fato de que a norma lingüística pode ter duas concepções: a primeira se refere à realidade lingüística, às realizações normais daqueles fatos que existem no sistema da língua55 e a segunda a algo que tem que ser observado quando se quer escrever ou falar corretamente. É o que nós chamamos anteriormente de “norma real” e “norma ideal”, respectivamente. Podemos, então, transportar essa mesma distinção ao conceito de “uso”, tanto que nossa hipótese de investigação se trata justamente de verificar se o uso é entendido como norma real ou como norma ideal. Outro ponto a ser discutido, ainda da alçada da normatividade, é a questão da necessidade normativa dos falantes. Sabe-se que a grande maioria das pessoas que consultam um dicionário da sua língua busca informações de natureza prescritiva, como a forma “correta” de se escrever uma palavra e a significação de uma unidade léxica desconhecida, e não lhes interessa tanto saber quais são as palavras que estão sendo usadas pelos falantes naquele momento. Um consulente que busque, por exemplo, o verbete ficar à procura da significação “estar com alguém sem um compromisso efetivo” não irá encontrá-la (ainda) no dicionário, o que poderá levá-lo a pensar que a não-inclusão dessa acepção em um dicionário dito “de uso” é um indício de que seu emprego não é aconselhável quando se trata do uso da variante padrão da língua, ainda que tenha um amplo emprego por parte dos falantes (norma real)56. A verdade é que essa acepção tem um contexto de uso mais restrito, devendo levar alguma marca como “informal”, por exemplo. Nesse sentido, a poder normativo dos dicionários reside no fato de que se o consulente não encontra neles determinada palavra ou acepção é para ele indício de que não existem ou que não devem ser usadas, ou seja, que a não-inclusão de alguma unidade léxica é entendida pelo falante como uma informação de caráter prescritivo. De acordo com Jackson (2002, p. 76), os falantes nativos de uma língua consultam o dicionário basicamente por dois motivos: descobrir o significado e checar a ortografia de uma palavra57. Há ainda outros motivos, porém menos freqüentes como: obter informações quanto ao padrão sintático das palavras58, descobrir os sinônimos59 ou verificar se uma palavra existe60. Rooney (2001 apud Jackson (2002 p. 77)) diz, na introdução do Encarta Concise English Dictionary (2001): “As pessoas desejam que você forneça as respostas para as seguintes questões. Estou escrevendo esta palavra corretamente? O que esta palavra significa? Estou 55 Esse conceito de norma é aquele estabelecido por Coseriu (1973 e 1980). A tendência é que essa acepção venha a ser dicionarizada, dado que seu emprego é bastante amplo e é uma forma que se fixou na língua. 57 [to discover the meaning of a word and to check the spelling of a word]. 58 [to check the syntactic patterns that a word could enter]. 59 [to discover a synonym for a word]. 60 [to verify whether a word exists]. 56 usando a palavra corretamente? Como eu pronuncio esta palavra? (...)”61. Não há como negar, portanto, que os falantes consultam um dicionário quando têm alguma dúvida quanto ao emprego considerado “correto” da língua. Logo, sua busca é pelo normativo, de modo que o dicionário é tido pelos falantes como uma obra de referência e de autoridade. A seguir, trataremos de alguns aspectos tidos como normativos em qualquer tipo de dicionário, tecendo algumas considerações a fim de aplicá-las posteriormente à análise dos quatro dicionários abordados. 3.4 Aspectos normativos inerentes aos dicionários Apresentaremos aqui apenas quatro aspectos que assumem um caráter normativo em qualquer obra lexicográfica e, por conseguinte, também nos dicionários de uso62: 1) ortografia; 2) pronúncia; 3) marcas de uso; 4) indicação de uso sintático. No último capítulo do presente trabalho, no qual procederemos à análise dos dicionários de uso, veremos como são abordados esses aspectos nesses dicionários. 3.4.1 Ortografia Pode-se dizer que a indicação da forma ortográfica das palavras é um aspecto puramente normativo nos dicionários, já que todos apresentam a grafia considerada “correta” segundo normas preestabelecidas63, e ainda que o dicionário registre mais de uma forma do 61 [People like you said they wanted answers to the following questions. Am I spelling this word correctly? What does this word mean? Am I using the word correctly? How do I pronounce this word? (...)]. 62 Esses aspectos fazem parte do âmbito microestrutural de um dicionário (v. nota 28). 63 A Real Academia Espanhola, por exemplo, tem seu próprio manual de correção ortográfica, chamado Ortografía de la Lengua Española (1999), revisado em conjunto por todas as Academias de Língua Espanhola e que regem a escrita em espanhol. Nesse âmbito, pode-se dizer que o espanhol tem uma norma que se aplica a todas as pessoas que produzam em língua espanhola que deve ser respeitada. Essas normas são impostas. Assim, a RAE consegue manter a língua espanhola, que é falada em mais de 20 países, uniformizada pelo menos no que diz respeito à ortografia. Para o português, temos o VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1999)) elaborado pela Academia Brasileira de Letras e que normatiza a ortografia para o português. No entanto, o VOLP (1999) não é plenamente confiável, já que não se baseia na norma real para estipular a norma ideal. Temos como exemplo a unidade léxica oriunda do inglês skate, que para o VOLP (1999) deve ser grafada como esqueite, ainda que esta forma tenha uma vocábulo (caso de variantes ortográficas), ele acaba determinando, através de algum mecanismo, qual das grafias é a preferível. No caso dos dicionários de uso, o mecanismo adotado é o da freqüência de uso. Assim, a forma mais freqüente é considerada a de maior prestígio sendo ela que contém o verbete completo, ou seja, com todas as informações relativas à palavra-entrada (definição, marcas de uso e gramaticais, exemplo, fraseologia, etc.). Já a forma menos freqüente faz remissão à forma mais freqüente. Bugueño (2006) aplica à análise dessas questões em dicionários gerais de língua os conceitos type (genótipo, protótipo ou forma canônica, de mais prestígio) e token (variante ou forma de menos prestígio). Valeremo-nos desses conceitos, quando da análise dos dicionários, para caracterizar as variantes ortográficas em variante canônica ou variante de menos prestígio, sempre segundo o que estabelecem os próprios dicionários sob estudo. 3.4.2 Pronúncia A indicação de pronúncia geralmente se dá através da transcrição fonética, sendo que esta é uma questão bastante delicada, primeiro porque em um dicionário monolíngüe não é tão relevante, pelo menos para as línguas portuguesa e espanhola, já que essas línguas têm uma grande compatibilidade entre o sistema fonológico e as letras do alfabeto64. Além disso, e de acordo com Jackson (2002, p. 103), os falantes nativos raramente consultam um dicionário em busca de informações relativas à pronúncia65. Acreditamos que a única circunstância em que a transcrição fonética poderia ser funcional em um dicionário geral de língua monolíngüe é quando se trata da pronunciação de estrangeirismos, tais como apartheid, light, mouse, abstract, look, airbag e software, entre outros, pois estes mantêm inalterada a forma ortográfica da língua representatividade infinitamente menor frente à forma skate (300 ocorrências para aquela forma contra 1.500.000 para esta). Para mais informações acerca da pertinência do VOLP (1999), v. FARIAS (2006). 64 Em se tratando de línguas como o inglês e o francês, por exemplo, nas quais a relação letra/fonema não é tão estável, a transcrição fonética seria funcional. No entanto, há que se lembrar que dependendo do método adotado para a transcrição fonética, não todos os usuários do dicionário vão saber interpretar tais informações. O Alfabeto Fonético Internacional, por exemplo, é dominado apenas por aquelas pessoas que têm algum conhecimento aprofundado de Fonética, de modo que adotá-lo como parâmetro para realização da transcrição fonética nos dicionários não seria uma decisão acertada. Welker (2004, p. 113), por sua vez, tem uma opinião contrária, pois acredita que o Alfabeto Fonético Internacional deveria ser usado em todos os dicionários e ser ensinado nos cursos de língua estrangeira. Parece-nos que essa decisão se adapta mais aos dicionários bilíngües, posto que os monolíngües raras vezes são utilizados por falantes não nativos da língua que trata, além de a transcrição fonética aparecer, via de regra, apenas em casos muito especiais. 65 [pronunciation is not a information that native speakers regularly consult a dictionary for]. fonte66. Há que se destacar ainda, que nesses casos a indicação da pronúncia é uma informação fundamental, dado que nem sempre há o mesmo respaldo fônico entre as letras da língua de origem dos estrangeirismos e a língua que os incorpora. Os dicionários gerais da língua portuguesa não costumam apresentar a transcrição fonética (exceto para o caso de estrangeirismos, como dito antes), apenas alguma informação quanto à pronunciação em caso de diferenciação de significação apenas em função do acento prosódico67. Para a língua espanhola tampouco é comum haver transcrição fonética nos dicionários monolíngües. No entanto, sempre que por um motivo ou outro eles trazem (como é o caso de GDUEA (2001)), a transcrição acaba privilegiando uma variante em detrimento de outra(s). No caso do espanhol, por exemplo, geralmente a variante peninsular é a adotada, podendo ser evidenciada através da transcrição fonética da letra c diante das vogais /e/ e /i/ e da letra z diante das vogais /a/, /o/ e /u/ como a consoante interdental [θ], sendo que na HispanoAmérica tais fonemas são realizados como uma fricativa dental [s]. Há ainda o problema das realizações fonéticas múltiplas, isto é, os casos de variação, bastante comuns por sinal. Sendo assim, o lexicógrafo tem que determinar ainda qual variante deve ser usada na transcrição. Welker (2004, p. 114) acredita que deva ser escolhida a representativa da fala das pessoas letradas, por se tratar de uma pronúncia padrão. 3.4.3 Marcas de uso As marcas de uso adotadas pelos dicionários desempenham indubitavelmente uma função normativa, posto que condicionam o uso de determinadas palavras a certos contextos ou regiões. São vários os tipos de marcas que se pode encontrar. Hausmann (1989 apud Welker (2004, p. 131)) propõe a seguinte divisão de marcas: diacrônicas (relativas ao tempo, tais como arcaico e neologismo) diatópicas (relativas a certas regiões ou países) diaintegrativas (para assinalar estrangeirismos) diamediais (para diferenciar linguagem oral e escrita) 66 Quando um estrangeirismo se adapta aos padrões fonológico e morfológico da língua alvo passa a ser considerado um empréstimo lingüístico. 67 É o caso dos homônimos não-homófonos (ou heterotônicos). Um exemplo da língua portuguesa são os verbetes soquete /é/ “meia curta de mulher” e soquete /ê/ (esse com diversas significações), em que há informação acerca de questões fonéticas. diastráticas (relativas ao nível sócio-cultural) diafásicas (diferenciar linguagem formal e informal) diatextuais (restringir uma palavra ou acepção a um determinado gênero textual) diatécnicas (relativas a palavras pertencentes a tecnoletos) diafreqüentes (marcas como raro, muito raro) diaevaluativas (relativas à atitude do falante: pejorativo, eufemismo) dianormativas (indicar que o uso de determinada palavra ou acepção é errado de acordo com a língua padrão) Neste trabalho nos aprofundaremos apenas em cinco marcas desse grupo, quais sejam: diastráticas, diafásicas, diatécnicas, diatópicas e diacrônicas, apontando os motivos pelos quais as consideramos de caráter normativo. 3.4.3.1 Marcas diastráticas e diafásicas Essa divisão é oriunda das postulações de Coseriu (1980), que considera a língua um diassistema que apresenta variedade interna em três níveis: o diastrático, o diafásico e o diatópico (que veremos a seguir). O nível diastrático está relacionado com a procedência sócio-cultural dos usuários da língua enquanto que o nível diafásico está relacionado ao contexto de comunicação, ou seja, fica a critério do falante escolher o modo como irá se expressar de acordo com o exigido pela situação comunicativa (formal ou informal, por exemplo). Decidimos tratar esses dois aspectos conjuntamente porque nem sempre é fácil delimitar com precisão a diferença entre ambos. O caráter normativo dessas marcas reside no fato de que marcar uma acepção como informal, pejorativo, culto ou como tabuísmo, por exemplo, é uma informação extremamente importante para o consulente, pois este saberá que se trata de uma palavra cujo uso está restrito ou é mais adequado a determinados contextos. Assim, palavras como caralho, puta e bosta, todos marcados como tabuísmo e/ou pejorativo em HouE (2001) e cabrear “enfadar(se), irritar(se)”, cabrón “hombre a quien su mujer es infiel”, marcadas como vulgar em DUE (1999) têm um âmbito de uso bastante restrito. 3.4.3.2 Marcas diatécnicas Esse tipo de marca se refere aos termos de linguagens especializadas. Nesse âmbito, é necessário distinguir entre aquelas palavras que, apesar de terem surgido em um determinado meio, tiveram seu uso generalizado na língua e palavras que pertencem a certas áreas do conhecimento e que não têm seu uso estendido na língua. Como exemplos para estas, temos cromatopsia, acromegalia, adenopatia e inúmeros outros termos do campo da medicina, bem como de outras áreas do conhecimento. Já no caso daquelas, podemos citar como exemplo palavras específicas de certas áreas que passaram a fazer parte da língua comum, como internet, internauta, deletar, clonar, clone, transgênico, palavras da área da informática e da genética, respectivamente, que já não são sentidas como palavras específicas dessas áreas dado seu largo emprego na língua. Da mesma forma que as marcas diastráticas e diafásicas, as marcas diatécnicas restringem o uso de determinadas palavras a certos contextos. No caso dos dicionários de uso, há que se ter cuidado com as palavras específicas de determinadas áreas, posto que muitas delas não são usadas com freqüência pela comunidade lingüística em geral e muitas vezes nem sequer são conhecidas. 3.4.3.3 Marcas diatópicas Essas marcas estão ligadas à região geográfica em que determinadas palavras e/ou acepções são empregadas. Tanto para o português quanto para o espanhol é possível fazer uma distinção entre a variedade americana e a variedade européia. Os dicionários podem optar por descrever a língua de uma só variedade (o português brasileiro e o espanhol americano, por exemplo) ou abranger todas as regiões que falam tais línguas e marcar diatopicamente as palavras e acepções que necessitem de tal marcação. Essas marcas são, portanto, extremamente importantes na medida em que estabelecem em que região ou país tal palavra é majoritariamente ou exclusivamente empregada e é justamente nesse ponto que reside seu poder normativo. Alguns exemplos de palavras do português marcadas diatopicamente são: bicha (Portugal) “fila”, presilheiro (Portugal) “indivíduo ladino, manhoso”, prendido (Cabo Verde) “que recebeu boa educação escolar; bem-educado”, presepista (Nordeste do Brasil) “fabricante de figuras de presépio” e prenda (Rio Grande do Sul) “mulher jovem; moça”. Para o espanhol, é muito comum encontrarmos duas ou mais palavras que designam a mesma coisa, sendo que uma tem seu uso mais estendido na Hispano-América e outra na Espanha, como é o caso de, por exemplo, paradero/parada “lugar en el que se detienen los vehículos de transporte público para recoger o dejar viajeros”, durazno/melocotón “fruto comestible, de forma esférica, piel amarillenta y aterciopelada, pulpa dulce y jugosa y hueso duro” e jugo/zumo “líquido contenido en ciertos tejidos de cuerpos orgánicos que puede extraerse por presión, cocción, etc., o desprenderse por secreción”. A palavra que aparece primeiro no sistema de barras é usada no espanhol da América, enquanto que a segunda é mais usada no espanhol peninsular. 3.4.3.4 Marcas diacrônicas Sabe-se que o acervo lexical de todas as línguas vivas se renova. Enquanto algumas palavras deixam de ser utilizadas e tornam-se arcaicas, outras são criadas pelos falantes de uma comunidade lingüística. Temos, portanto, unidades léxicas marcadas como arcaico, antiquado, desusado, obsoleto e palavras que constituem neologismos, sendo que estes geralmente não são marcados. Quanto àquelas, é preciso deixar claro que um dicionário que se diga de uso enquanto freqüência e que esteja baseado em um corpus que abarca os usos da língua contemporânea, não deveria trazer nenhum verbete com esse tipo de marca, já que seu objetivo é retratar a língua em uso. Essa pode ser considerada uma falha bastante grave dos dicionários dessa natureza. As marcas diacrônicas arcaico, desusado, etc., assumem um caráter normativo porque desaconselham ao consulente o uso das unidades léxicas assim marcadas justamente por não serem mais freqüentes na língua. Quanto aos neologismos68, sabe-se que eles podem ser formados por mecanismos oriundos da própria língua ou por itens lexicais tomados de outros sistemas lingüísticos. No 68 Entendemos como neologismo todas as unidades léxicas novas que surgem na língua, sejam elas criadas de acordo com os padrões morfológico e fonológico da própria língua (neologismos vernáculos) ou advindas de outras línguas (estrangeirismos). Estes, se aceitos pela comunidade lingüística, passam por diversos estágios até se estabelecer de forma definitiva. Quando se adaptam aos padrões fonológicos e ortográficos da língua-alvo passam a ser designados primeiro caso, os neologismos surgem a partir de bases fixas na língua, geralmente por processos de derivação e composição; no segundo, trata-se das contribuições de outras línguas. Do ponto de vista semântico, pode-se classificar a criação neológica como um processo de produção de novos significados, em conseqüência da instauração de novos significantes no interior da língua ou ainda com a instauração de novos significados para significantes já existentes. Consideraremos aqui dois tipos de neologismos, um enquanto signo, ou seja, uma nova palavra que surge na língua criada segundo as necessidades dos falantes de se adaptarem a novas realidades e outro enquanto significação, isto é, quando se atribui uma nova significação a uma palavra já existente na língua e ver como se comportam os dicionários de uso diante dessas palavras e acepções que surgem na língua em função dos falantes. A apresentação de neologismos é um aspecto normativo na medida em que a inclusão dessas palavras novas no dicionário legitima seu uso, de modo que o falante poderá empregá-las sem maiores problemas. Caso contrário, é indício de que seu uso é desaconselhado. 3.4.4 Indicação de uso sintático A indicação de uso sintático configurará um aspecto normativo na medida em que os dicionários apresentem indicações relativas ao sistema de regência verbal ou nominal (para o português) e o “régimen preposicional” (para o espanhol), às colocações e combinações lexicais fixas, por exemplo. Nesse trabalho nos ocuparemos da análise apenas das indicações de regência verbal e nominal e veremos que todos os dicionários em análise, ainda que entendam o uso como freqüência, apresentam esse tipo de informação em maior ou menor grau. Nesse capítulo foram apresentados os critérios segundo os quais serão analisadas as quatro obras lexicográficas tomadas como corpus. Partamos, então, para a análise dos dicionários de uso. empréstimos lingüísticos, como é o caso de bibelô, abajur, time e futebol. Para algumas questões no tocante aos empréstimos lingüísticos, especificamente da língua espanhola à portuguesa, v. Polanczyk (2005). 4 ANÁLISE DOS DICIONÁRIOS Nesta seção procederemos à análise dos quatro dicionários de uso aplicando os critérios anteriormente estabelecidos. Antecipando-nos a possíveis críticas relativas ao fato de apontarmos mais extensamente as falhas que essas obras apresentam com relação ao que se propõem, gostaríamos de deixar claro que em nenhum momento as estaremos desmerecendo. Pelo contrário, esses dicionários são dignos de nossa admiração e respeito, dado que são grandes feitos tanto da lexicografia brasileira quanto da espanhola por seu caráter inovador. A verdade é que os dicionários, por lidarem com um grande volume de informações, têm propensão a cometer equívocos, e por isso é sempre recomendável que eles sejam submetidos a análises críticas que visem identificar esses possíveis equívocos a fim de que possam ser sanados. Nosso intuito, portanto, com este modesto trabalho é levar a uma reflexão acerca dos aspectos suscitados a fim de, quem sabe, contribuir para a melhoria dos pontos falhos que apresentam essas obras, tendo sempre em mente que, os dicionários, como obras de referência que são, devem estar sempre buscando seu aprimoramento e visando a perfeição (ainda que esta seja difícil de ser alcançada!). 4.1 DUPB (2002) Esse dicionário apresenta uma proposta inovadora no âmbito da lexicografia brasileira, pois tem como objetivo registrar o uso efetivo do sistema lingüístico num período e local bem determinados (a língua escrita no Brasil na segunda metade do século XX): O Dicionário de usos do Português do Brasil se apresenta como um dicionário da língua escrita no Brasil na segunda metade do século XX. A preocupação de registrar o uso efetivo [grifo nosso] do sistema lingüístico, num período e local bem determinados, torna-o, em vários aspectos, diferente das outras obras do gênero. (DUPB (2002, p. V)). A partir de um corpus conformado pela língua escrita em prosa no Brasil a partir de 1950 e que totalizam mais de 70 milhões de ocorrências em textos de literatura romanesca, dramática, técnica, oratória e com predominância da literatura jornalística (por seu autor acreditar ser nesse âmbito que as palavras mais circulam) foram selecionadas as mais de 62 mil entradas que conformam a macroestrutura do dicionário. Quanto à quantificação do uso, não há nenhum tipo de indicador de freqüência e não se sabe se as acepções estão organizadas de acordo com a representatividade da freqüência ou segundo uma disposição etimológica ou ainda se a disposição das acepções é aleatória. Consultando atentamente esse dicionário, percebemos que muitas palavras que não são efetivamente usadas pelos falantes fazem parte da macroestrutura enquanto que outras, que possuem um largo uso, não foram documentadas. Através de pesquisas em sites de busca da internet (realizadas em 07.09.2006) não foi possível encontrar registros dos vocábulos manzanzar “proceder como bobo” (DUPB (2002, s.v.)), vanilóquio “discurso vazio” (DUPB (2002, s.v.)), sivamista “indivíduo defensor do polêmico projeto Sivam”, (DUPB (2002, s.v.)) e peitamento “suborno” (DUPB (2002, s.v.)), ou seja, que essas palavras não são de uso freqüente no português. Encontramos apenas cinco ocorrências para os verbetes ibopeano “relativo ao ibope” (DUPB (2002, s.v.)) e turrento “turrão, teimoso” (DUPB (2002, s.v.)) e duas para afestoado “pendurado com festão” (DUPB (2002, s.v.)). Para o substantivo mandracaria “artimanha, artifício” (DUPB (2002, s.v.)) encontramos apenas 49 ocorrências e para o verbo expeditar “agilizar” (DUPB (2002, s.v.)) encontramos apenas 10 ocorrências69. Esses números confirmam nossa constatação de que há na macroestrutura de DUPB (2002) verbetes de pouco uso por parte dos falantes ou até mesmo desusados, o que constitui uma falha da obra, que se pretendendo de uso enquanto freqüência, deveria ter tomado maior cuidado quanto à inclusão de palavras pouco representativas do português contemporâneo. Por outro lado, as unidades léxicas seta, sonho e subsolo não foram incluídas na macroestrutura ainda que tenham um largo uso por parte da 69 Gostaríamos de salientar que, na falta de um corpus próprio, nos valemos do site de busca Google para efetuar nossas pesquisas quantitativas tendo em vista que tal corpus é bastante “democrático”, ou seja, que nele podemos encontrar textos dos mais variados gêneros, sendo que a maioria deles reflete a língua efetivamente em uso. É certo que essa ferramenta possui algumas restrições de ordem técnica, porém ela se mostrou bastante satisfatória para a obtenção das informações que buscávamos: dados relativos á freqüência de uso de determinadas unidades léxicas. comunidade lingüística70. Da mesma forma não consta em DUPB a acepção “acelerar” para o verbo embalar e a acepção “primeiro grau acadêmico” para a unidade léxica bacharelado, ambos de uso bastante comum em português. Portanto, DUPB (2002) vai de encontro a sua própria intenção de “registrar apenas o uso efetivo do sistema lingüístico” (Cf. DUPB (2002: V)), já que inclui unidades léxicas de baixíssima freqüência de uso e deixa de incluir outras bastante freqüentes. Há ainda em DUPB (2002) a inclusão de termos que nos parecem excessivamente técnicos e que não precisariam ou não deveriam fazer parte da macroestrutura de um dicionário que entende o uso como freqüência: dexfenfluramina “composto químico que pode modificar, em altas doses, o nível de substâncias essenciais ao cérebro” (DUPB (2002, s.v.)), adrenoleucodistrofia “doença genética masculina que degenera o sistema nervoso” (DUPB (2002, s.v.)), fellinófilo “seguidor do cineasta italiano Frederico Fellini” (DUPB (2002, s.v.)), indez “ovo que se deixa no ninho para servir de chamariz às galinhas” (DUPB (2002, s.v.)), abacismo “uso de ábaco para calcular”71 (DUPB (2002, s.v.)), babaganush “comida tradicional de origem libanesa (...)” (DUPB (2002, s.v.)), chugori “jaqueta usada pelos coreanos”72 (DUPB (2002, s.v.)), chinchorros “povo indígena de Aria, região norte do Chile”73 (DUPB (2002, s.v.)), churrigueresco “que mescla elementos do renascimento espanhol, do gótico e do barroco” (DUPB (2002, s.v.)), badame “formão resistente e comprido, usado em contaria e escultura”, esofagectomia “excisão de uma parte do esôfago” (DUPB (2002, s.v.)), esofagocoloplastia “operação plástica para reconstituição do esôfago e do estômago74 (DUPB (2002, s.v.)), esofagogástrico “relativo ou pertencente ao esôfago e estômago”75 (DUPB (2002, s.v.)), esofagogastroanastomose “comunicação artificial entre o esôfago e o estômago”76 (DUPB (2002, s.v.)). É possível que algumas dessas unidades léxicas (como sivamista, abacismo e chugori) constituam happax legomena, ou seja, que tenham ocorrido uma única vez no corpus e que 70 Através de pesquisas em sites de busca da internet (realizadas em 13.09.2006), encontramos 1.740.000 ocorrências para o verbete seta, 4.510.000 para o lema sonho e 711.000 para subsolo. Nos dicionários AuE (1999), HouE (2001) e Mi (1998) essas unidades léxicas fazem parte da macroestrutura. 71 Não encontramos documentada essa unidade léxica nem em AuE (1999) nem em HouE (2001). Cabe ressaltar que esses dicionários têm uma densidade macroestrutural muito maior que a de DUPB (2002), visto que sua preocupação de registro não está ligada à norma real. Portanto, há em DUPB (2002) algumas incoerências com relação ao seu objetivo de ser um reflexo da língua efetivamente em uso no Brasil. 72 Unidade léxica não encontrada nem em AuE (1999) nem em HouE (2001). 73 Esse verbete consta em AuE (1999) e HouE (2001), porém não consta a acepção acima transcrita de DUPB (2002). 74 Idem nota 72. 75 Idem nota 72. 76 Idem nota 72. mesmo assim foram lematizadas, ainda que, de fato, não sejam empregadas. Isso evidencia a falta de uma avaliação tanto quantitativa quanto qualitativa por parte de DUPB (2002), que deveria estabelecer critérios mais rígidos quanto à inclusão de palavras cuja ocorrência no corpus é baixíssima, além é claro, da relevância da inclusão de determinadas unidades léxicas. Podemos dizer ainda que DUPB (2002) tem uma atitude prescritiva implícita quando inclui na macroestrutura unidades léxicas não freqüentes, dando-lhes um status de usuais pelos falantes. Assim, um consulente que se depare com verbetes como ibopeano, lumpemburguesia “camada social que detém o poder político, social e econômico” (DUPB (2002, s.v.)), lumpemburguês “pessoa que faz parte da lumpemburguesia” (DUPB (2002, s.v.)) e fellinófilo poderá crer que essas palavras são amplamente usadas na língua, porém não é isso que ocorre77. Outro fato que reforça a falta de cuidado na elaboração dessa obra pode ser percebido através de uma análise atenta das obras que serviram de referência. Houve falta de atenção quanto à escolha do corpus, que inclui obras como Contos Gauchescos e Lendas do Sul78, Fantoches79 e Sagarana80 cujas edições citadas apresentam anos de publicação posteriores a 1950, mas que, na verdade, foram publicadas pela primeira vez em datas anteriores (1912, 1932 e 1943, respectivamente). No que concerne às variantes ortográficas, nos parece acertado o que faz DUPB (2002), que inclui todas as formas possíveis da palavra descrevendo, dessa maneira, os usos, a norma real empregada pela comunidade lingüística. Com relação a esse ponto, pode-se dizer que o dicionário possui tanto um caráter descritivo, pois apresenta todas as variantes existentes na língua, quanto um caráter normativo, já que estabelece que uma delas é a forma de maior prestígio (forma canônica ou type), e é nessa que figura o verbete completo enquanto na forma tida como de menor prestígio (token) há apenas uma remissão ao artigo completo. Assim, DUPB (2002) apresenta todas as formas com barras (soprar/assoprar) com remissão da forma menos freqüente (a segunda), de modo que a definição aparece somente na forma de maior freqüência (a que aparece primeiro) com base no corpus adotado. Casos como os dos verbetes desperdiçar/esperdiçar, levantar/alevantar, acovardado/acobardado, turvar/turbar, soprar/assoprar, alvoroço/alvoroto, alvoroçar/alvorotar, alvoroçado/alvorotado (DUPB (2002, 77 Através de pesquisas em sites de busca da internet (realizadas em 27/09/2006) encontramos 4 ocorrências para ibopeano, 5 para lumpemburguesia e 0 para lumpemburguês e fellinófilo. 78 LOPES NETO, Simões. 5. ed. Porto Alegre, Globo, 1957. 79 VERÍSSIMO, Érico. Porto Alegre, Globo, 1956. 80 ROSA, João Guimarães. Rio de Janeiro, José Olympio, 1951. s.v.)), entre outros, podem ser tomados como exemplo de uma decisão acertada, já que a definição está realmente na variante mais usada. No entanto, há casos em que a variante considerada de maior freqüência pelo dicionário não corresponde à norma real, como em: foro/fórum, rasto/rastro, louro/loiro, surripiar/surrupiar, susceptível/suscetível e inúmeros outros. Em pesquisas feitas no site de busca Google (realizadas em 11.09.2006), encontramos 1.680.000 ocorrências para a forma foro (DUPB (2002, s.v.)) nas seguintes acepções: “centro de debates” e “jurisdição, vara”, enquanto que para a variante fórum, considerada de menor freqüência por DUPB (2002), encontramos 22.6000.000 ocorrências, um número infinitamente maior de ocorrências com relação à forma foro. O mesmo ocorre com rasto/rastro (DUPB (2002, s.v.)). Para a primeira palavra encontramos 20.200 ocorrências enquanto que para a segunda, 344.000; com susceptível/suscetível (DUPB (2002, s.v.)), com 355.000 ocorrências para esta forma e apenas 107.000 para aquela; com loura/loira (DUPB (2002, s.v.)), cujos números de ocorrências são de 644.000 para loira contra 162.000 para loura e com as variantes abdome/abdômen (DUPB (2002, s.v.)). Em DUPB (2002), a forma abdome é considerada a mais usual na língua portuguesa. Entretanto, os dados obtidos através de pesquisa no Google apontam para a forma abdômen como a mais freqüente, com 470.000 ocorrências contra 239.000 para a forma abdome. Para finalizar, mais um caso: surripiar/surrupiar (DUPB (2002, s.v.)). Para a primeira forma encontramos 182 ocorrências, já para a segunda foram 9.750. Aparece ainda a forma surripiado, cujo número de ocorrências é bem menor que o da forma surrupiado, sendo, porém, que esta última não está documentada em DUPB (2002). Nesse dicionário há informação quanto à pronúncia somente em alguns casos de palavras homônimas não homófonas, nas quais a diferença de significação se dá pelo acento prosódico, como em corte(ó)/corte(ô), forma(ó)/forma(ô), soquete(é)/soquete(ê) (DUPB (2002, s.v.)). Mas falta um certo rigor, porque não há diferenciação quanto à pronúncia do e no caso de sede/sede. O número de marcas diafásicas e diastráticas apresentado por DUPB (2002) é relativamente pequeno se comparado com outros dicionários monolíngües do português. Em sua lista de abreviaturas é possível encontrar apenas as seguintes marcas: Ch[ulo], Coloq[uial], Deprec[iativo] e Joc[oso]. A maior incidência é da marca Coloq: chacrinha (Coloq) “reunião informal e íntima” (DUPB (2002, s.v.)), sacana (Coloq), sacanear (Coloq), sacaneta (Coloq) “pessoa muito sacana” (DUPB (2002, s.v.)). Exemplos com a marca Deprec são fabriqueta e mané. Há também muitos lexemas que carecem de uma marca diastrática ou diafásica, como hostes, imorredouro, íncola, treco e a construção sintática na fossa81. Esse fato configura uma falha de DUPB, já que é indiscutível que essas palavras não pertencem a um registro “neutro” da língua e que umas são mais adequadas a um contexto mais culto enquanto que outras a um contexto mais informal, e essa informação deveria ser fornecida ao consulente do dicionário. A única marca diatécnica que aparece na lista de abreviaturas de DUPB (2002) é Aeron[náutica]. Palavras como as já citadas dexfenfluramina, adrenoleucodistrofia e esofagogastroanastomose poderiam ser marcadas como pertencentes à linguagem especializada da Química, da Genética e da Medicina, respectivamente. Como DUPB (2002) se limita à descrição do português brasileiro, as marcas diatópicas apresentadas se referem apenas a algumas regiões que conformam o país, não havendo, portanto, marcas como lusitanismo (como podemos encontrar em HouE (2001), por exemplo). As marcas diatópicas que aparecem em DUPB (2002) são: Reg N – Regionalismo do Norte Reg NE – Regionalismo do Nordeste Reg S – Regionalismo do Sul Reg SE - Regionalismo do Sudeste Reg L - Regionalismo do Leste Reg O - Regionalismo do Oeste Reg C-O - Regionalismo do Centro-Oeste Vejamos alguns exemplos de palavras marcadas diatopicamente: muchacho, chimango, china e cusco como Reg S, macaxeira e batedeira “febre intermitente” (DUPB (2002, s.v.)) como Reg NE e barranquear “pescar junto a barranco” (DUPB (2002, s.v.)) como Reg CO. DUPB (2002) inclui ainda em sua macroestrutura palavras com a marca diacrônica obsoleto, como regalo “agasalho para as mãos” (DUPB (2002, s.v.)), ludopédio “futebol” (DUPB (2002, s.v.)), ludópoda “jogador de futebol” (DUPB (2002, s.v.)), lues “sífilis” (DUPB (2002, s.v.)), lupanar “bordel” (DUPB (2002, s.v.)) e gume “gel fixador de cabelos” (DUPB (2002, 81 HouE (2002), por exemplo, marca íncola como formal e fossa como informal. s.v.)). Isso, como já dito, nos parece uma séria falha para um dicionário que se diz descritivo da língua portuguesa contemporânea. Quanto à questão dos neologismos, DUPB (2002) inclui em sua macroestrutura tanto neologismos vernáculos como imexível (DUPB (2002, s.v.)), bioética (DUPB (2002, s.v.)), abobalhado “que é ou se tornou bobo, tolo, aparvalhado” e encapsular “colocar em cápsulas, embalar” (DUPB (2002, s.v.))82 quanto não-vernáculos, isto é, oriundos de outras línguas, tais como hardware (DUPB (2002, s.v.)), mouse (DUPB (2002, s.v.)). Para esses casos, no entanto, DUPB (2002) não apresenta nenhuma marca diacrônica, apenas a indicação da língua fonte, ou seja, da língua de origem de tais palavras: laptop, skate, slide, smoking com a indicação Ingl[ês] e affaire com a indicação Fr[ancês]. Quanto à indicação de uso sintático, DUPB (2002) tem como preocupação apresentar de maneira bastante minuciosa informações relativas ao uso sintático das palavras, esclarecendo, por exemplo, o uso das preposições e informando o tipo de complemento que a palavra-entrada pode ter: embromar V [Ação-processo] [Compl: nome humano] 1 enganar com protelações, tapear [ação] 2 deixar de tomar decisões; negligenciar. (DUPB (2002, s.v.)) surripiar/surrupiar V [Ação-processo] [Compl1: nome concreto nãoanimado] +- Compl2: a/de + nome humano] 1 furtar; subtrair [Compl1: nome abstrato] 2 sonegar [Compl: nome humano] 3 roubar. (DUPB (2002, s.v.)) surripiado Adj [Classificador] [Compl: furtado/escamoteado. (DUPB (2002, s.v, ac. 1)). a/de + nome] morar V [Processo] [+- Compl: em + nome abstrato] 1 entender; compreender [Estado] [Compl de lugar] 2 residir. (DUPB (2002, s.v.)) O objetivo desse dicionário ao fornecer tais informações é apresentar “o modo como a língua se organiza” (DUPB (2002, p. V)), ou seja, descrever como os falantes se comportam quanto às construções sintáticas da língua. Logo, entendemos que não há, pelo menos 82 Como DUPB (2002) não apresenta para nenhum verbete a marca diacrônica neologismo, consultamos HouE (2001) para o levantamento dos verbetes aqui apresentados, posto que nesse dicionário é possível encontrar a informação do século em que as palavras surgiram na língua (procuramos por palavras surgidas no século XX). Para fins de exemplificação, podemos citar ainda uma série de neologismos tanto de signo quanto de significação que surgiram recentemente na língua e que ainda não foram dicionarizados, mas que possivelmente serão (em uma próxima edição da obra) devido ao seu largo uso por parte dos falantes: pegável, cadeirante, mensalão (neologismos de signo) e chapinha, ficar, pancadão (neologismos de significação). declaradamente, nenhuma intenção prescritiva, porém é muito provável que o consulente possa vir a entender essas informações sintáticas como normativas, ou seja, como regras a serem seguidas quando da produção escrita ou oral, posto que a busca do usuário é, geralmente, pelo normativo. De fato, é perfeitamente possível pensar que a não observância do padrão sintático proposto no verbete constitui um solecismo (cf. Mattoso Câmara (1996, s.v. solecismo)). Ainda com relação a esse tema, DUPB (2002) apresenta um problema de incoerência entre aquilo que descreve como uso sintático e os exemplos que apresenta, pois não raro, o exemplo não está de acordo com a construção sintática que aparece no dicionário83. Bugueño [inédito] analisa, entre outros, os verbetes grifar e fornecer a fim de verificar a coerência entre a indicação sintática e o exemplo apresentado e constata o seguinte: Assim, por exemplo, s.v. grifar aparece a seguinte indicação sintática: “[compl: nome concreto não animado] 1 sublinhar: (...)”. A seguir, o verbete apresenta dois exemplos, dos quais só o primeiro corresponde à descrição sintática proposta para o verbo. O segundo exemplo, pelo contrário, sugere claramente que o verbo grifar pode ser empregado também em “estado absoluto”, ou seja, sem um objeto direto: “(...) alguns têm o hábito de grifar, fazer sinais, anotações a lápis ou tinta (...)” (DUPB (2002, s.v.)). No sentido inverso, isto é, quando há uma indicação de que o objeto direto é prescindível, como s.v. fornecer, por exemplo, ocorre exatamente o contrário, isto é, os exemplos demonstram que o acusativo é obrigatório: “(...) 1. prover; abastecer: Dr. Guilherme forneceu a Aimbé mantimentos (M); Daí o homem da venda do Anhumas forneceu mantimentos para a turma (ID) (...)” (DUPB (2002, s.v.)) Essa análise nos mostra que DUPB (2002) apresenta alguns (sérios) problemas quanto ao que se pretende e ao que de fato apresenta, o que abala sua qualidade e prejudica os usuários, que esperam se deparar com determinadas informações, mas acabam encontrando outras. 83 No que concerne aos exemplos e abonações, DUPB (2002) apresenta para cada acepção uma ou mais abonações, que são os contextos em que a palavra ocorre e que mostram como ela está efetivamente sendo usada. Segundo o autor, houve uma preocupação por organizar os verbetes de modo que o usuário tivesse de um lado uma informação geral de como a língua se organiza, e de outro, exemplos de como a língua está sendo efetivamente usada nos textos (Cf. DUPB (2002, p. VII)). Observe-se que o autor fala da língua usada nos textos e não usada pelos falantes. Já vemos, pois, que a obra tem um forte caráter prescritivo, já que os materiais escritos, geralmente, privilegiam a norma padrão da língua. Ademais, se analisarmos as referências que conformam o corpus no qual DUPB (2002) está baseado, perceberemos que se trata de textos literários ou jornalísticos, sendo que nesses casos é utilizada quase que exclusivamente a língua em sua modalidade padrão. 4.2 GDUEA (2001) Esse dicionário é considerado pioneiro na lexicografia espanhola contemporânea pelo fato de apresentar, usando corpus84, uma densidade macroestrutural de grande magnitude: 72.000 verbetes85. Esse corpus é composto por 20 milhões de palavras que segundo os autores, são (ou eram) amplamente representativas do espanhol falado na Espanha e na Hispano-América no fim do século XX e início do XXI em sua variedade escrita e oral e de onde foram tiradas as entradas que conformam a macroestrutura de GDUEA (2001). GDUEA (2001) não tem a pretensão de ser um dicionário normativo, mas sim de ser uma obra descritiva, isto é, que trata da língua usada na atualidade. GDUEA (2001) tem por objetivo “oferecer um modelo que se ajuste realmente à língua falada em nossos dias” (GDUEA (2001, p. 7))86. Baseado no número de ocorrências dos verbetes no corpus Cumbre, GDUEA (2001) estabeleceu uma escala de indicação de freqüência que vai de 0 (não marcado) a 5, de modo que nesse dicionário o uso é quantitativamente marcado. Para estabelecer essa escala, o dicionário estipulou um número mínimo de ocorrências por milhão, como discriminado no quadro abaixo: 1 2 3 4 5 frecuencia no significativa menos de 5 ocorrências sobre o total do corpus ou 0,25 por milhão frecuencia baja até 3 por milhão frecuencia moderada 3-10 por milhão frecuencia notable 11-25 por milhão frecuencia alta 26-75 por milhão frecuencia muy alta mais de 75 por milhão (cf. GDUEA (2001, p. 10)) Parece-nos que a inclusão de palavras cuja freqüência não é significativa é uma atitude equivocada desse dicionário, porque não reflete a norma real da língua. Isso nos leva a refletir ainda sobre a validez dessas informações numéricas. No caso de a freqüência ser alta, o falante não terá nenhum problema para deduzir que tais palavras são amplamente usadas na língua, porém, quando o usuário do dicionário se depara com um verbete cuja freqüência é “não 84 Trata-se do Corpus Cumbre, financiado pela própria editora do dicionário, a SGEL. Não nos parece que essa densidade macroestrutural seja adequada para um dicionário que objetiva descrever a língua em uso pelos falantes do espanhol, posto que muitos dos verbetes certamente não têm um uso muito difundido entre os usuários da língua. O dicionário da RAE (DRAE (2001)), por exemplo, que é um dicionário geral de língua, contém cerca de 80.000 entradas. 86 [ofrecer un modelo que se ajuste realmente a la lengua hablada en nuestros días]. 85 significativa”, ele terá que buscar respostas que justifiquem esse baixo número de ocorrências, que pode estar ligado ao fato de a palavra estar em processo de desuso, ou se tratar de um neologismo ou ainda, de um tecnicismo. Em uma análise mais atenta do conjunto de verbetes de freqüência não significativa que constam em GDUEA (2001), pudemos constatar que se trata, em sua grande maioria, de diatecnicismos, ou seja, palavras pertencentes a áreas bastante específicas do conhecimento e por isso marcadas diatecnicamente, como é o caso de: nos.tras [nóstras] adj MED Se aplica a las enfermedades propias del país o países de que trata el especialista que escribe sobre ellas, en oposición a las de otros lugares. (GDUEA (2001, s.v.)) fla.vo, -va [flaβo] adj LIT De color amarillo rojizo. (GDUEA (2001, s.v.)) neu.ro.to.xi.có.lo.go, -a [neurotoksikólogo] s/m, f MED especialista en neurotoxicología. (GDUEA (2001, s.v.)) ba.ri.ta [barita] s/f QUÍM óxido de bário. (GDUEA (2001, s.v.)) Outros exemplos de lexias com marca diatécnica são: aballar ART[es] “difuminar las líneas o colores de un cuadro” (GDUEA (2001. s.v.)), abañar AGR[icultura] “seleccionar la simiente mediante un cribado especial” (GDUEA (2001. s.v.)), baderna NÁUT[ica] “cuerda o cable trenzado para sujetar los útiles de una embarcación” (GDUEA (2001. s.v.)), banderillear TAUR[omaquia] “clavar banderillas en la cerviz de un toro” (GDUEA (2001. s.v.)), báratro MIT[ología] “infierno; lugar donde residen las almas de los muertos (GDUEA (2001. s.v.)), barriguera EQUIT[ación] “correa que cruza y ciñe el vientre de las caballerías de tiro” (GDUEA (2001. s.v.)), narval ZOOL[ogía] “cetáceo que puede alcanzar hasta seis metros de largo, de cuerpo grueso y brillante con la piel de color blanco y con vetas pardas en el lomo (...) (GDUEA (2001. s.v.)), oxicorte TÉC[nica, nología] “técnica para cortar metales mediante un soplete oxiacetilénico” (GDUEA (2001. s.v.)). Com base nesses dados, é possível dizer que GDUEA (2001) se comporta mais como um dicionário geral de língua, isto é, um dicionário que lematiza diversas unidades léxicas da língua (e que figuram no corpus Cumbre) ainda que sua representatividade na norma real não seja muito expressiva. Parece-nos, porém, que enquanto dicionário de uso entendido como freqüência, GDUEA (2001) deveria ter feito uma filtragem mais cuidadosa das unidades léxicas e um estudo sobre a pertinência da inclusão das mesmas em sua macroestrutura. No tocante à estruturação do verbete, pode-se constatar que todos apresentam o número indicador de freqüência (exceto aquelas palavras que não são marcadas) e as acepções estão dispostas por ordem de ocorrência, isto é, primeiro aparece aquela mais freqüente e assim sucessivamente até todas as acepções serem elencadas e para cada acepção há um exemplo extraído do corpus, que serve principalmente para comprovar o uso do verbete com aquela significação bem como para ajudar a entender a paráfrase definidora: 5 e.dad [eñañ] s/f 1. Periodo de tiempo vivido por una persona, animal o planta empezando a contar desde el momento de su nacimiento: El estudiante de veinte años convivía con un compañero de su misma edad. Un árbol de quinientos años de edad. 2. Cada una de las fases en la vida de una persona, caracterizadas por ciertos aspectos que las definen: Edad adulta. 3. Cada una de las épocas que se distinguen en la historia: La Edad Contemporánea. La Edad Media. 4. Duración de una cosa material, p.ej. un edificio, escultura, mueble, etc., desde el momento en que apareció, fue construido, etc.: El viejo edificio del Casino de Murcia cumple 150 años de edad. (GDUEA (2001, s.v.)) Além disso, GDUEA (2001) traz em cada verbete a separação silábica (feita através de pontos entre as sílabas do verbete) e a transcrição fonética: 2 cen.tro.a.me.ri.ca.no, -na [θentroamerikáno] 3 za.pa.tis.ta [θapatísta] 5 zo.na [θona] (GDUEA (2001, s.v.)) A justificativa de GDUEA (2001) para incluir a separação silábica e a transcrição fonética se respalda no fato de que esse dicionário se destina não só para falantes nativos de espanhol, mas também para estudantes e professores de espanhol como língua estrangeira (ELE) (Cf. GDUEA (2001, p. 12)). A separação silábica não apresenta nenhum problema maior, já que se enquadra no âmbito da norma ortográfica, fixada de comum acordo entre todas as academias dos países de língua espanhola. Trata-se, portanto, de uma característica normativa. Já a transcrição fonética, da forma como é apresentada, é algo que apresenta problemas, primeiro porque um dicionário monolíngüe da língua espanhola não teria necessidade de apresentá-la, dada a relativa compatibilidade entre o sistema fonético e as letras do alfabeto. No entanto, como dito anteriormente, GDUEA (2001) justifica essa atitude por se destinar também a aprendizes de espanhol como língua estrangeira. Fato é que a transcrição fonética também passa a ser uma característica normativa nesse caso porque a transcrição fornecida é a da variante do espanhol falado nas regiões central e do norte da Espanha, já que os falantes dessas regiões realizam o fonema /c/ diante das vogais /e/ /i/ e o fonema /z/ diante das vogais /a/, /o/ /u/ como a consoante interdental [θ]. No entanto, no sul da Espanha e em praticamente toda a Hispano-América os falantes realizam tais fonemas como uma fricativa dental [s] de modo que, se a transcrição fonética fosse estabelecida com base em um critério de ocorrência, a realização dos falantes da Hispano-América deveria ser a apresentada no dicionário, já que são cerca de 300 milhões de falantes realizando a fricativa dental [s] contra cerca de 80 milhões realizando a interdental [θ]. Seria possível dizer, com base no acima exposto, que para os falantes das regiões centro e norte da Espanha, a transcrição fonética funciona como uma informação descritiva, enquanto que para o restante dos falantes nativos de espanhol, bem como para os aprendizes estrangeiros dessa língua, seria uma informação normativa, por estabelecer uma única forma de pronunciar os fonemas /c/ e /z/. No entanto, para ser coerente com sua denominação de dicionário de uso enquanto descrição da língua, GDUEA (2001) deveria apresentar as duas possibilidades de realização fonética. Em se tratando das variantes ortográficas, GDUEA (2001) utiliza um sistema de remissão da forma menos usada para a forma de maior freqüência, sendo esta a que apresenta a definição87: fi.sio.no.mía [fisjonomía] s/f fisonomía. (GDUEA (2001, s.v.)) 2 fi.so.no.mía [fisonomía] s/f Conjunto de rasgos que perfilan el aspecto exterior de alguien o algo y que pueden revelar otros aspectos más íntimos o no evidentes (...). (GDUEA (2001, s.v.)) 87 Não há nas partes introdutórias desse dicionário nenhum tipo de informação com relação à lematização das variantes ortográficas. Através da observação do indicador de freqüência que fornece o próprio dicionário pudemos concluir que na forma menos usual está a remissão para a forma mais usual, sendo que esta é a que contém a paráfrase definidora. Outros casos de variantes ortográficas são88: bikini/biquini, armonía/harmonía, armónico/harmónico, armonioso/harmonioso, armonizar/harmonizar, septiembre/setiembre89, insustituible/insubstituible, sustancia/substancia, sustantivo/substantivo, psicólogo/sicólogo, psicoanálisis/sicoanálisis, psicodélico/sicodélico90 e outras unidades léxicas que iniciam com o grupo consonantal /ps-/. Através de pesquisas no site de busca Google (realizadas em 20/11/2006) pudemos constatar que a forma considerada type pelo dicionário realmente é a de maior freqüência para todos os casos acima apresentados91. A lista de marcas diafásicas e diastráticas é consideravelmente maior que a de DUPB (2002), sendo que muitas acepções apresentam essas marcas como forma de alertar o consulente de que determinadas palavras têm seu uso relacionado a um determinado contexto. Assim, a marca VULG[ar] apresentada para a palavra abajamiento “acción o resultado de abajar” (GDUEA (2001. s.v.)), indica ao usuário que se deve evitar seu uso, por exemplo, em contextos mais formais. Outras palavras marcadas são ingênito, -ta CULT[ismo] “no engendrado” (GDUEA (2001. s.v., ac.2)), nictálope CULT[ismo] “se aplica a la persona o animal que tiene mejor visión de noche” (GDUEA (2001. s.v.)), escachar COL[oquial] “aplastar o espachurrar” 88 Em GDUEA (2001), as variantes ortográficas não aparecem em sistema de barras como em DUPB (2002). Ambas formas são lematizadas em separado e há remissão da forma menos freqüente para a mais freqüente. Para efeitos de exemplificação adotaremos o sistema de barras, sendo que a palavra que aparece primeiro é a forma mais freqüente, a considerada type. 89 Sobre esse caso em particular, DPD (2005), obra publicada pela RAE com o intuito de esclarecer dúvidas relativas ao emprego da língua, diz o seguinte: “la pronunciación de la p se relaja considerablemente en el grupo pt situado en interior de palabra, pero solo es corriente su pérdida en séptimo y septiembre, que se pronuncian a menudo en el habla espontánea, al menos en España, [sétimo] y [setiémbre]; por ello se admiten también las grafías sétimo y setiembre, aunque en el uso culto se siguen prefiriendo decididamente las grafías con -pt-”. (DPD (2005, s.v. p, ac. 4)). 90 Sobre as palavras que apresentam o grupo consonantal /ps-/ em posição absoluta, DPD (2005) descreve o uso real feito pela comunidade lingüística e também se mantém fiel às normas estabelecidas pela RAE: “el grupo consonántico ps, resultado de la transcripción de la letra griega psi, aparece en posición inicial de palabra en numerosas voces cultas formadas sobre raíces o palabras griegas que comienzan por esa letra (psyché ‘alma’, pseudo- ‘falso’, psitakkós ‘papagayo’, etc.). En todos los casos se admite en la escritura la reducción del grupo ps- a s-, grafía que refleja mejor la pronunciación normal de las palabras que contienen este grupo inicial, en las que la pno suele articularse: sicología, sicosis, siquiatra, sitacismo, seudoprofeta, etc. No obstante, el uso culto sigue prefiriendo las grafías con ps-: psicología, psicosis, psiquiatra, psitacismo, pseudoprofeta, etc., salvo en las palabras seudónimo y seudópodo, que se escriben normalmente sin p-”. (DPD (2005, s.v. p, ac.3)) 91 No caso específico do grupo consonantal /ps-/ em início de palavra há que se levar em conta a modalidade oral e a modalidade escrita da língua espanhola, posto que esse grupo consonantal geralmente não é articulado pela maioria dos falantes nativos porque há uma tendência a reduzir o grupo consonantal /ps-/ para uma sibilante /s-/, daí as formas sicólogo, sicoanálisis, etc. No entanto, a RAE considera como canônicas as formas com o grupo /ps-/ em posição inicial – psicólogo, psicoanálisis. Acreditamos que termos encontrado uma freqüência maior para as formas canônicas em nossas pesquisas se deve ao fato de estarmos tratando da modalidade escrita da língua, na qual os falantes buscam empregar a forma canônica seguindo as indicações da RAE. Se estivéssemos lidando com o registro oral é possível que nos depararíamos com outros números. Em Bugueño (2006), encontramos maiores informações acerca dessas questões. (GDUEA (2001. s.v.)), clerigalla DES[pectivo] “clero” (GDUEA (2001. s.v.)), e agüista INFML [informal] “persona que, en un balneario, toma las aguas” (GDUEA (2001. s.v.)). Tendo em vista que GDUEA (2001) abarca tanto a variedade peninsular quanto a americana do espanhol, é esperado que apresente um sistema de marcação diatópica. Essas marcas servem para apontar os americanismos, ou seja, aquelas palavras ou locuções usadas especificamente na Hispano-América ou que tenham nessa ampla área um conteúdo semântico peculiar92. Por isso, na lista de abreviaturas de GDUEA (2001), encontram-se as siglas correspondentes a todos os países de língua espanhola da América do Sul e Central. Alguns exemplos de marcação diatópica podem ser vistos em: cuadra AMER “tramo de una calle, avenida, etc., comprendida entre dos esquinas” (GDUEA (2001. s.v.)), farruto, -ta AMER “que es de constitución débil o enfermiza” (GDUEA (2001. s.v.)), alacranear AR[gentina] “hablar mal de los demás” (GDUEA (2001. s.v.)), e pibe, -ba AR “persona joven” (GDUEA (2001. s.v.)). No tocante às marcas diacrônicas, podemos encontrar na lista de abreviaturas de GDUEA (2001) a marca ARC[aico], o que nos leva a concluir que na macroestrutura estão incluídas unidades léxicas de uso não-freqüente ou até mesmo desusadas em espanhol: paletó ARC “abrigo de paño grueso, de forma entallada y largo, que era semejante a la levita” (GDUEA (2001. s.v.)), pancera ARC “pieza de la armadura que cubría el vientre” (GDUEA (2001. s.v.)), palafrén ARC “caballo manso destinado al uso de las damas en cacerías o en fiestas” (GDUEA (2001. s.v., ac.1)), paño ARC “tejido de lana en general” (GDUEA (2001. s.v.)), murciégalo ARC “murciélago” (GDUEA (2001. s.v.)) e bófeta “antiguamente, tela de algodón delgada y tiesa” (GDUEA (2001. s.v.)). Contudo, nos parece que para um dicionário que pretende apresentar “os significados que os falantes nativos de espanhol atribuem às palavras nos inícios do século XXI”93 (Cf. GDUEA (2001, p. 7)), é uma incoerência incluir palavras ou acepções arcaicas ou antiquadas94. Com relação aos neologismos, GDUEA (2001) inclui em sua macroestrutura todos aqueles que figuram no corpus Cumbre. Dessa forma, tanto neologismos vernáculos como ciclovía “espacio reservado para la circulación exclusiva de bicicletas” (GDUEA (2001, s.v.)) 92 Em trabalho apresentado na Mostra Unisinos de Iniciação Científica (Zanatta (2006a)), foram abordadas diversas questões acerca dos americanismos a partir da análise de quatro dicionários que tratam exclusivamente desse tema, os chamados dicionários de americanismos. 93 [los significados que los hablantes nativos de español asignan a las palabras en los inicios del siglo XXI]. 94 Esse tipo de informação é típico dos dicionários gerais, como Hou (2001), por exemplo, no qual os arcaísmos são inteligentemente rotulados de “arqueologia verbal” (Cf. Hou (2001)). caficultor “persona que cultiva, cosecha o comercia con café” (GDUEA (2001, s.v.)), discar “marcar un número en el teléfono” (GDUEA (2001, s.v.)) e trampeo “acción o resultado de trampear” (GDUEA (2001, s.v.))95 quanto estrangeirismos como airbag (GDUEA (2001, s.v.)), software (GDUEA (2001, s.v.)), boutique (GDUEA (2001, s.v.)), boulevard (GDUEA (2001, s.v.)) aparecem nesse dicionário e assim como em DUPB (2002), não há marca diacrônica, apenas a informação da língua de origem da palavra. No quesito “indicação de uso sintático”, GDUEA (2001) apresenta explicitamente o “régimen preposicional” de verbos, substantivos e adjetivos dizendo que as preposições que acompanham necessariamente algumas palavras “são uma informação de grande utilidade para o uso adequado [grifo nosso] do espanhol”96 (GDUEA (2002, p. 9)). Mas a que uso adequado se refere o dicionário? Provavelmente ao emprego da língua de acordo com a norma padrão, o que nos leva a concluir que essa é uma atitude prescritiva tomada pelo dicionário . Assim, em GDUEA encontramos informações como: ca.rac.te.ri.zar v/tr RPr caracterizarse de/por mie.do s/m RPr miedo a/de/por bur.lar vREFL(-se) RPr burlarse de gus.tar v/intr RPr gustar de97 (GDUEA (2001, s.v.)) GDUEA (2001), assim como DUPB (2002) assume então um caráter prescritivo, que somado ao seu ideal descritivo nos permite concluir que para esse dicionário “uso” abarca tanto a noção de norma real quanto a de norma ideal. Além disso, GDUEA (2001) também apresenta incoerência quanto ao que se propõe e as informações que realmente fornece ao consulente, pois um dicionário que pretenda descrever a língua de fato empregada pelos falantes não deveria incluir em sua macroestrutura um número bastante grande de unidades léxicas cuja freqüência não é significativa. 95 Os exemplos de neologismos vernáculos foram retirados das páginas introdutórias do dicionário (cf. GDUEA (2001, p. 9)). 96 [son una información de gran utilidad para el uso adecuado del español]. 97 Em DPD (2005), pode-se encontrar para o verbete gustar as mesmas informações constantes em GDUEA (2001) sobre o “régimen preposicional”. Já para o verbete miedo, DPD (2005) não menciona a preposição por. Os outros dois verbetes citados (caracterizar e burlar) não aparecem em DPD (2005). 4.3 DUEAE (2002) O DUEAE (2002) se define como um dicionário de características pan-hispânicas, isto é, que se destina a todos os falantes – nativos ou não – de língua espanhola. Tal dicionário pretende ajudar seu consulente “oferecendo uma descrição do que se poderia chamar espanhol comum atual”98 (cf. DUEAE (2002, p. VI)). Para tanto, o primeiro critério estabelecido foi o de que o dicionário refletisse a língua espanhola da atualidade tendo por base o corpus VOX, a partir do qual seria possível encontrar exemplos de diferentes usos da língua presentes tanto em sua modalidade escrita quanto oral e presente em fontes literárias ou não literárias. Em resumo, DUEAE (2002) se diz “um dicionário que descreve o uso geral que atualmente se faz da língua espanhola”99 (cf. DUEAE (2002, p. VII)). Trata-se, portanto, do uso entendido como descrição. No entanto, um pouco mais adiante na “Apresentação” do dicionário, encontramos a seguinte afirmação: [DUEAE] também é um dicionário de uso. Por dicionário de uso em lexicografia se entende aquele que oferece facilidades para a expressão, e não apenas para a compreensão como são os dicionários tradicionais. Definições, informação de sinônimos, antônimos e de construção sintática, inclusão de fraseologia, assim como abundância de exemplos facilitam precisar a expressão, ajudam a escrever. A palavra se apresenta em suas relações paradigmáticas de morfologia e de significação, principalmente; e em suas relações sintagmáticas de possibilidades de construção100. (DUEAE (2002, p. X)) Tal afirmação nos leva a concluir que esse dicionário entende “uso” também como prescrição, pois através de informações sintáticas tem a intenção de ajudar o consulente na sua produção 98 [ofreciendo una descripción de lo que se podría llamar español común actual]. Por “español común actual” o dicionário entende 1) a língua espanhola que apresenta elementos, palavras e expressões que sempre foram ditas e que continuarão sendo ditas ao longo da evolução da língua, 2) o espanhol que mesmo não sendo compartilhado por todos os falantes, se firmou em alguma região em que esse idioma é falado e 3) as palavras e expressões que ingressaram em alguma das variedades do espanhol na época atual para nomear entidades novas e que se fixaram na língua com formas alternativas (cf. DUEAE (2002, p. VI e VII)). 99 [un diccionario que describe el uso general que hoy se hace de la lengua española]. 100 [[DUEAE] también es un diccionario de uso. Por diccionario de uso en lexicografía se entiende el que ofrece facilidades para la expresión, y no sólo para la comprensión como son los diccionarios tradicionales. Definiciones, información de sinónimos, antónimos y de construcción sintáctica, inclusión de fraseología, así como abundancia de ejemplos facilitan precisar la expresión, ayudan a redactar. La voz se presenta en sus relaciones paradigmáticas de morfología y de significado, principalmente; y en sus relaciones sintagmáticas de posibilidades de construcción]. lingüística101, e como já vimos, a indicação de uso sintático é um aspecto normativo presente nos dicionários. Há também, como veremos mais detidamente a seguir, uma série de informações referentes à fonologia, e à ortografia. Então, no quesito “norma real” versus “norma ideal”, já encontramos uma diferença com relação aos dicionários já analisados: DUEAE (2002) declara abertamente que entende o uso como freqüência (norma real) e também como prescrição (norma ideal) e isso o torna mais coerente com as informações que apresenta, posto que estão de acordo com aquilo a que se propõe. Assim como em DUPB (2002), em DUEAE (2002) não há nenhuma indicação quanto à freqüência no corpus das unidades léxicas que conformam sua macroestrutura. Quanto à ortografia, em alguns casos há o sistema de remissões, como nos outros dicionários analisados, da forma menos freqüente para a mais freqüente e nesta aparece a definição. Alguns exemplos são zebra, que faz remissão à cebra, (DUEAE (2002, s.v.)) sendo esta a forma que contém a definição, fisionomia com remissão à fisonomía (DUEAE (2002, s.v.)), transplante remetendo à trasplante (DUEAE (2002, s.v.)), substantivo que faz remissão à sustantivo (DUEAE (2002, s.v.)), sicólogo remetendo à psicólogo (DUEAE (2002, s.v.)), sicología à psicologia (DUEAE (2002, s.v.)) e outras palavras com o grupo consonantal /ps-/ em posição inicial absoluta. Em outros casos, as duas variantes apresentam a definição. Assim se comportam, entre outros, os verbetes abaixo: septiembre (también setiembre) (...) Noveno mes del año. (DUEAE (2002, s.v.)) setiembre (también septiembre) (...) Noveno mes del año. (DUEAE (2002, s.v.)) cigoto (también zigoto) (...) biología Célula que resulta de la unión de las células sexuales masculina y femenina y a partir de la cual se desarrolla el embrión de un ser vivo. (DUEAE (2002, s.v.)) zigoto (también cigoto) (...) biología Célula que resulta de la unión de las células sexuales masculina y femenina y a partir de la cual se desarrolla el embrión de un ser vivo. (DUEAE (2002, s.v.)) 101 É interessante salientar que a função prescritiva desse dicionário inclui tanto a produção lingüística quanto a compreensão da língua. O mesmo ocorre com DUE (1999), como veremos no seguinte subcapítulo, que está voltado tanto para a produção quanto para a compreensão lingüísticas. O mesmo ocorre com armonioso/harmonioso (DUEAE (2002, s.v.)), armónico/harmónico (DUEAE (2002, s.v.)), armonía/harmonía (DUEAE (2002, s.v.)), acimut/azimut “ángulo que forma el meridiano con el círculo vertical que pasa por un punto de la esfera celeste o del globo terráqueo” (DUEAE (2002, s.v.)), gnomo/nomo “ser fantástico con figura de enano y poderes mágicos que vive escondido en los bosques” (DUEAE (2002, s.v.)). Não há, no entanto, nenhuma explicação acerca dos motivos pelos quais o dicionário procede de tal maneira, apresentando em alguns casos a definição para ambas as variantes e em outros utilizando o sistema de remissões. Uma particularidade desse dicionário com relação à ortografia, é que ele apresenta, no caso de empréstimos lingüísticos, a grafia de acordo com os padrões da língua alvo e numa seção chamada “observación” alerta para o fato de o consulente poder encontrar a mesma palavra com a grafia de acordo com a língua de origem: alegreto (...) música Composición musical, o parte de ella, que se ejecuta de manera un poco menos rápida que el alegro. OBSERVACIÓN Puede encontrarse la grafía italiana allegretto. (DUEAE (2002, s.v. ac. 1)) euscaldún, -duna (...) 1Esp [persona] que habla eusquera. 2 Esp [persona] que es del País Vasco (España). OBSERVACIÓN Pueden encontrarse las grafías euskaldun (vasca) y euskaldún. (DUEAE (2002, s.v.)) Outros exemplos são: bazuca (grafía inglesa bazooka) (DUEAE (2002, s.v.)), chantillí (grafía francesa chantilly) (DUEAE (2002, s.v.)), pipermín “licor de menta” (grafía inglesa pippermint) (DUEAE (2002, s.v.)), radiocasete “aparato electrónico que consta de un receptor de radio y un casete” (grafía francesa e inglesa radiocassette) (DUEAE (2002, s.v.)), suajili “lengua bantú oriental que se habla en Kenia” (grafía inglesa swahili o la forma parcialmente castellanizada suahili) (DUEAE (2002, s.v. ac. 1)). Com relação à pronúncia, DUEAE (2002) fornece alguma informação somente nos casos de estrangeirismos. Essa informação aprece ao final do verbete, numa seção intitulada “observación”. É importante ressaltar que a indicação de pronúncia de estrangeirismos se dá através das próprias letras do alfabeto espanhol, que serve de respaldo para as letras da língua fonte. Consideramos tal atitude acertada, pois facilita a compreensão da informação por parte do usuário: ace (...) deporte Jugada de tenis en la que el jugador obtiene directamente un tanto al efectuar un saque sin que el adversario consiga tocar la pelota. OBSERVACIÓN Se pronuncia `eis´. (DUEAE (2002, s.v.)) affaire (...) 1 Negocio, asunto o caso ilegal o escandaloso. 2 Relación amorosa o sexual que no implica compromiso. OBSERVACIÓN Se pronuncia aproximadamente `afer´. (DUEAE (2002, s.v.)) boite (...) Establecimiento en el que se escucha y se baila música grabada, y donde se pueden consumir bebidas. OBSERVACIÓN Se pronuncia aproximadamente `buat´. (DUEAE (2002, s.v.)) carpaccio (...) Plato que se prepara con carne o pescado crudos cortados muy finos y macerados generalmente con zumo de limón o con aceite de oliva y queso. OBSERVACIÓN Se pronuncia aproximadamente `carpacho´. (DUEAE (2002, s.v.)) No tocante à marcação diafásica e diastrática, DUEAE (2002) apresenta uma gama grande de marcas inclusive com subdivisões para as marcas coloquial (coloquial, coloquial despectivo e coloquial irónico) e malsonante (malsonante e malsonante despectivo). Alguns exemplos são: abroncar (...) coloquial Reprender a alguien de forma autoritaria y severa. (DUEAE (2002, s.v. ac. 1)) berrido (...) coloquial despectivo Grito fuerte y desentonado que se da cantando. (DUEAE (2002, s.v. ac. 4)) comandita coloquial irónico Palabra que se utiliza en la locución en comandita, que significa `en grupo´. (DUEAE (2002, s.v.)) cabrón, -brona (...) malsonante Hombre que está casado con una mujer que le es infiel, especialmente si consiente en el adulterio de ésta. (DUEAE (2002, s.v. ac. 2)) malsonante [persona] que actúa con mala intención y que molesta o perjudica a otros con sus faenas o malas pasadas. (DUEAE (2002, s.v. ac. 3)) bolastristes (...) Arg, Urug malsonante despectivo [persona] que tiene falta de viveza, poca inteligencia o desidia. (DUEAE (2002, s.v.)) A marca malsonante desempenha uma função eminentemente normativa, posto que as unidades léxicas assim marcadas podem ser consideradas, mais que inadequadas, ofensivas em determinadas situações. Segundo DUEAE (2002), “são palavras que inclusive em situações de familiaridade ou confiança podem parecer mal educadas, rudes, incômodas ou vulgares”102. Há ainda palavras marcadas como formal, como é o caso de acidia “pereza” (DUEAE (2002, s.v.)), autumnal “del otoño o que tiene relación con esta estación del año” (DUEAE (2002, s.v.)), cogitabundo “muy pensativo” (DUEAE (2002, s.v.)), dubitación “duda” (DUEAE (2002, s.v.)), como despectivo: antigualla “cosa (objeto, obra, estilo, costumbre, etc.) muy antigua o anticuada” (DUEAE (2002, s.v.)), bailotear “bailar sin gracia ni arte” (DUEAE (2002, s.v.)), dramón “obra literaria o cinematográfica que se caracteriza por la gran exageración de los elementos que emocionan y conmueven” (DUEAE (2002, s.v.)). Esse dicionário apresenta ainda a marca marginal não encontrada comumente em outros dicionários da língua espanhola. Tal marca é utilizada para identificar os casos de gíria e de linguagem da periferia e do âmbito das drogas, entre outros103: diquelar “comprender, percibir o darse cuenta de una cosa” (DUEAE (2002, s.v.)), fayuca Méx “compra y venta de mercancías dentro de una cárcel” (DUEAE (2002, s.v. ac. 2)), bicho Esp “dosis de ácido (droga)” (DUEAE (2002, s.v. ac. 4)), chuta Esp “en el lenguaje de la droga, jeringa” (DUEAE (2002, s.v.)), farlopa Esp “cocaína” (DUEAE (2002, s.v.)), raviol Arg “sobre de papel pequeño que contiene cocaína” (DUEAE (2002, s.v. ac. 2)). DUEAE (2002) contém uma lista extensa de marcas diatécnicas e muitas entradas e acepções levam essas marcas para indicar que se trata de palavras não pertencentes à língua comum e que, portanto, são usadas principalmente em um âmbito de especialidade ou por falantes com conhecimentos específicos dessas áreas de especialidade. Assim, podemos encontrar no dicionário, dentre inúmeras outras, unidades léxicas como: abanicar tauromaquia “incitar al toro agitando ante él el capote de un lado a otro” (DUEAE (2002, s.v. ac. 2)), abazón zoología “cada una de las dos bolsas que tienen algunos roedores, monos y otros animales en los carrillos utilizados para transportar o almacenar alimentos”, abintestato derecho “procedimiento judicial sobre la adjudicación de bienes de la persona que muere sin dejar testamento”, ablativo lingüística “caso de las lenguas que tienen declinación con el que, en general, se expresan relaciones similares a las de los complementos circunstanciales”, abscisa matemáticas “primera 102 [Son voces que incluso en situaciones de familiaridad o confianza pueden parecer maleducadas, rudas, molestas al oído o vulgares]. 103 [La marca marginal se utiliza para el argot, el lenguaje de los bajos fondos, la drogadicción, etc.]. de las dos coordenadas que definen un punto en un plano”, acetilcolina química “sustancia química que actúa en la transmisión de los impulsos nerviosos”. Quanto à marcação diatópica, esse dicionário apresenta uma inovação em relação ao GDUEA (2001), pois traz palavras e acepções com a marca Esp[anha] e não apenas marcas para os países da Hispano-América. Dessa forma, além de dar conta do espanhol geral, isto é, o espanhol comum à Espanha e América (não marcado) e dos americanismos (geralmente tratados em todos os dicionários gerais da língua espanhola), DUEAE (2002) também se ocupa daquelas palavras e acepções que têm um emprego mais estendido na variante peninsular do espanhol marcando-as diatopicamente: cancha (...) 4 Amér Terreno, espacio o local llano y desembarazado. 5 Amér Hipódromo. 6 ASur Parte ancha y despejada de un río. 7 RPlata, Bol Corral o cercado espacioso donde se almacenan cosas. 8 Chile En minería, terreno donde se acumula, seca y prepara el salitre antes de su embarque. 9 Colomb, Par, Venez Cantidad que cobra el dueño de una casa de juego por cada apuesta que en ella se realiza. 10 Perú Alimento que consiste en una masa blanca y esponjosa, parecida al capullo de una rosa, que se forma al tostarse y reventar, por acción del calor, un grano de maíz. (DUEAE (2002, s.v.)) abrecoches (...) Esp Persona que abre la puerta de los automóviles a sus usuarios como señal de deferencia, por lo cual puede recibir una propina. (DUEAE (2002, s.v.)) acochinar (...) 1 Esp coloquial Matar a alguien que no puede huir o defenderse o a quien se sujeta para que no se escape ni defienda, como se hace para degollar a los cochinos. 2 Esp En el juego de las damas, hacer que un peón contrario no pueda moverse. 3 Esp Acoquinar. (DUEAE (2002, s.v.)) Com respeito às marcas diacrônicas, encontramos em DUEAE (2002) poucas palavras que levam as marcas arcaico, desusado, antiquado ou obsoleto, de modo que esse dicionário é mais coerente do que os dois anteriormente analisados quanto ao seu objetivo de buscar apresentar a língua em uso pelos falantes. No exemplo que apresentamos abaixo, a informação de que se trata de uma palavra obsoleta aparece em uma nota ao final do verbete: bióxido (...) química Dióxido. NOTA Es un término en la actualidad obsoleto. (DUEAE (2002, s.v.)) Quanto aos neologismos, DUEAE (2002) apresenta alguns de origem vernácula104, como caficultor e discar (RPlata, Bol, Cuba, Perú) “marcar un número en el aparato telefónico para establecer una comunicación con otra persona o aparato” (DUEAE (2002, s.v.)). Já os advindos de outras línguas aparecem em maior grau, e como ocorre com os demais dicionários, DUEAE (2002) apenas explicita qual é a língua de origem da palavra em uma seção intitulada “etimología” que está situada ao final do verbete. Isso ocorre com as palavras software, boom “éxito o popularidad repentinos” (DUEAE (2002, s.v.)), e-mail e hámster “mamífero roedor parecido al ratón, de cuerpo rechoncho (...)”, que teve origem da palavra alemã hamster, e inúmeras outras entradas léxicas (DUEAE (2002, s.v.)). As informações quanto à sintaxe também aparecem ao final do verbete numa seção chamada “nota”. São informações relativas à posição da palavra-entrada na frase, por exemplo, se é anteposta ou posposta ao substantivo. O adjetivo grande, por exemplo, traz para algumas acepções a informação sintática “se usa generalmente antepuesto al nombre”. O mesmo ocorre com bonito, dichoso “que resulta muy molesto o fastidioso”, etc. Já os pronomes possessivos mío, mía, suyo e tuyo trazem a informação “como determinante va pospuesto al nombre al que acompaña”. As informações referentes ao “régimen preposicional” são fornecidas somente através dos exemplos, nos quais a ou as preposições exigidas pelo verbo aparecem destacadas105. Assim temos, entre outros casos: burlar (...) verbo pronominal 3 burlarse Reírse de una persona o de una cosa de manera malintencionada, en especial para ponerla en ridículo, subrayando o exagerando algún aspecto inusual o negativo que la caracteriza, o aprovechándose de la buena fe de alguien. ej en el siglo II, la gente se burlaba aún de las tendencias ascéticas de los cristianos; se burlaban de su infinita paciencia; confió en esa gente pero acabaron burlándose de él. (DUEAE (2002, s.v.)) 104 Para efetuar nossa busca por neologismos vernáculos baseamo-nos no conjunto de palavras com essa particularidade apresentada na análise de GDUEA (2001): ciclovía, caficultor, discar e trampeo. 105 Assim também procede DRAE (2001). Essa atitude não nos parece muito acertada porque acreditamos, assim como Welker (2004, p. 137), que “a apresentação de fatos sintáticos apenas em exemplos deve ser desaconselhada, pois o usuário nem sempre tem a competência de descobrir em que casos pode ou deve usar as construções registradas”. gustar (...) 3 Sentir agrado o afición por una cosa. ej los musulmanes ortodoxos no gustaban de la representación del ser humano. (DUEAE (2002, s.v.)) comulgar (...) 2 Compartir con otra persona las mismas ideas, sentimientos, opiniones, etc. ej todos los que comulgamos con sus grandes ideales de bondad, belleza y verdad, debemos sentir hoy su recuerdo presente entre nosotros. (DUEAE (2002, s.v.)) Somente observando os exemplos o consulente tomará ciência de que as construções sintáticas com os verbos burlar (pronominal) e gustar e comulgar são feitas com as preposições de e con, respectivamente. Para finalizar, podemos dizer que esse dicionário, diferentemente de DUPB (2002) e GDUEA (2001), em nenhum momento se pretendeu “de uso” apenas enquanto descrição da língua e deixou explícita sua intenção normativa. 4.4 DUE (1999) Esse é um dicionário sem precedentes na história da lexicografia espanhola, devido ao seu caráter inovador e original. Fruto de anos de trabalho de sua dedicada autora, o DUE surgiu em 1967 e causou um grande impacto, por tratar de questões até então deixadas em segundo plano pela RAE. Moliner incluiu em seu dicionário explicações acerca do “régimen preposicional” e das colocações, até hoje temas pouco tratados pela RAE106. Moliner foi ainda pioneira ao considerar as então letras [ch] e [ll] dígrafos, antecipando-se em trinta anos aos demais dicionários espanhóis quanto à adoção da ordem alfabética, ou seja, não incluindo [ch] e [ll] como unidades alfabéticas independentes107. 106 Em DRAE (2001) não há nenhuma informação mais precisa com relação ao “régimen preposicional”. O máximo que esse dicionário faz é apresentar, para alguns daqueles verbos que exigem a utilização de uma determinada preposição, algum exemplo do uso de tal verbo. Para o verbo gustar na seguinte acepção “desear, querer y tener complacencia en algo”, por exemplo, é exigido o uso da preposição “de”, mas o consulente somente tomará conhecimento dessa informação se olhar os exemplos oferecidos, nos quais a preposição aparece em destaque: “gustar DE correr, DE jugar”. 107 Na verdade, mais do que adotar, Moliner restaurou a ordem alfabética que já havia sido usada pela RAE até o ano de 1803 e que somente em 1994 foi restabelecido pelo X Congresso de Academias da Língua Espanhola. Além disso, elaborar um dicionário de usos em uma época em que não existiam as opções tecnológicas que hoje são pré-requisito para o desenvolvimento do trabalho lexicográfico é um feito digno de admiração. Todas as decisões tomadas pela autora estão baseadas certamente em seus estudos sobre a língua espanhola, mas principalmente em seu feeling lingüístico bastante aguçado. Prova do incansável trabalho e da noção clara de que um dicionário nunca está acabado, são as palavras de Moliner proferidas em 1972, poucos anos depois de lançada a primeira edição de seu dicionário: Depois de publicado, sigo trabalhando nele. Em um dicionário não se pode deixar de trabalhar. Constantemente estou vendo nos jornais ou nos romances expressões que anoto a fim de incluí-las. Tenho já uma grande coleção de adições. Se não morresse, seguiria sempre fazendo adições ao dicionário108. De acordo com a autora, “a denominação ‘de uso’ aplicada a esse dicionário significa que ele se constitui um instrumento para guiar no uso do espanhol tanto os falantes nativos quanto aqueles que o aprendem como língua estrangeira” (cf. DUE (1999, apresentação da 1º. Edição))109. DUE (1999) na verdade se preocupa bastante com o uso sintático da língua porque é um dicionário destinado não só à decodificação, mas também à codificação, particularidade que exige que seja apresentado um número bastante grande de informações relativas à língua. Logo, fica evidente que o “uso” é entendido por DUE (1999) também como prescrição. Da mesma forma que DUPB (2002) e DUEAE (2002), esse dicionário tampouco apresenta informações quanto à quantificação do uso110. Quanto à ortografia, DUE (1999) apresenta alguns casos de variantes ortográficas, fazendo sempre remissão à palavra de maior freqüência, sendo que nesta se encontra a definição, mesma solução apresentada pelos outros dicionários analisados: insubstituible adj. Variante ortográfica de «insustituible». (DUE (1999, s.v.)) 108 [Después de publicado, yo sigo trabajando en él. En un diccionario no se puede dejar de trabajar. Constantemente estoy viendo en los periódicos o en las novelas expresiones que anoto para incluirlas. Ya tengo una gran colección de adiciones. Si no me muriera, seguiría siempre haciendo adiciones al diccionario]. 109 [la denominación “de uso” aplicada a este diccionario significa que constituye un instrumento para guiar en el uso del español tanto a los que lo tienen como idioma próprio como a aquellos que lo aprenden (...)]. 110 Nesse caso, essa carência é totalmente compreensível, dado que DUE (1999) foi elaborado sem o auxílio das ferramentas fornecidas pela informática e de que os lexicógrafos de hoje em dia se valem largamente. insustituible adj. Tan especialmente adecuado a su función que no se puede sustituir o es muy difícil sustituirlo. Þ Indispensable, irreemplazable. Ó Necesario. (DUE (1999, s.v.)) O mesmo ocorre com as formas ceviche remetendo a cebiche “guiso de pescado con pimiento, zumo de naranja o limón y otros ingredientes, típico de algunos países hispanoamericanos” (DUE (1999, s.v.)), zebra com remissão à cebra, e como nos demais dicionários da língua espanhola aqui analisados, com as palavras com o grupo /ps-/ em início absoluto: sicología faz remissão à psicologia, sicólogo remete para a forma psicólogo. A pronunciação é indicada somente quando a pronúncia de uma palavra não é diretamente dedutível de sua forma gráfica. Aplica-se geralmente aos estrangeirismos não adaptados ao padrão fonológico da língua alvo. Assim como em DUEAE (2002), a representação fonética, sempre que possível, se dá através das próprias letras do alfabeto espanhol: abertzale (vasc.; pronunc. [aberchále]) (...) (DUE (1999, s.v.)) alcohol (del ár. and. «kuhúl»; pronunc. [alcól]) (...) (DUE (1999, s.v.)) apartheid (ingl., del afrikaans; pronunc. [aparjéid]) (...) (DUE (1999, s.v.)) freudiano, -a (pronunc. [froidiáno]) (...) (DUE (1999, s.v.)) feedback (ingl.; pronunc. [fíd bác]) (DUE (1999, s.v.)) DUE (1999) traz uma extensa lista de marcas diastráticas e diafásicas, tais como: literário, culto, informal, vulgar, etc. Essas marcas, como já foi dito, são muito importantes para informar ao consulente que determinadas palavras e acepções têm um âmbito de uso restrito: sempiternamente (cult.) adv. Eternamente. (DUE (1999, s.v.)) abril (del lat. «aprïlis») 2 (inf.) Se emplea para expresar la edad de una jovencita: ‘Tiene quince abriles’. (DUE (1999, s.v.)) acojonante (de «acojonar») 1 (vulg.) adj. Que causa gran miedo, susto o impresión. 2 (vulg.) Magnífico, estupendo: ‘El equipo hizo un partido acojonante’. (DUE (1999, s.v.)) Assim como GDUEA (2001) e DUEAE (2002), esse dicionário também apresenta uma lista extensa de marcas diatécnicas, de modo que é possível encontrar um volume bastante grande de unidades léxicas pertencentes a áreas específicas do conhecimento. Listaremos apenas alguns exemplos para manter a simetria com as outras análises apresentadas: panavisión Cine[matografía] “técnica de filmar y proyectar películas con unas lentes especiales en cintas de sesenta y cinco milímetros” (DUE (1999, s.v.)), caracol Anat[omía] “una de las tres partes del oído interno, constituida por un cono hueco arrollado en espiral” (DUE (1999, s.v. ac. 3)), caracol Equit[ación] “vuelta dada por el caballo, cuando está inquieto o a voluntad del jinete” (DUE (1999, s.v. ac. 5)). Quanto às marcas diatópicas, DUE (1999), além de marcar os americanismos de acordo com os países da Hispano-América em que são utilizados, traz também marcas para as comunidades autônomas que conformam a Espanha, tais como: Andalucía, Cataluña, Valencia, e em alguns casos também para as cidades que fazem parte dessas comunidades autônomas e para outros países que também são de fala espanhola (como língua materna ou como segunda língua), como é o caso de Marrocos e Filipinas. Alguns exemplos de palavras e acepções marcadas diatopicamente são: frazada (del cat. «flassada») (Arg., Chi., Cuba, Guat., Méj., Par., Perú, R. Dom., Salv., Ur.) Manta. (DUE (1999, s.v.)) cuadra (del lat. «quadra», figura cuadrada) (...) 5 (Hispam.) Distancia abarcada en una calle por una manzana de casas. 6 (Hispam.) Medida de longitud que varía según los países entre 100 y 150 m aproximadamente. (DUE (1999, s.v.)) escobio (Ast., antb., León) m. Paso estrecho en una montaña o en un río. (DUE (1999, s.v.)) DUE (1999) traz as marcas antiquado ou desusado para todas as acepções que não se mantiveram em uso após o século XVIII, além de apresentá-las em itálico. Já as acepções que são pouco usuais atualmente aparecem somente em itálico, sem nenhuma marca: pósito, -a (del lat. «opposítus») 1 Participio irregular, desusado, de «oponer». 2 (ant.) m. Cosa que se opone a algo o sirve de defensa de algo. (DUE (1999, s.v.)) sobremesa 1 f. Tapete con que se cubre una mesa. 2 (ant.) Postre de la comida. 3 Tiempo durante el cual los comensales siguen reunidos, después de la comida. (DUE (1999, s.v.)) ñubloso, -a (ant.) adj. Nubloso. (DUE (1999, s.v.)) Parece-nos que DUE (1999) se assemelha mais a um dicionário geral de língua que a um dicionário de uso no sentido de apresentar aquilo que é freqüente, pois o dicionário procura abarcar muito mais do que o efetivamente realizado pela comunidade lingüística, tanto que apresenta um número bastante elevado de palavras e acepções desusadas. Quanto aos neologismos, a autora acredita que não podem ser excluídos de um dicionário “de uso” aqueles amplamente difundidos entre os falantes. Assim, neologismos por empréstimo como look “imagen o aspecto” (DUE (1999, s.v.)), airbag “dispositivo de seguridad de un vehículo que consiste en una bolsa de aire que se hincha instantáneamente cuando se produce un choque violento” (DUE (1999, s.v.)) e software “conjunto de programas y otros elementos no físicos con que funciona un ordenador” (DUE (1999, s.v.)), que se fixaram na língua e são bastante usadas pelos falantes, fazem parte da macroestrutura de DUE (1999). Há também neologismos vernáculos, como balompié, criado para concorrer com o empréstimo oriundo do inglês fútbol e neologismos de significação como empelotarse “desnudarse; quedarse en pelota” (DUE (1999, s.v.)). No concernente à indicação de uso sintático, DUE (1999) se mostra um dicionário que privilegia a prescrição logo no princípio, através das palavras de sua autora na apresentação da primeira edição, de 1966: “A denominação ‘de uso’ aplicada a esse dicionário significa que ele se constitui um instrumento para guiar no uso do espanhol tanto aqueles que o tem como língua materna quanto aqueles que o aprendem e que chegaram a um nível de conhecimento a partir do qual o dicionário bilíngüe pode e deve ser substituído por um dicionário monolíngüe”111. 111 [La denominación “de uso” aplicada a este diccionario significa que constituye un instrumento para guiar en el uso del español tanto a los que lo tienen como idioma propio como a aquellos que lo aprenden y han llegado en el conocimiento de él a ese punto en que el diccionario bilingüe puede y debe ser substituido por un diccionario en el propio idioma que se aprende]. Assim, DUE (1999) dá informações quanto ao uso prescritivo da língua, indicando para os verbos e adjetivos as preposições com que se constroem (o “régimen preposicional”): asentir (a), consentir (en), proveerse (de) e para os substantivos, os verbos que a eles se unem para formar as frases: útil (a, para): asentir (del lat. «assentïre») 1 («a») intr. Mostrarse alguien conforme con lo dicho o propuesto por otro. 2 («a») Consentir en. (DUE (1999, s.v.)) gustar (del lat. «gustäre») (...) («de») intr. Sentir inclinación a hacer cierta cosa en la que se encuentra placer. Se emplea, dejando sobreentendido el complemento, en frases de cortesía como «¿usted gusta?» o «si usted gusta», con que alguien que está comiendo o va a comer invita formulariamente a las personas que están presentes a que participen en la comida. (DUE (1999, s.v. ac. 3)) Há ainda os casos de colocações, ou seja, casos em que uma determinada palavra se combina com um número restrito de outras unidades léxicas nas construções sintáticas como em suspiro (dar, exhalar), derrota (infligir), incendio (declararse, estallar; sofocar): suspiro (del lat. «suspiríum») («Dar, Exhalar, Lanzar, Dejar escapar, Arrancar») m. Aspiración fuerte y prolongada, seguida de espiración, que va generalmente acompañada de un «¡ay!» más o menos perceptible, con la que se expresa cansancio, tristeza o, por el contrario, *alivio de una preocupación o satisfacción. (...) (DUE (1999, s.v. ac. 1)) Dessa forma, DUE (1999) se comporta como DUEAE (2002) ao dar ênfase também à prescrição e não somente à descrição e ambos são mais coerentes do que DUPB (2002) e GDUEA (2001), posto que deixam claramente exposto que o “uso” do título se refere tanto à norma real quanto à norma ideal. 5 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse trabalho teve origem a partir do seguinte questionamento: o que os dicionários de uso entendem por “uso”? Com base nessa pergunta, elaboramos três hipóteses que nortearam nossa análise dos dicionários. Estabelecemos que o “uso” poderia ser entendido como: 1) o conjunto léxico efetivamente usado (o que corresponderia à freqüência); 2) o emprego prescritivo/normativo da língua; 3) o conjunto léxico efetivamente usado e o emprego prescritivo/normativo da língua. Feito isso, buscamos encontrar argumentos que confirmassem ou não tais suposições. Então, depois de realizado esse breve estudo acerca dos quatro dicionários “de uso” estabelecidos como corpus de análise, pudemos chegar a algumas constatações. Com relação às hipóteses acima discriminadas, constatamos que: a) o “uso” nesses dicionários pode ser entendido tanto como freqüência, ou seja, como o conjunto léxico efetivamente empregado pela comunidade lingüística (norma real) quanto como prescrição (norma ideal). Dessa forma, o usuário vai encontrar em tais obras a descrição da língua usada em um determinado período de tempo e também informações quanto à utilização das variantes preferenciais que se identificam com a norma exemplar das línguas portuguesa e espanhola. Logo, encontramos dados que nos permitiram confirmar nossa terceira hipótese. Quanto a esse aspecto, cabe relembrar que há uma distinção entre DUPB (2002) e GDUEA (2001), por um lado e DUEAE (2002) e DUE (1999) por outro, dado que estes deixam claro que têm, além de uma intenção descritiva, um propósito prescritivo, enquanto que aqueles apenas explicitam sua intenção de descrever a língua em uso e “ocultam” seu caráter prescritivo. A verdade é que tais dicionários, sem revelar ao consulente, privilegiam certos usos referentes, por exemplo, à ortografia, à pronúncia ou às informações sintáticas (e como vimos, esses aspectos assumem indiscutivelmente um caráter normativo). O problema seria amenizado se tais dicionários não fossem tão incisivos ao dizer que têm única e exclusivamente a preocupação de descrever a língua, e considerassem que, em alguns aspectos, ainda que não seja esse o objetivo, eles irão privilegiar a variante padrão da língua em detrimento das demais variedades, ou seja, que irão tratar de certos aspectos que, inevitavelmente, são da ordem da prescrição. Além da comprovação de nossas hipóteses, pudemos, com os dados encontrados no decorrer de nossa análise, chegar a algumas outras constatações, as quais listamos abaixo: b) quanto aos idealizadores dessas obras, podemos dizer que nem mesmo eles têm claro o que se entende por “uso”, ou seja, se “uso” se refere: - àquilo que é freqüente/corriqueiro, isto é, àquilo que é efetivamente usado massivamente pelos falantes; - ao conjunto léxico já usado algum dia, independentemente de sua freqüência na atualidade. Chegamos a essa conclusão em função de os dicionários abarcarem também palavras pouco usadas pelos falantes no recorte temporal por eles estabelecidos; - à prescrição, ou seja, à apresentação de informações para se fazer “bom uso” da língua, estando essas informações de acordo com a norma padrão; c) os quatro dicionários podem ser considerados mais um inventário relativamente aberto de palavras (incluindo aquelas que já não são mais de uso freqüente na língua) do que um dicionário restrito ao léxico em uso num determinado período de tempo (a contemporaneidade). Aqui, novamente, faz-se necessário ressaltar algumas particularidades dos dicionários analisados. DUE (1999), por exemplo, é a representação de um conjunto léxico mais abrangente do que apenas a língua em uso. A maneira que DUE (1999) encontrou para identificar sua intenção descritiva foi apresentar a língua efetivamente em uso marcando diacronicamente ou diferenciando através de elementos tipográficos aquelas palavras e acepções incluídas em sua macroestrutura que já não são mais empregadas pelos falantes. Dessa forma, DUE (1999), ao mesmo tempo em que evidencia aquilo que é de fato usado pelos falantes, também apresenta uma parte do léxico que em algum momento foi empregado, porém atualmente não. Parece-nos que esse procedimento se constitui um maior comprometimento com o consulente, que ao se deparar com um determinado elemento tipográfico (no caso de DUE (1999), a letra em itálico), saberá que se trata de uma palavra ou acepção de baixa ou nenhuma freqüência no uso real da língua. Diferente do que ocorre com GDUEA (2001), que não “explica” ao consulente o motivo pelo qual foram incluídas unidades léxicas de freqüência não significativa (de acordo com a escala de indicação de freqüência apresentada pelo próprio dicionário), obrigando-o, dessa forma, a buscar uma explicação para tal atitude do lexicógrafo e procurar razões para justificar o fato de tais unidades léxicas apresentarem baixa freqüência. d) a diferença que existe entre um dicionário geral de língua e esses dicionários ditos “de uso” – nesse caso, nos referimos especificamente a DUPB (2002), GDUEA (2001) e DUEAE (2002) – é que estes são baseados em um corpus que lhes dá subsídios para, a partir da massa léxica abarcada pelo recorte sincrônico feito pelo lexicógrafo, precisar e quantificar as unidades léxicas efetivamente empregadas pela comunidade lingüística, além de dar indícios palpáveis acerca do real uso que é feito da língua em um determinado momento. No entanto, esse detalhe não garante que tais obras cumpram com aquilo a que se propõem (apresentar o léxico em uso), pois como pudemos observar, tanto DUPB (2002) quanto GDUEA (2001) e DUEAE (2002) incluem em sua macroestrutura verbetes com baixa freqüência de uso ou até mesmo desusados. DUPB (2002) ainda deixa de lematizar palavras amplamente empregadas pelos falantes. Para finalizar, gostaríamos de reiterar que, através desse estudo, buscamos averiguar que conceito de uso é abarcado pelos dicionários ditos “de uso” e verificar a coerência entre as pretensões dos dicionários e aquilo que de fato apresentam. Detectamos uma série de incoerências que enfraquecem a consistência desses dicionários e acreditamos que nosso estudo serviu para suscitar tais problemas, o que pode contribuir para a melhoria dessas obras que são, por si só, grandes realizações das lexicografias brasileira e espanhola. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AuE (1999). FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. 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