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Centro de Estudos Woolfiana WOOLFIANA ISSN 2357-7312 DOSSIÊ TEMÁTICO: VIRGINIA WOOLF REVISTA IMPRESSA SEMESTRAL DE LITERATURA E OUTRAS ARTES ANO 2014 – VOLUME 1 – NÚMERO 1 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 2 WOOLFIANA ISSN 2357-7312 Organização e Edição de MAURO SCARAMUZZA FILHO ANO 2014 – VOLUME 1 – NÚMERO 1 2 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 3 EXPEDIENTE WOOLFIANA WOOLFIANA NÚMERO 1 – ANO 2014 Volume 1 ISSN 2357-7312 Publicação Semestral Impressa do Centro de Estudos Woolfiana – Mauro S. Filho (Entidade Cultural Sem Fins Lucrativos) EDITOR / ORGANIZADOR: MAURO SCARAMUZZA FILHO CONSELHO EDITORIAL Prof. Ms. Adriana Paula Rodrigues Silva (IFPI, UESPI) Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho (DTR20130189, UFPR) Prof. Phelipe de Lima Cerdeira (MER20130234, UFPR) CONSELHO CONSULTIVO Prof. Dr. Célia Maria Arns de Miranda (UFPR) Prof. Dr. Cristiane Busato Smith (Arizona State University/MIT Global Shakespeares) Prof. Dr. Denise Azevedo Duarte Guimarães (UTP) Prof. Dr. Luci Maria Dias Collin (UFPR) PROJETO GRÁFICO E CAPA Mauro Scaramuzza Filho (UFPR) REVISÃO Adriana Paula Rodrigues Silva (IFPI, UESPI), Mauro Scaramuzza Filho (UFPR) e Phelipe de Lima Cerdeira (UFPR) 3 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 4 Woolfiana / Mauro Scaramuzza Filho (ed.) (org.) – n. 01 – Curitiba: Centro de Estudos Woolfiana – Mauro S. Filho, 2014. Publicação semestral impressa ISSN 2357-7312 EAN-13: 977.2357.731.00-5 ADENDO 14.01 Licença para Formato Livro Digital em PDF: ISBN 978-85-916183-7-8 (2014, Nr. 01) 1. Linguística, Letras e Artes – Periódicos. 2. Literatura Comparada – Periódicos. 3. Literatura e Outras Artes – Periódicos. 4. Tradução e interpretação – Periódicos. I. Centro de Estudos Woolfiana – Mauro S. Filho. II. FILHO, Mauro Scaramuzza. 4 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 5 SUMÁRIO Apresentação ................................................................................................................. 07 DOSSIÊ TEMÁTICO: VIRGINIA WOOLF ENSAIOS ACADÊMICOS E ARTIGOS LIVRES SOBRE VIRGINIA WOOLF E SUA OBRA ................................................................................................................... 12 UMA POSSÍVEL E BREVE BIOGRAFIA DE VIRGINIA WOOLF.......................... 13 (Prof. Ms. Adriana Paula Rodrigues Silva, DTR2013019_, doutoranda em Estudos Literários, UFPR) “A SKETCH OF THE PAST”: PERCEPÇÃO E MEMÓRIA....................................... 17 (Prof. Ms. Solange Viaro Padilha – FARESC) A CONTRIBUIÇÃO DE VIRGINIA WOOLF AO GÊNERO MEMÓRIAS EM AM I A SNOB?............................................................................................................................ 30 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) A VISÃO COSMOPOLITA DE IMMANUEL KANT EM KEW GARDENS, DE VIRGINIA WOOLF....................................................................................................... 56 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) VIRGINIA WOOLF E O EPISÓDIO BUNGA-BUNGA: A PERFORMANCE EM BLOOMSBURY............................................................................................................ 68 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) ECOS SHAKESPEARIANOS: INTERTEXTUALIDADE EM MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF…………………………………………………........…………… 77 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) 5 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 6 RESENHAS ................................................................................................................... 88 SOB A LUZ DE UM NOVO FAROL: O TEMPO PASSA, DE VIRGINIA WOOLF.. 89 (Prof. Phelipe de Lima Cerdeira, MER20130234, mestrando em Estudos Literários, UFPR) A TRANSGRESSÃO DE ORLANDO (1992)................................................................ 95 (Prof. Juliana Weinrich Shiohara, MER20130217, mestranda em Estudos Literários, UFPR) O DESAFIO EDITORIAL DE TRADUZIR ORLANDO, DE VIRGINIA WOOLF.. 100 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) A PREMIADA TRADUÇÃO DE MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF, POR TOMAZ TADEU (EDITORA AUTÊNTICA), 2013.................................................... 107 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) RESUMOS ................................................................................................................... 110 SECÇÃO EXCLUSIVA PARA RESUMOS DE TRABALHOS NÃO PUBLICADOS ........................................................................................................... 111 FELICIDADE NAS IMAGENS VERBO-VISUAIS DAS CENAS DE JARDIM NA FICÇÃO DE VIRGINIA WOOLF: KEW GARDENS E MRS. DALLOWAY EM DIÁLOGO COM A PINTURA E A FILOSOFIA ...................................................... 112 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) A PAISAGEM URBANA COSMOPOLITA NA FICÇÃO DE VIRGINIA WOOLF E SUA RELAÇÃO COM A PINTURA,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,............................................,,,,,,, 113 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) O SIGNO POÉTICO COMO ELEMENTO DE PERFORMANCE NOS ECOS HERMÉTICOS PERCEBIDOS EM MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF... 114 (Prof. Ms. Mauro Scaramuzza Filho, DTR20130189, doutorando em Estudos Literários, UFPR) ANEXOS ..................................................................................................................... 115 (Todos os anexos publicados pertencem ao domínio público constante na rede aberta da internet, world wide web e arquivos disponíveis nos sites Google e Facebook, imagens livres para compartilhamento público) 6 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 7 APRESENTAÇÃO A edição inaugural da revista WOOLFIANA apresenta um dossiê temático a respeito de Virginia Woolf (1882-1941). Trata-se de um modesto projeto editorial em que a cada semestre estaremos prestigiando um grande escritor, ou artista renomado, ou mesmo um grupo de escritores que pertençam a um determinado período histórico, ou ainda um tema central que envolva a literatura e outras artes. Para nós, não foi difícil admirar o estilo desafiador de Virginia Woolf, desde a primeira leitura de Mrs. Dalloway (1925). Na realidade, o lirismo de sua prosa convidounos a outros textos de sua autoria. Romance após romance, a ficção woolfiana foi preenchendo nossas expectativas como leitor e, mais tarde, como pesquisador. As propostas ficcionais que oscilam entre a forma do conto e do ensaio, ou da crônica, da biografia e do romance, rompem com nossos conceitos sobre o rigor formal na literatura. Foi desta maneira que nos apaixonamos pela short-story de Woolf, em especial Kew Gardens (1919). Graças ao empreendimento de sua vida, voltada quase que exclusivamente para a escrita, hoje podemos contemplar uma obra tão extensa e abrangente. A ficcionista acabou marcando não apenas a produção acadêmica de seus leitores, mas inspirando novos escritores de ficção como Michael Cunningham, vencedor de diversos prêmios literários (autor de The Hours, 1998). Apesar da dificuldade dos críticos e pesquisadores em classificar a produção de Virginia Woolf, devido às inovações nos gêneros literários que promoveu, podemos dizer que a escritora produziu as seguintes marcas: 10 romances (alguns não têm características de romance). Certos especialistas dizem que produziu apenas 9 e, neste caso, teríamos de acrescentar mais uma biografia. Escreveu 56 contos (mas nem todos têm características de contos, sendo inovações no gênero literário como “proposta literária”). Produziu 2 biografias. Aproximadamente 500 ensaios (alguns a respeito de pintura e cinema). Em torno de 5.000 cartas (vendidas em recente leilão por 4,5 milhões de dólares norte-americanos, EUA, 2013). Registrou seus apontamentos em inúmeras cadernetas que tratam de detalhes da sua obra. Deixou 5 volumes de diários. Escreveu memórias (Moments of Being) (1940). Proferiu diversas palestras (algumas reunidas na ficção como “A Room of One’s Own”). Criou peças de Teatro. 7 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 8 Em complemento aos itens citados anteriormente, podemos considerar a afirmação dos estudiosos de Virginia Woolf – a maioria doutores de universidades anglofônicas dos EUA, Canadá e do Reino Unido – que ressaltam o total de 74 volumes de mais de 500 páginas cada como uma tentativa de condensar o precioso tesouro woolfiano legado à humanidade. Isso dá algo em torno de 37.000 páginas. Não obstante, o curioso da biografia de Woolf é que ela não se deixou corroer por sua depressão de impulsos suicidas, ou pela anorexia nervosa, mas lutou bravamente por situar-se como sujeito num universo, praticamente, dominado pelo gênero masculino. Acima de tudo, a Mrs. Woolf foi uma esteta, não se resumindo a uma simples função social. Somam-se múltiplas “Virginias” numa só, pois foi: Editora da Hogarth Press (fundada em 1917), revisora de textos, ensaísta, crítica literária, crítica de arte (da Pintura ao Cinema), cronista de jornal (The Times), professora universitária, contista, romancista, biógrafa, intelectual (“líder” do Grupo de Bloomsbury). Enfim, um cérebro incansável com enorme preocupação em torno das novas tendências nas artes e no âmbito cultural e científico do período em que viveu. Portanto, não valeu-se de sua saúde fragílima para alienar-se como fazem muitos covardes. Ela escreveu o que quis e como quis, tornando-se um grande marco para a humanidade. Curiosamente, a enferma Sra. Woolf sustentou seu esposo, um intelectual idealista, bem como a família inteira. Mesmo depois de morta, o marido Leonard Woolf e a família ganharam muito dinheiro com a publicação das obras de Virginia Woolf. Antes de terminar o século XX, seus últimos herdeiros venderam uma boa quantidade de material biográfico, incluindo seus apontamentos em cadernetas. Mais recentemente, em 2013, um lote de cartas foi levado a leilão por 4,5 milhões de dólares norteamericanos. Com todo esse magnetismo que ainda atrai tanto os acadêmicos quanto os colecionadores e o público leitor, não nos resta outra saída senão a de nos rendermos ao encanto de seu primoroso trabalho. Pertence a seus registros o fato de haver destinado um carro novo à sua irmã, Vanessa Bell – um Rolls-Royce –, logo após o estrondoso sucesso de Flush (1933) como best-seller nos Estados Unidos, no ano seguinte de seu lançamento. Enquanto reservou para si apenas o suficiente para comprar um par de meias de lã, presenteou a irmã com um automóvel luxuoso que custou em torno de cem mil libras – uma fortuna na época. Não devemos esquecer que Virginia Woolf foi a maior incentivadora da carreira da pintora e gravadora Vanessa Bell, contratando-a para ilustrar quase todos os seus livros de ficção, fato que tornava o padrão de vida da irmã um pouco mais estável, 8 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 9 garantindo seu conforto. Igualmente, a ficcionista destinava um bom montante aos sobrinhos, ao cunhado e, especialmente, ao próprio marido, o qual nas palavras de Mrs. Woolf, “jamais ganhava um tostão!” – como idealista que era (intelectual, marxista, de origem muito humilde e judeu numa época de segregação) (grifos nossos). O reconhecimento da escritora para com sua família não era motivo de gabar-se, mas sim um compromisso sério com seus entes e amigos de Bloomsbury. Este círculo social, situado no bairro homônimo, era uma comunidade fraternal de intelectuais e seus cônjuges, em que quase todos eram primos ou irmãos, entre si. Durante muito tempo, Virginia Woolf vestiu e calçou seus primos e amigos mais pobres, arranjou-lhes trabalho e concedeu-lhes, graciosamente, comentários críticos em publicações de destaque nos jornais de Londres. A atual onipresença de Virginia Woolf merece nosso reconhecimento. Destacase em objetos que vão além de livros, tais como: canetas, agendas, cadernos, camisetas, sacolas ecológicas, canecas, lenços, broches, expoentes digitalizados em arquivos, como PDF (da obra que vai da ficção aos ensaios), gravações de voz no Youtube, páginas no Facebook, Instagram e demais aplicativos de software, entre outros1. O teor de sua obra inspirou estudos sobre gênero e minorias, artes, o pensamento no início do século XX e as questões políticas do Império Britânico e do período entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais. Em 2014, foi encenada no Brasil uma peça de Edward Albee (Quem tem medo de Virginia Woolf?), a respeito do gênero feminino e não me espantaria se grupos ativistas mencionassem o nome de V. Woolf, ou usassem sua imagem – como fizeram com o “V de vingança”, nos manifestos que tumultuaram a COPA da FIFA no Brasil. Afinal, o que mais falta acontecer neste mundo? (grifos nossos). Virginia Woolf tornou-se presença garantida nas antologias sobre Literatura Inglesa e Mundial, como as Norton Anthologies (EUA). A obra da escritora é foco de estudos em eventos internacionais na América do Norte e na Europa. Eventualmente, 1 Muito provavelmente, até a edição desse periódico ser aprovada, inúmeras editoras estarão lançando novos títulos em torno da produção de Virginia Woolf. Igualmente, estaremos recebendo o Virginia Woolf Miscelany – Spring 2014 com estudos inovadores em torno de V.Woolf e sua obra. Não menos importantes serão os E-mails que receberemos para falar dos mais recentes lançamentos editoriais mundo afora, além de eventos internacionais em torno da Sra. Woolf – isto sempre acontece! Podemos dizer que Virginia Woolf vive e manifesta-se entre nós, graças à monumentalidade de sua obra e, como leitores, podemos senti-la à espreita, em cada linha, com vigorosa pulsação poética e evocação cromática, visual e sonora. No entanto, todos sabemos que ficará sempre uma lacuna, um último trabalho, uma palavra não dita, ou um ensaio ainda não acabado, por publicar, a respeito da escritora, sua obra e seus inéditos cadernos de rascunho e cartas pessoais, recentemente comercializados pelos descendentes de sua irmã. Assim é com os grandes escritores: há sempre algo novo a ser descoberto, o que torna seu fascínio uma eterna viagem. 9 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 10 surgem convites para congressos mundiais com agendamento prévio de no mínimo dois anos para as sociedades internacionais em torno da Sra. Woolf. Como mencionamos acima, a visão prismática da obra woolfiana abarca desde estudos de gênero e modernismo até sobre a civilização europeia e os estudos entre mídias. Na Internet, além dos sites oficiais que contêm bibliografia acadêmica reconhecida, chancelada por diversas instituições de pesquisa, podemos encontrar extenso material em torno da obra de V. Woolf: livros, resenhas, artigos, monografias, dissertações e teses. No cenário digital, a obra woolfiana é replicada há mais de uma década. E, replicar Virginia Woolf parece render muito, senão em termos econômicos, ao menos no âmbito acadêmico. No entanto, não pretendemos tentar edificar feitos de sua biografia e nosso intento não se concentra tampouco em realizar um dossiê que se restrinja a ensaios acadêmicos e resenhas. Almejamos abarcar qualquer produção livre, seja sob forma de artigo ou qualquer manifestação cultural em torno do enfoque de nosso dossiê semestral. Dentro desse espírito libertário, houve o mínimo de interferência no conteúdo das publicações aqui assinadas, passando as mesmas a serem de total responsabilidade de seus autores. Aviltamos qualquer recusa de textos que se enquadrem dentro do foco do periódico em questão, bem como a política de limitar textos pela quantidade de palavras, pois nosso objetivo é, justamente o contrário, o compromisso com a qualidade e a liberdade de expressão. Obviamente, a qualidade deve ser sempre priorizada. Imbuídos pelo espírito democrático, convidamos a maioria dos colegas que se concentram no convívio do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná e de outras instituições do estado. Compreendemos a brevidade do tempo de chamada específica – em torno de quatro meses – como prazo insuficiente para a maioria. Este fato fez com que inúmeros contribuintes não tenham conseguido cumprir nosso deadline. Afinal, o primeiro semestre de 2014 foi muito conturbado para todos. Devemos salientar que optamos por dirigir nosso convite de maneira individual aos colegas cujo trabalho de estudos reconhecemos como legítimo. É preciso deixar claro que a cautela de nossa atitude, quanto à honestidade, configura o marco mais relevante do embasamento moral que defendemos. Um espírito democrático, porém sob critérios éticos rigorosos. Reafirmamos que nenhuma contribuição dentro do tema do dossiê foi deixada de lado. Todas as contribuições enviadas foram consideradas. Todas foram aceitas! Particularmente, somos contra frustrar uma produção, pois jamais – jamais! – devemos recusar um trabalho de publicação. Não é didático! Não é ético! No entanto, 10 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 11 somos arbitrariamente contra o plágio e os falsos pesquisadores, tão comuns em nosso meio. Pela qualidade do material – legítimo e honesto – que recebemos de nossos colegas, sentimo-nos envaidecidos em apresentar nosso primeiro número de um periódico, sem fins lucrativos, que desejamos ver prosperar mais e mais. Tarefa árdua representa organizar, examinar, revisar e, finalmente, editar – à altura dos textos de – nossos colegas acadêmicos cujo empenho moral no ofício de estudar serve de exemplo às hierarquias sociais muito superiores. Os dedicados autores das resenhas, ensaios e artigos, constantes neste periódico, representam o diletantismo tão necessário e escasso nos meios acadêmicos da atualidade. Hoje, mais do que nunca, é preciso amar o que se faz! É preciso amar os estudos literários! E, de fato, acreditar num projeto editorial tão singelo como este, que envolve tempo, dedicação e compromisso de todos os colegas acadêmicos configura uma prova viva de nosso compromisso com o saber. Graças a nossos colaboradores e integrantes do conselho editorial e consultivo, realizamos este empreendimento. A todos, nossa mais sincera gratidão! (O Editor) 11 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 12 ENSAIOS ACADÊMICOS E ARTIGOS LIVRES SOBRE VIRGINIA WOOLF E SUA OBRA 12 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 13 UMA POSSÍVEL E BREVE BIOGRAFIA DE VIRGINIA WOOLF Adriana Paula Rodrigues Silva2 Do lugar em que me encontro: o de simples leitora, como pensar em uma biografia de Virginia Woolf que não seja óbvia demais? Que não descambe para os moldes das tantas páginas que apresentam a escritora na internet? Pensei, então, em fazer isso de outro lugar, de leitora assídua de Mario Quintana, tradutor, o primeiro, aliás, de Virginia Woolf no Brasil. Quintana exibe Mrs. Dalloway (1925) aos leitores brasileiros, apresentando não somente a romancista inglesa, mas também, o seu estilo, pois, conforme explica em entrevista a Edla Van Steen3 (1981, p. 18), boa tradução é “aquela que segue o estilo do autor, e não do tradutor”. Para Scaramuzza Filho4 (2009, p. 01): a composição literária de Virginia Woolf apresenta inovações de ritmo e imagens poéticas, incomuns à prosa tradicional. Woolf explora uma narrativa fragmentada, destacando-se como uma das precursoras do recurso do fluxo de consciência. Sua prosa dialoga com os conceitos e tendências da pintura de vanguarda. Mulher à frente do seu tempo, romancista, crítica literária e ensaísta, a britânica Virginia Woolf (1882-1941) foi uma das responsáveis por revelar a alma feminina através dos escritos literários. Em qualquer página da internet que trate de literatura, tomamos conhecimento que a autora consagrou-se como ficcionista, principalmente com os romances O quarto de Jacob (1922), Mrs. Dalloway (1925) e As ondas (1931). Entretanto, uma de suas mais representativas obras é Orlando (1928), um improvável drama de um ser andrógino, conflituoso que, ora homem, ora mulher, atravessa o enredo 2 Doutoranda em Estudos Literários pela UFPR. Professora de Teoria da Literatura e Estudos Literários nas universidades IFPI e UESPI, Piauí. 3 STEEN, Edla Van. Viver e escrever. Vol. 1. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008. 4 SCARAMUZZA FILHO, Mauro. Kew Gardens, de Virginia Woolf: relações interartes pelo prisma de Bloomsbury. Dissertação de Mestrado, UFPR, 2009. 13 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 14 envolvido por uma tensão marcada, conforme Luiza Lobo5 (1993, p. 21), pela “época de maior repressão e moralismo da história inglesa”. Suas contribuições para a literatura não dizem respeito apenas às críticas literárias e ensaios, que vão desde escritos acerca de James Joyce, passando por Charlotte Bronte e Jane Austen, entre outros. Ela traz para o texto literário a narração onisciente e o solilóquio, característicos da técnica do fluxo da consciência, inaugurada por James Joyce, e por ela empregada, o que a coloca ao lado de autores como Clarice Lispector, Thomas Mann e William Faulkner, segundo Luiza Lobo (1993). Conforme Scaramuzza Filho (2009, p. 24): a visão estética modernista de Virginia Woolf não se limitou a repetir estereótipos literários, estando engajada com as novas propostas de seu tempo, tais como: os avanços artísticos (estilo pós-impressionista), científicos (estudo do processo de pensamento humano por William James, além dos estudos da psicanálise por Freud) e sociais (movimentos classistas, trabalhistas, manifesto feminista e seus reflexos). Essa questão de estar consciente e em dia com as inovações que transformavam o mundo, parecia mais um dever ao cidadão moderno. Como vimos, sua contribuição, não somente para a literatura, mas para o mundo intelectual europeu e, particularmente, para as questões feministas é questão fechada nas discussões em torno da autora [literária]. Entretanto, embora o sucesso profissional, a vida pessoal da escritora sempre foi marcada por tragédias, particularmente a morte precoce da mãe, que a marcou profundamente. Depois da morte do pai, numa tentativa de fugir do passado, a escritora mudou-se com a irmã para o bairro cultural de Bloomsbury, onde fundaram um grupo de literatos, que incluía Lytton Strachey, Leonard Woolf e Clive Bell, entre outros. Por volta de 1910, juntaram-se a eles Roger Fry, crítico de arte, e o novelista E.M.Foster, que se tornou um dos grandes amigos de Virginia. No ano de 1904, Virginia Woolf começou a escrever regularmente artigos e críticas para jornais como The Guardian e The Times Literary Supplement. Em finais de 1905, foi convidada a dar aulas em Morley College (instituto para mulheres e homens da classe trabalhadora). Em 1906, a morte do irmão, Thoby e o casamento da irmã Vanessa (pintora) com o crítico de arte e seu amigo Clive Bell apenas agravam suas crises emocionais. Por fim, em 1912, Virginia casa-se com Leonard Woolf e quatro anos mais tarde fundam a editora The Hogarth Press, que serviu de trampolim para a 5 LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. 14 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 15 escritora no mundo das letras. Consoante Scaramuzza Filho (2009, p. 33), “com publicações sobre economia, política e questões sociais, em igualdade de importância com edições sobre arte e literatura, as prensas da Hogarth Press apresentam uma transsecção de pensamento multicultural”. Desse modo, segundo Christine Froula6 (2005, p. 11), a editora propõe “uma nova práxis de vida, na convergência da estética modernista e do feminismo, por exemplo. Virginia Woolf parece, a princípio, não acreditar na sua capacidade como escritora, sobretudo porque desde pequena lhe ensinaram que o destino das mulheres era o matrimônio e a maternidade. Mas, impulsionada pelo grupo de amigos de Bloomsbury, troca a noção da narrativa linear por um método de escrita utilizando o flashback para manter a intriga e a estrutura da narração, a partir de uma linha de tempo onde o passado se recorda voltando-se posteriormente ao presente. São em suas primeiras obras literárias, A viagem (1915), Noite e dia (1919) e O quarto de Jacob (1922), que encontramos claramente a determinação de ampliar as perspectivas da novela para além da narração. Assim, em Mrs. Dalloway (1925), por exemplo, o argumento da narrativa surge da vida interior dos personagens e os efeitos psicológicos são marcados através de imagens, símbolos e metáforas. Há um fluxo e um refluxo das impressões pessoais, dos sentimentos e pensamentos da protagonista. Os acontecimentos da Senhora Dalloway percorrem 12 horas do interior dos personagens, a consciência que têm de si mesmos, dos outros e de seu mundo caleidoscópio. Escreveu biografias e ensaios famosos como Uma habitação própria, ou Um teto todo seu (1929), em que critica a pouca valorização dos direitos da mulher. Sua correspondência e diários publicados postumamente são recursos valiosos tanto para escritores como para os leitores da sua obra. Defensora do feminismo, impulsiona nas mulheres o sentimento de luta contra a violência quotidiana e contra a política patriarcal de sua época, participando ativamente da profunda mudança cultural no tocante à figura feminina na sociedade europeia. Por fim, as notícias da Segunda Guerra Mundial dilataram a natural depressão de Virginia Woolf. E em 28 de Março de 1941, depois da sua última crise e de ter escrito duas mensagens: uma para o seu marido Leonard e outra para Vanessa, sua irmã, enche 6 FROULA, Christine. Virginia Woolf and the Bloomsbury avant-garde: war, civilization, modernity. New York: Columbia University Press, 2005. 15 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 16 os bolsos do casaco de pedras e afunda-se no rio Ouse, onde morre afogada e é arrastada pela correnteza, sendo encontrada dois dias depois. Há muitos estudos em torno de sua obra, mas alguns são imprescindíveis para a compreensão da mulher e literata, dentre eles: Os diários de Virginia Woolf, de Virginia Woolf (Cia das Letras), Virginia Woolf, de John Leeman (Jorge Zahar Editor), Virginia Woolf, de V.Woolf (Editora Paz e Terra) e Virginia Woolf, de Monique Nathan (José Olympio Editora), entre outros. Além disso, podemos ainda manter contato com [trabalhos sobre] sua personalidade e obra, por meio dos filmes As horas, Quem tem medo de Virginia Woolf? [peça e filme] e Orlando, filme de Sally Potter. Não é tarefa muito fácil, apresentar em poucas linhas um retrato de uma das mais brilhantes, intrigantes e atormentadas autoras da literatura universal. Entretanto, como sugere o título desse ensaio, esta é uma breve biografia de Virginia Woolf, e assim pensamos terá alcançado nosso objetivo, mesmo porque algumas páginas não são suficientes para descrevermos a intensidade de sua vida e a grandeza de sua obra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FROULA, Christine. Virginia Woolf and the Bloomsbury avant-garde: war, civilization, modernity. New York: Columbia University Press, 2005. LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. SCARAMUZZA-FILHO, Mauro. Kew Gardens, de Virginia Woolf: relações interartes pelo prisma de Bloomsbury. Dissertação de Mestrado. Curitiba: UFPR, 2009. STEEN, Edla Van. Viver e escrever. Vol. 1. Porto Alegre: L&PM, 2008. 16 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 17 “A SKETCH OF THE PAST”: PERCEPÇÃO E MEMÓRIA Solange Viaro Padilha – FARESC RESUMO: “A Sketch of the Past”, escrito por Virginia Woolf a partir de 1939, é um texto autobiográfico. Editado postumamente, “Sketch” integra o livro intitulado Moments of Being, coletânea de narrativas que evidenciam aspectos de sua vida, de sua filosofia e do seu fazer literário. Com grande sensibilidade poética, Virginia tece uma instigante rede de significados. Ao redigir suas memórias, a autora discute a permeabilidade entre o passado e o presente; debate a identidade individual e sua natureza móvel; reflete sobre o papel da memória e a própria construção do texto autobiográfico, revelando-nos ainda a importância dos fatos de sua vida pessoal para a construção de sua obra. Este artigo pretende ressaltar o valor dessas memórias para a construção da obra woolfiana. Passagens de seus textos, especialmente de Mrs. Dalloway, serão utilizadas para ilustrar de que modo os dados biográficos, matéria prima de sua ficção, são brilhantemente transformados por seu talento criativo. PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia. Memória. “A Sketch of the Past”, Virginia Woolf. Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles. E a palavra – basta uma só palavra – é flecha para sangrar o abstrato morto. Há, contudo, dores que a palavra não esgota ao dizêlas. (Bartolomeu Campos de Queirós) Dotados de grande potencial descritivo e narrativo, os contos e romances de Virginia Woolf (1882-1941), importante escritora modernista, destacam-se pela riqueza de detalhes e pela instigante vida interior dos personagens, cujas impressões, pensamentos e sentimentos descortinam ao leitor uma grande capacidade de percepção da realidade circundante. 17 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 18 Virginia Woolf explora, entre outros temas relevantes, os conceitos de tempo e memória. A autora escreveu diários, ensaios, romances, contos, biografias e um texto autobiográfico intitulado Moments of Being (Momentos de vida), objeto desta análise. Em Moments of Being, além de revelar a extensão da importância dos fatos de sua vida pessoal para a construção de sua obra, Virginia Woolf discute os próprios métodos de escrita e reflete a respeito da natureza da consciência, revelando ao leitor alguns aspectos filosóficos e estéticos de sua ficção. A autora explora as origens das crenças e intuições que deram forma ao seu modo de perceber o mundo. Uma dessas crenças é a de que o indivíduo vive desconectado da realidade, numa espécie de torpor que o impede de ter uma visão mais profunda e autêntica daquilo que o cerca. Em alguns raros momentos, porém, esse mesmo indivíduo leva um choque, o que o faz perceber que existe algo real e inteiro, algo que vai muito além das aparentes fragmentação e superficialidade do cotidiano. Nos breves instantes em que esta percepção aguçada (moments of being) se dá, o indivíduo perde o sentimento ilusório de separação e a consciência individual funde-se com o grande todo. Na concepção da autora, existe algo mais profundo a que involuntariamente, temos acesso. Seu modo de ver a vida traduz-se por uma metáfora muito semelhante à de Stendhal, autor que a precedeu. Romancista e crítico, Stendhal (apud BIEZMA, 1944, p. 154)7 afirmava que a verdade, “no que diz respeito ao conhecimento do homem, é como uma pintura recoberta por uma capa de cal; de vez em quando alguma parcela de cal se desprende, e eu me acerco desta realidade desejada.” Para Woolf, acercar-se da verdade envolve aspectos muito sutis. Na sua concepção, “somos embarcações seladas flutuando sobre o que convenientemente denominamos realidade. Em alguns momentos, sem um motivo, sem um esforço, a matéria seladora se quebra; a realidade jorra, aflui para dentro...”8 (WOOLF, 1985, p. 142) com intensidade avassaladora. Essas revelações podem brotar de algo aparentemente trivial – como ver uma flor e senti-la parte integrante do grande todo. Ao levar o “choque”, o indivíduo passa a perceber a realidade como algo atemporal, cuja essência jamais é afetada pelas 7 Todas as citações de Autobiografia y Modernidad Literaria, originalmente em língua espanhola, são aqui traduzidas por mim. 8 Todas as citações de Moments of Being, originalmente em língua inglesa, são aqui traduzidas por mim. 18 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 19 aparentes mudança, separação e desordem, tão características da vida diária. Stuart Elton, personagem do conto “Felicidade”, passa por uma experiência dessa natureza: Quando Stuart Elton se dobrou para tirar de sua calça, com um peteleco, um fio branco, o gesto banal, seguido com foi por um deslizamento e avalanche de sensação, assemelhou-se a uma pétala de rosa caindo, e Stuart Elton, ao se endireitar para retomar a conversa com mrs. Sutton, sentiu-se constituído de pétalas, muitas, firme e compactamente sobrepostas umas às outras, e todas avermelhadas, todas de lado a lado aquecidas, todas colorizadas por esse inexplicável brilho. Caiu pois uma pétala, assim que ele se dobrou. Nunca havia sentido isso – não – quando era jovem, e agora, aos quarenta e cinco anos, bastou ele se dobrar para tirar um fio da calça para que impetuosamente isso descesse a vará-lo, essa bela e ordeira percepção de vida, esse deslizamento, essa avalanche de sensação, estar em sintonia com o todo, quando voltou a se aprumar recomposto – mas o que era que ela estava dizendo? (WOOLF, 2005, p. 251) Para Virginia Woolf, tais momentos, por seu grande impacto, superam em valor meio século de vida. A experiência é de tal maneira pessoal e intuitiva que chega a tocar a esfera do irracional. Por atingir uma camada de tal modo transcendente, não pode ser questionada. Woolf começa a escrever “A Sketch of the Past”, que integra os escritos de Moments of Being, em abril de 1939. Portanto, o legado memorialístico que consta de “Sketch” não foi escrito na adolescência ou na juventude, mas numa fase mais madura. As entradas versam entre 18 de abril de 1939 e 17 de novembro de 1940. A última entrada data de aproximadamente quatro meses antes de sua morte. Paralelamente à biografia de Roger Fry, ela redigia suas memórias sem, no entanto, prepará-las para publicação. Os textos foram revisados e editados postumamente por Leonard Woolf, seu esposo. Ao longo do texto autobiográfico, Virginia Woolf aponta para as dificuldades encontradas ao coligir suas memórias. Dentre os inúmeros fatos dos quais se lembra, quais deles deverá selecionar para compor seu texto? O que privilegiar? De que modo deverá narrá-los? Jorge Luís Borges, na abertura do conto intitulado “Úlrica”, afirma: “Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que é a mesma coisa. Os fatos ocorreram há muito tempo, porém sei que o hábito literário é, também, o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases.”9 No caso de Virginia Woolf, os fatos ocorreram num passado distante. 9 Texto disponível em < http://www.loscuentos.net/cuentos/other/3/10/99. > Acesso: 13 maio 2014. Tradução nossa. 19 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 20 A autora acredita que as memórias, como narrativa de vida, sejam enganadoras. Ela se questiona por que razão nos lembramos espontaneamente de algumas cenas vividas. Segundo Maurice Halbwachs, Bérgson defende a ideia de que O passado permanece inteiramente dentro de nossa memória, tal como foi para nós; porém alguns obstáculos, em particular o comportamento de nosso cérebro, impedem que evoquemos dele todas as partes. Em todo caso, as imagens dos acontecimentos passados estão completas em nosso espírito (na parte inconsciente de nosso espírito) como páginas impressas nos livros que poderíamos abrir, ainda que não os abríssemos mais. (HALBWACHS, 1990, p. 52) Woolf defende a ideia de que não há uma explicação lógica para o fato de uma determinada circunstância da vida ser recordada de maneira tão vívida, enquanto outras passagens – talvez não menos relevantes – ficam arquivadas e esquecidas. Suas reflexões revelam muito de sua poética. Acreditamos, como Biezma, que Muito poucos são, com efeito, os autores que deixaram [...] um relato tão completo a respeito da sua evolução intelectual e emocional bem como de suas lutas internas, em diários, cartas e diversas modalidades de ensaios autobiográficos. E é bem possível que a raiz intimista deva ser buscada, além de em suas preferências literárias, no desdobramento a que se viu submetid[a] desde muito cedo entre os dois universos paterno e materno... (BIEZMA, 1994, p. 153) Nos relatos de “A Sketch of the Past”, Virginia Woolf um legado de seu fazer artístico e de suas lutas internas, suas contradições. Ao abordar a família, apresenta particularidades de seu relacionamento com o pai, Leslie Stephen, eminente escritor e biógrafo. Suas então recentes leituras de Freud levaram-na a rever os laços com o pai, proporcionando a ela maior compreensão e aceitação dos sentimentos ambivalentes que nutria em relação ao seu genitor. O envolvimento da menina Virginia com a mãe, Julia Jackson Duckworth (1846-1895), também é evidenciado. Herdou da mãe o senso estético apurado, o olhar que percebia e valorizava a beleza sutil nas artes e no cotidiano. Embora a apreciação de uma obra ficcional não tenha como pré-requisito o conhecimento da biografia do autor, tal conhecimento pode enriquecer a leitura, levando ao aprofundamento da rede de significados e ampliando o leque de associações possíveis. Na ficção de Virginia Woolf, percebe-se a presença sutil, porém incisiva, de traços autobiográficos. Fatos, pessoas, lugares e emoções, tudo reaparece em sua obra, devidamente transformado por seu talento criativo. Muitas das imagens de seus 20 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 21 romances parecem ter tido origem nas cenas que se fixaram na consciência da jovem escritora. Segundo Alexsandra Lemasson (2011, p. 13), “Fazer com que a infância dure, encontrar seus fragmentos embaralhados, restituir suas cores cintilantes, suas sonoridades sufocadas pelo barulho lancinante das ondas, essa será a busca de Virginia Woolf.” Passeio ao Farol (1927) é escrito sob forte influência de suas memórias de infância, quando a presença da mãe – reconhecidamente uma das “presenças invisíveis” na obra da autora – ainda era constante. Para Woolf, a “presença invisível” caracterizase como a consciência de outros grupos, a opinião pública, tudo aquilo ou todos aqueles que influenciam nossa maneira de ver o mundo, de pensar ou agir. Nesse sentido, as ideias expostas por Woolf são corroboradas por Paul Eakin (1999, p. 43), para quem “toda identidade é relacional”. A identidade de uma pessoa se constrói, portanto, em relação ao grupo familiar ou social. Para Virginia Woolf, existe uma conexão entre todos os seres; o mundo é uma obra de arte e todos fazemos parte dela. A escritora afirma que essa compreensão do mundo, bem como crença de que a vida de uma pessoa não se restringe ao seu corpo ou àquilo que faz ou diz, lhe é instintiva, espontânea. Corroborando a ideia da autora, um de seus personagens mais célebres, Clarissa Dalloway, afirma: Tinha estranhas afinidades com gente a quem nunca falara, esta mulher na rua, aquele homem atrás de um balcão – até mesmo com árvores, ou galpões. O que tudo redundava numa transcendental teoria que [...] sendo tão momentâneas as nossas aparições, a nossa parte invisível “eu” sobrevivesse, se refizesse de algum modo, ligada a esta ou aquela pessoa, ou mesmo freqüentando certos lugares, após a morte. Talvez... (WOOLF, 1972, p. 150) Ao referir-se à morte da própria mãe, Virginia Woolf afirmava não sentir nada naquele momento, como sempre fazia em ocasiões extremas. Na transposição dos elementos biográficos para a ficção, Septimus, personagem do romance Mrs. Dalloway, vive uma crise intensa. Num momento turbulento, acreditase igualmente indiferente à realidade circundante: Era sublime, aquilo. Passara por tudo, amizade, guerra, morte, fora promovido, ainda não tinha trinta anos e ia sobreviver. Estava tudo direito. As últimas bombas não haviam acertado nele. Vira-as explodir com indiferença. [...] Pois agora que estava tudo acabado, assinado o armistício e enterrados os mortos, vinham-lhe, especialmente ao entardecer, aqueles súbitos acessos de medo. Não podia sentir. [...] mas alguma coisa lhe faltava; não sentia nada. (WOOLF, 1972, p. 88) 21 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 22 E, de modo semelhante à autora, desencantado e temeroso, Septimus mostra-se indiferente aos prazeres da vida e à própria comida: Nem ao menos o paladar (Rezia adorava gelados, chocolates, doces) tinha encantos para ele. Deixava a sua taça pousada na mesinha de mármore. Olhava a gente que passava; pareciam felizes, parando no meio da rua, gritando, rindo, discutindo por qualquer coisa. Mas ele não sentia gosto, não sentia coisa alguma. No café, entre as mesas e os garçons loquazes, o terrível medo o dominava: ele não podia sentir. (WOOLF, 1972, p. 89) Na ficção de Virginia Woolf, a ênfase não é dada a fatos e eventos do mundo externo, mas à consequência desses no âmago dos personagens. Por meio de imagens, símbolos e metáforas de grande qualidade poética, são realçados os aspectos psicológicos dos personagens. Um olhar perspicaz perceberá que, sob uma máscara de aparente superficialidade, eles se revelam ricos em seus mergulhos intimistas. Clarissa Dalloway, ao refletir sobre sua condição, mostra-se sensível a tudo o que a cerca: E quantas vezes, ultimamente, se Richard não estivesse ali a ler o Times, de modo que ela se aconchegava como um pássaro na sua presença, e gradualmente ia revivendo, exaltando-se num incomensurável júbilo, juntando uma coisa a outra, quantas vezes já não deveria ter perecido? Conseguira escapar. Mas aquele jovem se havia suicidado. De certo modo, era aquilo um desastre dela própria, uma catástrofe sua. Era-lhe um castigo ver afundar e desaparecer aqui um homem, ali uma mulher, naquela profunda escuridão, enquanto ela era forçada a permanecer, ali, com seu vestido de gala. (WOOLF, 1972, p. 180) A personagem, em seu vestido de gala, sente que faz parte de um todo. Embora cumpra o papel social que lhe é imposto, sente-se conectada às tragédias humanas que passam diante de seus olhos. 22 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 23 O papel da memória Virginia Woolf acredita que o papel da memória é essencial; ela constitui o meio pelo qual o indivíduo constrói padrões de significado pessoal nos quais ancora sua vida. Em Moments of Being, a autora argumenta que “O presente, apoiado pelo passado, é mil vezes mais profundo que o presente quando este pressiona tão de perto que não podemos sentir nada mais [...] Mas para sentir o presente deslizando sobre as profundezas do passado, a paz é necessária” (WOOLF, 1985, p. 98). A memória pode tanto ampliar dimensão daquilo que foi vivido quanto tornar mais relevante o momento presente. As entradas de “A Sketch of the Past” apresentam a data em que o texto foi escrito: “Eu escrevo a data porque acho que descobri uma forma possível para essas notas. Isto é, para fazê-las incluírem o presente – ao menos o suficiente do presente para servir como uma plataforma sobre a qual me apoiar” (WOOLF, 1985, p. 75). Cada trecho autobiográfico é introduzido por seu “eu do momento”, que contrasta com o “eu passado”, ou seja, com a percepção que a autora tinha quando viveu a experiência relatada. De forma madura e consciente, esse “eu presente” vasculha todo e qualquer acontecimento anterior na tentativa de encontrar significados que poderiam não ser evidentes para o self que viveu os episódios narrados. Um leque de “eus” do presente filtra os “eus” do passado revelando o estreito entrelaçamento dessas duas instâncias. Paul Eakin (1999, p. 93) assegura que “o corpo muda, a consciência muda, as memórias mudam, e a identidade muda também, quer gostemos disto ou não.” Woolf acredita que as memórias contrastam as duas entidades – a atual e a anterior –, e que o passado é acentuadamente afetado pelo instante presente. Nesse sentido, sua teoria assemelha-se à de Henri Bergson (1859-1941), cujos postulados afirmam que tanto o presente é afetado pelo passado quanto este é alterado por aquele. Samuel Beckett (2003, p. 13) argumenta que “O indivíduo é o sítio de um constante processo de decantação, decantação do recipiente contendo o fluido do tempo futuro, indolente, pálido e monocromático, para o recipiente contendo o fluido do tempo passado, agitado e multicolorido pelo fenômeno de suas horas.” A ênfase aparentemente paradoxal tanto de mudança quanto de continuidade da identidade individual permeia a obra de Virginia Woolf. Tal ponto de vista é compatível com a ideia defendida por 23 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 24 Philippe Lejeune (1994), especialmente quando este assevera que uma pessoa é sempre muitas quando escreve. Para Virginia Woolf, o passado (sobre o qual se afirma a identidade do momento presente) não é jamais estático, mas sujeito a alterações na medida em que é relembrado. A identidade individual não é fixa; está sempre em movimento, sendo alterada a cada instante pelas forças circundantes. Em termos formais, sua crença na infindável transformação da personalidade é expressa pela justaposição de “eus”, algo tema frequentemente abordado por seus personagens. Bernard, personagem do romance As ondas, afirma haver Bernards distintos: o forte, o brilhante, o maltrapilho, o encantador – e complementa: “Para mim mesmo, eu era algo diferente; não era nada disso” (WOOLF, 1980, p. 194). Aprofundando estes questionamentos em relação à própria identidade, acredita ter sido muitos – Hamlet, Shelley, um herói de um romance de Dostoievski, Napoleão, Byron – e pergunta-se: ‘Quem sou eu?’. Falei em Bernard, Neville, Jinny, Susan, Rhoda e Louis. Sou todos eles? Sou um e distinto? Não sei. Sentamo-nos aqui juntos. Mas agora Percival está morto, e Rhoda está morta; estamos divididos; não estamos aqui. Ainda assim não encontro qualquer obstáculo a nos separar. Não há divisão entre mim e eles. Enquanto falava, eu sentia: – ‘Sou vocês.’ A diferença à qual damos tanta importância, identidade que valorizamos tão febrilmente, estava superada. (WOOLF, 1980, p. 215) Um sentimento confuso a fez refletir que Virginia Stephen não nascera em 25 de janeiro de 1882, mas havia nascido há muitos milhares de anos, e desde o princípio teve que se deparar com “instintos já adquiridos por milhares de ancestrais mulheres no passado” (WOOLF, 1985, p. 69). Curiosamente, esta crença parece estar igualmente refletida em Mrs. Dalloway: Do fundo da idades – quando o calçamento era relva, era pântano através da idade das grandes presas e dos mamutes, da idade das auroras silenciosas, aquela mulher acabada – pois vestia uma saia –, com a mão direita estendida e a esquerda junto ao corpo, estava cantando de amor, amor que vinha de um milhão de anos, cantava, amor que perdura, e milhões de anos fazia que o seu amante, morto naqueles séculos, cantarolava, havia passado com ela, em maio... (WOOLF, 1972, p. 83) Enquanto Clarissa Dalloway afirma sentir um “amor que vinha de um milhão de anos”, Virginia Woolf afirma sentir uma mágoa que parece anterior à sua própria existência. Tal mágoa advém da lembrança de ter seu corpo tocado intimamente tocado pelo meio- 24 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 25 irmão, Gerald Duckworth, filho do primeiro casamento de sua mãe. Lembra-se da sensação de não gostar do que acontecia e de ficar ressentida, com um sentimento antigo como que compartilhado por todas as mulheres. Lemasson, ao discutir esse fato da vida de Woolf, afirma: Esses maus-tratos impostos à sua meia-irmã por Gerald e, mais tarde, por George foram muito comentados. Realidade ou fantasia? Talvez nem mesmo a principal interessada o saiba com certeza. [...] Se devemos ou não acreditar nela, pouco importa, afinal. O que conta é a importância dada pela romancista a essa lembrança. E também a maneira como sua vida psíquica organizou-se em torno dela. [...] Só isso é que conta, assim como a maneira pela qual transfigurará essa lembrança, real ou fantasiada, em seus livros. (LEMASSON, 2011, p. 65-66) Essas memórias ressurgem, muitas vezes, conturbadas. Douglas Colby assegura que não podemos ter certeza de que o p-assado existiu como nos lembramos dele, pois o passado já se foi e dele restam apenas memórias. Além disso, as lembranças de uma pessoa não são necessariamente relatos precisos do passado, uma vez que elas freqüentemente o redefinem, ora distorcendo-o para esconder o que é ameaçador, ora criando um passado totalmente fictício, para preencher suas carências psicológicas. (COLBY apud CAMATI, 2005, p. 37) (tradução nossa) Na tentativa de analisar, sintetizar e resgatar o próprio “eu”, Virginia Woolf enfatiza suas origens, plasmando a multiplicidade de sua existência. Delicadamente, procura extrair um sentido daquilo que viveu, tendo em mente que, por vezes, em virtude da própria natureza das memórias, fidelidade e coerência apresentam-se como elementos contraditórios. Sinestesia Virginia Woolf utiliza-se com maestria de experiências que ocorreram no nível sensorial. As memórias arroladas pela autora têm grande força sinestésica; imagens envolvendo cores, sons e odores passam a ter significado simbólico. Em “A Sketch of the Past”, discute o valor perene das memórias e descreve cenas que marcaram seu espírito. Algumas das recordações estão associadas à residência de verão em St. Ives, onde a família Woolf costumava passar as férias. Em uma das entradas de “Sketch”, lembra-se de estar deitada, num estado de ligeiro torpor, 25 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 26 e ouvir as ondas do mar quebrando. A jovem, então, percebe a luminosidade do momento e tem ima sensação de êxtase, que envolve os sentidos da audição e da visão. Tal enlevo acontece inúmeras vezes. Uma sensualidade sutil permeia outra cena na casa de veraneio: a autora se vê bastante jovem, caminhando em direção à praia. Ela pára no alto do caminho para admirar os jardins e sentir o aroma das flores. A simples lembrança do ocorrido ainda a fazia sentir um calor por dentro, uma espécie de deleite. A romancista manifesta o desejo de, caso tivesse habilidade para tal, pintar estas primeiras impressões, que viriam acompanhadas de sons, uma vez que, para ela, sons e cores estão intrinsecamente ligados. Para Woolf (1985, p. 67), os sentidos eram preponderantes: “Dificilmente estou consciente de mim mesma, mas apenas da sensação. Sou o recipiente do sentimento de êxtase, do sentimento de enlevo. Talvez isto seja característico de todas as memórias de infância; talvez isto explique sua força.” Recorda-se de como, a seus olhos infantis, o espaço embaixo da mesa era imenso! Observava com atenção e gravava indelevelmente na memória o colorido dos balões e as nervuras das conchas. Uma profusão de cores brilhantes, sons distintos, seres humanos, caricaturas, percepções inusitadas – tudo circundado por um vasto espaço – configuram a sua descrição visual da infância. Para ela, o passado pode tornar-se mais intenso e real que o presente: Às vezes, consigo voltar a St. Ives mais completamente do que nesta manhã. Consigo atingir um estado em que pareço estar olhando as coisas acontecerem como se estivesse lá. Suponho que minha memória supra o que eu havia esquecido [...]. Em certas disposições de espírito favoráveis, as memórias – aquilo de que nos esquecemos – vêm à tona. (WOOLF, 1985, p. 67) Nesses instantes, a sensação é a de plenitude e de tomada de consciência. A autora mergulha em suas memórias e emerge delas com uma nova percepção daquilo que viveu. Choques A novelista tece comentários sobre a dificuldade de descrever o cotidiano, sobretudo relatar aquilo que não é flagrante ou especial. Para Virginia Woolf existe um contraste entre o que ela denomina instantes de “being” e de “non-being”. Nos momentos de “being” (vida), o indivíduo está alerta, sente-se desperto, consciente e ciente de uma verdade maior. Naqueles de “non-being” (não vida), a pessoa encontra-se 26 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 27 anestesiada, com a percepção embotada, como se estivesse imersa em uma grande massa informe, com os olhos velados para a realidade circundante; não percebe o que vive, não vive com intensidade. A proporção destes momentos de não vida é naturalmente superior à de flashes intensos, vigorosos. Esses surgem repentinamente e causam um sobressalto quase violento; são lampejos involuntários. Em “A Sketch of the Past” encontram-se enumeradas três passagens ocorridas em St. Ives, momentos de intuição de uma verdade maior, breves segundos durante os quais Virginia reconhece a percepção inusitada, o choque agudo. No primeiro episódio, ao brigar com o irmão, Thoby, a jovem pensa: “Por que machucar outra pessoa?” – e, sentindo-se impotente, deixa que o irmão bata nela. No segundo, relata que ao contemplar o jardim, observa as folhas de uma planta e percebe que aquilo é o todo, que a flor faz parte da terra, que a verdadeira flor é parte da terra, parte flor; sente-se, então, gratificada, satisfeita. No terceiro episódio, descreve a lembrança do suicídio do Sr. Valpy, que os havia visitado anteriormente. Sente desespero e uma espécie de horror paralisa o seu corpo. Para Woolf, a capacidade de receber estes choques, aliada ao desejo de explicálos, é que a tornam uma escritora. Segundo Lemasson (2011, p. 13), “Virginia Woolf transformará os despertares em St. Ives na pedra angular dessa obra [“A Sketch of the Past”], que a coloca entre os principais autores do seu século.” O choque, o sobressalto, na concepção woolfiana, é ou virá a se tornar uma revelação; é um sinal de algo real atrás das aparências e o fato de colocá-lo em palavras torna-o real. Quanto às memórias de St. Ives, o suicídio do amigo da família, de algum modo, persiste em sua ficção. Mrs. Dalloway, afastada de seus convidados, reflete: Um jovem (era o que Sir William estava contando ao Sr. Dalloway) se havia suicidado. Oh! pensou Clarissa, no meio da minha festa aparece a morte, pensou. [...] Um jovem se havia suicidado. E falavam disso na sua festa. [...] Jogara-se de uma janela. [...] A morte era um desafio. A morte era uma tentativa de união ante a impossibilidade de alcançar esse centro que nos escapa; o que nos é próximo se afasta; todo entusiasmo desaparece; fica-se completamente só... Havia um enlace, um abraço, na morte. Mas esse jovem que se havia suicidado... mergulhara acaso com o seu tesouro? ‘Se tivesse de morrer agora, seria, no momento mais feliz’, dissera consigo certa vez, ao descer a escadaria, toda vestida de branco. (WOOLF, 1972, p. 178-179) 27 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 28 Desde jovem, Clarissa se inquieta com a morte. O mesmo se dá com Virginia Woolf, para quem a morte dava sentido à vida; sem ela, não haveria nada com o que se se alegrar ou razão para viver. Em Mrs. Dalloway, Lucrezia, esposa de Septimus, entende que Todos têm amigos que foram mortos na guerra. Todos renunciam a alguma coisa, quando se casam. Ela [Rezia] renunciara à sua casa. Tinha vindo morar ali, naquela horrível cidade. Mas Septimus dera para pensar em coisas horríveis como ela própria o poderia fazer, se o tentasse. Tornava-se cada vez mais estranho. Dizia que havia gente falando por detrás das paredes do quarto. A Sra. Filmer achava isso muito esquisito. Ele também via coisas... tinha visto a cabeça de uma velha no meio de uma folhagem. Contudo, podia ser feliz, quando queria. [...] De súbito ele disse, quando estavam junto ao rio: “Agora vamos matar-nos”, e olhou para a água com aquele olhar que ela já lhe vira antes, quando um trem passava ou um ônibus – um olhar como se alguma coisa o fascinasse; e sentiu que ele se afastava dela e tomou-o pelo braço. (WOOLF, 1972, p. 69) A ideia de suicídio vai tomando corpo, tanto do personagem quanto da autora. Notas finais Ao publicar Mrs. Dalloway em 1925, Woolf já havia passado por uma Guerra Mundial. A Europa vivia tempos de incerteza, de luto e de dor. As inúmeras perdas – pessoais e coletivas – desestabilizavam a escritora, deixando-a insegura diante de um mundo cruel e voraz. Embora aos poucos a vida fosse retomada, as mudanças perpetradas pela guerra foram irreversíveis. Naturalmente, esse período teve grande impacto em sua obra e em sua visão do mundo. Passadas algumas décadas, mais uma grande guerra fora deflagrada. Em 22 de setembro de 1940, Woolf esteve sob grande tensão, não somente interna, mas também a provocada pelas invasões e pelos ataques aéreos – ou pelo adiamento destes devido ao mau tempo. Amargura, melancolia, indiferença, tudo parece se misturar. Os efeitos do conflito e dos ataques ao seu país são devastadores para o seu equilíbrio psicológico; depressiva, teme enlouquecer. Em 28 de março de 1941, na sua casa em Rodmell, escreve uma última nota para o marido, na qual afirma ter medo de perder a sanidade e não ser capaz de se recuperar. Num tom bastante emotivo, assegura ter sido feliz com ele, até a insânia apoderar-se 28 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 29 dela. Alega não ter mais forças para lutar e reconhece: caso alguém a pudesse ter salvo, esse alguém teria sido ele, Leonard. Em Londres, distante de onde ela se encontra, certamente o Big Ben soa anunciando que a passagem das horas. Desta vez, porém, ele não anuncia a proximidade da festa organizada por Clarissa Dalloway. Desta vez, ele anuncia a iminência da partida de Virginia Woolf. Terminada a nota para o marido, Virginia Woolf encaminha-se para o Rio Ouse, próximo à sua casa. Enche os bolsos do casaco com grandes pedras – e adentra as águas turbulentas para a grande dissolução ou o grande esquecimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003. BIEZMA, Javier del Prado et al. Autobiografia y Modernidad Literaria. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Manch, 1994. CAMATI, Anna Stegh. “The Concepts of Time, Memory and Identity in Beckett’s Essay on Proust”. ABEI Journal, São Paulo, v.7, p. 33-40, 2005. EAKIN, Paul. “Relational Selves, Relational Lives: Autobiography and the Myth of Autonomy”. In _____. How Our Lives Become Stories: Making Lives. Ithaca: Cornell University Press, 1999. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990. LEMASSON, Alexandra. Virginia Woolf. Trad. Ilana Heinberg. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011. LEJEUNE, Philippe. El pacto autobiográfico y otros estudios. Madrid: MegazulEndymion, 1994. WOOLF, Virginia. As ondas. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. _____. Contos completos. 2. ed. Trad. Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac Naify, 2005. _____. Moments of Being. London: Harcourt, 1985. _____. Mrs. Dalloway. Trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1972. 29 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 30 A CONTRIBUIÇÃO DE VIRGINIA WOOLF AO GÊNERO MEMÓRIAS EM AM I A SNOB? Mauro Scaramuzza Filho (DTR 20130189, UFPR) RESUMO: Este estudo insere o texto Am I a Snob? (Sou uma esnobe?), apresentado por Virginia Woolf no Clube de Memórias, no contexto de suas narrativas memorialistas, publicadas na coletânea Moments of Being (Momentos de vida), de 1940. Estas memórias tratam da visita da escritora à Argyll House (Mansão Argyll), bem como de sua convivência com a aristocracia de Londres e sua amizade com figuras influentes da política. Para isso, examina o texto como resposta de Virginia Woolf às críticas de esnobismo e pretensa superioridade intelectual do Grupo de Bloomsbury. O estudo aponta contradições entre o propósito da autora e a sofisticação de sua linguagem que utiliza termos como: chauffeur, glamour, beau monde, Rolls-Royce. Como base teórica utiliza os conceitos-chave de autobiografia e memória referidos por Javier del Prado Biezma e Wander Melo Miranda. A pesquisa pretende investigar o modo como a escritora revela traços de sua personalidade, por meio de estratégias narrativas e estilísticas. O estudo ressalta o tom confessional, marcado pela maneira como a escritora aceita abrir-se para uma avaliação, bem como sua atitude em relação às suas qualidades. Virginia Woolf deixa-se conhecer de forma indireta e descentralizada. Torna sua escrita envolvente, pelo uso da ironia com que expõe curiosidades sobre os amigos da alta sociedade, e a forma como a prestigiam. A relevância destas memórias no contexto de sua obra confirma-se pelo seu estilo de narrar, com a exploração do discurso indireto livre, o uso da terceira pessoa como recurso para falar de si mesma, além do emprego de metáforas, imagens e justaposição de narrativas epistolares e diários. PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf. Memórias. Esnobe. Bloomsbury. Argyll. 30 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 31 Introdução O presente estudo tem o objetivo de analisar a narrativa Am I a Snob?10, de Virginia Woolf (1882-1941), constante da coletânea Moments of Being11, como um representante do gênero literário de Memórias. Nesse texto, a escritora procura estabelecer uma comparação entre os exemplos de esnobismo observados em seu cotidiano. Desta forma, V. Woolf identifica alguns aspectos de soberba em sua própria personalidade, mas que parecem muito comuns se comparados aos defeitos de certas pessoas da alta sociedade. A narrativa evolui, oferecendo ao público um trabalho de elaboração envolvente, com os extremos do conceito do que representa ser um esnobe, por meio de uma estética literária carregada de símbolos, imagens, contrastes, e de refinada ironia. Em suas memórias, a escritora revela ao público sua convivência com a alta sociedade de Londres e o quanto isto lhe impressionou. A contribuição de Virginia Woolf à Literatura, transcende a ficção e os ensaios que a tornaram famosa em sua época, abrangendo os gêneros literários autobiográficos, como os diários e as memórias. Em sua coletânea de textos autobiográficos Moments of Being, V. Woolf reúne cinco narrativas memorialistas, publicadas pela primeira vez em 1940 – poucos meses antes de sua morte. Este material representa uma ligação entre o texto manuscrito e o texto datilografado, visto conter partes extraídas dos diários e da correspondência pessoal da escritora. Portanto, trata-se de um texto fragmentado, principalmente, nos trechos em que há inserções de sua correspondência pessoal e de seus diários. Virginia Woolf pareceu valer-se de sua fama internacional para, em vida, publicar obras que lhe pudessem render um retorno financeiro, pois já havia experimentado o sucesso no mercado editorial norte-americano em 1934, um ano após publicar seu último romance Flush12, a ponto de presentear sua irmã, Vanessa Bell, com um montante de 100 mil libras para comprar um carro novo – um Rolls-Royce. Portanto, 10 Traduzido por este autor como Sou uma esnobe? (todas as traduções deste estudo são da autoria de Mauro Scaramuzza Filho). 11 WOOLF, Virginia. Moments of Being. 2 ed. London: Harcourt, 1985. Volume editado com introdução e notas de Jeanne Schulkind. Título traduzido pelo autor do ensaio como Momentos de vida (com a possibilidade de ser também compreendido como Momentos do ser). Observação: Todas as citações referentes ao texto analisado serão de tradução do autor deste ensaio e, apenas, acrescidas do número da página, do texto original. 12 WOOLF, Virginia. Flush. Porto Alegre: L&PM, 2003. 31 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 32 ao publicar os textos reunidos em Moments of Being, já conhecidos de seu meio social, a escritora parecia estar atendendo à demanda de um público consumidor, mais amplo, ávido em conhecer melhor os detalhes da vida pessoal de sua contadora de histórias predileta. Entretanto, deixando estas considerações de lado, esta coletânea de textos autobiográficos representa uma importante contribuição à compreensão da obra e da vida da escritora, principalmente junto aos meios acadêmicos. As Memórias de Virginia Woolf em Moments of Being A edição, que serviu de referência ao presente estudo, recebeu um acréscimo de vinte laudas, em 1980, além de material inédito cedido pela Coleção Berg e The British Library, ambas da Grã-Bretanha. Por conseguinte, quarenta anos depois da primeira edição, o público leitor tem acesso ao material completo de suas memórias. Isto visa corrigir uma espécie de lacuna que tornava o material, da primeira edição, complexo e aparentemente incompleto. Essa nova edição apresenta-se como uma coletânea de textos autobiográficos (A collection of autobiographical writing). Conforme sua editora recente, Jeanne Schulkind (1985, p. 13), “[...] a interpretação ativa do passado e do presente, resulta em arranjos estimulantes daquela identidade indefinível que é o tema destas memórias”13. Para melhor avaliação deste trabalho de Virginia Woolf, é interessante considerar, inicialmente, a definição clássica de autobiografia de Philippe Lejeune (apud MIRANDA, 1999, p. 31): trata-se de um relato em prosa que remete a uma pessoa real – Virginia Woolf –, com uma perspectiva retrospectiva: examina o passado com os olhos do presente. Segundo os estudos clássicos propostos por Lejeune, o texto autobiográfico caracteriza-se por: (A) Forma da linguagem: relato em prosa. (B) Tema (Assunto): história de uma personalidade; uma historia de vida individual. (C) Situação do autor: reporta à identidade do autor e narrador, cujo nome remete a uma pessoa real. (D) Posição do narrador: Primeiro, a identidade do narrador como personagem principal. Segundo, o uso de uma perspectiva retrospectiva, ou seja, o relato do autor vê de hoje o que ocorreu ontem. O gênero literário de Memórias configura, em teoria, a somatória do que expressam os itens A, C, D, descritos anteriormente. Na realidade, as 13 Tradução do autor, a partir do original: “The active interpretation of past and present that results in fresh arrangements of that elusive identity which is ‘the subject of these memoirs’. ” (p.13) 32 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 33 memórias procuram enaltecer apenas os aspectos relevantes da vida de uma celebridade – como é o caso de Virginia Woolf, escritora e crítica literária que conheceu, em vida, a aclamação pública internacional. Virginia Woolf procura reunir, por meio da escrita, trechos de suas memórias vividas e contadas oralmente no Clube de Memórias. Conforme Wander Melo Miranda (1999, p. 31): “A memória busca enaltecer fatos da vida do narrador; como personalidade pública”. Ela [a memória] concentra-se mais sobre os fatos que o autor testemunhou do que sobre sua própria personalidade. Nas Memórias, “[...] a história se reflete, em uma consciência que nos conta em primeira pessoa, como se os lugares, os personagens e os feitos emanassem do eu que narra ou acabassem nele” (BIEZMA, 1994, p. 251). O gênero literário de memórias pode ser conceituado como um registro escrito individual que é acionado quando é requerido, sendo imutável e, portanto, diferente da simples percepção. Não se trata meramente de um registro histórico, mas da expressão narrativa da interioridade que registrou fatos de uma vida e que são resgatados como elementos guardados em um baú, que fica dentro da memória, na mente humana. A pessoa real que faz o relato, elabora uma retrospectiva de vida com ênfase nos episódios que mais a marcaram. De modo algum, representa repetir o que aconteceu, mas de registrar alguns fatos importantes – memoráveis, ainda que aparentemente fúteis – da vida de Virginia Woolf. Esse texto autobiográfico objetiva trazer o passado para um momento presente e compartilhá-lo como memória resgatada. Neste sentido, vale-se também de um fragmento de sua história, como um diário, um bilhete, ou uma carta, algum elemento pontual que tenha registrado um determinado momento que se encaixe na narrativa de resgate (memória). O foco da memória, como gênero literário, é o autor e, mais especificamente, os acontecimentos memoráveis de sua vida. O convite para falar do passado, e registrar suas memórias publicamente, requer do escritor o acionamento de sua memória. Isto é considerado uma atitude deliberada, fazendo com que o narrador acentue o sabor de algumas experiências pessoais e deixe detalhes que julgue secundários em plano inferior. Após discorrer e refletir sobre o tema, como que efetuando um olhar panorâmico, em Am I a Snob? Virginia Woolf procura enfocar a convivência com os Colefax, e em especial sua última visita a Argyll House. 33 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 34 Em Moments of Being há um agrupamento de três narrativas apresentado como The “Memoir Club” Contributions (As Contribuições ao “Clube de Memórias”). Torna-se importante falar um pouco sobre o Clube de Memórias, pois além de abranger a narrativa que inspirou esse estudo (Am I a Snob?) reuniu os membros do Grupo de Bloomsbury. De acordo com Wander Melo Miranda (1999, p. 125), “[...] a rememoração de um incidente estritamente pessoal, é desveladora de uma situação que ultrapassa o âmbito do particular e o contextualiza numa rede de significações mais abrangente”. Certamente, os integrantes do Clube de Memórias identificavam-se com a realidade descrita por Virginia Woolf, a respeito do que representava ter que lidar com o esnobismo comum à aristocracia inglesa. Este grupo de intelectuais, assim como procurava evitar o convívio com a alta sociedade, também era evitado pelas oligarquias mais tradicionais; tendo como marco inicial o escândalo causado pelo livro de Lytton Strachey, Vitorianos eminentes (1919), em que o escritor satirizava a moral da aristocracia da Inglaterra. No entanto, o próprio comportamento liberal das irmãs Stephen (sobrenome de solteira de Virginia Woolf e Vanessa Bell) era motivo de escândalo e comentários, o que não impedia que a celebrada escritora fosse incluída nas listas de convidados mais rigorosas de Londres. O Clube de Memórias foi estabelecido em março de 1920 e representava o reagrupamento dos integrantes do antigo Grupo de Bloomsbury, que havia se dispersado durante os anos da Primeira Guerra Mundial. Com o final da guerra, os velhos amigos voltaram a se encontrar para compartilhar suas memórias – performaticamente, lidas em voz alta para o grupo – e desfrutar da companhia uns dos outros. As reuniões aconteciam durante o “jantar das Quintas-feiras”, em torno das oito horas da noite, no qual todos haviam concordado em usar da “mais absoluta franqueza”. Fato que, segundo Leonard Woolf, representava usar apenas de franqueza meramente relativa, pois mesmo entre os mais íntimos há uma tendência natural para ocultar um pouco os fatos. A julgar pela ironia do senhor Woolf, às memórias compartilhadas com os membros do grupo somavam-se grandes doses de ficção (p. 161) (grifos nossos). Ao dividir suas memórias com seu grupo de amigos, Virginia Woolf procurou manter o passado de seu “eu” vivido em conjunto com o “outro” como um momento a ser celebrado, buscando por meio de seu estilo narrativo confrontar sua soberba discreta e a assumida notoriedade. Acima de tudo, a senhora Woolf compara sua análise ao narrar o deslumbramento com o que o sucesso literário lhe proporcionou no inicio de 34 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 35 sua carreira, como o convívio com a aristocracia e a alta sociedade. Os fatos vividos precedem em, aproximadamente, duas décadas a narração, o que exige da escritora recursos como trechos de diários e fontes epistolares. V. Woolf deixa claro que possui certa soberba, mas que esta espécie de euforia ou sensação de sucesso e glamour14 mostra-se bastante sutil quando comparada a exemplos como Lady Colefax, a qual alguns dos membros do Grupo de Bloomsbury conheciam, porém evitavam. Na tessitura de vozes revividas, no reencontro emocionado com o Outro, não se trata de eternizar o passado, mas de confrontá-lo com o presente e inocular a própria mobilidade deste ao narrado, reinventando com as imagens arbitrárias da memória e da imaginação a trajetória comum de vida percorrida. (MIRANDA, 1999, p. 121) Torna-se interessante rever quem eram os 13 componentes – entre casais e primos solteirões – do Clube de Memórias; nomes do velho Grupo de Bloomsbury (Old Bloomsbury): Vanessa e Clive Bell, Virginia e Leonard Woolf, Desmond e Molly MacCarthy, Adrian Stephen, John Maynard Keynes, E.M. Forster, Roger Fry, Duncan Grant, Saxon Sydney-Turner e Lytton Strachey. Eventualmente, para os jantares das Quintas-feiras, surgiam alguns convidados extras, destacados nomes da alta sociedade, do círculo intelectual de Paris, parlamentares do governo britânico, ou mesmo integrantes da realeza. Por pura diversão e displicência, na última hora e sem avisar com muita antecedência, apareciam em Bloomsbury o Primeiro-Ministro e sua esposa, além do festivo Príncipe de Gales e suas namoradas. A edição analisada neste ensaio, lançada em 1980, salienta que o teor das leituras do Clube de Memórias tinha as seguintes peculiaridades de estilo: (a) “Familiar”, porém não tão íntimo. (b) “Reminiscente”, mas nunca sentimental. (c) “Inteligente” e, frequentemente, jocoso (facetious) e brincalhão (gambolling), a despeito da estranheza superficial, ao invés de ser classificado erroneamente como inquisidora, muito reflexiva ou hesitante – a expressão da natureza da memória e da consciência, do self15 e da realidade (nossos grifos). Um dos traços marcantes do estilo de Virginia Woolf é o de procurar extrair dos detalhes do cotidiano um sentido mais filosófico sobre a vida. Em Am I a Snob? (Sou 14 Termo francês, mantido no original – da mesma forma que o faz V.W. em suas Memórias. Significa algo de fascinante, ou fascínio. 15 Preferiu-se manter o termo em inglês, self, tendo em vista que não existe uma tradução perfeita para o português. De maneira muito simplista, poderia se dizer que representa “o eu-interior do ser” (grifos nossos). 35 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 36 uma esnobe?) sua narrativa mostra-se despretensiosa e irônica, compartilhando com o leitor sua correspondência e traços de sua personalidade, enaltecendo, certamente, sua humildade e franqueza “absolutas” – que soam, como diria o esposo, Leonard Woolf, totalmente relativas (nossa ênfase). Torna-se óbvio que o leitor dessas memórias de Virginia Woolf passa a conhecer a veracidade dos fatos narrados através de uma grande contadora de histórias, que era, segundo o próprio marido, uma grande mentirosa. Portanto, o público vale-se de uma espécie de “caldo autobiográfico literário”, servido aos leitores como foram todos os seus escritos, inclusive A Room of One’s Own (1929), ou seja, “textos com arte” (WOOLF, Leonard. A Writer’s Diary. 1982, p. 57-58) (nossos destaques). Existe, portanto, uma mistura de elementos literários e biográficos, prevalecendo uma escrita autobiográfica do gênero de Memórias: as narrativas de Virginia Woolf misturam-se a trechos de três cartas e a fragmentos, usados por ela mesma, de seus próprios diários. Considerando-se, as inserções de notas e comentários do editor, citando a biografia de V.W. (escrita por seu sobrinho, Quentin Bell), mas também os trechos dos diários da escritora e sua correspondência pessoal, tudo isso como escolha seletiva do próprio editor (Schulkind), para enriquecer o conteúdo do texto memorialista, (Am I a Snob?). Am I a Snob? (Sou uma esnobe?) Virginia Woolf escreveu o texto de Am I a Snob? no auge de sua fama, próximo ao final de sua carreira, segundo o editor, em 1936. Ela cometeria suicídio em 1941. O relato [Am I a Snob?] foi lido no Clube de Memórias, precisamente, em 01º. de Dezembro de 1936. No diário da escritora, há uma nota sobre sua visita à mansão Argyll House e à confecção do texto. Seu diário confirma a data da leitura no Clube de Memórias (WOOLF, Virginia. Diary of Virginia Woolf. Volume V. Orlando, USA: Harcourt Brace, 1980, p. 26n.), conforme editor. São 32 páginas de folhas de tamanhos e padrões diferentes que compõem esse texto. As cartas de Margot Oxford e Sibyl Colefax, que se somam ao conjunto, já estavam integrando o trabalho original da escritora. A datilografia do texto de Am I a Snob? É da própria Virginia Woolf, com correções feitas a lápis e caneta. Mais uma vez, o editor observa que há erros de 36 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 37 pontuação e grafia (spelling), perfazendo um trabalho datilográfico muito ruim. No entanto, há páginas que se apresentam sem correções e sem a necessidade delas. É provável que o texto de Am I a Snob? seja, realmente, o texto lido no Clube de Memórias, por V.W. Entretanto, de acordo com Quentin Bell, biógrafo e segundo sobrinho da escritora, é difícil acreditar que ela houvesse se prendido ao texto na leitura pública. Invariavelmente, as palestras e apresentações de Virginia Woolf encerravam aspectos de uma interpretação com voz dramatizada (impostação de voz), o que caracterizava uma performance a partir de um texto escrito. Por envolver audiência e receptividade por parte de terceiros, requeria da contadora de histórias um empenho performático provocativo e desafiador, com altas doses de ironia e humor. Molly has very unfairly, I think, laid upon me the burden of providing a memoir tonight. We all forgive Molly everything of course of her insidious, her devastating charm. But it is unfair. It is not my turn; I am not the oldest of you. I am not the most widely lived or the most richly memoried. Maynard, Desmond, Clive and Leonard all live stirring and active lives; (…) Who am I that I should be asked to read a memoir? (…) My memoirs, which are always private, and at their best only about proposals of marriage, seductions by half-brothers, encounters with Ottoline and so on, must run dry. Nobody now asks me to marry them; for many years nobody has attempted to seduce me. Prime Ministers never consult me. (…) I have visited most of the capitals of Europe, it is true; I can speak a kind of dog French and mongrel Italian; but so ignorant am I, so badly educated, that if you ask me the simplest question – for instance, where is Guatemala? – I am forced to turn the conversation. (WOOLF, V. Moments of Being: Am I a Snob?. 1985, primeiro parágrafo, p. 204) Molly [MacCarthy], penso que, por muita deslealdade, designou-me para o encargo de contar-lhes, esta noite, uma de minhas memórias. Todos a perdoamos de tudo, certamente, mais por seu charme devastador. Mas, foi desleal! Não era minha vez! Não sou a mais velha de vocês! Nem mesmo vivi o suficiente para ser aquele que tem mais memórias a contar. Maynard, Desmond, Clive e Leonard, todos vivem vidas muito mais ativas do que eu. (...) Afinal, quem sou para ser convidada para ler memórias? (...) Minhas memórias, que sempre foram íntimas, e entre as melhores ficaram somente entre pedidos de casamento, seduções feitas por meiosirmãos, encontros com [Lady] Ottoline e assim por diante, devem em breve cair em esquecimento. Ninguém mais me pede em casamento; por muitos anos ninguém mais tenta sequer me seduzir. Primeiros Ministros nunca me consultam. (...) Visitei a maioria das capitais da Europa, é verdade; posso falar um certo francês de rua e um italiano híbrido; mas o quão ignorante eu sou, tão sem estudo que se você(s) me perguntar(em) a mais simples questão – por exemplo, onde fica a Guatemala? – Eu serei forçada a mudar de assunto. (WOOLF, V. Moments of Being: Am I a Snob?. 1985, primeiro parágrafo, p. 204) (tradução do autor) 37 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 38 Virginia Woolf explora o recurso da ironia, como em muitas de suas narrativas, o que torna sua escrita bastante envolvente e estabelece certa intimidade com o leitor – assim como deve ter sido com sua audiência no Clube de Memórias. O texto sobre esnobismo trata da visita da escritora à mansão Argyll House, dos Colefax – aristocratas britânicos – e discute, muitas vezes de maneira indireta, a respeito do que representa ser um esnobe. A definição do termo “esnobe”, conforme o Dicionário Houaiss (2004, p. 1220)16, representa uma qualidade daquele que demonstra esnobismo, sendo proveniente do inglês snob, de origem obscura (1781). A palavra “esnobismo”, conforme a mesma fonte, é definida por: [substantivo masculino] (1) atitude de que despreza o relacionamento com gente humilde e imita, geralmente de maneira afetada, o gosto, o estilo e as maneiras de pessoas de prestígio, ou alta posição social e, ou, assume ares de superioridade a propósito de tudo. (1.1) sentimento de superioridade exacerbado. (1.2) gosto excessivo, geralmente afetado, pelo que está na moda, inclusive trivialidades. (2) Etimologia: esnobe (+) ismo, proveniente por influência do inglês snobbism (1845) – as propriedades características de um esnobe. No meio acadêmico17, há quem associe o termo “esnobe” ao correspondente do Latim sine nobilitas, ou “sem nobreza”. A partir desta associação de termos, depreendemos que “um esnobe é um ser sem nobreza”. De qualquer modo, o esnobe nada tem de prático, ou verdadeiro, seja em sua afetação, seja em suas intenções espalhafatosas que remetem atores de um melodrama – com gestos e atitudes, obviamente, artificiais que forjam uma superioridade que não se possui. Trata-se de um subterfúgio para, de modo deliberadamente forçado, sugerir uma importância a quem, verdadeiramente, não a possui (grifos nossos). Virginia Woolf afirma que não seria necessário citar mais ninguém, pois este é um sintoma que reconhece em seu próprio caso. E, com uma carta na mão, convida seu público a testemunhar o que representa o esnobe. Pergunta-se por que uma carta destas está sempre no topo de sua pilha de correspondências. Finalmente, a escritora revela que o envelope ostenta o selo com o timbre da coroa britânica e, afirma ser este o motivo 16 DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Instituto Antonio Houaiss: Objetiva, 2004, p. 1220. 17 Observado ao autor deste ensaio pela pesquisadora e Professora Dra. Sigrid Renaux, em 2008, II CONALI. Este estudo configura uma expansão (em mais de 70%) do trabalho resumido apresentado no referido evento. 38 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 39 desta carta voar, milagrosamente, para o topo de suas prioridades. Perplexa, a senhora Woolf sempre se pergunta o porquê de sua atitude, quase irrefletida (p. 206-207). Muito ardilosa em seu discurso, Virginia Woolf diz saber perfeitamente bem que nenhum de seus amigos ficaria ou mesmo, jamais ficara, entusiasmado com nada do que ela tenha feito para impressioná-los. Surpreendentemente, a escritora ergue a carta e mostra o timbre da coroa britânica no topo. Deste modo, procura mostrar que tal como uma chaga, ou uma mácula, ela tem esta doença. Prossegue, questionando-se quando e como contraiu tal enfermidade (p. 207). Não obstante, o autor deste ensaio discorda, pois qualquer pessoa comum ao receber uma carta com timbre oficial do governo age da mesma forma que a senhora Woolf. Esse traço de personalidade, explorado por V. Woolf, parece ser mais um aspecto do comportamento da escritora, que é trabalhado como uma estratégia narrativa, pois ela pretende envolver-nos com seu insuspeito élan de grande dama da sociedade, no intuito de simular uma revelação íntima, uma confissão. Ao avaliar a colocação de Virginia Woolf a respeito de seu comportamento diante de uma correspondência oficialmente timbrada, podemos considerar que, em sua revelação, almeja impressionar seu público. No entanto, essa atitude de priorizar correspondências oficiais parece um tanto frágil para atestar esnobismo, pois seria uma atitude comum a qualquer pessoa. A escritora tenta provocar, nos membros de seu grupo social, uma reflexão que, embora pareça revelar seu esnobismo – o que pode até impressionar a todos, pois é fato incomum alguém expor defeitos de si próprio. O fato é que, com seu intento, consegue entreter seu público numa surpreendente e incomum confissão narrada. Ela segue adiante, indagando como teria contraído tal enfermidade e conjectura a respeito de suas relações sociais, discorrendo a respeito de cenas corriqueiras em que, possivelmente, pudesse ser detectada a origem de tal problema – o esnobismo. Virginia Woolf relata que, em sua vida no Hyde Park, “[...] havia, no andar térreo, pura convenção, mas no andar superior, puro intelecto” (p. 203). Observa-se que a escritora gaba-se de que – assim como ela – os Stephen, ou seu lado da família, são superiores aos meio-irmãos, os Duckworth. Dessa forma, percebemos na senhora Woolf uma soberba que poderia caracterizá-la como esnobe. Entretanto, como veremos adiante, o conceito da escritora torna-se flexível, perdendo para revelar exemplos extremos de tal comportamento social, como no caso de Lady Colefax. 39 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 40 Nos primeiros contatos com o beau monde18, em Bloomsbury, as convenções próprias dos Duckworth (irmãos-maternos de Virginia Woolf) haviam dado lugar aos aspectos paradoxais que tornavam a vida em sociedade algo fascinante: humilhação, frustração e aborrecimentos – como pontos negativos do antigo lar em Hyde Park – eram substituídos por luzes brilhantes, pela conversação livre entre pessoas e pelo tapete vermelho desenrolado por sobre o pavimento superior, como pontos positivos do novo lar, em Bloomsbury. A imagem do tapete vermelho reforça o sentido de superioridade, pois é desenrolado apenas diante de celebridades, chefes de estado, ou aristocratas. A própria cor vermelha sempre foi, durante muitas gerações, símbolo de poder exclusivo do alto clero e da mais elevada nobreza. Tal simbologia empregada por Woolf traduz certa arrogância que, por sua vez, não condiz com a imagem de intelectual marxista e despojada, que a escritora sempre costumou transmitir. Virginia Woolf cria subterfúgios narrativos, evitando falar de si mesma de maneira direta e, consequentemente, abordando inúmeras situações e pessoas. Dessa maneira, ela acaba por ilustrar aspectos de sua própria personalidade, de sua faceta irônica, ao falar de seus defeitos e da suposta humildade quando ser refere às suas qualidades. Destarte, ela certamente revela seu lado encantador e charme incomparável na tecitura de suas memórias. Podemos supor que ela, seguramente, não se considera um esnobe se comparada à aristocracia. Para a escritora, a classe aristocrata é mais excêntrica, mais natural e intelectual do que as gentes de outras classes sociais (p. 208). Ela afirma que, se lhe perguntassem se pudesse escolher em ter um encontro com o cientista mais famoso, como Einstein, ou com o Príncipe de Gales, ela iria preferir o nobre herdeiro. E, embora isso represente um gosto popular entre os britânicos, não pode ser aceito como um trunfo que assegure a simplicidade de uma pessoa. Afinal, a realeza é tão popular entre os súditos humildes quanto entre os mais afortunados, pois é um traço marcante do povo inglês. Numa complexa argumentação, por vezes a senhora Woolf parece um tanto falha, ou debochar de um traço comum de seu povo. Na estratégia de validar suas memórias, Virginia Woolf acrescentou à sua narrativa três cartas, duas delas da esposa do Primeiro Ministro britânico, Margot Oxford. O ministro havia ocupado o cargo por 8 anos, fato que nos dá a ideia de quão bem relacionada era a escritora. Abre-se aqui um parêntesis para ressaltar que o Grupo 18 Termo francês que representa o mundo da alta sociedade. Como Paris determinava os novos rumos da cultura, da elegância e das novas tendências, usar de galecismos representava estar em dia com as últimas descobertas e pensamentos da época. 40 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 41 de Bloomsbury sempre recebeu, com certa regularidade, alguns membros do parlamento e ministros da Grã-Bretanha. Ao longo dos anos, Bloomsbury recepcionou de Balfour a Churchill e, inclusive membros da realeza como o Príncipe de Gales. No entanto, a respeito da inclusão de textos epistolares, pode-se acrescentar que esse recurso narrativo, somado aos documentos memorialistas de V. Woolf, produz uma deliberada fragmentação textual que passa a apresentar uma pluralidade de discursos – peculiaridade encontrada em inúmeras de suas narrativas ficcionais como Mrs. Dalloway (1925). Novamente, pode-se constatar que se as relações da escritora são de classes sociais tão altas ela mesma poderia ser compreendida como um membro da alta sociedade. Este caracter, mais uma vez, identifica a senhora Woolf com o universo das classes privilegiadas, em que um certo esnobismo é frequentemente tratado como um pré-requisito. Em uma das cartas, Margot Oxford convida Virginia Woolf para almoçar com ela, na intenção de discutirem as qualidades da produção escrita de M. Oxford, como aspirante a articulista de jornal, tendo em vista que a própria V. Woolf a havia elogiado, informalmente, conforme transcrição abaixo: Dear Virginia, I am not very young and since ALL my friends are either dead or dying I would much like to see you and ask you a great favour. You will laugh when I tell you what it is but in case you would lunch here alone with me on [the] 12th or 13th, 17th or 18th, I will tell you what it is. No, I won’t. I will wait to know if on any one of these dates you can see your admirer Margot Oxford.19 Querida Virginia, Não sou muito jovem e, desde que TODOS os meus amigos estão ou mortos ou em vias de morrer, eu gostaria muito de vê-la pessoalmente e de pedir-lhe um grande favor. Aposto que você vai rir quando souber do que se trata, mas acaso você possa almoçar a sós comigo numa dessas datas (dia 12 ou 13, 17 ou 18), eu lhe contarei do que se trata. Não, não vou contar! Vou esperar para saber se em uma destas datas você poderá ver a sua admiradora, Margot Oxford.20 19 Margot Asquish, Lady Oxford, segunda esposa de Herbert Asquish, Earl of Oxford (Conde de Oxford) e Primeiro Ministro da Grã-Bretanha, de 1908 a 1916. Mantida a nota de rodapé e os grifos do texto original de V.W. (WOOLF, 1985, p. 208) (Am I a Snob?). 20 WOOLF, V. Moments of Being: Am I a Snob?. 1985, p. 208 (mantidos os grifos) (tradução do autor). 41 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 42 Segundo Javier del Prado Biezma (1994, p. 244), “[...] as cartas podem variar de natureza, de tom ou de objetivo, de acordo com o destinatário para as quais são dirigidas. Supõe-se que sejam escritas levando-as em conta o que será feito de sua mensagem”. Entretanto, Virginia Woolf, ao incluir cartas endereçadas a ela, procura trazer elementos que julga importantes para a validação de suas memórias, além de estabelecer um grau de cumplicidade com o leitor, como quem abre um baú onde guarda detalhes de memórias muito pessoais. Em sua narrativa memorialista sobre o esnobismo, Virginia Woolf revela que teve sua oportunidade de se tornar uma esnobe, na época em que foi apresentada à alta sociedade inglesa por seu meio-irmão, George Duckworth, um dandy21: When I was a girl I had certain opportunities for snobbery, because though outwardly an intellectual family, very nobly born in a bookish sense, we had floating fringes in the world of fashion. We had George Duckworth to begin with. (WOOLF, V. 1985, p. 207) Quando eu era garota, tive algumas oportunidades para ser esnobe, porque apesar de publicamente vir de uma família intelectual – muito aristocrática, no sentido literário – estivemos margeando o mundo da moda. Afinal, tivemos George Duckworth para nos ajudar nisso. (WOOLF, V. 1985, p. 207) (nossos destaques) Com sabedoria, Virginia Woolf revela que o esnobismo de seu meio-irmão jamais seria o mesmo que o seu, pois o dele cheirava mal e perdia-se no excesso da superficialidade e da afetação. Ela prossegue tentando, muitas vezes, surpreender seu público com revelações de seu esnobismo, indiretamente tratado como falho, sutil e inúmeras vezes representando uma versão reduzida do que seria um George Duckworth, ou uma Lady Colefax. Para a escritora, o esnobismo parece ter varias nuances e o caso dela é mais um certo orgulho de suas origens e dotes intelectuais do que, certamente, um esnobismo de afetação, como é o caso de seu meio-irmão e dos Colefax. Torna-se óbvio que V. Woolf gaba-se de suas origens, que eram realmente baseadas na intelectualidade, pois eu pai era um respeitado crítico literário, um renomado germanista e historiador, autor da famosa História do pensamento inglês do século XVIII. A citação a seguir demonstra que a senhora Woolf está acostumada a sua aclamação como grande escritora, mas o que mais a encanta é poder desfrutar da companhia de pessoas 21 Termo inglês para “almofadinha”, o que no contexto atual representaria o equivalente a “metrossexual” (grifos do autor). 42 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 43 influentes (p. 209): “Now I was not, I think, flattered to be the greatest female writer in Lady Oxford’s eyes; but I was flattered to be asked to lunch with her alone.” (Tradução do autor: “Agora, eu não creio ter me sentido lisonjeada por ser considerada a maior escritora mulher, na opinião de Lady Oxford, mas sim de poder almoçar com ela.”). Os momentos mais relevantes do texto concentram-se na convivência da escritora com duas damas da corte inglesa: Lady Oxford e Lady Colefax. Ambas, dois bons exemplos do que significa ser um esnobe. Na narração de Virginia Woolf, a esposa do Primeiro Ministro inglês enviara um carro com motorista, para ir buscar a escritora em casa. Desta forma, a senhora Woolf sentiu-se mais importante, pois notara o espanto e o respeito vindos de sua cozinheira, Mabel. A serviçal passou até a tratá-la com mais deferência que o habitual. Era como se V.W. tivesse crescido como pessoa, além do fato de ascender no conceito de sua cozinheira. No encontro, Margot Oxford – a esposa do Primeiro Ministro – e Virginia Woolf não falaram de obituários – assunto comum em sociedade – mas do circulo do Príncipe de Gales e do antigo premier, Lord Balfour. Certamente, a escritora conversou com a primeira dama a respeito do gosto peculiar que ambas nutriam pela escrita. Mas este parece ser um detalhe um tanto perdido nas memórias de Woolf, o que leva o leitor a cogitar que pormenores acabam sendo esquecidos no resgate das memórias de maior vulto. Os recursos estilísticos percebidos no texto da senhora Woolf permitem, no entanto, grande flexibilidade entre detalhes revelados e sugeridos, enaltecidos por um simbolismo singular, próprio aos grandes escritores da vanguarda modernista, como foi a própria V.W., além de K. Mansfield e outros contemporâneos. Na realidade, Virginia Woolf ficara emocionada com o evento de Oxford e relata que se recorda “[...] apenas, de abraçar sua anfitriã na entrada e, depois disso, de mais nada!” (p. 210) (grifos do autor). Após o encontro, a escritora deu-se conta de si mesma, quando flagrou-se falando sozinha, em voz alta – na rua, em meio aos comerciantes comuns. “Era como se o mundo todo fosse feito de champanhe e de ouro em pó.” (p. 210). Tamanho o deslumbramento da senhora Woolf, diante de um mundo fascinante que a alta sociedade, repentinamente, lhe abria – graças a seu próprio talento. Torna-se evidente que a escritora escolhe os fatos a narrar, deixando apenas que a memória voluntária venha à tona. Não obstante, a forma de narrar de Woolf é capaz de tornar até mesmo o assunto mais banal e frívolo em uma leitura extremamente prazerosa. 43 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 44 Para Virginia Woolf, diferente de suas narrativas ficcionais, suas memórias baseiam-se no que Marcel Proust (apud BECKETT, 1986, p. 10) chamaria de “memória voluntária”, pois a escritora, deliberadamente, escolhe o que contar22 (grifos nossos). Segundo Proust, as imagens desta memória são arbitrárias e não há diferença entre a memória de um sonho e a memória de uma realidade. Os conceitos de Proust servem perfeitamente para explicar a “memória voluntária” – no caso desta narrativa de V. Woolf – que na visão de Henri Bérgson, que foi mestre de Proust, equivaleria ao que aquele chamou de “espiritual-mental”, quando se toma a “consciência” dos fatos vividos: a mente “tem o poder arbitrário de escolher os fatos” memoráveis a relatar (BERGSON, 1999, p. 89-90) (nossos destaques). Há um episódio muito interessante em que Virginia Woolf recorda-se de que houve uma crítica negativa sobre uma revisão de Orlando (1928) – possivelmente (e esta questão da memória é falha, muitas vezes, em V.W.) (p. 211) – “I think...” (“– Eu creio...”). O crítico senhor Bennett, do jornal Evening Standard, atacou violentamente este expoente da ficção de Virginia Woolf. Mas ela viu o fato, com certo desdém, porque assim como os amigos esquecem as suas boas críticas ou as más, ela própria passou a fazer o mesmo. Entretanto, o ser humano sabe ser engenhoso para criar situações embaraçosas, em sociedade, e 24 horas imediatamente à esta crítica destrutiva, ela foi convidada à uma recepção na Argyll House, e compareceu, mais como mulher – fascinada com o glamour da alta sociedade – do que como escritora. Ao revelar este episódio, a senhora Woolf parece assumir publicamente seu gosto pelos ambientes refinados da alta sociedade. Portanto, apresenta mais um traço revelador de seu deslumbramento pelo poder e pela riqueza. Seria Virginia Woolf uma esnobe? Ainda mais importante do que isto: O quanto Virginia Woolf seria esnobe? Assim que Virginia Woolf chegou e encontrou-se com a famosa anfitriã, representante da aristocracia de Londres, Sibyl Colefax – dona da Argyll House – esta “amiga” a entregou às mãos do mesmo crítico, dizendo: “Here is Mrs. Woolf!” (Aqui está a Sra. Woolf!) (p. 211) (grifo do autor). Desse modo, Sibyl naturalmente esperava uma cena histórica por parte da escritora e do crítico rival. Contudo, Virginia conta que resolveu manter a fleuma e, em seu texto de memórias, tenta reproduzir o diálogo, em detalhes (p. 212): 22 Isso torna sua narrativa autobiográfica memorialista, contida em Moments of Being diferente da ficção que produziu, em que seus personagens como Clarissa e Septimus (Mrs. Dalloway) tinham suas memórias despertadas involuntariamente a partir de um objeto, ou som, ou algum elemento do espaço (memória involuntária, acionada a partir da percepção). 44 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 45 O Sr. Bennet falou: “I am sorry, Mrs. Woolf, that I slanged your book last night…” (Desculpe-me, Sra. Woolf, eu critiquei seu livro a noite passada...). E ela respondeu que sabia que, ao escolher publicar seus próprios livros, teria que arcar com as consequências. O jornalista arrematou, dizendo que havia odiado o livro dela: “I thought it a very bad book...” (Eu o achei um livro muito ruim...). Virginia Woolf respondeu: “You can’t hate my books more than I hate yours, Mr. Bennet!” (O senhor não pode odiar meus livros mais do que eu odeio os seus, Sr. Bennet!) (WOOLF, 1985, p. 212) (tradução do autor). O autor deste ensaio optou por considerar a descrição dos diálogos, como originário de “personalidades-personagens” – o equivalente a personagens de ficção, mas que existiram na vida real. Isto inclui dois momentos de Virginia Woolf: um como narradora onisciente e onipresente, e outro como personalidade que tem seus diálogos descritos, como um personagem de ficção. Ocorre, muitas vezes, que este “eu-narrador” figura como que “colado ao personagem” de V.Woolf. Tais características conferem às suas memórias o que alguns críticos chamam de “caldo autobiográfico literário”. Devese considerar que todas as personalidades apresentadas por Woolf são tratadas como personagens de seu texto autobiográfico. É através do tratamento irônico e incomum, conferido a seus personagens, que a escritora apoia-se para qualificar suas relações em sociedade como extremamente – ou negativamente – esnobes. Na realidade, trata-se de mais um recurso para mascarar seu verniz aristocrático e intelectual, o que faz por torná-la quase tão comum quanto o mais humilde de seus leitores – fato este que pode ser considerado inconcebível (nossos destaques). Para Virginia Woolf, enaltecer a superioridade aristocrática e os modos excêntricos de suas relações é um meio de camuflar seus próprios costumes de sofisticação. Não obstante, sua elegância demonstrada em situações sociais difíceis comprova um refinamento de maneiras bastante invulgar. Talvez, sem aperceber-se, a senhora Woolf destaque seu traquejo social e sua habilidade em lidar com ocasiões embaraçosas, como no episódio com o senhor Bennet (anteriormente descrito). De qualquer forma, ao relatar as suas maneiras tão nobres e afeitas aos salões de debates, a escritora apenas enaltece os predicados de sua própria personalidade bem pouco humilde. O fato narrado estabelece um paradoxo. Quais seriam os propósitos da escritora? Ela não deixa dúvidas sobre sua formação refinada, sua educação privilegiada – junto à biblioteca dos pais –, sua cultura e singular capacidade de manter o fairplay. Com todos estes atributos, ressaltados por sua personalidade narcisista, torna-se difícil 45 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 46 engrandecer sua humildade e, muito óbvio ao leitor, responder a questão que inspirou a escritora a estas memórias. Por meio deste diálogo, relatado ao leitor anteriormente, entre as personagens (discurso direto) – Woolf e Bennet –, mais comum à prosa de ficção, pode-se observar a intermediação do narrador (Virginia Woolf, em discurso indireto), configurando um aspecto inovador ao gênero memorialista que é esta mistura de vozes, o que resulta no emprego do discurso indireto livre – presente em alguns segmentos de suas memórias. Observa-se que V. Woolf figura não apenas como narrador onisciente e onipresente, mas também como personagem de suas memórias. Ao relatar o episódio do senhor Bennet, Virginia Woolf confessa que não se lembra de maiores detalhes, mas recorda que sentara-se lado a lado com seu oponente. Igualmente, lembra-se de que conversaram, naturalmente, a respeito de diversos tópicos, como se nada houvesse acontecido, sem maiores problemas. Esta cena, de alfinetadas, foi o que a tornou interessante aos olhos de Sibyl Colefax, fazendo estreitar seus laços sociais (p. 212). Desde então, convites para chás não pararam de chegar. Conquanto, alguns amigos de Bloomsbury – como o escritor Lutton Strachey – não apreciavam a companhia de Colefax e rezavam para não ter que encontrá-la novamente (p. 213). A narrativa de Virginia Woolf traz também a inclusão de uma terceira carta, que foi escrita, igualmente, pela amiga Sibyl Colefax. Nesta mensagem, Colefax expressava o anseio de reencontrar Woolf. Entretanto, a escritora conta que o marido de Sibyl havia morrido – fato que Leonard Woolf soube por telefone. Na carta, a socialite dizia que estava para mudar-se de residência, pois as despesas com a casa dela eram muito grandes. Ela estava colocando tudo para venda: mobiliário, louça, faqueiro e obras de arte, entre outros objetos. De acordo com V. Woolf, a viúva Colefax afirmava que iria passar uns tempos com os Clarkes, devido a uma cirurgia à qual haveria de se submeter. Mais tarde, teria que levar a velha empregada para uma casa bem menor, em North Street. No entanto, a senhora Woolf tinha viajado muito durante a época da morte de Lord Arthur Colefax. Naturalmente, Woolf enviou-lhe flores e condolências à amiga viúva, evitando ver a mansão vazia. Mas, na semana da mudança de Sibyl, ela foi, praticamente, intimada a visitar esta amiga – que era uma espécie de Sra. Dalloway, da vida real. Haveria um chá de “despedida dos bons tempos da mansão” dos Colefax – a Argyll House (p. 214) (grifos do autor). No chá de despedida, a viúva Colefax confessou que havia recebido ali nomes importantes, tais como Henry James, Paul Valéry, entre outros. Segundo a melancólica 46 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 47 socialite (p. 219) (grifos do autor): “That’s what I’ve wanted – that ‘the people I like’ should meet ‘the people I like’.” (Tradução do autor: “Isso era o que eu queria – que ‘as pessoas de quem eu gostava’, pudessem encontrar com ‘as pessoas de quem eu gostava’.”). Nesses pequenos detalhes de uma narrativa aparentemente superficial, notase um traço comum ao estilo de Virginia Woolf, o emprego de recursos da poesia, como o refrão – um caracter que torna seu estilo dotado de um ritmo comum ao gênero poético e que, possivelmente neste trecho, almeje representar o discurso afetado e meio abjeto de uma aristocrata de Londres, a qual sempre reuniu pessoas como quem reúne, “a seu gosto”, peças de um jogo – de quem sempre fez, somente, o que “gostava”. Por meio de pequenos detalhes, como uma simples frase, a senhora Woolf consegue captar e enaltecer uma qualidade destacada de uma personalidade, ou personagem, que representava um determinado grupo social. Em outras palavras, a Lady configurava uma elite cujos hábitos resumiam-se a satisfazer os próprios caprichos – fazia apenas o que “gostava”. Este era o afã dos esnobes: satisfazer um gosto pessoal e utilizar-se de um discurso afetado – superficial – para expressar suas vontades (grifos do autor). Nessas memórias, Virginia Woolf recorda que recusara até mesmo um chá com Paul Valéry, pois já o conhecia bastante bem e não iria em um chá de sociedade para ver quem já conhecia. “Mas, Sibyl era assim mesmo!” (p. 210). Sibyl Colefax havia associado a escritora inglesa à intelectualidade do mundo das letras – e isso V.W. já tinha em Bloomsbury. Observa-se a crítica de Woolf ao esnobismo de Sibyl, referindose ao que é indesejável nos snobs – e, para esse propósito, a escritora usava a amiga como exemplo. Ao final da narrativa, há algumas observações de Sibyl, a respeito de seu passado, do fato de Sir Henry James a haver reconhecido, no episódio de um enterro muito elegante, do cunhado de Rudyard Kipling, em Viena. “Imagine! – dizia ela – ‘ser reconhecida por Henry James!’” (p. 220) (mantidos os grifos). No texto memorialista de Virginia Woolf há algumas digressões pertinentes, nas quais retoma sua memória de Sibyl Colefax, sobrepondo-a à memória da própria Sibyl ao contar o caso. Nesse bate-papo, James havia confidenciado a Sibyl que estava amparando aquelas duas pobres senhoras, naquele momento de dor. Segundo Woolf, tudo isto era narrado de modo dramático, por parte de Sibyl, citando James para lhe impressionar. Certamente, para Woolf isso não era nada, pois Henry James era grande amigo de seus pais, sendo considerado “de casa” (grifo do autor). 47 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 48 Virginia Woolf conta que Sibyl Colefax ficara sendo cuidada por uma velha empregada que ainda lhe restara dos tempos em que era muito rica, mas à qual Sibyl referia-se como se fosse “um estorvo”, “cega como um morcego” e a “maldição da sua vida”. Woolf notara que, apesar da amiga estar mudando de vida, para um padrão social menos luxuoso, deixando sua mansão – “na qual tudo estava à venda!” (p. 220) – esta amiga aristocrata, falida, não perdia aquele ranço próprio da alta classe inglesa, de se sentir superior às pessoas de outra classe social menos abastada. Nota-se, pela maneira indireta de narrar, próprio de Woolf, a sugestão de que isto é ser esnobe. A escritora conduz o leitor a esta conclusão, como um subterfúgio para revelar o que realmente significa ser snob. A amiga Sibyl é um perfeito exemplo tomado por Woolf para expressar o extremo do esnobismo – e não apenas um flagrante comum ao cotidiano da maioria das pessoas (grifos do autor). A escritora [V.W.] prossegue suas memórias e afirma que entre os momentos em que tomavam o chá de despedida, em meio às damas inglesas da sociedade que iam lá [na mansão] para arrematar o que restara dos objetos, a “empregadinha” da viúva Colefax – Fielding –, corria para avisar que o motorista estava à disposição de sua patroa. Ao mesmo tempo, inúmeras damas da sociedade local haviam acorrido à liquidação dos últimos pertences de um passado milionário, como a porcelana italiana, a prataria, os cristais, e neste entra e sai sempre olhando com certa inveja para Virginia, que aguardava Sibyl. Com o passar dos anos, a escritora passara a ser considerada uma amiga íntima dos Colefax, e isto a colocava numa posição invejável diante daquelas ladies que arrematavam as últimas lembranças de um passado de glamour. O texto de Woolf confirma o julgamento que faz de Sibyl, pois a escritora usa sua amiga para exemplificar, o que em sua opinião, era o “verdadeiro esnobe” (grifos do autor). A viúva Colefax, que empobrecera após a perda do marido, ofereceu à escritora uma carona – após o chá de despedida –, em seu Rolls-Royce, e Virginia Woolf despediu-se de todo o ambiente em volta, lançando um olhar nostálgico, com seus olhos pousando sobre as pilhas de porcelana italiana, todas etiquetadas, sobre os restos do que fora a Argyll House – a grande mansão e o ponto de encontro de toda a aristocracia de Londres. Woolf usa uma imagem de fragmentação – esfacelamento – para registrar as ruínas do que sobrou da riqueza dos Colefax. Estes recursos estéticos tornam as narrativas da escritora uma fonte de inspiração aos estudiosos de seu estilo, rico em implicações, sugestões, símiles, assonâncias e aliterações, além da exploração do 48 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 49 discurso indireto livre – inovações ao gênero da prosa, até então (GORING, 2001, p. 26-27). Na conclusão destas memórias, Virginia Woolf associa uma imagem interessante, à qual, frequentemente, parece retomar em sua ficção: o modo de usar o chapéu de Sibyl Colefax mostrava que ela estava bem, apesar de tudo, e seu humor havia mudado, recuperando-se da morte do esposo. Impressões marcantes para a grande observadora que era Woolf. Destacamos o seguinte trecho: “A cor havia voltado às cerejas que lhe enfeitavam o chapéu, o qual já estava firme, novamente.” (p. 220). Esta imagem do chapéu associado ao humor da grande anfitriã, Woolf já havia empregado em Mrs. Dalloway (1925). Há um toque de romantismo nestas associações que a escritora faz, de uma personalidade associada ao traje. Por exemplo: o humor com a possibilidade de estar ligado ao modo como se usa um chapéu. Neste ponto, Woolf revela seu gosto pela imagem poética associada ao detalhe do feminino. Para deleite de seu público, a ficcionista vale-se de estratégias narrativas carregadas de imagismo e de inúmeras sugestões, insinuações, para discorrer a respeito do que representa ser um esnobe e, no parágrafo final, encerra com o seguinte segmento – quase o de uma cena teatral (p. 220): “ ‘Mount Street’, she said to the chauffeur, and got in. ‘H.J. said to me’, she resumed, ‘I feel it is my duty to go to Vienna in case I can be of any assistance to those bereaved ladies…’ And the car drove off, and she sat by my side, trying to impress me with the fact she had known Henry James.” (WOOLF, 1985, p. 220) “ ‘Rua Mount’, ela disse ao chauffeur e entrou [no carro]. ‘H.J. disse-me’, ela resumiu, ‘sinto que é meu dever ir para Viena, no caso em que eu possa servir de qualquer assistência a essas pobres senhoras...’ E o carro saiu, e ela sentou-se ao meu lado, tentando impressionar-me com o fato de que ela conhecera Henry James.” (WOOLF, 1985, p. 220) Com este exemplo, da amiga milionária, que mesmo depois de perder quase tudo – e que ainda continuou esnobe, Virginia Woolf encerra o texto, mostrando que há gente muito mais esnobe do que ela. Afinal, mesmo falida, Lady Colefax continuou com seu Rolls-Royce, o chauffeur e com a pose de grande dama, a qual ainda tentava impressionar uma amiga por conhecer um grande escritor como Henry James. Com o emprego deste recurso poético, a imagem de uma destacada marca de automóvel como símbolo de status quo, Woolf parece transmitir ao leitor que, mesmo com uma reviravolta tão grande, que venha a provocar até mesmo um acentuado desnível 49 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 50 econômico, o verdadeiro aristocrata inglês, snob, não abre mão de ser como é, tampouco de certas regalias. Ainda há dúvidas de que Sibyl Colefax “empobrecera”, mas se o fez, foi sem dúvida alguma, em grande estilo. Se há melhor exemplo daquilo que – nas memórias da escritora – representa um esnobe, nenhum supera a senhora Colefax. Este evento, pleno de imagens e carregado de impressões, parece ter ficado na memória como um registro psíquico para a senhora Woolf. Muito provavelmente, a escritora considerou inconcebível alguém empobrecer e manter ainda um motorista e um veículo luxuoso, da marca mais aristocrática que se conhece (grifo do autor). Nessas memórias da senhora Woolf, podemos observar que ela, muitas vezes, entra em contradição, não percebendo como deixa o leitor a percepção de que ela própria, a despeito de ocultar-se por trás de seus personagens, é realmente uma esnobe. Talvez, não tão esnobe quanto madame Colefax, mas ainda assim a escritora demonstra os traços de uma soberba incomum para a maioria de seus leitores. Vale observar que as escolhas lexicais de Woolf, como o fato de optar por termos em francês – os galecismos chauffeur, glamour, beau monde – são um reforço estilístico intencional à ideia de sofisticação que esses estrangeirismos conferem. A própria marca de carros Rolls-Royce dispensa maiores comentários, pois é sinônimo de luxo restrito à aristocracia – não bastando apenas o fato de ser milionário, mas sendo indispensável o fato de ser uma pessoa de linhagem aristocrática (do termo inglês, a pedigree man). Com o apoio dessa estratégia estilística, a escritora não consegue ocultar sua tendência natural ao esnobismo, pois os estudiosos do Grupo de Bloomsbury afirmam que seus integrantes representavam o crème de la crème da intelectualidade do império britânico. Não podemos esquecer também que a parte materna da família de Virginia Woolf provém de aristocratas – mulheres de rara beleza que se casaram com condes, duques e marqueses – o que a torna, reconhecidamente, suspeita para discorrer a respeito de esnobismo. Outro fator que parece contrário ao seu discurso é o fato da própria escritora haver adquirido um Rolls-Royce – com recursos de sua produção literária – e dar de presente à sua irmã, a pintora Vanessa Bell, para que esta pudesse levar os filhos para aula e fazer compras – luxo bastante desmedido para atividades tão simples do cotidiano. O próprio fato de Virginia haver adquirido tal carro já é prova de que também possui veio aristocrático e é de família afeita ao luxo. Muito difícil para a senhora Woolf, como dama da alta sociedade, é o fato de querer camuflar esta espécie de ranço tão comum na alta sociedade, que é o hábito de usar de estrangeirismos – daquilo que representaria a 50 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 51 última moda em Paris – e consumir produtos exclusivos da aristocracia, como um carro de luxo. Para o estudo, torna-se relevante o fato de Virginia Woolf utilizar-se de fragmentos de diários, além de três cartas por ela recebidas, como um apoio para compor suas memórias em Moments of Being, e também como estratégia de validação aos fatos narrados – detalhe importante no gênero memorialístico. Os trechos de seus diários são uma referência para a escritora, a partir de suas próprias impressões ali registradas – naquele determinado momento em que as viveu, o que explica o recurso de recorrer a essas fontes pessoais na composição de suas memórias. O mesmo acontece com a inclusão de suas correspondências, pois além de criar certa intimidade com o leitor, tornando sua escrita muito mais atraente, utiliza-as também como documentos que comprovam uma verdade vivida. A escolha de elementos aparentemente superficiais do cotidiano, no intuito de provocar reflexões mais profundas a respeito da vida, é uma das principais características do estilo woolfiano, e essas memórias são um bom exemplo disso. For nothing is more fascinating than to be shown the truth which lies behind those immense façades of fiction – if life is indeed true, and if fiction is indeed fictitious. And probably the connection between the two is highly complicated. (WOOLF, Virginia, 1928 – Introduction to the novel Mrs Dalloway (vi)) Nada me parece mais fascinante, que desvendar a verdade que está por trás dessas imensas fachadas da ficção – se a vida é realmente verdadeira e a ficção é mesmo fictícia. E, provavelmente, a ligação entre ambas é bastante complexa. (Tradução do autor, a partir de: WOOLF, Virginia, 1928 – Introdução ao romance Mrs. Dalloway (vi)) Virginia Woolf foi uma escritora que viveu intensamente a época das grandes inovações da transição dos séculos XIX ao XX, tais como o advento do cinema (Lumiére), a industrialização automobilística para o consumo de massa (Ford), a transposição das fronteiras geográficas por dirigíveis e aeroplanos (Wright), as pesquisas científicas em torno das partículas atômicas (Rutherford) e dos progressos da Medicina, além dos estudos da Psicologia (William James) e da Psicanálise (Sigmund Freud), entre outros. Este espírito de modernidade que atravessou a Belle Époque e transcendeu a Primeira Guerra Mundial, espelhou-se nas artes de vanguarda da primeira metade do século XX, como os movimentos pós-impressionistas que culminaram no Cubismo, Dadaísmo e outros “ismos”. Acredita-se que a Literatura foi o centro da 51 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 52 expressão do registro dessa época e das experiências pessoais dos intelectuais das grandes metrópoles. A consciência do “eu” parece ter sido o motor da modernidade, e o escritor modernista sentiu-se impelido a registrar suas impressões e experiências do mundo em que viveu (grifos do autor). A Literatura da primeira metade do século XX conheceu grande número de relatos de viagem, diários, cartas, auto-retratos e memórias. A experiência das viagens e da vida no exterior foi levada às belas letras por nomes como James Joyce, Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Karen Blixen e Virginia Woolf, entre outros. No caso de Woolf, em especial, a dedicação às letras e a afeição às artes, em geral, resultou num imenso volume de documentos em diários, memórias, cartas e biografias, além de ensaios e textos críticos, culminando com a produção ficcional. Essa necessidade, e até mesmo, uma tendência de comportamento da época, por registrar as impressões colhidas a partir do próprio eu, na literatura da modernidade é observada por Javier Biezma, em Autobiografia y Modernidad, conforme citação: Parece evidente, después de pasar revista a todos los factores que constituyen los motores da la modernidad, que uno de ellos, el más poderoso sin duda, el que subyace y en cierto modo nutre todos los demás, es el relativo a la immanencia del yo como toma de conciencia progressiva de la responsabilidad del hombre frente al universo. (BIEZMA, 1994, p. 31) Parece evidente, após revisar todos os fatores que constituem os motores da modernidade, que um deles – o mais poderoso, sem dúvida – o que subjaz e de certo modo nutre todos os demais, é o relativo a imanência do “eu” como tomada de consciência progressiva da responsabilidade do homem frente ao universo. (BIEZMA, 1994, p. 31) (tradução e grifo do autor) O autor deste estudo, tendo por base todos os indícios percebidos na narrativa de Virginia Woolf, não demonstra nenhuma dúvida em responder a questão crucial que inspirou a escritora a resgatar essas memórias em Moments of Being. Certamente, as atitudes da senhora Woolf, relatadas em Am I a Snob?, como narrativa memorialista, consolidam sua personalidade narcisista e aristocrática. Mrs. Woolf foi mesmo uma snob, porém não o suficiente para desdenhar de seu público leitor. A habilidade maior de Woolf reside no fato de que ela mesma concentrou-se apenas em escrever, sendo que não poderia perceber-se do modo como seus leitores a percebem, pois a cultura britânica e a época em que viveu a distancia da maior parte de seus leitores atuais, dispersos em todo o mundo. Seu mérito maior está, exclusivamente, em escrever bem, em entreter por meio das letras. Nesse ponto, ela expressou aquilo que se conhece como espírito de 52 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 53 época – zeitgeist – fazendo-o tão bem quanto seus contemporâneos mais destacados – tais como Katherine Mansfield e Gertrude Stein, por exemplo. Para um leitor brasileiro e da atualidade – como o autor deste estudo – a senhora Woolf, certamente, não consegue mesmo camuflar sequer um detalhe de sua personalidade, como grande dama das letras e da alta sociedade inglesa do início do século XX. Em resposta a questão que a inspirou ao título dessas memórias, poderíamos dizer que “sim” – V.W. foi uma esnobe – e isso não parece ser apenas uma questão de interpretação, pois foi demonstrado por ela mesma. No entanto, seu esnobismo pouco interessa, pois perde para seu inigualável talento para as letras. Em sua forma de narrar, Woolf abre-se para uma avaliação e expõe-nos, na forma de confidências, detalhes que podemos flagrar em nossa personalidade comum, como o fato de valorizarmos uma correspondência com o selo oficial do governo, ou mesmo um convite para almoçar com a primeira-dama. Qualquer pessoa comum sentiria o mesmo que a senhora Woolf: uma espécie de deslumbramento que somente o luxo e o convívio com o poder nos causa, um sentimento de auto-importância. No entanto, ela faz parecer que possui uma falha fora do comum, o traço de uma personalidade esnobe. Mas seu conceito de esnobismo possui graus de expressão. Nesse intento, classifica entre os snobs, a personalidade de Lady Colefax como o extremo do esnobismo (grifo do autor). Em conclusão, consideramos que mais relevante do que saber se Virginia Woolf foi ou não uma snob, é poder apreciar suas estratégias narrativas, nesse caldo autobiográfico literário, que favorece as suas memórias com alguns recursos advindos de sua ficção, tais como: (1) a fragmentação narrativa, devido à pluralidade de vozes presentes nas cartas a ela enviadas e nos diálogos em que figura como personagem, acrescidas a seu eu-narrador; (2) o recurso da ironia e do humor refinado para contar seus casos; (3) o uso indireto da linguagem, por meio do discurso livre e da mistura de vozes do narrador e dos personagens; (4) a exploração de imagens poéticas associadas ao estado de espírito das personalidades descritas, e (5) sua aparente frivolidade ao discorrer sobre traços culturais e costumes de sua sociedade. Acrescenta-se, também, (6) um dom peculiar para relatar detalhes e fatos, arbitrariamente selecionados, de suas experiências memoráveis, ainda que aparentemente frívolas, caracterizando a “memória voluntária” descrita por Marcel Proust (PROUST, 1927, apud BECKETT, 1986, p. 10) (grifos do autor). 53 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 54 RESUMO: Este estudo insere o texto Am I a Snob?, apresentado por Virginia Woolf (1882-1941) no Clube de Memórias, no contexto de suas narrativas memorialistas, publicadas na coletânea Moments of Being, de 1940. Essas memórias tratam da visita da escritora à mansão Argyll House, bem como de sua convivência com a aristocracia de Londres e sua amizade com figuras influentes da política. Para isso, examina o texto como resposta de Virginia Woolf às críticas de esnobismo e pretensa superioridade intelectual do Grupo de Bloomsbury. O estudo aponta contradições entre o propósito da escritora e a sofisticação de sua linguagem que utiliza termos como: chauffeur, glamour, beau monde, Rolls-Royce. Como base teórica utiliza os conceitos-chave de autobiografia e memória referidos por Javier Biezma e Wander Miranda. A análise das estratégias narrativas de Virginia Woolf, marca evidente nessas memórias, promove reflexões a respeito do gênero literário. PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf. Bloomsbury. Esnobe. Memórias. Memória voluntária. ABSTRACT: This paper studies the text “Am I a Snob?”, presented by Virginia Woolf (1882-1941) in the Memoir Club, as a part of the memoir narratives edited in the collection “Moments of Being”, 1940. These memoirs talk about the writer’s visit to Argyll House, and also discuss her intimacy with London’s aristocracy, besides her friendship with political influential figures. This study examines Virginia Woolf’s response to outer world critics of snobbery and the Bloomsbury Group’s presumed intellectual supremacy. This essay also indicates the writer’s contradiction between her defensive purpose and the sophistication of her lexical choices, like: chauffeur, glamour, beau monde, Rolls-Royce. The theoretical basis use the key-concepts of autobiography and memoir referred by Javier Biezma and Wander Miranda. The study of Virginia Woolf’s narrative strategies, evident burden in these memoirs, promote considerations about the literary genre. KEYWORDS: Virginia Woolf. Bloomsbury. Snob. Memoirs. Voluntary memory. 54 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 55 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKETT, Samuel. Proust. Porto Alegre, RS: L&PM, 1986. BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BIEZMA, Javier del Prado [et alii]. Autobiografia y modernidad literaria. 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Porto Alegre, RS: L&PM, 2003. 55 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 56 A VISÃO COSMOPOLITA DE IMMANUEL KANT EM KEW GARDENS, DE VIRGINIA WOOLF Mauro Scaramuzza Filho (DTR 20130189, UFPR) RESUMO: Este artigo discute o ideal cosmopolita de civilização identificado no conto Kew Gardens, de Virginia Woolf (1882-1941). O conceito proposto pela metafísica de Immanuel Kant serviu como modelo e estimulou inúmeros debates no círculo social de Bloomsbury, do qual a escritora inglesa era a figura central. Na ficção, Woolf propõe uma sociedade diversificada que habita e circula, pacificamente, no cenário do jardim botânico de Kew. O espaço da ação narrativa ilustra um lugar no qual pessoas de variadas origens e classes sociais, gêneros e faixas etárias, coabitam em harmonia. A ficcionista descreve um ambiente social que expressa o ideal de comunidade universal pacífica, segundo o pensamento ético de Kant. Virginia Woolf escreveu uma história inspirada no Royal Botanic Gardens of Kew, um parque botânico situado a oeste de Londres. Woolf propõe um ambiente modelo que reproduz o conceito de uma civilização global ideal. PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf, Immanuel Kant, Civilização cosmopolita. Kew Gardens. ABSTRACT: This paper discusses the cosmopolitan ideal of civilization perceived in Virginia Woolf’s (1882-1941) short-story, Kew Gardens. In this short-story the environment is described as cosmopolitan, which is suggested not only by the people who stroll in the botanical garden of Kew, but also through the exotic species of the grown vegetation, brought from every place in the world, specially from distant lands, which configures a place of urbanity and community. The writer invented a social environment which expresses the ideal of a universal peaceful community, according to Immanuel Kant’s ethical metaphysical thought. Virginia Woolf’s short-story has its title inspired in the Royal Botanic Gardens of Kew; a large park located in west London are. Woolf creates an environment that reproduces the concept of an ideal global civilization. KEYWORDS: Virginia Woolf, Immanuel Kant, Cosmopolitan civilization. Kew Gardens. 56 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 57 INTRODUÇÃO Este estudo tem o objetivo de discutir o ideal cosmopolita de civilização no conto Kew Gardens, de Virginia Woolf. Nesta ficção, o conceito metafísico é sugerido não apenas pela diversidade de personagens que circulam pelo jardim botânico de Kew, mas também por meio das imagens poéticas da vegetação exótica proveniente de terras distantes. Em meio ao cenário que congrega cosmopolitismo, urbanidade e comunhão, a história transcorre. Na ficção, Virginia Woolf propõe um ambiente social que expressa o ideal de comunidade universal pacífica, segundo o pensamento ético metafísico de Immanuel Kant. O conto tem seu título inspirado no horto de Kew. Trata-se de um grande parque situado a oeste de Londres. Este local foi criado na segunda metade do século XVIII, época em que o interesse pelas ciências naturais estava no apogeu, com o objetivo de abrigar as inúmeras espécies exóticas, em geral trazidas das colônias para a metrópole, e promover seu estudo científico. A imagem criada pela ficcionista relaciona, ao mesmo tempo: (1) um local de ciência que inspira o conhecimento sobre a vida que existe no mundo, em incessante movimento, e (2) um ambiente paradisíaco que proporciona recreação à sociedade em constante transformação. Na visão que depreendemos do conto, o cenário botânico de beleza cultivada configura-se um Éden urbano, que congrega lazer e ciência. Virginia Woolf apresenta um ambiente modelo que reproduz o conceito de uma civilização global idealizada. Pode ser percebido como um cenário em suspenso, em que ricos e pobres, homens e mulheres de diferentes faixas etárias, desfrutam de um local aprazível que permite liberdade de pensamentos e ações. Sugere uma sociedade de classes em convívio dinâmico e harmônico. Os elementos do cenário e os personagens do conto estão arranjados, poeticamente, de modo a ilustrar concepções da ética kantiana. O foco da antropologia de Kant está no que o indivíduo faz de si mesmo. Para Kant (2006), em Antropologia do ponto de vista pragmático, o ser humano é estudado a partir de duas perspectivas diferentes. A primeira, a partir do que a “natureza” faz do sujeito, submetendo-o a casualidade, chamada de antropologia fisiológica. A segunda afirma que, por meio da “liberdade”, o indivíduo concebe a si, do ponto de vista pragmático (antropologia pragmática). Desta forma, estabelece a diferenciação entre natureza e liberdade (grifos nossos). Para este estudo do senso ético comum, em busca do sentido universal de civilização, a liberdade é considerada como um dever e um direito, a partir do senso 57 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 58 racional da vontade humana. Sendo o indivíduo um ser racional é, portanto, o único que necessita ser educado, no intuito da formação de seu caráter, tendo como objetivo o uso racional e limitado de sua liberdade. De acordo com Kant, o indivíduo somente pode ser considerado um verdadeiro homem por meio da educação voltada para o senso coletivo. No entender do filósofo em questão, em A metafísica dos costumes, o homem torna-se um cidadão consciente de sua liberdade, dentro de limites e deveres para com os outros, por meio de sua racionalidade, conquistada pelo conhecimento das ciências e artes, em busca de um sentido amplo, cosmopolita de civilização: “O homem está destinado através de sua razão, a estar numa sociedade com homens e nela, por meio das artes e das ciências, a cultivar-se, civilizar-se e moralizar-se, por maior que seja sua propensão animal, em luta com obstáculos que o prendem ao estado rude de sua natureza, digno da humanidade” (KANT, 2003, p. 318). Submetido ao aperfeiçoamento este homem torna-se apto para uma convivência civilizada em um mundo por ele projetado, limitando racionalmente suas vontades, fazendo deste mundo um ambiente cultivado, digno da humanidade. Na metafísica kantiana o estabelecimento de uma comunidade universal pacífica depende fundamentalmente da harmonia que existe entre as nações e suas relações de troca, do respeito às leis e aos limites, tendo seus direitos assegurados por uma constituição. Esta ideia racional de uma comunidade universal pacífica, ainda que não amigável, de todas as nações da Terra que possam entreter relações que as afetam mutuamente, não é um princípio filantrópico (ético), mas um princípio jurídico. A natureza as circunscreveu a todas conjuntamente dentro de certos limites (pelo formato esférico do lugar onde vivem, o globus terraqueus). E uma vez que a posse da terra, sobre a qual pode viver um habitante da Terra, só é pensável como posse de uma parte de um determinado todo (...). Não pode ser suprimido o direito dos cidadãos do mundo de procurar estabelecer relações comuns com todos e, para tanto, visitar todas as regiões da Terra. Pode-se afirmar que estabelecer a paz universal e duradoura constitui não apenas uma parte da doutrina do direito, mas todo o propósito final da doutrina do direito dentro dos limites exclusivos da razão, pois a condição de paz é a única condição na qual o que é meu e o que é teu estão assegurados sob as leis a uma multidão de seres humanos que vivem próximos uns dos outros e, portanto, submetidos a uma constituição. (KANT, 2003, p. 194, 197) Os valores individuais – “o que é meu e o que é teu estão assegurados sob as leis a uma multidão de seres humanos que vivem próximos uns dos outros” (KANT, 2003, p. 194) – deverão concorrer para uma liberdade pacífica, por meio de relações comuns, configurando uma comunidade universal que exerce o direito da paz perpétua, regida 58 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 59 por uma constituição. A condição de paz universal e duradoura é fruto do exercício da razão esclarecida e, portanto, distanciada da menoridade, ou seja, somente pela iluminação mental o indivíduo encontra a possibilidade do exercício racional de uma civilização cultivada. A filosofia kantiana conceitua (Aufklärung), ou esclarecimento, como “a saída do homem de sua menoridade”. A menoridade do ser humano é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. Por conseguinte, devemos ter em mente a concepção de um processo em que a liberdade exigida para sua concepção deve estar em função de um “uso público” de sua inteligência, ou seja, tendo como foco principal a comunidade, o coletivo (grifos nossos). DISCUSSÃO O início do conto Kew Gardens apresenta um parágrafo longo em que Virginia Woolf descreve o ambiente, a partir de um canteiro de flores cultivadas, do qual se ergue uma profusão botânica de cores e formas exuberantes – dando noção de arte e ciência, próprios de uma civilização evoluída. Por vezes, Woolf refere-se a uma luz – primeiramente, “as luzes”, e em seguida, mais especificamente “a luz” – que cai por sobre a vegetação colorida, fazendo com que as formas e as cores adquiram maior vivacidade em sua presença. A imagem da luz da qual a escritora se vale torna todos os detalhes do cenário mais claros, expressando evidência por meio de “sua luminosidade” (grifos nossos). Envolvido por toda esta iluminação superior o ambiente cultivado descortina-se diante dos homens e mulheres que passeiam no jardim botânico de Kew. As pétalas eram volumosas o suficiente para serem agitadas pela brisa de verão, e, quando se moviam, as luzes vermelhas, azuis e amarelas passavam umas sobre as outras, manchando um pouquinho a terra marrom com um salpico da mais delicada e complexa cor. (...) A luz caía sobre a superfície lisa do seixo cinzento, ou sobre a concha de um caracol com suas veias escuras, circulares, ou, incidindo numa gota de chuva, expandida com tal intensidade de vermelho, azul ou amarelo as finas paredes de água que se poderia esperar que explodissem e desaparecessem. Em vez disso, num segundo a gota se tornava cinza prata mais uma vez, e a luz agora pousava sobre uma folha, revelando os fios de fibra que se ramificavam sob a superfície; e mais uma vez retomava seu movimento e espalhava sua luminosidade nos vastos espaços verdes sob a cúpula de folhas em forma de coração e de língua. Então, a brisa soprava um pouco mais forte no alto, e a cor era de súbito lançada para o ar, para dentro dos olhos dos homens e mulheres que passeiam em Kew Gardens em julho. (WOOLF, 1996, p.07) 59 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 60 Compreendemos a amplitude da imagem das luzes da qual se valeu Virginia Woolf, em sua concepção kantiana, pois parece conduzir o ser humano para o conhecimento de alguma coisa, em seu ambiente. Acima de tudo, neste jardim botânico as pessoas passeiam iluminadas por algo superior, que não se trata meramente de uma luz qualquer, mas da Luz – algo divino e esclarecedor: a energia que dá sentido à vida, em toda a sua multiplicidade. Esse teor de multiplicidade iluminada do primeiro parágrafo encerra um sentido de coletividade, em seu trecho final: “Então, a brisa soprava um pouco mais forte no alto, e a cor era de súbito lançada para o ar, para dentro dos olhos dos homens e mulheres que passeiam em Kew Gardens em julho” (WOOLF, 1996, p. 07). No terceiro parágrafo, podemos observar que o homem do primeiro par de personagens, Simon, caminhava preocupado com seus pensamentos; ao passo que a mulher Eleanor, enquanto conversava com o marido também observava atentamente o casal de filhos, sem perdê-los de vista. Ao passarem por um canteiro alinharam-se lado a lado, os quatro – pais e filhos: “Eles passaram pelo canteiro, agora andando os quatro lado a lado, e logo diminuíram de tamanho entre as árvores” (WOOLF, 1996, p. 08-09). Tal característica de alinhamento familiar – de anteposição de elementos figurativos – coloca-os em igualdade; posição diferente da situação inicial de dispersão ordenada em que se encontravam. Este detalhe encerra a imagem de uma espécie de marcha, com alinhamento lateral, próprio da militância observada nos grupos classistas, ou mesmo tropas de milícia. Não obstante, a atitude despreocupada de lazer não combina com a noção de militância, mas enaltece o conceito de igualdade de posição – “lado a lado” – reproduzindo os ideais de igualdade social e comunidade de Kant (grifos nossos). No trecho que segue, nota-se o homem como um ser pertencente a um nível acima dos demais seres do mundo; o universo do sujeito de modo destacado dos outros seres da natureza. Mais especificamente, podemos citar o avião como um elemento que representa valores múltiplos, dentre os quais a capacidade humana de ir além das coisas deste mundo, de representar o conhecimento – e o esclarecimento, na visão kantiana – por meio de sua performance tecnológica, em que o homem se destaca, desprendendo-se da terra ao buscar o etéreo, através do voo: “(...) e no ronco do avião, a voz do céu de verão murmurou sua alma impetuosa.” (WOOLF, 1996, p. 17). A imagem veloz do aeroplano parece representar o grau máximo conquistado pela racionalidade e o desejo de liberdade humanos. Como imagem opositiva ao avião 60 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 61 temos o caracol, um animal primitivo que se arrasta vagarosamente por entre os torrões de terra de um dos canteiros de Kew, conforme citação: No canteiro oval, o caracol, cuja concha havia sido manchada de vermelho, azul e amarelo no espaço de uns dois minutos, parecia agora estar se movendo bem de leve em sua concha, e depois começou a se arrastar sobre os torrões de terra solta que se desprendiam e rolavam conforme ele passava sobre eles. (...) Penhascos pardos com profundos lagos verdes nos desfiladeiros (...) – todos esses objetos se interpondo na evolução do caracol entre um caule e outro rumo a seu alvo. O caracol tinha agora considerado todas as maneiras possíveis de alcançar seu alvo sem contornar a folha morta ou escalá-la. (...) e no ronco do avião, a voz do céu de verão murmurou sua alma impetuosa. (WOOLF, 1996, p. 10, 14, 17) O espaço aéreo é também associado ao paraíso pelo termo “Tessália”, lembrando de nossas raízes clássicas, base do conhecimento ocidental. Esta forma de associação do pensamento que viaja como o homem através do meio aéreo, libertandose das amarras ditadas pelo meio terrestre, remete-nos aos ideais reformadores de Kant, discutidos por Virginia Woolf e por seu meio intelectual, do Grupo de Bloomsbury, como a liberdade do pensamento e sua expressão, em todos os níveis – da estética a ética (grifos nossos). Por meio do sistema ético desenvolvido por Kant é possível pensar a ação do sujeito como uma forma coletiva de lógica, criando oportunidade para um pensamento de comunidade ética universal, denominada por Kant produto do Reino dos Fins – espécie de apogeu das ações humanas; ideal da suprema condição; fim terminal de uma inteligência superior, configurando o conceito de Éden, como na citação do conto em que a imagem do “Céu” está associada à concepção de paraíso ou “Tessália” (grifos nossos). Dessa vez, eram dois homens. O mais jovem deles trazia a expressão de uma calma talvez não natural. O mais velho tinha uma maneira de andar curiosamente irregular e trêmula, (...) de modo abrupto. Estava falando de espíritos – os espíritos dos mortos, que, de acordo com ele, estavam agora mesmo lhe contando toda sorte de coisas estranhas sobre suas experiências no Céu. “O Céu era conhecido pelos antigos como Tessália, William, e agora, com esta guerra, a substância espiritual está vagueando por entre as colinas como trovão”. Mas William o segurou pela manga e tocou uma flor com a ponta de sua bengala a fim de desviar a atenção do velho. (...) pois ele começou a conversar sobre as florestas do Uruguai que havia visitado. Podia-se ouvi-lo murmurando sobre as florestas do Uruguai. (WOOLF, 1996, p. 11-13) Voltando aos detalhes deste segundo par de personagens em que o idoso caminha apoiado em sua bengala e recorda suas viagens a terras distantes, parece que a 61 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 62 imagem da decadência do conceito de império, cuja atitude era a de cravar sua marca nos territórios do novo mundo, também podendo ser associado ao caracol que se arrasta pelo solo de um dos canteiros de Kew. Acima de tudo, este personagem do velho homem representa a tradição e a ruína. A figura do definhamento encerrada neste personagem não se limita a representar a debilitação humana, mas possibilita a percepção do declínio imperialista. Como indivíduo, ele precisa de ajuda para controlar suas ações, sendo acompanhado por um jovem chamado William. Devemos observar que este sujeito necessita da assistência deste jovem que o auxilie no autocontrole de suas ações – uma noção eminentemente kantiana, pois os indivíduos que compõem uma sociedade colaboram mutuamente para a harmonia do ambiente social. O jovem William que o acompanha ajuda a controlar os ímpetos do idoso – busca refrear o que na solidão do sujeito seria irrefreável; arroubos de irracionalidade, como a ação opressora imperialista. O incontrolável ímpeto humano deve, conforme Kant, limitar-se à racionalidade coletiva, e o instinto primitivo que reside em seu âmago deve ser controlado em respeito ao outro e à comunidade. O homem racionalizado em Kant pensa sua liberdade em limites muito contraditórios e a busca de uma unidade entre a razão e o instinto torna-se uma utopia. Sim, o personagem do velho, no conto, é a figura dos valores tradicionais de colonização, em ruínas, com suas lembranças de locais paradisíacos, de terras distantes, tropicais, como as florestas do Uruguai. Em meio a seus tiques nervosos, comuns aos idosos, ele representa a sombra do passado, esfacelando-se, com necessidade de uma bengala e de alguém que o ajude a recompor sua imagem quase despedaçada, a imagem fragmentada do império. Virginia Woolf busca, por meio das lembranças de seus personagens, muitas vezes, contrastar os pedaços de uma sociedade destruída pelos horrores da Primeira Guerra Mundial – segundo e terceiro par de personagens do conto. Como exemplo, há nomes fragmentados de pessoas, articulados como peças de um jogo de palavras em cascata – conforme citação abaixo. Neste trecho, o “eu” e o “outro” são discutidos no mesmo plano – pelo terceiro par de personagens, peças que criam uma concepção opositiva ao restabelecimento da ordem social, por meio da harmonia do convívio dos seres humanos que compartilham do mesmo espaço público, de ambivalência paradisíaca e urbana, tendo o direito à igualdade, simbolizado pelo hábito de tomar chá, tido como senso comum (grifos nossos). 62 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 63 Seguindo os passos (...) vinham duas mulheres idosas de classe média baixa, uma corpulenta e pesada, a outra ágil e de bochechas rosadas. Como a maioria das pessoas de sua classe, elas sentiam-se totalmente fascinadas por qualquer sinal de excentricidade (...), especialmente dos bem-afortunados. (...) Então ela sugeriu que elas procurassem um banco e tomassem seu chá. Depois de examinarem, em silêncio, o velho pelas costas por um momento e lançarem uma à outra um olhar esquisito, de soslaio, elas continuaram ativamente montando seu diálogo complicadíssimo. Ela ficou ali deixando as palavras caírem sobre ela. Então ela sugeriu que elas procurassem um banco e tomassem seu chá. (WOOLF, 1996, p. 13-14) Em A metafísica dos costumes, Kant (2003) afirma que o indivíduo consegue regular sua noção de busca da perfeição por meio da razão, para sentir-se no mundo como um co-habitante de um ambiente comum a todos os cidadãos. Nesta coletividade, o sujeito kantiano é visto como regulador de tarefas relacionadas à comunidade, em seu caráter universal, por meio do estreitamento das relações interpessoais com seus concidadãos, que gozam dos mesmos direitos. Para o filósofo, as normas que deveriam reger as ações humanas teriam que ser seguidas de maneira universal, acima das intenções que se beneficiassem de apenas um segmento social. Portanto, tendo o cumprimento do dever a sua origem em um princípio racional, sem prejuízo para a humanidade. Acreditamos que o período marcado pela guerra mundial fez com que Virginia Woolf aderisse cada vez mais à racionalidade universal de Kant, principalmente com relação à concepção de civilização cosmopolita, que teria como consequência a paz mundial; ideologia libertária compartilhada por seu meio intelectual – Grupo de Bloomsbury. Os princípios defendidos pela ética kantiana afirmam que a liberdade é a condição da lei moral, o que representa que uma ação moral somente poderá existir de forma livre e autônoma, encontrando Virginia Woolf, em Bloomsbury, seu ambiente de comunidade kantiana fraternal e livre. A liberdade defendida por Kant considera o dever moral para com o próximo um ponto fundamental da razão pura, o que provocaria polêmica nas reações de filósofos modernos seria a característica formalista da ética de Kant, pois a noção de liberdade racionalmente controlada parece muito teórica e inatingível, tornando-se de fato uma idealização. Segundo A metafísica dos costumes, de Kant (2003), a nossa vontade – expressa racionalmente por meio da liberdade – concorre para o bem-estar e a felicidade geral: “A felicidade dos outros [é vista] como um fim que é também um dever. A felicidade dos outros também inclui seu bem-estar moral e temos o dever de promovêlo” (KANT, 2003, p. 237). Devemos observar que neste conto todo o conjunto (a 63 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 64 ambiência) parece muito perfeito(a), mesmo na dinâmica expressa por Virginia Woolf, o que ilustra uma movimentação quase irrefreável; todo o conjunto sugerindo um ambiente muito idealizado; perfeito demais, conferindo certo teor artificial ao cenário. O último par de personagens do conto difere do primeiro, o qual figurava uma espécie de Adão e Eva de um ambiente edênico, fruto de uma concepção platônica, numa composição poética de ambiente multicolorido. Esse último casal configura a juventude, oscilando entre o real e o que parece real, e sugere representar o futuro da humanidade. Talvez, isto explique a reflexão a partir do que é real ou não, pois, muitas vezes, a tecnologia nos impede de crer no fato em si, o que faz parecer uma aventura ficcional, ao estilo de Julio Verne, o fato de um homem voar de aeroplano tornou-se um sonho possível, graças à tecnologia. Em complemento, as incertezas deste par, que representa o futuro e também a crise do sujeito diante do mundo que se transforma de maneira desenfreada, cessam no momento vespertino do chá – “com” os outros e “como” os demais, sugerindo a busca pela igualdade –, bem como o esvaziamento do diálogo pueril, em que muitas vezes não são entendidos por palavras, mas pela presença física, em conformidade com a materialidade dominante que a marcha tecnológica passou a proporcionar nos tempos da vanguarda do início do séc. XX (grifos nossos). Desta vez, eram dois jovens, um rapaz e uma moça. Estavam no auge da juventude. O casal ficou parado na beirada do canteiro. (...) e era real, tudo real, assegurou ele a si mesmo, tocando com os dedos a moeda em seu bolso, real para qualquer um exceto para ele e para ela: mesmo para ele começou a parecer real. (...) e ficou impaciente para encontrar o lugar onde se tomava chá com outras pessoas, como as outras pessoas. (...) relembrando orquídeas e garças entre flores selvagens, um pagode chinês e um pássaro de topete carmim; mas ele a levou adiante. Tão quente que até mesmo o tordo escolheu saltitar, como um pássaro mecânico, à sombra das flores, com longas pausas entre um movimento e o seguinte; (...) um mercado cheio de guarda-chuvas verdes brilhantes tivesse sido aberto ao sol; e no ronco do avião, a voz do céu de verão murmurou sua alma impetuosa. Mas não havia silêncio; todo o tempo, os ônibus estavam girando as rodas e trocando a marcha; como um grande jogo de caixas chinesas, todas em aço forjado girando incessantemente uma dentro da outra, a cidade murmurava. (WOOLF, 1996, p. 14-18) Esse período de vanguarda e de prosperidade quase irreal – representado pelo último par de personagens do conto –, do início do séc. XX, de máquinas, ônibus e motores a explosão, aeroplanos, além da concepção circular, ou elíptica, de múltiplos guarda-chuvas (ou sombrinhas) portados pela inúmeras pessoas que passeavam por Kew – “um mercado cheio de guarda-chuvas” (conforme citação anterior) (grifos nossos). Conceito que pode ser associado à produção industrial, em série. Fato que 64 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 65 transcorre, no conto, naquela tarde de verão escaldante – de julho –, um mercado de várias pessoas, consumidores, como um movimento para a frente, em busca de um tempo futuro que somente a tecnologia e, portanto, o conhecimento poderia proporcionar à humanidade. Devemos nos ater à noção de multiplicidade e movimento incessante do segmento “os ônibus estavam girando as rodas e trocando a marcha; como um grande jogo de caixas chinesas, todas em aço forjado girando incessantemente” (WOOLF, 1996, p. 18). Neste trecho, percebemos o sentido de variedade de elementos concorrendo entre si, como um desafio à percepção e à identidade do sujeito, pois na era da multiplicidade em escala industrial a produção de máquinas e objetos em série acabaram por provocar o questionamento sobre o indivíduo como um mero fragmento da massa urbana, que se arrasta qual um simples caracol, enquanto máquinas de precisão e velocidade – como os ônibus e o avião – surgem e ultrapassam os limites tradicionais da sociedade. O respeito pelos limites sociais e espaciais tornam os jardins de Kew uma fração ideal da Grã-Bretanha, vista como um canteiro em sua geometria insular – de limites bem destacados. Neste conto, não há uma ação dramática, que vá além das lembranças da guerra; nada mais profundo que o lembrar dos mortos. Ninguém morre ou é morto em Kew, naquele perfeito dia de verão descrito na narrativa woolfiana: o ambiente parece em suspenso, no sentido de ação ou complexidade psicológica. A despeito das lembranças de uma guerra, tudo em Kew Gardens expressa o ideal kantiano de harmonia social e felicidade, neste oásis científico, que pode ser visto como um cenário perfeito, idealizado pela ação racional do ser humano. Até mesmo a recreação e o acesso ao conhecimento são vistos à maneira kantiana, como uma necessidade universal do homem. Os valores subjetivos desta civilização perfeita, concebida por Kant e poetizada por Virginia Woolf, abordam a respeito da crise de identidade pela qual passa o cidadão urbano do início do século XX. Na metrópole tumultuada, o sujeito torna-se parte de uma massa humana, competindo com novos valores de consumo, de uma materialidade irrefreável. Percebemos a perda de sentido e de dimensão da própria interioridade subjetiva. O sujeito idealizado por Woolf, em sua inovadora estética bloomsburyana, de conteúdo profundamente crítico e reflexivo, assim como o indivíduo na concepção de Kant, detém um clamor desesperado por uma sociedade igualitária, livre, consciente em seus direitos e deveres. Acima de tudo, trata-se de um ser numa interminável jornada em prol de uma comunidade universal pacífica, cosmopolita. 65 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 66 O anseio pela paz perpétua proclamada pela reflexão da moral e da política kantianas, que concorre para uma civilização universal, congrega neste conto de Virginia Woolf vivos e mortos que são lembrados, terra e céu, primitivo e tecnológico, presente e passado. Diante deste passeio poético pelos canteiros da filosofia e da literatura resta-nos o enredamento pelo sonho de um ambiente social que possa congregar, harmonicamente, os mais diversos componentes de uma sociedade assentada no conforto vicejante de um ambiente cultivado e próspero. No germe de otimismo semeado por Woolf e Kant, podemos crer que se voar tornou-se possível para o homem moderno, buscar a paz e a igualdade social de direitos também são objetivos a serem alcançados. A concretização de uma comunidade universal pacífica configura incansável projeto humano, como numa espécie de devaneio do último casal de personagens do conto: “(...) e era real, tudo real, assegurou ele a si mesmo, tocando com os dedos a moeda em seu bolso, real para qualquer um exceto para ele e para ela: mesmo para ele começou a parecer real” (WOOLF, 1996, p. 15). Nestas palavras, o clamor woolfiano demonstra seu anseio idealista por uma sociedade de valores igualitários, com uma crença no que é possível, na possibilidade real, de um ambiente governado pela paz. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante deste oásis ilustrado poeticamente por Virginia Woolf, a lentidão do caracol, como centralidade das quatro frações narrativas, contrasta com o cenário de máquinas e sistemas de engrenagens do final do conto. A civilização mostra-se próspera, os cidadãos agem, circulam e pensam com liberdade, por entre os canteiros de um local que simboliza o globo terrestre, com espécies vegetais oriundas dos mais distantes lugares da Terra. Neste paraíso terrestre, em Londres, segundo a concepção metafísica de Immanuel Kant, reinam conhecimento, tradição, modernidade, igualdade e harmonia social, num ambiente de lazer em que todos têm direito a tomar chá, “com outras pessoas” e “como as outras pessoas” (WOOLF, 1996, p. 14-16). 66 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 67 RESUMO: Este artigo discute a visão cosmopolita de civilização identificada no conto Kew Gardens (1919), de Virginia Woolf (1882-1941). O conceito proposto pela metafísica de Immanuel Kant (1724-1804) serviu como modelo e estimulou inúmeros debates no círculo social de Bloomsbury, do qual a escritora inglesa era a figura central. A adoção das concepções kantianas tem raízes na formação acadêmica da família da escritora, pois o pai, Sir Leslie Stephen (1832-1904), foi renomado germanista e catedrático de Cambridge. O teor dos ensinamentos de Stephen sobre Kant somou-se aos postulados de George Edward Moore (1873-1958), um especialista com doutorado sobre a obra do filósofo alemão e, ao mesmo tempo, um dos integrantes do Grupo de Bloomsbury. Na ficção, Virginia Woolf propõe uma sociedade diversificada que habita e circula, pacificamente, no cenário do jardim botânico de Kew. O espaço da ação narrativa ilustra um lugar no qual pessoas de variadas origens e classes sociais, gêneros e faixas etárias, coabitam em harmonia. A ficcionista descreve um ambiente social que expressa o ideal de comunidade universal pacífica, segundo o pensamento ético de Kant. Virginia Woolf escreveu uma história inspirada no Royal Botanic Gardens of Kew, um parque botânico situado a oeste de Londres. Virginia Woolf cria um ambiente modelo que reproduz o conceito de uma civilização global ideal. O resgate do pensamento de Kant por intelectuais do Grupo de Bloomsbury surge no momento em que a circulação de cidadãos europeus torna-se restrita e severamente controlada na Europa da primeira metade do século XX. Virginia Woolf vale-se da ficção para sugerir um modelo ideal de sociedade, em que cidadãos de origens diferentes circulam com harmonia e liberdade por entre uma espécie de Éden urbano e, igualmente, com a simbologia de um globo terrestre, ao encerrar espécies de todas as partes do mundo em canteiros e estufas que recebem a frequente visitação de grande público. PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf. Immanuel Kant. Cosmopolitismo. Literatura. Filosofia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2006. _____. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2007. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru, SP: Edipro, 2003. _____. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006. ROE, Sue. The Cambridge Companion to Virginia Woolf. Cambridge University, 2000. SCARAMUZZA-FILHO, Mauro. Kew Gardens. Curitiba: UFPR, 2009 (Dissertação). WOOLF, Virginia. Kew Gardens. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 67 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 68 VIRGINIA WOOLF E O EPISÓDIO BUNGABUNGA: A PERFORMANCE EM BLOOMSBURY Mauro Scaramuzza Filho (DTR 20130189, UFPR) A primeira vez que ouvimos falar numa ação de performance relacionada à Virginia Woolf foi no Grupo de Pesquisa de Literatura e Outras Artes da Universidade Federal do Paraná, em 2013. Graças aos comentários da Professora Luci Collin, a qual coordenou23 os estudos da Performance, sentimo-nos instigados a pesquisar mais sobre o tema que envolveu as atividades culturais da senhora Woolf e seu grupo (Bloomsbury). Ao reunir dados a respeito do fato, conhecido por Dreadnought Hoax (Tradução do autor: “Fraude do Navio de Guerra”), descobrimos maiores detalhes do episódio ocorrido em 07 de Fevereiro de 1910, registrado em fotografias da época: Figura 01: “O IMPERADOR DA ABISSÍNIA E SUA COMITIVA” (A primeira da esquerda para direita: Virginia Stephen (sobrenome de solteira de Virginia Woolf) e companheiros do Grupo de Bloomsbury. Foto oficial tirada a bordo do navio de guerra HMS Dreadnought (1910) (Fonte: http://www.openculture.com/2013/virginia-woolf-and-friends, em consulta ao site de 23.06.2014). 23 Liderado por Luci Collin em 2013, o Grupo de Pesquisa de Literatura e Outras Artes (UFPR) recebeu em 12 de Junho de 2013, para uma “fala de abertura” a respeito de Performance, a Professora Dra Amabilis de Jesus da Silva (FAP), que ofereceu orientação a respeito dos principais teóricos da Performance (grifos nossos). 68 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 69 * * * Figura 02: A comitiva de príncipes e o imperador da Abissínia (Virginia Stephen Woolf é a primeira, sentada e de perfil, da esquerda para direita. Fotografia oficial a bordo do HMS Dreadnought (1910) (Fonte: http://www.openculture.com/2013/virginia-woolf-and-friends, em consulta ao site de 23.06.2014). A matéria encontrada intitulava-se “Virginia Woolf and Friends Dress Up as Abyssinian Princes and Fool the British Royal Navy (1910)”. (tradução do autor: “Virginia Woolf e seus amigos vestidos como príncipes abissínios enganam a Marinha Real Britânica – 1910”). O material cedido pela homepage www.openculture.com também menciona uma entrevista gravada por Duncan Grant, em 1975, de acordo com o site www.youtube.com (23.06.2014). Conforme recorda Grant, no momento em que os falsos príncipes da Abissínia, recebidos a bordo do HMS Dreadnought, saudaram os oficiais da tripulação, eles condecoraram os marinheiros e, a cada comenda ofertada, os bloomsburianos exclamavam Bunga-Bunga, como um nobre cumprimento. No dia 07 de Fevereiro de 1910, seis integrantes do círculo de Bloomsbury embarcaram com pompas e honrarias no navio de guerra HMS Dreadnought. O grupo de Virginia Woolf – na época, Virginia Stephen (nome de solteira) – era integrado pelo 69 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 70 pintor Duncan Grant, Adrian Stephen (irmão de V.W.), Anthony Buxton, Guy Ridley e Horace de Vere Cole. Quase todos estavam trajados com túnicas e turbantes, vestimentas típicas do povo que supostamente representavam (Abissínia, atual Etiópia – região norte da África). Quatro dentre, os seis integrantes, foram caracterizados não apenas com roupas típicas, mas também tiveram a pele do corpo (mãos e face) pintados de cor negra, emulando africanos de pele escura. Para não serem descobertos, os falsos príncipes da Abissínia comunicavam-se por meio de gestos e em Latim, citando versos da Eneida, de Virgílio (Publius Virgilius Maro, 70-19 a.C.). Foi combinado entre esses performers que além das citações da poesia latina, pronunciariam Bunga-Bunga a cada condecoração que ofertassem à tripulação bélica do navio oficial. Este termo não possui tradução específica, mas representa uma gíria adotada pelos bloomsburianos no intuito de causarem impacto aos oficiais da marinha inglesa. A adoção dos versos latinos da Eneida, de Virgílio, representa um ato premeditado pelo grupo de intelectuais de Bloomsbury. Em resumo, o texto de Virgílio é composto por 12 cantos, perfazendo um total 9826 versos. A Eneida é considerada a maior obra deste poeta. Possui, ao mesmo tempo, um tom mitológico e histórico. Pode ser considerada mitológica porque narra a história do herói Enéas e, para tal fim, utilizase de lendas tradicionais do povo romano. É considerado de teor histórico porque relata os feitos do imperador romano Augusto, além de exaltar Roma e os eventos mais importantes e remotos de seu povo. Na concepção de Virgílio, houve a intenção encomiástica de engrandecer o imperador Augusto, o qual na verdade havia incumbido o poeta em compor tal elegia. A epopeia latina equipara-se à obra homérica sobre a Ilíada e a Odisseia, com diferenças óbvias entre gregos e romanos. No texto de Virgílio, identifica-se a exaltação das virtudes e dos valores que fundamentaram a sociedade latina. O poeta faz uma síntese das correntes de pensamento em difusão na Roma de seu tempo. Igualmente, enaltece as práticas culturais e religiosas latinas da época do imperador Augusto (c. 44 a.C. a 14 d.C.). Este período foi considerado o de maior prosperidade para a religião romana. O argumento da obra de Virgílio é belíssimo e rico em detalhes. O primeiro livro, ou canto, concentra-se em reportar os acontecimentos que levaram o protagonista, Enéas, de Troia a Cartago. Os navios do herói são atingidos por forte tempestade ao partirem da Sicília. Isso os desviou para o norte da África – região próxima a Abissínia. Por intervenção da deusa Vênus, Enéas encontra a terra de Cartago, na qual conhece a rainha Dido que se apaixona por ele. O segundo livro descreve a guerra de Troia. No livro III, Enéas relata 70 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 71 os lugares pelos quais passou desde Troia (Trácia, Delos, Creta, Ítaca, Sicília e Epiro, entre outros). O quarto livro aborda o apogeu da paixão entre a rainha Dido e o heroi Enéas. Os deuses Júpiter e Mercúrio fazem com que o herói busque seu destino fora de Cartago. Ele parte para a Sicília e relembra, por meio de jogos fúnebres, o aniversário de morte de seu pai, Anquises (canto, ou livro V). Em seguida, o heroi chega a Cumas e encontra uma sacerdotisa ligada a Apolo, que lhe confere a permissão para entrar no mundo dos mortos. Lá ele reencontra seu pai que lhe orienta a respeito do futuro de Roma (canto, ou livro VI). Prossegue à região do Tibre e sua amizade com o rei e concessão da mão de sua filha provocam a ira da corte, o que culmina com a batalha entre latinos e troianos (canto VII). Ao atender Vênus, Vulcano forja armas para Enéas e seu grupo sofre graves baixas (cantos VIII-IX). Enquanto a guerra prossegue, o deus Júpiter tenta promover a paz entre as deusas Juno e Vênus (canto X). Finalmente, há uma trégua para que ocorra o sepultamento dos mortos em batalha. Ambas as facções rivais repensam seus feitos bélicos e passam a considerar um acordo de paz, mas isto não ocorre. A situação se agrava e os exércitos se confrontam em sangrenta batalha (Canto XI). Os latinos enfraquecem seu poder bélico e Turno se põe a enfrentar Enéas, diretamente. Enéas vence o duelo e mata seu inimigo (canto XII). Na opinião dos estudiosos, Virgílio consegue superar as próprias expectativas com sua epopeia, pois ressalta os aspectos míticos das tradições romanas. Sugere um sincretismo entre as fábulas gregas e latinas. O traço mais marcante de seu relato épico sobre a história de Roma é o de dotar seus personagens de acentuada humanidade. A despeito de sua grandeza, pelo tom elevado e sensibilidade diante da natureza e do homem, reconhecese que o poema ficou inacabado com a morte de Virgílio. A opção do grupo de intelectuais de Bloomsbury em citar os versos da Eneida, reside não apenas no sentido épico de seus versos, a respeito da frota romana de Enéas, mas também um desafio à audiência de marinheiros britânicos que não tiveram competência para reconhecer sequer um verso em Latim, o que torna o episódio da performance Bunga-Bunga um trote sobre a invencibilidade da frota inglesa. Para Bloomsbury, a truculência da guerra e seus oficiais – incapazes de reconhecer os celebrados versos da Eneida – merecia falhar diante de uma performance em que o desafio bélico concentrava-se no conhecimento. Entre os detalhes do episódio Bunga-Bunga, destacamos a participação lacônica de Virginia (Stephen) Woolf, integrando o grupo mais como observadora do que como performer. Houve pequenos imprevistos que, felizmente, não conduziram tal empreitada 71 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 72 ao fiasco, como a perda do bigode postiço de um dos fantasiados (Buxton) diante de um espirro, além do fato notório da tripulação de oficiais não possuir a bandeira da Abissínia e erguer a de Zanzibar, durante o evento oficial. De acordo com Quentin Bell – sobrinho e biógrafo de Virginia Woolf –, o carrochefe da frota oficial, a mais terrível, moderna e secreta arma bélica a flutuar, o HMS Dreadnought, sofreu um trote histórico por parte do Grupo de Bloomsbury. Este incidente originou o termo lúdico Bunga-Bunga, usado até hoje em inúmeros sentidos e eventos em que uma farsa é comemorada. Conforme relatos históricos, no dia seguinte ao evento de performance, Horace Cole enviou, anonimamente, as fotografias do grupo de intelectuais que realizaram a performance, ao jornal The Daily Mirror, revelando a fraude em que caíram os oficiais da Real Marinha Britânica. Aproveitando-se da notícia bombástica, este jornal descreveu os detalhes dos trajes, maquiagem e demais disfarces adotados pelos integrantes de Bloomsbury que conseguiram afrontar o sistema oficial do governo imperialista da Grã-Bretanha e questionar toda a segurança nacional belicista. O evento foi considerado pelos bloomsburianos um grande sucesso. Ponto positivo para as ações transgressoras do círculo de convivência de Virginia Woolf, pois sempre almejaram quebrar barreiras, transpor normas, reinventar o uso do discurso e da linguagem, além de criticar a sociedade e a política. Como atitude de performance, o papel de V. Woolf, como integrante da entourage da mais alta nobreza abissínia, com maquiagem negra, turbante e túnica, veio a romper com a expectativa de toda uma sociedade aristocrática – e politicamente correta – ao saber que as ações de Bloomsbury e da discreta escritora configuraram uma afronta bem sucedida. O evento Bunga-Bunga, claramente, encerrou elementos de Performance, como intervenção cultural, conforme as seguintes características: (1) “O ‘risco’ de estar presente num evento, sem conseguir prever a interação positiva, ou não, da audiência (plateia)”. Detalhe conhecido como a “‘presentificação’, a presença física do performer e a incapacidade de antever a aceitação do público” – o que resulta na (2) “impossibilidade de ensaiar toda a performance, como acontece no teatro, pois há interação com um ambiente vivo que não é o palco, como um lugar que recebe uma ‘ressignificação’ no momento da ação da performance”. (3) “A performance é estabelecida como ‘trânsito entre territórios’, artes, estéticas e ações políticas, envolvendo signos, mídias e linguagens diversas”. (Renato Cohen, citado por SILVA, Amabilis, 2013 – abertura das atividades do Grupo de Pesquisa em Literatura e Outras 72 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 73 Artes, UFPR, 12.06.2013) (nossos destaques). Somam-se ao (4) “‘Ineditismo’ do momento, o flagrante, o impacto causado” (ou afronta efetuada por Bloomsbury, em 1910, Bunga-Bunga) contra o stablishment. (5) “A arte corporal e a ‘subversão da linguagem’ ao intento crítico” (no caso de Bunga-Bunga: anti-belicista e contra o imperialismo, por parte de Bloomsbury) (Jorge Glusberg, citado por SILVA, Amabilis, 12.06.2013) (grifos nossos). Acrescenta-se ainda: (6) “o questionamento do juízo de valor” (Pierre Restanes, citado por SILVA, 2013). (7) O “corpo é visto como uma figura dentro de uma cena e somado aos recursos da voz”, ou linguagem falada. (8) A dinâmica performática da ação de performance. (9) A estratégia de forjar uma identidade e criar um evento crítico-reflexivo, neste caso estudado, sob a saudação formal Bunga-Bunga (expressão que remete ao lúdico instaurado pelos integrantes de Bloomsbury). Território indefinido e questionável de valores, o Bunga-Bunga, ou Dreadnought Hoax, promovido pelo grupo de Virginia (Stephen) Woolf, questiona o sistema moral, transgride fronteiras entre realidade e ficção, no desafio de cruzar o limite do perigo, da segurança, e promove reflexões a respeito da sociedade como um todo. Do ano de 1910 até os anos de 1919 (Kew Gardens) e 1925 (Mrs. Dalloway), por exemplo, muito tempo se passou para que Virginia Woolf germinasse em sua escrita as sementes do Bunga-Bunga no solo fértil da literatura de vanguarda. Destarte, rememorando o episódio performático em que a escritora se envolvera, torna-se compreensível a evolução de sua “escrita literária performática” em segmentos como os observados no conto Kew Gardens (1919) e no romance Mrs. Dalloway (1925), entre outros expoentes de sua produção. O longo caminho percorrido por Virginia Woolf parece tê-la feito estreitar laços que evocam o inusitado teor da performance na literatura a partir do evento BungaBunga. Isso pode ser reforçado pelas palavras da própria escritora que no mesmo ano deste evento de performance afirmou “em torno de 1910, o caráter humano mudou”. A mudança ocorreu não apenas pelo fim da era vitoriana – com a morte do rei Eduardo, filho e defensor do legado da rainha Vitória – nem somente pela inesquecível exposição de quadros (pós-)impressionistas pelas Grafton Galleries, em homenagem aos pintores de vanguarda do círculo de Paris, mas mesmo sem perceber-se, algo havia mudado em favor da visão estética e do comportamento woolfianos, a partir da convivência em atitudes de transgressão das fronteiras e convenções pré-estabelecidas pela sociedade inglesa. Podemos considerar que se houve momentos marcantes no convívio com o 73 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 74 Grupo de Bloomsbury, o episódio Bunga-Bunga, certamente, foi um deles. A partir deste evento, o intercâmbio estético na obra de Virginia Woolf passou a se tornar mais evidente e, poderíamos considerar, o precursor de momentos nos quais a prosa woolfiana desafia seus leitores na recepção inteligível de signos verbais, ora desmantelados, ora reagrupados na evocação de um ordenamento diferente das convenções lógicas em que a palavra expira-se em sons, grunhidos e fragmentos vocálicos com a possibilidade de emular o som das máquinas e as tintas das telas, perfazendo a sugestão de uma escrita literária performática – um convite a novas considerações a respeito da prosa lírica woolfiana e suas relações com outras artes e, ou, mídias. E viva o Bunga-Bunga! REFERÊNCIAS CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Humanitas: UFMG, 2010. Belo Horizonte: COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011. GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011. SILVA, Amabilis de Jesus da. Fala de abertura dos estudos do Grupo de Pesquisa de Literatura e Outras Artes da UFPR. Curitiba: Casa Amarela (UFPR). 12.06.2013. THE NORTON ANTHOLOGY OF WORLD MASTERPIECES. 5th Continental Edition. New York: London: W.W. Norton & Company, 1987 (p. 473-547). VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo: FAPESP: Humanitas (FFLCH/USP), 2001. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007. http://www.openculture.com/2013/virginia-woolf-and-friends (acesso em 23.06.2014). www.youtube.com (acesso em 23.06.2014). 74 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 75 RESUMO: Este trabalho almeja discutir sobre o evento de performance chamado de Bunga-Bunga, realizado por Virginia Woolf e o círculo social de Bloomsbury, em 07 de Fevereiro de 1910. Nesta data, seis integrantes de Bloomsbury embarcaram com pompas e honrarias no navio de guerra HMS Dreadnought. O grupo de Woolf, na época Virginia Stephen, era integrado pelo pintor Duncan Grant, Adrian Stephen, Anthony Buxton, Guy Ridley e Horace de Vere Cole. Quatro companheiros trajavam túnicas e turbantes, vestimentas próprias da Abissínia, norte da África. Foram caracterizados não apenas com roupas típicas, mas também tiveram a pele do corpo, mãos e face pintados de cor negra, emulando africanos de pele escura. Para não serem descobertos, os falsos príncipes da Abissínia comunicavam-se por meio de gestos e em Latim, citando os versos da Eneida, de Virgílio (70-19 a.C.). Foi combinado entre os performers que além das citações da poesia latina, pronunciariam Bunga-Bunga a cada condecoração que ofertassem à tripulação bélica do navio oficial. Este termo não possui tradução específica, mas representa o código verbal adotado pelos bloomsburianos no intuito de causarem impacto aos oficiais da marinha inglesa. Ao reunir dados a respeito do fato, conhecido por Dreadnought Hoax, foram descobertas fotografias e registros da matéria do jornal The Daily Mirror, que na época noticiou a fraude em que caíram os oficiais da Real Marinha Britânica. O acontecimento foi caracterizado como uma afronta ao sistema oficial do governo imperialista da Grã-Bretanha, pois questionou a segurança nacional. O evento foi considerado pelos bloomsburianos um grande sucesso. As características de ineditismo, crítica ao sistema, uso do corpo e da voz, a subversão da linguagem, o ato de forjar uma falsa identidade cultural e o impacto de risco diante do momento da ação, caracterizam o episódio Bunga-Bunga como uma performance. O estudo da performance assenta-se sobre os trabalhos de Marvin Carlson e Paul Zumthor, entre outros. As referências históricas foram colhidas em sites oficiais da web, a partir dos arquivos da Harvard University (Harvard Library, Openculture e Youtube), entre outros. Com esta pesquisa de base, pretendemos o aprofundamento dos estudos a respeito da obra de Virginia Woolf em relação à performance, que parte do evento Bunga-Bunga (1910) e progride para momentos em que pode ser identificada uma escrita literária performática, em favor de futuros estudos sobre o tema. PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf. Bloomsbury. Performance. Bunga-Bunga. Dreadnought-Hoax. 75 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 76 ABSTRACT: This paper focus on the performance event named “Bunga-Bunga” (or “Dreadnought Hoax”), performed by Virginia Woolf (1882-1941), and the Bloomsbury Group, in February 07th, 1910. In this date, six Bloomsbury members went on board, with honors and ceremony of a foreign royal court, on the war ship HMS Dreadnought. Woolf’s social group, on those days when she was just Virginia Stephen, were composed by the painter Duncan Grant, V.W.’s brother Adrian Stephen, Anthony Buxton, Guy Ridley, and Horace de Vere Cole. Four of the fellows wore typical clothes and turbans, proper to the North of Africa people of Abyssinia. They were characterized not only with typical clothes, but also had the body skin, hands and face, turned to black, by the use of make-up painting, emulating dark skinned Africans. In order to not being revealed, the false royal Abyssinian princes entourage used to communicate each other by gestures, and by the oral use of Latin verses from Virgil’s “The Aeneid” (7019 B.C). Among the performers communication, they had planned to say “BungaBunga” each time they used to award each official mariner on board. This informal expression does not have a specific translation, but it represents the verbal code adopted by the intellectual group with the purpose of producing impact among the mariners. During this study of the performance event known by “Dreadnought Hoax”, we have discovered pictures and news registered by the files of a newspaper called “The Daily Mirror”, which on those days had highlighted the fraud in which the UK Royal Mariners were caught. The event was characterized as an insult by the Great Britain’s imperialist government, as it had questioned the national security. This episode was considered a great success by the bloomsburyans. Having such innovative peculiarities, critics to the system, the employment of the human body and voice, the subversion of the language, the act of forging a false cultural foreign identity, and the risk impact of the action moment, characterizes the “Bunga-Bunga” episode as a performance. This study of the performance is based on the works of Marvin Carlson and Paul Zumthor, among other theorists. The Historical references were taken from the web official sites, after the Harvard University files (Harvard Library, Openculture, Youtube), among others. With this foundation research, we intend to study V.Woolf’s literary production in relation to performance that starts from the “Bunga-Bunga” episode (1910), and progress to later moments in which it can be identified as Woolf’s literary performative writing, in favor of future studies on the subject. KEYWORDS: Virginia Woolf. Bloomsbury. Performance. Bunga-Bunga. DreadnoughtHoax. 76 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 77 ECOS SHAKESPEARIANOS: INTERTEXTUALIDADE EM MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF Mauro Scaramuzza Filho (DTR20130189, UFPR) RESUMO: Este trabalho focaliza a presença da intertextualidade identificada no romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, que apresenta citações de textos de William Shakespeare. O conceito de intertextualidade de Julia Kristeva e a concepção de hipertextualidade de Gérard Genette são usados para a análise do hipertexto de Woolf, a partir dos hipotextos de Shakespeare. O conflito humano sobre o amor e a morte marca o teor das citações e convida a reflexões. PALAVRAS-CHAVE: intertextualidade; hipertextualidade; Virginia Woolf; William Shakespeare. ABSTRACT: This work focuses on the presence of the intertextuality perceived in Virginia Woolf’s novel, Mrs. Dalloway, which presents citations of William Shakespeare’s texts. Julia Kristeva’s concept of intertextuality, and Gérard Genette’s concept of hypertextuality, are used for the analysis of Woolf’s hypertext after Shakespeare’s hypotexts. The human conflict about love and death marks the citations tenor, and invites for reflections. KEYWORDS: intertextuality; hypertextuality; Virginia Woolf; William Shakespeare. 77 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 78 INTRODUÇÃO Ao examinarmos o romance Mrs. Dalloway (1925), de Virginia Woolf (18821941), percebemos o emprego do recurso de intertextualidade, em vários segmentos. Sua narrativa dialoga com os textos de William Shakespeare (1564-1616). Para a análise da prosa woolfiana, partiremos da concepção de Julia Kristeva (1974, p. 64) de que “todo texto se constrói como mosaico de citações 24, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. Igualmente, apoiaremos nosso estudo no conceito de intertextualidade e hipertextualidade, segundo Gérard Genette (2005). A presença das citações shakespearianas empresta um tom, aparentemente, lúgubre à prosa woolfiana, especialmente em Mrs. Dalloway, o que nos convida a reflexões. Nosso estudo concentra-se na análise do recurso da citação como intertextualidade, na literatura. O conceito de intertextualidade formulado por Julia Kristeva inspirou-se no dialogismo de Mikhail Bakhtin que trata da relação dos enunciados. Essa concepção de Kristeva foi retomada por Gérard Genette, na década de 1980. Genette desenvolve sua teoria textual fundamentada em cinco categorias textuais. Portanto, a noção textual adotada é de um palimpsesto. Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as obras derivadas de uma obra anterior, por transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve através da leitura, o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. (GENETTE, 2005, p. 05) Ao partir do princípio da relação entre texto verbal (literatura) e texto verbovisual (teatro), não nos afastamos do conceito de um pergaminho com inúmeras inscrições, como explanou Gérard Genette. O texto de Virginia Woolf revela-se uma mescla de inscrições culturais, estéticas e ideológicas. Podemos afirmar que o estilo da ficção woolfiana transcende seus próprios limites verbais, pois dialoga com referências do teatro inglês, especificamente do drama shakespeariano. 24 Citação é uma forma de intertextualidade. Trata-se de uma transcrição do texto alheio, marcada por sua presença em destaque, por meio de itálicos ou entre aspas. Em geral, apresenta-se acompanhada do nome do autor. 78 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 79 No viés da transtextualidade, Gérard Genette postula que o objeto da poética não é o texto, considerado na própria singularidade, mas um arquitexto. A arquitextualidade do texto é o conjunto das categorias gerais, ou transcendentes (como tipos de discurso, modos de enunciação e gêneros literários, entre outros) do qual se destaca cada texto singular. Para Genette, esse objeto da poética que não se resume apenas ao texto é a transtextualidade (transcendência textual), ou seja, “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta com outros textos” (GENETTE, 2005, p. 07). Gérard Genette (2005, p. 07-09) propõe uma classificação de cinco tipos de transtextualidade (p. 07), dos quais salientamos o primeiro (intertextualidade) e o quarto (hipertextualidade). Entre tipos apresentados por ele, o primeiro parte da concepção de intertextualidade, proposta por Julia Kristeva. Para Genette, a intertextualidade pode ser definida como “uma relação de co-presença entre dois ou vários textos”, ou a “presença efetiva de um texto em outro” (p. 09). O teórico defende que a forma menos explícita é a alusão, ou “um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro” (p. 09). “O intertexto é a percepção pelo leitor de relações entre uma obra e outras, que a precederam ou as sucederam (...). A intertextualidade é (...) o mecanismo próprio da leitura literária. De fato, ela produz a significância por si mesma, enquanto que a leitura linear, comum aos textos literários e não-literários, só produz o sentido.” (Michel Riffaterre, citado por GENETTE, 2005, p. 11). Nesse sentido, de acordo com Riffaterre, o “traço” intertextual aproxima-se mais da alusão do detalhe do que, propriamente, da macroestrutura da obra (GENETTE, 2005, p. 11) (nossos grifos). A hipertextualidade (quarto tipo de transtextualidade, segundo Gérard Genette) representa toda a relação que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto), do qual ele “brota”, ou seja, deriva de um texto preexistente (GENETTE, 2005, p. 19) (grifo nosso). Para Gérard Genette (2005, p. 25), o “hipertexto” é derivado de um texto que já existia, podendo ocorrer de duas formas: a primeira, por “transformação simples”, ou simplesmente chamada de “transformação”, e a segunda, por “transformação indireta”, também chamada de “imitação” (grifos nossos). 79 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 80 DISCUSSÃO De modo sucinto, podemos resumir o romance Mrs. Dalloway como a narração sobre um dia na vida de uma socialite inglesa, a protagonista Senhora Dalloway. Ela pretende dar uma festa ao final do dia. O evento destina-se a comemorar o retorno da protagonista ao cenário social de Londres. A senhora de meia-idade havia travado uma batalha diante de grave enfermidade, uma influenza que a mantivera isolada de todos. O texto sugere que esta será a primeira festa a ser dada pelos Dalloway após o término da guerra (I Guerra Mundial). Depois de longo recolhimento, Clarissa Dalloway decide sair para providenciar, ela mesma, os arranjos florais para a recepção. Ao perambular pelas ruas, praças e parques de Londres, a Senhora Dalloway tem inúmeras recordações de seu passado. A história mescla os pensamentos e os diálogos, resultando no uso do discurso indireto livre, com a estratégia do monólogo interior, ou solilóquio. A protagonista resolve fazer uma espécie de balanço de vida, por meio de lembranças e conjecturas, na manhã de quarta-feira, do dia 20 de junho de 1923, ao final da primavera. Como imagem diametralmente oposta, o antagonista é um herói de guerra, Septimus Warren Smith. Ele vive perturbado pelas lembranças recorrentes das cenas de horror vividas nos campos de batalha. Vive em meio a crises nervosas e acaba de trocar de médico. Ele também caminha pelas ruas de Londres, na manhã em que haverá pessoas, de outro meio social, em confraternização. O romance apresenta duas realidades distintas que não se cruzam diretamente. A única menção feita à Senhora Dalloway, a respeito de Septimus, é no momento em que seu convidado Dr. Bradshaw refere-se ao terrível suicídio de seu jovem paciente, ocorrido um pouco antes da recepção. Ao passo que a Senhora Dalloway dá prosseguimento à sua vida, satisfeita com a escolha de uma vida segura e sem paixão, Septimus suicida-se. Entre as lembranças e conjecturas da Senhora Dalloway, a narrativa apresenta citações recorrentes de versos shakespearianos. De acordo com Reuben Brower (citado por SCARAMUZZA-FILHO, 2002, p. 45), a melhor maneira de compreender o emprego das citações no romance Mrs. Dalloway é considerar as leituras de peças de William Shakespeare, como The Tempest, Cymbeline e A Winter’s Tale. Na visão de Brower, o romance é repleto “ecos herméticos”, tais como “fear no more” (não temas), repetido por seis vezes ao longo da trama de Virginia Woolf. No romance woolfiano, tal citação confere o mesmo teor melancólico empregado por Shakespeare, em Cymbeline (grifos nossos). 80 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 81 Não temas o calor do sol, Tampouco a fúria do inverno25 Teu dever na Terra findou, Aceita a paga e volta ao eterno. Nobres jovens irão, sem dó, Como servos voltar ao pó. __ E não temas o poderoso, Estás bem além dos tiranos. Vestir, comer, não fiques cioso, P’ra ti, junco e carvalho são manos. Coroa, saber, ciência, sem dó, Vai tudo, um dia, voltar ao pó. __ Seja tua paz bem abrigada, Seja tua tumba venerada! [IV.ii.]26 Embora belíssima, a elegia é das mais melancólicas, sendo o refrão “não temas” o único consolo para a morte (BLOOM, 1998, p. 765-766) (nossos grifos). A canção extraída do hipotexto shakespeariano Cymbeline, indica o ethos sombrio e niilista presente no hipertexto de Virginia Woolf, como no segmento abaixo: Mas que estava ali a sonhar, enquanto olhava a vitrina de Hatchard? Que estaria tentando recordar? Que imagem de límpida aurora no campo, enquanto lia no livro aberto: Não mais temas o calor do sol / Nem as iras do inverno furioso. Aquela última experiência do mundo abria em todos, homens e mulheres, uma fonte de lágrimas. Lágrimas e pesares; coragem e resistência; uma conduta perfeitamente a prumo, estóica. Como, por exemplo, a mulher a quem mais admirava, Lady Bexborough, inaugurando a quermesse. (WOOLF, 1980 b, p. 13) (Tradução de Mário Quintana) (mantidos os itálicos) A prosa woolfiana mostra a tentativa da protagonista em vencer a sombra lúgubre de seus pensamentos, buscando “coragem e resistência” numa altura da vida em que, à meia-idade, a despeito das vicissitudes, o ser humano resigna-se e vence suas angústias prosseguindo com as mais distintas atividades que lhe ocupam o cotidiano. Esse tom umbroso, existencialista, que a ficção de Virginia Woolf adota, no período entre-guerras, confere ao texto modernista uma atmosfera de incerteza e, ao mesmo tempo, de esperança. No romance de Woolf, a Senhora Dalloway almeja dar 25 Citação de dois versos de Shakespeare encontrada no romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, por seis vezes. 26 Canto melancólico, durante o sono de Imogênia, em Cymbeline, de William Shakespeare (citado por BLOOM, 1998, p. 764-765) (Tradução de José Roberto O’Shea) (nossos grifos). 81 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 82 continuidade ao seu projeto de vida, de uma esposa que deve satisfazer-se com a segurança de um casamento por conveniência, com um destacado parlamentar. Ela viu a guerra passar, venceu uma grave enfermidade que a manteve isolada, e encontra nas atividades mais simples do cotidiano recursos para uma vida de plenitude. Em contrapartida, Septimus, o antagonista, submerge em crises nervosas, devido seus traumas de guerra. Sua depressão o conduzirá ao suicídio. Portanto, podemos depreender que o uso do hipotexto shakespeariano conferiu, ao mesmo tempo, a melancolia diante do destino trágico do ser humano e a força da resignação diante da vida. Invariavelmente, o fulcro do hipertexto woolfiano instaura-se no entre-lugar de vida e morte. O emprego da citação de Shakespeare no hipertexto de Virginia Woolf sugere que os bens mais preciosos da vida, como a personalidade e o amor, ambos extremamente equívocos, como todas as coisas, possuem o mesmo destino e viram pó. Os versos shakespearianos oferecem um consolo soturno à nossa visão sobre o sono de Imogênia (Cymbeline). No contexto do romance de Virginia Woolf, podemos interpretálo como resignação e perseverança para a Senhora Dalloway (protagonista). Enquanto que para o antagonista, Septimus, o teor lúgubre soa como um destino trágico e inevitável para alguns jovens. Imagens poéticas de bipolaridade, contraste e ambivalência – como no caso –, são muito recorrentes na prosa lírica woolfiana. Segundo Edgar Morin (1976, p. 60), o pensamento sobre a morte só incide no cotidiano, “quando o eu a olha, ou se olha” (grifos nossos). O sentido de amor e morte, como questões cruciais à vida humana, é temática frequente nas peças de Shakespeare e na ficção de Virginia Woolf. Em seis segmentos, a escritora emprega os versos “não temas” do canto de Cymbeline (hipotexto). Essa citação possui um sentido ambíguo de libertação para os personagens centrais do romance woolfiano (hipertexto). Em especial, a protagonista conforma-se com seu papel social de perfeita anfitriã, certifica-se de que suas escolhas de vida foram acertadas, resigna-se e liberta-se das amarras do passado, livra-se da escravidão das paixões. Ao mesmo tempo, o tom trágico do canto de Cymbeline (hipotexto) representa, para a Senhora Dalloway (protagonista do hipertexto), a morte de Clarissa, sua identidade de solteira. Morreram todas as aspirações da jovem que entregou-se a um casamento de conveniência, passou a ser tratada como “senhora fulano de tal”, uma sombra do esposo. Estava, no entanto, satisfeita com as limitações de seu destino, conformara-se em seu papel social, pois buscara a segurança ao invés das paixões. Viver, muitas vezes, 82 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 83 representa deixar morrer antigos sonhos, como no caso da protagonista do romance (hipertexto) (grifos nossos). O nome de Shakespeare é mencionado inúmeras vezes no romance de Virginia Woolf. O antagonista (Septimus) e outros personagens são leitores do bardo (WOOLF, 1980 b, p. 83-86). O esposo da protagonista, o Sr. Dalloway havia lido os sonetos de Shakespeare (WOOLF, 1980 b, p. 74). Conforme o romance woolfiano, ler Shakespeare representava acima de tudo conhecer o humano, saber-se um inglês, como cidadão. No hipertexto woolfiano, as flores que motivaram a saída da Senhora Dalloway, de seu período de reclusão castiça, configuram um elemento poético intertextual com alguns versos shakespearianos (hipotextos). Em The Tempest, de Shakespeare, as palavras finais da Rainha Catarina associam flores, castidade e morte ao casamento. O hipertexto de Virginia Woolf faz uma alusão indireta que se aproxima do teor presente no hipotexto de Shakespeare: [...] Estando eu morta, Boa menina, trata-me com honra. Virginais flores põe no meu sepulcro, Para que todos saibam que uma esposa Casta eu fui até à morte. Embalsamai-me. [IV.ii.]27 No romance Mrs. Dalloway, ambos os personagens centrais (Sra. Dalloway e Septimus) passam por um momento crucial em suas vidas. Seus questionamentos a respeito da existência humana denotam um momento em que a própria civilização revisava seus conceitos, numa espécie de crise existencial. Tal sentimento veio crescendo antes da virada do século XIX para o séc. XX e acreditamos ter sido acentuado com o passar da Primeira Guerra Mundial. Essa característica confere ao hipertexto woolfiano um caráter ontológico semelhante aos hipotextos shakespearianos, principalmente no que diz respeito ao caráter trágico do destino humano. Nesse momento histórico, logo após a I Grande Guerra, todos os indivíduos passam a questionar os valores que norteiam a vida humana e sua efemeridade. A agitação crescente dos ambientes urbanos e a instabilidade social produziram um ethos moderno de extremado conflito existencial. Dentro dessa atmosfera, a ficção de Virginia Woolf busca sua referencialidade em Shakespeare. Conservar a própria vida parece ser o ponto 27 William Shakespeare, The Tempest (citado por BLOOM, 1998, p. 836-837). 83 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 84 crucial da preservação do homem diante da metamorfose do mundo. O conflito dos personagens centrais do hipertexto de Woolf aproxima-se, por alusão indireta, do segmento do hipotexto de Shakespeare (Cymbeline), no momento em que Póstumo revela ao carcereiro seu intento pela própria morte: Ainda é sonho, ou então, será loucura, Ou mesmo ambos, ou nada; ou carece De sentido, ou possui algum sentido Que o sentido não tem como explicar. Seja o que for, parece a minha vida; Vou conservá-lo, até por simpatia. [V.iv.]28 No hipotexto de Shakespeare, a rainha em Cymbeline, morre afirmando jamais ter amado o marido, o que aproxima esse personagem à protagonista do hipertexto woolfiano. De modo semelhante, a Senhora Dalloway reconhece o valor do compromisso matrimonial, resigna-se como esposa conformada, ocultando-se por trás de uma máscara social que encobre uma Clarissa – identidade de solteira. Conserva seus mais íntimos sentimentos intocados, amortecidos, e prossegue sua vida, uma vida sem paixão. No que diz respeito ao antagonista do hipertexto woolfiano, Septimus liberta-se de uma intensa crise causada pelos traumas da guerra, ao saltar da janela de seu apartamento para a morte. Na concepção de Septimus, a morte representa libertação. Para Edgar Morin (1976, p. 25), “a morte é, portanto, à primeira vista, uma espécie de vida, que prolonga, de uma forma ou de outra, a vida individual. De acordo com essa perspectiva, é não uma ‘ideia’, mas sim uma ‘imagem’, como diria [Gaston] Bachelard, uma metáfora da vida, um mito, se quisermos” (mantidos os destaques). Acreditamos que não haveria melhor fonte do que a shakespeariana para saciar Virginia Woolf na criação de seus personagens, da mais profunda tragicidade e complexidade humanas. Os hipotextos shakespearianos, sob forma de citações, carregados de conflitos entre amor e morte, nutriram com singular densidade o hipertexto de Woolf – grande admiradora do bardo. No âmbito do conceito de hipertextualidade, de Gérard Genette (2005, p. 19), percebemos que o hipertexto de Virginia Woolf “brota”, deriva, dos hipotextos de Shakespeare. Por meio de citações, apresentadas em itálico, identificamos uma relação de intertextualidade, de “co- 28 William Shakespeare, Cymbeline (citado por BLOOM, 1998, p. 771) (grifos nossos). 84 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 85 presença” entre os versos shakespearianos e a ficção woolfiana (GENETTE, 2005, p. 09) (nossos destaques). O aspecto interessante que estabelece um elo intertextual da prosa lírica woolfiana com o drama shakespeariano é que o teor de crise existencial da protagonista (a Senhora Dalloway) manifesta-se no âmbito de suas memórias e conjecturas a respeito de suas escolhas de vida, ou seja, por meio do fluxo de pensamentos revelado ao leitor. Os versos de Shakespeare inserem-se no lirismo da prosa de Virginia Woolf, justamente nos momentos do monólogo interior da protagonista. No entanto, torna-se relevante considerar que a crise pela qual as personagens de Shakespeare e de Woolf atravessam está fundamentada na busca pelo conhecimento de si mesmas, no fato de saberem-se em situações limítrofes. Esse conflito interior, fulcro da intertextualidade que Woolf estabelece com os versos do bardo, não impede que a plenitude da Senhora Dalloway possa concretizar-se. Os ecos shakespearianos reforçam a densidade psicológica dessa espécie de balanço de vida no romance woolfiano. Não obstante, os conflitos existenciais compõem parte da essência humana e essa crise de valores individuais não representa impedimento para a concretização da felicidade da Senhora Dalloway, mas um reflexo de superação pessoal. Por meio da análise do monólogo interior indireto da Senhora Dalloway, permeado de ecos shakespearianos, esse espírito de transcendência de conflitos e de diálogo revisional com o passado propõe uma prosa lírica woolfiana que não apenas evoca a tragicidade dos versos de Shakespeare, mas também as imagens poético-visuais de épocas passadas, ou seja, traz elementos do Renascimento para o Modernismo inglês. 85 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 86 RESUMO: Este trabalho focaliza a presença da intertextualidade identificada no romance Mrs. Dalloway (1925), de Virginia Woolf (1882-1941), que apresenta citações de textos de William Shakespeare (c.1564-1616). O texto de Virginia Woolf revela-se uma mescla de inscrições culturais, estéticas e ideológicas. Podemos afirmar que o estilo da ficção woolfiana transcende seus próprios limites verbais, pois dialoga com referências do teatro inglês, especificamente do drama shakespeariano. A presença das citações shakespearianas empresta um tom, aparentemente, lúgubre à prosa woolfiana, especialmente em Mrs. Dalloway, o conflito humano sobre o amor e a morte marca o teor das citações e convida a reflexões. Para a análise da prosa woolfiana, partiremos da concepção do texto como mosaico de citações, de Julia Kristeva (1974), e concentra-se na análise do recurso da citação como intertextualidade, na literatura. Essa noção de intertextualidade formulada por Julia Kristeva inspirou-se no dialogismo de Mikhail Bakhtin que trata da relação dos enunciados. O argumento de Kristeva foi retomado por Gérard Genette, na década de 1980. Genette desenvolve sua teoria textual fundamentada em cinco categorias textuais, das quais os conceitos de intertextualidade e hipertextualidade são referenciais. Segundo Genette (2005), a noção textual adotada é de um palimpsesto. Ao partir do princípio da relação entre texto como romance da vanguarda literária modernista e texto teatral como drama renascentista, não nos afastamos do postulado de um pergaminho com inúmeras inscrições, conforme Genette. O conceito de intertextualidade de Julia Kristeva e a concepção de hipertextualidade de Gérard Genette são usados para a análise do hipertexto de Virginia Woolf, a partir dos hipotextos de Shakespeare. PALAVRAS-CHAVE: Intertextualidade. Hipertextualidade. Virginia Woolf. William Shakespeare. REFERÊNCIAS BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. BRADLEY, A.C. Shakespearean tragedy. London: Penguin, 1991. FROULA, Christine. University, 2005. Virginia Woolf and Bloomsbury avant-garde. Columbia GEDDES & GROSSET. The complete works of William Shakespeare. New Lanark: Geddes & Grosset, 2001. GENETTE, Gérard. UFMG, 2005. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: GREENBLATT, Stephen. 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Curitiba: UTP, 2002. (Dissertação). WOOLF, Virginia. Mrs.Dalloway. New York: Random House, 1928. (a). _____. Mrs.Dalloway. Trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. (b). 87 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 88 RESENHAS 88 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 89 SOB A LUZ DE UM NOVO FAROL: O TEMPO PASSA, DE VIRGINIA WOOLF Phelipe de Lima Cerdeira29 Plasmar a complexidade psicológica do ser humano parece ser uma espécie de rota incessantemente buscada, sobretudo quando se versa a respeito do estatuto do literário e das águas da narrativa. Lançando-se ao mar da ficção dos últimos três séculos, alguns escritores alcançaram a sua Ítaca perdida, não por se contentar em permanecer em uma segura ilha, mas, ao contrário, por encontrar fôlego suficiente para desafiar e experimentar novos limites. Em meio a esses verdadeiros mergulhadores, ganha destaque uma espécie de farol da literatura: a senhora Virginia Woolf. Autora de obras que são lidas como peças-chave da literatura ocidental do século XX – de Mrs. Dalloway (1925) a Orlando (1928), para ficar apenas em dois romances dentre as quase duas dezenas de publicações ficcionais –, Woolf se esmera em uma prosa realmente única. Bebendo de fonte semelhante a de Proust e de Joyce, a escritora inglesa reelabora a maneira de pensar o ponto de vista na ficção, dando vazão a um 29 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), dentro da área de Estudo Literários. Professor de literatura hispano-americana e língua espanhola, além de atuar como redator e revisor. 89 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 90 imbricado fluxo de consciência. O tempo realmente passa a ser de outra ordem, ganha, no mínimo, dois significados: vai do que é possível ser mensurado e contado pelos ponteiros do relógio a um estado psicológico ininterrupto, que escorre na velocidade do pensamento. Dessa maneira, na obra woolfiana, tudo tende a acontecer muito mais na interioridade das personagens e não propriamente nas ações praticadas. Tal relevância dada ao desconhecido ser, que é humano e consumido pelo tempo, explica o porquê de Virginia Woolf continuar ostentando tamanha dimensão entre as historiografias literárias, servindo como suporte para pesquisadores de diversas instituições, convivendo nos corredores ao lado de estudantes de literatura e, obviamente, preenchendo o dia a dia de milhares de leitores. Pensando no contexto brasileiro, parece expressivo que, apenas no ano de 2013, a obra de Woolf tenha ganhado oito novas traduções, além do relançamento em DVD da adaptação homônima cinematográfica de Orlando30. O romance referido, aliás, voltou a ganhar destaque ainda no primeiro mês de 2014, após o seu relançamento pela Companhia da Letras, sob o selo da Penguin, contando com a tradução de Jorio Dauster. Mais do que uma exemplificação prática do movimento que conduz o mercado literário e com interesse que vai muito além de um estudo quantitativo sobre as publicações que envolvem o nome da escritora, os dados ora citados têm apenas um fundamento: demonstrar que, paradoxalmente, quando se pensa em Virginia Woolf, o tempo dá a sensação de estar suspenso, alheio a qualquer condição de passagem. Sua relevância, ao contrário do tempo, não passa. A alusão construída tem motivação pontual e faz referência à publicação de uma obra inédita no país, fruto de um trabalho de pesquisa louvável e que, de antemão, tem tudo para enriquecer a fértil discussão em torno dos estudos woolfianos. Trata-se da obra O tempo passa, organizada pelo tradutor Tomaz Tadeu, lançada pela Editora Autêntica em 2013, sob o selo da Coleção Mimo. Para os leitores distraídos, o título pode referir-se a um romance menos conhecido da autora, texto que, muito provavelmente, acabou por ter sido fadado a ficar à sombra de suas grandes obrasprimas. Isso não seria nenhum demérito obviamente, apenas daria a oportunidade para que o leitor (seja ele movido pelo ofício, seja o levado pelo prazer) aumentasse em sua biblioteca discursiva mais um livro de Woolf. Em contrapartida, a partir da inferência dialógica dos mais atentos, é possível que mirar O tempo passa logo na capa, sem 30 A adaptação cinematográfica Orlando foi dirigida por Sally Potter, tendo sua estreia nas grandes salas em 1992. O relançamento em DVD corresponde à Coleção Folha Grandes Livros no Cinema. 90 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 91 contar com qualquer outra informação prévia, pode ter sido suficiente estopim para o acionamento de um característico fluxo de consciência woolfiano, com direito à explosão de sentimentos e sensações, culminando, como consequência, na impressão de que aquela frase já figurara estrategicamente em um romance lido. Ao virar o livro e ganhar as informações da contracapa, a inebriante constatação. Sim. O tempo passa refere-se exatamente ao capítulo II do célebre romance Ao Farol31, publicado, originalmente, em 1927. A surpresa continua na próxima frase explicativa e atinge, enfim, o leitor de chofre. Mais do que uma simples publicação isolada do capítulo central sobre a família Ramsay e o processo de deterioração de sua casa na ilha de Skye, este material congrega uma versão distinta da contida no romance, revisada pela própria Virginia Woolf, e que, até o ano de 1983, ficara em estado de latência, jogando com o seu tempo. A partir das contribuições de James M. Haule, será possível descobrir que tal versão havia sido realizada para uma publicação exclusiva na revista francesa Commerce, também no ano de 1927. A descoberta faz mais do que ecoar o conceito de clássico, a ideia de que uma grande obra nunca fala tudo o que ela se propôs a dizer (CALVINO, 2007). Trata-se, especificamente, de um discurso ainda não dito, escondido entre segundos e minutos, espelho de uma mente humana que é, tal como diria a própria Woolf, “uma poça de água inquieta” (WOOLF, 2003, p. 142). Assim, a nova publicação de O tempo passa acaba por se transformar também em um convite irresistível para uma volta ao seu próprio romance de origem, que, nessa instância, já não é mais o mesmo, assume outra função temporal. Irresistível, como é de se imaginar, a evocação a Calvino: “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.” (CALVINO, 2007, p. 12). É notório relembrar nesse estágio o que significou esteticamente a elaboração de Ao Farol, ficção delimitada entre o período antes e depois da Primeira Guerra Mundial. O abandono de uma propriedade e o antigo desejo do filho caçula de viajar de barco rumo ao farol são usados para descrever literariamente o esfacelamento de uma família, de um sujeito-casa que é gradativamente estilhaçado. Segundo muitos ensaístas, a elaboração do enredo e a construção de cada um dos personagens serviram de pano de fundo para que Woolf depositasse grande parte das insatisfações e reflexões dos 31 No Brasil, o romance Ao Farol também foi publicado em algumas edições sob o título Rumo ao Farol, resultado de uma escolha de seus tradutores. A obra subdividida em três capítulos, sendo eles: A Janela, O tempo passa e, por último, O Farol. 91 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 92 representantes do famoso Grupo Bloomsbury. No romance, como um todo, a complexidade humana é constantemente trazida à tona, a partir de enunciações carregadas de tensão: “James Ramsay, [...] pertencia ao número daqueles que não conseguem separar um sentimento do outro, mas, ao contrário, deixam que as expectativas futuras – com suas alegrias e tristezas – toldem o que no momento está ao alcance da mão.” (WOOLF, 2003, p. 07). Mesmo entre estudiosos de Woolf, a nova publicação O tempo passa pode ser uma grata surpresa, materializada com a sofisticação, o rigor teórico e o bom gosto gráfico necessários. O impacto causado pelo uso de uma jaqueta protetora, espécie de sobrecapa para o livro, é imediato, sobretudo pela carga polissêmica despertada pela ilustração, que amplia a imagem simbólica do abandono a partir da representação de uma possível sala de jantar, composta em primeiro plano por duas cadeiras, uma mesa e, sob essa, uma pilha de pratos empoeirados. Sem a proteção extra, o livro é composto de uma capa dura de cor preto fosco, trazendo apenas a inscrição, em baixo relevo, O tempo passa, seguido do nome Virginia Woolf. Na divisão do material, uma proposta inteligentemente especular ao romance de 1927 já que a obra também é dividida em três momentos, além de um breve posfácio. Na primeira parte, tem-se, enfim, a versão inédita de O tempo passa em proposta bilíngue, com o texto original, em inglês, sempre nas páginas pares e, ao lado, a tradução realizada por Tomaz Tadeu. Diferentemente da versão presente em Ao Farol, nesse O tempo passa, os leitores já notarão prontamente que o diálogo que iniciava a seção no romance simplesmente não existe. Ao contrário, a escritora parece preferir investir na composição de seu narrador heterodiegético, evidenciando a busca de um avassalador fluxo de consciência que caracteriza a prosista: “Escurecia. Nuvens cobriam a lua; uma chuva fina tamborilava no telhado nas primeiras horas da manhã, e a luz das estrelas e a luz da lua e toda a luz do céu e da terra se apagara.” (WOOLF, 2013, p. 09). Obscurecem-se, na verdade, grande parte das menções aos personagens da família Ramsay, a um ponto de que eles sejam citados rapidamente apenas ao final dessa versão. O que se tem é uma complexa trama descritiva, uma sensação de incômodo e degradação que assolava uma casa, fazendo os leitores refletirem a respeito do que mesmo se trata toda a história. A existência de uma pessoa interagindo no espaço é feita muito tempo depois do início da narrativa, citando a entrada da Sra. McNab, que surgira no ambiente “rasgando o véu de silêncio com mãos acostumadas à tina de lavar roupas, triturando-o com 92 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 93 botinas que haviam esmagado o cascalho ...” (WOOLF, 2013, p. 23). Há uma aproximação do ser humano e do objeto, ao ponto em que os dois são o mesmo ser, partilham da mesma degradação: “Estava além das forças de uma pessoa sozinha endireitá-la agora. Estava velha demais. [Sra. McNab] Doíam-lhe as pernas. (...) havia gesso caído no vestíbulo; a calha em cima da janela do escritório tinha entupido, deixando a água entrar; o tapete estava arruinado, inteiramente.” (WOOLF, 2013, p. 37). Pela ação do tempo, o ser perde suas referências e sentidos, tal como as calhas acumulam o lodo das folhas ou quando o papel de parede é subjugado pela umidade: “Não era só a mobília que se desintegrava; não restava quase nada de mente ou corpo pelo qual se pudesse dizer ‘isto é dele’ ou ‘isto é ela’;” (WOOLF, 2013, p. 09). Ganha ainda destaque a utilização de comparações para criar um indivíduo dúbio, camuflável em suas próprias inconstâncias, vivo a custo dos mistérios dos outros. Dentro da casa, quem circula passa a ser espião. Nessa versão de O tempo passa, ainda que com a existência de uma luz incidida pelo farol, a descrição parece mais sufocante, paralela a uma dor maior que circunscreve a narrativa (seria um reflexo da guerra?): “Então, o silêncio caía novamente; e então, noite após noite, e às vezes em pleno meio-dia, quando as rosas brilhavam e a luz voltava sua forma sobre a parede, tinha-se a clara impressão de que nesse silêncio e nessa indiferença e claridade caía o surdo ruído de alguma coisa que tombava.” (WOOLF, 2013, p. 31-33). De fato, ao reavaliar O tempo passa, Woolf consegue um resultado de um texto independente, autorrealizável pela sucessão de pensamentos desse narrador. Elucidando algumas das possíveis incógnitas sobre o estilo woolfiano e, claro, as razões e o contexto que motivaram Virginia Woolf a rever pontualmente O tempo passa, a nova publicação também privilegia dois ensaios especiais. Na segunda seção, ganha destaque o trabalho do crítico Michel Serres, intitulado Tempo, erosão: faróis e sinais de bruma, que realiza um ensaio-agradecimento à reavaliação realizada por Virginia Woolf na versão de O tempo passa. Serres toca em um ponto crucial quando se fala na compreensão de tempo para o complexo woolfiano, amparado na diferenciação léxico-semântica time/weather, além de valorar, entre outras questões, a característica de animismo da escritora inglesa (o fato de a mesma dar vida aos objetos) e a existência de uma entropia dentro do plano narrativo (conceito para fortalecer o sentimento de degradação, desalinhamento e desordem). 93 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 94 Para aqueles que ainda não parecem estar satisfeitos com a existência de uma versão outra do capítulo central de Ao Farol, o livro ainda traz o ensaio O tempo passa: a história de uma outra versão, assinada por James M. Haule. Retomando os passos realizados pela escritora e, depois de examinar correspondências trocadas por ela e o crítico francês Charles Mauron, Haule constatou o real incômodo sentido por Woolf em torno da realização e do encaminhamento de Ao Farol, sobretudo ao que dizia respeito ao seu capítulo II. Ainda graças à investigação, Haule acaba constatando que O tempo passa ganhou uma versão revisada por Woolf, traduzida para o francês por Mauron, especialmente para ocupar um dos espaços da revista Commerce. Preocupada por eventuais críticas de Roger Fry ou motivada pelo exercício do fazer literário e da dedicação de construir uma narrativa pautada pela fluidez consciente de narrador e personagens, é Haule quem sacramenta o significado da revelação sobre a versão revisada de O tempo passa após tantas décadas de desconhecimento: “Seu êxito final é um testamento não apenas de sua perseverança e inteligência, mas também de sua enorme fé na arte e na vida.” (HAULE, 2013, p. 111). No Posfácio da obra, Tomaz Tadeu ainda reserva uma grata satisfação para os leitores de Virginia Woolf. Além de comentários sobre a tradução e o processo de agrupamento dos dois ensaios para o conjunto da obra, o organizador revela que aquelas ilustrações presentes na jaqueta protetora do livro (e nas demais que aparecem enunciando cada seção) são fotos de obras pintadas pelo dinamarquês Jesper Christian Christiansen, exibidas na Galeria Mikael Andersen (Copenhague, 2012), fotografadas por Jan Sondergaard. A inspiração? Atemporal: O tempo passa. Eis aí um novo farol para se guiar. REFERÊNCIAS CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos?. 2 ed. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. WOOLF, Virginia. Rumo ao farol. Tradução de Luiza Lobo. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003. WOOLF, Virginia; SERRES, Michel; HAULE, James H.; TADEU, Tomaz (Org.). O tempo passa. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. Coleção Mimo. 94 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 95 A TRANSGRESSÃO DE ORLANDO (1992) Juliana Weinrich Shiohara32 O filme Orlando (1992) – dirigido por Sally Potter, com Tilda Swinton como protagonista – perfaz um ciclo contrassensual dividido em capítulos que começa na morte e termina no nascimento. Tal divisão em capítulos presente no filme não condiz explicitamente com a estrutura da obra homônima de Virginia Woolf que inspirou o roteiro. No livro Orlando – a biography (1928), temos uma estrutura básica de seis capítulos sem títulos, mas que tomam como leme temático essas seis subdivisões propostas no filme de Potter: “Morte”, “Amor”, “Sociedade”, “Política”, “Sexo”, “Nascimento”. Como toda adaptação cinematográfica, essa também comprime diversas passagens do livro, já que a narrativa das telas precisa de um certo pragmatismo para uma condensação visual condizente com o tempo de duração médio de um filme. Desta maneira, Orlando parte dessa estrutura em seis capítulos cinematográficos, além de dialogar com o contexto histórico imediato em que foi lançado: na película, vemos o final se passar no início da década de 1990, quando estreou, assim como no livro, a biografia de Orlando termina no momento de seu lançamento, em 1928. 32 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (2014), bacharel em Publicidade e Propaganda (2008), cursa também o Bacharelado em Estudos Literários – Português/Alemão – pela mesma instituição. 95 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 96 Dito isso, passo à expansão do tempo cronológico proposto por Woolf na obra e também em sua adaptação cinematográfica. Orlando é um jovem provindo de família abastada no início da narrativa, que data de 1600. Torna-se protegido da rainha Elizabeth I, de quem recebe, além de ricas propriedades, a seguinte ordem: “Do not fade. Do not wither. Do not grow old”33. O filme tem seu final datado do início da década de 1990 – ocasião de seu lançamento. Nesse momento, Orlando conta apenas com 36 anos de sua cronologia própria, uma vez que quase se passaram 400 anos na cronologia histórica. O mesmo se dá na obra de Woolf quando, em 1928, teríamos mais de 300 anos passados na cronologia histórica ao qual Orlando não responde: “Honestly, though she was now thirty-six, she scarcely looked a day older.” (WOOLF, 2000, p. 237). A personagem Orlando, portanto, transcende o tempo de vida humano, apresenta-se como um amadurecer que não concebe a morte iminente e dialoga fortemente com a transformação das dicções sociais e históricas, por conseguinte, com a mutação de valores do Ocidente, especialmente na Inglaterra, desde a Idade Moderna. Mutação é outro conceito chave em Orlando. Depois de servir como embaixador em Constantinopla, no capítulo “Política”, Orlando se vê diante de um sanguinolento conflito, algo que o transformou fortemente. Do mesmo modo como no capítulo “Amor” – depois que Orlando se desiludiu com sua paixão russa, Sacha –, toda vez que a personagem protagonista se frustra com alguma coisa de maneira intensa, dorme por cerca de uma semana sem possibilidade de ser despertada por ninguém. Permanece viva, com suas funções fisiológicas normais, mas completamente impassível de despertar de seu sono. Assim se deu depois do episódio em Constantinopla: Orlando dorme durante uma semana e acorda metamorfoseado em mulher, ao acordar, olha-se no espelho e diz: “Same person. No difference at all... just a different sex.”34. Por mais que essa metamorfose – retratada quase que de maneira cotidiana – suscite grandes abordagens sobre as questões de gênero e interpretações feministas, creio que a androginia de Orlando evoque mais um mal-estar provocativo do que uma discussão político-social 33 Acredito essa ser a fala do filme adaptada da seguinte passagem da obra literária: “He was to be the son of her old age; the limb of her infirmity; the oak tree on which she leant her degradation.” (WOOLF, 2000, p. 12). 34 Fala de adaptação da seguinte passagem da ficção de Woolf: “It is enough for us to state the simple fact; Orlando was a man till the age of thirty; when he became a woman and remained ever since.” (WOOLF, 2000, p. 103). 96 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 97 sobre o assunto, como bem coloca a própria Woolf na obra, logo após a transformação da personagem protagonista: “But let other pens treat of sex and sexuality; we quit such odious subjects as soon as we can.” (WOOLF, 2000, p. 104). Orlando vira mulher, no capítulo “Sexo”, passando a trajar-se como tal, o que é representado no filme de forma irônica, quase ridícula, mostrando como Lady Orlando tem dificuldades em transitar pelos cômodos da corte com um vestido de dois metros de envergadura, sustentado por moldes de arames abaixo de sua saia. O mesmo se passa anteriormente, em “Política”, com Orlando embaixador da Inglaterra em Constantinopla, mesmo em meio ao calor e secura do país, Orlando, lorde inglês de estirpe, seguia vestindo sua peruca comprida e densa de cachos platinados. Essencialmente, Orlando nos mostra a efemeridade do tempo, tratando sobre a não permanência do amor, do poder, da política, dos valores. Nos dois últimos capítulos do filme, “Sexo” e “Nascimento”, narra-se o processo no qual Orlando acaba perdendo a sua propriedade, doada pela rainha Elizabeth I ainda em 1660, pelo fato de ter se tornado mulher e não possuir herdeiros homens. É uma lógica condizente com o status social secundário do sexo feminino, mas, ao mesmo tempo, também exalta uma aspecto positivo do sistema social britânico contemporâneo: a perda de privilégios baseados em relações de poder e política. Orlando também abarca uma fina e mordaz crítica sobre a sociedade inglesa através desses quatro séculos, suas atitudes políticas e coloniais envolvidas em sua ascensão e queda como principal potência mundial. Para que toda a ironia com que a história seja retratada de maneira leve, Orlando se apresenta como uma personagem carismática e adorável, que exalta uma inocência no modo de ver e viver a vida. Mesmo tendo nascido em uma classe alta, na era elisabetana, adapta-se às mudanças sociais e históricas que perpassa, sempre conservando sua essência sensível, amadurecendo seu comportamento e certas atitudes de forma coerente com os valores de cada época e com as suas experiências pessoais de vida. Orlando é uma personagem em constante evolução. O jovem poeta Orlando vai se desenvolvendo durante toda a trama. Começa como trovador de declamação interrompida pela rainha Elizabeth I; também tem seus versos chacoteados pelo renomado poeta Nick Greene, a quem pede auxílio para aprender o engenho e a arte da literatura; já como Lady Orlando, convive na corte frequentada por escritores como Swift, Dryden, Milton, onde percebe certas posições e 97 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 98 comportamentos contraditórios de gênios que sabem tão bem transpor suas vivências em palavras, principalmente no que diz respeito às mulheres. Já no século XX, consegue publicar um poema intitulado “Seven Oaks”, ou “Sete Carvalhos”, esta árvore representando a longevidade material e espiritual do protagonista. Ele vive e se transforma com a tradição literária inglesa, partindo de uma poesia da corte elisabetana para finalmente ter seu trabalho publicado no século XX, já na época de Virginia Woolf, já em um momento de queda com a tradição, com a presença das inovações estéticas na dicção literária propostas pela própria autora. No caso do filme, essa evolução é ainda cronologicamente maior, “Seven Oaks” é lançado na década de 1990, por uma Orlando de calças, botas e mãe solteira. Orlando, por ser uma personagem evolutiva é, portanto, transgressora. Transgride a sua própria materialidade, a sua cronologia humana. Acompanha a transgressão do tempo e da história como esse sujeito trans-temporal, que sempre procura desestabilizar a tradição vigente, mudando com naturalidade os seus próprios valores. Em plano secundário, no filme, há a transgressão da tradição literária inglesa através do tempo. Já a obra Orlando – a biography, em um contexto mais amplo, transgride o gênero biografia, questões de gênero, tempo, narrativa e, ainda assim, é considerada uma das obras mais acessíveis da escritora Virginia Woolf. O subtítulo do filme para o português é Orlando – a mulher imortal, o qual simplifica comercialmente o sentido desta eternidade da personagem protagonista. Lançado pela primeira vez em 1992, no Brasil, em outubro de 2013, a Coleção Folha Grandes Livros no Cinema relançou o título para circulação nacional, por um preço justo, contando não só com o DVD – em versão original e restaurada, legendado para o português –, como também um livro ilustrado que analisa a obra literária de Woolf e sua adaptação para o cinema. Tal iniciativa não só propaga de maneira acessível grandes obras do cinema, como incita o interesse das massas pela literatura. A Coleção abrange 25 filmes inspirados em obras de grandes nomes do cânone literário mundial como: Kafka, Proust, Orwell, Wilde, Shakespeare, entre outros. O cinema é uma linguagem mais acessível e imediata de narrativa e, querendo ou não, o jogo visual seduz a atenção do espectador de maneira mais forte. Uma boa adaptação para o cinema pode despertar o interesse cultural também pela obra literária, levando o público a desenvolver também o empenho da leitura. Além disso, o mercado cinematográfico tem maior espaço publicitário e maior apelo comercial do que o editorial, garantindo assim uma maior abrangência de divulgação. Certamente, o cinema 98 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 99 deve ser visto como um agente propagador da literatura, assim como a literatura, desde sempre, é um agente inspirador e criativo de produções cinematográficas. Ficha Técnica – Orlando (1992) Direção: Sally Potter Roteiro: Sally Potter e Virginia Woolf Elenco, principais personagens: - Tilda Swinton como Orlando - Quentin Crisp como Elizabeth I - Jimmy Somerville como Falsetto/Anjo - John Wood como Arquiduque Harry - Heathcote Williams como Nick Greene - Billy Zane como Shelmerdine Locações de filmagem: - Blenheim Palace, Woodstock, Oxfordshire, England, UK - Hatfield House, Hatfield, Hertfordshire, England, UK - Khiva, Uzbekistan - St. Petersburg, Russia REFERÊNCIAS Coleção Folha Grandes Clássicos no Cinema, informações disponíveis em: http://livrosnocinema.folha.com.br/index.html. Acesso: 29 de abril de 2014. WOOLF, Virginia. Orlando. London: Penguin Classics, 2000. 99 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 100 O DESAFIO EDITORIAL DE TRADUZIR ORLANDO, DE VIRGINIA WOOLF Mauro Scaramuzza Filho (DTR 20130189, UFPR) Figuras 01 e 02 – Capa e contracapa da edição brasileira (Penguin Companhia, 2014) A edição deste dossiê estava quase fechada e, então, surge o desafio de resenhar não apenas uma tradução qualquer, mas a tradução de Orlando, texto de Virginia Woolf, editado pela Penguin Companhia, de nossa filial brasileira. Não poderíamos deixar de fazê-lo! No Brasil, a primeira tradução de Orlando foi realizada pela poeta Cecília Meireles – publicação da Abril Cultural, 1972. A conhecida “poeta das horas” era, como o protagonista do texto woolfiano, uma cidadã do mundo, poliglota de vasta cultura e, a autoria de sua tradução configura, por si só, um respeitável trabalho no âmbito das letras (grifos nossos). Não sabemos explicar o porquê da ausência das inúmeras ilustrações do volume textual, originalmente, criado por Virginia Woolf em 1928, na tradução inaugural brasileira. Duvidamos que seja omissão por parte de Cecília Meireles, porém acreditamos ser um ato deliberado promovido pela editora Abril nos idos de 1972. Seria a repressão política? Não nos cabe cogitar os motivos que levaram a tal falha, mas afirmamos que o texto fonte sofreu grave extirpação de nove ilustrações que figuravam na proposta do original de Virginia Woolf. Essas imagens que ilustravam o volume woolfiano eram fruto de um conjunto narrativo que promovia um diálogo entre o texto 100 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 101 verbal e o visual. Nessa edição brasileira, a concepção criativa de Mrs. Woolf não foi respeitada. A nova tradução de Orlando, pela Penguin Companhia, foi executada, primorosamente em termos linguísticos, por Jório Dauster. Este segmento nacional da Penguin apresenta-nos uma edição brochura que repete o tipo de encadernação da norteamericana. Mantém a parte das notas e a introdução de Sandra M. Gilbert, estudiosa da obra woolfiana na UCLA (Califórnia, EUA). Gilbert possui larga experiência nos estudos do gênero feminino – e a obra de Virginia Woolf sempre despertou grande interesse entre as feministas. Ressaltamos que as traduções literárias de Jório Dauster sempre se mostraram impecáveis, dentro dos limites do ofício. Seu currículo como diplomata – coincidentemente, semelhante ao cargo do protagonista de Orlando – foi sempre ligado a questões relevantes quanto ao comércio internacional de nossos produtos, em especial o café brasileiro. Nas belas letras, Dauster traduziu, por duas décadas, a obra de Vladimir Nabokov (nove títulos). Não se limitou apenas a este escritor, mas aventurouse entre os textos de J.D. Salinger, Ian McEwan e Philip Roth, entre outros. Portanto, em termos linguísticos, contamos com um serviço tradutório de primeira grandeza. O volume da Penguin Companhia possui o acréscimo de uma resenha de autoria do saudoso Paulo Mendes Campos (1922-1991) sobre Orlando. Mais uma voz nacional é somada ao texto de Virginia Woolf. Originalmente, o comentário do cronista e poeta Mendes Campos foi publicado no jornal carioca Diário da Tarde, em 1981. Mais que uma simples resenha, o artigo de Campos exalta o charme que envolveu não apenas a obra de Mrs. Woolf, mas detalhes de sua personalidade e curiosidades como o apelido da escritora – conhecida, entre seus íntimos, como Goat, bode. Favoravelmente, ele observa a respeito da androginia do protagonista homônimo de Woolf. Cita um pensamento a partir do diário de Katherine Mansfield (apud CAMPOS, 1981/2014) de que “‘não somos nem machos, nem fêmeas’. Escolhi o homem que desenvolverá e ampliará em mim o que há de masculino; ele me escolheu para engrandecer nele o que há de feminino” (nossas ênfases). Sugere que a ambivalência dos gêneros figurava em outros famosos textos contemporâneos ao de Woolf, como o mais famoso poema de T.S. Eliot (1888-1965), The Waste Land. Paulo Mendes Campos observa que na criação de T.S. Eliot, a figura mais relevante era a do sábio Tirésias, um velho andrógino da antiguidade, ao mesmo tempo vidente e cego. Afirma que Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) já divisara uma 101 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 102 androginia espiritual em todos os grandes criadores – inclusive William Shakespeare (1564-1616) – e adianta que na concepção de Sigmund Freud (1898) havia crença na bissexualidade fundamental do ser humano. Colocação que era compartilhada por Carl Jung (séc. XX) a respeito do psiquismo como coexistência de um estado masculino e feminino – fato comprovado pelos estudos atuais sobre a bissexualidade biológica tanto na anatomia quanto na bioquímica, pela presença concomitante dos hormônios masculino e feminino em diversas espécies animais, inclusive no ser humano. Tema polêmico e sempre atual abordado poeticamente em Orlando e muito bem explorado por Mendes Campos. Em comparação com o volume de Orlando editado pela Penguin Modern Classics (EUA, 2000), o livro nacional lançado pela Penguin Companhia subtrai as nove ilustrações que, originalmente, compunham o texto literário de Virginia Woolf e, respeitosamente, figuravam na edição norte-americana do ano 2000 (capa e contracapa abaixo). Inserido no volume americano estão todas as ilustrações que Woolf criteriosamente selecionou para – de modo muito engenhoso e lúdico – sugerir que o protagonista existiu. Propósito este criado pela escritora que estabelece um diálogo que flui, diretamente, entre o texto verbal de sua ficção e o texto visual das ilustrações que escolheu para compor sua ficção, no intento de validar a biografia forjada de Orlando (personagem) em Orlando. Abaixo, anexo capa e contracapa da edição do ano 2000 – que remetem ao filme homônimo (capa colorida) e à foto da própria ficcionista (no topo da contracapa) –, adicionado à inclusão das imagens presentes no original de Woolf (capa da edição feita pela Hogarth Press em 1928, em preto e branco, direita): Figuras 03 e 04 – Capa e contracapa da edição da Penguin Classics (2000, EUA) (Fig. 02) com a inserção de todas as ilustrações da edição da Hogarth Press (1928) (Fig. 03), com detalhe para a capa em P/B. 102 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 103 O que teria acontecido com a escolha de representar a proposta interestética de Virginia Woolf na edição da Penguin norte-americana (2000) que não foi considerada pela edição da Penguin Companhia brasileira (2014)? Obviamente, não teremos as respostas. Mas, pensando bem: Qual o valor que damos ao diálogo entre texto (verbal) e imagem (visual)? A julgar pelo lapso ocorrido na edição brasileira, para nós, ainda é difícil aceitar o fato de que a literatura apoia-se inúmeras vezes na ilustração. Quem ousaria propor uma edição do mais famoso livro de Lewis Carroll (Alice’s Adventures in Wonderland, and Through the Looking-Glass) (1865), sem as ilustrações de John Tenniel? Qual de nós pensaria em Don Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616) sem as ilustrações de Gustave Doré, o qual também imortalizou as cenas das obras de Charles Perrault (1628-1703) (os contos Cinderela, Barba Azul, Gato de Botas, Pele de Asno, para citar apenas alguns). Como imaginar o conto de Hans Christian Andersen (1805-1875), O rouxinol, sem as ilustrações do próprio escritor? Quando procuramos por uma das histórias de Ariano Suassuna (1927-2014), em constante diálogo entre texto verbal e visual, não concebemos a ausência de suas próprias ilustrações, ou mesmo de sua esposa Zélia. Foi desse modo que nos deleitamos com o Romanceiro da Inconfidência (1953), em cuja obra de Cecília Meireles (19011964) encontramos as belíssimas gravuras contemporâneas de Renina Katz, ressignificando os versos. Com toda certeza, jamais leríamos – da mesma forma que o fizemos – os contos infantis de Beatrix Potter (Era Vitoriana, século XIX), intencionalmente editados com suas próprias ilustrações que traduziam sua proposta ficcional intersemiótica – uma excelente escritora e cartunista que figura ausente do cânone literário universal. Em nossa opinião, de posse do conhecimento da concepção que resultou no texto completo de Orlando (1928), editado pela Hogarth Press – a editora que pertenceu a Virginia Woolf e seu esposo – torna-se impossível obter-se o mesmo efeito de leitura deste livro sem as imagens visuais. Trata-se de perda irreparável a subtração das ilustrações nas edições nacionais de Orlando. Ao considerar que a Penguin americana publicou o texto woolfiano na íntegra, acreditamos ser lamentável a Penguin brasileira editar o livro mutilado. Trata-se de nove – 9 – ilustrações e não apenas de uma. Registramos aqui o abuso editorial. Nesta reflexão crítica sobre a edição da Penguin Companhia do texto Orlando, concentramo-nos não em comentar, resumidamente, o livro de Virginia Woolf, mas, sobremaneira, a respeito do grande desafio que tem sido editar e traduzir este volume de 103 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 104 Woolf. Abordamos sobre os cortes danosos que prejudicam sua recepção e impedem o leitor de receber a proposta de ressignificação concebida pela escritora. Abaixo, as imagens contendo as nove ilustrações (capa e ilustrações internas) que compunham o livro na edição da Hogarth Press (1928) e foram integrante do corpo do texto da edição da Penguin Classics (EUA, 2000): Figuras 05 e 06 – Capa ilustrada e conjunto de imagens visuais contidas no volume original da Hogarth Press (1928) que foram inseridas, cuidadosamente, na edição da Penguin Classics (2000, EUA). Em resumo, independente de traduções, o livro Orlando, de Virginia Woolf (1928) trata da história de um poeta nobre que atravessa os séculos compondo seu poema “O carvalho”. No início da trama, Lord Orlando é um nobre da corte de Elizabeth I. Ele é designado embaixador do império britânico e sai pelo mundo, conhecendo culturas e costumes diferentes, em especial o Oriente Médio. O jovem Orlando assim se mantém – sem envelhecer – durante toda a história. Sua saga perdura em torno de três séculos e meio, ou seja, 340 anos de história – 1588 a 1928, acabando no ano em que o próprio texto woolfiano é editado. 1928 é o ano em que o pai de Vita Sackville-West vem a morrer (nossa ênfase). A falsa biografia, escrita de forma epistolar, configura uma homenagem de Virginia Woolf que é feita para a poeta, geógrafa e paisagista, Vita Sackville-West, contemporânea da senhora Woolf. A homenageada é uma nobre, casada e mãe de um herdeiro, a qual tem seu direito à herança questionado quando da morte de seu pai, em 1928. O momento crucial em que Woolf publica o livro coincide com a perda da posse de Knole – um dos mais tradicionais castelos ingleses situado em Seven Oaks, ou Sete 104 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 105 Carvalhos – por Victoria Sackville e sua família. De acordo com a lei, o herdeiro deveria ser varão. A admiração de Virginia Woolf por Vita Sackville West, a qual foi uma das amantes da escritora inglesa, fez com que Woolf colhesse elementos biográficos da trajetória de Vita para compor uma narrativa que oscila entre a biografia da nobre poeta e a história da Literatura na Inglaterra. A despeito da obra chamar-se Orlando, a Biography (Orlando, uma biografia), uma possível corruptela de land (proveniente de Or-land-o), ou seja, “terra”, caracteriza-se por uma obra de ficção. No caso de V. Woolf, escrever era praticamente uma compulsão, um meio de expressar seu enorme apreço por Vita West e o faz, segundo seus registros de diário, escolhendo imagens (visuais) a partir de pinturas antigas e fotografias no álbum da família da própria Woolf e de Vita, que pudessem validar a biografia forjada do protagonista (grifo nosso). Ocorre que, no meio da narrativa, a trajetória de Orlando (personagem central) sofre uma mudança radical. Ao acordar, após um sono profundo, percebe-se com o sexo trocado – passando a se tornar uma mulher – até o final da história. Imediatamente, a nova Lady deixa a embaixada no exterior para retornar à Inglaterra, pois a partir da mudança de seu sexo surgem restrições quanto aos seus direitos. A questão de gênero é tratada de modo muito natural, assim como a androginia do discurso literário. Do Renascimento ao século XX, a saga do protagonista questiona os direitos do cidadão, como mulher, além de efetuar uma reflexão a respeito da história da Literatura inglesa. A proposta transgressora da obra de Virginia Woolf foi bem aceita em sua época e o livro tornou-se, em pouco tempo, um recorde de vendas. Houve pouca resistência por parte de alguns críticos tradicionalistas, quanto ao gênero literário, fato que impulsionou ainda mais o sucesso da obra. Graças ao modo inovador e atraente de sua prosa lírica, o estilo woolfiano estabeleceu-se e consolidou a obra de Virginia Woolf junto ao cânone literário universal. No final dos anos 1960 e início da década de 1970 ocorreu uma explosão de feminismo nos EUA e na Europa, o que resultou na reedição de muitas obras de Virginia Woolf. Imediatamente, a escritora voltou aos recordes de vendagem e até hoje sua obra é consumida quase que freneticamente tanto por parte do grande público leitor, quanto por parte dos acadêmicos. No caso de Orlando, admite-se o grande desafio que tem sido não apenas traduzir para outras culturas o que a obra representa, mas especialmente editar a proposta intermidiática, intersemiótica, original do texto woolfiano – um intercâmbio entre as letras e a ilustração. 105 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 106 Uma edição que subtraia o conjunto de nove ilustrações que acompanham a concepção estética do livro de Virginia Woolf estará subtraindo parte da narrativa. Não atentar ao modo como o volume foi concebido pela escritora interfere no processo de leitura inicialmente fundado por Woolf. Orlando com nove laudas a menos representa uma alteração inconcebível para qualquer marca editorial, principalmente as de renome nacional. Pode-se dizer que a imortalidade que transcende o protagonista e domina o texto de Orlando é, paradoxalmente, atingida pela ação danosa das grandes editoras nacionais. Torna-se necessário observar que o estudo elaborado por Virginia Woolf possuía o intento de reconduzir a visão do leitor, reaproximar textos (verbal e visual) e recontextualizar o foco da história da “biografia forjada” (nossos grifos) do protagonista de Orlando, por meio de ilustrações minuciosamente selecionadas para o volume, ressignificando conteúdos. Acreditar que o leitor brasileiro não possui espírito crítico diante de um pecado editorial como este representa um acinte que subestima nossos direitos e nossa cultura35. Identificamos um grave problema de editoração que acompanha Orlando desde sua primeira edição no Brasil, em 1972, ou seja, o de privar o leitor da obra woolfiana dos direitos sobre as nove laudas ilustradas ausentes. O registro deste fato convida-nos a explorar o problema em novas incursões acadêmicas, a respeito do desafio em editar Orlando no Brasil. REFERÊNCIAS WOOLF, Virginia. Orlando. Tradução de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1972. _____. Orlando: a Biography. New York: London: Penguin Modern Classics, 2000. _____. Orlando: uma biografia. Tradução de Jório Dauster. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014. 35 Nesta linha de pensamento, acaso a presença de ilustrações não fossem necessárias à Literatura, a fala inaugural da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2014 não contaria com a ênfase de Agnaldo Farias a respeito da negligência com que, historicamente, as edições brasileiras têm tratado o trabalho de ilustradores como Millôr Fernandes[, entre outros]. Parêntesis aberto como digressão a respeito do que tem sido praticado pelo mercado editorial brasileiro: uma cultura editorial que desvaloriza ilustrações e ilustradores. 106 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 107 A PREMIADA TRADUÇÃO DE MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF, POR TOMAZ TADEU (EDITORA AUTÊNTICA), 2013 Mauro Scaramuzza Filho (DTR 20130189, UFPR) A editora Autêntica apresenta-nos uma tradução de Mrs. Dalloway premiada com o 3º. lugar no Prêmio Jabuti 2013. Seu tradutor, Tomaz Tadeu, desenvolve um trabalho primoroso, o qual acrescenta ao título uma nova visão tradutória. O volume em capadura traz uma jaqueta protetora com traços que esboçam a imagem de um aeroplano do início do século XX, o que lembra algumas passagens do romance. Abaixo da capa protetora, o material impecável da hardcover sugere o extremo cuidado com a edição da série Mimo. São 272 páginas que não contêm apenas o romance, mas traz “Uma Introdução a Mrs. Dalloway” (p. 199) feita por Virginia Woolf na edição de 1928. Com certeza, uma preciosidade como poucas. Nem sempre encontraremos uma introdução da própria escritora falando sobre sua obra, seus detalhes. Ao final do volume, também podemos contar com as impressões do autor da tradução, no artigo “Mrs. Dalloway e Mrs. Brown: a arte de Virginia” (p. 203). Trata-se de um posfácio em que Tomaz Tadeu nos relata os detalhes da carreira da ficcionista em torno do romance Mrs. Dalloway. Nas páginas seguintes, o tradutor acrescenta os dados biográficos da escritora em “Virginia Woolf: uma vida” (p. 215). Em complemento, a edição oferece aos leitores uma 107 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 108 detalhada “Cronologia” (p. 221), um “Índice Onomástico” (p. 227) com minúcias que favorecem o entendimento da obra, além das “Notas” explicativas (p. 243), as “Notas ao Mapa de Londres” (p. 263) e, finalmente, as “Referências” (p. 265) que favoreceram a pesquisa de autoria da tradução. A página 269 ostenta o sumário e é seguida pelos detalhes da ficha catalográfica e dos direitos de edição. Todos são detalhes técnicos que poderiam deixar de ser comentados, mas que em sua organização favorecem o brilhantismo da edição. Por sua esmerada apresentação e seu conteúdo minudenciosamente editado, reconhecemos que seu valor não apenas reproduz uma demanda de mercado, mas também um primoroso trabalho de publicação para um público leitor cada vez mais exigente, ávido por boas traduções e belos volumes para coleção. O romance retrata um dia na vida de uma cidadã de Londres. A Senhora Dalloway é uma socialite que pretende organizar uma festa ao final do dia. Ela sai para comprar flores e ao mesmo tempo em que um turbilhão de pensamentos e lembranças convidam-na a repensar suas escolhas de vida, a vivacidade do momento presente, da cidade grande, tornam seus sentimentos concorrentes às suas múltiplas sensações. Como pontua a escritora na parte “Uma Introdução à Mrs. Dalloway”, seu texto de apresentação para o romance já famoso reeditado em 1928, há um protagonista e um antagonista. O antagonista chama-se Septimus, um herói de guerra. Ao passo que ele submerge em pensamentos suicidas que deflagram sua morte, a protagonista, Senhora Dalloway, retorna à vida após longo recolhimento devido à forte influenza. O palpitar do coração de Clarissa Dalloway lembra as batidas do Big-Ben que marca o tempo do dia que se consome nos preparativos da recepção dos Dalloway. Clarissa escolhera a vida segura de uma socialite, um casamento de conveniência, sem paixões, um modo de felicidade em que a razão da mulher prevalecera. A Senhora Dalloway determinara seu futuro, sua vida conjugal e não se entregara às paixões mundanas da juventude. O balanço de vida feito por Clarissa Dalloway reafirma suas escolhas como as melhores opções para uma mulher. Ela era a imagem da anfitriã perfeita, com um casamento seguro e sem altos e baixos. Suas relações sociais traduzem estabilidade e compartilhamento, pois seu lar era frequentado por embaixadores, ministros e cidadãos de todos os lugares do globo. A residência dos Dalloway era um microcosmo do cosmopolitismo britânico de Londres. Ali, Clarissa Dalloway celebrava os bons tempos do período entre-guerras e abria seus salões num tributo kantiano à paz perpétua. A recepção chega ao fim e a anfitriã tem certeza de que 108 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 109 nascera para isso, para receber e congregar cidadãos do mundo, em plena harmonia. Os pensamentos e lembranças da Senhora Dalloway misturam-se aos diálogos, entrecortados, exigindo do leitor moderno uma maior atenção em conformidade à concorrência dos múltiplos elementos que passaram a compor o ambiente da vanguarda modernista na Europa do entre-guerras. As técnicas composicionais elaboradas por Virginia Woolf envolvem sinestesia, a mistura de vozes em discursos que configuram a técnica do monólogo interior indireto, conhecido na Psicologia como fluxo de consciência e a coexistência de valores espaçotemporais numa prosa lírica que encontrou seu espaço em meio ao patamar dos grandes escritores da literatura universal. A primorosa tradução de Tomaz Tadeu justifica a sua premiação no Jabuti de 2013. REFERÊNCIAS WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Tradução e Notas de Tomaz Tadeu. 2.ed. Série Mimo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 109 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 110 RESUMOS 110 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 111 SECÇÃO EXCLUSIVA PARA RESUMOS DE TRABALHOS NÃO PUBLICADOS 111 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 112 FELICIDADE NAS IMAGENS VERBO-VISUAIS DAS CENAS DE JARDIM NA FICÇÃO DE VIRGINIA WOOLF: KEW GARDENS E MRS. DALLOWAY EM DIÁLOGO COM A PINTURA E A FILOSOFIA Mauro Scaramuzza Filho (DTR 20130189, UFPR) RESUMO: A ficção de Virginia Woolf (1882-1941) apresenta imagens verbo-visuais de cenas de jardim que evocam o sentimento de felicidade ilustrado na pintura impressionista e na filosofia clássica. Em especial, o conto Kew Gardens (1919) e o romance Mrs. Dalloway (1925) apresentam inúmeras cenas que transcorrem em meio ao paisagismo urbano. O teor vanguardista do modernismo inglês representado por Virginia Woolf encerra palimpsestos da filosofia de Epicuro (341 a.C-270 a.C.), além de estabelecer diálogo com a obra do Impressionismo (França, c. 1850-1926), entre outros. A intertextualidade promovida por Virginia Woolf em relação a outras mídias é tão intensa quanto o resgate de um certo otimismo progressista dos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Por intermédio de sua obra, a ficcionista elaborou uma ampla reflexão crítica à sociedade de sua época, ao comentar costumes e valores éticos. Sua ficção reflete um sentimento de prazer moral e confraternização que evoca tanto a Filosofia do Jardim de Epicuro (Período da Antiguidade Clássica), quanto a prosperidade do período de fin de siécle do círculo de Paris. Em favor desse estudo entre a ficção modernista e a retomada de valores de estética e pensamento passados, nossa reflexão assenta-se a partir d’A carta sobre a felicidade, de Epicuro, dos estudos sobre textos de Julia Kristeva, Gérard Genette, Irina Rajewsky e Liliane Louvel, entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf. Intertextualidade. Palimpsestos. Filosofia. Pintura. 112 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 113 A PAISAGEM URBANA COSMOPOLITA NA FICÇÃO DE VIRGINIA WOOLF E SUA RELAÇÃO COM A PINTURA Mauro Scaramuzza Filho (DTR 20130189, UFPR) RESUMO: Este estudo destina-se à análise da paisagem urbana idealizada na ficção de Virginia Woolf (1882-1941) e sua relação com algumas obras da pintura europeia, conforme a visão cosmopolita presente na metafísica de Immanuel Kant. O conceito kantiano de convivência harmônica entre os cidadãos inspirou grandes reflexões no Grupo de Bloomsbury, do qual a escritora era figura central. Na ficção, em especial no conto Kew Gardens (1919), mas também no romance Mrs. Dalloway (1925), Woolf propõe uma sociedade diversificada que habita e circula, pacificamente, nos cenários urbanos de Londres, a metrópole cosmopolita par excellence. Parques, praças e boulevards compõem cenários idealizados nas grandes cidades da Europa, numa espécie de Éden urbano, na primeira metade do século XX. Esses ambientes não comportam apenas canteiros de flores e lugares arborizados para o trânsito de pessoas que provêm de todo o globo terrestre. Igualmente, abrigam carros, ônibus e toda sorte de máquinas que a tecnologia do mundo moderno pode oferecer. A agitação da cidade tem seu ápice por meio da figura do aeroplano, um elemento poético que sugere o rompimento de fronteiras. Na concepção da ficcionista, o mundo todo parece convergir para um só lugar, Londres, no período entre as duas grandes guerras. Sua ficção reproduz os conceitos da metafísica kantiana, de coexistência entre pessoas de origens diferentes, numa atmosfera de liberdade. Trata-se de uma visão internacionalista própria de Bloomsbury, que empresta imagens da pintura do Impressionismo, como o movimento frenético de um cenário em que pessoas, máquinas e o ambiente natural convivem harmoniosamente entre si. A produção literária woolfiana enfatiza um otimismo que se aproxima tanto da visão da metafísica dos costumes de Kant, quanto da harmonia social, prosperidade tecnológica e certa inquietação, imortalizadas na pintura que antecedeu os anos da Primeira Guerra Mundial. A escritora expõe as marcas deixadas pela guerra, mas, em sua ficção, enaltece e faz dominar um certo otimismo que evoca uma atmosfera de prosperidade e felicidade e a crença na transformação do mundo por seres humanos que coabitam pacificamente, desfrutando das benesses que a tecnologia e os novos tempos trouxeram. Em favor da pesquisa, a parte teórica assenta-se sobre os estudos Julia Kristeva e Gérard Genette (intertextualidade), Linda Nochlin e Liliane Louvel (intermidialidade) e Immanuel Kant (filosofia), Christine Froula (história), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf. Immanuel Kant. Cosmopolitismo. Pintura. Intertextualidade. 113 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 114 O SIGNO POÉTICO COMO ELEMENTO DE PERFORMANCE NOS ECOS HERMÉTICOS PERCEBIDOS EM MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF Mauro Scaramuzza Filho (DTR20130189, UFPR) RESUMO: Este artigo discute a presença de signos poéticos como elementos de performance identificados no romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Os componentes verbais representam ecos herméticos sem aparente sentido lógico. Sua incidência em três segmentos destacados em itálico nesse romance woolfiano está associada à imagem da mulher e imagens primitivas ancestrais à civilização. A ocorrência desses signos, aparentemente, desarticulados na prosa representa uma proposta verbal desafiadora ao leitor, na produção de um conjunto de sons em busca do sentido semântico, não encontrado. O ritmo e a lógica do texto literário de Woolf são rompidos em prol de uma reflexão a respeito não apenas da produção de sentido discursivo, mas também na origem da linguagem gerada por forças primitivas da natureza e ligadas à mulher. O estudo a respeito do signo poético como elemento de performance na ficção woolfiana assenta-se sobre teóricos como Marvin Carlson (2010) e Paul Zumthor (2007), entre outros estudiosos da recepção e das expressões líricas de performance. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Performance. Virginia Woolf. THE POETIC SIGN AS A PERFORMANCE ELEMENT IN THE HERMETIC ECHOES PERCEIVED IN VIRGINIA WOOLF’S “MRS. DALLOWAY” Mauro Scaramuzza Filho (DTR20130189, UFPR) ABSTRACT: This paper discusses the presence of poetic signs as performance elements perceived in Virginia Woolf’s novel Mrs. Dalloway. The verbal components represent hermetic echoes without apparent logical sense. Its incidence in three italicized segments in this woolfian novel is linked to woman’s image, and to primitive images ancestors to civilization. The occurrence of these signs, apparently nonarticulated in the prose represents a challenging verbal proposition to the reader, in the production of a sound assemblage in search for the semantic sense, that is not found. The rhythm and the logic of Woolf’s literary text are ceased in favor of a consideration in respect not only of a discursiveness’s meaning production, but also in the language’s roots produced by nature’s primitive forces, and connected to the woman. The research about the poetic sign as a performance element in the woolfian fiction is based on the studies of Marvin Carlson (2010) and Paul Zumthor (2007), among others. KEYWORDS: Literature. Performance. Virginia Woolf. 114 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 115 ANEXOS 115 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 116 PASSAPORTE E ASSINATURA DE VIRGINIA WOOLF (Concessão FB – Public Domain) 116 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 117 DETALHE DE PUBLICAÇÃO DO JORNAL THE NEW YORK TIMES (1941) (Concessão da imagem FB – Public Domain, The New York Times) 117 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 118 HOMENAGEM DA REVISTA TIME (Concessão FB – Public Domain, Time The Weekly Newsmagazine) 118 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 119 ESCRITÓRIO DE VIRGINIA WOOLF (Monk’s House, Sussex, ENG.) (Concessão FB – Public Domain, Monk’s House) 119 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 120 PLACA DO IMÓVEL DE V.WOOLF EM BLOOMSBURY (LONDON, ENG.) (Concessão FB – Public Domain) 120 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 121 EDIÇÃO L&PM 121 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 122 EDIÇÃO HARDCOVER (COSAC NAIFY) 122 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 123 EDIÇÃO ESCOLAR BRASILEIRA 123 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 124 EDIÇÃO EUROPA-AMÉRICA 124 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 125 EDIÇÕES EM LANÇAMENTO BOX ESPECIAL 125 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 126 SELFIE FORJADO – INSTAGRAM (Livre circulação, Google 2014) 126 WOOLFIANA ano 2014 volume 1 número 1 Dossiê Temático # 1 Virginia Woolf página 127 PUBLICAÇÃO SEMESTRAL IMPRESSA ISSN 2357-7312 REGISTRO INTERNACIONAL EAN-13: 977.2357.731.00-5 ADENDO 14.01 LICENÇA PARA LIVRO EM ARQUIVO DIGITAL PDF WOOLFIANA DOSSIÊ TEMÁTICO DIGITAL VIRGINIA WOOLF PDF PERIÓDICO ACADÊMICO GRATUITO SEM FINS LUCRATIVOS 127