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VERÃO EM FESTA COM
JACQUES TATI
A obra completa de Jacques Tati
pela primeira vez em Portugal em
VERSÕES DIGITAIS RESTAURADAS
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
1
ELOGIO DE TATI
por Serge Daney
Cada filme de Tati marca ao mesmo tempo:
1) um momento na obra de Jacques Tati; 2) um
momento na história do cinema francês; 3) um
momento na história do cinema. Desde 1948,
os seus seis filmes são talvez os que pontuam
mais profundamente a nossa história. Tati
não é só um cineasta raro, autor de poucos
filmes, aliás todos bons; é, vivo, um ponto de
referência. Todos nós pertencemos a um período
do cinema de Tati: assim, eu pertenço àquele
que vai de Mon Oncle (1958: um ano antes
da Nouvelle Vague) a Playtime (1967: um ano
antes dos acontecimentos de Maio 68). Apenas
Chaplin, a partir do sonoro, teve esse privilégio:
estar presente mesmo quando não filmava e,
quando filmava, estar à hora exacta, quer dizer
um pouco adiantado. Tati: antes de mais uma
testemunha.
[…] Se olharmos em perspectiva para os seis
filmes realizados por Tati desde 1948 (Jour de
Fête), percebemos que eles traçam uma linha
de fuga que é, mais coisa menos coisa, a do
cinema francês do pós-guerra. […] Quem é que
ainda hoje é capaz de isolar, de mimar, os gestos
mais quotidianos (o de um criado de café a
servir à mesa), e, ao mesmo tempo, de falar da
concepção de Playtime como se se tratasse de
uma tela de Mondrian? Tati, evidentemente.
Além disso, cada um dos seus filmes é um
marco-testemunho de “como vão as coisas” no
cinema francês de há trinta anos para cá. Se Jour
de Fête testemunha da euforia do pós-guerra,
se Les Vacances e Mon Oncle da aparente
perenidade de um género muito francês (a sátira
social) no quadro do “cinema de qualidade”,
Playtime, grande filme antecipador, constrói a
Défense antes da existência da Défense, mas diz
também que o cinema francês já não pode tratar
o gigantismo da realidade francesa, que perde
terreno nela e que, como ela, vai degradar-se ao abrir à internacionalização, ou seja à
americanização, a que já ameaçava o carteiro
de Jour de Fête. Efectivamente, os dois filmes
seguintes já não são nem inteiramente franceses
(Trafic é uma co-produção, um filme muito
“europeu”), nem inteiramente cinema (Parade
é uma encomenda da televisão sueca).
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VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
Evidentemente, Tati não é apenas a testemunha
exemplar e desolada do recuo do cinema francês
e da degradação do ofício (ainda que cada um
dos seus filmes seja como um documentário,
uma perspectiva abissal das suas condições
de possibilidade). Ele toma o cinema nas
condições em que o encontra (tecnologicamente
também) e curiosamente, ele que tantas vezes
foi acusado de passadismo, não pensa senão
em inovar. Começamos a saber que Tati não
esperou por ninguém para repensar ex nihilo,
a partir de Jour de Fête, a banda sonora do
cinema, mas sabemos que no outro extremo
da cadeia, quase trinta anos mais tarde, Parade
(escandalosamente ignorado quando da estreia,
pelos “Cahiers” também) é uma extraordinária
exploração no domínio do vídeo. Na verdade,
o grande tema dos filmes de Tati, através dos
avatares da produção (ou graças a eles), é
aquilo a que chamamos hoje com uma certa
facilidade os media. Não no sentido restrito dos
“grandes meios de informação”, mas no sentido,
mais próximo de McLuhan, das “extensões
especializadas das faculdades mentais ou
psíquicas do homem”, dos prolongamentos
do seu corpo no todo ou em parte. Os media,
são já, por excelência a história de Jour de
Fête, em que um carteiro, à força de refinar
na transmissão da mensagem, a perde (é
uma criança que a herda, mas desviada pelo
caminho por um circo, não a irá transmitir: bela
metáfora da intransitividade da arte moderna),
no momento em que o espectador tiver
compreendido que a mensagem é ele, o carteiro,
Tati. Mas os media são também o fogo-de-artifício lançado cedo de mais e por engano no
fim de Vacances e que transformava Hulot em
espantalho luminoso, prefigurando o fim genial
de Parade em que cada um – seja quem for – se
torna rasto luminoso de uma cor numa paisagem
electrónica (numa entrevista, Tati explica que
tinha substituído os pinos dos malabaristas por
pincéis). E os media eram também, em Mon
Oncle, esse parti-pris muito surpreendente para
a época de não fazer rir à custa dos programas
de televisão comprada pelo casal, mas de reduzir
essa televisão ao espectáculo das variações de
luz fria e baça iluminando o jardim ridículo.
A lista não tem fim e poderiam citar-se cem
outros exemplos.
DIÁLOGO COM JACQUES TATI
Entrevista por Jorge Silva Melo
O essencial é que haja a todo o momento e para
qualquer um (numa espécie de democratização
do cómico que é a grande aposta dos
últimos três filmes de Tati e sem dúvida o
reconhecimento de que todos nos tornámos,
pouco a pouco, cómicos) uma possibilidade
de tornar-se medium. Do porteiro de Playtime
que, com o vidro partido, se transforma na
porta toda, à criada aterrorizada com a ideia
de passar sob o raio electrónico que abre a
porta da garagem onde os portões se fecharam
estupidamente (Mon Oncle), há para os corpos
(numa indiferenciação crescente) a possibilidade
(a ameaça?) de se tornarem por sua vez um
limite, um limiar.
Tati, num quarto do Hotel Ritz, renitente
a entrevistas, mas disposto a dialogar. E a
entrevista fez-se.
P.: Parece-nos que os seus filmes estabelecem
francamente duas espécies de mundos opostos:
o mundo estabelecido dos “outros”, o mundo de
um outsider, Hulot…
Jacques Tati: Sim, é isso…
P.: As relações entre eles são uma confrontação
puramente binária: Hulot e os outros. E o gag é o
arquétipo dessa relação?
in Cahiers du Cinéma, nº303, Setembro de 1979,
incluído no catálogo Jacques Tati,
editado pela Cinemateca Portuguesa, 1987
Tradução de Vera Futscher Pereira
JT: Sim, sim…
Sobre o cinema e os “gags” tinha Jacques
Tati ideias bastante precisas. “A possibilidade
de abrir uma varanda sobre a vida e de fazer
conhecer todas as riquezas da existência dos
homens é uma das finalidades do cinema”, disse,
um dia, o cineasta de origem russa nascido
Jacques Tatischeff em 1908. E o “gag”? “O ‘gag’
é democrático, atinge sem preconceitos ricos e
pobres, pequenos e grandes, malandros e bem
comportados.”
JT.: Sim. Mas também da observação dos outros
sobre Hulot. Por exemplo, um presidente
de uma grande empresa pode muito bem
interromper o seu discurso se, por acaso, depara
com uma personagem que nada tem a ver com
ele, como é o caso de Hulot. Neste caso, é o
presidente que é o observador.
O primeiro “gag” de Tati é a sua desmesurada
altura. Ao contrário de Charles Chaplin ou
de Buster Keaton – que criaram, no cinema,
personagens cómicos do tipo “pequeno homem
sozinho contra a multidão” – o senhor Hulot
de Tati é o homem enorme, esguio, também
ele “sozinho contra a multidão” mas com o
privilégio de olhar de cima – de muito de cima
– o mundo que o rodeia. “Não se pode evitar o
confronto entre Tati e Chaplin, mas que isso sirva
para tornar evidentes as diferenças”, escreveu
Henri Agel e com toda a razão. Hulot não é
um vagabundo sentimental com pretensões a
melhorar o mundo. O desejo de interferir, de
ajudar, é tudo em Chaplin-Charlot, que ajuda
cegas, paralíticas, órfãs e crianças a encontrar
um equilíbrio ou uma porta para a felicidade.
P.: O gag provém sobretudo da observação que
Hulot realiza sobre o mundo dos “outros”?
P.: Mas nesse mundo dos outros há sempre
personagens que se aproximam de Hulot (a
velha inglesa e as crianças de As Férias, o
sobrinho do Tio. Em Play Time, o nome dessa
personagem é Barbara…
JT.: Nunca tinha pensado nisso… não, não, de
modo nenhum… estas coisas acontecem… os
que estão perto dele são, de certo modo, os
inocentes. Tenho a impressão que a rapariga que
chega a Paris, que tem aquela personalidade,
que leu, que quer descobrir coisas, sente-se
muito mais só do que a turista riquíssima que
tem tudo organizado.
P.: E Hulot também está só?
JT.: Sim, está só. […]
Leonor Pinhão, Público Magazine, 31 de Março de 1996
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
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P.: Mesmo no seu cinema, há uma certa
tendência por parte da crítica em aproximá-lo
mais da tradição francesa de um Max Linder do
que da slapstick comedy americana…
JT.: Acho que está certo… mas acho que poderia
perfeitamente ter escrito um conto russo… não
sei se serei tipicamente francês… sou francês
porque faço filmes em França. Se os fizesse em
Itália…
P.: No cinema francês de agora há uma grande
influência do cinema americano… Truffaut, por
exemplo. Ou Jean-Pierre Melville, que é uma
pura cópia…
JT.: Ah, Melville é isso mesmo. Truffaut é
diferente.
(A conversa é interrompida por um telefonema.
Começamos por outra via.)
P.: O gag é, na maior parte dos filmes cómicos,
uma interrupção da linha geral. Você consegue
uma unidade do filme apesar da multiplicidade
dos gags…
JT: Em Play Time, foi necessário um certo rigor.
Na maior parte dos filmes cómicos há uma ideia,
um gag que nos diverte e que nós queremos à
viva força meter dentro do filme. Aqui precisei
de um maior rigor e, por exemplo, quando eu
tinha um gag melhor do que o que lá está mas
que comprometeria a unidade da construção,
não hesitei em tirá-lo. O que eu tentei foi
valorizar o gag em relação à sua situação. Ele
aparece naturalmente na construção e o que
tentei foi que todos os gags fossem verosímeis.
Que não fossem gags para um cómico do
cinema, mas situações divertidas que possam
acontecer a mim, àquela senhora… é nesse
aspecto que Play Time me parece significar uma
evolução dentro do cinema cómico. […] é um
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VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
filme que respeita a presença das coisas e que
não interfere. […]
P.: Assinava a frase de Rossellini “as coisas estão
ali, para quê manipulá-las?”
JT.: Assinava de certeza. […]
P.: Gostaria de fazer um filme dramático?
JT.: … Não, quer dizer… acho que já há demais…
P.: Como é que elabora os seus argumentos?
JT.: Trabalho com um amigo que é pintor,
Jacques Lagrange. Fechamo-nos durante dois
meses, começamos a trabalhar de manhã, não
muito cedo, as ideias não vêm assim muito
cedo… Eu escolho sempre a linha geral. Creio
que não poderia filmar um argumento feito
por outro. Acho que podia, mas fá-lo-ia mal. E
então procuramos os dois… ele traz um ideia, a
coisa passa-se como um jogo de pingue-pongue.
Como não se pode jogar sozinho pingue-pongue,
eu atiro uma bola, ele responde “sim, mas…”
e atira outra bola, eu digo “não, isso não tem
muita piada” ou “sim, acho bem” e por aí fora…
P.: Não trabalha sobre um inventário de gags?
JT.: Não, não de modo nenhum. O que acontece
é que uma pessoa está, por exemplo, num
aeroporto e vê uma senhora com uma mala.
Tenho boa memória visual. Registo as coisas.
Se no tal jogo de pingue-pongue é preciso um
efeito com uma senhora como aquela, lembro-me de a ter visto no aeroporto nessa situação.
Tenho gavetas por todo o lado e sirvo-me delas.
Excerto de uma entrevista de Jorge Silva Melo
a Jacques Tati, conduzida com a colaboração
de Fernando Guerreiro e Eduardo Paiva Raposo,
publicada em A Capital, 20 de Março
de 1968, reproduzida no livro Século Passado,
de Jorge Silva Melo, Livros Cotovia, 2007
HÁ FESTA NA ALDEIA Jour de Fête (1949)
Elenco: Jacques Tati, Guy Decomble, Paul Frankeur
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA Legendas: Português | Duração: 79’
PRÉMIOS:
Festival de Veneza ‘49 – Selecção Oficial, Em Competição
Festival de Veneza ‘49 – Prémio Melhor Argumento
Mas a visão de Jour de Fête tal como foi
feito em 1947 (quando as filmagens tiveram
lugar) mostra como Tati era um humorista
atento à realidade não apenas “técnica” (todos
os seus filmes acompanham as transformações
técnicas que transformam a vida quotidiana)
mas também “social”. Jour de Fête é (agora)
o filme mais “transparente” de Tati, através do
qual se vê uma época. Neste caso o pós-guerra
em França. A ocupação da Europa pelo exército
americano é mostrada num breve plano com
um jeep da polícia militar, que François (Tati)
“desorienta” fazendo-o entrar pelo campo
adentro. O papel que a “invasão” americana teve
na cultura e mudança de hábitos, e a influência
do seu cinema, é a base das mais divertidas
cenas do filme, com o carteiro tentando imitar
os carteiros americanos que vê na barraca
de cinema. Mas também a própria situação
francesa de então não escapa ao olhar atento e
irónico de Tati, sendo a sequência da instalação
do mastro paradigmática, tanto pelo que mostra
(o pau com a bandeira francesa que se procura
manter direito), como o que se insinua através
da figura do carteiro, com Tati surgindo quase
como um “clone” de De Gaulle, reforçado por
algumas tiradas do diálogo (as referências ao
“líder” e à necessidade de “autoridade” que é
preciso para dirigir a operação, etc.)
Sara-a-dias, 2015
Manuel Cintra Ferreira, folhas da Cinemateca Portuguesa,
Julho de 1999
Nota: A versão original de Há Festa na Aldeia, a preto-e-branco,
perdeu-se. Desde que uma versão a cores do filme foi lançada
em 1995, duas outras versões a preto-e-branco, inicialmente
concebidas por Tati, não tinham voltado a ser trabalhadas.
Em 2012, foi digitalizada uma dessas versões a preto-e-branco,
para uma resolução de 4k. O restauro de Há Festa na Aldeia
que apresentamos neste programa realizou-se a partir de uma
dessas cópias a preto-e-branco.
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
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AS FÉRIAS DO SR. HULOT Les Vacances de Monsieur Hulot (1953)
Elenco: Jacques Tati, Louis Pérault, André Dubois
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA Legendas: Português | Duração: 88’
PRÉMIOS:
Festival de Cannes ‘53 – Prémio da Crítica Internacional
Oscars ‘56 - Nomeação Melhor Argumento
Gostaria de dizer quanto é magnífico este
filme. Mas não sei dizer bem como… Creio
que faz parte daquelas obras, que surgem
em quadrantes vários, vivendo sobretudo da
não-necessidade de comentários, de grandes
“exegeses” (embora, é claro, estas se possam
fazer). […]
Os planos iniciais de Les Vacances de Monsieur
Hulot, com aquele mar batendo a areia, a “praia”
solitária, é bem o mostrar das direcções opostas,
mas ‘convergentes’ que marcarão o filme e esta
figura de Tati. De vários lugares convergem para
ali (e é o que de seguida vemos) os veraneantes,
os citadinos que vão a banhos. De comboio,
em camionetas, de bicicleta, de automóvel.
O mundo dos campos surge neste começo do
filme como aquilo que se vai atravessar (v. Jour
de Fête), aquilo por onde se passa para chegar
ao local de férias, à praia, ao mar. Para neste
reproduzir, ao ralenti, em descanso, os mesmos
movimentos, o viver igual que se trouxe.
Claro que Hulot chega depois (sozinho no seu
descapotável – tínhamo-lo ‘visto’ nos campos)
e aquela corrente de ar que põe a sala em
burburinho é já o seu elemento natural.
Gil Abrunhosa, folhas da Cinemateca
Portuguesa, Janeiro de 1987
Marta Monteiro, 2015
Tati retira dos planos dos seus filmes tudo o
que é supérfluo. A sua câmara abre-se, com
uma janela sobre uma paisagem determinada,
povoada pelos mais variados tipos que têm em
comum um ar mais ou menos vulgar. O humor
nasce de algo que se desloca nessa harmonia,
por vezes de forma imperceptível, aqueles
gestos quotidianos que à força de os repetirmos
perderam o sentido e não damos por eles.
Gestos e sons. Se a modernidade do cinema de
Tati passa pelo seu aspecto “primitivo”, outro
sinal dessa modernidade é a forma como o
som é trabalhado, perturba o conjunto ou nele
se integra. Quer os ruídos, quer os diálogos se
destacam da mesma forma que os referidos
gestos: banais os primeiros, mas adquirindo um
sentido novo (o barulho do vento que abala os
rituais dos veraneantes quando a porta da sala
de espera se abre), e os segundos limitados ao
essencial, e, como em qualquer conversa, feitos
de comentários perdidos, apanhando-se um ou
outro fragmento. Se o cinema moderno nasceu
de muitas experiências e filmes, Les Vacances
de Monsieur Hulot, de Tati e Viaggio in Italia,
de Rossellini, são as obras que definitivamente
lançam os seus alicerces.
Manuel Cintra Ferreira, folhas da Cinemateca Portuguesa,
Abril de 1994
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VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
O MEU TIO Mon Oncle (1958)
Elenco: Jacques Tati, Jean Pierre Zola, Adrienne Servantie
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA Legendas: Português | Duração: 111’
PRÉMIOS:
Festival de Cannes ‘58 - Prémio Especial do Júri
Oscars ‘59 – Melhor Filme Estrangeiro
Que no fim, este seja um filme de rir (e
como a cor, o uso esplêndido que Tati faz dela
– aquece e esfria esse riso!) – e sorrir – nem o
disse, perante a beleza pungente e humilde que
é a sua e a daqueles cães correndo à solta, no
início e no fim, deste filme em que só nós é que
rimos à gargalhada!
Gil Abrunhosa, folhas da Cinemateca Portuguesa, Janeiro de 1987
Catarina Sobral, 2015
Tentemos então ver Mon Oncle, a partir de
alguns traços e pormenores que assinalem quer
a relevância da experiência, quer o grau de
inovação que o filme introduzia na obra de Tati,
quer ainda a manifestação do génio humorístico
do realizador (e “gags” geniais, como é óbvio,
não faltam aqui).
Em primeiro lugar, parece importante
assinalar a mudança de cenário, em relação
aos filmes precedentes. Quer Jour de Fête,
quer as Vacances eram filmes “rurais”, é em
Mon Oncle que a cidade e o espaço urbano
são introduzidos. E são-no, numa espécie
de assunção dessa mudança, de maneira
extraordinariamente fluida, como se Tati
quisesse registar a transição: através do senhor
Hulot, a única personagem capaz de circular
com o mesmo à vontade (ou falta dele) por
todos os sítios, passamos do bairro popular e
antigo (filmado como uma persistência, ou um
vestígio, do campo na cidade) ao bairro elitista e
moderno, ao espaço definitivamente urbano que
aqui é o verdadeiro objecto do trabalho de Tati.
Depois, é o puro prazer que o visionamento de
um filme de Tati sempre oferece. Observar a
meticulosa e imaginativa construção dos “gags”,
sentir em Tati o mais legítimo herdeiro moderno
dos grandes burlescos clássicos (Buster Keaton,
sobretudo) – e ver na sua arte a continuação
de uma tradição que está hoje, e até prova
em contrário, definitivamente perdida. Arte
e tradição de que Mon Oncle preserva até a
tendência para uma certa melancolia: que dizer
daqueles planos que pontuam o filme, com
os cães e os miúdos – a não ser que são eles,
juntamente com o “indomável” Hulot,
as criaturas mais livres e mais “móveis” que Tati
mostra em Mon Oncle?
Luís Miguel Oliveira, folhas da Cinemateca Portuguesa, Out. de 2007
O reencontro com O Meu Tio pode ser tanto mais
estimulante quanto, há quase meio século, Tati
foi um dos primeiros a ter a percepção do modo
como os valores ligados ao moderno design
estavam a mudar, de facto, todos os aspectos da
vida humana, dos espaços públicos às zonas de
intimidade familiar.
João Lopes, Diário de Notícias
É um filme perfeito, […] projectando-se,
ao mesmo tempo, numa radical modernidade
(de que são exemplos o trabalho sobre a banda
de som, em particular o uso dos ruídos,
e o estilizado artificialismo de todo o filme).
[…] Enorme sucesso de público e de crítica,
multiplamente laureado – do Prémio Especial
do Júri de Cannes ao Óscar de Melhor Filme em
Língua Estrangeira – O Meu Tio foi o zénite da
carreira de Tati.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
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PLAYTIME – VIDA MODERNA Playtime (1967)
Elenco: Jacques Tati, Barbara Dennek, Rita Maïden
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA Legendas: Português | Duração: 124’
PRÉMIOS:
Grande Prémio da Academia do Cinema ‘68
Playtime é - tal como Os Tempos Modernos
de Chaplin - uma pura obra-prima, que concilia
as virtudes do génio criador e do divertimento
popular, inteligência crítica e fantasia inspirada,
observação realista e deriva burlesca. [...]
Sem dúvida que a sátira da globalização,
infinitamente subtil, mostra, meio século
mais tarde, uma presença surpreendente. O
desenvolvimento do consumismo e dos tempos
livres das massas, a reprodução dos objectos e
dos comportamentos, a perda de referências
culturais e das relações afectivas em prol do
funcionamento e do rendimento, o conformismo
generalizado, o recuo político face à economia,
fazem de Playtime o filme que mostrou, mais
cedo e com mais força, a missa burlesca de
um século XX desfigurado pela tecnologia, que
Fritz Lang já tinha anunciado, em 1926, com
Metropolis. [...]
Autor desta obra-mundo que é Playtime, Tati é
em todo o caso um Deus vingador, e o Sr. Hulot
- justamente designado por André Bazin como
“l’Ange Hurluberlu” - o seu mandatário. Descido
à Terra para revelar a incomensurável vaidade
e a escandalosa pretensão da perfeição dos
homens.
Jacques Mandelbaum, Le Monde
Com a sua visão crítica sobre o mundo moderno,
a sua melancolia face a Paris e a uma França
que desaparecem, Playtime poderia passar por
um filme reaccionário. Mas não o é de todo.
Porque se Tati transmite uma visão irónica
sobre a evolução da sociedade, ele fá-lo sempre
com graça e ligeireza, sem qualquer ponta de
amargura ou insistência. Para além disso, a
forma como ele filma os arranha-céus, os halls
do aeroporto, os corredores das multinacionais
prova que ele sabe também captar a sua beleza.
[…] Em Playtime, Tati não rejeita o mundo
moderno, filma-o com brilho. Mas fustiga
poeticamente os seus excessos e absurdos,
oferecendo um olhar melancólico sobre o que
vai desaparecer e que valeria o esforço de ser
conservado.
8
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
João Fazenda, 2015
A força com que Tati elabora a representação
de Paris é reveladora da sua lucidez sobre a
evolução das coisas e da sua inteligência do
cinema: os edifícios, os escritórios, os locais
de trabalho e o trânsito densos. Quanto à
Paris emblemática dos grandes monumentos
históricos, não aparece senão através de reflexos
nos vidros: a Torre Eiffel ou o Arco do Triunfo
não são mais do que espectros, de imagens
imateriais, um museu virtual que se perfila
furtivamente na cidade moderna. […]
Jacques Tati filmava a sua época, previa o
futuro e inventava as ferramentas estéticas
convenientes ao seu objecto. Playtime é a
prova deslumbrante disso: trinta e cinco anos
após o seu lançamento, este filme cintilante,
desconcertante e inesgotável permanece
também um objecto crítico de primeira ordem
para pensar a nossa época – e o seu cinema.
Serge Kaganski, “Le fabuleux destin de Monsieur Hulot”,
em Les Inrockuptiles, nº354, Julho de 2002
TRAFIC - SIM, SR. HULOT Trafic (1971)
Elenco: Jacques Tati, Marcel Fraval, Honoré Bostel
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA Legendas: Português | Duração: 96’
PRÉMIOS:
National Board of Review ‘73 – Melhor Filme Estrangeiro
Trafic é uma espécie de balanço e um
ponto final na obra de Tati – Parade será um
regresso, e uma reivindicação, mais do que uma
interrogação, à fonte do palhaço-inspirador –
filme sobre o atraso, que se organiza em paralelo
com a transmissão televisiva, em directo, da
chegada à lua (símbolo duma nova era, dum
novo espaço e dos novos media), Trafic inclui,
à medida que os vai encenando, a crítica dos
gags e das referências cinematográficas que
constituem a própria matéria do cinema. Nesse
sentido, Trafic é porventura o último filme
verdadeiramente “moderno” – isto é, antes
da era “do vazio”, a era pós-moderna.
Saguenail, O Olhar de Ulisses, edições Porto 2011,
Capital Europeia da Cultura / Cinemateca Portuguesa
Museu do Cinema
André Letria, 2015
Este observador incessante e divertido, que é
Tati nos seus filmes, curiosamente, não cede à
narrativa; antes, a sua visão “abstracta” do real –
num sentido que diríamos próximo da pintura ou
da música – é que está muito perto dos meios
da pintura contemporânea (e é o que torna tão
certeira a sua análise – ou visão?). E talvez esteja
também perto de uma tradição literária – e Tati
é não-literário por excelência! – de que Gogol é
expoente.
Isto para dizer que Trafic é o filme mais
“narrativo” de Tati. Esta odisseia do automóvel
e dos protagonistas que é a viagem até ao salão
automobilístico de Amsterdam (viagem que
aponta outras; v. os lançamentos espaciais que
o mecânico vê pela T.V.), não é só a revelação
“épica” do automóvel, as peripécias cómicas
da sua e da nossa existência; mas é igualmente
a descoberta que a public-relations girl faz de
si, isto de passagem, como sempre sucede em
Tati, entre a sinfonia rodoviária e as paragens
campestres… Em certo sentido, é um filme de
um romance de aprendizagem por automóvel:
da sua entrada em cena, na fábrica, em
que ela crepita, eficiente, “portátil” – com a
indumentária “ultra-moderna”, passando pelo
seu MG desportivo, onde se veste, tirando o
chapéu da roda sobresselente até à fralda de
fora e jeans com que termina; e quando esta
rapariga “sem nome”, mudada pelo trânsito,
pela viagem, e por aqueles desvios – paragens
– chora o cãozinho (o gag é estupendo!) que
julga morto – é que a descoberta de si se inicia,
deixando de estar convertida ao ritmo daquele
tráfico, e encontrando um caminho no meio do
tráfego…
Diga-se, com isto, que nos seus planos amplos,
onde tudo se integra, Tati nos dá uma aceitação
do moderno e contemporâneo, que é uma das
suas grandes criações.
Gil Abrunhosa, folhas da Cinemateca Portuguesa, Janeiro de 1987
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
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PARADE Parade (1974)
Elenco: Jacques Tati, Karl Kossmayer, Pierre Bramma
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA Legendas: Português | Duração: 89’
Rodado em vídeo, com uma estrutura que
segue de perto a de um hipotético programa
televisivo de variedades, Parade é uma obra
singularíssima na filmografia de Tati. Em
primeiro lugar, claro, pelas peculiares condições
e circunstâncias em que o rodou. Mas também,
e sobretudo, por aquilo que fez com elas. Não
será um “filme-testamento”, por maior que seja
a tentação de olharmos assim para o derradeiro
filme de um gigante como Tati (que de resto não
pensou Parade como seu último trabalho), mas
lá que passa por aqui uma ideia de “súmula”
dos principais fundamentos da sua obra, eis
algo que parece difícil de desmentir. Depois da
acumulação e da sofisticação de Playtime (via
ainda seguida no magistral Trafic), Parade é
quase um desnudar, um regresso ao básico, uma
espécie de raio X aplicado ao cinema de Tati.
Num certo sentido, há aqui uma dimensão quase
pedagógica (Tati, no papel de director do circo,
a funcionar como um “demonstrador”, como
um professor de mecânica cómica) que se liga
às fabulosas curtas-metragens onde o cineasta
“explicava” como devem andar os carteiros ou
como se deve jogar ténis, por exemplo. Parade
é Tati sem Hulot, deixando perceber que Tati
sem Hulot é Hulot sem gabardine – fica a
mecânica, a estrutura, o esqueleto, mas sem
qualquer capa. Tudo o resto é a mesma coisa. […]
Parade é, finalmente, o mais genuíno
“documentário” daquele que, para alguns (e
de maneira não tão provocatória quanto pode
parecer), é o maior documentarista da história
do cinema. Não sabemos, em Parade, o que
foi encenado (os momentos, no “prólogo”, nos
bastidores ou no bengaleiro; a participação,
espontânea ou preparada, do público); mas o
certo é que tudo – aquilo que se suspeita ter
sido encenado e o que não se suspeita – é visto
e mostrado da mesma maneira. Tati perante
uma audiência “ao vivo”, Tati perante uma
orquestra de figurantes – vai dar ao mesmo, e
Parade é, no fundo, o documento dessa relação.
Luís Miguel Oliveira, folhas da Cinemateca Portuguesa, Out. de 2003
10 VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
PRÉMIOS:
Festival de Cannes ‘74 – Selecção Oficial,
Fora de Competição
London Film Festival ‘75 – Grande Prémio
Madalena Matoso / Planeta Tangerina, 2015
CURTAS METRAGENS
DE JACQUES TATI
As curtas-metragens de Jacques Tati foram
restauradas na sua totalidade por iniciativa de
Les Films de Mon Oncle, por dois laboratórios:
L’Immmagine Ritrovata (Itália) foi responsável
pelo restauro da imagem e L.E Diapason (França)
pelo restauro do som. O primeiro passo foi
encontrar o material original existente nos
arquivos pessoais de Jacques Tati, nos Archives
Françaises du Film, através de uma rede de
cinematecas e em vários laboratórios. Deste
modo, foi possível obter estas curtas-metragens
raras, “resgatadas” à invisibilidade.
PROCURA-SE BRUTAMONTES
On Demande une brute (1934)
Realização: Charles Barrois
Elenco: Jacques Tati, Hélène Pépée, palhaço Rhum
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA
Legendas: Português | Duração: 23’
DOMINGO ANIMADO
Gai Dimanche (1935)
Realização: Jacques Berr
Elenco: Jacques Tati, palhaço Rhum
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA
Legendas: Português | Duração: 22’
CUIDA DO TEU GANCHO
ESQUERDO Soigne ton gauche (1936)
Realização: René Clement
Elenco: Jacques Tati, Louis Robur, Max Martell
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA
Legendas: Português | Duração: 13’
A ESCOLA DOS CARTEIROS
L’Ecole des facteurs (1946)
Realização: Jacques Tati
Elenco: Jacques Tati, Paul Demange
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA
DIÁLOGO COM JACQUES TATI
Entrevista por Jorge Silva Melo
P.: Começou com curtas-metragens…
JT.: Ah, é a única escola verdadeira! Não há mais
nenhuma. Porque nas curtas-metragens vocês
podem exprimir-se, fazer os vossos esboços.
E na longa-metragem há uma responsabilidade
financeira; e não se pode defender o filme
contra o produtor… Tem que se lhe dar garantias
de que ele vai ganhar dinheiro, sem o que
ele não fará a produção. Nas curtas, não;
há a possibilidade de, antes do filme longo,
se experimentar. E são essas experiências
que permitem uma evolução e uma técnica.
Há todas as possibilidades de expressão sem
o perigo de estarmos a estragar a noite aos
espectadores – a curta pode, quando muito,
melhorá-la. E, aliás, há muito poucos autores
que começaram directamente pela
longa-metragem. Penso em Renoir, em Clair,
em Clément. Todos aprendemos imenso
com essas experiências.
Excerto de uma entrevista de Jorge Silva Melo
a Jacques Tati, conduzida com a colaboração
de Fernando Guerreiro e Eduardo Paiva Raposo,
publicada em A Capital, 20 de Março
de 1968, reproduzida no livro Século Passado,
de Jorge Silva Melo, Livros Cotovia, 2007
ESPECIALIDADE DA CASA
Dégustation maison (1976)
Realização: Sophie Tatischeff
Elenco: Dominique Lavanant, Gilberte Genia
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA
Legendas: Português | Duração: 12’
FORÇA, BASTIA Forza Bastia (1978)
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA
Realização: Jacques Tati e Sophie Tatischeff
Legendas: Português | Duração: 26’
Legendas: Português | Duração: 16’
AS AULAS NOCTURNAS
Cours du soir (1967)
Realização: Nicolas Ribowski
Elenco: Jacques Tati, Marc Monjou
VERSÃO DIGITAL RESTAURADA
Legendas: Português | Duração: 30’
O cinema de Jacques Tati teve desde sempre uma
estreita relação com a ilustração. A Leopardo Filmes
lançou um desafio a seis ilustradores portugueses para
criarem novos cartazes para as seis longas metragens
do realizador. São esses cartazes que reproduzimos
neste programa e estão expostos no Espaço Nimas
e no Teatro Municipal Campo Alegre.
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
11
Programação completa em:
www.medeiafilmes.com
facebook.com/medeiafilmes
O RESTAURO DOS FILMES
DE JACQUES TATI
Ao mesmo tempo que a filmografia de Jacques
Tati se mantém única na História do Cinema,
as especificidades técnicas da sua rodagem
e pós-produção eram igualmente invulgares
e avançadas para a sua época. Apesar de
estas técnicas estarem hoje ultrapassadas,
elas testemunham, no entanto, a extrema
modernidade de Tati; ele usava os melhores
meios tecnológicos à sua disposição para criar um
universo fílmico distintamente Tatinesco. […]
Hoje, são necessárias técnicas especiais para
respeitar os métodos de filmar de Tati no restauro
dos seus filmes. Para além disso, Tati revia e
remontava constantemente os seus filmes. Anos
após o seu lançamento, ele ia a uma projecção,
reparava quando é que os espectadores se
riam e remontava todas as cópias em função
disso. Este rigor perfeccionista levava a muitas
alterações e modificações, não só na imagem
mas também nos negativos físicos e nas cópias,
acelerando inevitavelmente a sua deterioração.
Tati preocupava-se muito com a preservação de
todos os materiais originais dos seus filmes na sua
produtora, mas não podia prevenir o seu natural e
inevitável desgaste.
12
VERÃO EM FESTA COM JACQUES TATI
Tornou-se então essencial levar a cabo um restauro
de todos os seus filmes, com dois objectivos em
mente: manter o seu trabalho disponível para
o público através de novos formatos digitais, e
conservá-lo de forma a que pudesse voltar a ser
usado por gerações futuras.
[…] Foi necessária uma enorme sensibilidade para
investigar minuciosamente a vida e o trabalho
de Tati, de modo a perceber as suas intenções,
as suas dúvidas e medos, o que lhe agradava e
o que lhe desagradava. Os materiais para este
trabalho foram os seus diários de rodagem, notas,
documentos de produção, correspondência e
fotografias. Compreender os filmes de Tati, antes
e durante o restauro, foi uma viagem meticulosa
até à identificação última de uma montagem
original, a recuperação da qualidade da luz ou do
grão da imagem na época, redescobrir como Tati
criava as suas bandas sonoras ou identificar uma
mancha estranha. Era essencial restaurar tanto a
imagem como o som com respeito absoluto pela
obra, não acrescentar nem retirar o que quer que
fosse, removendo apenas os defeitos causados
pelo material envelhecido e pela degradação.
Cada filme foi meticulosamente examinado de
forma a localizar, identificar e analisar os melhores
materiais que restavam. Cada tipo de restauro usou
a tecnologia que melhor se adaptava, de acordo com
a necessidade de não adulterar os trabalhos originais:
o objectivo primordial era assegurar que os filmes de
Jacques Tati possam durar para sempre.
Studiocanal