Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde
1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise
v. 5, n. 2, 2003
EDITOR
Gildo Katz
CONSELHO EDITORIAL
Ana Rosa C. Trachtenberg • Elfriede Susana Lustig de Ferrer • João Baptista
Novaes Ferreira França • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de
Filc
COMISSÃO EDITORIAL
Ane Marlise Port Rodrigues • Augusta G. Heller • Heloisa Fetter • Silvia S.
Katz
BIBLIOTECÁRIA
Geisa Costa Meirelles
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
LAY-OUT
Josimo Silva Lopes – Speed Press
DIGITAÇÃO
Nilza Cidade Cardarelli
SECRETÁRIA
Antonia Lima Iohann
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Professor Antônio Paim Falcetta
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected]
(55-51) 3333.6857
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 273
Capa:
AMENHOTEP I E AMÓSIS-NOFRETIRI
22
Egito, Novo Império (XVIII Dinastia), provavelmente de
Amenhotep III, 1390-1353 a.C.
Pedra-sabão, 9 x 8,3 cm
3072
A figura principal desta díade fragmentada é o deificado Amenhotep I, que é mostrado usando uma peruca
núbia curta, saiote, braceletes e segurando um mangual em sua mão direita. Está ao lado de sua mãe, a rainha deificada
Amósis-Nofretiri, que usa um elaborado ornamento para cabeça com a forma de um abutre, um vestido justo e um colar
largo. Buracos de encaixe no topo da cabeça de cada uma das figuras tinham provavelmente a função de fixar adornos.
Nas costas da peça estão gravados dois pares opostos de colunas de hieróglifos, uma coluna dupla para cada figura.
No tex to atrás do rei lê-se: “O bom deus, filho de Amon, (...)/ Rei do Alto e Baixo Egito, Djeserkare (...).” A coluna atrás
da rainha pode ser traduzida deste modo: “A esposa do deus, nascida de um deus, a esposa do rei (...)/ sua mãe, a mãe
do rei, Amósis-Nofretiri (...).”
Depois de suas mortes, tanto Amenhotep I, segundo rei da XVIII Dinastia (cerca de 1514-1493 a.C.), quanto
sua mãe Amósis-Nofretiri, esposa do Rei Amósis I (cerca de 1539-1514 a.C.) foram venerados como protetores divinos
da enorme necrópole de Tebas. Desfrutavam de especial popularidade entre os trabalhadores oficiais da necrópole,
instalada no vilarejo de Deir el-Medina. A razão para a devoção prestada ao casal não é de todo clara, embora já se tenha
especulado que Deir el-Medina teria sido fundada durante o reinado de Amenhotep I. Parece que ambos compartilharam
uma sepultura em Dra Abu’l Naga, em uma tumba a princípio preparada para Amósis-Nofretiri e mais tarde ampliada
para um segundo sepultamento. Em 1913-14 esta tumba foi aberta em nome do quinto Conde de Carnarvon por Howard
Carter, o arqueólogo conhecido pela descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922.
Sua escultura, que talvez seja proveniente de um pequeno santuário doméstico, está ligada a um grupo de
estatuetas em pedra-sabão esmaltadas que representam a própria Amósis-Nofretiri ou a Rainha Tiye, esposa de
Amenhotep III, o faraó sob cujo reinado esta peça foi provavelmente esculpida..
—CNR
Esta rainha-mãe, retratada afetuosa e intimamente ao lado de seu filho-rei, deve ter atraído Freud, que foi primogênito e
filho favorito. “Se um homem foi, sem concorrência, o filho predileto de sua mãe, conserva ao longo da vida o sentimento
triunfante, a confiança no sucesso, que não raro traz consigo o sucesso real.” (SE, 17, p.156).
Ao longo de sua vida, Freud acompanhou avidamente as notícias de escavações, e certamente deve ter sabido
da descoberta da tumba de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, realizada por Howard Carter. O autor do complexo de Édipo
pode ter ficado intrigado com esta disposição funerária – mãe e filho, dispostos lado a lado em uma tumba comum, para
toda a eternidade.
—FM
Sobre Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver W. Helck et al., Lexikon der Ägyptologie (Wiesbaden, 1972-), I, cols. 102-109,
s.v. “Ahmose Nofretere” (M. Gitton), e ibid., cols. 201-203, s.v. “Amenophis I” (E. Hornung), com referências. Sobre o
sepultamento de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver C. N. Reeves, Valley of the Kings: The Decline of a Royal Necropolis
(Londers, 1990), pp.3-5. Para outras esculturas relacionadas, ver C. Aldred, “Ahmose-Nofretari Again”, Artibus Aegypti.
Studia in honorem Bernardi V. Bothmer a collegis amicis discipulis conscripta (Bruxelas, 1983), pp. 7-14.
P975
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 5, n. 2, 2003.
Porto Alegre: SBPdePA, 2003.
1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
ISSN 1518-398X
CDU: 616.891.7
Tiragem: 300 exemplares
Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles
274 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
CRB 10/1110
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
Presidente
Dr. Leonardo A. Francischelli
Tesoureiro
Dr. Antônio L. Bento Mostardeiro
Secretária
Dra. Izolina Fanzeres
Coordenador da Comissão Científica
Dr. Renato Trachtenberg
Vogais
Dra. Silvia Stifelman Katz
Dr. José Facundo Oliveira
Dr. César Antunes
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Secretário
Dr. Lores Pedro Meller
Dr. Sérgio Dornelles Messias
Coordenador de Formação
Dr. New ton Aronis
Núcleo de Infância e Adolescência
Coordenador de Seminários
Dr. Gley P. Costa
Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg
PSICANÁLISE – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Editor
Dr. Gildo Katz
BIBLIOTECA
Diretora
Dra. Silvia Stifelman Katz
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 275
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
New ton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann (Falecido)
276 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Revista da SBPdePA
SUMÁRIO
SAUDAÇÕES
Palavras do Presidente • 283
Leonardo A. Francischelli
EDITORIAL
Palavras do Editor
Gildo Katz
•
289
ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES
Mudanças no Analista ao Longo do Processo • 301
Arnaldo Chuster
Depressão e Ansiedade • 325
Daniel Widlöcher
Mitologia e Psicanálise • 345
Donaldo Schüler
A Relação com o Corpo na Sociedade Contemporânea • 351
Gley P. Costa
A Psicanálise Diante do Terror • 361
Maria Eliana de Mello Barbosa Helsinger
O Didata como Analista: o campo transferencial nas análises de formação • 367
Regina Lúcia Braga Mota
Psicose Estabilizada • 379
Rómulo Lander
O Que é Verdadeiro e de Quem Foi a Idéia? • 393
Thomas H. Ogden
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 277
A Necessidade de uma “Psicologia Psicanalítica” no Campo da Ciência
Cognitiva • 421
Wilma Bucci
1ª SEMANA DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA na SBPdePA
– 23 a 26 Abril de 2003
A Fundação do NIA – Núcleo de Infância e Adolescência da SBPdePA • 453
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Psicanálise de Crianças Hoje • 457
Virginia Ungar
Debate sobre o Filme “A Invenção da Infância”, de Liliana Sulzbach • 461
Liliana Sulzbach, Mônica Timm de Carvalho, Ana Rosa Chait Trachtenberg
A Clínica das Psicoses na Infância: uma atualização • 471
Arnaldo Smola
A Experiência Emocional do Analista de Crianças e o Conceito de
Contratransferência • 485
Peter Blos Jr.
CONFERÊNCIA na SBPdePA
A Subjetividade Ameaçada: um desafio para a Psicanálise • 513
Sonia Abadi
DIÁLOGOS PSICANALÍTICOS
Encruzilhadas e Horizontes da Psicanálise Contemporânea. Psicanálise e/ou
Psicoterapia? • 531
Leonardo Goijman, Osvaldo Saidon, César Merea
ENTREVISTA da SBPdePA
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano • 561
SBPdePA Entrevista Antônio Luiz Bento Mostardeiro • 577
278 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Revista da SBPdePA
CONTENTS
ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS
Changes in the Analyst Throughout the Process • 301
Arnaldo Chuster
Depression and Anxiety • 325
Daniel Widlöcher
Mythology and Psychoanalysis • 345
Donaldo Schüler
The Relation with the Body in the Contemporary Society • 351
Gley P. Costa
The Psychoanalysis Before the Terror • 361
Maria Eliana de Mello Barbosa Helsinger
The Trainer as Analyst: the transferential field in training analyses • 367
Regina Lúcia Braga Mota
Stabilized Psychosis • 379
Rómulo Lander
What is True and Whose Idea Was It? • 393
Thomas H. Ogden
The Need for a “Psychoanalytical Psychology” Within the Field of the Cognitive
Science • 421
Wilma Bucci
1st WEEK OF THE CHILDHOOD AND ADOLESCENCE at the SBPofPA – from
23 to 26 of April 2003
The Creation of NIA – SBP Center for the Childhood and Adolescence in
PA • 453
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 279
The Psychoanalysis of Children Today • 457
Virginia Ungar
Debate on the Movie “The Invention of the Childhood”, by Liliana Sulzbach • 461
Liliana Sulzbach, Mônica Timm de Carvalho, Ana Rosa Chait Trachtenberg
The Clinic of the Childhood Psychosis: an update • 471
Arnaldo Smola
The Af fective Experience of the Child Analyst and the Concept of
Countertransference • 485
Peter Blos Jr.
LECTURE at SBPdePA
The Threatened Subjectivity: a challenge for the Psychoanalysis • 513
Sonia Abadi
PSYCHOANALYTICAL DIALOGUES
Intersections and Horizons of the Contemporary Psychoanalysis. Psychoanalysis
and/or psychotherapy? • 531
Leonardo Goijman, Osvaldo Saidon, César Merea
INTERVIEW of SBPdePA
SBPdePA Interviews Serapio Marcano • 561
SBPdePA Interviews Antônio Luiz Bento Mostardeiro • 577
280 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Saudações
“Como alentar a los psicanalistas y a las instituciones para que
se autoevaluen, para que revisen
su política, su ideología de formación? Esta es una tarea para
el futuro del psicanalisis...”.1
Vamo-nos servir dessa pergunta lançada pelo Prof. Widlöcher sobre a formação de novos colegas e
tratar, na medida do possível, de
ligá-la àquilo que dizíamos em nossas palavras anteriores: “A cada geração cabe a responsabilidade de viver seu tempo histórico e, na medida de suas forças, criar um futuro
Leonardo A.
Francischelli
1. WIDLÖCHER, D. Em “El porvenir del
psicoanalisis”. Debate entre D. Widlöcher, J.A.
Miller. Revista de Psiconalisis, tomo LX, n.
4, oct./dic, 2003. p.1065-1066.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 283
Leonardo A. Francischelli
Palavras do
Presidente
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
que não seja ‘o futuro de uma ilusão’”2. Apesar de todas as distâncias possíveis, em nosso entender, os apelos do nosso presidente encontram algum
ponto de apoio em nossas questões quando nos perguntamos pelo futuro
das novas gerações.
“Como alentar...”, pergunta-se Widlöcher, esse espírito nas sociedades psicanalíticas? Então, no “como” residem as possibilidades de alterações nas dinâmicas de auto-avaliação, da política e da ideologia institucional. Seria como dizer que, se somos capazes desses movimentos internos,
nosso futuro não seria sombrio. O progresso, o futuro passaria por nossa
capacidade de mudanças, e nisso estaria comprometida nossa geração.
“Pero las resistencias narcisistas de los grupos dificultan las cosas”1,
sustenta Widlöcher. É verdade que todas as criações humanas estão à mercê dos narcisismos passionais dos homens. As nossas instituições, por conseqüência, não estariam isentas desses narcisismos. Devemos, portanto,
não só aceitar sua presença em nossas organizações psicanalíticas, mas,
também, admiti-los como uma célula atuante nos organismos institucionais.
Contudo, isso sim, não podemos aceitar que se transformem em um
núcleo duro dentro de nossos âmbitos societários, pois exacerbariam a patologia de nossos agoras, de nossos espaços discursivos em que procuraríamos transformar as polêmicas em debates. Discussão sobre conceitos e
não polêmicas sobre os “ismos”, vencendo, desta forma, as vaidades pessoais. Se somos capazes de promover essas pequenas ou grandes mudanças, o futuro mostrará alguma luz no fim do túnel.
Isso é fundamental. Não podemos destruir a esperança.
Por outro lado, não deixa de causar preocupação a última correspondência recebida da IPA, assinada por Widlöcher, solicitando ajuda econômica para sustentar a formação de novos candidatos. Essa iniciativa até
parece contraditória com os apelos anteriores, de dar permeabilidade aos
nossos locais científicos e fomadores de novas gerações.
2. FRANCISCHELLI, L.A. Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
Porto Alegre, v. 5, n. 1, 2003, p.13.
284 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 285
Leonardo A. Francischelli
Contradições e narcisismo, além de andarem juntos, são comuns na
comunidade humana. O que nos parece imprescindível é evitar, com toda a
nossa energia, a cristalização desses mecanismos em nosso meio.
A revista – Psicanálise –, tanto em sua política como em sua ideologia, procura manter uma porosidade. É testemunho desse proceder a
pluralidade de autores que publica, bem como a sua localização geográfica
dentro das três (3) regiões da IPA.
Essa política e ideologia pluralista é fator fundamental para evitarmos
posições congeladas, sem movimentos criativos. Esse plural na participação de autores procura, também, não a polêmica, mas sim o debate fecundo
entre psicanalistas de todas as latitudes, aproximando-os naquilo que respeita às idéias que revisam as teorias, fazendo-as dialogar entre si,
advindos, dessa dialética, novos conceitos, outros paradigmas para sustentarmos a vigência da psicanálise no século XXI.
O pluralismo e integração servirão de instrumentos para lutarmos contra essa civilização, essa cultura que trabalha no sentido da exclusão. Precisamos admitir que essa tendência vai muito além de nossos desejos pessoais, visto que esse mecanismo – o da exclusão – atua nos interstícios de
nossa memória, sem nossa participação consciente.
É neste mundo e para este mundo do século XXI que nossa Psicanálise não mede esforços, no sentido de instrumentar mais os psicanalistas do
nosso tempo com as melhores técnicas e teorias herdadas de Freud – aí
nosso compromisso ético – e desenvolvidas pelos seguidores. Ainda precisamos evitar todas as ciladas que nos espreitam de algum lugar – a torre de
Babel. Justamente essa é também a idéia que preside a Psicanálise que
procura reconhecer as diferenças, mas manter a linguagem entre os analistas – pois, se criarmos idiomas próprios estaremos quebrando nossa fidelidade freudiana.
Despedimo-nos, declarando nosso amor à Psicanálise.
Boa leitura.
Um abraço,
Leonardo Adalberto Francischelli
Editorial
Gildo Katz
É com muita alegria e satisfação que estamos entregando este
novo número de Psicanálise – Revista da SBPdePA, que, como tem
sido hábito, contém contribuições
de autores brasileiros, latino-americanos, norte-americanos e europeus. Introduzimos uma nova seção, a do Núcleo da Infância e Adolescência (NIA), que pensamos,
como sugestão, deveria ser mantida
pela revista em seus próximos números. Também, além da tradicional entrevista com um psicanalista
visitante, acrescentamos uma
riquíssima entrevista que se reveste
de características especiais por ser a
primeira com um membro da nossa
sociedade. Pensamos que tanto a se-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 289
Gildo Katz
Palavras
do Editor
PALAVRAS
DO
EDITOR
ção NIA como a deferência a um membro tão próximo a nós, poderia ser
um indicador de mudanças dentro da instituição tendo em vista valorizar o
que temos e quem somos. Nesse sentido, o excelente trabalho desenvolvido pela Comissão Científica, coordenada por Renato Trachtenberg, vem ao
encontro dessa impressão. Por outro lado, a idéia de aumentar as
intersecções da psicanálise com a psicofarmacologia, como ocorre no trabalho de Daniel Widlöcher, ninguém menos que o presidente da Associação Psicanalítica Internacional, com a neurociência, a psicoterapia, a ciência cognitiva, a literatura, a filosofia, entre outras, indica o seguimento de
uma linha editorial, iniciada na gestão anterior, aberta ao desenvolvimento
da mente e ao diálogo, o que é inevitável para que ocorra uma evolução
emocional. Aliás, falando em evolução, gostaria de assinalar que agora a
nossa Revista está indexada na base de dados do Index Psi. Este é o começo para chegar ao “Scielo”.
Sendo o último número desta editoria, cabem aqui meus agradecimentos: em primeiro lugar à Comissão Editorial composta por Augusta Heller,
Heloisa Fetter, Ane Marlise Port Rodrigues e Silvia Stifelman Katz, a quem
eu agradeço pelos momentos de descontração, alegria, aprendizado e colaboração ao longo desses anos, que possibilitaram que uma tarefa árdua se
transformasse em algo agradável e leve; à Diretoria, pela confiança, apoio
afetivo e financeiro; a Ana Rosa Trachtenberg, que abriu as portas para que
um trabalho impossível se tornasse viável; aos colegas que colaboraram
com seus artigos, sem os quais a Revista perde qualquer finalidade porque,
como já assinalei, a Revista é, antes de tudo, um órgão de difusão de nossa
sociedade. Quero deixar também meus agradecimentos aos técnicos e ao
pessoal de apoio, em especial à nossa incansável bibliotecária Geisa Costa
Meirelles, e à nossa secretária, Antônia Lima Ihoan, que se envolveram
com muito carinho e dedicação na organização e preparo das revistas ao
longo desses inesquecíveis dois anos. Talvez o fato de que essa revista seja
mais longa do que as demais, parece indicar a dificuldade da separação de
pessoas e tarefas tão envolventes.
Quanto a este número da Revista, os trabalhos começam pelo de
290 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 291
Gildo Katz
Arnaldo Chuster do Rio de Janeiro, que discute “as mudanças do analista
ao longo do processo analítico”. Para ele, as dificuldades do tema começam pelo inespecífico de sua proposição: quais mudanças e qual processo?
Para a segunda parte da questão, acredita que a resposta pareça menos difícil pois, desde Freud, está dirigida para a atividade comum de dois sujeitos
visando, por meio da pesquisa do inconsciente (sendo a transferência seu
principal instrumento), chegar a uma certa modificação de um dos sujeitos,
denominada o “fim da análise”. Todavia, o próprio Freud reconheceu que
nenhum dos sujeitos está imune a uma modificação, e descreveu mudanças
no analista ocorrendo durante o processo, em direção inversa ou paralela a
do analisando, sob o título genérico de contratransferência. Além disso, o
analista tem diante de si o fato mais marcante de sua prática: o inconsciente
não pode ser alcançado pelo Saber, simplesmente é incognoscível. Portanto, o inconsciente é a teoria do inconsciente que o analista utiliza. Assim,
as mudanças no analista sempre se refletem nas teorias utilizadas para dar
conta de seu trabalho. A partir dessas considerações iniciais, descreve, através de exemplos clínicos, o que entende como mudanças no transcorrer da
análise. Sugere que o analista deve mudar sempre de vértice, que não deve
interpretar sempre na mesma direção, nem repetir interpretações, proferir
indagações desnecessárias, ou responder questões que o analisando deveria responder por si mesmo. A mudança constante de vértice pode prevenir
uma análise dominada pela tirania da memória e do desejo. Mudar sempre,
mais do que inevitável, é uma responsabilidade do analista durante o processo. Ou o analista muda, ou o processo vai mudá-lo, e sempre para pior.
Daniel Widlöcher, de Paris, examina a relação entre a depressão e a
ansiedade. Sustenta, de forma muito apropriada, que no campo da depressão, parece fecundo opor a psicogênese das operações mentais (representações e afetos) à lentificação psicomotora que seria o alvo do tratamento
medicamentoso de que dispomos atualmente. Essa distinção clínica nos
permite definir melhor as indicações respectivas das duas terapêuticas e as
condições de sua eventual associação. No domínio da ansiedade, enfatiza a
ação desinibidora dos “tranqüilizantes”. Essa ação poderia ser relacionada
PALAVRAS
DO
EDITOR
ao papel desempenhado pelo mecanismo de inibição próprio ao afeto de
angústia, independentemente das circunstâncias psicológicas ou fisiológicas nas quais esse afeto é produzido e que é passível de análise.
Donaldo Schüler, nosso amigo, já presente em eventos da SBPdePA e
destacado professor de literatura, nos apresenta um trabalho muito interessante denominado “Mitologia e Psicanálise”. Busca relacionar o mito, no
qual o homem busca compreender o seu lugar, com a psicanálise. Segundo
ele, quando a psicanálise se instaurou, encontrou o mito em desenvolvida
elaboração. Ao lado de mitos anônimos, reunidos e divulgados pelos antropólogos, havia os mitos produzidos por poetas, ficcionistas, artistas plásticos e filósofos. A psicanálise percebeu que era insuficiente reduzir o mito à
satisfação de desejos. Seria pouco rendoso entender Fausto, Dom Quixote,
Hamlet, à luz dos conflitos psíquicos de seus autores, nem seria apropriado
atribuir a recepção de obras artísticas ao alívio de tensões. Muito mais produtivo é ter os mitos herdados como um legado simbólico com o qual
reinterpretamos relações móveis conosco mesmos e com o universo. Isso
levou Freud a Édipo como recriado por Sófocles em Édipo Rei.
Desconsiderando significado da época e valor teatral, o criador da psicanálise isolou o modelo formado pelo triângulo pai-mãe-filho para compreender intemporalmente o comportamento humano. Contudo, para além do
triângulo, Édipo Rei nos levou, segundo a agudeza do autor, a refletir sobre
os limites do saber, a natureza da linguagem, a cegueira, a fraqueza, os
vícios da tirania, a vida e a morte.
Em uma consistente reflexão, nosso colega Gley Costa examina a
relação com o corpo na sociedade contemporânea. Sustenta que a família
perdeu suas características tradicionais e se ressente dos valores que proporcionavam uma identidade aos seus integrantes. Os vínculos familiares
tornaram-se simétricos e fraternizados, criando uma sociedade de irmãos
que escotomiza as diferenças de sexo e gerações, observando-se um apagamento do passado, da cultura e da tradição, como mais uma forma de evitar
o Édipo, resultando em uma falta de perspectivas para o futuro. O que ocorre, segundo ele, é uma inversão de valores, no qual os pais idealizam a
292 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 293
Gildo Katz
adolescência criando um vazio de projetos para o que se convencionou
denominar de era pós-moderna.
Por sua vez, Maria Eliana Helsinger, do Rio de Janeiro aborda um
outro tema atual e pungente que é a “Psicanálise diante do terror”. Trabalha
o tema através do sinistro (Unheimliche) em Freud e o Real em Lacan.
Segundo ela, o terror está relacionado às questões com que a pósmodernidade nos tem impactado: estamos muito mais expostos à deriva da
pulsão cujo imperativo categórico é o gozo. Nesse sentido, a importância
que Gley Costa atribui ao Complexo de Édipo tende a complementar as
palavras de Maria Eliana. São dois textos que deveriam ser lidos ao mesmo
tempo para conscientizar os psicanalistas acerca da necessidade de se inserirem de forma mais efetiva no mundo em que vivem.
Regina Lucia Braga Mota, de Brasília, apresenta um interessante trabalho denominado “O didata como analista: o campo transferencial nas
análises de formação”. Considera a complexidade no campo transferencial
que se instala nas análises de formação, desde a escolha do analista até o
término da análise e seus resíduos. Reconhece a influência intrusiva da
instituição na dupla analista-analisando. Indica que, nesses casos, o analista tem que estar muito atento à sua contratransferência no momento de
interpretar. Sugere que os analistas se interroguem a respeito do seu desejo
de requerer a função didática, para que não sejam influenciados por razões
espúrias. Nos parece um assunto no qual todos estamos envolvidos, seja
como pacientes, seja como analistas didatas, pela responsabilidade que o
tema impõe.
De Caracas, Rómulo Lander nos envia um importante trabalho
intitulado “Psicose Estabilizada”. Esse trabalho, fortemente influenciado
por Lacan, refere-se à estrutura psicótica esquizofrênica. Mostra, em detalhes, os mecanismos psíquicos que correspondem a essa estrutura psicótica
esquizofrênica citando, entre outros, a forclusão do nome do pai, os ocos
na textura do imaginário e do simbólico. Finalmente, propõe dois fatores
desencadeantes da crise esquizofrênica: a sensibilidade ao rechaço, que
tem a estrutura psicótica, e a impossibilidade de ocupar (dentro da ordem
PALAVRAS
DO
EDITOR
simbólica) o lugar do pai. Por último, apresenta um interessante enfoque
pessoal do sentido de cura nesses casos.
Thomas Ogden, de San Francisco, nos autoriza a publicação do artigo
“O que é verdadeiro e de quem foi a idéia?”, originalmente publicado em
um dos últimos números do IJPA. O autor afirma que a essência da psicanálise implica um esforço por parte do paciente e do analista de articular o
que é verdadeiro a uma experiência emocional, de uma forma que o par
analítico possa utilizar para fins de mudança psicológica. Com base na
obra de Bion, o que é verdadeiro à experiência emocional humana é visto
como independente da idéia do analista sobre isso. Nesse sentido, nós,
como psicanalistas, não somos inventores das verdades emocionais, mas
observadores e escribas participantes. Essa compreensão é a base da concepção analítica da ação terapêutica da interpretação: ao interpretar, o analista simboliza verbalmente o que ele sente que é verdadeiro à experiência
inconsciente do paciente e, ao fazer isso, altera o que é verdadeiro e contribui para a criação de uma experiência potencialmente nova.
Wilma Bucci, de New York, examina a relação da psicanálise com as
ciências cognitivas, um tema que divide a opinião das diversas correntes
psicanalíticas entre posições mais conservadoras e outras, mais próximas
aos movimentos cognitivistas, que procuram desautorizar a psicanálise.
Nesse sentido, Bucci trata de, sem desconhecer o momento em que vivemos, destacar as contribuições potenciais da psicanálise para a psicologia
cognitiva. A primeira seção do trabalho inclui alguns princípios básicos do
enfoque psicanalítico do processamento da informação. A segunda seção
mostra como a teoria do código múltiplo, proposta por ela, proporciona as
bases para construir a ponte entre a ciência cognitiva e o campo psicanalítico. Assinala a necessidade de um subcampo da psicologia – “psicologia
psicanalítica” – que abarque a integração de sistemas dentro do indivíduo e
o funcionamento adaptativo, sua dissociação na patologia e os meios pelos
quais se pode adquirir uma nova integração.
Com muita satisfação acrescentamos uma seção especial que se refere
à Primeira Semana da Infância e Adolescência na SBPdePA, realizada en294 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 295
Gildo Katz
tre 23 e 26 de abril de 2003. Além de um interessante histórico da fundação
e do desenvolvimento do NIA (Núcleo da Infância e Adolescência) escrito
de forma concisa e clara pela coordenadora do Núcleo, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, seguem-se alguns trabalhos desenvolvidos durante essa semana, bem como um enviado de Michigan por Peter Blos Jr., Chair Internacional da COCAP. Seu artigo intitula-se “A Experiência Emocional do
Analista de Crianças e o Conceito de Contratransferência”, no qual ele procura encorajar os analistas de crianças a reconhecerem a legitimidade de
suas reações emocionais e a valorizarem a contratransferência. Virginia
Ungar, co-Chair da COCAP para a América Latina e colaboradora para a
formação do NIA, apresentou um interessante trabalho intitulado “Psicanálise de Crianças Hoje”. A seguir, publicamos um debate sobre o filme “A
Invenção da Infância”, de Liliana Sulzbach, e considerações da cineasta
sobre o “Ser criança não significa ter infância”. Depois, um belo ensaio de
Mônica Timm de Carvalho denominado “A infância Perdida” e logo, “Em
busca da infância perdida”, de Ana Rosa Chait Trachtenberg. Infelizmente,
pela extensão desse número, foi deixado fora o resumo dos temas livres
apresentados durante a atividade. Aos nossos colegas, as minhas desculpas
e os meus cumprimentos. Ainda na seção NIA, podemos apreciar o excelente e instigante trabalho de Arnaldo Smola, de Buenos Aires, intitulado
“A Clínica das Psicoses na Infância: uma Atualização”; instigante, porque
aborda a questão da psicose na infância a partir da latência, cujo começo se
marca na idade de cinco anos e meio e que, por uma série de motivos, os
mecanismos e elaborações que nela se reproduzem não se cumpre na maioria dessas crianças. A profundidade a que é levada a dissociação do objeto
e do ego e o transtorno conseqüente nos processos de repressão pósedípicos dificultam a instalação da latência, acarretando doença mental grave.
Sonia Abadi, de Buenos Aires, realizou uma palestra na nossa sociedade intitulada “A Subjetividade Ameaçada: um Desafio para a Psicanálise”. Nessa palestra, salienta a descrição de um personagem que aparece
atualmente em nosso consultório: são pacientes que possuem rigidez nas
PALAVRAS
DO
EDITOR
adaptações, relação predominante com o mundo externo em detrimento ao
mundo interno, dificuldade para fantasiar, tendência à ação, escassa angústia e um transtorno difuso do pensamento simbólico. Chegam aos nossos
consultórios referindo um mal-estar indefinido. Com muita freqüência, são
encaminhados por seu clínico ou especialista, devido a transtornos
somáticos. Nesses casos, trata-se de pacientes com transtornos de personalidade cuja particularidade reside em que estão em sintonia com alguns
ideais da civilização atual que a autora pensa em denominar de “sóciosintônicos”. A dificuldade de tratar esse tipo de paciente é que não se consideram sintomáticos. Ao contrário, os traços de caráter são tão valorizados
que não pretendem modificar: capacidade para tomar decisões rápidas, orgulho por poder conter as emoções, adição ao trabalho, satisfação por realizar uma atividade ilimitada, supervalorização da autonomia e ainda da
habilidade para transgredir as normas e leis. Finalmente, a autora se interroga se esses sujeitos dissociados de sua realidade psíquica e de suas emoções, que às vezes reaparecem com violência incontrolável, constituem-se
em novas patologias relacionadas aos valores de nossa civilização. É, sem
dúvida, um tema de grande atualidade.
A seção diálogos consta de uma interessante e atual discussão sobre
psicanálise e psicoterapia, que cada mais vez toma conta das sociedades
psicanalíticas face aos problemas sócio-econômicos em que vive o mundo
atual, especialmente a América Latina. Nesse sentido, Fernando Urribari,
editor da revista Zona Erógena, realizou um debate com alguns analistas
denominado “Encruzilhadas e Horizontes da Psicanálise Contemporânea”.
Nesse debate, sustenta que a idéia que o levou a organizar esse encontro foi
abordar as transformações clínicas no campo psicanalítico contemporâneo;
em primeiro lugar, para explicitá-las, torná-las manifestas e analisáveis;
em segundo lugar, para poder abrir um verdadeiro debate sobre as conseqüências teóricas profundas que as mesmas implicam. Nesse contexto, a
questão da relação psicanálise-psicoterapia é uma encruzilhada chave. Nela
convergem problemas de técnica, discussões psicopatológicas, lutas político-institucionais (que vão desde o crescente debate acerca da necessidade
296 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 297
Gildo Katz
de incluir a formação em psicoterapia psicanalítica nos Institutos da IPA,
até o conflitante problema do estatuto social da psicanálise em relação aos
seguros sociais de saúde). Para abrir um verdadeiro debate científico
pluralista, três artigos foram selecionados por sua riqueza e sua diversidade. Creio que o seu mérito principal é o de levantar questões sem sectarismos nem dogmatismos, que é a única maneira de afrontar as encruzilhadas
atuais e transformá-las em novos horizontes para a psicanálise contemporânea.
Realizamos uma interessante entrevista com o analista venezuelano
Serapio Marcano. Entre muitos temas tocantes sobre a sua vida pessoal,
destacamos o fato de que seu amor à psicanálise tenha iniciado na aula de
um “sábio” professor, quando era estudante de medicina, conforme as suas
próprias palavras: “Separar-se da família aos 12 anos, sair de um povoado
pequeno para ir para a capital não é uma tarefa nada fácil. Acrescentar esse
luto aos que temos de enfrentar normalmente, é uma sobrecarga. Mas essa
é a vida e isso eu compreendi depois, o que me permitiu pensar em coisas
que aconteceram durante a minha adolescência; por exemplo, como eu não
chorei essa separação pelas “vias naturais do chorar”, mas chorei de outras
maneiras. Costumava fazer gripes de repetição e eu não entendia por quê,
até que, já estudando medicina com meu professor de patologia médica, ele
falava da relação entre as doenças e a mente, e de como havia um
continuum através do qual se dava a conduta humana na relação corpomente e realidade externa. Compreendi, então, que estivera chorando pelas
“vias não-naturais do chorar”, como dizia o sábio professor. Ele
exemplificava com a doença psicossomática de uma paciente sua: uma
dermatite exsudativa de uma senhora, mãe de um médico que era
dermatologista. Ninguém conseguia curá-la, e ela foi consultar com esse
professor, que era um sujeito muito especial. Em seu consultório, tinha um
violino e uma cadeira de balanço onde tocava o violino. Contou-nos, então,
da consulta com aquela senhora, que chegou toda vestida de preto e com
luvas tapando as mãos, laceradas pela dermatite. Ele então se sentou em
sua cadeira e começou a tocar o violino, e a senhora começou a chorar. E
PALAVRAS
DO
EDITOR
assim passaram-se várias consultas, nas quais ele tocava e a senhora chorava. Até que um dia ela já não veio de luvas, mas seguia chorando. Em uma
certa consulta, veio vestida com meio luto e já não tinha mais dermatite
exsudativa. Ele nos dizia: “Sabem, alunos, ela tinha a dermatite porque
estava chorando pelas “vias não-naturais do chorar”. No momento em que
pôde chorar pelas vias naturais, não necessitou mais fazer a dermatite. Essas lições me impactaram, porque me fizeram descobrir que minha curiosidade sobre o funcionamento do ser humano era global. A medicina física
como única possibilidade não me interessava particularmente”.
Tão comovente e afetiva como a entrevista de Serapio, foi a que realizamos com o nosso colega Antônio Luiz Bento Mostardeiro. O mais antigo
mas, ao mesmo tempo, um dos mais atuantes psicanalistas de nossa sociedade. De forma clara e precisa, Mostardeiro foi traçando um panorama
histórico da psicanálise em nosso meio até inseri-la dentro do contexto
atual, não só do meio local, como do mundo em que vivemos. Muito mais
do que uma homenagem foi, tomando emprestado de Roland Barthes, uma
Aula de Psicanálise para candidatos, membros e todos os analistas que se
preocupam com a história e o futuro da psicanálise.
Como assinalei no início, sempre concebi a Revista como um órgão
de divulgação da nossa sociedade. Entretanto, a concebi, também como
ponto de partida para a discussão de novos desafios que a psicanálise e,
principalmente, os psicanalistas enfrentam nesse período de incertezas,
tanto no corpo da nossa disciplina, como em um mundo no qual “as invasões bárbaras”, seja qual for a interpretação pessoal dada ao belo filme de
Arcand, parecem fazer do terror e da destruição, baseados em concepções
fundamentalistas de toda a ordem, o projeto desse novo século. Mas, seguindo o filme, através do amor do filho pelo pai doente (nossa sociedade?) talvez possamos alimentar a esperança de um mundo melhor para todos, especialmente para os nossos filhos.
Boa leitura para todos.
Gildo Katz – Editor
Dezembro de 2003
298 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Artigos/Ensaios/Reflexões
Que sei eu do que serei, eu que
não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a
mesma coisa que não pode haver
tantos!
Gênio? Nesse momento
Cem mil cérebros se concebem
em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem
sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de
tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo
Fernando Pessoa (Tabacaria)
Arnaldo Chuster
Membro Efetivo e Didata da
Associação Psicanalítica do Estado
do Rio de Janeiro – Rio-4.
As dificuldades do tema começam pelo inespecífico de sua propo-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 301
Arnaldo Chuster
Mudanças
no Analista
ao Longo do
Processo
MUDANÇAS
NO
ANALISTA
AO
LONGO
DO
PROCESSO
sição: quais mudanças e qual processo?
Para a segunda parte da questão, a resposta parece menos difícil: o
processo analítico, quer dizer, em primeiro lugar e antes de qualquer coisa,
o desenrolar da análise: desde Freud a pesquisa que concerne ao que ele
chamou de realidade psíquica, centralmente, sua dimensão inconsciente. Ao mesmo tempo, designa a atividade comum de dois sujeitos visando,
por meio dessa pesquisa (sendo a transferência seu principal instrumento), chegar a certa modificação de um dos sujeitos, denominado, desde
Freud, o “fim da análise”.
Todavia, o próprio Freud reconheceu que nenhum dos sujeitos está
imune a uma modificação e descreveu mudanças ocorrendo durante o processo, em direção inversa ou paralela a do analisando, sob o título genérico
de contratransferência: fenômeno que traz a marca inequívoca do inconsciente. Além disso, para complicar o problema, o analista tem diante de si
o fato mais marcante de sua prática: o inconsciente não pode ser alcançado
pelo Saber. Simplesmente é incognoscível. Portanto, o inconsciente é a
teoria do inconsciente que o analista utiliza. Problema muito mais ético do
que ôntico. Assim, as mudanças no analista sempre se refletem nas teorias
utilizadas para dar conta de seu trabalho.
Tais mudanças, depois de Freud, foram ficando cada vez mais complicadas de serem avaliadas, pois basta lembrar a multiplicidade de “escolas”
psicanalíticas que, por conta de diferentes compreensões do fenômeno, se
lançam num recíproco denegrimento em que se diz, a propósito de determinada mudança do analista ao longo do processo, “isto não é psicanálise”.
Se compararmos com alguma outra atividade humana que lida com a
subjetividade, por exemplo a filosofia, ninguém jamais disse ao ler Kant
que “isto não é filosofia”, simplesmente porque houve mudança no processo filosófico.
A própria obra de Freud mostra, em sua complexidade, em suas ambigüidades e, sobretudo, no seu incessante desenvolvimento, uma quantidade de mudanças que se refletiram na criação de novos vértices. Não é difí302 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 303
Arnaldo Chuster
cil perceber que tudo ocorreu paralelamente a mudanças sofridas ao longo
do processo de analisar, isto é, no decorrer da evolução da prática clínica.
Assim, o mais adequado que se poderia dizer é que o processo analítico é
sinônimo de mudanças, ou como diz Bion (1975): “o que torna o empreendimento de uma análise difícil é uma personalidade em constante mudança falar para outra”.
De qualquer forma, uma vez que é inevitável a divergência sobre a
concepção de processo analítico, sobretudo em relação a quais seriam as
mudanças admitidas como parte do processo e quais as que colocam alguém fora dele, devo salientar que falo a partir de minha prática da psicanálise e de minha reelaboração da problemática dos modelos psicanalíticos, tal como me possibilitou, principalmente, a leitura de W. R. Bion.
Espero que, a partir daí, possa dar uma idéia do que entendo por mudanças
no analista ao longo do processo. Mas, antes de descrever essa reelaboração
teórica, considero adequado mencionar algum material clínico responsável por essas mudanças.
O analisando escolhido para essa ilustração foi classificado, por alguns colegas que previamente me escutaram de modo informal, como no
mínimo bastante inusitado. Mas penso que é exatamente por essa singularidade que se parece com qualquer outro analisando. Cuidados foram tomados para preservar o sigilo, apesar de ser, em determinados momentos,
possível imaginar quem seria algum dos protagonistas. Eu deveria dizer,
como nos filmes, que qualquer semelhança com personagens da vida real é
mera coincidência. Não haveria outro modo de ser, pois os relatos do analisando obviamente são produto de transformações, além daquelas que são
de minha autoria para colocá-las num trabalho como esse.
O material refere-se a um empresário, 39 anos, que está em análise
comigo há quase 10 anos. Nesse período, houve uma interrupção de quatro
anos, em virtude de um trabalho que realizou em outra cidade. Nesse intervalo, sempre que vinha ao Rio de Janeiro, solicitava sessões. Antes de mim
passou por experiências de tratamento aparentemente muito
decepcionantes. Mas, se fossem de fato totalmente negativas, como emoci-
MUDANÇAS
NO
ANALISTA
AO
LONGO
DO
PROCESSO
onalmente as descreveu com forte ressentimento, não teria mais recorrido
ao método. É um tipo de lógica otimista que se pode utilizar para justificar
uma nova tentativa. Todavia, não devemos deixar de lado a prudência, pois
sabemos que existem pessoas que vão insistir na análise enquanto houver
algo bom e/ou verdadeiro para ser destruído.
Os relatos dessas experiências prévias fizeram parte do material desse
analisando durante muito tempo, pois ele as trazia à tona toda vez que notava alguma mudança no analista. Suas reações ilustram, sobremaneira, a
seguinte tese: mudanças no analista durante o processo podem também ser
vistas como mudanças de analista. Podemos traduzir isso pela seguinte
formulação de Bion (1970):
Não existe razão alguma para que o analisando acredite que o analista é a mesma pessoa que no dia anterior. Tal crença é sintoma de relacionamento conivente que pretende prevenir o aparecimento de um
vazio desconhecido, incoerente, informe, e de um sentido persecutório
associado pelos elementos de O evoluído.
Mas, antes de descrever tais experiências prévias, acho conveniente
apresentar linhas gerais de uma sessão típica.
Sempre pontual, ele entra no meu consultório abrindo a porta bruscamente. Algumas vezes o faz de forma violenta, mas parece não se dar conta
disso, mesmo quando o fato é assinalado por mim. Assim, trata-se de um
comportamento que permanece inalterado, como outros tantos1. Sua expressão facial não denota emoções maiores, apenas parece ansioso e apressado. Ao entrar, evita me olhar, caminha para o divã, deita-se rapidamente
e coloca o antebraço sobre os olhos. Faz uma pequena pausa, e seu modo
de comunicar modifica-se completamente. Cessa qualquer diálogo que
lembre uma conversa comum e que é capaz de manter quando está em
1. Atualmente entendo essa ação como um pedido que me faz: que se abra para ele, mesmo que de
forma violenta, uma “porta” psíquica. Isso se dá pelo reconhecimento de que uma passagem se
faz, que uma cesura existe, e que pode organizar de uma forma melhor seu mundo interno.
304 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 305
Arnaldo Chuster
outras situações. Ele começa a falar algo assim: “parece que estou pensando em...”, e despeja uma série de fatos a princípio desconexos. São vários
temas simultâneos, antecedidos sempre do refrão “parece que agora estou
pensando em...”; uma espécie de indicativo de que não é certo que esteja
pensando, mas, talvez, “vendo” ou “escutando”. Assim, fala, por exemplo,
do carro, do trabalho, da casa, do tempo e volta à seqüência, embora não
necessariamente na mesma ordem. Percebo que de algum modo tenta retomar, com visível esforço, aos “raciocínios” (assim ele descreve os temas)
interrompidos pelo que parece ser uma dissociação. Quando não consegue,
fica visivelmente ansioso e faz um tipo de grunhido como se tivesse sugando algo. Trata-se de uma espécie de automatismo. Certa vez lhe sugeri que
aquela situação toda, a sua forma interrompida de se comunicar e o ruído
gutural, poderia ser uma reminiscência do quanto tinha sido interrompido
pelos outros irmãos quando estava sendo amamentado pela mãe. A mãe
retornava, mas abalada com o tumulto à sua volta. Mas enquanto ela não
voltava, ele ficava sugando o vazio. Ele pareceu muito aliviado com tal
reconstrução, que registrava a percepção de uma falha da mãe (rêverie)
repercutindo dentro dele desde sempre. Era o tipo de falha que transportava para outras relações, principalmente íntimas. Concordou comigo, fato
que não é freqüente, pois em geral ele não se manifesta sobre as interpretações, e quando surpreendentemente volta a falar nessa falha refere-se
“àquela coisa com minha mãe”.
Ainda quanto à sua forma de comunicação, observei a presença de um
certo ritmo nas “associações”. O ritmo se desfaz em determinados momentos, de forma súbita, e é isso que o deixa muito ansioso. Ele se sente aliviado quando consigo descrever a seqüência de problemas que estão implícitos nas “associações”, isto é, se consigo estabelecer o ritmo em que elas
foram colocadas, pois quando isso acontece é como se abrisse o que vou
chamar de uma “janela psíquica”. Mas quando não consigo, o sofrimento
aparece na linguagem corporal, nas queixas de dores de cabeça, torcicolos,
gases, lacrimejamento, congestão nasal, lombalgias.
Também as interpretações descritivas do estado mental atual, relacio-
MUDANÇAS
NO
ANALISTA
AO
LONGO
DO
PROCESSO
nando as “associações” a uma emoção comum, em geral angústia, parecem
ajudá-lo mais do que as de conteúdo.
Quando preciso esclarecer alguma coisa sobre o material, ele fica desolado. Parece acreditar que eu seja capaz de saber mais do que consigo.
Disse-lhe isso de diversas formas. Até hoje ainda continuo criando novas
formas de interpretar essa crença forte, que parece contrabalançar seu sentimento intenso de desamparo. No geral, diante de uma situação permanentemente dissociada, nas quais o analisando reage às interpretações de
forma muito semelhante a uma criança autista, isto é, como se nada tivesse
sido dito, muitas vezes me ocorreu que não haveria nenhuma razão para
pensar que o processo pudesse chegar a algum lugar. Por outro lado, é de se
perguntar se eu deveria me ocupar disso, e que outra razão haveria para não
continuar.
Após muitos meses de trabalho, consegui reunir os fragmentos de sua
história numa espécie de mito operacional, mais ou menos assim: Ele nasceu numa família tradicional de uma certa região do país, sempre envolvida com disputas pelo poder, onde o pai tirânico, rico e politicamente poderoso, determinava a vida dos filhos. Um foi ser padre, o outro político,
outro médico, etc. A ele coube ser engenheiro, com objetivo futuro de ser
secretário de obras de seu Estado. Para tal, graças ao poder e prestígio paterno, foi enviado contra sua vontade (que nunca ousara exprimir ao pai)
para fazer um doutorado num país da Europa, num importante centro de
pesquisas tecnológicas, sem falar direito o idioma local. O nível técnico
era difícil de acompanhar, e, além de sentir saudades do clima quente e da
namorada que ficara no Brasil, não conseguia se relacionar com os colegas.
Sentia-se muito isolado, excluído, perseguido, pois ninguém entendia direito o que ele falava, e não se dava conta de que não se esforçava para
melhorar as dificuldades de comunicação. Por esse vértice, poder-se-ia dizer que ele se aproximava cada vez mais de uma situação psicótica. Nesse
ínterim, sua namorada se suicidou, com um tiro na cabeça, na frente do
escritório político de seu pai, fato que agravou terrivelmente seu estado
persecutório. Anos depois, o paciente soube que a moça tinha sido assedia306 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
2. As razões para essa indicação são no mínimo tragicômicas. O paciente, ao falar de seu pai para
o professor, querendo atenuar com humor, referiu-se a ele com um título nobiliárquico usado no
Oriente, mas que no Brasil é sinônimo de poder obtido de forma ilícita. O professor, impressionado, sem perceber a ironia, de imediato associou ao analista, que carregava de fato esse título.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 307
Arnaldo Chuster
da sexualmente pelo pai dele. Mas antes desse conhecimento, que se não
fosse a análise resultaria em uma tragédia, passou a ter pensamentos freqüentes de que seria obrigado, mais cedo ou mais tarde, a fazer o mesmo.
Visivelmente confuso, chamou a atenção de um dos professores, que
possuía compaixão para sugerir que procurasse ajuda psicoterápica urgente ou então que voltasse para o Brasil. Ele preferiu a segunda hipótese. Ao
comunicá-la por telefone à mãe, recebeu poucas horas depois a resposta
curta e seca do pai: “Seu moleque, antes de completar o doutorado, só
morto voltas ao Brasil”. Nesse ponto, desesperado e perseguido por não
conseguir convencer o pai, segue a indicação do professor2 que lhe diz o
seguinte: “Conheço um analista muito bom e famoso que é também estrangeiro, e por isso saberá pelas afinidades culturais entendê-lo melhor do que
um analista local”.
Esse analista atendia em casa, um belíssimo apartamento, com muitas
obras de arte na sala, a maioria de estilo oriental. Quem atendeu a porta foi
um mordomo, muito delicado, vestido com uma roupa típica do país de
origem. Enquanto aguardava, veio-lhe à mente que “homem que é macho
não mora num lugar desses, cheio de frescuras” – esta crença
preconceituosa é um dos pensamentos tipicamente dissociados desse analisando. Quando foi recebido pelo analista, esse também trajava uma roupa
típica de cor rosa, além de vários anéis. O paciente assustou-se, pois aquilo
parecia confirmar sua crença: “Este cara com essa roupinha, esse empregado, só pode ser veado”. Após escutá-lo, o analista disse-lhe que o analisando “falava muito mal o idioma local”. Como nada poderia fazer sobre isto,
caso se dispusesse a vir pelo período experimental de um mês, cinco vezes
por semana, tentaria entendê-lo, mas, se não conseguisse, o mandaria para
outro. O paciente, mesmo temeroso, aceitou a oferta, mas internamente
saiu perseguido, imaginando que “aquela ameaça de mandá-lo embora era
MUDANÇAS
NO
ANALISTA
AO
LONGO
DO
PROCESSO
típica de veado”. (Em um dado momento da análise comigo, pude esclarecer-lhe que se sentia perseguido, com medo de ser seduzido
homossexualmente pelo analista, e que isso era devido a duas coisas: a
preocupação dessa natureza incutida pelo meio cultural da sua infância e,
sobretudo, agravada pela dificuldade de lidar com o novo e com as diferenças – que deviam incluir qualquer pessoa que não se enquadrasse no padrão da elite de sua região.)
Ele contou com forte ressentimento (emoção que sempre o fazia gaguejar) que, nas sessões que se seguiram, o “analista oriental e veado”, nas
poucas vezes que falou, insistiu que o analisando tinha dois dentro dele
(um falso e um verdadeiro) e que deveria se esforçar em falar melhor pelo
verdadeiro. A depressão-perseguição piorou, e se sentia revoltado quando
“saía das sessões, pois o veado só falava a mesma coisa”. (Num desses
relatos, tentei fazer um tipo de interpretação que ele sempre considerou
uma tolice. Mencionei a possibilidade de uma analogia entre o que tinha
acontecido e o que estava acontecendo, pois por enquanto eu só falava a
mesma coisa, a linguagem da escuta. Retrucou dizendo que se sentia confortável pelo fato de que eu pelo menos falava português. Disse-lhe que era
possível que estivéssemos falando um outro idioma, a linguagem do inconsciente, por isso estava mais confortável. Mas isso não teve nenhuma
aparente repercussão na torre de Babel.)
O analisando relata que tentara fazer novo contato com seu pai, pois
estava muito deprimido, com pensamentos suicidas, e, apesar de ter procurado tratamento, precisava mesmo voltar, era questão de vida ou morte. O
pai respondeu de novo, no mesmo tom: “Que ele só voltaria num caixão, e
que essa coisa de depressão era coisa de veado”. Acuado, descreveu a conversa ao analista, que lhe respondeu ironicamente: “Parabéns, agora sim tu
podes melhorar”. Ofendido com a resposta, tentou explicar que sua situação não era brincadeira, e que estava pensando seriamente em se matar. O
analista mostrou-se furioso e disse: “Eu não vou a enterro de paciente,
muito mais se for um católico hipócrita, mas como eu nunca vi ninguém se
matar gostaria de saber quando, como e onde, para apreciar”. Naquele
308 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 309
Arnaldo Chuster
momento, o analisando conta que teve a confirmação de que o analista era
“de fato, um veado, pois só um veado pode falar assim”, e lhe disse desafiadoramente: “vou pular da ponte X, às tantas horas”. E saiu da sessão bruscamente, disposto a nunca mais voltar. O que de fato aconteceu. Na hora
combinada, esteve “disfarçadamente” no local do “suicídio” para verificar
se o “veado” estaria por lá. “Não se mataria para não lhe dar este gostinho.”
Mas ninguém compareceu na hora estipulada.
O fato é que essa “experiência”, e por mais “estranhas” que fossem as
intervenções relatadas, produziu um efeito, pois o analisando colocou em
ação idéias que tinha em mente e procurou um outro curso, em outro país,
cujo idioma julgava mais familiar. Todavia, a “depressão” persistiu, o medo
de aniquilamento iminente através dos pensamentos suicidas voltou a se
intensificar, e novamente por indicação de um professor procurou um analista local. Simultaneamente começou a fazer um tratamento
medicamentoso com um psiquiatra, que criticava a escolha do analista. O
analista, lacaniano, seguia o tempo lógico e interrompia as sessões de um
modo que o paciente ficava enfurecido e confuso. Seus sentimentos
persecutórios, derivados do ódio por se submeter a algo que não concordava, voltaram a se intensificar, e identificou o novo analista como “mercenário broxa”, pois “cobrava caro por pouco tempo de sessão” e, “o que era
pior”, tinha uma secretária “gostosa” que não “comia”. Conta que esse analista, muitas vezes, ficava lendo um jornal durante as sessões. Quando sugeri, por esse relato, que o fato de ter alguém só para escutá-lo, mesmo que
entediado, fazia algum efeito e o fez permanecer por seis meses por se
tratar de uma falha que lhe era familiar, o analisando achou que “eu estava
protegendo a classe dos analistas”. Eu assinalei que ele acreditava que os
analistas eram todos iguais, não eram nem sinceros e nem honestos, e que
formavam uma casta como os políticos. A reação do analisando foi de susto, pois sentiu minha intervenção como ousada e desafiadora pela conexão
com seu reverenciado e temido pai.
O psiquiatra que o atendia continuou insistindo que devia mudar de
analista. Ficava assinalando que o consultório do analista tinha muita gente
MUDANÇAS
NO
ANALISTA
AO
LONGO
DO
PROCESSO
na sala de espera (o que era fato), e que análise não era aquilo. Acabou
cedendo, aceitando uma outra indicação desse psiquiatra. O novo analista
trabalhava da forma comum, entendia um pouco de português, mas o analisando relata que não conseguia entender nada do que ele dizia e viceversa. Quando pedia algum esclarecimento não obtinha resposta, o analista
fazia um silêncio. O analisando passou a achar que o analista era surdo
(posteriormente, surgiu um material que permitiu conectar com uma avó
surda que ajudava a mãe a cuidar dos muitos filhos).
Nesse entretempo, o irmão mais velho, no meio de um escândalo familiar envolvendo altas somas de dinheiro no exterior, rompeu com o pai e
veio morar no Rio. Incentivado pelo ato, largou o curso e veio morar com o
irmão. Conseguiu logo um emprego numa firma, de quem se tornou sócio
em pouco tempo, graças ao uso que fez de influências familiares para conseguir grandes contratos de trabalho. Seu progresso material foi rápido e
acentuado, mas, além de manter o medo de aniquilamento iminente (traduzido pelas fantasias de que alguém desejava sua morte por suicídio), quando se aproximava de alguma mulher vivia uma situação sempre sofrida e
emocionalmente desastrosa, para a qual solicitava um remédio urgente.
Ficou claro que esse pedido atestava seu sofrimento pelos vínculos que só
permitiam duas alternativas: desprezo hostil com desejo sexual ou medo
persecutório de “broxar” quando sentia que era uma “garota para casar”.
Os protagonistas de um drama se alternavam dentro dele: o analisando;
qualquer eventual namorada com quem fazia sexo, mas desprezava; o fantasma da namorada que se suicidou e que continuava presente de forma
cruel, hostil e invejosa, cobrando-lhe o impossível. Em outros momentos,
o triângulo era ele, a namorada “para casar” que o fazia “broxar” e novamente o pai vingativo clamando por suicídio. Novamente se aproximou de
uma situação que se poderia chamar de surto psicótico. Foi quando me
procurou por indicação de um conhecido do seu sócio, que tinha sido meu
analisando.
Por muito tempo esse triângulo, que se pode chamar de parasitário,
persistiu. As interpretações que assinalaram diferenças entre ele e a namo310 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Sem pretender me alongar mais nos detalhes do caso, que são muitos,
vou retornar à minha reelaboração dos modelos psicanalíticos, ilustrandoa com algumas hipóteses de trabalho que se modificaram ao longo do processo:
(1) A psicanálise nos obriga a pensar, ao esforço de tornar pensável
um novo modo de ser, encarnado em e exemplificado pelo movimento do
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 311
Arnaldo Chuster
rada suicida, que representava sua parte feminina submissa ao pai cruel,
produziram uma “janela psíquica” e diminuíram sua confusão mental. Na
realidade, durante muito tempo, a análise fez para ele uma diferença entre
continuar vivendo ou morrer. Talvez ainda continue fazendo a diferença
entre ter uma vida longa ou abreviá-la por conta de alguma doença
disfuncionalizante. Não sei ir além disso.
Embora tenha tentado até esse ponto fazer um relato da história desse
analisando, não a considero satisfatória. Quando a escrevo, me dá a impressão de que não tem nada a ver. Um texto como o de Ulysses, de James
Joyce, talvez possa traduzir melhor o que é escutar uma história sem ponto
e sem vírgula, mas que é também uma versão da história de como Eros se
relaciona com Psique, ou melhor, a história de como pré-concepção vai se
realizando em concepções (CHUSTER, 1999). Em outras palavras, minha
capacidade de recriar a experiência emocional vivida com o analisando
não é de modo algum confiável. Recomendo o poema de Fernando Pessoa,
Tabacaria, mencionado no início deste trabalho, pois talvez possa dar uma
idéia melhor e pagar um tributo à teimosia do analisando, em persistir com
um analista que muda muito e não lhe diz grandes coisas, e que na maior
parte do tempo parece estar apenas fornecendo um ritmo ao acompanhá-lo,
sem nenhuma expectativa. Por isso cito novamente o Tabacaria:
MUDANÇAS
NO
ANALISTA
AO
LONGO
DO
PROCESSO
núcleo da psique, representado pelo que Bion chamou de pré-concepção.
O modelo diz que a pré-concepção, ao se realizar, gera concepções (pensamentos). Trata-se de um modelo de três tempos, distinto do modelo freudiano, que possui quatro tempos.
(2) Esse movimento da pré-concepção, longe de estar limitado à psique, se estende a todo universo humano, bastando para constatá-lo que se
considere o campo da palavra e da linguagem, naquilo que é essencial, isto
é, as significações e os pensamentos. Cada pensamento (concepção) refere-se a uma indeterminação, a uma totalidade sempre aberta a mudanças,
que se constituem por meio de um vínculo referencial no qual continente e
conteúdo interagem constantemente.
(3) Esse vínculo de referência é fundamental para o processo analítico. Ele se exprime, como indeterminação, efetivamente, na psique e na
psicanálise pela transferência e pelo processo associativo. Por exemplo,
quando um paciente relata um sonho, ninguém pode predizer aonde o conduzirão suas associações, e como elas serão. Igualmente, ninguém pode
predizer como serão as mudanças de um estado mental para outro após
uma interpretação. Um princípio ético-estético de Incerteza, somado ao
de Incompletude, se aplicam a este referencial prático (CHUSTER, 2003).
(4) Uma outra conseqüência dessa relação é a infinitude de seu desdobramento. Isso permite dizer que o inconsciente humano necessariamente vai mais além do que tem sido descrito sob a égide do termo “inconsciente freudiano”. Por exemplo, se eu falar de inconsciente é porque já
estou por fora do assunto. Ele já terá se expandido e demanda novamente
explicação. É preciso introduzir um outro termo no discurso: o mais próximo para Bion é o termo inacessível, que contém outros termos, tais como
incognoscível e inefável. Em outras palavras, a pré-concepção estabelece
um nível de experiência da psique que transcende a noção de inconsciente como produto do recalcado. Não se trata apenas do inconsciente que
nunca foi consciente, e que para Freud seria filogenético (portanto, neutro,
estático, estabelecido, determinista, hiperestrutural). Trata-se de um estado
mental em atividade. Uma forma de ser constantemente presente em qual312 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
3. A natureza não se importa, por exemplo, com a dor do antílope atacado pelo tigre. É simplesmente parte do processo, parte menor da busca de sobrevivência dentro de um quadro maior que
é a evolução. Espécies aparecem e desaparecem, outras podem surgir, e isso vem ocorrendo por
milhões de anos. O ser humano nada mais é do que uma espécie no meio dessa evolução, e algumas vezes tem consciência de que, independentemente de sua vontade, é arrastado para se reproduzir, e a natureza por trás não se importa se vai se tornar um escravo ou se vai ser destruído,
assim como não se importa se o bebê gerado pode morrer. Tampouco se importa se o ser humano
vier a desaparecer, fato que não é de todo improvável, diante do que vem fazendo contra a natureza.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 313
Arnaldo Chuster
quer circunstância da vida, um mundo pré-subjetivo, uma espécie de caos
(com sua complexidade) que transcende a luta entre as pulsões de vida e de
morte. Ou melhor, existe algo anterior às pulsões que move o ser humano
em direção à verdade, uma realidade última ou algo assim, que é paradoxalmente totalmente desumana. É algo que, simplesmente sendo um mundo de formas puras e vazias, “urge to exist”3 (BION, 1965, 1992).
(5) Uma outra forma que Bion desenvolve em seus últimos textos para
falar sobre a pré-concepção encontra-se na estética da “mente embrionária”. Sinônimo de mente criativa, ou de posição criativa, essa elaboração
exibe uma concepção de inconsciente que não se ocupa apenas do passado,
que é mais do que repetição. Há sempre algo de novidade, de atual, de
emergente, que a análise de Freud e, sobretudo, de Lacan freqüentemente
abandonam, ao relacionar todos os fenômenos à repetição devida a uma
fonte única alucinatória. A opção em Bion é completamente prospectiva e
temporal. Por exemplo, a mente do feto se desenvolve na “previsão” de ter
que lidar com certas situações que aparecerão no meio gasoso, mas que de
certa forma já chegaram. Desse modo, a pré-concepção é como uma “aparição”, uma “aparição” criativa porque não se repete: há uma diferença
temporal (no tempo da concepção que se forma pela realização), e há uma
diferença de alteridade (uma forma diferente sempre surge). Cabe reforçar
que nesse mundo pré-subjetivo ocorrem coisas que não são do âmbito da
fantasia, conceito que sustenta a idéia de uma fonte alucinatória comum e
de repetição, mas se trata de outra coisa que se pode chamar de imaginação radical – ressalvando não se tratar aqui de imagens visuais, mas de
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impressões cinéticas e auditivas. Elas compõem um ritmo, e esse ritmo é
essencial para a organização da mente. Existem diversos ritmos: o ritmo do
coração do bebê, do coração da mãe, o ritmo dos intestinos, do esvaziamento da bexiga, o ritmo dos impactos e o balanço do líquido amniótico –
as possibilidades são infinitas. E quando o ritmo nesse mundo pré-subjetivo – que pode ser definido tanto como um infinito vazio sem forma, como
uma massa escura, densa e compacta como um buraco negro – é conduzido
através da imaginação radical, surge uma “janela psíquica”, uma espécie
de moldura para futuras paisagens, moldura feita de um material específico: o tempo. Tempo do ritmo que começa a organizar uma prévia do mundo nas molduras que serão preenchidas depois do nascimento com as paisagens. De qualquer forma, é preciso não ignorar o meio originário, embrionário, onde ocorrem fatos que preparam o indivíduo para o outro “meio”,
que é o mundo dos objetos tais como o conhecemos. Nesse meio originário
não temos propriamente objetos, pois não podemos chamar uma moldura
temporal de objeto. Talvez possamos falar de pré-objetos.
(6) A pré-concepção mais importante para a psicanálise é a pré-concepção edípica, não só por incluir as demais, mas porque, ao se realizar em
concepções edípicas, propõe e delimita um campo de trabalho que se revela por sua complexidade, sempre mais além do que se acreditava existir no
âmbito da aplicação clássica da teoria do complexo de Édipo. Por exemplo, se o analista fizer associações com o mito de Édipo em diferentes
momentos de sua prática (como mencionado no item [3]), as associações
nunca serão as mesmas, e jamais se poderá prever aonde elas o conduzirão.
Uma característica importante da pré-concepção é sua constante
redutibilidade ao mental. Por exemplo, a pré-concepção do seio busca primeiro a mente da mãe, para daí chegar ao seio concreto, e não o contrário.
É no espaço que a mente da mãe reserva para receber a pré-concepção do
bebê que se realiza a concepção com que o bebê será alimentado pelo ritmo
do leite, do carinho, e do amor. Não é difícil entender, por esse modelo, por
que certas crianças não conseguem pegar o seio, ou por que existe em muitas pessoas uma dissociação entre o material e o psíquico (BION, 1962).
314 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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Arnaldo Chuster
Da mesma forma, a pré-concepção edípica procura a mente dos pais, para
daí chegar à realidade da família. Se isso não ocorre adequadamente, o
indivíduo pode passar a vida num estado em que ele sente as coisas mas as
não sofre, o que significa não resolver seus problemas pelo fato de não
poder atingi-los.
(7) A realização da pré-concepção edípica mostra, em primeiro lugar,
que a social-ização é a tendência constitutiva do ser humano, em oposição
à tendência narcísica. Tais tendências se situam num campo de trabalho
espectral, não-estrutural, e constituem uma das facetas do objeto psicanalítico (BION, 1962). Um aspecto profundamente prático do espectro constata-se no fato de que a social-ização, para ocorrer, necessita que a psique
renuncie às possibilidades daquilo que pode ser englobado pelo termo onipotência. Por exemplo, qualquer indivíduo, para se socializar, depende que
renuncie à crença em uma explicação única dos fatos, pois, por hipótese,
ela reproduz a crença proveniente da experiência do bebê de ser o centro do
mundo. Há, evidentemente, um montante não-quantificável dessa crença
ao qual nunca se consegue renunciar, pois além do desamparo do indivíduo frente ao grupo, que o faz se voltar para métodos da onipotência (como
as religiões), dele partem eixos de orientação (coordenadas espaciais) que
o ligam aos outros indivíduos. Assim, desde suas primeiras experiências, o
ser humano é colocado diante da necessidade de parar de acreditar que o
seio está à sua disposição constante, e que por essa constância formaria um
par exclusivo com a mãe. Sem abrir mão dessa crença, que envolve tolerar
a frustração da incompletude de não ser o todo, o bebê não consegue passar para um outro nível de experiência psíquica que é o pensar: processo
que implica o reconhecimento de que existe uma relação entre duas outras
pessoas além dele. Se não aceita essa tridimensionalidade, jamais haverá
social-ização e não poderá usufruir a função desse terceiro, inicialmente o
pai, que possui também um continente que complementa a função da mãe
naquilo que ela não pode ou não é suficiente para tal. Por exemplo, as
ansiedades derivadas da ausência da figura parental complementar, capaz
de auxiliar a mãe a lidar com os aspectos que a mãe sozinha não consegue,
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pode gerar um tipo de concepção que faz o indivíduo pensar que controlar
um problema é o mesmo que resolvê-lo. Assim, em determinados pacientes observamos, em certos momentos de suas análises, sobretudo aqueles
que envolve decisão entre dois objetos, ou quando têm de atender a dois ou
mais objetos (que pode ser um grupo de pessoas, começando, por exemplo,
pela idéia de formar uma família), um aumento de ansiedade, para a qual
solicitam um remédio ou, em geral, uma realidade material substituindo a
mental (drogas, consumismo, violência) com que esperam o “controle”
(sempre onipotente) da situação.
(8) A afirmações contidas em (6) expressam as capacidades humanas
e, simultaneamente, os limites. Há uma interação constante entre capacidade e limite. Dentre as capacidades humanas que são constituídas pela préconcepção edípica encontra-se o que Bion chamou de função psicanalítica da personalidade. O encontro dessa função do analisando com a função do analista, mais os meios (ou as mínimas condições necessárias) que
organizam esse encontro são o que constitui a atividade a que chamamos
de psicanálise.
(9) A formulação (7) pode também ser dita da seguinte forma: a psicanálise não é uma atividade que se fornece a um paciente tal como se fosse
um remédio ou um tratamento médico. Tampouco se pode ensinar psicanálise como um ofício. Ela só pode ser desenvolvida se for trazida para fora
dos indivíduos. Em outras palavras, a psicanálise é uma habilidade humana, uma habilidade da sensibilidade humana para com a vida em geral,
que o assim chamado processo analítico pode trazer à tona e fazer evoluir.
Algumas pessoas têm essa habilidade mais do que outras. Por isso vemos
indivíduos evoluírem bem com uma sessão por semana, e outros, apesar de
4-5 sessões por semana, não conseguirem evoluir ou evoluem muito pouco.
(10) As características até aqui descritas da pré-concepção edípica
permitem sugerir que, onde Freud via a dissolução do complexo de Édipo,
Bion percebe a evolução do complexo de Édipo. Ou seja, de certo modo
podemos dizer que Bion coloca em questão o futuro da humanidade depen316 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 317
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dente da evolução da capacidade humana para se constituir social-mente.
Portanto, o futuro da humanidade dependerá da capacidade crescente para
lidar com as diferenças entre os seres humanos. Chamei a isso de princípio ético-estético de singularidade (CHUSTER, 2003), regendo nítidos
confrontos, nos quais não só se destaca uma indecidibilidade da origem
dos fenômenos, para evidenciar que a solução entre as pessoas não pode
mais ser a eliminação pura e simples do que é diferente. Por exemplo, certos pacientes trazem a crença de que um grupo só se constitui excluindo o
diferente, para depois desvalorizá-lo e, finalmente, destruí-lo. É como se o
grupo só pudesse ser constituído em oposição a uma diferença que deve ser
excluída. O processo transferencial, na realidade o tipo de grupo interno
dos indivíduos, pode em certos pacientes buscar envolver o analista numa
relação conivente, na qual não se discute a representação social do indivíduo, quer por sua responsabilidade nos acontecimentos, quer pela necessidade fundamental de se ter mais de um vértice para elaborar os conflitos.
(11) O item (9) coloca profunda responsabilidade na psicanálise com
relação ao futuro da humanidade. Exige do psicanalista um posicionamento
público mais claro sobre os conflitos humanos.
(12) A evolução do complexo de Édipo é um constante atravessar de
cesuras. A humanidade só evolui quando consegue, ao atravessar uma dessas cesuras, extrair pensamento gerador de uma criação histórica que diminui o desrespeito às diferenças e melhora a qualidade de vida.
(13) A formulação (11) permite dizer que sempre há algo mais geral
que o indivíduo, que o supera e que o faz mudar. Esse algo é a
tridimensionalidade edípica do pensamento, expressa pela coletividade e
sua instituição. Assim, se o indivíduo se recusa a mudar, a vida vai mudálo, e em geral para pior.
(14) Como nunca se pode colocar o indivíduo acima dessa
tridimensionalidade, mudanças ocorrem o tempo todo, tanto no analisando
como no analista, pelo simples contato (BION, 1979). O contato é sempre
um gerador de turbulência emocional, quer exista linguagem verbal ou
não.
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(15) Em outras palavras, no centro da experiência analítica existe “O”
evoluindo por meio da pré-concepção, que busca se realizar como concepção num espectro de desenvolvimento (negativo ou positivo)/
(narcisismoÛsocial–ismo) dentro de um princípio de complexidade inerente a todo corpo biológico. Esse conjunto, o objeto psicanalítico, tem a
seguinte escrita: {ψ(ξ) (±Υ) Μ}.
(16) O objeto psicanalítico desenvolve-se em quatro níveis do espec⇔social-ismo: crer, pensar, aprender da experiência, criar,
tro narcisismo⇔
níveis nos quais a pré-concepção se realiza. Cada nível se projeta em três
domínios em que podem ser captados: sentidos (corpo), mitos (teorias) e
paixões (sentimentos). As mudanças se passam tanto de um nível para outro (intrapsiquicamente) ou se passam nas aplicações (ou domínios de captação). Cada nível é como uma espécie de cilindro (uma janela psíquica
aberta pela realização da pré-concepção) cujas paredes são feitas de tempo,
e contém argumentos circulares com diâmetros estabelecidos pelo movi⇔ D. Desse modo, temos oscilações: estreiteza de pensamenmento PS⇔
⇔multiplicidade de vértices; monossentimentalismo⇔
⇔pluralidade afeto⇔
tiva; unificação de hipóteses⇔complexidade. Um exemplo prático dessa
teoria pode ser encontrado quando nos deparamos com crenças sistematizadas. Verificar-se-á que não há real mudança se não houver evolução para
o nível do pensar. Nessa transição, tanto o analista quanto o analisando se
darão conta de uma “controvérsia” que se pode dar entre o analista de hoje
e o de ontem, que pode ser representada pelo relato de conflito entre quaisquer pessoas. O estabelecimento da controvérsia permite decidir o caminho a seguir. Essa precisa, no entanto, ser uma confrontação genuína e não
um impotente bate-boca entre oponentes, cujas diferenças de visão não são
enunciadas. Assim, torna-se necessário vincular a divergência ao vértice.
Caso contrário, corre-se o risco de entrar em discussões do tipo que Bion
(1970) menciona: de um engenheiro aeronáutico querendo discutir que a
sexualidade infantil não existe porque não “vê” evidências de tal coisa.
Podemos aceitar que ele não a “veja”, afinal suas teorias são sobre construção de aviões; o que não se pode negar é que ele afirma tal coisa por esse
318 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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vértice, e isso é uma espécie de “cegueira” – como a de Édipo ou a de
Tirésias.
(17) O analista coloca-se na sessão de uma forma suscetível para receber as aplicações do objeto psicanalítico. Para isso, precisa contar com sua
função psicanalítica da personalidade. Ou seja, as habilidades entre os analistas variam enormemente, assim como em cada analista de uma situação
para outra. A habilidade psicanalítica não é estável e nem estabelecida,
pois depende do que interage com a configuração edípica e de sua evolução. O que pode aprimorar essa habilidade, além de uma análise pessoal
tão completa quanto possível (que não se pode definir a priori o que seja),
é: 1) a capacidade para alcançar uma diferença máxima possível em relação ao analisando, graças a um estado mental o mais livre possível de memória, desejo e necessidade de compreensão; 2) o exercício associativo
com o mito de Édipo (CHUSTER, 2002, 2003) para desenvolver a intuição e a capacidade de decidir uma versão adequada (language of
achievemnent, Bion, 1970) a ser utilizada na história que se desenrola no
processo analítico.
(18) A disciplina descrita em (16) foi também transcrita pela expressão capacidade negativa (BION, 1970). Sugiro agora que também pode
ser traduzida pela frase do bilhete que Nietzsche escreveu ao seu amigo
George Brande: “Depois de teres me descoberto, não foi difícil me encontrar; a dificuldade agora é me perder...”. Nesse bilhete, como esclareceu
Carneiro Leão (1977), o filósofo não está falando de Zaratustra, mas do
pensamento e do seu modo extraordinário de operar, isto é, como o pensamento se põe em obra, age e trabalha de acordo com os três verbos: “descobrir”, “encontrar” e “perder”. No processo analítico, o mesmo procedimento compõe as possibilidades de mudança.
(19) “Descobrir” o inconsciente no sonho e no sonhar; “encontrar” o
inconsciente no passado reatualizado, trazido pelo “sonhar” da interpretação; finalmente, remeter todos os achados para a aurora do esquecimento e
prosseguir descobrindo o novo. Três movimentos de Uma memória do futuro (BION, 1975, 1977, 1978) que apontam para um pensamento crítico
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que delimita ética e esteticamente nosso campo de mudanças, e que nos
deve acompanhar no processo analítico. Dir-se-á, diante da realidade do
inconsciente, que a interpretação em geral, qualquer que seja ela, sempre
chega muito tarde. Sobre isso cito Baudrillard (2001), que explica: o pensamento vem tarde demais por um dia, como o Messias de Kafka, ou chega
no final do dia, como a coruja de Hegel. Tudo não passa de uma profecia
retrospectiva, uma espécie de sombra platônica, uma assombração dançando no muro dos acontecimentos, na caverna da História. E mais, a História
não oferece uma reprise, uma nova chance – somente a crítica faz isso,
permitindo melhorar o que foi feito, transcender a si mesmo.
(20) O instrumento crítico desenvolvido por Bion teve na Grade uma
expressão sistematizada, que depois foi desfeita em prol de uma
ressignificação por elementos estéticos. Todavia, ela mantém sua proposta
e pode ser usada como ponto de partida para continuar alimentando a crítica. Em função disso, apresentei uma Grade edípica (CHUSTER, 2002,
2003), seguindo essa sugestão de Bion para sistematizar Û ressignificar
ética-esteticamente. No eixo horizontal, destinado à sistematização de uso
das formulações, retomei a categoria “indagação”, da forma apresentada
originariamente por Bion como categoria “Édipo” (BION, 1962, 1992).
Por essa razão, ressaltei que toda vez que o analista indaga, ou produz uma
interpretação, o faz através de sua configuração edípica, e que não há uma
outra forma de fazê-lo. Dessa forma, em toda interpretação o analista
exibe sua configuração edípica. Sabemos também que não há no inconsciente um desejo de ser analista. O real desejo inconsciente de um indivíduo que se tornou analista pode ser o de matar seu analisando, copular com
ele, retaliá-lo, escravizá-lo, alimentá-lo, devorá-lo, mas não o de analisálo. Sabemos também que para cada indivíduo um desses desejos é mais
constante do que para outros, e que produzem a tendência para o
desequilíbrio da configuração edípica diante de situações de ansiedade.
Certos pacientes, peculiarmente aqueles que têm uma parte psicótica da
personalidade mais desenvolvida, desenvolvem uma habilidade para captar esse “desejo” do analista e podem assim “satisfazê-lo”. Desse modo, a
320 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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Arnaldo Chuster
análise toma um rumo no qual nada acontece. Se tal estado de coisas é
percebido pelo analista, uma mudança de vértice corresponderá a uma reação do paciente através de uma barreira de mentiras (transformações
projetivas). Se o analista as percebe e as interpreta, o paciente vai tentar
provar, num quadro de intensa rivalidade, que a mentira é moralmente superior à verdade (transformações em alucinose). Nesse ponto, talvez pouco
se possa fazer em matéria de interpretações. Uma Grade Negativa
(CHUSTER e CONTE, 2003) pode ser útil para desenvolver hipóteses sobre essa situação, que a seguinte citação de Bion (1975) ilustra bem: “A
possibilidade de encontrar velhos amigos no Inferno torna o seu panorama menos apavorante do que o panorama do céu, para o qual a vida na
Terra não nos preparou adequadamente. Mas isto também se aplica a decisões que são tomadas repetidamente. A gente pode deplorar uma decisão
infeliz; quão terrível seria se nunca tivéssemos tomado decisões infelizes
ou feito interpretações infelizes! Em análise, temos que nos acostumar a
lidar com a recuperação de uma decisão infeliz e com o uso da decisão
errada. À luz dessas observações, nem se cogita de uma cura”.
(21) Então, o que fazer? O começo de qualquer resposta, o que não
significa que chegaremos a alguma, sugere que o analista deve mudar sempre de vértice, que não deve interpretar sempre na mesma direção, nem
repetir interpretações, proferir indagações desnecessárias, ou responder
questões que o analisando deveria responder por si mesmo. A mudança
constante de vértice pode prevenir uma análise dominada pela tirania da
memória e do desejo. Mudar sempre, mais do que inevitável, é uma responsabilidade do analista durante o processo. Ou o analista muda, ou o
processo vai mudá-lo, e sempre para pior. Por outro lado, é inegável que o
analisando descrito nesse trabalho (bem como os outros exemplos) apresenta situações muito primitivas, cuja solução deve ser depositada na esperança de que o processo analítico consiga realizações que gerem uma outra
concepção de indivíduo com a qual se identifique e, com isso, possa funcionar de forma diferente. Tal assertiva, no entanto, deve ser tomada como
parte de um contexto traduzido pela seguinte frase de Bion em Taming wild
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thoughts (1997): “imaginações especulativas, por mais ridículas, neuróticas ou psicóticas, podem ser estágios no caminho do que no final será
visto como formulações psicanalíticas científicas”.
(22) As afirmações de (21) reforçam a necessidade de uma teoria das
transformações (BION, 1965), na qual encontramos a perspectiva de observar as mudanças ao longo do processo de uma forma distinta das teorias
clássicas.
Sinopse
O autor salienta as divergências sobre o significado de mudança psicanalítica, e desenvolve a tese de que mudanças no analista ao longo do processo são
vividas pelo analisando como mudanças de analista. Isto é parte intrínseca do
processo analítico, como mostrou Bion. Qualquer outra visão recai num conluio
para evitar o novo e o desconhecido.
Para ilustrar essa articulação, o autor apresenta um caso clínico. A elaboração do mesmo, ilustra também a posição teórica atual do analista, particularmente sobre o objeto psicanalítico formulado por Bion.
Summary
Changes in the Analyst Throughout the Process
The author points out the divergences about the meaning of psychoanalytic
changes and develops a thesis which states that changes in the analyst are felt by
the analysand as changes of psychoanalyst. This is intrinsic to psychoanalytic
process, as stated by Bion. Any other standpoint is a kind of collusion to avoid the
new and the unknown.
To ilustrate those ideas the author presents a clinical case. The working
through of the case also illustrates the present ideas of the author about the
psychoanalytic object as formulated by Bion.
Sinopsis
Cambios en el analista a lo largo del proceso
El autor resalta las divergencias sobre el significado de cambio psicoanalítico,
y desarrolla la tesis de que cambios en el analista a lo largo del proceso las vive el
analizando como cambios de analista. Esto forma parte intrínseca del proceso
analítico, como lo mostró Bion. Cualquier otra visión recae en una colusión para
322 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Palavras-chave
Mudança do analista; Processo psicanalítico; Tratamento psicanalítico; Teoria das transformações; Grade; Cesura; Turbulência emocional.
Key-words
Analyst’s change; Psychoanalytical process; Psychoanalytical treatment;
Theory of transformations; The grid; Caesura; Emotional turbulence.
Palabras-llave
Mudanza del analista; Proceso psicoanalítico; Tratamiento psicoanalítico;
Teoria de las transformaciones; La tabla; Cesura; Turbulencia emocional.
Referências
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BION, W.R. (1962). Aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Zahar.
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Imago.
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CARNEIRO LEÃO, E. (1977). Aprendendo a pensar. Petrópolis, Vozes.
CASTORIADIS, C. (1999). Feito e a ser feito. Rio de Janeiro: DP & A.
CHUSTER, A. (1989). Um resgate da originalidade: as questões essenciais da
psicanálise em W.R. Bion. Rio de Janeiro: Degrau Cultural.
______. (1999). W. R. Bion: novas leituras: a psicanálise dos modelos científicos
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 323
Arnaldo Chuster
evitar lo nuevo y lo desconocido.
Para ilustrar esa articulación, el autor presenta un caso clínico. La elaboración
del mismo, ilustra también la posición teórica actual del analista, particularmente
sobre el objeto psicoanalítico formulado por Bion.
MUDANÇAS
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LONGO
DO
PROCESSO
aos princípios ético-estéticos. Rio de Janeiro: Co. de Freud.
______. (2002). An Oedipal Grid. Trabalho apresentado na III Conferência Internacional sobre a Obra de Bion. Los Angeles, Califórnia.
______ (2003). W. R. Bion: novas leituras: a psicanálise dos princípios éticoestéticos à clínica. Rio de Janeiro: Co. de Freud.
CHUSTER, A.; Et al. (2003). A Psicanálise dos princípios ético-estéticos à clínica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado no XIX Congresso Brasileiro de
Psicanálise. Recife, PE, 1 a 4 de outubro de 2003.
Dr. Arnaldo Chuster
Rua Visconde de Pirajá, 547, 1010, Ipanema
22410-003 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/Fax (0xx21) 259.7298
E-mail: [email protected]
324 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Daniel Widlöcher
Membro Titular da Associação
Psicanalítica Francesa.
Na França, o advento dos medicamentos antidepressivos e
“ansiolíticos” no campo terapêutico
coincidiu com o desenvolvimento
das práticas psicanalíticas. Uma geração de jovens psiquiatras viu-se
assim confrontada, em meados dos
anos cinqüenta, com condutas terapêuticas e teorias psicopatológicas
dificilmente conciliáveis. Foram
necessárias várias décadas para que
se configurasse uma certa coerência
nas atitudes, sem que realmente se
encontrasse uma visão integradora
das modalidades de ação dos tratamentos. Aqui, portanto, não serão
tratadas as indicações terapêuticas,
mas sim tentaremos precisar alguns
pontos de referência para desenvol-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 325
Daniel Widlöcher
Depressão e
Ansiedade
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
ver essa visão integradora da teoria, condição necessária para assentar nossa prática.
Psicogênese da depressão e medicamento
A grande eficácia dos antidepressivos não deve fazer com que o interesse da psicoterapia seja esquecido. A oposição entre uma depressão de
origem orgânica e uma depressão psicológica acessível à psicoterapia pode
ser considerada uma hipótese definitivamente refutada. Mas, com demasiada freqüência, a teoria unicista da depressão serviu para confrontar uma
explicação organicista e uma interpretação psicológica. Uma perspectiva
resolutamente unicista, mas que levasse em consideração esses dois modos
de explicação, deveria imperativamente distinguir a questão do mecanismo e da causa. Em termos de mecanismo, estar deprimido, isto é, agir como
deprimido é, ao mesmo tempo, reagir ao ambiente e a si mesmo e dispor de
um cérebro que produz essa reação. Em termos de causa, estar deprimido
resultará de um ambiente ou de uma personalidade particularmente
“depressiogênica”, ou de um cérebro particularmente apto a produzir a resposta depressiva. Em termos de mecanismo, a psicoterapia encontra uma
aplicação lógica em todas as formas de depressão; em termos de causa, ela
é, sobretudo, indicada nas formas em que os fatores psicossociais desempenham um papel decisivo.
Se a psicoterapia se encontra assim justificada, em princípio, isso não
quer dizer que ela seja realizável na prática. Sem retomar a natureza das
operações mentais que caracterizam a depressão, é necessário enfatizar a
rigidez desse sistema de pensamento. Toda argumentação se choca com
uma lógica estreita, mas sem falha. Toda interpretação, e, em geral, toda
referência a uma outra maneira de pensar se choca com uma rejeição obstinada. E não existe psicoterapia sem uma relativa aliança de trabalho, quer
dizer, uma certa intenção de mudar e uma capacidade de se apropriar de, de
fazer seus alguns pensamentos do terapeuta. Essa psicorigidez do pensamento depressivo é, evidentemente, mais marcada nas formas graves. E
nós ignoramos completamente como a persistência de um mecanismo bio326 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
O complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta, atrai
para si, de todos os lados, energias de investimento (que nomeamos,
nas neuroses de transferência, “contra-investimentos”) e esvazia o ego
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 327
Daniel Widlöcher
lógico patogênico mantém essa resistência “psicológica” à mudança. É
sempre surpreendente observar como um sistema de pensamento tão inacessível a toda argumentação e a toda interpretação se transforma, em alguns dias, sob o efeito de um medicamento bem administrado. Esse fato
reduz, evidentemente, o papel prático da psicoterapia, cujas aplicações são
consideradas principalmente nas formas moderadas ou leves, nas formas
resistentes ao tratamento medicamentoso, com freqüência com evolução
subaguda, e nos períodos intermediários. As duas primeiras indicações permanecem, no entanto, discutíveis. O fracasso do medicamento não é uma
garantia de acessibilidade ao trabalho psicoterápico, e devemos desconfiar
de uma atitude derrotista que consiste em se resignar rápido demais diante
desse fracasso. As formas moderadas e mais leves são, com freqüência,
rapidamente corrigidas pelo medicamento. Em outros termos, não se deve
colocar o problema da indicação de uma psicoterapia como uma alternativa ao medicamento. As duas questões devem permanecer completamente
independentes. Ainda mais que, como veremos, estudos empíricos parecem demonstrar que os efeitos dessas duas abordagens terapêuticas são de
natureza diferente.
A única questão que temos que nos colocar é, portanto, independentemente da prescrição medicamentosa, se um dado paciente, nesse momento
de sua evolução, é acessível ou não a uma intervenção psicoterápica, e
definir esse modo de intervenção. É necessário para tanto especificar os
objetivos e os meios das intervenções psicoterápicas de que dispomos.
Como conciliar o que sabemos da psicogênese do estado melancólico
com o efeito dos medicamentos antidepressivos?
Uma observação, quase acidental, coloca em Luto e Melancolia a
existência de um fator econômico geral que poderia desempenhar um papel em alguns estados melancólicos:
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
até o empobrecimento total: ele pode se revelar facilmente resistente à
vontade de dormir do ego. Um fator verdadeiramente somático, não
elucidável pela psicogênese, se manifesta na sedação regular do estado
durante a noite. A essas considerações se liga a questão de saber se
uma perda do ego, sem que o objeto seja considerado (lesão do ego,
puramente narcísica) não é suficiente para engendrar o quadro da melancolia, e se um empobrecimento diretamente tóxico em libido do ego
não pode produzir algumas formas da doença.
Alguns anos mais tarde, em Inibição, Sintoma e Angústia, o princípio
de uma inibição global é igualmente apontado e seu papel na melancolia é
detalhado:
As inibições mais gerais do ego seguem um outro mecanismo que é
simples. Quando o ego está implicado em uma tarefa psíquica de uma
dificuldade particular, como, por exemplo, um luto, uma enorme repressão de afeto, a obrigação de se sujeitar às fantasias sexuais que
vêm à tona constantemente, ele sofre um tal empobrecimento da energia disponível para ele que é obrigado a restringir seu gasto em muitos
lugares ao mesmo tempo, como um especulador que imobilizou seus
fundos em seus empreendimentos. Pude observar um exemplo instrutivo de uma tal inibição geral intensa e de curta duração em uma pessoa
acometida por uma doença “de contrariedade” que caía numa fadiga
paralisadora, com duração de um a vários dias, em situações que deveriam manifestamente levar a uma explosão de fúria. A partir daí, uma
via deveria ser encontrada que levasse à compreensão da inibição geral que caracteriza os estados de depressão e o mais grave desses, a
melancolia.
A comparação entre os dois textos é interessante, pois se em Luto e
Melancolia trata-se de um fator que interviria somente em certos estados e
cuja origem seria de natureza tóxica, em Inibição, Sintoma e Angústia trata-se de um mecanismo mais geral que seria encontrado em diferentes estados patológicos e cuja natureza psicogênica não seria colocada em dúvida.
A oposição entre depressão psicogênica e tóxica no primeiro texto é subs328 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 329
Daniel Widlöcher
tituída pela idéia de um mecanismo comum, de uma resposta “energética”
a fatores psicogênicos. Dever-se-ia admitir duas formas de depressão: uma
psicogênica, outra orgânica (chamada tóxica), ou reconhecer em toda depressão o intricado de mecanismos ligados à vivência intencional e mecanismos ligados a uma energia psíquica indiferenciada?
Quando foram descobertos os tratamentos biológicos das depressões,
a mesma questão foi colocada com uma acuidade renovada. Já a propósito
da eletroconvulsoterapia, nos anos quarenta e início dos anos cinqüenta,
nos perguntamos se uma resposta positiva a essa terapêutica era a prova da
origem orgânica da doença. Alguns acreditaram ser possível opor ainda
mais nitidamente que antes depressão endógena (curável pela ECT) e depressões reacional e neurótica, suscetíveis de serem tratadas por
psicoterapia. Foi, porém, necessário reconhecer que depressões que pareciam francamente reacionais a eventos da vida (como os lutos patológicos,
por exemplo) respondiam, no entanto, favoravelmente, ao tratamento biológico. Isso ficou ainda mais evidenciado quando foram descobertos os
medicamentos antidepressivos (Imipraminas e IMAO). De fato, os medicamentos, sendo de manejo muito mais fácil que os “eletrochoques”, eram
utilizados largamente nos estados depressivos nos quais os fatores psíquicos desempenhavam um papel evidente. A oposição entre depressão orgânica e psicogênica não era mais aceitável. Foi preciso admitir que todas as
depressões curáveis por medicamentos eram de origem orgânica, senão
seria necessário se perguntar através de qual mecanismo o medicamento
agia nos estados manifestamente psicogênicos.
Os psicanalistas que se interessaram por essa questão puderam escolher entre duas respostas. A primeira foi ver no efeito do medicamento
apenas uma ação puramente sintomática. Mas essa hipótese absolutamente
não se sustentou; os antidepressivos não são psicoestimulantes, muitos deles são até sedativos. É evidente que o efeito específico desses medicamentos sobre os estados depressivos e sobre alguns estados obsessivos requer
uma outra explicação.
A tese que defendo há mais de vinte anos retoma a idéia da inibição
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
geral proposta por Freud e retomada por diferentes autores sob o termo de
“resposta depressiva de base”. Segundo essa tese, nos estados depressivos
existe uma inibição da implementação da ação, inibição que seria corrigida
pelos medicamentos antidepressivos e que faria da depressão uma verdadeira doença psicossomática.
Existem duas formas de inibição depressiva. A primeira afeta um setor dos conteúdos do pensamento do sujeito. É a conseqüência do investimento dominante de alguns conteúdos de pensamento. É assim que se pode
descrever o efeito inibidor do sistema de pensamento “agressivo” ou da
experiência de perda de objeto sobre os outros programas de pensamento
do indivíduo. Este último, ocupado com a temática de destruição ou de
perda, não pode ser o lugar de ativação desses outros programas. A inibição resulta de uma competição entre sistemas de pensamento. De um ponto
de vista semiológico, falaremos de monoideísmo doloroso e descobriremos
os conteúdos de pensamento dominantes (perda de objeto, auto ou heteroagressividade, perda de auto-estima, etc.).
Essa forma de inibição atinge representações que são facilmente expressas em palavras. Pode-se facilmente descrever as cenas concretas e
particulares que constituem o conteúdo dessas representações (não rever
mais seu filho, não poder escrever a X, etc.) que se pode reagrupar em
classes mais gerais (pessimismo, sentimento de incapacidade). No entanto,
essas representações podem ser conscientes ou inconscientes, no sentido
psicanalítico do termo. O sujeito pode ignorar sua ambivalência ou sua
megalomania narcísica. São mecanismos de repressão, de clivagem ou de
projeção que impedem essas representações de serem expressas em linguagem consciente. Mas são as representações concretas e particulares que são
assim reprimidas.
A segunda forma de inibição observável na depressão afeta o conjunto
da atividade do sujeito. Variável conforme as situações ou a hora do dia, ela
atinge indiferentemente todos os conteúdos do pensamento e todos os atos
motores. De um ponto de vista semiológico, falaremos de uma lentificação
psicomotora, de alterações cognitivas, particularmente da memória e da
330 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 331
Daniel Widlöcher
atenção, e de impressões subjetivas interpretadas de acordo com os casos
como uma fadiga, uma falta de vontade ou uma falta de concentração. Esses sintomas não se referem a conteúdos de pensamento, mas a um
processamento da informação e dos mecanismos de decisão que dizem respeito a um nível mais elementar da atividade mental.
Temos de nos render à evidência: a depressão expressa, ao mesmo
tempo, um certo estado do sistema nervoso central, sobre o qual as moléculas químicas agem potentemente, e um modo de resposta ao mundo que
revela uma estrutura psicopatológica complexa.
Um certo número de argumentos clínicos defende essas duas realidades. Conhecemos cada vez melhor os estados depressivos que não se fazem acompanhar de alterações do humor: os estados de fadiga não orgânica, os estados mascarados por uma sintomatologia somática que reagem
notavelmente bem ao tratamento antidepressivo. E, nesses casos, a importância maior da lentificação, sua sedação sob tratamento, não parecem de
maneira alguma relacionadas com o humor. Inversamente, vários estados
de tristeza apresentam quase toda a sintomatologia depressiva sem esse
componente comportamental de base. A experiência de luto, as situações
de frustração, as grandes feridas narcísicas, os estados neuróticos dominados pela carência de satisfação libidinal e a força da pulsão de morte se
assemelham ao estado depressivo, mas reagem muito imperfeitamente aos
antidepressivos. É por isso que, no contexto muito vago das depressões
ditas neuróticas e reacionais, seria conveniente distinguir respostas
depressivas verdadeiras, com lentificação psicomotora, sensíveis à medicação, e estados de sofrimento mental sem alteração do tempo da atividade
e não reagente à ação antidepressiva dos medicamentos. Essa maneira de
ver é corroborada por dois fatos que foram ressaltados várias vezes: dentre
todos os sintomas de depressão, a lentificação psicomotora é um dos melhores preditores da ação dos medicamentos e é um dos melhores testemunhos da origem endógena de uma depressão.
Se está bem estabelecido que a lentificação psicomotora, em sentido
amplo, é um componente fundamental dos estados depressivos e que esse
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
componente é fortemente dependente de mecanismos neuronais sensíveis
à ação dos medicamentos, evidentemente, é muito tentador tentar
aprofundar nossa compreensão de seu mecanismo íntimo. Trata-se, ao que
parece, de um tipo de resposta muito universal. Está presente nos quadros
clínicos descritos sob o termo “depressão anaclítica do lactente”. Essa resposta não é talvez própria do homem; foi possível mostrar que, em outros
primatas, a separação dos filhotes de suas mães levava a inibições
comportamentais que reagiam aos medicamentos antidepressivos. Vários
estudos experimentais em outros mamíferos mostram que a resposta de
paralisia da atividade é uma reação natural causada por uma alteração primária do substrato neuronal ou por uma alteração primária da relação com
o mundo.
A lentificação depressiva é, aliás, um exagero do que pode ser observado no homem em condições não patológicas. O anúncio de uma grande
infelicidade é, freqüentemente, marcado por uma paralisia da expressão
motora e da atividade. Essa reação, na maior parte do tempo, é temporária.
Somente quando persiste e se agrava é que falamos de estado depressivo.
Aliás, consideramos que essa resposta depende de fatores psicológicos e
orgânicos. O que denominamos depressão endógena reflete a facilidade de
alguns organismos nervosos de desencadear esse tipo de resposta, independentemente até de toda causa psicológica. Provavelmente, aliás, exista em
cada um de nós variações no ritmo de atividade que correspondam a uma
aceleração ou a uma lentificação endógena e cíclica.
Se tentarmos, agora, detalhar ainda mais o mecanismo, nos depararemos com questões apaixonantes. Em que consiste essa modificação do
tempo da atividade? Não se trata de um alongamento do tempo da realização dos atos, mas, mais provavelmente, de um alongamento do tempo de
pausa na sucessão dos atos. Tratar-se-ia, por isso, de uma perda da incitação a executar o ato seguinte? E em que consiste essa perda de incitação? É
surpreendente ver que o estado maníaco nos oferece exatamente o contrário da lentificação: a fuga de idéias, a hipersintonia, o taquipsiquismo são
expressões de uma aceleração do tempo, de uma facilitação da ativação
332 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 333
Daniel Widlöcher
dos atos. Para sermos bem exatos, quando dizemos ato, entendemos, nesse
contexto, tanto os atos motores e os da palavra quanto as operações mentais.
Podemos pensar que estudos cognitivos apurados do ato de decisão,
juntamente com os estudos sobre o ritmo da atividade, ligados talvez ao
estudo do sono, poderão nos oferecer a chave do mecanismo. Construímos
provas de tipo psicofísico que procuram tornar mais preciso esse tipo de
alteração cognitiva, não observável pelos métodos de investigação clínica
habituais, mas detectáveis por aparelhagens experimentais que tratam de
fenômenos da ordem do centésimo de segundo.
Essas últimas observações nos permitem uma conclusão de ordem
geral. Em psicopatologia, é necessário renunciar à crença de que podemos
analisar todos os processos mentais no mesmo nível de observação. O que
a investigação psicanalítica acrescenta nos estados depressivos é um conhecimento individual e geral das grandes estruturas de pensamento que
exploram a intencionalidade das representações. A busca de amor, a posição narcísica, a agressão contra o objeto mental definem tais planos de
ação revelados pelas verbalizações do sujeito. Vimos que a doença
depressiva poderia ser considerada como a resultante, em vários casos, de
uma perturbação desses planos de ação e da dominação do aparelho psíquico por essas estruturas psicopatológicas. Por outro lado, a lentificação
psicomotora, que afeta o conjunto das atividades do sujeito, diz respeito a
uma perturbação subclínica que altera mecanismos elementares da associação dos atos que escapa ao “olho nu” do clínico. É claro que tanto os
sistemas de ação quanto essa perturbação cognitiva fundamental expressam alterações funcionais do sistema nervoso central. Porém, se sabemos
pouco sobre as conexões neuronais que entram em jogo nas regulações
cognitivas fundamentais da atividade mental, sabemos ainda menos sobre
as conexões que organizam o sistema de ação que o clínico observa. Os
medicamentos antidepressivos agem, provavelmente, nos sistemas
neuronais monoaminérgicos que regulam as operações cognitivas de base.
Dificilmente imaginamos que eles possam intervir eletivamente nas cone-
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
xões finas que regulam um ou outro sistema de ação. Não há, pois, nada de
surpreendente no fato de que suas ações atinjam a lentificação da atividade
e ajam apenas secundariamente nesses sistemas.
Uma segunda conclusão, de ordem terapêutica, pode ser proposta. A
ação psicoterapêutica é exercida nos sistemas de ação. Esse tipo de intervenção será tanto mais desejável quanto a resposta depressiva for secundária a essas perturbações psicopatológicas de nível elevado; com a condição, no entanto, de que um mecanismo neuronal elementar, em parte
irreversível, não seja colocado, uma vez que, ao criar uma lentificação global da atividade, viria limitar ou anular a ação psicoterapêutica. É nesse
nível mais elementar que a ação dos antidepressivos é exercida, tanto quando a lentificação é secundária aos mecanismos psicopatológicos complexos, como quando predominam fatores endógenos, genéticos ou adquiridos.
A vantagem teórica desse modelo é de tornar compatíveis a unicidade
do mecanismo da depressão e o dualismo de suas causas. Sua vantagem
prática é de constituir um enquadre claro e, parece-me, eficaz para articular
as diferentes estratégias terapêuticas.
Durante a crise depressiva aguda, dois princípios me parecem importantes. O primeiro diz respeito às indicações de uma psicoterapia de longo
prazo; o segundo refere-se à prioridade conferida aos medicamentos.
A decisão de empreender uma psicoterapia de longo prazo, em particular em psicanálise, não pode e não deve ser discutida durante um estado
depressivo. Primeiramente, é muito difícil de avaliar corretamente a personalidade do sujeito. O pensamento depressivo mascara alguns traços e
amplifica arbitrariamente outros. É, particularmente, muito difícil evidenciar os conflitos intrapsíquicos permanentes e os mecanismos de defesa
habituais. Além disso, as intenções do paciente podem mudar completamente após a cura do estado depressivo, seja porque à recusa inicial seguese uma autêntica demanda de ajuda, seja, ao contrário, porque, após se
livrar da experiência depressiva, o paciente, com ou sem razão, não sente
mais nenhuma necessidade de se engajar em um tal tratamento.
334 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 335
Daniel Widlöcher
O segundo princípio diz respeito à necessidade do tratamento
medicamentoso. A dificuldade é de saber até que ponto um sistema de pensamento “depressiogênico” é reversível espontaneamente ou sob a influência de uma psicoterapia. Nesse ponto, carecemos cruelmente de estudos
comparativos. Na falta de dados objetivos, parece que a irreversibilidade é
temível e, portanto, o tratamento medicamentoso é necessário cada vez que
se constata uma alteração estável da capacidade para agir, para falar e para
pensar. Em caso de dúvida, é melhor um tratamento de prova que uma
abstenção terapêutica.
Estes dois princípios não contradizem a necessidade ou a oportunidade de oferecer ao paciente uma ajuda psicoterápica no período agudo. Em
todos os casos, parece necessário ajudar o paciente a tomar consciência dos
eventos que puderam desempenhar um papel no desencadeamento da crise
aguda (luto, decepção, ferida narcísica, etc.). Parece igualmente necessário
que o paciente tome uma certa consciência da condição na qual se encontra. É bom que considere a depressão como um estado de doença e que
estabeleça uma diferença com as atitudes legítimas que podem constituir
alguns sistemas de pensamento “depressiogênico”. Ele deve saber que seus
esforços pessoais podem ser apenas limitados, que toda decisão de vida
importante deve ser postergada e que, em regra geral, não é modificando
subitamente suas condições de vida que as dificuldades serão ultrapassadas. A “cura” requer um certo tempo. É preciso tolerar a presença do medicamento, tanto por seus efeitos secundários incômodos quanto por seu valor simbólico geralmente negativo. Curar-se de uma depressão não é anular
nem mascarar o sofrimento ou as dificuldades da vida; é recuperar a força
(através da liberação da inibição) para tratá-las ativamente em lugar de
permanecer paralisado em uma posição letal.
Além dessas exigências mínimas, estratégias mais ambiciosas podem
ser instituídas. Elas dependem da gravidade do estado depressivo, dos interesses do paciente e da competência do psiquiatra. Pode-se recorrer a uma
análise psicodinâmica das relações com o ambiente ou a uma psicoterapia
focal de inspiração psicanalítica. Esta última poderá objetivar a dimensão
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
sadomasoquista que se esconde atrás das queixas, a megalomania narcísica
dissimulada atrás das idéias de inferioridade e das condutas de fracasso, o
luto inconsciente de um objeto cuja perda simbólica ou real é tratada pela
repressão, isolamento ou negação.
Portanto, é somente no período de remissão, tendo ou não terminado o
tratamento medicamentoso, que será discutida a oportunidade de uma
psicoterapia de longo prazo. Aliás, os objetivos deverão ser discutidos com
cuidado (prevenção de novos episódios, melhora das condições de vida,
tratamento de distúrbios neuróticos ou narcísicos permanentes, de um estado limítrofe ou de uma organização patológica do caráter, etc.).
O que parece fundamental é, antes de todo início de tratamento, relacionar os efeitos esperados (objetivos de vida) às modificações do funcionamento mental permanente que permitiria obtê-los. Não é a psicoterapia
que trata os sintomas ou muda a vida, são as mudanças das estruturas mentais realizadas pela psicoterapia (objetivos do tratamento). Na falta dessa
relação, os objetivos permanecerão ilusórios e, às vezes, totalmente
irrealistas.
O psicoterapeuta deverá perguntar-se a seguir se os meios de que dispõe (as técnicas psicoterapêuticas que utiliza, sua disponibilidade pessoal)
estão à altura desses objetivos de tratamento. Existirão possibilidades razoáveis de que o paciente experimente realmente o processo terapêutico? E
essa experiência terá possibilidades razoáveis de levar à modificação do
funcionamento mental esperado (objetivos técnicos)?
A ação desinibidora dos tranqüilizantes
Assim como muito facilmente confundiu-se antidepressivo e droga
psicoestimulante, também a ação dos medicamentos anti-ansiedade foi encoberta abusivamente pelo termo de “tranqüilizante”. Mas existe uma diferença importante entre as duas classes de medicamento. Os antidepressivos
só agem sobre estados depressivos e não têm nenhum efeito estimulante ou
euforizante sobre sujeitos não deprimidos (daí a ausência de qualquer dependência toxicomaníaca); os ansiolíticos têm efeitos favoráveis sobre
336 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 337
Daniel Widlöcher
qualquer indivíduo (daí seu efeito aditivo). Como o álcool, do qual são
farmacologicamente bastante próximos, os ansiolíticos agem sobre um estado psíquico comum. Mas o que o termo “tranqüilizante” encobre?
As pesquisas experimentais em animais procuraram submeter situações de estresse à ação desses produtos. A ação do medicamento tranqüilizante em tais situações pode ser considerada um bom exemplo do efeito
anti-ansiedade.
Quais as relações entre o que o experimento evidencia em situações
de resposta ao perigo adquirida e o tratamento químico da ansiedade humana? Pode-se falar de uma ansiedade que não seja simplesmente uma tal
resposta? Esse exemplo tira vantagem do fato de se tratar de um
quimioterápico de ação rápida, temporária certamente, mas muito especificamente eficaz sobre um estado emocional bem identificado. Em realidade, essa identificação repousa mais sobre o conteúdo cognitivo da experiência que sobre as sensações físicas e as características puramente
afetivas. Expectativa de um perigo iminente, medo sem objeto, a angústia
chamada neurótica só se distingue do medo real pelo caráter ilusório do
perigo. Nada surpreendente no fato de que E.Kandell (1983), a partir de
seus trabalhos baseados em um modelo de medo adquirido na aplysie, possa generalizar a análise e conceber um eixo de continuidade epistemológica
indo da metapsicologia (psicanalítica) à biologia molecular.
A ansiedade/medo não é mais então tomada como o sintoma de uma
doença. Sua existência em um campo muito vasto da patologia não o permitiria de maneira alguma. Apenas permitiria distinguir uma ansiedade
mórbida isolada (a neurose de angústia) e ansiedades secundárias
observáveis em estados variados, tanto em outras formas de neuroses quanto em psicoses ou distúrbios diversos da personalidade.
São essas características próprias, provindas de sua intencionalidade
(expectativa de um perigo real ilusório) e de sua ausência de especificidade
semiológica, que permitiram abordar o estudo da angústia em uma perspectiva psicofisiológica. Pôde-se assim mostrar a importância do papel
desempenhado pela reação de alerta do sistema nervoso autônomo. Essa
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
reação de alerta seria, aliás, comum ao conjunto dos estados emocionais,
mas só tiraria seu conteúdo cognitivo do tratamento cognitivo da situação.
A essa resposta neurovegetativa estaria associada, no plano cognitivo,
uma reação de orientação. Esta última seria caracterizada por um efeito
passageiro para tratar e analisar a informação nova, uma inibição da atividade em curso e uma orientação na direção de informações futuras, suscetíveis de reduzir o grau de incerteza.
Sabe-se que os medicamentos dotados de uma capacidade de inibir a
excitação adrenérgica própria da reação de alerta neurovegetativa têm um
efeito ansiolítico nítido (beta-bloqueadores). Pensou-se também que os
benzodiazepínicos, como outros sedativos, teriam uma ação ansiolítica
devida ao efeito depressor sobre a reação de orientação. Essa explicação
foi questionada à medida que se isolavam moléculas dotadas de efeitos
ansiolíticos potentes sem ação sedativa marcada.
Houve interesse, então, por modelos de comportamento animal diferente daquele do medo adquirido. Pôde-se mostrar que os
benzodiazepínicos diminuíam a capacidade de espera (M.H.THIÉBOT et
al., 1986). Se, por exemplo, em um labirinto em T propõe-se ao rato duas
recompensas alimentares de importância diferente, o animal aprende muito rápido a dirigir-se para o lado onde a recompensa é a mais forte. Através
de um sistema de portas nos dois braços horizontais do labirinto, imobiliza-se o animal depois que escolheu o itinerário, mas antes de obter a recompensa. Pode-se, assim, fazer variar dois parâmetros: o intervalo de espera e a importância da recompensa. Observa-se, então, que a duração da
espera cria um efeito aversivo potente que guia a escolha do animal para
uma recompensa fraca. Administra-se, então, um benzodiazepínico ao rato.
Se essa molécula tivesse como efeito diminuir a reação de orientação, o
animal deveria “aceitar” uma espera maior. É o efeito contrário que ocorre,
a tolerância à espera diminui.
Esses dados experimentais estão de acordo com um certo número de
dados clínicos: o efeito de prazer buscado pelos sujeitos que se tornaram
dependentes dos benzodiazepínicos não se deve em nada a uma sedação,
338 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 339
Daniel Widlöcher
mas à busca de uma desinibição do comportamento e da atividade mental.
Essa ação facilitadora ou desinibidora é encontrada, aliás, na consumação
de álcool, independentemente do efeito sedativo. Como em alguns estados
de embriaguez alcoólica aguda, observa-se, às vezes, sob única tomada de
benzodiazepínicos, comportamentos de fuga e de violência, acompanhados por uma amnésia do episódio.
Assim, o estudo do modo de ação dos medicamentos ditos ansiolíticos
incita-nos a reconsiderar nossa teoria geral da angústia, ou, antes, a
completá-la atribuindo um papel determinante à inibição dos planos de
ação habituais. Esta última hipótese já tinha sido considerada no que diz
respeito às emoções em geral, a diferença entre a ansiedade e o conjunto
das outras emoções, resultando, então, da impossibilidade na ansiedade de
desenvolver uma resposta específica apropriada à situação. O estado ansioso seria, nesse sentido, diferente do medo – este ligado à identificação de
um perigo e à instituição de respostas apropriadas.
McReynolds (1976) já definia a angústia como resultando de uma situação de incongruência cognitiva que não permitia a mobilização de qualquer plano de ação pertinente. É assim geradora de ansiedade uma situação
nova que não é assimilável a esquemas conhecidos e que não permite a
utilização de um modo de resposta apropriado. Assim estaria constituída
uma reserva cognitiva (cognitive backlog) definida como a relação entre os
perceptos não-assimilados e a soma dos perceptos assimilados e não-assimilados.
A ansiedade, vista em termos de inibição dos planos de ação, resulta
então de uma situação idêntica a toda situação geradora de emoção (interrupção dos planos de ação anteriores, estado de alerta cognitivo e
neurovegetativo), a menos que nenhum plano de ação apropriado possa ser
ativado. Pode-se dizer que ela é o “fracasso” da vida emocional mais que
uma emoção dentre outras. A ação dos medicamentos ansiolíticos, ao menos daqueles atualmente conhecidos, resultaria menos de um efeito sedativo sobre a reação de orientação que de uma desinibição, permitindo aos
planos de ação anteriores se mobilizarem a despeito da situação nova.
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
Com respeito à questão inicialmente colocada, o modelo da ansiedade
é ao mesmo tempo instrutivo e decepcionante. É instrutivo por diversas
razões. De um ponto de vista metodológico, é um bom exemplo do que
pode ser uma atitude da psicologia experimental em relação a uma hipótese sobre o modo de ação de um medicamento. Não mais que o medo aprendido, o modelo da recompensa diferida não é um modelo da ansiedade; é
um modelo da suspensão da execução de um plano de ação, operação que
entra na composição de um estado ansioso. O medicamento nos ajuda assim a decompor em operações mais elementares o que a clínica nos mostra
como eventos subjetivos isolados. Assegura uma forma de dissociação entre funções que pareciam ligadas em uma estrutura única. Veríamos assim
uma analogia com a neuropsicologia contemporânea.
Assim, configura-se uma variável observável que pede uma interpretação psicológica. A capacidade de retardar o ato era já conhecida e tinha
dado matéria a vários dispositivos experimentais, mas como articulá-la
com a que, inversamente, consiste em impulsionar o ato a despeito de constrangimentos inibitórios? Não teria aqui motivo para definir um novo objeto de estudo e configurar protocolos experimentais que permitissem colocar à prova hipóteses que se inscrevessem no contexto do paradigma teórico novo?
Deparamo-nos aqui com uma dificuldade que justifica o epíteto
“decepcionante” que acaba de ser mencionado. De fato, o estado ansioso
não é um estado permanente. Conhecemos já o caráter muito discutível das
situações experimentais concebidas para provocar um estado de angústia.
Mas o estado ansioso natural, contrariamente ao estado depressivo, não se
presta melhor à atitude experimental. Sua permanência é apenas aquela de
uma predisposição a acessos episódicos. O conceito de ansiedade generalizada somente responde a esta disposição: sobre um fundo de vigilância
aumentada, é a ocorrência de acesso ansioso que a define. Não se pode,
portanto, utilizar o estado ansioso espontâneo como terreno de experimentação. No máximo poderíamos selecionar sujeitos naturalmente ansiosos
para colocá-los em condições experimentais de estresse.
340 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopse
No campo da depressão, parece fecundo opor a psicogênese das operações
mentais (representações e afetos) à lentificação psicomotora que seria o alvo
psicofisiológico do tratamento medicamentoso de que dispomos atualmente. Essa
distinção clínica nos permite definir melhor as indicações respectivas das duas
terapêuticas e as condições de sua eventual associação.
No domínio da ansiedade, enfatizaremos a ação desinibidora dos “tranqüilizantes”. Essa ação poderia ser relacionada ao papel desempenhado pelo mecanismo de inibição próprio ao afeto de angústia, independentemente das circunstâncias psicológicas ou fisiológicas nas quais esse afeto é produzido.
Summary
Depression and Anxiety
In the field of depression, it seems fruitful to oppose the psychogenesis of
mental operations (representations and affection) to the psychomotor slowness
that would be the psycho-physiological target for the medication treatment that
we currently make use. This clinical distinction allows us better defining the
relevant indications of both therapeutics and the conditions for their eventual
association. In the domain of anxiety, we will emphasize the des-inhibitory action
of the “tranquilizers”. This action could be related to the role played by the
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 341
Daniel Widlöcher
Em um plano teórico, vê-se desenhar um novo conceito: a capacidade
de controlar o início da ação não aparece mais apenas dependente de um
campo de motivações e das estratégias cognitivas e comportamentais, mas
de uma função moduladora mais geral. Esta não tem a ocasião de se manifestar em situações experimentais habituais. Por outro lado, ela se deixa
ver como uma fonte de variação em condições observáveis na patologia.
Pode-se correr o risco de generalizar esta última observação. O uso
conjunto da observação e da experimentação em psicopatologia não permite apenas melhor compreender o modo de ação comportamental e
cognitivo dos medicamentos psicotrópicos. Abre novas vias de pesquisa
no domínio das emoções e das regulações comportamentais, os medicamentos de que dispomos revelando-se portadores de uma ação sobre funções moduladoras gerais do controle da atividade.
DEPRESSÃO
E
ANSIEDADE
inhibiting mechanism associated to the anguished affection, independently from
the psychological or physiological circumstances in which this affection is
produced.
Sinopsis
Depresión y Ansiedad
En el campo de la depresión, parece fecundo oponer la psicogénesis de las
operaciones mentales (representaciones y afectos) a la lentificación psicomotora
que sería el blanco psicofisiológico del tratamiento medicamentoso de que
disponemos actualmente. Esta distinción clínica nos permite definir mejor las
indicaciones respectivas de las dos terapéuticas y las condiciones de su eventual
asociación. En el dominio de la ansiedad, enfatizaremos la acción desinhibidora
de los “tranquilizantes”. Esta acción podría ser relacionada con el papel
desempeñado por el mecanismo de inhibición propio al afecto de angustia,
independientemente de las circunstancias psicológicas o fisiológicas en las cuales
este afecto se produce.
Palavras-chaves
Antidepressivos (modo de ação); Lentificação psicomotora; Depressão (tratamento); Ansiedade (tratamento); Ansiolíticos (modo de ação); Inibição ansiosa.
Key-words
Antidepressants (action way); Psychomotor slowness; Depression
(treatment); Anxiety (treatment); Anxiolytic (action way); Anxious inhibition.
Palabras-llave
Antidepresivos (modo de acción); Lentificación psicomotora; Depresión (tratamiento); Ansiedad (tratamiento); Ansiolíticos (modo de acción); Inhibición ansiosa.
Referências
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Universitaires de France, 1965.
342 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução do francês: Ester Malque Litvin
Revisão: Augusta G. Heller
Dr. Daniel Widlöcher
248 Boulevard Raspail,
75014 – Paris – França
Fone: 33142161241
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 343
Daniel Widlöcher
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(coord.). L’attaque de panique: un nouveau concept?. Château du Loire, J.P.
Goureau Ed.
Donaldo Schüler
Doutor em Letras. Livre-docente
em Língua e Literatura Gregas.
Pós-doutorado na USP. Professor
titular da UFRGS (aposentado).
Ensaísta, escritor e tradutor.
Mito é uma narrativa que envolve a abóbada celeste, os astros,
os ventos, os montes, os mares, as
florestas, as tempestades, os animais, o homem, a vida e a morte. No
período mítico, mito é saber, é todo
o saber. Conectando os entes em
constante proliferação, o mito concebe o universo como uma árvore
genealógica que permite percorrer
em todos os sentidos o que a memória preservou. O mito é uma história
de crimes, opressões, rebeldias, torturas, derrotas, vitórias, guerras,
apreensões, expectativas. As histórias míticas reverberam o mundo e
as aflições do homem. Nessa história, de âmbito universal, o homem
busca compreender o seu lugar. Por
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 345
Donaldo Schüler
Mitologia e
Psicanálise
MITOLOGIA
E
PSICANÁLISE
elaborar narrativas de densa verdade humana, ao mito recorrem a epopéia,
a lírica, a tragédia e as artes plásticas.
Os ouvidos submetiam ouvintes passivos a falantes autoritários. Considerando-se locutores de um saber que se sobrepunha a todos os saberes,
os poetas eram respeitados como inspirados, amparados pela Memória comunitária, reservatório das respostas de antigas gerações. A autoridade do
mito é robustecida por homens que viveram e lutaram em outros tempos.
Quando apareceram os primeiros filósofos, o mito perdeu o privilégio
de saber exclusivo. As imagens míticas vivas e reprodutivas passam a sofrer a concorrência dos conceitos gerados pela observação e pela argumentação. O logos, que já concatenava relatos míticos, percorre o universo,
desde o fundamento, sem as imagens elaboradas pelo mito. O logos submete o mito a exame contundente, sem, contudo, aniquilá-lo. Os adeptos
do logos investigam o legado secular de seus antepassados com o objetivo
de substituir imagens por conceitos, fundados na observação e desenvolvidos pela argumentação. Livres de compromissos, os pensadores retomam
perguntas já há muito feitas e avançam respostas originais. Mesmo quando
os filósofos criam imagens – e são muitas – oferecem-nas à conceituação.
O homem mítico se contenta com o que a palavra diz. O homem do logos
aprofunda-se no que a linguagem esconde, enfrentando os enigmas que as
palavras propõem.
Os olhos, privilegiados pelos que pensam, degradam os ouvidos como
fonte de saber. Firmados no argumento e na observação, os filósofos contestam a autoridade dos poetas, cultores de mitos. Progridem lentamente.
Constroem noções novas sobre fatos já refletidos e aceitos. Atentos ao que
a mente percebe, sabem que reexaminar tudo excede as forças de uma vida,
de muitas vidas, embora o saber total esteja na mira. Conduzidos pelo rigor, os pensadores empenham-se em elaborar sistemas isentos de contradições. Achados parciais, argumentativamente concatenados, conduzem a
investigação. Como a escrita lhes permite controlar os avanços, tornam-se
escritores.
Submetendo a linguagem a exame, esbarram em termos imprecisos,
346 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 347
Donaldo Schüler
impregnados de idéias combatidas. O discurso lhes parece lacunoso, inadequado, ambíguo. Ambicionam para o pensamento a precisão matemática, sem nunca alcançá-la. Para a investigação que privilegia os olhos, o
invisível, onde, ao que julgam, se refugia o alicerce do que se busca, é
contínuo desafio.
Embora os poetas, instaurado o logos, continuem atentos à sonoridade
das palavras, a visões, a sentimentos, a ocorrências sem explicação, afastam-se da serena tranqüilidade homérica, embalada pela confortável regularidade da medida épica, os hexâmetros. Tanto na lírica quanto na tragédia, os versos são afetados pela dúvida. Os poetas dão vazão ao sofrimento
causado por perguntas sem resposta.
Em Édipo Rei, o logos afeta profundamente o mythos. Sófocles leva
ao palco linguagem enferma, contaminada de peste. Centra a tragédia em
geradores de enigmas: o oráculo e a esfinge. Édipo se debate com perguntas e respostas imprecisas. As indecisões do poeta convocam espectadores
e investigadores do discurso na perquirição do insolúvel.
Quando a psicanálise se instaurou, encontrou o mito em desenvolvida
elaboração. Ao lado de mitos anônimos, reunidos e divulgados pelos antropólogos, havia os mitos produzidos por poetas, ficcionistas, artistas plásticos e filósofos. O Ocidente tinha interiorizado, desde Agostinho, conflitos
que conflagravam, outrora, o universo. Nietzsche, abrindo caminho às investigações de Freud, situara Apolo e Dioniso no interior do homem.
A psicanálise encaminhou a investigação em duas direções: as condições subjetivas, produtoras do mito e a verdade que o mito contém.
Observou-se que era insuficiente reduzir o mito à satisfação de desejos. Seria pouco rendoso entender Fausto, Dom Quixote, Hamlet, Dom
Casmurro, ou Macunaíma a conflitos psíquicos de seus autores, nem seria
apropriado atribuir a recepção de obras artísticas ao alívio de tensões. Não
convém desconsiderar nos criadores de mitos o esforço de organizar o caos
de experiências de toda ordem. Afrodite, por exemplo, permitiu compreender a universalidade de eros na ternura, na violência, no crime, na geração
da vida, na alegria e no sofrimento. Macunaíma nos levou a pensar sobre
MITOLOGIA
E
PSICANÁLISE
nossa condição de brasileiros, periféricos, preguiçosos, incultos e pobres.
Julgar, de outra parte, mitos arquétipos geneticamente transmissíveis não
explica a livre reelaboração que o patrimônio mítico propicia. Muito mais
produtivo é ter os mitos herdados como um legado simbólico com o qual
reinterpretamos relações móveis conosco mesmos e com o universo.
A busca de uma teoria para interpretar conflitos interiores levou Freud
a Édipo como recriado por Sófocles em Édipo Rei. Desconsiderando significado epocal e valor teatral, o criador da psicanálise isolou o modelo formado pelo triângulo pai-mãe-filho para compreender intemporalmente o
comportamento humano. Contudo, para além do triângulo, Édipo Rei nos
leva a refletir sobre os limites do saber, a natureza da linguagem, a cegueira, a fraqueza, os vícios da tirania, a vida e a morte. Vários campos do saber
concentram-se numa tragédia que se mantém viva graças à elaboração da
linguagem, à variedade rítmica, à caracterização das personagens, ao poder
da ação.
Sabendo que a linguagem conceitual não era suficiente para abarcar a
complexidade do objeto da investigação, Freud aventura-se a criar mitos.
Décadas de discussões não abrandaram o impacto do mito da Horda Primitiva. As qualidades de ficcionista de Freud revelam-se em A fantasia e os
sonhos na “Gradiva” de W. Jansen, obra que superou em qualidade a novela que lhe deu origem.
A Interpretação dos sonhos, chamando a atenção a recursos retóricos
como a metáfora e a metonímia, persuadiu os leitores de que além da lógica da fala comunicativa, importa considerar uma lógica oculta que abole as
leis de identidade, tempo e espaço, causa e efeito, substituindo-as por princípios próprios da elaboração onírica. O método inventado por Freud para
interpretar sonhos forneceu recursos eficazes para compreender discursos
míticos. Valiosos foram ainda os seus estudos sobre o humor, o chiste, os
lapsos para a análise do discurso. Os estudiosos do texto foram alertados
para o silêncio, para as hesitações, para o não-dito, para interdito, para as
contradições, para as omissões, para as disjunções.
O analista ouve histórias, construções que ligam o indivíduo a fenô348 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 349
Donaldo Schüler
menos presentes e passados. Sabendo que as histórias míticas não são fundadoras como os cultores do mito o pretendiam, o analista fica atento ao
lugar em que a coerência se fratura para que com estilhaços aparentemente
desconexos se possam reconstruir narrativas esquecidas. O resultado é uma
trama não-determinada pela natureza, mas pelos sucessos e insucessos de
homens seccionados, sexuados. A neutralidade do analista pretende franquear o acesso ao enredo oculto interdito a pactuários do manifesto. Os
enigmas com que se debatiam os filósofos gregos são circunscritos pelos
analistas a universos privados, produto de engenharia particular.
O conceito de escrita, ampliado, abarca marcas impressas no corpo,
traços psíquicos deixados por experiências vividas. Letras mais antigas que
o alfabeto conjugam-se na construção de articulações individuais, oferecidas à decifração. A tentativa de transcrição dessas formas leva a outras
eloqüentemente singulares. O sujeito, resultado de uma escrita, concorre
com outros textos que o interpretam e modificam.
Interessada em atingir origens, a psicanálise recupera o prestígio do
ouvido, mas para escutar o que se esconde atrás do significado superficial
do discurso, na certeza de que os falantes, mesmo bem-intencionados, encobrem fatos que, reprimidos, inquietam. O oculto, preocupação dos pensadores originários, distanciado de preocupações ontológicas, leva a porões de que nada se sabia. Imagens míticas e oníricas são atravessadas em
busca da usina geradora. Inverdade não há, embora a face do que se busca
esteja em conflito com a que se ostenta. A descida ao abismo ensina que as
razões ocultas são diferentes das declaradas. Sendo o homem, por natureza, um animal mascarado, o analista não se contenta com os papéis representados.
Alertado por Freud, James Joyce abandona a técnica milenar de arquitetar experiências diurnas. Finnegans Wake é o relato de um sonho, povoado de ameaças, de receios, de gigantes. Em conflito com o tempo medido
por relógios e calendários, Joyce sobrepõe imagens que vão do presente a
vários estratos de profundidade. Espaços interpenetram-se, fundem-se.
Identidades se diluem. Fronteiras lingüísticas desaparecem. A sintaxe e o
MITOLOGIA
E
PSICANÁLISE
vocabulário proliferam contra os preceitos de gramáticas e dicionários.
Mitos reinventados, vizinhos do sonho, freqüentam no início do século, as
artes plásticas, o teatro, o cinema, a ficção, a poesia lírica. Psicanalistas e
artistas concorrem para tornar criativas forças conflagradas.
Palavras-chave
Mitologia; Psicanálise; Saber; Simbolismo.
Key-words
Mythology; Psychoanalysis; Knowledge; Symbolism.
Palabras-llave
Mitologia; Psicoanalisis; Saber; Simbolismo.
Referências
BELLEMIN-NOEL, Jean (1978). Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix,
1983.
FREUD, Sigmund. Studienausgabe. Frankfurt am Main: Fischer, 1969 – 1975.
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LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1967.
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: LPM, 2000.
Ensaio
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. Donaldo Schüler
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350 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Os conceitos de complexo de
Édipo e narcisismo foram introduzidos por Freud em 1910 e 1914,
respectivamente1, estabelecendo, na
ordem inversa, as etapas do desenvolvimento da personalidade, que
vai do pré-edípico para o edípico.
O complexo de Édipo, como é
amplamente sabido, corresponde à
universal concomitância do desejo
amoroso da criança em relação ao
pai do sexo oposto e de rivalidade
em relação ao pai do mesmo sexo, a
trama desenvolvida por Sófocles na
tragédia Édipo Rei. Incesto e parri-
Gley P. Costa
Membro Titular e Analista
Didata da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
1. Embora Freud tenha usado a expressão
“complexo de Édipo” pela primeira vez em
1910, sua descoberta remonta à sua auto-análise, conforme evidencia a carta enviada ao amigo Fliess, em 15 de outubro de 1897.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 351
Gley P. Costa
A Relação com
o Corpo na
Sociedade
Contemporânea
A RELAÇÃO
COM O
CORPO
NA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
cídio, engendrando o receio de castração, portanto, de punição, tão bem
concebido pelo teatro grego, mobilizam o conjunto de defesas psicológicas
que configuram os diversos quadros neuróticos, como a histeria, a neurose
obsessiva e outros. A repressão dos sentimentos implicados na conflitiva
edípica decorre da supremacia do Princípio da Realidade em relação ao
Princípio do Prazer, representando a condição inelutável de acesso à cultura. O Édipo, como estrutura, ou seja, organização psíquica, corresponde ao
ingresso do indivíduo na genitalidade, o que pressupõe o reconhecimento
da existência e autonomia do outro e a aceitação das diferenças de sexos e
gerações, estabelecendo as bases do comportamento ético. Do ponto de
vista emocional, implica a inevitabilidade do conflito no funcionamento
psíquico, mobilizado pelos diferentes níveis de relacionamento humano,
configurando, de acordo com Chasseguet-Smirgel (1973), o “caminho longo” do desenvolvimento.
Com o termo narcisismo, Freud procurou caracterizar o amor do indivíduo à imagem de si mesmo, uma alusão ao destino de Narciso que, de
acordo com Mitologia, se apaixonou pela própria imagem, projetada em
uma fonte, onde, indiferente ao mundo, portanto, aos outros, deixou-se
morrer. O estágio inicial do desenvolvimento, denominado pré-edípico,
portanto pré-genital, encontra-se regido pelo Princípio do Prazer. Por suas
características, é considerado narcisista, expressando-se como delírio de
grandeza e perfeição produzido pelo pensamento onipotente da criança,
que considera os pais parte de seu próprio ego, em uma relação chamada
simbiótica. Portanto, não se observa, nessa etapa da vida, o reconhecimento da existência e autonomia do outro, nem das diferenças de sexo e gerações. O narcisismo constitui a base psicológica do ideal estético, caracterizando um funcionamento mental que procura negar a existência e
inevitabilidade do conflito. Por idealizar a analidade mediante a fantasia
do “pênis fecal”, subestimando a genitalidade, configura o que ChasseguetSmirgel, na obra supracitada, denominou de “caminho curto” ou “perverso” do desenvolvimento, cujo princípio é “por que esperar o que podemos
obter agora”.
352 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 353
Gley P. Costa
Cabe destacar, portanto, que o complexo de Édipo não consiste apenas do núcleo das neuroses, como o definiu Freud inicialmente, mas representa o conjunto de impulsos conflitantes, fantasias, ansiedades e defesas
do psiquismo humano. É, na verdade, o complexo nuclear do desenvolvimento psicossexual, em consonância com o Princípio da Realidade. Todavia, em maior ou menor escala, o desejo do indivíduo de evitar a realidade,
uma “tentação anti-edípica” como referi em um trabalho de 1995, sempre
persistirá, e a fantasia de uma vivência não conflitiva tomará o seu lugar
através da idealização da pré-genitalidade, constituindo um incremento do
narcisismo.
O confronto Édipo x Narciso corresponde a vários outros confrontos
relacionados, a saber: Princípio da Realidade x Princípio do Prazer; reconhecimento da inevitabilidade do conflito x negação da inevitabilidade do
conflito; aceitação da castração x negação da castração como instância de
interdição do incesto; Ideal do ego x Ego ideal; diferenciação x
indiferenciação; caminho longo do desenvolvimento x caminho curto do
desenvolvimento; sistema aberto x sistema fechado; pensamento lógico x
pensamento mágico, etc.
Entre outras, uma forma de escapar da senda edípica, na chegada da
adolescência, é o ingresso na vida religiosa, freqüentemente estimulada
pelos pais, representando a opção pelo “trajeto curto” da caminhada
desenvolvimental, mediante a idealização da pré-genitalidade e a utilização do pensamento mágico.
Tradicionalmente, a formação religiosa na Igreja Católica é marcada
por dois votos: castidade e pobreza, representando uma forma idealizada
de fugir das exigências advindas das pulsões sexuais, portanto, da realidade interna, e das exigências impostas pela realidade externa, que jogam o
indivíduo no campo aberto da competição e da luta pela sobrevivência.
Contrariamente, a vida religiosa se desenvolve na clausura, portanto, em
um sistema fechado, equivalente ao funcionamento da etapa anal do desenvolvimento.
Procurando destacar o aspecto idealizado, portanto narcisista, da op-
A RELAÇÃO
COM O
CORPO
NA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
ção monástica, podemos lembrar que ela ainda oferece uma morte honrosa,
com direito à vida eterna, entre os bons e virtuosos. Mas tudo não passa de
uma “promessa”, de acordo com o significado da palavra votu, em latim.
Uma promessa difícil de ser cumprida, como evidencia a atual onda de
padres pedófilos, revelando o retorno de uma sexualidade infantil reprimida, considerando que a pedofilia se inscreve na ordem das perversões,
correspondendo a uma sexualidade tingida pelo narcisismo.
Na verdade, a adolescência constitui uma etapa da vida em que se
observa um recrudescimento do confronto Édipo x Narciso e durante a
qual, por exigências internas e externas, é imposto ao indivíduo decidir
entre enfrentar ou evitar os conflitos gerados pelo desenvolvimento. Na
atualidade, além de um arrastamento exagerado dessa etapa do ciclo vital,
observa-se que a cultura, antes em franco conflito com a adolescência, nos
últimos anos passou a idealizá-la, representando essa atitude uma das características da chamada “sociedade pós-moderna”.
Entre os inúmeros indicativos dessa atitude encontra-se, em primeiro
lugar, a identificação dos pais com os filhos adolescentes, estabelecendose uma competição de duplo sentido que acaba neutralizando o natural conflito de gerações, borrando a diferença de sexo e retirando do cenário
desenvolvimental o desejo de vir a ser, uma vez que o prazer, mesmo que
ilusório, deve ser satisfeito agora.
Não obstante, o que garante o desenvolvimento de uma pessoa é a
capacidade de estabelecer ideais e projetar o futuro com base na identificação com os pais. Entretanto, o que constatamos na sociedade contemporânea é uma inversão desses valores, uma vez que não são os filhos que idealizam os pais, como no passado, mas os pais que idealizam a juventude
dos filhos, não medindo esforços para se parecerem com eles. Uma conseqüência dessa mudança, representando uma marca da pós-modernidade, é
o individualismo, caracterizado pela ausência de projetos, tendo como único ideal cultuar a auto- imagem, a exemplo de Narciso, diante da fonte. Na
origem desse processo de mudança da orientação da sociedade atual, destaca-se a privação paterna, entendida como a ausência, debilidade ou
354 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 355
Gley P. Costa
inadequação das funções do pai no processo de desenvolvimento emocional da criança.
Nesse novo contexto, a família perdeu suas características tradicionais e se ressente dos valores que proporcionavam uma identidade aos seus
integrantes. Os vínculos familiares tornaram-se simétricos e fraternizados,
criando uma sociedade de irmãos que escotomiza as diferenças de sexo e
gerações, observando-se um apagamento do passado, da cultura e da tradição, como mais uma forma de evitar o Édipo, resultando numa falta de
perspectivas para o futuro.
Tendo em vista que a criança se desenvolve às custas de sucessivas
identificações até adquirir sua própria identidade, destacando-se o papel da
família nesse processo, o resultado da mudança de comportamento é a carência de modelos identificatórios inspiradores do amadurecimento
psicossexual. A ausência desses paradigmas obscurece os limites e gera o
medo da responsabilidade edípica. Antes, os jovens namoravam, hoje eles
“ficam”, isto é, não assumem compromissos, e quando os laços afetivos se
estreitam dizem que deu “rolo”, ou seja, “pintou sentimentos”, risco de ter
de assumir responsabilidade.
Da mesma forma, as grandes mudanças sociais e políticas dos últimos
anos esvaziaram a crença em uma solução propiciada pela sociedade e, por
esse caminho, também enfatizaram a individualidade, levando essa característica até as últimas conseqüências. Como resultado da exageração da
individualidade no universo do “espetaculoso”, como dizem em uma novela da moda, observamos um progressivo esvaziamento dos sentimentos
de solidariedade, tornando-se o outro algo sem valor. No passado, a pessoa
aparecia porque era importante; atualmente, importante é a pessoa que aparece. Afora isso, a cultura contemporânea criou o culto da rapidez: o indivíduo não tem mais tempo para pensar e se transformou em mero repetidor
de informações não processadas. Essa mudança radical tem uma decorrência marcante no relacionamento entre homem e mulher na sociedade atual.
O predomínio do narcisismo sobre o Édipo reflete-se nas preocupações com a estética em detrimento da ética, nas preocupações com o corpo
A RELAÇÃO
COM O
CORPO
NA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
mais do que com o conhecimento. Como uma marca da analidade, os falsos valores são idealizados e os investimentos na autonomia não seguem o
modelo edípico, mas o modelo narcisista da recusa de reconhecer e levar
em consideração o outro, configurando relações egoístas, assexuadas e
nutridoras de expectativas de uma felicidade absoluta que nega a dependência e o conflito. Correspondendo a uma excentricidade da pósmodernidade, constatamos uma conjunção de individualismo com valorização da exterioridade. Na anorexia nervosa, quadro que se torna cada vez
mais freqüente em nossos dias, observa-se a busca desesperada de uma
perfeição narcisista, representada pela fantasia de viver sem corpo, sem
peso, atingir, enfim, uma existência metafísica sem precisar de nada e de
ninguém, particularmente da mãe, do seio. Na mesma linha encontra-se a
atual “medicalização” da psiquiatria e as toxicomanias, reveladoras de um
esvaziamento pós-moderno da interioridade.
Entre todas essas mudanças constatadas na atualidade, vamos retomar
a inversão de valores, correspondendo ao predomínio de Narciso sobre
Édipo, situação que nos permite entender o significado do corpo esculpido
pelas lipoesculturas e outros procedimentos da cirurgia plástica, oferecidos
pelo rádio, TV e revistas como qualquer produto de consumo: um carro,
um eletrodoméstico ou uma peça de vestuário. Essa situação configura uma
busca mágica da perfeição corporal, fazendo com que mesmo mulheres
jovens e belíssimas recorram à cirurgia para suprimir quantidades mínimas
de gordura localizadas abaixo do queixo, na cintura, nas coxas, nos joelhos
ou mesmo no tornozelo. Por esse caminho, procuram moldar seu corpo
segundo um modelo universalizado, que pode ser observado nos mais variados recantos do mundo ocidental, agregando mais uma característica da
sociedade contemporânea: impessoalidade.
De acordo com o modelo tradicional, o escultor trabalha a pedra, a
madeira, o barro ou outro material inorgânico a fim de lhe imprimir uma
forma, predominantemente de seres vivos, empenhando-se em conferir à
sua obra a maior verossimilhança possível. É conhecida a expressão
provocada pela emoção do artista diante de uma das esculturas mais perfei356 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 357
Gley P. Costa
tas que o ser humano conseguiu cinzelar: Parla!, bradou Miguel Ângelo ao
terminar de esculpir Moisés. No caso, a pedra esculpida reproduziu o corpo humano, com tal perfeição que só faltou falar para ser uma pessoa real.
Atualmente, o que acontece? Existem os “escultores de corpo”, como
alguns cirurgiões plásticos se consideram, que procuram moldar o corpo de
acordo com um ideal de beleza, exibido pelas revistas, utilizando-se, cada
vez mais, de substâncias inorgânicas, criando o que poderíamos chamar de
“o corpo siliconado”. Antes as mulheres escondiam alguma correção estética do corpo, visando manter a aparência de autenticidade. Hoje, aparentemente, não existe mais preocupação com esse aspecto, e muitas se esforçam em demonstrar que foram “aspiradas” e “siliconadas”. É provável que
esses “miguel ângelos” às avessas, no final de sua obra de arte, diante de
tanta beleza, exclamem: Non parla!, para que realmente pareça uma escultura, não uma pessoa. De fato, em alguns casos, se falar pode estragar tudo,
como muitas modelos bem conhecidas, cujas gafes diante das câmeras até
já viraram piada.
O eu é antes de tudo corporal, destacou Freud (1923), enfatizando que
não existe um corpo e uma mente, uma oposição entre o somático e o psíquico, entendido como o mundo das representações, das lembranças, da
afetividade, da imaginação, das fantasias amorosas e agressivas e da
criatividade. Corpo e mente amalgamam-se para formar a identidade do
indivíduo, constituída a partir das primeiras experiências de vida.
Na Idade Média, a religião atribuiu à carne, ou seja, ao corpo isolado
da mente, a sexualidade, os impulsos, a voracidade e a maldade do ser
humano. A sociedade pós-moderna fez pior, tirou a vida do corpo e o transformou em um objeto, uma coisa, não para ser tocado ou ser sentido, mas
para ser visto e admirado esteticamente. Nessa linha, o corpo foi abrangido
pelo mercado de consumo, equiparando-se a um produto ou a uma obra de
arte. Nas revistas de estética, cuja assinatura permite ao leitor ou leitora
concorrer a uma cirurgia plástica para afilar o nariz, tirar os culotes, diminuir a barriga ou aumentar os seios e as nádegas, tem-se a nítida impressão
de que o corpo, na sociedade contemporânea, não tem mais alma. Não me
A RELAÇÃO
COM O
CORPO
NA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
refiro à alma da Igreja, mas à alma dos poetas, aos relicários das vivências,
das recordações, dos sentimentos e da história dos nossos relacionamentos,
configurando nossa identidade. Não teriam sido melhores os corpos proibidos da Igreja, então chamados carne, mas cheios de mistérios e promessas
de um dia se deixarem tocar? Os corpos esculpidos nas clínicas de estética
– percam a esperança de tocá-los – são apenas para ver. A destituição do
outro, a não ser para admirar e elogiar, atingiu tal nível que nem mesmo a
pessoa do médico, no caso, o cirurgião plástico, interessa mais: “adquirese” um novo modelo de corpo, obtido mediante uma cirurgia plástica em
uma empresa de venda de consórcios que, certamente, tem uma lista de
cirurgiões para o oferecer ao cliente quando for sorteado ou terminar de
pagar suas cotas.
O corpo esculpido é o corpo da etapa narcisista do desenvolvimento,
em oposição ao corpo mutilado pela castração da fantasmática edípica. O
corpo esculpido não oferece proibições, encontra-se exposto, mas apenas
para ser visto, admirado e, quando tocado, sente-se seu enrijecimento provocado pela matéria inorgânica que ocupa o lugar da “carne” proibida da
fantasia incestuosa que engendra o desenvolvimento psicossexual. Do ponto de vista da psicopatologia, a conseqüência é que, enquanto no corpo
edípico o indivíduo se defronta com a angústia neurótica desencadeada
pela ameaça de castração, no corpo narcisista o indivíduo é levado a lidar
com a angústia psicótica mobilizada pelo sentimento de perda de identidade.
Na “cultura do narcisismo”, como denominou Lasch (1979) ou na
“sociedade do espetáculo”, como chamou Debord (1992), para designar a
subjetividade no mundo contemporâneo, o que chama a atenção, de acordo
com Birman (1998), é a impossibilidade de poder admirar o outro em sua
diferença e singularidade, os fundamentos da alteridade, à medida que não
consegue se descentrar de si mesma. Preso em um registro especular, voltado apenas para o próprio engrandecimento, o sujeito encara o outro como
um objeto de uso que será descartado quando deixar de cumprir a função
de inflar sua auto-imagem. A conclusão muito oportuna do autor, com a
358 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Referências
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Reflexões
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. Gley P. Costa
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 359
Gley P. Costa
qual queremos finalizar esta reflexão, é a de que, “na ausência de projetos
sociais compartilhados, resta apenas para as subjetividades os pequenos
pactos em torno da possibilidade de extração do gozo do outro, custe o que
custar: esse é cenário para a explosão da violência na sociedade contemporânea, em que saquear o outro naquilo que ele tem de essencial e
inalienável transforma-se quase no credo nosso de cada dia” (p.25).
Maria Eliana de Mello
Barbosa Helsinger
Analista Titular e Didata da SPRJ;
Analista de Criança pela IPA.
Em 11 de setembro deste ano,
um analisando de 15 anos, com uma
voz um tanto desolada, inicia sua
sessão dizendo: “Pôxa, até agora
não houve nenhum atentado terrorista no mundo”. Imediatamente me
reporto à minha filha de 13 anos,
que me pergunta na véspera! Por
que as pessoas esperam que no dia
do aniversário (macabro) se repetirá
o mesmo ato?
Frente a essas questões me introduzo neste tema tão sinistro e tão
real. Com esses termos Sinistro e
Real, já estamos falando do trabalho de Freud Das Unheimliche
(1919) e do real conceito formulado
por Lacan desde o início de sua
obra, e que ganha peso no seu final.
Unheimliche é, na frase de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 361
Maria Eliana de Mello Barbosa Helsinger
A Psicanálise
Diante do
Terror
A PSICANÁLISE DIANTE
DO
TERROR
Schelling que Freud vai defini-la: tudo aquilo que, devendo permanecer
oculto, acabou se manifestando. A partir daí, desdobram-se dois grupos de
representações distintas mas não antagônicas. Por um lado, Heimlich remete ao que é familiar e confortável; por outro, ao que está escondido e
dissimulado.
Qual é a lógica de tudo isso? O que era agradável deixa de sê-lo, convertendo-se no avesso, numa transformação irrevogável. Um corte cinde o
tempo, estabelecendo um antes e um depois. A partir daqui, o que era entranha torna-se estranho e se perde para sempre. Unheimliche, aquilo que
era preciso apagar, é reativado por um fato externo, para ser projetado além
da subjetividade e percebido como alheio. O pensamento de Freud grifa a
castração como eixo e divisor de águas. O egocentrismo primitivo é
relocado ao ostracismo e substituído por um sistema de prescrições e regras. Porém, quando se perderem essas fronteiras, fica-se sujeito ao arbítrio de um gozo aterrador. Ao se desvanecerem os limites entre a fantasia e
a realidade, ou quando o inacreditável aparece como real, o terror vem à
tona.
Por isso, buscamos tentar domesticar o Unheimliche – tentativa cada
vez mais difícil de êxito nos dias atuais. É próprio do processo secundário
estabelecer relações causais que permitam atribuir algum significado ao
sem-sentido. Em última instância, o que não tem nome, nem forma, o que
é alheio ao eu, não se suporta por muito tempo, resultando inevitável precipitar um sentido para um sossego (cada vez mais fugaz) do imaginário.
Estamos vivendo sob a égide da cultura do terror e do medo, e isso
significa: Eros está ameaçado de ser dominado por Tanatos. Se na primeira
tópica Freud enfatizava a não representação da morte no inconsciente, na
segunda, embora não abandone sua primeira formulação, sustenta que a
dimensão visível da pulsão de morte aparece através dos efeitos da pulsão
de destruição, inscrita na barbárie de nossa cultura superegóica.
Com a segunda tópica, inaugurada com o texto Além do princípio do
prazer, algumas formulações do Das Unheimliche serão retomadas. É o
caso da repetição elevada à categoria de automatismo inconsciente, cuja
362 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 363
Maria Eliana de Mello Barbosa Helsinger
incidência se percebe como sinistra. Muda o esquema das pulsões pela
promoção da teoria das instâncias formalizando o eu; seu desdobramento
lógico será o conceito de supereu, a consciência moral que comanda o
gozo. A morte é colocada na posição antitética de Eros, como síntese do
acontecer psíquico. Finalmente, podemos denominar tudo o que se relaciona com o sinistro ao seu papel de amo absoluto.
Neste século que assistimos a tão rápidos e numerosos progressos,
paradoxalmente convivemos cada vez mais com a nossa “Doença da Morte”, como nos diz Marguerite Duras no seu belíssimo livro.
Depois dos campos de concentração nazistas, passando pela bomba
de Hiroshima, culminando no ataque ao World Trade Center e no terror
nosso de cada dia, coloca-se a dúvida se nós, nossa família, nossos amigos
voltarão vivos para as suas casas.
O mundo virou uma grande casa mal-assombrada, onde o real não
pára de nos aterrorizar. O Real é o nome que Lacan dá ao Outro do Simbólico. O Simbólico é o que permite fazer sentido. O Real é o não-sentido, o
non-sense. A lei do Simbólico é a dialética. É a lei do deslocamento. O
Real é o contrário, é aquilo que não se desloca, está sempre no mesmo
lugar como definição. O Real é absoluto, e o Simbólico é relativo.
Lacan nos ensina: a fantasia é Real; é em nome disso que o sujeito
imagina sempre a mesma coisa.
Mas as coisas mudaram muito nestes novos tempos: O Pai era outrora
o nome da causa das neuroses. A função ocupada até recentemente pelo pai
declinou-se, ou melhor, pluralizou-se. O objeto da pulsão já não se circunscreve tão facilmente sob os semblantes do parceiro heterossexual, da família e da criança. Já não são só os psicóticos os que não simbolizam a castração por meio do Nome do Pai. A exclusão do Nome do Pai generalizou-se.
No mundo pós-moderno, estamos muito mais expostos à deriva da
pulsão cujo imperativo categórico é: goza!
Se, na primeira clínica de Lacan com Freud, a primazia era a interpretação do sintoma porque este era fruto do recalcado, vamos encontrar na
segunda uma nova vertente. Foi o próprio Freud quem reconheceu que ha-
A PSICANÁLISE DIANTE
DO
TERROR
via algo de não analisável na compulsão à repetição e na inacessibilidade
narcísica. E foi nesse resíduo que escapa à interpretação que Lacan
conceitualizou um saber no Real.
A contemporaneidade exibe os efeitos mais radicais do discurso da
ciência, discurso esse que exclui o sujeito.
Essa exclusão implica uma exposição direta aos efeitos da exclusão
de sentido, do sujeito e do mito.
O avanço do esvaziamento da função paterna nos confronta com formas de angústias automáticas de afetação direta pelo real do gozo.
Os novos Nomes do Pai – Osama, Sadam Hussein, Bush, Beira-Mar,
Uê e tantos outros anônimos – nos jogaram para aquilo que Arnaldo Jabor,
no seu artigo “Um urubu pousou na sorte do Mundo” (19/8/03), define
como a sorte dos eventos aleatórios. O inconsciente bárbaro, nos diz ele,
está de novo entre nós. Há períodos históricos em que parecemos precisar
da morte. Surge uma fome de irracionalismo como uma libertação animal
dos freios da civilização.
Por isso, o lugar ocupado pelo psicanalista hoje precisa estar à altura
dessas novas exigências. O analista deve ser menos o intérprete do inconsciente, e muito mais aquele que presentifica o Real. Em outras palavras, ele
há que apontar o fracasso da satisfação da pulsão e não se deixar fascinar
por aquilo que nos aterroriza.
Sinopse
O texto Psicanálise diante do Terror aborda o Sinistro (Unheimliche) em
Freud e o Real em Lacan. Trabalha o terror relacionado às questões que a pósmodernidade nos tem impactado: estamos muito mais expostos à deriva da pulsão
cujo imperativo categórico é o gozo.
Summary
The Psychoanalysis Before the Terror
The text Psychoanalysis before the terror approaches the Accident
(Unheimliche) in Freud and the Real in Lacan. It works on the terror associated to
364 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopsis
El psicoanálisis Delante del Terror
El texto Psicoanálisis delante del Terror aborda lo Siniestro (Unheimliche)
en Freud y lo Real en Lacan. Trabaja el terror relacionado a las cuestiones que la
postmodernidad nos ha impactado: estamos mucho más expuestos a la deriva de
la pulsión cuyo imperativo categórico es el gozo.
Palavras-chave
Sinistro; Real; Pulsão de morte; Superego; Gozo; Nome do pai.
Key-words
Accident; Real; Death pulse; Superego; Joy; Name of the father.
Palabras-llave
Siniestro; Real; Pulsion de muerte; Superyo; Goce; Nombre del padre.
Referências
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Janeiro, maio.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 365
Maria Eliana de Mello Barbosa Helsinger
issues that the post-modernity has impacted on us: we are much more exposed to
the drift of the pulse, whose categorical imperative is the joy.
A PSICANÁLISE DIANTE
DO
TERROR
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Artigo
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366 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Regina Lúcia
Braga Mota
Membro Titular em Função
Didática da Sociedade de
Psicanálise de Brasília.
Penso que, ironicamente, a
maior dificuldade para o analista
didata é conseguir promover uma
boa análise pessoal do candidato.
Tentarei, neste trabalho, expor algumas idéias acerca das vicissitudes
de um campo transferencial que é
afetado pela própria ideologia do
ensino psicanalítico e onde o cumprimento da regra da abstinência se
mostra fundamental.
Muito se tem falado a esse respeito sem que se tenha chegado a
conclusões definitivas. Em cada
pré-congresso didático da IPA e da
FEPAL, alguns trabalhos se destacam, entre eles o de Limentani, de
Beà, de Bernardi e Nieto (Roma,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 367
Regina Lúcia Braga Mota
O Didata como
Analista: o
campo
transferencial
nas análises
de formação
O DIDATA
COMO
ANALISTA:
O CAMPO TRANSFERENCIAL NAS ANÁLISES DE FORMAÇÃO
1989), de Eizirik, de Viñar (Monterrey, 1996) e, mais recentemente, de
Meyer (Nice, 2001 e Montevidéu, 2002). E a polêmica continua.
A idéia de se apresentar conjuntamente neste pré-congresso didático
as duplas “o didata como analista” e “o candidato como analisando” parece
bastante oportuna, já que focaliza os dois pólos de um mesmo campo dinâmico bipessoal, que se interpenetram, tornando indissociáveis a transferência e a contratransferência (BARANGER, 1961).
Por definição, o termo Lehranalyse implica aprender a ser analista, a
partir da própria experiência de análise com alguém capacitado, em substituição à auto-análise, idéia sugerida inicialmente e depois reformulada por
Freud (1912, 1937). A expressão “análise didática”, adotada pelos tradutores da obra de Freud, associada ao significado de aprender, adquire uma
conotação pedagógica, como se o analista didata, tal como um professor,
fosse realmente ensinar algo ao seu analisando, visando a um objetivo específico. Contratransferencialmente, o analista pode ficar tentado a ocupar
o lugar de mestre ou supervisor, na medida em que o candidato tende a
trazer material de seus pacientes para sua análise.
Prefiro, portanto, usar a denominação “análise de formação”, que atenua o sentido pedagógico, embora ainda não nos deixe livres do viés
institucional que pode vir a interferir no processo. Resumindo o que disse
Remus Araico (1987), parafraseando Freud, a sombra do Instituto recai
sobre a díade analista-candidato. Mesmo que desejemos lidar como numa
análise comum, trata-se na realidade de uma situação muito especial, atravessada por um campo institucional, gerando uma responsabilidade maior
que a usual.
Alguns autores como Limentani (1992) denunciam o sincretismo presente nessas análises, constituído por uma combinação de terapia e treinamento, pois, além de levar o candidato a se conhecer, eliminando os “pontos cegos” que poderiam interferir no seu desempenho analítico, a dupla
está reunida para cumprir uma norma, estando sujeita aos standards da
formação. Servindo, portanto, a dois senhores, a liberdade é condicionada
na análise didática, e a associação livre pode ser prejudicada pelo objetivo
368 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 369
Regina Lúcia Braga Mota
de qualificação profissional.
A partir dos desenvolvimentos kleinianos em torno das noções de
identificação projetiva e contratransferência, surge como correlata a
contraidentificação projetiva (GRINBERG, 1957), em que o analista se vê
levado a desempenhar um papel que o analisando forçou dentro dele, em
resposta a uma excessiva identificação projetiva. Neste sentido, Racker
(1958) sugere ainda a presença de uma contra-resistência por parte do analista, expressão da identificação deste com resistências do paciente, em que
interpretações incompletas são mal-sucedidas, até que outros aspectos parciais da personalidade do analisando também possam ser percebidos e incorporados. Nesses casos, sentimentos arcaicos do próprio analista podem
também se enlaçar com os do paciente, dificultando a formulação da interpretação.
Fazendo uma distinção entre a contratransferência concordante e a
complementar, Racker (1958) ainda nos alerta para o risco do estabelecimento de uma complementaridade patológica, uma “neurose de
contratransferência”, em que o analista, identificado com algum objeto interno do paciente, passa a operar como tal, gerando por vezes uma cristalização ou imobilidade do campo. A contratransferência concordante seria
conseqüência de uma ressonância empática com o paciente e seus conflitos, captados pelo analista a partir de suas próprias estruturas.
Nas análises de formação, cada vez mais se ressalta a importância de o
analista interpretar com base na análise de sua própria contratransferência,
lembrando que qualquer analista alterna momentos de descobrimento com
momentos de cristalização teórica ou de ritualização técnica.
Remus Araico (1987) considera que uma razoável alternância entre
concordância e complementaridade manteria a dinâmica do campo. Aponta ainda a existência nas análises didáticas de uma cisão na economia
libidinal em função da ambigüidade do campo transferencial-contratransferencial.
Outra ambigüidade é apontada por Baranger, Baranger e Mom (1978)
em suas considerações sobre a psicopatologia do processo didático, em
O DIDATA
COMO
ANALISTA:
O CAMPO TRANSFERENCIAL NAS ANÁLISES DE FORMAÇÃO
que coexistem duas tendências opostas. Num extremo temos uma ideologia do passado, num sistema que se opõe às mudanças, por definição, já
que pretende manter a ortodoxia freudiana, afetando a “ventilação crítica”
das idéias, tentando uniformizar os candidatos. E, no outro extremo, um
anticonformismo, que estimula a criatividade. Contrapõe-se a um critério
coerente e unificador, uma concepção pluralista, em que distintas correntes
de pensamento deveriam conviver numa mesma instituição.
Esses autores sugerem profundas modificações nas instituições de
ensino da psicanálise, ressaltando a importância de se recuperar o espírito
questionador dos pioneiros, promovendo as mudanças necessárias na teoria, na técnica e nos analistas. Uma formação adequada deveria criar no
postulante as condições propícias para realizar seu próprio descobrimento
do inconsciente, sem escolástica, mas também sem ausência de rigor.
O analista didata não é somente objeto de transferência e identificação, mas também um objeto idealizado, se tomado como modelo profissional, dotado de um suposto saber. Cabe ao analista ajudar o candidato na
construção de um objeto interno que não seja a sua cópia, mas que o ajude
a encontrar sua própria identidade ideológica, ao mesmo tempo em que
serve como modelo de transmissão da psicanálise. Por outro lado, o analista tem que ser capaz de suportar a crítica, a desilusão e o denegrimento e de
refletir a respeito de suas próprias dificuldades, lembrando que a denominação analista didata refere-se exclusivamente a uma função e não a um
cargo vitalício.
A escolha do analista, a ser feita a partir de uma lista reduzida de
nomes, principalmente em sociedades menores, além do número mínimo
de sessões semanais e duração do tratamento, segue critérios impostos de
fora da dupla, que pode se sentir aprisionada por este enquadre. É comum
que os candidatos prefiram os analistas mais velhos, não somente por serem os mais experientes, mas pela influência de aspectos edípicos, ligados
a fantasias de filiação, por identificação com os objetos do passado. Se o
analista se colocar numa posição paternalista, pode cristalizar a regressão
do paciente, mais intensa nessas análises. Isso pode trazer como conse370 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 371
Regina Lúcia Braga Mota
qüência a imobilidade do campo transferencial, formando, como sugeriram os Baranger (1982), um baluarte, em que se substitui o incômodo gerador de angústia por uma análise confortável e conformista.
Por sua vez, o analista pode preferir os candidatos que pensam como
ele, pois assim seria mais fácil analisá-los, enquanto os mais
questionadores seriam evitados. Um conluio perverso da dupla serviria
para evitar rivalidade, inveja e transferência negativa. O candidato pode se
sentir perseguido e ameaçado de “reprovação” caso tenha sentimentos negativos em relação ao seu analista, reprimindo a luta que está em jogo contra a autoridade paterna.
Estando favorecida a criação de um clima persecutório no campo
transferencial institucional, observa-se nas análises de formação uma tendência à ocorrência de análises “como se”. Assim, o sentimento
persecutório de estar sendo avaliado incrementa o desenvolvimento de um
falso self, utilizando um recurso defensivo imitativo, calcado na identificação. Felizmente, após anos de discussão, na grande maioria das sociedades, dispensou-se o analista didata do papel de informante acerca da evolução do seu analisando-candidato, uma perigosa distorção do seu papel, que
desvirtuava ainda mais a essência da análise. No entanto,
contratransferencialmente, mesmo sem terem sido solicitados, alguns
didatas podem se sentir instados por seu desejo a ajudar o candidato, quando o mesmo apresentar dificuldades, apontadas, por exemplo, pela Comissão de Ensino.
No outro extremo, embora mais raramente, podemos encontrar uma
hostilidade a princípio velada, relacionada à intensa transferência negativa,
movida pela inveja geralmente negada, levando a fortes atuações, tendo
como maior conseqüência a interrupção da análise. Entretanto, caso deseje
interromper a análise ou trocar de analista, o candidato precisa ter muita
coragem para fazê-lo, pois a Comissão de Ensino será informada, inevitavelmente o corpo societário tomará conhecimento, e, por vezes, levantamse dúvidas a respeito da capacidade clínica do analista ou da patologia do
candidato. Nessas ocasiões, contratransferencialmente, o próprio analista
O DIDATA
COMO
ANALISTA:
O CAMPO TRANSFERENCIAL NAS ANÁLISES DE FORMAÇÃO
se vê afetado narcisicamente, sendo que uma grande competência é exigida
para lidar com essa situação, em que estão envolvidos aspectos edípicos
primitivos, que precisam estar bem trabalhados para que se evite actingouts dos dois lados da dupla.
Nas análises de formação, o narcisismo do analista é constantemente
colocado à prova. Alguns ainda consideram que pertencemos a uma casta,
pois, se chegamos ao Olimpo da IPA, após tantos anos de trabalho e tantos
ritos de passagem, já sabemos tudo, somos incontestavelmente os bons e
nossos analisandos os melhores candidatos, constituindo duplas imbatíveis na fantasia de alguns. Somos tentados a nos sentir orgulhosos de nossas “crias”, desde o momento em que, ainda pretendentes, são aprovados
na seleção ou quando, mais tarde, se destacam como bons alunos. A renúncia a esse narcisismo é fundamental para o ocorrência de uma boa análise,
pois o analista tem de conviver com o não-saber e as discordâncias. Deve
resistir às demandas anaclíticas do analisando, evitando o poder sugestivo
que seu papel lhe confere, privilegiando a interpretação em lugar do acting
ou da ação posta em cena. Do ponto de vista grupal, em que a violência é
freqüente, necessita poder sublimar a agressividade.
O grupo societário, em que relações familiares são reproduzidas, funciona como uma caixa de ressonância que amplifica a cena transferencial
(VIÑAR, 1996), sendo a exposição do analista muito maior do que nas
análise comuns. É freqüente que, no início das análises de formação, os
próprios candidatos de uma mesma turma troquem idéias sobre suas análises e analistas, comparem o preço cobrado pelas sessões, etc., proporcionando um vazamento de informações sobre a dupla, que incrementa o
voyeurismo institucional, desvelando a cena primária, rompendo a assepsia
do campo, invadindo a intimidade bipessoal. Ao mesmo tempo que
extrapolam os limites do setting, tais informações retornam ao divã, atingindo-nos duplamente. Ouvimos falar de nossos colegas analistas, professores e supervisores dos quais já temos, pelos anos de convivência, uma
imagem formada, tornando a isenção para interpretar mais difícil. Como
trabalhar as configurações edípicas que se mostram ampliadas, num campo
372 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 373
Regina Lúcia Braga Mota
previamente minado?
Meyer (2001) situa essa “super-análise” no campo da perversão, em
que uma verdade é vista mas recusada, justapondo-se o que é incompatível, como um fetiche. Transpondo para a análise didática as conclusões de
Jiménez (2002) a respeito da perversão na transferência, podemos observar
nestas análises a tentativa de transformar o campo transferencial, por definição assimétrico, em simétrico, renegando a diferença. Cria-se a falsa aparência de que analista e analisando são colegas que pensam da mesma maneira, já que pertencem a um mesmo grupo, mantendo-se a ilusão de uma
unidade sujeito-objeto. Uma atitude polêmica e desafiadora pode permanecer latente, mas aparece ao analista como uma transgressão velada ao
acordo básico que estrutura o encontro intersubjetivo.
Outro perigo a ser evitado seria o desenvolvimento de uma relação
intelectualizada, principalmente com candidatos teoricamente bem preparados, através do uso de uma mesma linguagem e de jargões psicanalíticos.
Nesses casos, pode ocorrer uma cumplicidade forçada ou uma disputa acadêmica, em que a experiência emocional fica em segundo plano. Quando o
analista ministra seminários ou supervisiona outros candidatos, ele é também avaliado como professor e como supervisor. Se um nosso analisando
apresenta dificuldades para acompanhar os seminários, significa que
estamos sendo bons analistas, ou não? Logo, indiretamente estamos sempre sendo avaliados e fiscalizados pelos nossos pares, o que propicia o
desenvolvimento de uma atmosfera paranóide nos dois lados da dupla.
Quando ocupamos cargos de direção dentro da Sociedade somos investidos de predicados que antecedem a própria experiência da dupla, ficando o campo transferencial muitas vezes contaminado por pré-julgamentos nocivos.
Em relação ao término de uma análise de formação, Eizirik (1996) nos
alerta para sentimentos contratransferenciais desencadeados pelos
analisandos face à ansiedade de separação, que levariam o analista a querer
reter o paciente-candidato, desejando sua eterna gratidão, compondo
conluios maníacos, constituídos pela fantasia de formarem uma dupla ex-
O DIDATA
COMO
ANALISTA:
O CAMPO TRANSFERENCIAL NAS ANÁLISES DE FORMAÇÃO
cepcional que tem as mesmas idéias. Podemos observar os resíduos dessas
análises no desenvolvimento de amizades pessoais e grupos de estudos
endogâmicos.
Acrescento que a dificuldade de separação nessas duplas pode causar
um dano no processo de luto, dificultando ao paciente renunciar à transferência, por uma negação da separação A adesão às idéias do analista pode
impedir a discordância teórica, o que se reflete até nas reuniões da Sociedade. Ao contrário, se o candidato se sentir livre para ter suas próprias idéias,
é porque sua análise didática cumpriu seu objetivo.
Nessa altura, depois de todos os percalços expostos acima, por que
nós, analistas da IPA, ainda requeremos a função didática? Para ter clientes
cativos, por uma questão monetária? Para sermos promovidos ao ápice da
carreira e desfrutarmos de poder ou status? Por ambições políticas, em que
a cooptação de fidelidade é importante? Considero que cada analista deveria se questionar se realmente deseja esta função, em lugar de ser impulsionado por razões espúrias, em que a curiosidade científica é substituída por
ambição profissional, tornando a vida intelectual da Sociedade
empobrecida. Deve ainda estar consciente de seus próprios “pontos cegos”
e tratá-los.
Além de objetivar a preservação e a transmissão da Psicanálise da
IPA, mantendo um controle da formação, que outras razões teríamos para
sustentar a existência da análise didática ou da análise de formação? Seria
uma solução que os candidatos pudessem fazer suas análises com qualquer
membro da Sociedade ou mesmo com analistas de fora?
Apesar de todas as dificuldades, trata-se de uma experiência
inigualável tanto para o analista quanto para o analisando, pois, como uma
faca de dois gumes, também envolve circunstâncias que favorecem uma
boa análise, como, por exemplo, a alta freqüência de sessões e a facilidade
com que se estabelece a transferência de figuras parentais, proporcionando
que a situação edípica se mostre com mais facilidade e seja interpretada.
Colocar-me a favor ou contra a análise didática seria simplificar demais o problema e creio que ainda estamos longe de uma situação ideal.
374 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopse
A autora tece considerações a respeito da complexidade do campo transferencial que se instala nas análises de formação, desde a escolha do analista até o
término da análise e seus resíduos. Reconhece a influência intrusiva da instituição
na dupla analista-analisando. Indica que, nesses casos, o analista tem que estar
muito atento à sua contratransferência no momento de interpretar. Sugere que os
analistas se interroguem a respeito do seu desejo de requerer a função didática,
para que não sejam influenciados por razões espúrias.
Summary
The Trainer as Analyst: the transferential field in training analyses
The author argues about the complexity of the transferential field that is
established in training analyses, from the choice of an analyst to the analysis
termination and its residues. She acknowledges the intrusive influence of the
institution on the analyst-analysand pair. She points out that, in these cases, the
analyst has to be extremely attentive to his/her own countertransference when
interpreting. She suggests that analysts should ponder on their wish to become
trainers, so that they are not influenced by spurious reasons.
Sinopsis
El Didacta como Analista: el campo transferencial en los análisis de formación
La autora teje consideraciones sobre la complejidad del campo transferencial que se instala en los análisis de formación, desde la elección del analista
hasta el término del análisis y sus residuos. Reconoce la influencia intrusiva de la
institución en la pareja analista-analizando. Indica que, en estos casos, el analista
tiene que estar muy atento a su contratransferencia en el momento de interpretar.
Sugiere que los analistas se interroguen sobre su deseo de requerir la función
didáctica, para que no sean influenciados por razones espúrias.
Palavras-chave
Contratransferência; Campo transferencial; Formação analítica; Instituição.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 375
Regina Lúcia Braga Mota
Prefiro continuar levantando questões que nos ajudem a pensar nesta
intrincada configuração.
O DIDATA
COMO
ANALISTA:
O CAMPO TRANSFERENCIAL NAS ANÁLISES DE FORMAÇÃO
Key-words
Countertransference; Psychoanalytical training; Analytic field;
Psychoanalytical institution.
Palabras-llave
Contratransferencia; Campo psicoanalítico; Formación psicoanalítica; Institución psicoanalítica.
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376 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado em mesa-redonda no Pré-congresso do XIX
Congresso Brasileiro de Psicanálise. Recife, PE, 01/10/2003.
Dra. Regina Lúcia Braga Mota
SHIS QI 9 Bl. E 1 sala 209
Centro Clínico do Lago Sul
71625-009 – Brasília – DF – Brasil
Fone: (0xx61) 248-6216
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 377
Regina Lúcia Braga Mota
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A que tipo de psicose
me refiro?
Rómulo Lander
Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica de Caracas.
Para os efeitos da descrição teórica deste trabalho, é necessário esclarecer que me refiro à “estrutura
psicótica esquizofrênica”. No diagnóstico diferencial é necessário distinguir entre a clínica psicótica da
histeria e a clínica psicótica da
esquizofrenia. A histeria, em seu
momento psicótico pode produzir
alucinações auditivas e visuais.
Pode apresentar também pensamento delirante franco. O quadro de personalidade prévia e o desencadeante
do episódio ajudam a estabelecer a
diferença entre as duas clínicas. Em
clínica psicanalítica é difícil diagnosticar a presença de uma estrutura psicótica verdadeira (esquizo-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 379
Rómulo Lander
Psicose
Estabilizada
PSICOSE ESTABILIZADA
frênica) anterior à crise, quando essa estrutura se mostra estabilizada e com
uma aparência sintomática neurótica. Distinguir essa estrutura psicótica,
disfarçada de neurose, de uma estrutura neurótica verdadeira não é tarefa
nada fácil. Só fica clara a diferença quando conhecemos os mecanismos
psíquicos e os fenômenos elementares que correspondem à estrutura
psicótica esquizofrênica.
Preâmbulo: o problema do borderline
Quando existem falhas ou deficiências na relação precoce mãe-filho,
deficiências na função rêverie materna ou deficiências próprias do recémnascido, aparece um defeito estrutural na área que corresponde à organização imaginária, também chamada período narcisista. Esse defeito refere-se
a um oco ou vazio nessa área (imaginária). A textura do ego precoce, tecida
na relação mãe-filho, deixa um defeito estrutural. Nós o chamamos um
“vazio no imaginário”. Se esse sujeito consegue entrar na relação triangular e romper a dupla mãe-filho (ou seja, inscrever o nome do pai), então se
estrutura como neurótico. Utiliza o mecanismo básico da repressão para
resolver o Édipo. Entretanto, tais sujeitos com esse enorme vazio no imaginário constituem o que em clínica psiquiátrica se chama patologia
borderline (estados fronteiriços ou limítrofes). Estruturalmente, são neuróticos que apresentam sintomas muito alarmantes e perturbadores. Esses
quadros são, às vezes, mal chamados de pré-psicóticos pela gravidade de
seus sintomas. Mas a verdade é que não evoluem para uma psicose
(esquizofrênica). Não o fazem porque não são estruturas psicóticas verdadeiras. São neuróticos graves que inscreveram o nome do pai.
A forclusão do nome do pai
Refere-se a um mecanismo psíquico que não inscreve o significante
do nome do pai, quer dizer, forclui sua inscrição. Lacan dizia que “é a mãe
a que introduz a criança na metáfora paterna”. Para fazer isso, a mãe necessita ter inscrito ela mesma uma estrutura triangular em sua mente. Se a mãe
é dual narcisista (em sua estrutura), não poderá inaugurar a metáfora pater380 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
O esquema (R)
Refere-se ao esquema introduzido por Lacan em 1953, em seu trabalho intitulado “De uma questão preliminar a todo o tratamento possível das
psicoses”. Trata-se de uma modificação do esquema Lambda. O esquema
(R) mostra duas áreas vazias: uma na área imaginária e outra na simbólica.
Refere-se ao vazio de castração na ordem imaginária e ao vazio originado
pela forclusão do nome do pai na área correspondente ao simbólico. Esses
vazios ou ocos são irreparáveis; só é possível obturá-los momentaneamente com o sintoma e com outras construções (ou próteses) que funcionam
como uma suplência.
Esquema
Φο
Ρο
A Bejahum
Corresponde a um mecanismo precoce descrito por Freud e retomado
por Lacan que se refere à afirmação (a Bejahum). Quando a criança, com o
seu pranto, encontra o mundo (e vice-versa), e esse pranto é transformado
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 381
Rómulo Lander
na na psique de seu filho. Isso não tem nada a ver com a presença encarnada do pai no lar. Esse encontro metafórico ocorre com ou sem pai encarnado. O que irá permitir a inscrição é a estrutura psíquica materna, ou de
quem faça as suas vezes. Em certas circunstâncias, a criança inscreve o
nome do pai graças à presença de outra figura substitutiva materna; outras
vezes, a psique do pai é dual narcisista e substitui a mãe no seu lugar materno. Quando se forclui a função paterna na estrutura psicótica
(esquizofrênica), encontraremos uma estrutura com dois ocos.
PSICOSE ESTABILIZADA
pelo outro em mensagem, ao ser entendida, e atendida em sua necessidade
primitiva, a criança, nesse ato (do pranto), realizou a primeira afirmação.
Nessa primeira afirmação se inscreve o significante e se inaugura a vida
psíquica do sujeito. Área do imaginário. Posteriormente, a criança passa a
uma segunda afirmação (a segunda Bejahum), que se refere à oposição ao
não (que é um não afirmativo). Isso ocorre quando aparece a figura de
outro e a capacidade de discriminação (self/objeto). Essa segunda afirmação é muito importante, porque resgata a criança (e a mãe) da ligação dual
materna. Essa triangulação só é possível quando ficou inscrito o
significante do nome do pai e o sujeito se inaugura na neurose. Se isso não
ocorre em um momento precoce (momento oportuno) da constituição do
sujeito, não é possível que se inscreva em um momento futuro. A estrutura,
com sua correspondente forclusão, está gravada a fogo e não se transforma
em outra estrutura. A terceira afirmação ocorre na estrutura neurótica,
quando o sujeito utiliza a passagem ao ato para conseguir afirmar a presença de seus argumentos. Corresponde aos atos de rebeldia, que são uma
terceira forma de alcançar a importante afirmação do sujeito. O conhecimento se adquire não só com a consciência da experiência, mas também
com o reconhecimento que o outro faz da experiência do sujeito.
Corresponde à figura topológica dos dois toros unidos pelo oco, em que o
desejo do sujeito e o reconhecimento do Outro (do inconsciente) ficam
unidos pelo vazio que existe no centro dos dois toros.
Fenômenos elementares
Esses fenômenos correspondem à marca esquizofrênica. É o fenômeno (mínimo) que caracteriza a estrutura psicótica esquizofrênica estabilizada. São detectáveis na entrevista com os esquizofrênicos estabilizados (sem
presença de crises). São de difícil leitura, já que são quase imperceptíveis e
requerem uma habilidade clínica do psicanalista para detectá-los.
Eu pessoalmente isolei seis tipos de fenômenos elementares: (a) o
empurrão ao outro sexo (Lacan dizia o empurrão à mulher); (b) a ausência
de shifter; (c) o outro, como a coisa em si, como um amo; (d) a genitalidade
382 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
(a) O empurrão ao outro sexo
O sujeito com uma estrutura psicótica (esquizofrênica) terá dificuldades em estabelecer sua identidade sexual. Sabemos que a identidade sexual
humana é precoce, se adquire muito cedo na vida e é aprendida por identificação com o discurso dos pais, que nomeiam a criança em seu gênero
sexual. Essa identidade sexual é adquirida (sua convicção e certeza) aproximadamente aos cinco anos e é irreversível depois de certa época.
O sujeito psicótico (esquizofrênico), ainda que compensado, “estabilizado”, tem dificuldades nessa certeza e apresenta ambigüidade na sua
identidade sexual. Às vezes, sujeitos masculinos referem que partes ou aspectos de seu corpo são de mulher. Não é um problema transexual. Conhecem e aceitam seu sexo, mas têm aspectos do sexo oposto. Isso é
observável na clínica do psicótico estabilizado e que funciona com uma
envoltura neurótica. Um analisando meu afirmava que, ao caminhar, a parte posterior de seu corpo (que ele não podia ver) era de mulher. Soube de
outro analisando que, ao correr, estava convencido que corria como uma
menina (como uma mulher) e não podia evitá-lo. Esses fenômenos têm que
ser avaliados cuidadosamente, sem se concluir apressadamente, já que a
presença na clínica de um e outro fenômeno elementar pode levar o analista ao erro, ao acreditar que está trabalhando com uma estrutura psicótica.
(b) A ausência de shifter
Tomado por Lacan de uma proposta do lingüista russo Roman
Jackobson, originalmente é uma figura da sintaxe gramatical. Lacan a toma
livremente para referir-se a uma dificuldade na produção do discurso no
psicótico (esquizofrênico). Eu a entendo e utilizo da seguinte maneira:
O shifter é uma capacidade do ego de deslizar (fazer metonímia) do
discurso na relação com o outro. A presença do shifter (em português, o
que desloca ou empurra) permitirá que o sujeito (não-esquizofrênico) posSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 383
Rómulo Lander
sem sujeito; (e) a presença do mar de gozo; e (f) a ambigüidade na escolha
de objeto sexual
PSICOSE ESTABILIZADA
sa brincar, vacilar no dizer, safar-se do discurso do outro, e inclusive mentir. A ausência do shifter introduz uma rigidez no discurso com escassa ou
nula flexibilidade. Assim, os sujeitos mostram uma marcada dificuldade
de relacionar-se com o outro, de manter um laço social. Constitui outro do
que Lacan chamou de “fenômenos elementares” na estrutura psicótica.
Lacan dizia que essas estruturas são incapazes de mentir, o que dificulta a
relação social ao impedir a necessária hipocrisia social. Para mentir, é necessário o shifter. O neurótico precisamente se caracteriza por sua capacidade de mentir. A rigidez de discurso (ausência de shifter), que não tem
nada a ver com a rigidez das idéias (tipo obsessiva), tem sido chamada a
marca esquizofrênica. É muito difícil de ser detectada (diagnosticada) na
entrevista. Só se detecta na descrição espontânea da relação com o outro,
em que existe a tirania ou domínio do discurso do outro (do inconsciente),
encenado no vínculo social. Um analisando passava enormes dificuldades
para pedir um café preto no meio de uma abundante clientela do café onde
costumava freqüentar. Não havia ordem de pedido, todos em pé pedindo ao
mesmo tempo. Finalmente, se indignava ante sua impotência e reagia com
um ato de violência.
Às vezes, na conduta, se evidencia algo similar em relação à ausência
de shifter. Um analisando, ao sair em uma entrevista com uma dama, não
sabia onde se colocar quando caminhava com ela na rua. Se ao seu lado, se
atrás ou na sua frente.
(c) O outro como um amo
Essa dificuldade tão especial com o deslizamento do significante (uso
da metonímia) na linguagem provoca uma tirania do outro (do inconsciente) sobre o sujeito. O sujeito com estrutura psicótica relaciona-se com o
outro (do inconsciente) no discurso, de uma forma tão rígida que não fica a
possibilidade de relativizar a relação social. O Outro é percebido como se
fosse um amo. O sujeito fica preso em um discurso tirânico (também chamado por mim “discurso de domínio”). Essa relação objetal de domínio é
diferente do discurso do amo que Lacan descreveu em seus já clássicos
384 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
(d) A genitalidade sem sujeito
A organização sexual do sujeito que tem uma estrutura psicótica
esquizofrênica é precária. Como já vimos, a identidade sexual é deficiente
(é estranha). Existe o empurrão ao sexo oposto, pelo qual o sujeito acredita
ter partes físicas do outro sexo. A escolha do objeto sexual também pode
ser deficiente, o que produz uma certa ambigüidade no objeto sexual que
excita. As dificuldades na relação com o outro dentro da ordem da linguagem atrapalham a relação de amor que é geralmente unidirecional, platônica e autista. Nessa estrutura psicótica até existe a capacidade para a entrega
pulsional sexual (com orgasmo). Entretanto, vivem a experiência sexual
como autômatos. O parceiro também relata haver tido uma experiência
sexual estranha (como com um robô). Para esses sujeitos é muito difícil
manter uma situação de romance (amorosa) precisamente pela ausência do
shifter e vivem sua vida sexual utilizando encontros ocasionais com prostitutas com as características de uma sexualidade orgástica de tipo robô.
(e) A presença do mar de gozo
O gozo, conceito introduzido por Lacan, se refere a um montante de
sofrimento no sujeito. Não tem nada a ver com o masoquismo freudiano. O
sujeito, ao estruturar-se no lugar do outro e em uma falta constitutiva, não
poderá evitar de participar durante toda a sua vida de um certo montante de
sofrimento (o gozo). Esse gozo tem como fim manter a estabilidade psíquica. Lacan o chamou gozo inspirado no texto freudiano que propõe um além
do princípio do prazer. A estrutura psicótica, com todas as suas insuficiências constitutivas, tem um incremento enorme no montante de gozo necesSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 385
Rómulo Lander
quatro discursos. Nesse “discurso do amo” o sujeito aparece como o amo.
Na estrutura psicótica, o outro social é percebido como a coisa em si, sendo
vivido (sem sê-lo) como um amo, um tirano. Muitas vezes, esse tipo de
discurso instala na transferência um vínculo tirânico, pelo qual o analista é
percebido como inflexível e dominador. Às vezes provoca um impasse psicanalítico.
PSICOSE ESTABILIZADA
sário para manter sua homeostase ou equilíbrio psíquico. Lacan o denominou “o mar de gozo do psicótico”.
(f) A ambigüidade na escolha do objeto sexual
Esse tipo de sujeito mostra sérias dificuldades em sua capacidade de
estabelecer um sentimento de identidade sexual que tenha estabilidade e
convicção. Igual dificuldade encontrará com sua escolha do objeto sexual.
Assim, pois, nesse casos encontraremos uma não-convicção nem certeza
na identidade sexual, nem tampouco na escolha do objeto sexual. É certo
que é possível desfrutar do sexo caso se cumpram certas condições (particulares para cada caso) e ter uma capacidade orgástica. Entretanto, o funcionamento sexual dependerá muito da demanda do outro. Os sentimentos
de ser homem ou mulher podem variar segundo o pedido do outro. Seus
atos homossexuais ou heterossexuais também dependerão da demanda do
outro. Portanto, encontramos na clínica uma ambigüidade na escolha do
objeto de desejo sexual. Assim, analisandos heterossexuais podem trocar
para relações estáveis homossexuais e vice-versa.
A produção psicótica
Quando o sujeito estruturado como psicótico perde sua estabilidade,
aparecem os sintomas próprios da psicose esquizofrênica. Aparecem transtornos profundos na sensopercepção, com alucinações e transtornos no
pensamento, com o aparecimento do delírio esquizofrênico. As alucinações representam uma regressão desde o real, daquilo que para o psicótico
não é simbolizável. Os delírios (as construções delirantes) são sintomas
curativos (sintoma de restituição) que têm o propósito de aliviar a angústia
de desintegração e de caos. Lacan dizia que nesse episódio se haviam solto
os três anéis do nó Borromeo (RSI). O delírio tenta prendê-los novamente,
ou seja, o delírio visto como uma prótese (ou suplência) imaginária, um
quarto nó, a restituir certa capacidade funcional no sujeito.
386 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
O delírio é uma linguagem que se encontra fora de discurso. Uma
linguagem na qual a letra se pode tomar como coisa. Nesse caso, a angústia
do fora de discurso se acalma com a aparição da metáfora delirante. O
delírio que se caracteriza por sua certeza e que representa uma tentativa de
restituição do fora de discurso logrará certa estabilidade.
Os dois tipos de suplência
A suplência refere-se a uma fabricação psíquica (um constructo, às
vezes um sintoma) que pretende manter unidas as três ordens (RSI). A
suplência no imaginário são crenças fundamentalistas que servem de gancho (staple), o quarto nó, entre o imaginário e o simbólico. Nós o chamamos de prótese imaginária. A prótese imaginária sujeita a palavra à linguagem. A construção delirante com sua correspondente certeza (que se encontra colocada entre o simbólico e o imaginário) funcionará como uma
suplência e a chamamos de “a metáfora delirante”. Os sintomas dentro da
ordem da compulsão: bulimia, anorexia e drogas, podem estar exercendo a
função de suplência; é necessário, portanto, ter cautela no momento de
trabalhar analiticamente com pacientes que escondem uma estrutura
psicótica (esquizofrênica). Se eles se liberam do sintoma gancho, quer dizer, de uma suplência, pode se desencadear o quadro clínico psicótico
(esquizofrênico) ao soltarem-se as três ordens.
Desencadeante da crise psicótica
As crises de angústia de um psicótico estabilizado não representam
um perigo de desestabilização. Às vezes torna-se difícil precisar o
desencadeante. Pessoalmente tenho encontrado dois fatores
desencadeantes. (a) a sensibilidade que a estrutura psicótica tem ao
rechaço; e (b) a impossibilidade de ocupar (dentro da ordem simbólica) o
lugar do pai.
Lacan falava dos episódios de paranóia desencadeados por sentimentos de culpa. Aqui é necessário esclarecer que a paranóia lúcida não é e
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 387
Rómulo Lander
O fora do discurso
PSICOSE ESTABILIZADA
não corresponde a uma estrutura psicótica (esquizofrênica), e, além disso,
esses pacientes têm algo inscrito no lugar do nome do pai que corresponde
a uma dupla inscrição da função materna.
(a) Intolerância ao rechaço
O neurótico tem uma dificuldade particular de tolerar a frustração do
seu desejo. O psicótico tem a particular dificuldade de tolerar qualquer
forma de rechaço proveniente do outro social. O psicótico equipa o outro
(do inconsciente) com o outro social. A presença do rechaço, que pode ser
direto ou indireto, explícito ou implícito, faz com que o outro fálico o deixe
no nada. O sujeito psicótico tem uma sensibilidade particular para detectar
a aceitação e o rechaço. A angústia de estar no nada pode produzir o início
ou o desencadeamento de um episódio psicótico (esquizofrênico).
(b) Ocupar o lugar do pai
O neurótico anseia por poder ocupar o lugar do pai. Anseia por seu
recém-adquirido falo simbólico. Seu temor será sempre de perdê-lo. O sujeito psicótico compensado ou estabilizado, quando ocupa no fenômeno
social o lugar fálico, torna isso intolerável. Por estar forcluído esse espaço
em sua mente, o sujeito psicótico não pode funcionar nesse lugar. A angústia é tão grande que desarma qualquer suplência imaginária que tenha sido
instalada antes da crise psicótica. O “Presidente Schreber”1 inicia seu episódio psicótico (esquizofrênico) quando é elevado ao cargo de chefia (Presidência) do Tribunal de Justiça, ou seja, se eleva ao lugar do pai.
Sentido da cura
A estrutura inconsciente do sujeito não muda. Não é possível pensar
que uma estrutura neurótica mude para uma estrutura perversa ou psicótica
(esquizofrênica). O sentido da cura na análise está em conseguir que o sujeito se realize dentro de sua própria estrutura. Wilfred Bion dizia que o
1. Paciente cujo tratamento Freud (1911) descreveu em seu trabalho Notas psicanalíticas sobre
um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoidea) (S.E., v.12).
388 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopse
Este trabalho refere-se à estrutura psicótica esquizofrênica. Propõe a característica dessa estrutura prévia à crise. Descreve a diferença com a crise psicótica
da histeria. Mostra em detalhe os mecanismos psíquicos que correspondem a essa
estrutura psicótica esquizofrênica: forclusão do nome do pai, os ocos na textura
do imaginário e do simbólico, a bejahum e os seis fenômenos elementares (empurrão ao outro sexo, a ausência de shiffter, o outro como a coisa em si, genitalidade
sem sujeito, o mar de gozo e a ambigüidade na escolha objetal). Descreve a produção psicótica e os dois tipos de suplência. No pessoal, proponho dois fatores
desencadeantes da crise esquizofrênica: a sensibilidade ao rechaço que tem a estrutura psicótica e a impossibilidade de ocupar (dentro da ordem simbólica) o
lugar do pai. Por último propõe um enfoque pessoal do sentido de cura nesses
casos.
Summary
Stabilized Psychosis
This work refers to the schizophrenic psychotic structure. It proposes the
characteristic of this structure prior to the crisis. It describes the difference of the
psychotic crisis from the hysteria. It shows in details the psychic mechanisms that
correspond to this schizophrenic psychotic structure: rejection of the father´s name,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 389
Rómulo Lander
objetivo da análise é ser o que se é. Lacan dizia: “atuar em conformidade
com o desejo”, o que é o mesmo. O sujeito com uma estrutura psicótica não
pode escapar dela. Pode aspirar à compensação, à estabilização, a funcionar com uma roupagem neurótica. Portanto, o sentido da cura está em ajudar o sujeito a constituir uma prótese imaginária e por essa via de suplências chegar a uma nova estabilização. A estratégia do analista é especial nos
casos em que se supõe que exista uma estrutura psicótica estabilizada. Nesses casos é necessário interpretar pouco a transferência, porque podem se
sentir acusados ou algo pior: rechaçados. Também é necessário estar muito
atento às necessidades de reconfirmação de seus atos de afirmação (que os
mantém estabilizados), fazendo intervenções que reordenam e de certa forma repetem (confirmam) o que o analisando tratou de dizer. Por exemplo:
“Você me diz que está muito chateado com a sua mãe”.
PSICOSE ESTABILIZADA
the gaps in the composition of the imaginary and the symbolic, the bejahum and
the six elementary phenomena (counter-attraction towards the opposite sex, the
absence of shifter, the other as the thing itself, genitals without subject, the sea of
pleasure and the ambiguity in the object choice). It describes the psychotic
production and the two kinds of supply. Personally, I propose two unchaining
factors of the schizophrenic crisis: the sensibility to repel the psychotic structure
and the impossibility to take (in the symbolic order) the father´s place. At last, the
work proposes a personal focus on the cure meaning under these conditions.
Sinopsis
Psicosis Estabilizada
Este trabajo se refiere a la estructura psicótica esquizofrenica. Se plantea la
característica de esta estructura previa a la crisis. Se describe la diferencia con la
crisis psicótica en la histeria. Se muestran en detalle los mecanismos psíquicos
que corresponden con esta estructura psicótica esquizofrénica: Forclusión del
nombre del padre, los huecos en la textura del imaginario y del simbólico, la
afirmación (behajun) y los seis fenómenos elementales (empuje al otro sexo, la
ausencia de shifter, el otro como la cosa en sí, la genitalidad sin sujeto, el mar de
goce y la ambigüedad en la escogencia objetal). Se describe la producción psicótica
y los dos tipos de suplencias. En lo personal propongo dos factores desencadenantes
de la crisis esquizofrénica: La sensibilidad al rechazo que tiene la estructura
psicótica y La imposibilidad de ocupar (dentro del orden simbólico) el lugar del
padre. Por último se propone un enfoque personal del sentido de la cura en estos
casos.
Palavras-chave
Esquizofrenia; Psicose; Estrutura Psicótica.
Key-words
Schizophrenia; Psychosis; Psychotic structure.
Palabras-llave
Esquizofrenia; Psicosis; Estructura psicótica.
390 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Heloisa Helena Poester Fetter
Dr. Rómulo Lander
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E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 391
Rómulo Lander
Referências
Thomas H. Ogden
Membro Titular da Associação
Psicanalítica Americana (APsaA).
Acredito que a prática da psicanálise seja, fundamentalmente,
um esforço por parte do analista e
do analisando para dizer algo que
pareça, ao mesmo tempo, verdadeiro à experiência emocional de qualquer momento de uma sessão analítica e utilizável pelo par analítico
para o trabalho psicológico. Neste
trabalho, estudo várias idéias relacionadas à questão do que nós,
como psicanalistas, queremos dizer
quando afirmamos que algo é verdadeiro, e o que o pensamento de
uma pessoa tem a ver com o de outra pessoa com respeito ao que é
verdadeiro. Não tenho nenhuma ilusão de estar fazendo algo mais do
que levantar questões e sugerir dire-
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Thomas H. Ogden
O Que é
Verdadeiro
e de Quem
Foi a Idéia?
O QUE
É
VERDADEIRO
E DE
QUEM FOI
A IDÉIA?
ções às quais essas questões possam levar. Minha intenção é começar a
explorar o paradoxo de que as verdades emocionais humanas são, ao mesmo tempo, universais e requintadamente idiossincrásicas a cada indivíduo,
e são tanto eternas como altamente específicas a um dado momento da
vida. Como ficará evidente, as várias questões que levanto se entrelaçam,
e, como resultado, a discussão muitas vezes volta ao ponto de partida quando eu repenso, de uma outra perspectiva, os assuntos enfocados acima.
Muitas das idéias deste trabalho são respostas a conceitos discutidos
por Bion. Tento localizar a fonte das idéias que apresento, mas é difícil
para mim dizer, com alguma segurança, onde terminam as idéias de Bion e
começam as minhas. Uma vez que a questão ‘De quem foi a idéia?’ é a
central desta contribuição, parece que só se apropria completamente se for
encarada com a experiência de escrever e de ler este trabalho.
A questão de se um intercâmbio analítico obtém uma articulação com
algo que é verdadeiro – ou ao menos ‘relativamente verídico’ (BION, 1982,
p.8) – não é uma questão teórica obscura que só os filósofos poderiam
responder. Como analistas, estamos em quase todos os momentos de uma
sessão analítica nos perguntando e tentando nos responder (ou, mais precisamente, respondendo a) essa questão. Apresento um relato detalhado de
uma entrevista analítica inicial, o qual eu ilustro com modos como abordo
tanto a questão do que é emocionalmente verdadeiro em momentos específicos da sessão, como a questão de quem é o autor da idéia que é sentida
como verdadeira.
De quem foi a idéia?
Ao perguntar ‘De quem foi a idéia’, estou investigando o que significa
para uma pessoa reivindicar, ou ter atribuída a ela, a autoria original de
uma idéia em relação ao que é verdadeiro à experiência emocional, e como
aquelas idéias servem para influenciar o pensamento dos outros. Ao ler
Freud e Klein, por exemplo, como se espera que determinemos a quem
creditar a autoria original do conceito de um mundo de objetos internos
inconscientes? Em Luto e melancolia (1917), Freud introduziu o que vejo
394 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
A doença do melancólico proporciona... [uma visão] da constituição
do ego humano. Vemos como [no melancólico] uma parte do ego se
coloca contra a outra, a julga de modo crítico, por assim dizer, a toma
como seu objeto ... O que estamos, aqui, ficando familiarizados, é com
a instância comumente chamada de ‘consciência’ (1917, p.247).
Ao dizer que o leitor pode ouvir a voz de Klein (seu conceito de objetos internos e de relações de objetos internos) nessa e em muitas outras
passagens de Luto e melancolia, estou sugerindo que a influência não ocor-
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como elementos essenciais do que seria denominado, mais tarde, por
Fairbairn (1952), de ‘teoria das relações de objeto’ (ver Ogden, 2002, para
uma discussão das origens da teoria das relações de objeto em Luto e melancolia). Entretanto, vários componentes da teoria das relações de objetos
internos de Freud, contidas em Luto e melancolia, são apresentadas só de
forma rudimentar, e muitas vezes, provavelmente, sem a consciência de
Freud das implicações teóricas de suas idéias. Ao considerar a questão de
como as idéias de uma pessoa em relação ao que é verdadeiro influenciam
as dos outros, nós habitualmente adotamos uma perspectiva diacrônica
(cronológica, seqüencial) a partir da qual o pensamento de uma pessoa (por
exemplo, Freud) é visto como influenciando o pensamento dos contemporâneos e dos que vieram depois (por exemplo, Klein, Fairbairn, Guntrip e
Bion). Apesar da aparente evidência dos méritos dessa abordagem, acredito que possa ter grande valor questionar essa concepção de autoria e de
influência. Ao ler Luto e melancolia, se prestarmos bastante atenção, acredito que possamos ouvir a voz de Klein na discussão de Freud sobre o
‘mundo interno’ do melancólico. Freud postulou que a estrutura do mundo
interno inconsciente do melancólico é determinada por uma cisão dual defensiva do ego que leva à criação de uma relação de objetos internos inconsciente estável entre a ‘instância crítica’ (mais tarde denominada de
superego) e uma parte do ego identificada com o objeto abandonado ou
perdido:
O QUE
É
VERDADEIRO
E DE
QUEM FOI
A IDÉIA?
re exclusivamente em uma direção cronologicamente ‘para diante’. Em
outras palavras, a influência não é exercida só por uma contribuição anterior sobre uma posterior; contribuições posteriores afetam nossas leituras
anteriores. Precisamos de Klein para compreender Freud, tal como precisamos de Freud para compreender Klein. Todo trabalho de escrita analítica
exige um leitor que auxilie o autor a comunicar algo que seja verdadeiro,
algo que o autor sabia, mas que não sabia que sabia. Ao fazer isso, o leitor
se torna um co-autor silencioso do texto.
Enquanto essa forma de influência mútua de contribuições anteriores
e posteriores (mediadas pelo leitor) é, sem dúvida, importante, gostaria de
me voltar, por um momento, para um outro tipo de influência que as idéias
exercem umas sobre as outras – freqüentemente se estendendo por grandes
períodos de tempo, cronologicamente, tanto para diante como para trás.
Retornando ao exemplo da influência das idéias de Klein sobre Freud, e
vice-versa, sugiro, agora, que as idéias de Klein, formuladas em 1935 e
1940 sobre o tema das relações de objeto, poderiam ter sido acessíveis a
Freud já em 19151 e foram utilizadas por ele (involuntariamente) ao escrever Luto e melancolia. Embora ele tenha usado as idéias, ele não pôde
pensá-las. Dizer isso é cogitar a possibilidade de que as idéias que nós
pensamos como sendo de Klein ou de Freud são criações de ambos e de
nenhum. As idéias que cada um articulou são formulações da estrutura da
experiência humana – uma estrutura, um grupo de verdades –, que psicanalistas e outros tentaram descrever, mas que certamente não criaram.
Bion, acredito, sustentou visões similares sobre a questão da bidirecionalidade temporal da influência das idéias de um sobre o outro e
articulou ‘suas’ formulações com muito mais graça do que eu:
Podes olhar para isso [o inconsolável choro de um bebê nos braços de
sua mãe imediatamente após seu nascimento] como preferires, falar
como traços de memória, mas esses mesmos traços de memória podem
1. Embora Luto e melancolia tenha sido escrito em 1915, Freud, por razões que permanecem um
mistério, decidiu não publicar este trabalho até 1917.
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O futuro, para Bion, é tanto uma parte do presente como o é o passado.
A sombra do futuro é lançada adiante a partir do presente, e é lançada para
trás do futuro em direção ao presente – ‘depende em que direção estás
indo’. (Muitas questões a respeito da relação de um autor às ‘suas’ idéias, e
das relações entre as idéias do passado, do presente e do futuro, ficarão
suspensas, por enquanto, aguardando uma discussão do que nós, como psicanalistas, queremos dizer quando afirmamos que algo é verdadeiro.)
O que é verdadeiro?
A discussão precedente da bi-direcionalidade temporal da influência
(De quem foi a idéia?) é inseparável da questão ‘O que é verdadeiro?’.
Tomarei como premissa para minha discussão dessa questão a idéia de que
há algo verdadeiro à experiência emocional humana que um analista pode
sentir e comunicar, com precisão, a um paciente, com palavras que o paciente pode ser capaz de utilizar. Ao assumir que há algo potencialmente
verdadeiro (ou não verdadeiro) sobre as formulações psicanalíticas e as
interpretações verbais da experiência emocional humana, sucede que a experiência emocional humana tem uma realidade, uma verdade,2 que é independente das formulações ou interpretações que o paciente ou o analista
podem impor (BION, 1971).
2. Verdade Absoluta (e não conhecida), descrita por Bion (1971) como ‘O’, corresponde, aproximadamente, à ‘coisa-em-si’ de Kant, às ‘Formas Ideais’ de Platão e ao ‘registro do Real’ de
Lacan. Algumas vezes Bion a rotula simplesmente como ‘a experiência’ (1971,p.4). Neste trabalho, estou me referindo quase que exclusivamente à experiência humana acerca de verdades relativas humanamente apreensíveis, humanamente significativas (como oposto à Verdade Absoluta).
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Thomas H. Ogden
também ser considerados como uma sombra que o futuro lançou antes
[uma antecipação do futuro no presente em oposição às memórias do
passado]... A cesura que nos faria acreditar [Bion está citando a frase
de Freud aqui – palavra por palavra – a caminho do que a cesura do
nascimento parece falar por si em um esforço de nos convencer de seu
poder sobre nós]; o futuro que nos faria acreditar; o passado que nos
faria acreditar – depende em que direção estás indo, e do que tu vês
(1976, p.237).
O QUE
É
VERDADEIRO
E DE
QUEM FOI
A IDÉIA?
A idéia de que a verdade é independente do investigador repousa no
centro do método científico e é dada por certa nas ciências naturais. Na
biologia molecular, por exemplo, parece evidente que Watson e Crick não
criaram a estrutura helicoidal dupla do DNA. Aquela estrutura existia antes da sua formulação: o DNA tem uma estrutura helicoidal dupla a despeito de que eles, ou qualquer outro cientista, o tenham percebido (e fornecido
evidências para a formulação).
A dupla hélice é uma estrutura que pode ser ‘vista’ – ainda que por
objetos inanimados (máquinas) que nos oferecem a ilusão de que o olho
humano é capaz de ver a estrutura em si. Em psicanálise, não temos máquinas para ver (mesmo de modo ilusório) as estruturas psicológicas; temos
acesso a ‘estruturas’ psicológicas só na medida que são experimentadas
por meio de ações, sentimentos, pensamentos e sonhos conscientes, préconscientes e inconscientes. Damos forma a essas estruturas nas metáforas
que criamos (por exemplo, a metáfora arqueológica do modelo topográfico
de Freud ou a metáfora que constitui o modelo estrutural de Freud, que
compreende um comitê imaginário, composto pelo id, pelo ego e pelo superego, tentando lidar com a realidade interna e externa). Contudo, há algo
real (não-metafórico) a que as formulações psicanalíticas – pertençam elas
ao reino da metapsicologia, da clínica teórica ou das interpretações dadas
ao paciente – são comparadas, e esse ‘algo’ é o nosso sentido (nossa ‘intuição’ [BION, 1992, p.315]) do que é verdadeiro em relação a uma experiência. Afinal, é a resposta emocional – o que se sente como verdadeiro – que
tem a palavra final em psicanálise: o pensamento modela as perguntas a
serem respondidas em termos de sentimentos.
Entretanto, os sentimentos do analista com respeito ao que é verdadeiro é mera especulação, até que os mesmos sejam colocados em contato
com algo externo à realidade psíquica do analista. A resposta do paciente a
uma interpretação – e, por sua vez, a resposta do analista à resposta do
paciente – desempenha um papel decisivo em confirmar ou infirmar o sentido do analista do que é verdadeiro. Essa metodologia representa um esforço para embasar a verdade psicanalítica em um mundo fora da mente do
398 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Se nas páginas seguintes houver um ou outro verso que deu certo, perdoe-me o leitor pela audácia de tê-lo escrito antes dele. Somos todos
iguais; nossas mentes inconseqüentes são muito parecidas, e as circunstâncias nos influenciam de modo que há algo de acidental que faz
você ser o leitor e eu o escritor – o escritor inseguro e ardente – dos
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analista. Isso leva, pelo menos, duas pessoas a pensar (BION, 1963). O
‘pensamento’ de uma pessoa por si própria pode ser interminavelmente
solipsista ou mesmo alucinatório, e seria impossível a um pensador solitário determinar se este é ou não o caso.
Contudo, apesar dos esforços do analista para embasar o que ele sente
que é verdadeiro em uma conversa com os outros, o ser humano tem uma
grande predisposição a tratar as suas crenças como se elas fossem verdades. Então, de quem é a última palavra a respeito do que é verdadeiro?
Como as várias ‘escolas’ de psicanálise podem ser distinguidas de seitas,
se cada uma delas está certa de saber o que é verdadeiro? Tentarei não
tratar diretamente essas perguntas segundo o modo como desenvolvemos
algum grau de confiança em relação à questão do que é verdadeiro. Em vez
disso, responderei indiretamente, oferecendo algumas reflexões sobre o
que eu penso que nós, como analistas, queremos dizer quando falamos que
algo é verdadeiro (ou contém algo de verdade em si). Se temos uma idéia
sobre o que queremos dizer quando falamos que algo é verdadeiro, podemos obter algum sentido em como faremos para diferenciar o que é verdadeiro do que não é.
Como um ponto de partida para pensar sobre o que nós queremos dizer quando falamos que uma idéia é verdadeira, retornemos à idéia de que
há coisas que são verdadeiras sobre o universo (incluindo a vida emocional
dos seres humanos), que preexistem e são independentes do pensamento
de qualquer pensador individual. Em outras palavras, os pensadores não
criam a verdade, eles a descrevem. Os pensadores, a partir dessa perspectiva, não são inventores, e sim observadores e escribas participantes.
Um comentário feito por Borges, em uma introdução a uma coletânea
de seus poemas, me veio à mente aqui:
O QUE
É
VERDADEIRO
E DE
QUEM FOI
A IDÉIA?
meus versos [que ocasionalmente capturam algo de verdadeiro da experiência humana] (1923, p.269).
Borges e Bion concordam: ninguém inventou a verdade. Para Bion
(1971), só uma mentira necessita de um pensador para criá-la. O que é
verdadeiro já existe (e.g., a estrutura helicoidal dupla do DNA) e não necessita de um pensador para criá-lo. Nos termos de Bion, a psicanálise
antes de Freud era ‘um pensamento sem um pensador’ (p.104), isto é, um
conjunto de pensamentos que são verdadeiros, ‘esperando’ por um pensador para pensá-los. As concepções psicanalíticas do que é verdadeiro para
a experiência emocional humana não foram inventadas por Freud, bem
como o sistema solar heliocêntrico não foi inventado por Copérnico.
No entanto, a partir de um ponto de vista diferente, pensar pensamentos que expressam o que é verdadeiro altera a própria coisa que está sendo
pensada. Heisenberg chamou nossa atenção para isso no campo da física
quântica. É igualmente verdadeiro na psicanálise e nas artes que, interpretando, esculpindo ou fazendo música, não estamos simplesmente revelando o que se apresentou todo o tempo na forma latente; mais precisamente,
no próprio ato de dar forma humanamente sensível a uma verdade, estamos
alterando aquela verdade.
As formas na natureza não têm nomes; elas nem mesmo têm formas
até lhes atribuirmos categorias visuais de formas que somos capazes de
imaginar. As entidades da natureza simplesmente são o que elas são antes
de lhes atribuirmos um lugar no nosso sistema de símbolos. Assim, apesar
(ou além) do que foi dito antes sobre a independência da estrutura helicoidal dupla do DNA de quem a formulou, Watson e Crick de fato alteraram a
estrutura do DNA – eles nomearam sua estrutura e, nesse sentido, lhe deram forma. A verdade do nome da forma foi confirmada pelo seu poder de
dar uma organização humanamente compreensível e humanamente sensível ao que anteriormente havia faltado coerência. Entretanto, o fato da criação de coerência não é uma base suficiente para estabelecer a verdade de
uma idéia. Sistemas religiosos criam coerência. A verdade de uma idéia,
400 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Dizer alguma coisa que acreditamos ser verdade
Vamos fazer uma pausa por um momento para avaliar o que foi dito
até agora. À parte as questões do narcisismo do autor, é irrelevante quem é
que articula alguma coisa que seja verdadeira – o que é importante é que
um pensamento que é verdadeiro ‘encontrou’ um pensador que o tornou
disponível para ser usado por um paciente ou por um colega. Não importa
e nem faz sentido perguntar ‘De quem foi a idéia?’ O que de fato importa
em psicanálise – e importa muito – é encontrar palavras com as quais dizer
alguma coisa que tenha uma qualidade que seja verdadeira à experiência
vivida (seja uma interpretação oferecida a um paciente ou uma contribuição feita por um analista à literatura analítica).
Nesse esforço de dizer algo que é verdadeiro, o analista deve superar
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 401
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tanto nas ciências naturais como na psicanálise, repousa em evidências
aplicadas em uma idéia. A evidência consiste em um conjunto de observações (incluindo respostas emocionais de observadores participantes, tais
como psicanalistas trabalhando no setting analítico) do modo como as coisas funcionam (ou não funcionam) quando se aplica a idéia/hipótese à experiência real observada ou vivida.
Em resumo, precisamos do que Bion chama de ‘visão binocular’
(1962, p.86) – a percepção simultânea a partir de múltiplos pontos de vista
–, para articular o que queremos dizer por verdade em termos psicanalíticos. O que é verdadeiro é uma descoberta como que oposta a uma criação,
e todavia, fazendo uma descoberta, alteramos o que descobrimos e, nesse
sentido, criamos algo novo. A concepção psicanalítica da ação terapêutica
da interpretação do inconsciente depende nada menos do que de tal visão
da verdade e das transformações produzidas ao nomeá-la. O analista, ao
fazer uma interpretação (que tenha alguma verdade para ele e que seja utilizável pelo paciente) dá ‘forma’ verbal à experiência que uma vez havia
sido não-verbal e inconsciente. Ao fazer isso, o analista cria o potencial
para uma nova experiência do que é verdadeiro, que se origina da experiência inconsciente não-articulada do paciente.
O QUE
É
VERDADEIRO
E DE
QUEM FOI
A IDÉIA?
Freud e toda a história das idéias psicanalíticas, bem como a história da
análise do paciente com quem ele está trabalhando. Em um aparte um tanto
singular feito durante uma reunião, Bion falou do papel da pré-concepção
em seu trabalho clínico: ‘Eu...[contaria com a teoria só] se eu estivesse
cansado e não tivesse a mínima idéia do que estava se passando’ (1978,
p.52). Para Bion (1975), cada sessão é o começo de uma análise com um
novo paciente. Ele gostava de dizer que um paciente pode ter tido uma
mulher e dois filhos ontem, mas hoje ser solteiro.
Um analista deve também superar a si mesmo em suas comunicações
escritas de idéias que ele sente que podem ter alguma verdade. Quando a
escrita analítica é boa, o autor é capaz de evitar interferir com o leitor como
uma presença muito pessoal na escrita. Contribui muito para uma experiência não gratificante do leitor psicanalítico quando o tema real do trabalho que se está lendo é o próprio autor e não o que o autor está dizendo ou
o que está sendo criado pelo leitor no ato de ler.
Borges disse de Shakespeare que ele tinha uma capacidade que nenhum outro escritor tinha de se fazer transparente em seus poemas e peças.
Em sua obra, não há ninguém entre a arte e a audiência. Borges escreveu
em uma parábola sobre Shakespeare (Shakespeare de Borges):
Não havia ninguém nele; atrás de sua face...e suas palavras, que eram
copiosas, fantásticas e turbulentas, havia apenas uma certa frieza, um
sonho sonhado por ninguém...A história acrescenta que antes ou depois de morrer [Shakespeare] se encontrou na presença de Deus e Lhe
disse: ‘Eu que fui tantos homens em vão quero ser um e eu mesmo’. A
voz do Senhor respondeu como um furacão: ‘Nem Eu sou alguém, Eu
sonhei o mundo como tu sonhaste tua obra, meu Shakespeare, e entre
as formas dos meus sonhos estás tu, que como Eu mesmo és muitos e
nenhum (1949, p.248-249).
Esse anúncio de Shakespeare como ‘uma pessoa com ninguém dentro
de si’ é um quadro angustiante da vida humana, e, contudo, acho que esse
retrato da relação de Shakespeare com seus escritos oferece ao psicanalista
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 403
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algo para se emular, no sentido de se fazer disponível para se tornar alguém
(transferencialmente) e ninguém (uma pessoa que está resignada em não
ser notada, em não ser atendida) na vida do paciente. A descrição que
Borges faz de Shakespeare capta algo da tarefa enfrentada por um analista
de não se inserir – sua inteligência, sua agilidade de mente, sua capacidade
de empatia, sua infalível escolha de le mot juste – entre o paciente (ou
leitor) e a interpretação.
Ao tentar ficar fora do caminho dos pacientes (ou dos leitores), no
esforço desses de reconhecer algo verdadeiro, o analista luta com o uso da
linguagem e das idéias para ser, ao mesmo tempo, emocionalmente presente e transparente. Não havia nada que Borges deplorasse mais na literatura
do que a ‘cor local’ (1941, p.42), e nada que Bion deplorasse mais nas
interpretações psicanalíticas do que a alegação implícita ou explícita do
analista de que a interpretação refletia as qualidades excepcionais ‘de seu
conhecimento, de sua experiência, de seu caráter’ (1971, p.105) – sua própria ‘cor local’.
O crítico literário Michael Woods, falando a partir do lugar do escritor
em sua escrita, observa, ‘Escrever não é estar ausente, mas se tornar ausente, ser alguém e então ir-se embora, deixando vestígios’ (1994, p.8). Como
descrever melhor o que nos esforçamos para fazer, como psicanalistas, ao
formularmos uma interpretação? Oferecemos interpretações não com o
propósito de mudar o paciente (o que seria tentar criar o paciente à nossa
própria imagem), mas de oferecer ao paciente algo que tem alguma verdade para ele, que o paciente pode achar útil ao fazer o seu trabalho psicológico consciente, pré-consciente e inconsciente. Acompanhando qualquer
crescimento psicológico obtido dessa maneira, não encontramos a assinatura do analista (i.e., sua presença), nem sua ausência (que marca a sua
presença em sua ausência), mas vestígios dele como de alguém que estava
presente e se ausentou, deixando apenas vestígios. Os vestígios mais importantes que o analista deixa não são as identificações do paciente consigo como pessoa, mas vestígios da experiência de fazer uso psicológico do
que o analista disse, fez e foi.
O QUE
É
VERDADEIRO
E DE
QUEM FOI
A IDÉIA?
O que é verdadeiro e para quem?
O que é verdadeiro para a estrutura relativamente estável da natureza
humana em geral, e para uma personalidade individual em particular, não
está ligado nem ao tempo, nem ao lugar, nem à cultura – mesmo admitindo
a influência de uma ampla cadeia de sistemas de valores, formas de
autoconsciência, crenças e costumes religiosos, formas de laços e de papéis familiares, e assim por diante. Por exemplo, não há fronteiras políticas
ou culturais que separe os seres humanos na experiência da dor que segue à
morte de um filho, do medo da mutilação do corpo, da angústia de reconhecer que os nossos pais e ancestrais não têm o poder de isolar a eles mesmos
ou a seus filhos dos perigos da vida e da inevitabilidade da morte. A cultura
pode fornecer formas de defesa contra (ou modos de escapar de) a dor da
perda; ou pode proporcionar tradições, mitos e cerimônias que aliviem o
sofrimento; ou pode criar rituais que ajudem (ou interfiram com) nos esforços para liberar nosso apego aos desejos infantis. Quaisquer que sejam as
influências culturais a uma dada instância, nossas respostas às tarefas humanas básicas de crescimento, envelhecimento e morte acontecem em ciclos de amor e de perda; de sonhar a sua própria existência e de confrontar
a força plena das restrições da realidade externa; de feitos de ousadia e de
procura por segurança; de desejos de nos identificar com aqueles que admiramos e da necessidade de salvaguardar (de nossos próprios desejos de
nos identificar) a evolução não rompida de nosso self; e assim interminavelmente.
Essas tarefas humanas e os ciclos nas quais se desenvolvem contribuem para um corpo de experiências que eu acredito serem verdadeiras para
toda a humanidade. Parece que, paradoxalmente, o que é verdadeiro é eterno, sem local definido, e maior do que qualquer indivíduo; todavia, se mantém vivo só por um e único instante no conjunto de circunstâncias que
constituem aquele momento de experiências vividas por uma pessoa. Em
outras palavras, em uma análise, o que é universalmente verdadeiro é também intensamente pessoal e único a cada paciente e a cada analista. Uma
interpretação analítica, para ser utilizável pelo paciente, deve ser proferida
404 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Embora haja centenas e, certamente, milhares de metáforas a serem
buscadas, todas elas podem ser remontadas a poucos modelos simples.
Mas isso não deve nos preocupar, uma vez que cada metáfora é diferente: cada vez que o modelo é usado, as variações são diferentes
(1967, p.40).
A observação de Borges é, em si mesma, uma metáfora, sugerindo que
só há um punhado de qualidades que nos fazem humanos, e que todo aquele que já viveu ou que viverá é absolutamente único, constituído de variações de um número muito pequeno de qualidades humanas. E, nesse sentido, somos todos iguais.
O que é verdadeiro e de quem é a
idéia em uma sessão analítica?
O que foi dito até agora com relação ao que nós, como analistas, queremos dizer quando falamos que algo é verdadeiro permanece pura abstração, uma vez que é baseado na experiência vivida no trabalho analítico.
Como analista, não estou lutando por uma Verdade Absoluta no que eu
digo a um paciente; considero-me afortunado se lá de vez em quando o
paciente e eu chegarmos a algo que está ‘muito próximo à música do que
acontece’ (HEANEY, 1979, p.173). As verdades relativas alcançadas na
poesia (e em psicanálise) representam ‘uma clarificação da vida – não necessariamente uma grande clarificação, tais como as que fundamentam seitas ou cultos, mas uma parada momentânea contra a confusão’ (FROST,
1939, p.777). No seguinte relato de uma parte de uma sessão analítica, o
paciente e eu lutamos para fazer uso psicológico de tais paradas momentâneas.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 405
Thomas H. Ogden
em termos que só se poderiam aplicar àquele paciente naquele momento
mas, ao mesmo tempo, deve se manter verdadeira à natureza humana em
geral.
Lembrei-me, agora, de um outro comentário de Borges:
O QUE
É
VERDADEIRO
E DE
QUEM FOI
A IDÉIA?
O Sr. V. me telefonou pedindo para marcar uma consulta devido ao
seu desejo de iniciar análise comigo. Marcamos uma hora para nos encontrar e eu lhe dei instruções detalhadas acerca de como chegar à sala de
espera de meu consultório, que se localiza no andar térreo de minha casa.
Pouco antes da hora que havíamos marcado, ouvi uma pessoa (que eu presumi ser o Sr. V.) abrindo a porta lateral da minha casa. Há uma pequena
passagem entre aquela porta e a porta de vidro interna, que é a entrada para
a sala de espera. Eu esperava ouvir a porta da sala de espera abrir, mas, em
vez disso, ouvi a pessoa caminhar de volta para a porta da rua, o que foi
seguido por um período de um minuto ou dois de silêncio. Ele – os passos
soavam como os de um homem – repetiu esse padrão de caminhar para a
sala de espera e então retornar para a porta da rua, onde permaneceu por um
outro par de minutos.
Eu achei os passos desse homem perturbadores e intrusivos, mas também intrigantes. A Sra. M., a paciente que estava comigo no meu consultório, comentou que alguém, provavelmente um novo paciente, parecia estar
andando de um lado para o outro na passagem da entrada. Imediatamente
após a Sra. M. deixar meu consultório por uma porta que saía pela mesma
passagem por onde o homem estava caminhando, eu ouvi um arrastar de
pés e a voz de um homem murmurando palavras de escusas. Em seguida
fui ver o que estava acontecendo e, pela primeira vez, encontrei o Sr. V.,
um homem alto e forte de aproximadamente quarenta anos. Eu disse: ‘Sr.
V., eu sou o Dr. Ogden’, e, me dirigindo à porta de vidro, ‘Por favor, sentese na sala de espera’. Ele fez uma expressão acanhada e levemente confusa
quando eu falei.
Então, aproximadamente cinco minutos depois, quando chegou a hora
da sessão do Sr. V., fui à sala de espera e lhe mostrei a direção da sala de
consulta. Assim que ele se acomodou na sua poltrona e eu na minha, o Sr.
V. começou a me contar que há tempo vinha pensando em iniciar uma
análise, mas que ‘uma coisa ou outra’ tinham feito com que ele a postergasse. Depois, ele começou a me contar como tinha sido encaminhado a mim.
Eu o interrompi para dizer que havia muitas coisas que já haviam ocorrido
406 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 407
Thomas H. Ogden
na sessão e que seria importante para nós falarmos disso antes que ele e eu
pudéssemos seriamente falar de qualquer outra coisa. Ele olhou para mim
com a mesma expressão confusa que eu havia observado na entrada. Eu
continuei a dizer ao Sr. V. que, de todos os modos que ele poderia ter se
apresentado a mim, o que ele conseguiu tomou forma no que havia ocorrido na passagem da entrada. Assim, parecia a mim que seria uma lástima
não levar a sério o que ele havia tentado me contar a seu respeito naquela
apresentação.
Houve uma pequena pausa depois que eu terminei de falar durante, a
qual eu tive uma memória fugaz (na forma de uma série de imagens paradas emocionalmente intensas) de um incidente da minha infância. Eu e um
amigo, R., estávamos brincando em um lago congelado, imaginando que
éramos exploradores do Ártico – estávamos ambos com aproximadamente
oito anos, naquela época. Nós dois nos aventuramos muito próximo de
uma área que não sabíamos que não estava completamente congelada. R.
caiu no lago em uma parte onde o gelo se quebrou, e eu me vi olhando para
ele debatendo-se na água gelada. Eu me dei conta de que, se me apoiasse
em meus joelhos e mãos para puxá-lo, o gelo provavelmente quebraria
abaixo de mim também, e nós dois ficaríamos na água sem poder sair.
Corri para uma pequena ilha no meio do lago para pegar um longo galho
que eu vira lá. Quando voltei onde estava R., ele segurou uma ponta do
galho e eu pude puxá-lo para fora da água.
No rêverie, imaginei (de um modo como se estivesse olhando atentamente para dentro de uma fotografia) nós dois parados lá, silenciosamente,
sobre o gelo, R. dormente em suas roupas úmidas e frias. Quando isso
estava acontecendo, senti uma combinação de medo, culpa e vergonha por
ele ter caído na água gelada. O lago estava muito mais perto da minha casa
do que da dele, e eu senti como se eu tivesse de conhecer os sinais de gelo
fraco e como se eu tivesse de ter protegido R. de cair no lago. A vergonha
estava em parte ligada ao fato de que eu tinha corrido para longe dele (a
realidade de que eu estava correndo para pegar um galho para tentar puxálo não diminui a vergonha). Mas, pela primeira vez, me ocorreu, ao olhar
O QUE
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VERDADEIRO
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QUEM FOI
A IDÉIA?
para trás para esse acontecimento, que ambos estávamos sentindo vergonha por ele estar pingando como se tivesse urinado nas calças.
Fazia anos, talvez uma década, que eu não pensava naquele incidente.
Enquanto lembrava daqueles acontecimentos na sessão com o Sr. V., me
senti triste em resposta à imagem minha e de R. ficando tão separados e
sozinhos no medo e na vergonha que eu presumo que ele tenha sentido, e
que eu sei que senti, depois do acidente. Isso não havia sido nenhuma aventura de Tom Sawyer – Huck Finn. Eu e R. (imagino) experimentamos nosso medo bem como nossa vergonha separadamente: nós dois nos sentimos
tolos, por termos caminhado sobre a parte do lago onde o gelo estava fino,
e covardes, por termos tido tanto medo. Depois disso, nunca mais eu e R.
fizemos alguma menção sobre o incidente, e eu nunca falei a ninguém, a
não ser para a minha mãe, sobre isso. Esses sentimentos e pensamentos
fugazes ocuparam só um momento da hora, mas tiveram uma presença
emocional quando eu fui dizer ao Sr. V. que, dos sons de seus passos na
entrada, eu suspeitei que ele tinha ficado em alvoroço quando se aproximou de nosso primeiro encontro. (Mesmo que eu estivesse dizendo-as, essas palavras – particularmente ‘alvoroço’ e ‘aproximou’ – foram sentidas
como rigidamente ‘terapêuticas’ e sem vida por mim.)
O Sr. V. respondeu que, quando falou comigo ao telefone, havia escrito a orientação que eu havia lhe dado de como chegar à sala de espera pela
parte de fora da casa, mas ao chegar, ele verificou que havia esquecido de
trazer o pedaço de papel com as instruções. Quando estava na passagem
entre a porta da rua e a porta da sala de espera, ele não tinha certeza de que
a porta de vidro era a porta da sala de espera. Ele se lembrava vagamente de
eu haver mencionado a porta de vidro, mas havia uma outra porta (a porta
de saída de minha sala de consulta) e, então, não sabendo o que fazer, voltou para a porta da rua. A porta da rua tem uma abertura no seu terço superior, que é dividida por hastes verticais de madeira com amplo espaço entre
elas. O Sr. V. disse que, quando ele parou na entrada espiando pelas ‘barras’ da porta, a luz do dia pareceu cegá-lo. Ele sentiu como se estivesse em
uma prisão na qual, por um longo período de tempo, seus olhos tivessem se
408 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 409
Thomas H. Ogden
acomodado ao escuro, de modo que ele não pôde tolerar a luz do dia. Então
ele voltou para a porta de vidro e parou em frente, não sabendo se entrava
ou não. Retornou de novo para a porta da rua e parou por mais um instante,
olhando de uma distância que ele sentia como muito grande, para as pessoas lá fora que levavam as suas vidas de um modo que ele não podia
imaginar.
Eu disse ao Sr. V. que ele não tinha tido outra maneira, a não ser através de suas ações na entrada, de me comunicar o que representava para ele
vir se encontrar comigo. Eu lhe disse que, sem palavras, ele havia me contado como ele se sentira sozinho na terra-de-ninguém da passagem da entrada. Ele se sentia proibido tanto de vir me ver e começar a análise, bem
como de sair e viver como ele imaginava que as pessoas lá fora conseguiam viver. O paciente respondeu com uma voz extremamente monótona,
‘Sim, eu me sinto como uma visita em todos os lugares, até mesmo com a
minha família. Eu não sei como fazer e dizer o que parece vir naturalmente
para as outras pessoas. Sou capaz de manter esse fato em segredo no trabalho, porque sou muito bom no que faço [aí havia um tom de arrogância em
sua voz]. As pessoas têm medo de mim no trabalho. Acho que é porque sou
brusco. Eu não sei bater-papo’.
O paciente, na primeira parte da hora, se inclinou a fazer generalizações sobre experiências fora da sessão, enquanto que eu, de vez em quando, redirecionava sua atenção para o que havia ocorrido e para o que estava
ocorrendo na sessão. Depois de meia hora, mais ou menos, o Sr. V. começou a ficar interessado, e menos temeroso, em discutir o que havia ocorrido
bem no início da sessão. Ele disse que havia ficado assustado, primeiro
pela mulher e depois por mim, quando eu e ela saímos do consultório em
direção à passagem da entrada. ‘Eu me senti sendo pego fazendo uma coisa
que eu não deveria ter feito. Não, não é isso... Eu me senti sendo pego
como esquisito e perdido em relação àquilo que todo mundo sabe’.
Após uma pequena pausa, o Sr. V. continuou a falar com pouco sentimento em sua voz, ‘Eu aprendi a usar meu isolamento das outras pessoas a
meu favor nos negócios, porque eu posso ver coisas de um ponto de vista
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A IDÉIA?
externo. Ficar afastado me permite ser cruel, porque eu digo e faço coisas
para as pessoas que outras não fazem nos seus negócios. Ou elas não pensam em fazer isso, ou não querem... Não sei ao certo. Em um impasse, eu
nunca sou o primeiro a vacilar’. Eu disse ao paciente, através de uma série
de pequenos comentários, que eu achava que ele estava me dizendo que
estava com medo de que a sua extraordinária capacidade para o isolamento
e para a crueldade o impossibilitariam de ficar presente em sua própria
análise; além disso, disse que achava que ele estava sugerindo que provavelmente eu ficaria com medo dele e me sentiria rechaçado a ponto de não
querer fazer nada com ele.
Houve, então, um outro silêncio de vários minutos, sentidos como um
longo tempo em uma etapa tão precoce do trabalho. Mas não foi um silêncio ansioso, então eu o deixei continuar. Durante esse silêncio, minha mente ‘retornou’ ao rêverie do incidente da minha infância. Dessa vez eu experimentei a cena da infância de um modo bem diferente – eu tive uma sensação muito maior de ver e de sentir as coisas de dentro de nós dois (R. e eu).
Essa experiência de rêverie não era aquela de imagens paradas, mas a de
uma experiência viva que se revelava. Eu percebi muito mais o que tinha
sido para mim ser um menino de 8 anos e estar naquele lago congelado no
inverno. Era um estado de mente que era uma combinação de viver uma
fantasia feita de sensações que estavam tão próximas, que não havia lugar
(ou desejo) para pensar. As coisas apenas acontecem, uma depois da outra.
Os fatos no lago têm, agora, o impacto emocional de um balão explodindo
– não só R. havia caído no lago, mas nós dois nos confrontamos com uma
carga chocante de realidade que aniquilou o aspecto sonhador do lago congelado/Círculo Ártico. Eu senti no rêverie que eu não tinha escolha a não
ser me tornar em um instante alguém que tivesse a capacidade de fazer as
coisas que tinham de ser feitas. R. estava na água. Eu tinha que me tornar
alguém que eu temia que não poderia ser, alguém mais crescido do que eu
era. Eu não senti nada de heróico na experiência que constituía esse (segundo) rêverie; me senti um pouco desligado de mim mesmo, mas, principalmente, me senti profundamente consciente de que eu estava em apuros.
410 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Discussão
O encontro analítico inicial do Sr. V. começou para valer mais ou menos dez minutos antes de nos encontrarmos de fato pela primeira vez. Suas
comunicações foram feitas por meio de sons que ecoaram pelo resto do
encontro inicial e daí para os corredores labirínticos da análise como um
todo.
Em minha primeira interação com o Sr. V. na passagem da entrada, eu
respondi a suas comunicações ansiosas não-verbais identificando-me como
o Dr. Ogden e, assim, nomeando não só quem eu era, mas também o que eu
era e por que estava lá. Com firmeza, mas não com frieza, o conduzi à sala
de espera. O efeito de minha intervenção foi não só o de interromper as
comunicações do Sr. V. em meio à sua ação (sobre a qual ele parecia ter
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 411
Thomas H. Ogden
A essas alturas, o Sr. V. havia quebrado o silêncio e tinha começado a
me contar sobre ter estado em terapia quando ele estava na Faculdade. Ele
não tinha conseguido fazer amigos e sentia muitas saudades de casa. O
paciente disse que havia sido muito puxado para seus pais pagarem a terapia. Depois de algum tempo, eu disse ao Sr. V. que eu achava que, quando
ele se deu conta na entrada que havia esquecido as instruções que havia
anotado, ele se sentiu embaraçado como uma criança, e que, para ele se
comportar ou mesmo se sentir como uma criança, é uma coisa muito vergonhosa. O paciente não disse nada em resposta ao meu comentário, mas a
tensão em seu corpo diminuiu visivelmente. Nós ficamos quietos por um
tempo. (Pareceu-me que o Sr. V. estava preocupado porque estar em análise seria muito puxado para ele – de muitas maneiras). Ele disse então, ‘Lá
fora eu me sinto tão perdido’. Havia suavidade na voz do Sr. V. quando ele
disse essas palavras, uma qualidade de voz que eu não havia ouvido dele,
uma suavidade que seria uma raridade no curso dos vários anos seguintes
de sua análise. (Eu estava consciente de que o sentimento do paciente de
que havia um ‘lá fora’ era também um sentimento de que estava começando a ter um ‘aqui dentro’ – dentro do espaço analítico, dentro da relação
comigo –, onde ele não se sentia perdido.)
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pouco, ou nenhum controle) como também o de definir o espaço geográfico no qual a análise deveria acontecer.
Na sua maneira de falar comigo quando estava na sala de consulta, o
Sr. V. parecia ignorar – e parecia me convidar a ignorar – os fatos que
haviam acontecido na sua chegada. Eu logo interrompi a segunda apresentação do Sr. V. de si mesmo. Ao dizer a ele que eu vira suas ações na passagem da entrada como um meio de me falar de seus medos a respeito de
iniciar a análise, eu estava lhe comunicando o fato de que o levei a sério em
seus esforços inconscientes de ser ouvido. Minha interpretação representou uma continuidade a minha apresentação como psicanalista e a minha
apresentação da psicanálise a ele. Estava implícita, no que eu estava fazendo e falando, a idéia de que o inconsciente fala com uma qualidade de
veracidade que é diferente, e quase sempre muito mais rica, do que o aspecto consciente de nós mesmos é capaz de perceber e comunicar. Eu estava também me apresentando como um psicanalista para quem o seu comportamento na chegada não representou uma infração das ‘regras analíticas’; mais do que isso, representou uma intensa e urgente comunicação de
algumas coisas que ele inconscientemente acreditou serem verdadeiras sobre si mesmo e que ele sentiu que seriam importantes de eu conhecer desde
o início.
O Sr. V. respondeu automaticamente ao que eu disse com o mesmo
sorriso acanhado e confuso que eu havia notado na entrada. Ele parecia
estar me mostrando com sua expressão facial uma mistura do que senti
como rendição completa e desafio arrogante, uma combinação específica
que eu aprenderia com o tempo ser uma característica do paciente como
uma resposta a certos tipos de ansiedade narcisista. Houve um breve silêncio, quando então eu me lembrei de uma série de imagens paradas, minha
experiência de menino com R., quando ele caiu no lago gelado. Nesse
rêverie, eram especialmente vivos os sentimentos de medo, vergonha, isolamento e culpa. Um componente de vergonha nessa experiência de rêverie
parecia novo e muito real para mim: a idéia/sentimento de que as calças de
R. estavam molhadas porque, em seu medo, ele havia ensopado-as com
412 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
3. Meu ‘novo’ pensamento/sentimento (de que as calças encharcadas de água de R eram emocionalmente equivalentes às roupas encharcadas de urina de um bebê) não representavam, necessariamente, uma descoberta de um aspecto reprimido de minha experiência da infância. Pelo contrário, entendo que a experiência no lago gerou elementos de experiência (Bion’s (1962) ‘alfaelements’) que eu guardei e mais tarde ‘recordei’ no contexto do que estava acontecendo em nível
inconsciente na sessão. Meus elementos de ‘recordação’ da experiência de menino não era o
mesmo que lembrar daquela experiência; de fato, é impossível dizer se o aspecto recordado de um
modo novo da experiência da infância tinha, realmente, sido parte da experiência original – e isso
não importa. O que realmente importa é que aqueles elementos da experiência (passada e presente) se tornaram acessíveis para mim na forma de um rêverie que era verdadeiro à experiência
emocional que eu estava tendo com o Sr. V. naquele momento.
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Thomas H. Ogden
urina3. Meus sentimentos de tristeza em relação ao isolamento que eu e R.
sentimos um do outro ficaram tão próximos, para mim, como a imagem de
R. (com quem eu me identifiquei completamente) envergonhado em suas
roupas ensopadas.
O campo emocional da sessão mudava de um modo tal que eu estava
apenas começando a compreendê-lo por ter vivido a experiência desse
rêverie no contexto do que estava ocorrendo em um nível inconsciente
entre o paciente e eu. Seguindo meu rêverie, o Sr. V. me deu um relato
detalhado, mas afetivamente abafado, de sua experiência na chegada. Ele
contou de novo ter esquecido o pedaço de folha de papel no qual ele havia
escrito as orientações que eu lhe dera; ele continuou a descrever sua inabilidade, fosse para entrar na sala de espera ou para sair do corredor (que ele
sentiu como uma prisão) e entrar no mundo ofuscante lá de fora. Minha
resposta à descrição do Sr. V. de si mesmo na chegada envolveu um esforço
para dizer o que ele havia dito em uma linguagem levemente diferente e
com um significado mais amplo. Minha intenção era sublinhar as formas
pelas quais o paciente sabia, mas não sabia que sabia, sobre um outro nível
de experiência que ele recém havia descrito. O uso que eu fiz da frase
‘terra-de-ninguém’, ao contar de novo a história que o Sr. V. me contara,
sugeria que ele não só se sentia sozinho, mas também indigno de um homem e como ‘ninguém’. Além disso, ao deixar explícito que entrar na sala
de espera era, para ele, emocionalmente equivalente a começar a análise,
eu estava sugerindo, também, que, entrar na sala de espera impunha o peri-
O QUE
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go de entrar no mundo potencialmente louco do inconsciente. (O medo do
paciente do mundo fora de controle do inconsciente já estava vivo em mim
na forma do rêverie assustador da imagem de R. caindo no lago gelado.)
Uma importante mudança ocorreu no meio do caminho para a sessão,
quando o Sr. V., por conta própria, voltou à experiência do entrada. Ele fez
uma delicada, ainda que crítica, distinção emocional ao dizer ‘Eu me senti
sendo pego fazendo algo que eu não deveria ter feito’, e então se corrigiu:
‘Não, não é isso...Eu me senti sendo pego como estranho e tolo em relação
àquilo que todo mundo sabe’. Havia uma sensação de alívio na voz do Sr.
V. em poder dizer algo que sentia como verdadeiro (e significativo) à sua
experiência emocional. Então, rapidamente o paciente se recolheu para o
terreno familiar de confiança na onipotência defensiva em afirmar que ele
poderia ser mais cruel nos negócios do que os outros ousavam ser (ou mesmo aspiravam a ser) e que ele nunca era o primeiro a vacilar.
O longo período de silêncio que ocorreu naquele momento crítico foi
um período no qual eu senti, pela primeira vez, que o paciente e eu poderíamos fazer um bom trabalho psicológico inconsciente. O meu rêverie, durante aquele silêncio, foi da memória do incidente no lago sendo revivida
de acordo com o contexto do que havia acontecido na sessão, no intervalo
entre o primeiro e o segundo rêverie. Em contraste com o primeiro rêverie,
que eu experimentei como uma série de imagens fotográficas paradas, o
novo rêverie foi uma experiência de um acontecimento se revelando, e eu
o senti como muito mais vivo e mais próximo aos sentimentos de um menino de 8 anos. Nesse sentido, era uma interpretação do fato com muito
mais compaixão e compreensão. Eu estava menos temeroso de experimentar os sentimentos que o rêverie acarretava.
No âmago do segundo rêverie havia um sentimento de mim mesmo
como um menino sendo chamado (e chamando a mim mesmo) para fazer
algo que eu temia que estivesse física e emocionalmente além de minhas
capacidades. Esse sentimento de vergonhosa incapacidade era uma nova
versão de um sentimento que eu tinha experimentado no rêverie anterior,
ao me identificar com R. como um menino de 8 anos que estava se compor414 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
4. Eu vejo o terceiro analítico inconsciente criado em conjunto como mantendo-se em tensão
dialética com o inconsciente do analisando e do analista como pessoas separadas, cada um com
sua própria história pessoal, organização de personalidade, qualidades de auto-consciência, experiência corporal e assim por diante.
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Thomas H. Ogden
tando como um bebê (que, em fantasia, tinha feito xixi nas calças).
O estado afetivo mais aceito do ponto de vista emocional que o segundo rêverie gerou em mim me permitiu escutar o Sr. V. de modo diferente.
Eu ouvi a sua referência ao ‘esforço’ financeiro de seus pais (para pagar a
sua terapia quando ele estava com saudades de casa, na Faculdade) como
um comentário de como ele estava se sentindo naquele momento na análise. Eu lhe disse que achava que ele havia se sentido de modo doloroso e
embaraçoso, como uma criança, quando ele estava no entrada, e que para
ele se comportar como, e mesmo se sentir como, uma criança era muito
vergonhoso. Ele não respondeu com palavras, mas pôde-se perceber que
seu corpo relaxou. Não só as minhas palavras, mas também o tom emocional de minha voz, refletiram minha própria experiência nos rêveries nos
quais eu havia me sentido dolorosamente incapaz de resolver e vergonhosamente infantil.
O Sr. V. então disse, ‘Lá fora eu me senti tão perdido’. Essas palavras
estavam vivas, de um modo diferente de qualquer coisa que o paciente
tinha dito ou feito previamente, não só devido à suavidade de sua voz quando ele as pronunciou, mas também devido às palavras em si. Como seria
diferente se ele tivesse dito ‘No corredor eu me senti perdido’, ou ‘Lá fora
eu me senti muito perdido’, em vez de ‘Lá fora eu me senti tão perdido’. Há
algo inconfundível sobre a verdade quando a gente a escuta.
Encerrando essa discussão clínica, gostaria de me referir brevemente
à questão de quem criou as idéias que pareciam verdadeiras na sessão analítica que eu descrevi. Como discuti anteriormente (OGDEN, 1994, 1997,
2001), eu vejo a experiência do rêverie do analista como uma criação de
uma intersubjetividade inconsciente a que eu chamo de ‘o terceiro analítico’ um terceiro sujeito da análise, que é criado de modo conjunto, mas
assimétrico, pelo analista e pelo paciente4. Não faria sentido para mim ver
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QUEM FOI
A IDÉIA?
os rêveries que envolviam a minha experiência de meninice no lago só
como reflexos do trabalho do meu inconsciente ou só como um reflexo do
trabalho inconsciente do paciente.
A partir dessa perspectiva, é impossível (e sem sentido) dizer que foi a
minha idéia ou a do paciente que foi comunicada na interpretação do fato
do Sr. V. ter se sentido vergonhosamente infantil e incapaz, quando ‘pego’
se sentindo perdido tanto para entrar em análise bem como para estar presente e vivo no mundo. Nem o Sr. V. nem eu, sozinhos, somos o autor dessa
e da outra compreensão (verdades emocionais relativas) que foram ditas e
não ditas durante essa sessão inicial. Se houve um autor, esse foi o terceiro
sujeito inconsciente da análise, que é todos e ninguém – um sujeito que era
nós dois, o Sr. V. e eu mesmo, e nenhum de nós.
Sinopse
Neste trabalho, o autor explora a idéia de que a essência da psicanálise implica um esforço por parte do paciente e do analista de articular o que é verdadeiro a uma experiência emocional, de uma forma que o par analítico possa utilizar,
para fins de mudança psicológica. Com base na obra de Bion, o que é verdadeiro
à experiência emocional humana é visto como independente da idéia do analista
sobre isso. Nesse sentido, nós, como psicanalistas, não somos inventores das verdades emocionais, mas observadores e escribas participantes. Todavia, ao mesmo
tempo, no próprio ato de pensar e de dar uma “forma” verbal simbólica ao que
intuímos como verdadeiro a uma experiência emocional, alteramos aquela verdade. Essa compreensão do que é verdadeiro é a base da concepção analítica da ação
terapêutica da interpretação: ao interpretar, o analista simboliza verbalmente o
que ele sente que é verdadeiro à experiência inconsciente do paciente e, ao fazer
isso, altera o que é verdadeiro e contribui para a criação de uma experiência potencialmente nova com a qual o par analítico pode fazer um trabalho analítico.
Essas idéias são ilustradas em uma discussão detalhada de uma sessão analítica.
O analista faz uso de sua experiência de rêverie – cuja autoria ambos e nenhum
dos membros do par analítico podem reclamar – em seu esforço de chegar a compreensões provisórias do que é verdadeiro à experiência emocional inconsciente
do paciente nos diversos momentos da sessão.
416 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
What is True and Whose Idea Was It?
In this paper, the author explores the idea that psychoanalysis at its core
involves an effort on the part of patient and analyst to articulate what is true to an
emotional experience in a form that is utilizable by the analytic pair for purposes
of psychological change. Building upon the work of Bion, what is true to human
emotional experience is seen as independent of the analyst’s formulation of it. In
this sense, we, as psychoanalysts, are not inventors of emotional truth, but
participant observers and scribes. And yet, in the very act of thinking and giving
verbally symbolic ‘shape’ to what we intuit to be true to an emotional experience,
we alter that truth. This understanding of what is true underlies the analytic
conception of the therapeutic action of interpretration: in interpreting, the analyst
verbally symbolizes what he feels is true to the patient’s unconscious experience
and, in so doing, alters what is true and contributes to the creation of a potentially
new experience with which the analytic pair may do psychological work. These
ideas are illustrated in a detailed discussion of an analytic session. The analyst
makes use of his reverie experience – for which both and neither of the members
of the analytic pair may claim authorship – in his effort to arrive at tentative
understandings of what is true to the patient’s unconscious emotional experience
at several junctures in the session.
Sinopsis
¿Qué es Verdad y de Quién Fue la Idea?
En este artículo, el autor explora la idea de que el psicoanálisis, en su medula, tiene que ver com um esfuerzo del paciente y el analista por articular lo verdadero
de una experiencia emocional, en un formato que la pareja analítica pueda utilizar
para los fines del cambio psicológico. Continuando el trabajo de Bion, lo verdadero
de una experiencia humana psicológica se ve como independiente de la formulación
que el analista haga de tal experiencia; en este sentido no somos, como
psicoanalistas, los inventores de las verdades psicológicas, sino observadores participantes y escribanos. Aun asi, en el acto mismo de pensar y darle ‘forma’ verbal
simbólica a la verdad que intuímos en una experiencia emocional, alteramos esa
verdad. Esta compresión de que és verdad subyace a la concepción analítica de la
acción terapeutica de interpretar: al interpretar, el analista simboliza verbalmente
lo que él siente como verdadero de la experiencia inconsciente del paciente, y al
hacer esto, altera lo que es verdad y contribuye a la creación de una experiencia
potencialmente nueva, com que la pareja analítica puede hacer un trabajo
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Thomas H. Ogden
Summary
O QUE
É
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QUEM FOI
A IDÉIA?
psicoanalítico. Estas ideas las ilustra una discusión detallada de una sesión analítica. El analista utiliza su experiencia de soñar despierto (reverie) – cuya autoria
no la pueden reclamar ni ambos de la pareja analítica, ni cualquiera de ellos – en
su intento de llegar a comprensiones tentativas de qué es lo verdadero de una
experiencia emocional del paciente en diferentes coyunturas de la sesión.
Palavras-chave
Verdade; Rêverie; Memória; Sessão inicial.
Key-words
Truth; Rêverie; Memory; Initial session.
Palabras-llave
Verdad; Rêverie; Memoria; Sesión inicial.
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418 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho publicado em Int. J. Psychoanal 2003, v.84. p.593-606, e
autorizado pelo autor e pelo editor da IJPA para ser traduzido e
publicado nesta revista.
Tradução: Silvia Stifelman Katz
Dr. Thomas H. Ogden
306 Laurel Street,
San Francisco – CA 94118 – USA
Fone: 1 415 922 9350
Fax: 1 415 922 7080
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 419
Thomas H. Ogden
Labyrinths: selected stories and other writings. Trad. J. Irby. New York: New
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Em seu estudo introdutório da
ciência cognitiva, Simon e Kaplan
(1989) citam muitas influências sobre o campo:
Se vamos compreender a ciência
cognitiva, devemos saber que disciplinas contribuíram para sua formação (NORMAN, 1981). Essas
incluem psicologia experimental e
cognitiva, inteligência artificial
(dentro da ciência computacional),
lingüística, filosofia (especialmente lógica e epistemologia), neurociência e algumas outras (poderiam fazer parte comentários sobre
antropologia, economia e psicologia social) (p.3).
Wilma Bucci
Ph.D. Nova York.
Com essa diversidade de influências, é surpreendente que as
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 421
Wilma Bucci
A Necessidade de
uma “Psicologia
Psicanalítica”
no Campo da
Ciência Cognitiva
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
contribuições da psicanálise sejam ignoradas. O objetivo de Freud foi o da
construção de um dispositivo teórico, um “aparelho psíquico” que desse
conta do funcionamento inadequado e promovesse sua cura através de tratamento. Ao basear-se na inferência de representações e processos mentais
a partir de fatos observáveis e ao desenvolver um modelo teórico como
fundamento dessas inferências, o empreendimento de Freud foi, em si mesmo, uma “revolução cognitiva” que se antecipou em dois terços do século
à mais recente (NEISSER, 1967; BAARS, 1986). Entretanto, o campo de
ação da investigação psicanalítica é hoje virtualmente ignorado pela psicologia científica. No século transcorrido desde que Freud introduziu sua teoria, os campos da psicologia acadêmica e da psicanálise seguiram caminhos divergentes. A psicologia cognitiva é ensinada nas universidades:
seus princípios são colocados à prova principalmente em contextos controlados de laboratório, utilizando técnicas como simulação calculada e esboços experimentais. A psicanálise tem sido ensinada com maior freqüência
em seus próprios institutos e em outros programas clínicos, isolados do
escrutínio científico geral. Para a verificação das proposições psicanalíticas, os analistas se limitam principalmente ao “método psicanalítico”, tal
como o praticam em seu trabalho clínico individual, apesar de que as deficiências da evidência demonstradas pelo método sejam atualmente bem
conhecidas (GRUNBAUM, 1984; BUCCI, 1989).
A psicanálise fez contribuições únicas a nossa compreensão dos processos mentais humanos, incluindo as emoções, as funções cognitivas e
sua interação. Em alguns aspectos importantes, a revolução cognitiva da
psicanálise foi muito mais ampla do que o programa da ciência cognitiva
moderna, como poderemos ver. Também é certo que os métodos e descobrimentos da psicologia cognitiva moderna têm muito que oferecer ao campo psicanalítico. A separação de campos prejudica a ambos.
Em escritos prévios me ocupei de áreas da ciência cognitiva que são
úteis para proporcionar uma compreensão da patologia e dos processos da
mudança terapêutica (BUCCI, 1997a). Neste trabalho enfatizo o sentido
inverso de influência: as contribuições e contribuições potenciais da psica422 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Primeira seção
Aproximação psicanalítica ao processamento da informação
1. O papel dos modelos mentais
A psicanálise ocupou-se, principalmente, dos acontecimentos subjetivos, que são conhecidos diretamente por quem os experimenta, e ainda, de
forma parcial, e que podem ser conhecidos por outros somente através de
inferências acerca do observado. Foi um insight de Freud reconhecer a necessidade de um modelo teórico do aparelho psíquico como o contexto
necessário para tais inferências, precisamente no sentido no qual hoje os
psicólogos cognitivos aplicam os modelos mentais. Freud (1895a) fez uma
tentativa precoce de desenvolver as bases neurofisiológicas ou biológicas
para sua teoria do aparelho psíquico, e Gill (1976) e outros notaram muSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 423
Wilma Bucci
nálise para a psicologia cognitiva. A primeira seção deste trabalho inclui
alguns princípios básicos do enfoque psicanalítico do processamento da
informação, expondo idéias que estão – implícita ou explicitamente – incorporadas à psicologia cognitiva moderna, como também idéias psicanalíticas cuja inclusão beneficiaria os campos cognitivos. Esses incluem o
uso de modelos mentais, a interação de processos mentais com processos
somáticos e emocionais, o papel das representações e dos processos inconscientes, a psicanálise como intrinsecamente uma teoria de processo
dual e a utilização predominante de ambientes naturais na investigação.
Também discuto os possíveis motivos pelos quais as raízes psicanalíticas
da maioria dessas idéias em geral não têm sido reconhecidas ou conhecidas. Na segunda seção, mostro como a teoria de código múltiplo (BUCCI,
1997a), uma teoria sobre o processamento emocional da informação que
contém conceitos psicanalíticos, proporciona as bases para construir a ponte entre a ciência cognitiva e o campo psicanalítico. Assinalo, inclusive, a
necessidade de um subcampo da psicologia, que denominaríamos “psicologia psicanalítica”, que abarca tanto a integração de sistemas dentro do
indivíduo quanto opera no funcionamento adaptativo, sua dissociação na
patologia e os meios pelos quais se pode adquirir uma nova integração.
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
danças ocasionais acerca dos níveis neurológicos de explicação nos últimos escritos de Freud. Entretanto, ao longo de toda sua vida, o nível psicológico de explicação é dominante em quase todos os seus escritos. Em
1900, escreveu: “Passarei por alto o fato de que o aparelho mental de que
nos ocupamos é também conhecido por nós como um dispositivo
anatômico, e evitarei cuidadosamente a tentação de determinar qualquer
forma anatômica de localizações psíquicas. Manter-me-ei no campo psicológico” (p.536).
Ao longo de seus escritos subseqüentes, incluindo seu compêndio final, Freud seguiu referindo-se ao aparelho psíquico como um modelo teórico. Tinha consciência da natureza inovadora de sua proposta:
Assumimos que a vida mental é a função de um aparelho ao qual atribuímos as características de estar difundido no espaço e constituído
por distintas partes – ou seja, que a imaginamos parecidas com um
microscópio ou telescópio ou algo parecido. A despeito de algumas
tentativas prévias na mesma direção, o desenvolvimento consistente
de uma concepção como esta é uma novidade científica (1940, p.145).
O modelo da mente de Freud, a metapsicologia, como os modelos
utilizados hoje na psicologia cognitiva, foi construído de modo análogo a
um modelo físico. A metapsicologia foi uma tentativa de dar conta dos
conceitos psicológicos sobre a base da distribuição da energia mental no
aparelho psíquico, usando princípios da mecânica de Newton. O modelo
energético foi mantido na teoria estrutural e na topográfica. Há importantes
diferenças entre essas duas teorias, mas ambas assumem que a energia
mental deriva de fontes somáticas, dos instintos ou pulsões, que o aparelho
psíquico permanece inativo até que seja estimulado; que o aumento da
energia instintiva produz desprazer, e que o motor da atividade mental é a
diminuição da energia instintiva, descarregando-a ou ligando-a. Ambas
assumem que a linguagem está associada com a ligação da energia e que as
funções não verbais estão associadas com os componentes mais primitivos
do aparelho: no modelo topográfico com o inconsciente; no modelo estru424 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 425
Wilma Bucci
tural com o id; em ambos os casos, com o processo primário de pensamento.
O fracasso do modelo energético como teoria dos sistemas biológicos
foi discutido em detalhe em outros trabalhos (EAGLE, 1984; HOLT, 1985;
BUCCI, 1997a). Em geral, a utilidade dos modelos teóricos da mente depende de sua adequação à operação mental que se quer incluir no modelo.
Como assinalaram Bertalanffy (1950) e Holt (1989), não é útil interpretar o
organismo humano como um tipo de sistema fechado ao qual se podem
aplicar os princípios de distribuição de energia como se postula na metapsicologia. Por essa e outras razões, muitos teóricos da psicanálise
rechaçaram a teoria energética (RUBENSTEIN, 1965; HOLT, 1967, 1976;
GILL, 1976; KLEIN, 1976; SCHAFER, 1976). Desafortunadamente, no
processo também rechaçaram o empreendimento geral de construir um
modelo psicológico básico para a psicanálise. Por exemplo, Gill e Klein
propuseram uma teoria fenomenológica ou clínica, Rubenstein argumentou em prol de uma teoria neurofisiológica ou “protoneurofisiológica”; e
Schafer apoiou o enfoque hermenêutico.
A perspicácia de Freud em relação à necessidade de um modelo teórico mantém-se vigente. O fato de que o modelo específico de Freud não
tenha sido exitoso como base de outros desenvolvimentos teóricos ou para
a investigação não pode interpretar-se como uma falha do empreendimento
mesmo de construir um modelo. Hoje os cientistas cognitivos utilizam uma
heurística semelhante, empregando estruturas derivadas de outros campos
como base de modelos mentais. O enfoque predominante para a construção de modelos em ciência cognitiva está baseado na arquitetura e funcionamento do processamento de informação no computador de Von
Neumann (SIMON e KAPLAN, 1989). Essa tem sido uma produtiva fonte
de hipóteses em relação às funções mentais humanas, ainda que cada vez
se reconheçam mais suas limitações. Em psicologia cognitiva, estão se desenvolvendo, atualmente, modelos baseados em circuitos neuronais para
dar conta de aspectos do funcionamento mental que haviam sido evitados
nas teorias simbólicas clássicas (RUMELHART et al., 1986) e são necessários modelos teóricos adicionais do corpo, emoção e mente para levar
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
adiante ambos empreendimentos, tanto o psicanalítico como a ciência
cognitiva. Como discutirei mais adiante, na seção dois deste trabalho, recorreremos aos conceitos e métodos da psicologia cognitiva moderna, psicologia do desenvolvimento e teoria emocional, junto aos conceitos psicanalíticos, para desenvolver esses modelos.
2. Enfoque sobre a interação mente-corpo
O modelo de Freud referiu-se ao funcionamento – e mau funcionamento – do organismo humano no contexto de suas metas adaptativas. Para
dar conta do mesmo, devia incorporar as funções sensitivas, somáticas e de
comportamento, junto com as cognitivas e lingüísticas. Esse é um aspecto
fundamental no qual a ciência cognitiva moderna perde amplamente em
relação ao enfoque freudiano.
De acordo com Simon e Kaplan (1989), a ciência cognitiva se ocupa
principalmente de duas classes de sistemas inteligentes: organismos vivos
e computadores. Em seu recente resumo sobre o campo, definem a ciência
cognitiva como “o estudo da inteligência e de sistemas inteligentes, com
particular referência ao comportamento inteligente como computação”.
Ainda que, na verdade, não tenha sido proposta nenhuma definição
intencional satisfatória da inteligência, estamos em geral dispostos a julgar
quando nossos próximos, humanos, a demonstram. Dizemos que a pessoa
se comporta inteligentemente quando elege cursos de ação pertinentes para
alcançar suas metas, quando contesta de maneira coerente e adequada às
perguntas que lhe fazem, quando resolve problemas de maior ou menor
dificuldade, ou quando cria ou esboça algo útil, belo ou original. Aplicamos um único termo, “inteligência”, a esse conjunto de atividades diferentes porque supomos que na execução de todas elas, subjazem os mesmos
conjuntos de processos (SIMON e KAPLAN, 1989).
Desde a perspectiva da psicanálise, interessada no funcionamento geral do organismo humano em um mundo interpessoal , essa definição deixa
de fora muito do que é importante em relação ao aspecto cognitivo e à
conduta. Para dar conta adequadamente das funções cognitivas humanas e
426 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 427
Wilma Bucci
ainda das que Simon e Kaplan citam – a identificação de “metas” e de
comportamentos adequados às mesmas –, as teorias da ciência cognitiva
deverão estender-se muito mais além do tipo de inteligência que se compartilha com os computadores, para incluir o estudo da inteligência emocional e das funções sensoriais e somáticas inerentes a esta.
Fodor e Pylyshyn (1998) reconheceram que as diferenças entre o
hardware dos computadores e o hardware de carne e osso dos sistemas
humanos podem ter conseqüências para as funções mentais do organismo:
“é óbvio que seu comportamento [do cérebro], e em conseqüência o comportamento do organismo, está determinado não só pelo aparelho lógico
que a mente exemplifica, mas também pela máquina protoplasmática na
qual se executa esta lógica” (p.59).
Eles reconhecem que o comportamento do organismo está determinado tanto pelo hardware protoplasmático (o corpo) como pelo software operativo do aparelho lógico (a mente). No entanto, não consideram o hardware protoplasmático como determinante do funcionamento do aparelho lógico em si mesmo. A perspectiva psicanalítica permite uma formulação
mais adequada do processamento humano da informação, que se constrói
na interação do sistema cognitivo com o somático e o sensorial. A aplicação desse modelo não está restrita às interações clínicas, senão que é necessário que também dê conta adequadamente de todos os tipos de inteligência dos seres humanos que operam em um mundo interpessoal. Enquanto a
interação corpo-mente tem sido descuidada na ciência cognitiva, seu estudo tem sido cada vez mais dominante na neurofisiologia das emoções,
como afirmo em outro trabalho (DAMASIO, 1994; BUCCI, no prelo).
O desenvolvimento de um modelo que dê conta da inteligência emocional se faz ainda mais crucial se nos interessamos em objetivos dos quais
o indivíduo pode não estar consciente. Portanto, necessitamos diferenciar
situações de fracasso no funcionamento da inteligência humana de situações nas quais o indivíduo certamente tem êxito ao alcançar objetivos desconhecidos ou não reconhecidos. Em outras palavras, podemos dizer que
as pessoas se comportam inteligentemente quando elegem cursos de ação
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
que parecem improcedentes para objetivos reconhecidos, quando o que
produzem não é claramente útil ou interessante; e quando repetem ações
que parecem mal adaptadas em vez de produzir soluções novas. Em todas
essas instâncias, estará funcionando a inteligência emocional, mas operando mais em relação a objetivos desconhecidos que a metas explícitas.
3. Da inferência à mentalização inconsciente
“Se tivesse que resumir a descoberta de Freud em uma só palavra, sem
dúvida a palavra seria ‘inconsciente’ ” (LAPLANCHE e PONTALIS,
1973, p.474). O “aparelho psíquico” que Freud construiu foi destinado especificamente a ser a base para o estudo científico dos acontecimentos
mentais inconscientes:
Considerando que a psicologia da consciência nunca foi mais além de
seqüências interrompidas que obviamente dependem de algo mais, o
outro ponto de vista, que sustenta que o psíquico é inconsciente em si
mesmo, faculta à psicologia tomar seu lugar entre as ciências naturais,
como qualquer outra. Os processos dos quais se ocupa são em si mesmos tão incognoscíveis como aqueles que competem às outras ciências, como a química ou a física, por exemplo: mas é possível estabelecer as leis que obedecem e seguir as relações mútuas e as
interdependências de forma ininterrupta ao longo de grandes extensões. Abreviando, chegar ao que se descreve como “compreensão” no
campo dos fenômenos naturais em questão (FREUD, 1940, p.158).
A consciência constitui o ponto de partida para a investigação do aparelho psíquico, mas esses processos conscientes não formam seqüências
ininterruptas; há brechas neles. Freud argumenta que devemos supor que
existem processos contínuos que são concomitantes com os conscientes e
que são, inclusive, mais completos que aqueles, em curso ainda durante as
brechas nos processos conscientes.
Na psicologia atual é amplamente reconhecida a existência de processos mentais fora da consciência. Conforme os pontos de vista atuais, virtu428 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 429
Wilma Bucci
almente todo o armazenamento de informação na memória de longo prazo
e virtualmente todo o processamento significativo da informação funciona
fora do foco da consciência, tanto nas modalidades verbais como nas não
verbais. Os psicólogos cognitivos desenvolveram uma ampla categoria de
técnicas para investigar os processos inconscientes e distinguiram uma variedade de formas em que podem ocorrer. A memória implícita
(SCHACTER, 1987) se identifica através de mudanças no rendimento após
intervenções experimentais caracterizadas como priming, sem lembrança
implícita das próprias intervenções. Em princípio, qualquer classe de informação pode ser representada na memória implícita, inclusive números,
palavras e outro tipo de representações. A memória dos procedimentos, ou,
mais comumente chamada, não declarada, como foi caracterizada por
Squire (1992), refere-se a destrezas ou hábitos do comportamento, incluindo habilidades motoras, perceptivas e cognitivas, condicionamento e
aprendizagem emocional e toda outra aprendizagem que “modifica a facilidade para operar no mundo”; isso contrasta com a memória explícita, que
confere “acesso consciente a acontecimentos específicos do passado” (p.
210). Enquanto o processamento consciente esteve previamente associado
com as operações intencionais, e o processamento inconsciente com as funções automáticas (POSNER e ZINDER, 1975), demonstrou-se que o
processamento fora da consciência inclui também as funções intencionais
e voluntárias (ZBRODOFF e LOGAN, 1986).
A diversidade e a extensão dos processos inconscientes, como se entendem hoje, requerem que se reconsiderem as implicações do inconsciente como uma construção psicanalítica. Os fatores que determinam o que se
entende psicanaliticamente como inconsciente sistemático ou dinâmico e
as peculiaridades de tal processamento necessitam ser diferenciados da
modalidade geral de processamento, fora da consciência.
Além disso, encontraremos também que o que é mais significativo na
compreensão do funcionamento psíquico não é a dimensão da consciência
ou sua falta, mas a forma e a organização do pensamento. Essa mudança na
ênfase pode ser vista como uma revisão do modelo estrutural, sob uma
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
nova luz (BUCCI, no prelo).
Desde a perspectiva da ciência cognitiva, devemos, inclusive, destacar um problema epistemológico que foi passado por alto na formulação na
qual Freud infere os processos inconscientes a partir dos conscientes. O
analista tem consciência diretamente só de sua própria experiência consciente, as observações são feitas por meio de seu próprio aparelho
perceptivo. As experiências conscientes do paciente, as representações
subjetivas e os processos que ocupam sua consciência são tão
“incognoscíveis” diretamente para o analista como os conteúdos da mente
inconsciente do paciente e devem, eles mesmos, ser inferidos de sua fala e
de seu comportamento. Aqui a psicologia cognitiva deu um passo mais
generalizado e sistemático na direção indicada por Freud, dando conta dos
processos mentais conscientes e inconscientes como ocupando o mesmo
nível epistemológico e requerendo estratégias de inferência similares.
4. Teoria de processo dual
O enfoque de Freud sobre os processos inconscientes está relacionado
diretamente à natureza da psicanálise como intrinsecamente uma teoria
sobre processamento dual. A dualidade dos processos primário e secundário do pensamento foi considerada por muitos psicanalistas eruditos, como
também pelo próprio Freud, como sua contribuição mais original e valiosa
e como central para a descrição psicanalítica do aparelho mental (FREUD,
1932; JONES, 1953; McLAUGHLIN, 1978). Aqui nos centramos na identificação de Freud de distintas formas de pensamento mais que em seu
acesso diferencial à consciência. Uma teoria psicológica que fracasse em
dar conta dessa dicotomia fundamental não pode ser aplicável aos conceitos psicanalíticos, como assinalou Noy (1979).
A caracterização de Freud de modos de pensamento que diferem das
formas lógicas standard ainda hoje pode ser vista como uma contribuição
original. As observações psicanalíticas que apoiam o modelo do sistema
dual falam precisamente de temas atuais dentro do campo da ciência
cognitiva, proporcionando evidência de sistemas de processamento dual
430 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 431
Wilma Bucci
ou múltiplo mais que de código único ou modelos propositais de código
comum (BUCCI, 1985, 1993, 1997a).
As características do processo primário de pensamento estão
explicadas, de uma maneira mais elaborada, nos conceitos de Freud do
trabalho do sonho; os diferentes mecanismos por meio dos quais se geram
imagens. A identificação desses mecanismos constitui uma hipótese viável, avançada em seu tempo, em relação às formas e processos dos pensamentos não verbais ou que não foram levados em conta. Por outro lado, a
ênfase atribuída por Freud ao processo primário como dependendo forçosamente das catexias de desejo e sua compreensão dos sonhos nesses termos contribuiu para o aumento do rechaço atual de seu enfoque, seja pelos
investigadores cognitivos e de sonhos, seja pelos cientistas cognitivos.
Enquanto que os conceitos de processo primário e secundário de pensamento estabelecem a base estrutural do modelo dual do pensamento, não
dispõem por si mesmos da teoria sistemática que requeremos. As diferenças entre processo primário e secundário se baseiam na teoria energética e
estão determinados especificamente pelas características atribuídas ao fluxo de energia. As formas de funcionamento do processo primário, como
operam no trabalho dos sonhos, estão associadas, no sistema de Freud,
com energia não ligada que busca descarga imediata de acordo com o princípio do prazer. Esse contrasta com as catexias ligadas do processo secundário, que é governado pelo princípio de realidade e opera com símbolos
verbais. Nesse sistema, a capacidade que uma imagem possui de simbolizar uma idéia depende da operação de catexias que se movem livremente.
A teoria enfrenta então um dilema em relação a explicar as características
complexas, organizadas e sistemáticas do trabalho do sonho, como o mesmo Freud as caracterizou, dentro dos confins do modelo energético. Como
Holt (1989) e outros reconheceram, por esse e outros motivos a teoria do
processo primário está em uma “lamentável confusão”. O processamento
sistemático de informação nos sonhos, assim como as fantasias inconscientes organizadas em vigília, “põem em apuros” a metodologia dos relatos psicanalíticos clássicos (ARLOW, 1969).
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
O fracasso do modelo energético foi discutido anteriormente. Desde a
perspectiva da investigação atual em ciência cognitiva, podemos também
ver que as características e funções que Freud postulou como determinadas
pela diferenciação energética não conseguem mostrar a correspondência
que poderia esperar-se com base na teoria (BUCCI, no prelo). O pensamento implícito ou inconsciente pode ser verbal ou não verbal, pode ser
simbólico ou subsimbólico. Os conteúdos do pensamento implícito ou não
verbal ou subsimbólico podem incluir conceitos complexos, científicos
abstratos e matemáticos, e muitas outras classes de idéias, diferentes da
realização de desejos no sentido psicanalítico. A forma implícita ou não
verbal de pensamento se produz ao longo da vida mental adulta normal,
tanto em vigília como no sonho. O pensamento explícito ou consciente ou
verbal tem uma categoria similar de funções, propriedades e conteúdos.
Em termos modernos, podemos dizer que os conceitos de processo primário e secundário carecem de validade. Para conservar e desenvolver a teoria
psicanalítica do pensamento, é necessário que os conceitos básicos de
Freud do modelo de concepção dual sejam consistentemente redefinidos,
no contexto da investigação atual.
5. O método psicanalítico; um esboço de investigação naturalista
Freud confiou que o “método psicanalítico” era necessário e suficiente para a verificação científica das proposições psicanalíticas e para o desenvolvimento de sua teoria geral do aparelho psíquico. Depreciou evidências de outras fontes, como a investigação experimental de laboratório, ainda quando apoiaram suas conclusões, como está indicado, por exemplo,
em sua carta de 1934, ao experimentador Saul Rosenzweig:
Examinei com interesse seus estudos experimentais para a verificação
das afirmações psicanalíticas. Não posso valorizar muito essa confirmação porque a profusão de observações confiáveis, nas quais essas
afirmações descansam torna-as independentes da verificação experimental. De toda maneira, não pode provocar dano (apud
GRUNBAUM, 1984, p.1).
432 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 433
Wilma Bucci
Ainda que as afirmações de Freud possam parecer um tanto quanto
arrogantes, os aspectos centrais de sua posição metodológica mantém-se
firmes. Dentro do campo da ciência cognitiva se reconhece de maneira
crescente a necessidade de esboços naturalistas, outra vez sem reconhecimento da importância das contribuições psicanalíticas nesse aspecto. Yuille
(1986), Neisser (1976) e outros assinalaram a incapacidade dos paradigmas
experimentais para estudar os acontecimentos tal como ocorrem naturalmente e para estudar como acarretam pontos de vista distorcidos sobre os
processos psicológicos. A necessidade de esboços naturalistas se faz especialmente evidente onde estão envolvidos temas interpessoais e fatores
emocionais.
A ênfase atual sobre esboços naturalistas pode ser vista, por exemplo,
no método de análise de protocolos, uma ferramenta importante da investigação em ciência cognitiva. Nesse método, pede-se aos sujeitos que façam
comentários verbais contínuos, na verdade, pensar em voz alta, enquanto
resolvem problemas ou realizam várias tarefas. Ao tomar os protocolos, os
termos exatos das instruções dadas aos sujeitos podem variar com a tarefa
particular, “mas a única instrução de falar em voz alta, enquanto a tarefa é
realizada, capta o essencial”.
Se o sujeito permanece silencioso, o experimentador lhe recordará que
se mantenha falando. É provável que uma lembrança não diretiva (por
exemplo “siga falando”) interrompa menos a seqüência normal de funcionamento que outra mais diretiva (por exemplo “o que está pensando?”)
(SIMON e KAPLAN, 1989, p.22).
Utilizar esse procedimento pode gerar diferentes tipos de informações
verbais. A única instrução de falar naturalmente em voz alta enquanto se
realiza a tarefa é mais efetiva em produzir o que Simon e Kaplan denominam “verbalização direta”, na qual os sujeitos informam o que está em sua
memória a curto prazo (no foco da consciência), sem tentar que seja consistente ou completo ou avaliar o material antes de falar. As técnicas de
recolhimento de dados verbais incluem protocolos “concomitantes” que
são obtidos solicitando aos sujeitos que pensem em voz alta enquanto rea-
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
lizam as tarefas e protocolos “retrospectivos”, nos quais se lhes pede que
comuniquem tudo o que possam recordar sobre a tarefa imediatamente
após completá-la. Como assinalam Simon e Kaplan, os protocolos retrospectivos têm mais possibilidades que os concomitantes de sofrer reconstruções e distorções, e o perigo de distorção aumenta com a extensão ou a
demora em fornecer o informe retrospectivo.
Parece claro que os cientistas cognitivos reinventaram o método psicanalítico da associação livre, sem citar Freud (1895b), ou sua paciente
Emmy von N. As situações de trabalho de ambas, ciências cognitivas e
psicanálise, conferem contextos naturais quase experimentais para o resumo de relatos verbais, com procedimentos e limites particulares, determinados pela natureza do processo investigado. Ambas as situações incluem
a explicitação básica ao interlocutor de dizer em voz alta o que passa por
sua cabeça, de dizer tudo que venha à sua mente, sem correção ou avaliação. Os cientistas cognitivos, como os analistas, preferem ater-se aos relatos concomitantes do que passa pela mente do interlocutor no “aqui e agora”, mais que às descrições retrospectivas. Na investigação em ciência
cognitiva, assim como no trabalho psicanalítico, geralmente encontrou-se
que o processo é mais efetivo quando as instruções e interrupções são mínimas. Em ambos os contextos, as descrições do interlocutor de seus processos e representações mentais não são aceitas necessariamente como verídicas, mas são utilizadas como base para inferir processos e representações mentais dentro de um marco teórico1.
Em muitos outros aspectos importantes a situação analítica difere das
condições da investigação cognitiva. Primeiro, ao paciente, diferente do
sujeito de um estudo cognitivo, não se oferece um problema ou tarefa em
particular. Ao paciente interessam os problemas que o levaram ao tratamento, mas lhe é solicitado que os deixe de lado. A regra básica é dizer
tudo o que lhe ocorra, compreenda ou não sua importância com respeito
1. Isso contrasta com o enfoque dos introspeccionistas (TITCHENER, 1915), em que as
verbalizações dos sujeitos são tomadas em sentido literal como constituindo representações válidas de seus próprios processos de pensamento, mais que como dados a partir dos quais se podem
fazer inferências.
434 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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aos problemas que veio para resolver. O processo psicanalítico mesmo envolve a formulação e reformulação dos temas do paciente, identificar os
problemas é parte do trabalho criativo. Em segundo lugar, na psicanálise
cada aspecto do procedimento coleta de dados é compreendido e interpretado no contexto do desenvolvimento contínuo da relação entre paciente e
analista. Essas características especiais, no contexto das restrições do procedimento, tornam a situação psicanalítica extraordinariamente adequada
para os estudos sistemáticos do procedimento da informação emocional,
como ocorre nas interações vitais. A relação é a intervenção quase experimental que atua estimulando a emergência das emoções; a instrução de
dizer tudo o que lhe ocorra, sem centrar-se numa tarefa em especial, facilita
a informação de todo tipo de experiência, incluindo múltiplas representações somáticas e sensoriais que possam operar fora da consciência, e cuja
relevância ainda não se compreende.
Enquanto que o método de Freud foi, em muitos aspectos, avançado
em seu tempo, deveríamos também assinalar os problemas científicos associados à sua abordagem. O material falado, filtrado por um observador, o
analista, não pode constituir a base para uma investigação sistemática. Uma
condição sine qua non da investigação científica é que os acontecimentos
sejam publicamente acessíveis e que as observações sejam compartilhadas. Mais ainda, esse “observador” não é um observador senão um participante envolvido no processo que está sendo estudado, como se vê com
mais clareza atualmente do que foi reconhecido no tempo de Freud.
No campo da investigação psicanalítica moderna se reconhecem esses
e outros problemas metodológicos. Mais que confiar no julgamento de um
único observador-participante, como nos casos comuns, os investigadores
em psicoterapia psicanalítica modernos usam registros objetivos, habitualmente sessões gravadas, que transcrevem e segmentam; logo aplicam uma
ampla categoria de esquemas de codificação de forma comparável à
metodologia da investigação cognitiva. A investigação psicanalítica pode
ser vista como o método psicanalítico com roupa moderna, guiada pelo
insight clínico, e incorporando as restrições científicas modernas.
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
Nesse contexto, os investigadores psicanalíticos estão interessados
também nos efeitos dos procedimentos de investigação nos processos clínicos que estão sendo estudados, tanto como na inadequação dos métodos
de investigação para tratar alguns aspectos do trabalho clínico. Os efeitos
da observação sobre o comportamento que está sendo observado devem
ser considerados na investigação cognitiva e na psicanalítica, e essa última
pode auxiliar na compreensão desses efeitos.
Como reconhecem igualmente os clínicos e os investigadores, o protocolo verbal é somente um registro parcial das interações que se produzem em sessão, e pode desconsiderar aspectos cruciais das expressões e
interações. Nesse contexto, por exemplo, anotações sobre o processo e sobre a sessão, ainda que por si só possivelmente não confiáveis, podem contribuir com observações significativas sobre o comportamento que se perdem nos registros verbais, do mesmo modo que observações em relação ao
próprio estado do analista, o qual interfere no trabalho. A integração das
perspectivas clínica e de investigação promoveu o reconhecimento dos
múltiplos canais de expressão e comunicação que são empregados, e estão
sendo desenvolvidos métodos de investigação que permitem a integração
confiável de múltiplos procedimentos de registro.
Resumo: comparação dos programas científicos
psicanalíticos e cognitivos
A estratégia científica de Freud, como a da ciência cognitiva e de toda
a ciência moderna, depende da inferência de hipóteses a partir de fatos
observáveis, dentro de um marco teórico ou de um sistema nomológico. As
ocorrências mentais e emocionais, como aparecem nas teorias científicas,
têm o mesmo status que as partículas. O big bang, buracos negros ou a vida
na Idade do Bronze, todas são entidades teóricas, que não podem ser observadas diretamente, e cuja existência está definida em relação a outros conceitos e ocorrências observáveis. Desde seu começo, a psicanálise foi construída na interação de experiências sensoriais, somáticas e emocionais com
a função cognitiva e lingüística, e foi mais além da ciência cognitiva em
436 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Segunda seção
Uma teoria de código múltiplo do processamento
emocional da informação: preenchendo o vazio
A teoria de código múltiplo incorpora três formas principais nas quais
os seres humanos representam e processam a informação: código
subsimbólico, simbólico de imagens e simbólico verbal.
O processamento subsimbólico é o processamento sistemático que se
produz nos formatos analógicos sobre dimensões contínuas implícitas. Tal
processamento é complexo de definir e de fazer parte de um modelo2, mas
2. A classe de processamento que denomino subsimbólico tem características dos sistemas
“coneccionistas” ou de Processamento de Distribuição Paralela (PDP) (Continua página 438)
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seu reconhecimento dos múltiplos canais da experiência e a expressão, e a
estrutura e função dos pensamentos desatendidos. A situação psicanalítica,
com sua regra fundamental e seu setting interpessoal controlado, constitui
um meio de investigação natural único para o estudo dessas questões.
Por outro lado, não se cumpriu a promessa da psicanálise como uma
teoria da mente e um meio de investigação. Enquanto a meta de Freud foi o
desenvolvimento de um modelo teórico como base para a inferência do que
é central no trabalho psicanalítico, não desenvolveu os procedimentos científicos necessários à comprovação desse modelo. Para demonstrar a contribuição dos conceitos psicanalíticos ao campo do processamento da informação, necessitamos de um marco teórico que torne esses conceitos
coerentes e consistentes, e suscetíveis de investigação empírica.
O modelo de código múltiplo foi construído como tal marco teórico,
uma teoria do processamento emocional da informação que dá conta, tanto
das funções adaptativas como das inadaptadas e que pode ser aplicado para
a compreensão da patologia e sua cura no tratamento. Na próxima sessão
do trabalho, sublinharei brevemente a aplicação dos conceitos de código
múltiplo a algumas idéias psicanalíticas centrais e mostrarei como essas
aplicações podem auxiliar a construir uma ponte entre a psicanálise e a
ciência cognitiva.
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
é familiar para todos nós. O processamento subsimbólico sistemático que
opera em modalidade sensitiva motora e somática baseia-se na aprendizagem do deambulador a caminhar e escalar, na capacidade de o jogador de
tênis de antecipar-se e devolver a bola, na habilidade do provador de vinhos para reconhecer as qualidades de tipos e colheitas diferentes e na sensibilidade do analista sobre o estado interior de seu paciente. Todos esses
processos acontecem em modalidades sensitivo-somáticas específicas
mais do que de forma abstrata e estão baseados em características que não
podem ser explicitamente identificadas, mas que, entretanto, são sistemáticas. Ao ativar sem intenção ou direção explícita, os processos
subsimbólicos e as representações freqüentemente não são experimentados diretamente ou podem sê-lo com uma sensação de “algo externo a nós
mesmos” fora do domínio do ego sobre o qual temos controle intencional.
Os formatos subsimbólicos dominam no processamento emocional da informação como podemos ver, e dispõem de uma forma sistemática para dar
conta do que conhecemos como empatia, intuição e comunicação inconsciente (BUCCI, no prelo).
Em contraste com o processamento subsimbólico, os símbolos são
entidades discretas com propriedades criativas e de referência. Isso significa que se referem a outras entidades fora delas mesmas e que podem combinar-se para gerar infinitas variedades de formas novas. Os símbolos podem ser imagens ou palavras3. A linguagem foi assumida como o meio
principal da psicanálise, “a cura pela fala” ainda que não seja o meio principal do pensamento e por certo não da emoção.
Os três sistemas com conteúdos e princípios organizadores diferentes
estão conectados por nexos de referência que nos permitem simbolizar e
verbalizar nossas experiências emocionais e compreender e ecoar com as
(Continuação página 437) baseados nas propriedades das redes neuronais e baseados no modelo
de matemáticos do sistema dinâmico (RUMELHART et al., 1986).
3. Os modelos baseados no processamento simbólico foram os dominantes em ciência cognitiva
desde os seus primórdios (SIMON e KAPLAN, 1989). Os modelos clássicos de processamento da
informação, baseados na arquitetura do computador de von Neumann, com memórias de longo e
curto prazo e zona buffer de modalidade específica, estão fundados em sistemas simbólicos.
438 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 439
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palavras dos outros. Baseando-me nos trabalhos de Paivio (1971, 1986),
Kosslyn (1987) e outros, introduzo o conceito de processo referencial como
o mecanismo pelo qual se conectam os múltiplos componentes do
processamento humano da informação (BUCCI, 1984, 1997a). O mecanismo básico do processo referencial, o mecanismo de transformação da informação subsimbólica a símbolos não verbais e logo a símbolos verbais,
pode ser visto de forma paralela no desenvolvimento da função de
simbolização na criança e no paciente analítico conectando a experiência
emocional a palavras. O lactante forma uma imagem da mãe na base de
aparições múltiplas sempre mutantes para produzir uma imagem
prototípica duradoura – poderíamos dizer um esquema de memória – que
permite o reconhecimento da mãe nos muito variados contextos e formas
em que aparece; essa entidade específica e duradoura pode logo ser nomeada. De forma similar, o paciente analítico começa com o despertar de experiências emocionais subsimbólicas que são gradualmente conectadas
com imagens e linguagem. Imagens e episódios prototípicos constituem a
“língua franca” do sistema representacional não verbal, permitindo a conexão de múltiplas representações subsimbólicas entre si e com palavras.
Dentro da teoria de código múltiplo se definem as emoções como esquemas de memória construídos através de repetições de interações com
outras pessoas significativas desde o começo da vida. Os esquemas emocionais estão representados como sucessos prototípicos que compartem um
núcleo comum subsimbólico de experiências sensitivas, viscerais,
somáticas e motoras. Incorporam nossas expectativas sobre os outros e sobre nós: como os outros atuarão conosco em uma circunstância particular;
como é provável que atuemos e reajamos: como é provável que nos sintamos. Não podemos comunicar diretamente os estados sutilmente diferentes dos componentes subsimbólicos do esquema, mas podemos descrever
exemplos dos sucessos prototípicos nos que figurem esses processos. Nas
narrativas de tais instâncias, podem revelar-se os esquemas emocionais.
Dentro do esquema emocional, qualquer componente ativado tem o
potencial de ativar outros elementos, de forma tal que a linguagem ou a
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
fantasia podem ativar vestígios de experiências sensoriais ou viscerais ou
de ação ou pode produzir-se o oposto. Como todos os esquemas de memória, os esquemas emocionais determinam como percebemos o mundo, e
eles mesmos são mudados por novas percepções e interações e como todos
os esquemas de memória podem operar dentro ou fora da consciência.
A formulação dos esquemas emocionais como esquemas de memória
se construiu sobre a noção precoce de Barlett (1932) de esquemas de memória e é compatível com o enfoque atual da teoria emocional de
processamento da informação (SCHERER, 1984; LANG, 1994) tanto
como com a investigação atual sobre neurofisiologia das emoções (LE
DOUX, 1989; DAMASIO, 1994). O conceito de Stern (1985) de Representações de Interações que foram Generalizadas (RIGs) se refere essencialmente a episódios prototípicos como os descritos aqui. O conceito de
esquemas emocionais é também compatível com a definição de Kernberg
(1990) dos afetos constituídos por componentes simbólicos representacionais, motores e viscerais. O conceito de Freud (1912) de transferência pode
ser visto também como um precursor do conceito de esquema emocional:
Permitamos recordar claramente que cada ser humano adquiriu pela
operação combinada de sua disposição inerente e pelas influências externas na infância, uma individualidade especial no exercício de sua
capacidade de amar, ou seja, nas condições que estabelece para amar,
nos impulsos que gratifica ao fazê-lo e nas metas que tenta alcançar
nele. Isso constitui um clichê ou estereótipo (ou diversos deles), que
constantemente se repete e se reproduz ao longo de sua vida na medida
em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a
ela acessíveis permitam, e é em realidade, em certa medida
modificável pelas posteriores impressões (FREUD, 1912)4.
4. Deve-se compreender que cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e
das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de
conduzir-se na vida erótica - isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece, nos instintos que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz o que
se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles), constantemente repetido –
constantemente reimpresso – no decorrer da vida da pessoa, na medida (Continua página 441)
440 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
(Continuação página 440) em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a
ela acessíveis permitam, e que decerto não é inteiramente incapaz de mudar, frente a experiências
recentes. [versão da S.E., Ed. Imago, p.111]
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1. O “círculo vicioso” da patologia
No funcionamento adaptativo, os esquemas emocionais são adaptados de maneira constante e flexível nas interações pessoais ao longo de
toda a vida. Tanto se ativam esquemas em novos contextos, como se desenvolvem as próprias capacidades, formam-se expectativas mais diferenciadas sobre os outros e sobre nós mesmos e se formam novos padrões de
resposta.
Alguns esquemas emocionais, entretanto, podem representar contingências intoleráveis, ameaçando devastar o self – conflitos que não são
manejáveis entre padrões de resposta (como querer destruir a pessoa que
desejamos) ou expectativas insuportáveis de abandono ou perda. Quando
por qualquer razão se ativa um esquema assim ainda na ausência de um
acontecimento atual precipitante, se ativam também os componentes dolorosos sensitivos e somáticos. Esses atuam em forma de marca dolorosa,
levando à perspectiva de acontecimentos futuros catastróficos que a pessoa
trabalhará logo para evitar. Geralmente não podemos regular diretamente a
ativação corporal. A maioria de nós não sabe como regular a pressão
sangüínea ou o ritmo cardíaco ou outros sistemas de alarme. Podemos,
entretanto, desviar a atenção das imagens de gatilho, distraindo-nos ou
redirecionando a atenção de alguma forma. A repressão e outros mecanismos de defesa podem ser definidos nesse contexto.
Mesmo a evitação aparentando controlar o alarme emocional, o indivíduo paga um preço alto. Os componentes dolorosos subsimbólicos, sensitivos e viscerais e a tendência à ação continuam operando, ao menos em
forma de marca, mas agora sem significado emocional e sem capacidade
para a regulação simbólica. O indivíduo pode tratar de encontrar significados conscientes ou inconscientes para ativação corporal em alguns casos
como tendo uma fonte somática independente como na somatização; em
outros como deslocamento a objetos relacionados, mas diferentes, onde a
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
conexão percebida não ameaça o self. Quando isso acontece reiteradamente, o esquema emocional pode então reconstruir-se nessa forma dissociada
ou distorcida.
A ocorrência de sintomatologia e a impenetrabilidade do esquema
patológico a novas experiências pode ser explicado a partir da dissociação
fundamental dentro do esquema emocional e das tentativas distorcidas de
reparação. A resposta de evitação se auto-reforça cada vez que o esquema
e a experiência dolorosa somática e sensitiva são evocados também. Evitando as pessoas, sucessos ou lugares associados com o esquema doloroso,
na realidade e na fantasia, o indivíduo pode evitar assim incorporar nova
informação potencial acerca dos outros e de si mesmo; não pode aprender
que as expectativas temidas não se materializarão na realidade. O “círculo
vicioso” da patologia (STRACHEY, 1934) pode ser entendido nesses termos (BUCCI, 1997a, 1997b, no prelo).
2. O processo terapêutico em psicanálise
O tratamento psicanalítico está organizado para permitir a ativação de
tais esquemas emocionais distorcidos e dissociados em um contexto no
qual podem ser tolerados, examinados e reconstruídos. Se podemos
reconectar-nos novamente com os componentes subsimbólicos sensitivos
e somáticos do esquema, podemos permitir gradualmente a abertura do
esquema e sua reconstrução. Isso é o que entendemos por mudança estrutural.
Baseados na seqüência do processo referencial delineado antes, identificamos três estágios no processo de verbalizar os esquemas emocionais
durante a associação livre. Em situação ótima, os estágios atuam
interativamente, em um padrão de aprofundamento cíclico, no curso de
uma sessão e no curso do tratamento.
O processo começa com a ativação de um esquema emocional, habitualmente um esquema dissociado, dominado por seus componentes subsimbólicos sensoriais e somáticos cujo significado emocional o paciente
não reconhece. O paciente pode evitar os elementos simbólicos do esque442 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 443
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ma, se os reconhece como tais, mas o contexto o constrange a seguir adiante, a continuar verbalizando e simbolizando qualquer coisa que possa –
sensações corporais, imagens imprecisas, o que for que lhe venha à mente.
A conversão do formato subsimbólico ao simbólico atua primeiro no
sistema não verbal. O paciente pensa em um acontecimento, uma imagem,
uma fantasia, uma lembrança, um sonho, que podem parecer irrelevantes,
mas que estão associados ao esquema emocional. As diferentes imagens e
episódios, incluindo recordações do passado e os acontecimentos do aqui e
agora, podem ser traduzidos em palavras e descritos em forma de narrativa.
Aqui se pode ver mais claramente o poder da associação livre. As
imagens e episódios aparentemente triviais ou irrelevantes que vêm à mente parecem ser os componentes simbólicos periféricos do esquema emocional. Esses são tolerados dentro da consciência, ainda quando os objetos
primários dos esquemas dissociados são evitados – precisamente porque
são evitados – de forma que o paciente não reconhece o significado emocional do que diz. Dessa forma, os elementos subsimbólicos do esquema
dissociado podem ser conectados a palavras. A narrativa da fase de conexão revela o esquema emocional do paciente, como existe atualmente,
como foi recuperado da lembrança ou como foi jogado no aqui-e-agora. O
poder da relação será visto aqui provendo ambos os objetos que permitem
ao esquema ser simbolizado e um entorno no qual sentimentos potencialmente insuportáveis podem ser tocados sem risco.
Na terceira fase, o paciente com o analista reflete sobre as imagens e
histórias que foram ditas. O analista pode tomar a condução nesse estágio.
Em condições ótimas se fazem novas conexões – dentro dos esquemas
emocionais do paciente e entre o paciente e o analista – que permitem recomeçar o ciclo em um nível mais profundo. Agora o paciente pode começar
a compreender o significado emocional de sua narrativa em novos termos.
Aqui é onde encontramos a possibilidade de romper o “circulo vicioso”. A velha história em um contexto interpessoal novo é potencialmente
uma nova história, não só um voltar a relatar. Os elementos somáticos do
esquema ativado se produzem em sessão de uma maneira modulada. O
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
evento é representado em um código compartilhado; os instrumentos da
diferenciação lógica e a generalização podem ser invocados intencionalmente. A conexão do objeto deslocado com o esquema de memória ativado
pode ser reconhecida; bem como as diferenças nas capacidades próprias e
na situação na qual se produziu a ativação. A pessoa do analista e o contexto terapêutico constituem fantasias prototípicas no aqui-e-agora que podem ser introduzidas novamente nos esquemas. A relação analítica desempenha potencialmente o mesmo papel na reconstituição do esquema que o
contexto precoce e o cuidador desempenharam em seu desenvolvimento
inicial.
3. Indicadores operacionais do processo referencial;
um marco para a investigação
Os conceitos da teoria de código múltiplo, o processo referencial e os
esquemas emocionais assentam as bases necessárias para o uso da situação
psicanalítica em investigação. Cada um dos estágios do processo
referencial tem um grupo de indicadores externos na linguagem e no comportamento associados com ele, como discuti em detalhe em outro lugar
(BUCCI e MILLER, 1993; BUCCI, 1993, 1995, 1997a). Usando esses indicadores operacionais, como se definem dentro do marco teórico do código múltiplo, podemos fazer inferências desde os sucessos observáveis do
tratamento, dos processos que se produz dentro da mente do falante. Esse
método de investigação, com efeito, depende do tipo de “indicadores indiretos” aos que se referiu Freud (1937), mas com as restrições científicas da
investigação psicológica moderna. À medida que a investigação siga seu
curso, a teoria de código múltiplo, como todos os modelos científicos, poderá ser continuamente mudada e revisada.
4. Conclusões: em direção à integração de campos
A psicologia acadêmica foi dividida tradicionalmente em disciplinas
separadas, tais como psicologia social, evolutiva, cognitiva e experimental, com subcomponentes ou especializações dentro de cada uma, incluin444 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopse
A autora destaca as contribuições e as contribuições potenciais da psicanálise para a psicologia cognitiva. A primeira seção do trabalho inclui alguns princípios básicos do enfoque psicanalítico do processamento da informação. A segunda seção mostra como a teoria do código múltiplo proporciona as bases para construir a ponte entre a ciência cognitiva e o campo psicanalítico. Assinala a necessidade de um subcampo da psicologia – “psicologia psicanalítica” – que abarque a
integração de sistemas dentro do indivíduo e o funcionamento adaptativo, sua
dissociação na patologia e os meios pelos quais se pode adquirir uma nova
integração.
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Wilma Bucci
do áreas como percepção, motivação, aprendizagem, memória e
psicolingüística. Necessitamos reconhecer, entretanto, que o funcionamento dentro de cada uma dessas áreas depende da integração com outros sistemas, incluindo sistemas de processos somáticos e emocionais, no contexto
das metas totais do indivíduo, e não se podem entender isoladas. Sugerirei
que deveria ser reconhecido (ou desenvolvido) um campo da psicologia
psicanalítica cujo domínio de investigação incluísse a integração dos sistemas de processamento tal como operam no funcionamento adaptativo, tanto como sua dissociação na patologia, e que também incluísse os processos
pelos quais se pode produzir uma nova integração ou reintegração. Inerente a esse campo é a investigação da interação do indivíduo com o mundo
interpessoal, desde o nível de relações íntimas às mais amplas estruturas da
sociedade.
A psicologia científica requer esse campo, e a situação psicanalítica
provê um enquadre único para tal investigação. As metas subjacentes e os
padrões de organização da vida de um indivíduo, como são relatadas nas
narrativas e julgadas na relação, emergem na psicanálise como em nenhum
outro contexto. Ambos – os cientistas cognitivos e os analistas – necessitam dar-se conta do potencial científico dessa proposta.
A NECESSIDADE DE UMA “PSICOLOGIA PSICANALÍTICA”
NO CAMPO DA CIÊNCIA COGNITIVA
Summary
The Need for a “Psychoanalytical Psychology” Within the Field of the
Cognitive Science
The author highlights the contributions and the potential contributions of the
psychoanalysis to the cognitive psychology. The first section of the work includes
some basic principles of the psychoanalytic approach on the information
processing. The second section shows how the theory of the multiple code provides
the basis for building the bridge between the cognitive science and the
psychoanalytic field. It points out the need for a sub-field of psychology – the
“psychoanalytic psychology”, that comprises the integration of systems within
the individual and the adaptive operation, its dissociation in the pathology and the
ways by which one can achieve a new integration.
Sinopsis
La Necesidad de una “Psicología Psicoanalítica” en el Campo de la
Ciencia Cognitiva
La autora destaca las contribuciones y las contribuciones potenciales de la
psicoanálisis para la psicología cognitiva. La primera sección del trabajo incluye
algunos principios básicos del enfoque psicoanalítico del procesamiento de la
información. La segunda sección muestra cómo la teoría del código múltiplo proporciona las bases para construir el puente entre la ciencia cognitiva y el campo
psicoanalítico. Señala la necesidad de un subcampo de la psicología – “psicología
psicoanalítica”, que abarca la integración de sistemas dentro del individuo y el
funcionamiento adaptativo, su disociación en la patología y los medios por los
cuales se puede adquirir una nueva integración.
Palavras-chave
Psicanálise; Integração; Investigação científica; Inteligência; Psicologia
cognitiva.
Key-words
Psychoanalysis; Integration; Scientific study; Intelligence; Cognitive
psychology.
446 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Psicoanálisis; Integración; Investigación científica; Inteligencia; Psicología
cognitiva.
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Artigo
Trabalho publicado em Psychoanalytic Psychology 2000, e autorizado
pela autora para ser traduzido e publicado nesta revista.
Tradução e revisão: Augusta G. Heller e Heloisa Helena Poester Fetter
Dra. Wilma Bucci
116 W Neck RD Huntington
New York – 11743 – USA
450 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
1ª Semana da Infância e
Adolescência na SBPdePA –
23 a 26 de Abril de 2003
Ana Rosa Chait
Trachtenberg
Membro Titular da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre; Coordenadora do Núcleo
da Infância e Adolescência da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre; Membro
Associado da Associação
Psicanalítica de Buenos Aires.
Desde o início de 2002, o que
vinha funcionando como Seminário
Clínico Optativo de Infância e Adolescência transformou-se no NIA. O
mesmo agrupa em torno de 25 colegas, membros e candidatos e foi criado graças ao estímulo incansável da
Dra. Susana Elfriede Lustig de Ferrer,
que foi a primeira Co-Chair para a
América Latina da COCAP (Committee on Child and Adolescent
Psychoanalysis). Este é um comitê da
IPA, criado no Congresso de Barcelona em 1967, para estimular, difundir e
regulamentar a formação em Psicanálise de Crianças e Adolescentes.
A inauguração oficial do NIA
ocorreu em agosto de 2002, com a
presença marcante da Dra. Ferrer,
numa intensa programação teóricoclínica.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 453
Ana Rosa Chait Trachtenberg
A Fundação do
NIA – Núcleo
de Infância e
Adolescência
da SBPdePA
A FUNDAÇÃO DO NIA – NÚCLEO DE INFÂNCIA
E ADOLESCÊNCIA DA SBPDEPA
As atividades do NIA constavam de seminários e supervisões regulares desde maio de 2002, com freqüência mensal, com a Dra. Virgínia
Ungar, atual Co-Chair da COCAP para América Latina. Além disso, o
NIA tem recebido muitas visitas, como a da Dra. Carmen Steiner, em 2002,
para supervisões. Também a Dra. Sonia Abadi visitou a SBPdePA em agosto de 2003 e supervisionou um caso de adolescência com exclusividade
para o NIA. Igualmente, o NIA tem estado presente na comunidade através
de parcerias, como no encontro sobre Autoridade, com o Colégio Israelita
Brasileiro e a Fundação Universitária Mário Martins, com apoio da
Artmed, ocorrido em junho de 2003. Um ciclo sobre Desenhos Animados,
em co-participação com a Secretaria Científica da SBPdePA, aconteceu na
Livraria Cultura, em outubro e novembro de 2003.
Em abril de 2003, o Instituto de Psicanálise da SBPdePA aceitou a
proposta de utilizar os horários de seminários, durante toda uma semana,
para a realização da 1ª Semana da Infância e Adolescência na SBPdePA.
Esse espaço organizado pelo Núcleo de Infância e Adolescência (NIA) para
todos os candidatos e membros da instituição objetivava que tivéssemos
oportunidade de discutir esta temática que se insere com força e vitalidade
em nossa sociedade e também proporciona aos colegas que atendem adultos uma aproximação maior com a área da Infância e Adolescência.
As atividades iniciaram no dia 23 de abril (quarta-feira), ocasião em
que tivemos a apresentação do curta-metragem premiado “A Invenção da
Infância”1 da diretora de cinema gaúcha Liliana Sulzbach. Após, houve
debate com a participação de Liliana Sulzbach, diretora do filme, Mônica
1. Prêmios: 42º Festival Internacional de Cine Documental e Curta-metragem de Bilbao/2000 –
Melhor Filme pelo Júri Popular (entre 128 filmes em competição) e Melhor Filme Latino-americano; Prêmio Unicef; 28º Festival de Cinema de Gramado/Cinema Latino – Melhor Filme em
16mm, Melhor Roteiro e Melhor Direção; 11º Festival Internacional de Curtas de São Paulo –
eleito entre os dez mais votados do público; 4ª Mostra de Cinema de Tiradentes MG/2000 –
Melhor Filme eleito pelo júri popular; II Grande Prêmio Brasil de Cinema 2001 – Melhor Média
Metragem; 5º Festival de Cinema de Recife 2001 – Melhor Filme, Melhor Roteiro, Melhor Direção e Melhor Montagem; 2th Images de Noveau Monde Quebec 2001 – Melhor Curta Metragem;
3º Mostra de 16mm de Taguatinga – Melhor Filme pelo Júri Popular; Short Shorts International
Film Festival Tokio 2002 – Melhor Curta Metragem.
454 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
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Ana Rosa Chait Trachtenberg
Timm de Carvalho, superintendente geral do Colégio Israelita Brasileiro, e
Ana Rosa Chait Trachtenberg, coordenadora do NIA.
No dia seguinte, também em horário de seminário, houve apresentação dos seguintes temas livres pelos colegas do NIA: “Cidade de Deus: o
impacto de uma realidade complexa em cena” (Ane Marlise Port
Rodrigues), “Uma obra a quatro mãos: espaço transicional na prática com
crianças” (Caroline Milman), “A construção de um personagem no cenário
transicional da sessão analítica” (Luiz Marcírio Kern Machado), “O discurso de Freud ao pequeno Hans” (Laura Ward da Rosa) e “Um olhar clínico sobre a Infância” (Vera Maria Homrich Pereira de Mello).
Para fechar a semana, recebemos, no sábado (26/04), o Dr. Arnaldo
Smola, conhecido e reconhecido analista de crianças e adolescentes da
APA de Buenos Aires. Na parte da manhã, trabalhamos “Clínica das Psicoses na Infância e Adolescência” e, à tarde, houve supervisão de material
clínico da colega Mayra Lorenzoni, pertinente à problemática que vínhamos estudando. Como se percebe, foi uma semana intensa, na qual a infância e a adolescência pode ser pensada desde o vértice social, familiar e
clínico entre todos os colegas da Brasileira. A jornada foi coroada de êxito,
tanto do ponto de vista da participação, quanto do nível das discussões
surgidas nos diferentes momentos da tarefa.
Nas páginas seguintes, os leitores poderão encontrar o testemunho da
Dra. Virgínia Ungar acerca da psicanálise de crianças e adolescentes. Na
seqüência, aparecem os textos das debatedores Liliana Sulzbach, Mônica
Timm de Carvalho e Ana Rosa Chait Trachtenberg sobre o filme “A Invenção da Infância”, o trabalho do Dr. Arnaldo Smola “A clínica das psicoses
na infância: uma atualização”, e, por fim, o Dr. Peter Blos Jr., atual Chair
da COCAP para as três regiões da IPA, nos brinda com seu trabalho “A
experiência afetiva”.
Virginia Ungar
Psicanalista, Membro Titular
da Associação Psicanalítica de
Buenos Aires (APdeBA).
Atualmente, falar de psicanálise de crianças nos coloca, de saída,
em um terreno apaixonante, ainda
que não isento de complexidades.
Em nossos dias, não é possível
pensar nossa tarefa isolada do contexto sócio-econômico-político em
que esta se desenvolve.
A partir de minha própria experiência, encontro que são as crianças que mais rapidamente denunciam, através de sintomas, as situações de pressão que a família suporta. A crise social, o desemprego, a
instabilidade econômica e a falta de
possibilidade de projeção de um futuro ferem a família, primeiro e
insubstituível continente das ansiedades que as crianças padecem,
pelo simples fato de serem pessoas
em desenvolvimento. Quando a
contenção familiar falha, porque os
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 457
Virginia Ungar
Psicanálise
de Crianças
Hoje
PSICANÁLISE
DE
CRIANÇAS HOJE
conflitos emergentes não permitem que ela se estabeleça, e a rede social
não a sustenta como deveria fazê-lo, as crianças, barômetros sensíveis da
emoção que as rodeia, respondem. E assim, nossa consulta de hoje em dia
se vê acumulada de casos de variadas somatizações, de transtornos de
aprendizagem, de transtornos de conduta e de interrupções do desenvolvimento que se somam às patologias clássicas, como as fobias variadas, as
neuroses obsessivas e os quadros psicóticos.
O lugar do psicanalista, por sua vez, também recebe pressões provenientes de várias fontes. Os seguros sociais de saúde limitam os tratamentos a um número mínimo de sessões para a totalidade de um processo
terapêutico, o que equivale a esperar resultados rápidos. Neste campo aparece a oferta de medicação como uma proposta sedutora no caminho de
ganhos imediatos.
Seria injusto fazer recair o peso da pressão somente sobre as
corporações médicas, pois a sociedade toda parece estar envolvida numa
espécie de corrida por um rendimento rápido. As escolas exigem maior
homogeneidade nos grupos de alunos a fim de elevar o nível acadêmico
para responder adequadamente às demandas da sociedade, preparando futuros adultos “contratáveis” em empregos que se desenvolvem no âmbito
de uma impiedosa concorrência. Em Buenos Aires, prestigiosas escolas
abriram uma sala para crianças de 1 ano de idade (!) cujo único requisito é
de que a criança caminhe. Assim pode dar seus primeiros passos nesta carreira que, na mente de seus pais, poderá levá-lo com segurança a Harvard.
Do que acabo de dizer, deduz-se que aquelas crianças que, sem ter nenhum
déficit, não encontram facilmente um lugar nessa disputa, são rapidamente
lançadas para fora do campo e expressam o conflito através de seu corpo
ou através de sua mente, cada uma como pode.
Este panorama faz com que nós, analistas de crianças, nos encontremos com muita freqüência no terreno do debate sobre a alternativa psicanálise/psicoterapia. Minha posição pessoal, já expressa em outro artigo1, é
1. Ungar, V. Psychoanalysis and psychotherapy in the treatment of children: thoughts from the
frontier. International Psychoanalytical Association Newsletter, v.10, n.2, 2001.
458 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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Tradução: Heloisa Helena Poester Fetter e Augusta G. Heller
Dra. Virginia Ungar
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1425 – Buenos Aires – Argentina
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 459
Virginia Ungar
que se um psicanalista está formado como tal, baseado nos tão famosos
elementos que constituem o tripé de Eitington, como são a análise pessoal,
as supervisões e os seminários teóricos, tentará fazer sempre psicanálise.
Se tem internalizada a psicanálise, sua atitude será sempre a atitude analítica. Naquele mesmo artigo postulei que até se poderia falar de uma posição ética do analista, que seria a de fazer o máximo possível de psicanálise.
Pode-se concluir, portanto, que o eixo da atitude analítica está
centrado na formação psicanalítica. No caso da análise de crianças e adolescentes, é necessária uma formação ad hoc para todos aqueles interessados na tarefa, dadas as características específicas que têm os tratamentos,
sobretudo com crianças, em que a técnica deve se adequar tanto ao tipo de
linguagem lúdica quanto ao alto grau de ação e comprometimento corporal
envolvidos nas sessões com os pequenos pacientes.
É por tudo isso que quero fazer chegar meu comentário esperançoso
sobre o Curso de Psicanálise de Crianças e Adolescentes que estamos realizando desde o início de 2002, sob o auspício do Núcleo da Infância e
Adolescência (NIA) da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, no qual, num clima de muito entusiasmo, seguimos desenvolvendo um
amplo programa que inclui aspectos teóricos, técnicos e clínicos.
Torna-se necessário ressaltar o alto número de participantes e o interesse revelado pelo nível mantido de presença e de leitura prévia a cada
seminário.
Espera-se que este seja o primeiro passo para que a Brasileira possa
concretizar, em futuro próximo, um programa de Formação em Psicanálise
de Crianças e Adolescentes.
Ser criança não significa
ter infância
Liliana Sulzbach
Liliana Sulzbach
Diretora de Cinema.
Mônica Timm de
Carvalho
Licenciada em Letras (UFRGS),
Especialista em Gestão
Empresarial (UFRGS) e Diretora
Geral do Colégio Israelita
Brasileiro.
Ana Rosa Chait
Trachtenberg
Médica Psicanalista, Membro
Titular em função didática da
SBPdePA, coordenadora do NIA
da SBPdePA.
“A Invenção da Infância” propõe ao espectador uma reflexão sobre o que significa ser criança no
mundo contemporâneo. Partindo do
princípio de que nem toda criança
tem infância, o filme mostra como o
conceito de infância, enquanto sinônimo de inocência e fragilidade, começou a ser construído entre os séculos XVI e XVII, a partir das conquistas do pensamento humanista.
Ao entrevistar crianças em três
estados do Brasil – país descoberto
na mesma época em que a Europa
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 461
Liliana Sulzbach, Mônica Timm de
Carvalho, Ana Rosa Chait Trachtenberg
Debate sobre
o Filme
“A Invenção
da Infância”,
de Liliana
Sulzbach
DEBATE
SOBRE O
DE
FILME “A INVENÇÃO
LILIANA SULZBACH
DA INFÂNCIA”,
inventava a infância e onde a modernidade se distribuiu de maneira irregular –, o filme revela que, ao final do século XX, a infância ideal sonhada
pelos homens da Renascença estava duplamente ameaçada.
No interior do Nordeste, crianças trabalham em canaviais, plantações
de sisal e pedreiras em troca de comida ou de alguns poucos centavos. Ao
mesmo tempo, em algumas metrópoles com seus shopping-centers, escolas de elite e bairros nobres, o sonho de uma infância livre de trabalho e
preocupações é substituído por uma extenuante rotina de atividades de preparação para a competitiva vida adulta.
Para além das injustas condições econômicas que separam essas crianças, o advento de uma cultura essencialmente audiovisual – da qual a televisão seria o maior símbolo, que permite a adultos e crianças terem acesso
ao mesmo tipo de informação – e a perversão de valores de uma sociedade
consumista e narcísica iguala a todos, arrancando a sua inocência de forma
definitiva e irreversível.
Em 1994 fui convidada pela televisão alemã Spiegel a participar de
um documentário que seria realizado no Brasil sobre a região amazônica.
Na mesma ocasião, o redator com quem desenvolvi o filme solicitou um
tratamento do que poderia vir a ser um documentário sobre a questão das
crianças de rua no Brasil. Num primeiro momento, não consegui enxergar
muito além do que mais um documentário denúncia, como muitas televisões estrangeiras costumam fazer sobre as milhares de crianças delinqüentes e sem assistência que povoam nossas ruas. Refletindo mais sobre o
assunto, achei que o Brasil poderia ser o cenário perfeito para um filme que
retratasse as crianças num contexto mais abrangente que a questão dos
menores carentes: a questão da infância.
Financiado pelo Fundo de Apoio à Produção Artística e Cultural da
Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre e do Ministério da Cultura e filmado em três diferentes estados do Brasil, o documentário procura
abordar a infância como um conceito criado pela modernidade entre os
séculos XVI e XVII, fazendo parte do processo humanístico do Iluminismo
ocidental que detonou o respeito ao indivíduo e as revoluções francesa e
462 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 463
Liliana Sulzbach, Mônica Timm de
Carvalho, Ana Rosa Chait Trachtenberg
industrial. Conceito este que estaria se diluindo no final do século XX,
quando o colapso da modernidade transforma boa parte dos ideais
humanísticos em pontos de interrogação e sentimentos aflitos pelo presente e futuro.
O Brasil foi escolhido como ponto de observação por ser o mais bem
sucedido resultado da colonização européia nos trópicos, área onde a
modernidade se distribuiu de maneira irregular, ao mesmo tempo industrial e medieval. O país tem hoje como mostrar a infância onde ela nunca
ocorreu – nos canaviais ou minas de carvão, onde crianças trabalham o dia
inteiro em troca de comida ou alguns centavos – e onde ela está prestes a
desaparecer – nos shopping centers, academias de balé, cursos de inglês e
bairros nobres de São Paulo, quando se observa a infância não mais como
uma fase livre de trabalho e preocupação, mas como uma preocupante seqüência de atividades de preparação para a competitiva vida adulta.
Dessa maneira, o filme partiu da erosão de um conceito moderno para
tratar da vida de algumas crianças brasileiras, levantando algumas questões. Por que, em determinado momento, procurou-se diferenciar adultos e
crianças? Por que, em uma época específica, são privilegiadas e valorizadas determinadas formas de vida e de experienciar o mundo em detrimento
de outras? Como as mudanças socioculturais, econômicas e tecnológicas
contribuem para a formação de um conceito?
Essas questões foram trabalhadas no filme através de fatos que, independente do grau de relevância e importância, contribuíram para as modificações da infância. Seriam eles: a forma de transmissão da informação, as
desigualdades sociais, o trabalho infantil e os altos índices de mortalidade,
o senso de responsabilidade, a erotização do universo infantil, entre outros.
A invenção da prensa por Gutemberg proliferou a informação escrita,
fato que acabou gerando uma diferenciação entre os que lêem e os que não
conseguem decifrar o código da escrita. Esse fator, de uma certa forma,
ajudou a construir a diferença entre crianças que não sabem ler e adultos
que dominam o código. Já o advento do audiovisual e especialmente da
televisão causa novamente um nivelamento entre adultos e crianças, já que
DEBATE
SOBRE O
DE
FILME “A INVENÇÃO
LILIANA SULZBACH
DA INFÂNCIA”,
não é necessário apreender um código para assistir melhor televisão.
No caso das crianças brasileiras retratadas no filme, além da informação, a desigualdade social acaba gerando uma desigualdade temporal, visto
que em algumas regiões do país o trabalho infantil e os altos índices de
mortalidade infantil se igualam aos índices de mortalidade da Idade Média.
Ao mesmo tempo, crianças que têm acesso à tecnologia e a bens de consumo e educação vivem um período para além da época moderna, em que o
acúmulo de compromissos e senso de responsabilidade os igualam novamente aos adultos.
Estaríamos, assim, vivendo um período de transformação de um conceito que, por ter sido uma criação cultural, pode a todo momento sofrer
transformações, tomar novos rumos, perder importância ou até mesmo desaparecer.
A infância perdida
Mônica Timm de Carvalho
Cultura de país subdesenvolvido já pressupõe a existência de crianças
que trabalham. Há aquelas que passam seus dias em pedreiras ou canaviais, sendo privadas de sua infância para poder ajudar no sustento da família. Não nos surpreendemos mais com isso e até acostumamos a lidar com
nossos sentimentos de pena e revolta. Aprendemos a encarar a fome como
uma triste parte da paisagem e a entender a perda da infância como um
subproduto da má distribuição de renda.
Se de fato a fome não é conteúdo de vida daqueles que estão do lado
de dentro da janela, o mesmo não se pode dizer sobre a infância perdida.
Essa é, em última análise, a denúncia feita no seu documentário “A Invenção da Infância”, várias vezes premiado pela maneira como revela uma
chaga que poucos identificam existir.
O filme nos convida a enxergar que o fim da infância está sendo decretado por todos os extratos da sociedade, e não apenas pela população
464 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 465
Liliana Sulzbach, Mônica Timm de
Carvalho, Ana Rosa Chait Trachtenberg
carente. No que toca ao tratamento conferido às crianças, seria até possível
dizer que a sociedade vem regredindo a padrões pré-renascentistas, mesmo
considerando os avanços da ciência e da tecnologia e os novos rituais de
produção e consumo.
A infância, tida como um momento especial, foi inventada há pouco
mais de 500 anos, tendo por propósito a formação de um ser humano melhor. Passou a ser destinado à criança um espaço social diferenciado, protegido, em que ela não fosse apenas vista como um adulto em miniatura,
como um devir, mas como alguém dotado de sentido em si mesmo, que
possui desejos, possibilidades e limitações próprias da faixa etária. No entanto, percebe-se cada vez mais que até as famílias que não possuem limitações econômicas para levar adiante esse ideal renascentista não o fazem.
O filme põe luz a esse fato, fazendo paralelos entre as vidas de crianças
provenientes de diferentes classes sociais. De um lado, a criança carente,
que produz a batida constante do martelo para transformar pedra em brita;
de outro, a criança mais abastada, que repete mil vezes a batida da ponta de
sua sapatilha de balé. Os dois movimentos são repetidos à exaustão. Uma
precisa levar à família os trocados que recebe pelo seu trabalho; a outra
precisa treinar o corpo de tal forma que possa garantir a harmonia de movimentos que agradará seus pais na apresentação de dança. Assim, as duas
crianças colocam para si a necessidade de habilitar seus corpos a satisfazer
as expectativas dos adultos. A espontaneidade precisa dar lugar à repetição. Não há tempo para experimentar novos contornos, ritmos inusitados,
jogos simbólicos... Não há tempo para ser simplesmente criança.
Também não há tempo para esperar a curiosidade aparecer. A informação já vem pronta. E geralmente muito antes do que devia. A televisão,
por exemplo, faz chegar às casas, em todos os horários, programas com
alto teor de erotização e violência. O mundo parece não estar preocupado
se as crianças têm estrutura suficiente para presenciar cenas de sexo ou
posicionar-se criticamente diante de filmes em que matar é sinônimo de
heroísmo. Tantas são as contribuições que nos oferecem hoje a psicologia,
a biologia e a educação – e tão poucos são os usos que se fazem de todo
DEBATE
SOBRE O
DE
FILME “A INVENÇÃO
LILIANA SULZBACH
DA INFÂNCIA”,
esse conhecimento.
Responsabilidade é outro dado comum a crianças de todas as classes.
Sem dúvida, um valor a ser cultivado – desde que isso não represente a
simples importação da vida adulta. Hoje em dia, as crianças precisam ir
para o serviço, fazer inglês, esporte e computação, cuidar dos mais novos,
ir para a escola, passar na venda e, de quebra, no salão de beleza. Há hora
para tudo, e há muita coisa a fazer. Como dizem as crianças, “uma vida de
adulto”.
Não há dúvida de que temos o dever de habilitar as crianças a tornarem-se adultos com competência para a participação ativa na sociedade, e
que é mais fácil aprender uma segunda língua ou a tocar um instrumento
quando se é bastante jovem. Contudo, se não for garantido à criança o espaço para ser espontânea, brincar e poder formular perguntas ao mundo,
exercitando a amplitude de suas possibilidades de pensar e agir, não haverá
treinamento ou disciplina que as faça hoje ou amanhã pessoas mais capazes e felizes.
Em busca da infância perdida
Ana Rosa Chait Trachtenberg
O premiado curta metragem da Liliana Sulzbach tem, entre outros tantos méritos, o de evocar variadas linhas de pensamento, tais como o papel
e o valor do brinquedo, o valor da vida nas comunidades carentes, a questão do trabalho infantil, os tempos modernos e a vida de nossas crianças
abastadas ou pobres, que tipo de infância elas têm, as pseudomaturidades,
as patologias do vazio, as doenças psicossomáticas, etc., etc. Trata-se, sem
dúvida, de um universo que não pode ser abarcado dentro dos propósitos
desta comunicação. Deixo espaço e as várias reflexões que certamente surgirão, para os colegas que se manifestarem durante a discussão.
Liliana nos proporcionou um sonho, com as angústias do nosso tempo
contidas nele. Vou tentar transformar em palavras aquelas imagens que se
466 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 467
Liliana Sulzbach, Mônica Timm de
Carvalho, Ana Rosa Chait Trachtenberg
salientaram em minha mente, quando deixei o filme passear dentro dela,
tal como faria com um sonho. Surgiu-me uma inquietação primeira: tentar
discriminar o que é infância do que é ser criança. Os dicionários pouco me
ajudaram, apenas reforçaram a minha idéia prévia de que criança tem a ver
com criar, e lembrei do idioma espanhol, onde crianza, com Z, refere-se,
diretamente, à criação de filhos. Preferi não tomar tão instigante tema, o da
criatividade, pois encontrei-o muito amplo para o atual propósito. Procurei
por Infância e encontrei que o termo se relaciona, de acordo como dicionário Aurélio, com ingenuidade, simplicidade e também com infante, que são
os filhos dos reis de Portugal e Espanha, mas não são os herdeiros da Coroa. Aurélio assinala, porém, que infante vem do latim e significa “que não
fala, incapaz de falar”.
Deixei esta última idéia no ar e, dando voltas, lembrei das crianças da
época em que Freud inventou a Psicanálise: eram seres puros, inocentes,
dominadas pelo bem, assexuadas e, quando adoecidas, o eram por terem
sido passivas, vítimas da perversão dos adultos. Com essa concepção de si
mesmo e da infância das suas histéricas, foram se impondo as
primeiríssimas idéias psicanalíticas, até que, em 1897, numa carta a Fliess,
seu interlocutor, nosso genial fundador conta um sonho próprio, à guisa de
auto-análise. Declara ali não acreditar mais em sua “neurótica” e haver
descoberto que nem seu pai nem os demais pais eram sistematicamente
perversos. Com o complexo de Édipo, que acaba de ser inaugurado, aparece uma nova infância: a da fantasia; logo mais apareceria a infância da
sexualidade e, a seguir, a das pulsões agressivas e assim por diante.
Há uma linha divisória, e pareceria que nossos inocentes infantes comeram, então, do fruto proibido, da árvore do conhecimento, e, tal como
Adão e Eva, foram expulsos do paraíso. Não puderam mais se aproximar
da árvore da vida e simples (nem tão simples) mortais se tornaram.
Poderíamos dizer que a alma do ser humano está atravessada pela sua
possibilidade de usar os jogos (brincar), de fantasiar, de imaginar e de sonhar, seja um ser criança, poeta ou adulto. Freud anunciava isto em 1908,
em “O criador literário e a fantasia”, dizendo que “a ocupação preferida e
DEBATE
SOBRE O
DE
FILME “A INVENÇÃO
LILIANA SULZBACH
DA INFÂNCIA”,
mais intensa da criança é o brinquedo (...) e que quando ela brinca faz
como o poeta, pois cria um mundo de fantasia , que é dotado de um grande
monto de afeto”. Diz ainda: “o adulto, ao invés de brincar, fantasia” (p.127128). Se pensarmos nas crianças que vimos no filme da Liliana, surge de
imediato uma grande preocupação, claramente descrita por Adam Philips,
numa recente entrevista à revista Veja, em que ele diz: “As crianças entram
na corrida pelo sucesso muito cedo e ficam sem tempo para sonhar. Há
grande ansiedade da parte dos pais em relação ao futuro. Esta pressão está,
literalmente, enlouquecendo muitas crianças”. Em que estará se transformando este impedimento do ato de sonhar, de imaginar, de fantasiar, de
brincar? Podemos observar diversas reações a curto prazo, tais como diferentes reações neuróticas, transtornos da aprendizagem, etc. Aquilo que,
parodiando Julia Kristeva, seriam as clássicas doenças da alma. Nelas, a
capacidade de defesa da criança ao “anti-estímulo” sonhador mostra que
seu espaço psíquico está vivo, que ela está adoecida, mas sobrevive, lutando, podendo assim permanecer mais perto da sua alma.
Não me parece, entretanto, ser este o desdobramento predominante
nas crianças do filme, paulistas ou nordestinas, abastadas ou pobres. Eu as
vejo afastadas da suas almas, dos seus sonhos, reagindo com um certo
mutismo psíquico, com a sua câmara escura avariada. Nossas crianças correm um alto risco, já que a sua alma está vazia, a sua capacidade de representação está comprometida, e seu espaço psíquico, metabolizador de ansiedades, agoniza. Estamos diante das preocupantes novas doenças da
alma, no dizer de Julia Kristeva. Ou, para falar de outra forma, as doenças
do déficit de representação, do vazio, as como se, etc.
Preocupa especialmente, nestas crianças, nesta geração tão marcada
pelo compromisso, pela travas à imaginação, pela prisão da alma a que
estão submetidas, o que elas são hoje, e também o que serão amanhã, como
adolescentes, e logo depois como adultos inseridos no outro pólo da cultura. Julio Moreno comenta, como um alerta, que os cuidados dispensados às
crianças modernas, tal como observamos no filme, não nos autoriza a pensar que estejamos cuidando do sujeito em si; elas são, em realidade, um
468 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Referências
FREUD, S. Cartas 69, 71,75. Obras completas. v. 1.
FREUD, S. (1908[1907]). El creador literário y el fantaseo. Obras completas.
v. 9.
KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.
MORENO, J. Ser humano. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2002.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 469
Liliana Sulzbach, Mônica Timm de
Carvalho, Ana Rosa Chait Trachtenberg
projeto de futuro. As crianças são consideradas uma espécie de reservatório para ser formado e preenchido com conhecimentos, levando o ideal de
progresso e a sua garantia de futuro, tão caros à modernidade. A criança,
tão cuidada e venerada, o é para cumprir com uma missão: a de levar a
tocha do progresso à geração seguinte. O sujeito, entretanto, está, lamentavelmente, esquecido.
Os estados psicóticos
na idade da latência
Arnaldo Smola
Membro Titular da Associação
Psicanalítica da Argentina.
Ao considerar esses estados,
deve-se levar em conta que o termo
“latência” pode remeter à idade cronológica em que o processo de
latência tem lugar ou, mais corretamente, ao processo propriamente
dito. Neste estudo tomaremos a
latência como a idade da escolaridade primária, cujo começo se marca na idade de cinco anos e meio.
Nos quadros que vamos descrever,
o processo de latência (os mecanismos e elaborações que nele se reproduzem) não se cumpre na maioria dessas crianças. A profundidade
a que é levada a dissociação do objeto e do ego e o transtorno conse-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 471
Arnaldo Smola
A Clínica das
Psicoses na
Infância: uma
Atualização
A CLÍNICA
DAS
PSICOSES
NA INFÂNCIA: UMA ATUALIZAÇÃO
qüente nos processos de repressão pós-edípicos dificultam esse processo.
Assim, podemos encontrar:
1) As psicoses precoces que chegam à latência
As psicoses que aparecem na primeira infância são, basicamente, as
diferentes formas de autismo, a psicose simbiótica e a síndrome de
Asperger.
Sintomas fundamentais do autismo infantil precoce se encontram em
diversas áreas, mas as manifestações mais visíveis situam-se no contato,
no comportamento e na linguagem.
Quanto ao contato, temos o isolamento, a negativa de dar alguma resposta ao interlocutor e a surpreendente supressão dos dados que provêm
dos sentidos distais (a aparente surdez, a evitação do olhar). No comportamento, constatamos a transformação de toda atividade em rotina e a insistência em manter algum território geográfico livre de toda a mudança (Leo
Kanner o denominou sameness). O isolamento não costuma permanecer
como foi originariamente, mas o transtorno da relação com o outro é um
elemento que não falta nunca. Nas crianças que alcançaram a linguagem,
pode-se notar as estranhezas do timbre, que ocasionalmente adquire uma
brusca mudança de tonalidade, como se pertencesse a outra pessoa ou constituísse a imitação desta. Com freqüência, ocorre imitação da voz da mãe, o
que inspira preocupação nos pais de autistas homens e presunção de desenvolvimento homossexual, o que não é descartável como possibilidade.
Nesses casos, realizam graus variáveis de escolarização, dependendo do
nível de inteligência alcançado. Mas a obediência às normas escolares dependerá do grau de conexão e também de oposicionismo que o saldo obsessivo haja produzido. As preferências da criança nesse terreno mostram
extravagância e requererão especial paciência e treinamento da pessoa a
cargo de sua educação. A dificuldade de conexão não deve ser confundida
com ADD (Attention Deficit Disorder), ainda que se admitisse a esse sintoma a sua pretendida autonomia. Outro sintoma em nível da linguagem é a
ecolalia, desencadeada por qualquer imprevisto, e que, quando se torna
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 473
Arnaldo Smola
muito intensa, pode conduzir a uma reação violenta por parte do
interlocutor ou perturbar o ambiente emocional do lar.
O desenho da figura humana, quando existe, costuma mostrar a característica longilínea, quase em um plano. No caso de testes psicométricos, a
criança pode ignorar o que se pede e apresentar alguns desenhos geométricos ou cópias de partes da casa, às vezes executada com detalhe, mas sempre com rigidez característica. Pode-se achar contradição entre os desenhos e o déficit revelado nos testes psicométricos, em função das
potencialidades parciais de aprendizagem.
Algo que pode ser confundido com capricho, mas que não o é, diz
respeito à exigência imperiosa da satisfação de alguma necessidade, seja
essa qual for, ante a presença do adulto. Se for muito intensa e repetida e o
nível intelectual for baixo, pode ser confundida com a excitação simples de
um retardo mental.
Na psicose simbiótica, encontramos crianças cujo desenvolvimento
“vem bem” até o segundo ou terceiro ano de vida, quando, em razão de
uma separação da mãe (que pode estar marcada por uma vicissitude
evolutiva, como o desenvolvimento da marcha), produz-se uma catastrófica perda das aquisições, como a deterioração da linguagem e das aprendizagens que vinha alcançando. Após um intervalo, conforme M. Mahler,
sobrevém uma reorganização psicótica com uma tendência à perda dos limites do ser, assim como dos limites intersistêmicos, com gestos mágicos,
intolerância extrema ante qualquer fracasso e pânico intenso, como uma
tormenta mental que arrasa tudo. Aparecem preocupações psicóticas por
um objeto inanimado que podem culminar na criação de um fetiche
psicótico, clara evidência do processo primário do pensamento, e sintomas
do tipo catatônico. De todas maneiras, o desenvolvimento parece vir bem,
mas isso é apenas aparente, posto que linhas de fratura estão já pré-figuradas em razão de certa hipercatexia materna patológica.
A síndrome de Asperger, pouco conhecida ainda entre nós, com suas
características e elementos principais pouco difundidos para um diagnóstico diferencial, não deve ser confundida com um autismo leve. Trata-se de
A CLÍNICA
DAS
PSICOSES
NA INFÂNCIA: UMA ATUALIZAÇÃO
crianças inteligentes, de alto rendimento intelectual e capacidade de aprendizagem, que sofrem de sérios transtornos na área social e relacional.
2) As psicoses de aparecimento na
latência propriamente ditas
Apesar da dificuldade de precisar a idade de seu começo, há estados
psicóticos que claramente iniciam mais tarde e suas formas sintomáticas
diferem das psicoses recém referidas. Não são quadros freqüentes.
Como não oferecem as características próprias que possuem as psicoses precoces, torna-se difícil agrupá-las em quadros clínicos ou síndromes
de relativa autonomia, o que deixa uma espécie de “intempérie nosológica”
que nos faz, às vezes, vacilar frente a um diagnóstico. Um recurso válido
consiste em tomar vetores sintomatológicos básicos, nesses casos, a conduta, o contato, o pensamento e a linguagem.
2.a) A conduta
Na área da conduta, é característica a agressividade, cuja direção,
externalizada ou internalizada, marcará as diferenças. Essa “agressividade
livre” parece atribuível ao colapso da relação do ego com seus objetos e
com a realidade, e no terreno pulsional é atribuível à defusão.
Quando a agressividade é externalizada, temos a criança muito agitada, violenta com membros de sua família ou companheiros de classe, que
bate, insulta quase sempre sem motivo justificável ou ante qualquer negativa, ou profere gritos inesperados como forma evidente de descarga de
tensão não elaborada. A intolerância extrema à frustração ou as condutas
provocativamente petulantes são chamativas nessa área, conseqüência da
combinação mórbida da regressão pulsional e da debilidade do ego, e que
dá origem à constituição de um caráter psicótico de variável extensão. Em
geral, manifesta-se por atos e observa-se uma espécie de contínua passagem ao ato.
Quando a agressividade é interiorizada, aparecem o rechaço e a oposição em grau intenso. Assim, ocorre o rechaço de toda atividade que a or474 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
2.b) O contato
O comportamento em grupos está também alterado, ainda que às vezes possa mostrar certo grau de adequação, como se existisse um sistema
que o contivesse. Entretanto, as alternâncias do humor e as extravagâncias
mostram às demais crianças o grau de alteração, que faz com que estas
terminem se distanciando.
Os jogos, quando existem, são quase sempre estereotipados e com
freqüência brutais, sendo agressivos com companheiros ou animais, em
uma aproximação a incursões sociopáticas nada raras em sua evolução.
Nesse sentido, como disse Winnicott, a invasão pulsional “arruinou” o
jogo.
São freqüentes as coleções, mas tratadas como um assunto particular.
Consistem mais em acumulações obsessivas de objetos não
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 475
Arnaldo Smola
dem íntima e social exija: alimentar-se, vestir-se ou lavar-se. O mutismo,
parcial ou total, pode ser uma característica chamativa e alarmante. Mostra
rechaço escolar, que não deve ser confundido com fobia escolar, por mais
grave que esta seja. A pista diferencial será dada pelo resto da
sintomatologia, em oposição à neurose fóbica, que mostra a conservação
relacional.
O rechaço alimentar pode ser seletivo e não traz risco de vida, salvo
em casos excepcionais com crianças já maiores, pré-púberes, nas quais
pode confundir-se com um começo brusco de anorexia nervosa. Encontram-se exigências rituais exageradas de limpeza e extremos obsessivos
com os talheres, sintomas que denotam a índole persecutória da preocupação. As outras características de ambos os quadros podem ser de utilidade
na discriminação, mas é fundamental o fato de que na anorexia nervosa
existe quase sempre conservação da realidade e de suas funções, sendo a
área da alimentação a que se encontra extremamente perturbada.
Quando é o dormir que está afetado, deve-se usar os recursos para
permitir o descanso, dado que se trata de uma perturbação que pode acentuar o sofrimento do ego e desencadear maior regressão.
A CLÍNICA
DAS
PSICOSES
NA INFÂNCIA: UMA ATUALIZAÇÃO
compartilháveis, os quais, às vezes, têm um simbolismo pessoal. Um jovem que examinávamos ultimamente colecionava lamparinas elétricas de
todo tipo, queimadas ou em bom estado, e isso tinha para ele um significado explícito.
A retração, acompanhante característica desses estados psicóticos,
ainda que exista, não é tão marcada, e tampouco assistimos, salvo raramente, ao fenômeno restitutivo que é o delírio. Geralmente se trata de construções fugazes ou, com freqüência, compartilhadas com algum progenitor,
familiar próximo ou empregados, ao modo de folie a deux.
Cabe destacar a sensação do bizarro. Trata-se de um elemento da observação clínica que merece ser comentado. A impressão que produz o
paciente é algo difícil de precisar. O termo expressa a surpresa do observador ante uma palavra, um juízo emitido, um gesto, um ato, cuja característica mais visível é a inadequação em relação à situação. Pode-se considerar
como um processo de pensamento ao qual não se pode concordar, uma
reação emocional sem explicação. Sem dúvida, trata-se de uma ruptura de
sentido. Na mesma linha se acha a passagem ao ato: imprevisível,
incontrolável, inesperado, dando a dimensão da debilidade do ego no controle da motilidade e em sua função de síntese. A criança faz o ato, às
vezes, sem emoção aparente, como uma irrupção de pulsões em estado de
total elementaridade e com surpreendente nível de dissociação.
O acting-out está mais ligado à história do sujeito ou à situação atual
de seu entorno e se expressa, com freqüência, numa incursão no terreno
psicopático, devido a situações conflitivas cuja tensão não pode ser processada de outro modo, mas que já garantem alguma riqueza maior de expressão.
Finalmente, tudo isso nos dá uma idéia da natureza e da qualidade do
contato, elementos básicos para avaliar o prognóstico e a oportunidade de
uma terapia analítica.
476 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 477
Arnaldo Smola
2.c) O pensamento e a linguagem
As idéias delirantes que tomam a forma de perseguição ou de idéias
hipocondríacas são os transtornos maiores do pensamento. É surpreendente a precocidade das idéias de perseguição quando aperfeiçoamos a
anamnese ou recuperamos as recordações das pessoas em análise. Uma
paciente a quem atendi na idade adulta recordou, o que foi confirmado por
seus pais, que era assustada, triste e chorona e que sentiu muitas vezes,
com grande angústia, que sua casa se movia e que iria cair. Essa paciente,
inteligente sem dúvida, também recordou seu alarme por não poder dominar com o olhar todo o território circundante, o que a fazia experimentar
sempre um persistente sentimento de inquietude. Como se valia de sua
irmã para auxiliá-la no dito controle, foi considerada como portadora de
uma neurose fóbica. Outra forma de pensamento delirante refere-se à existência de idéias hipocondríacas em todas as variações possíveis. Uma combinação disso pode ser vista em um pequeno paciente de três anos que me
ameaçou: “Vou fincar-te com uma agulha na garganta, o sangue vai escorrer para dentro e vais te afogar”. Idéias de grandeza atribuídas a si mesmo
ou a seus pais podem ser observadas. Sempre se disse que as fobias, quando são múltiplas ou de conteúdo cósmico, devem ser observadas com maior
precaução por serem as que espontaneamente evoluem para a perseguição
delirante. De todas as maneiras, as idéias delirantes se caracterizam por sua
variabilidade, instabilidade e polimorfismo. O que se impõe em todos os
casos, além do estabelecimento ou não de um sistema delirante, é a preferência que o sujeito dá às produções imaginárias em oposição aos requerimentos sociais ou inter-relacionais.
Quanto à linguagem, a rigor é impossível separar as particularidades
do pensamento e da linguagem, uma vez que formam parte da mesma problemática. Ainda que dificilmente encontraremos o uso patológico da gíria, que se encontra no adulto psicótico em estado crônico, a aparição mais
ou menos sutil de certos transtornos da linguagem pode ser assinalada.
Percebem-se: a escassez de expressões, a escassez de encadeamentos causais genuínos, a metonímia, a substituição de uma palavra por outra pareci-
A CLÍNICA
DAS
PSICOSES
NA INFÂNCIA: UMA ATUALIZAÇÃO
da mas inadequada (“o chamarei em qualquer movimento” em lugar de
“qualquer momento”) e a interpenetração de temas. Naturalmente, o tom
de voz pode ser também inadequado e, às vezes, parece claro que está
construído através da imitação tosca de uma pessoa significativa, o que
leva a pensar que a relação de objeto se realizou desde uma individuação
que persiste débil, aparecendo inconscientemente numa introjeção no self.
3) Os elementos de diagnóstico
Podem surgir dúvidas e oscilações de grande importância, tanto em
relação aos recursos terapêuticos a utilizar, quanto para a decisão do
terapeuta de envolver-se ou não em um caso que seguramente exigirá dele
um esforço e uma habilidade em outra escala do que a habitual. Por isso é
conveniente lançar mão de todos os recursos possíveis para esclarecer o
diagnóstico e as possibilidades terapêuticas. Os elementos com que se conta hoje são: as entrevistas, as provas gráficas e os testes projetivos.
Preferimos a já clássica entrevista diagnóstica da hora de jogo, levando em conta os seguintes parâmetros: provisão de caixa de brinquedos
relativamente neutros e escolhidos, de preferência não-mecânicos e
inespecíficos para que a criança possa, através deles, simbolizar situações
próprias; uma observação com pouca participação do terapeuta, somente a
necessária para ajudar na continuidade do jogo e no contato. Tomar-se-á
em conta se a criança joga, se este é um jogo simbolizante, se há a possibilidade de manter o jogo sem demandar do entrevistador e sem “arruinarse” pela invasão pulsional. Nem sempre é fácil para o terapeuta conservar a
neutralidade, mas esse é também um dado de utilidade.
Nas provas gráficas, destacamos o desenho livre e a figura humana
de ambos os sexos, ou o HTP (house, tree, person), se achar preferível.
Também o teste do casal (determinação: “desenhe duas pessoas”) e o teste
gestáltico visomotor de Bender são úteis, ainda que não devam ser tratados
como testes projetivos.
Finalmente, nos testes projetivos, pode-se utilizar o CAT (Teste de
Apercepção Temática para Crianças) ou algumas lâminas do antigo TAT
478 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
4) Para que diagnosticar?
O diagnóstico, em especial o que tem ressonâncias classificatórias,
não é preferência dos terapeutas analíticos. Para o analista o melhor diagnóstico é o que se vai fazendo e é, além disso, múltiplo.
Saber o que acontece implica conhecer as estruturas mentais da criança, assim como a estrutura familiar e social que a sustenta. A tolerância
familiar, a leitura pela família da criança como sendo neurótica, a posição e
a qualidade do objeto que se projeta nela, fixam o status da criança e de sua
afecção. A família mostra diferentes maneiras de lidar com a criança. Podemos identificar algumas técnicas: técnica paranóide (“vai me matar”, “é
o ambiente escolar, ele em si é bom”); técnica hipocondríaca (“me deixa
doente ou melancólica”, “me amarga a vida”); técnica fóbica (“vou embora
dessa casa”; ou fazendo uso da negação (“tem suas esquisitices como todas
as crianças”). São todas agentes de confusão, mas ao mesmo tempo informam ao observador acerca do suposto básico que o paciente e seu meio
mantém e ocupam. Deixo de lado o manejo do sentimento de culpa dos
pais, que merece uma consideração especial.
Como acontece com pacientes adultos, pode ser necessário afastar a
criança de seu meio familiar temporariamente, e sempre que seja possível,
para aliviar tensões. Contudo, as possibilidades de uma internação serão
consideradas em função das possibilidades da família e do meio.
Essas crianças são, muitas vezes, maltratadas por não ser conhecida,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 479
Arnaldo Smola
para adultos; o teste de Phillipson e o Rorschach serão úteis, em especial
este último, para mostrar o grau de controle que o ego é capaz de exercer
sobre as pulsões, a ancoragem que o fantasmático tenha na realidade e a
existência de temas que revelem a proximidade de terrores profundos,
como a morte, o ser devorado, etc.
É recomendável ter em conta que a administração de um teste de personalidade, em especial quando seu formato promova forte projeção, pode
resultar em uma experiência desestruturante a qual obriga a certos reparos.
O dito vale também para o teste-questionário “Desiderativo”.
A CLÍNICA
DAS
PSICOSES
NA INFÂNCIA: UMA ATUALIZAÇÃO
em seu meio familiar ou escolar, a natureza de sua doença. A insistência
em tratá-la como uma criança normal “que se comporta mal para atacar” ou
“para chamar a atenção”, ou qualquer hipótese hostil e rechaçante, não
possibilita o reconhecimento da profundidade de seu problema,
agudizando-o. Igualmente no caso de escolares que não progridem, podese encontrar uma falta dos primeiros esboços de pensamento abstrato já
existentes na latência normal. Recordamos que o pensamento concreto, ao
qual regride a pessoa psicótica, é realista. Através da atitude concreta o
indivíduo se abandona à experiência imediata de uma situação ou coisa em
seu caráter único. Isso também ocorre com as demandas imediatas que formula um aspecto particular do objeto ou da situação do meio ambiente. É
geralmente aceito o postulado freudiano do “grão de verdade contido no
delírio”. Mas também devemos estar atentos e pensar na pessoa que, por
falta de desenvolvimento ou por regressão, está vinculada num pensamento concreto como único recurso; a compreensão de seu objeto significativo
pode ser profunda mas não integral, ou seja, não devemos tomar só um
aspecto do objeto ou da situação, um pars pro toto. É por isso que a verdade que se expressa no delírio não deve ser tomada como uma certeza oracular, uma verdade essencial, e não deve cativar o entrevistador, porque, ainda que profunda, pode proporcionar uma visão empobrecida e maniqueísta.
(De todos os modos, a denúncia que expressa tem enorme utilidade, ao
romper os “acordos” inconscientes produtores de patologia.)
O pensamento abstrato, a atitude abstrata (de pensamento), implica
que a pessoa possa transgredir os aspectos dados especificamente, ir para
um ponto de vista mais conceitual no desenvolvimento de um vínculo. A
possibilidade de entrar no território do conceito, da categoria, da classe e
do significado geral da relação de objeto traz maior liberdade e desligamento do objeto. Somente então, poderá assumir por si mesmo um estado
mental, passar de um aspecto de uma situação a outro, ter em conta vários
aspectos simultaneamente ou captar o essencial de uma totalidade dada,
generalizar, etc. Este desenvolvimento não se completa senão quando chega à idade adulta, mas nos púberes já se pode notar os esboços disso em
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Arnaldo Smola
uma atitude ativa do pensamento, como resultado do trabalho de aprendizagem realizado no período de latência. O aspecto afetivo-relacional está
marcado por amplos processos de luto ou por entradas na posição
depressiva kleiniana, no sentido de um “dar-se conta”.
O sujeito normal combina ambas as atitudes e tipos de pensamento
desde cedo. Deve-se levar em conta a existência de um pensamento concreto genuíno, baseado na correta correspondência com a realidade do objeto ou da situação. A detenção no tipo de pensamento concreto patológico
faz com que a pessoa fique dominada pelos estímulos que surgem do mundo externo. Por essa razão, ego e mundo externo ficam insuficientemente
demarcados. Nesse tipo de pensamento há uma tendência a expressar-se
através da ação, o que pode dar uma idéia errônea de dinamismo.
As palavras se tornaram mais específicas e individuais e se ajustam
somente a uma situação ou a um objeto específico. Quando esse processo
se completa, então as palavras aparecem como parte do objeto e não como
representantes deste. Nesse caso, o acesso a formas superiores da inteligência e seu uso estarão bloqueados à criança latente.
Voltando à palavra individual, ao analista somente lhe é dado compreender o discurso de pacientes se conhece a situação concreta em que foi
colocado pela pessoa que fala. Isso é difícil porque as experiências dessas
pessoas são muito diferentes daquelas dos indivíduos comuns. O paciente
tem de criar uma linguagem própria para as suas experiências, mas isso
leva todavia a outra dificuldade. Como não é capaz de compreender seus
processos afetivos internos, não poderá comunicá-los através de uma descrição espontânea. Trata-se de uma tarefa muito difícil para o analista, que
exige uma atenção mantida e concretizada. Não é esperado manter esse
exercício por um número grande de horas de trabalho e, nem tampouco,
seria esperado manter muitas análises dessa natureza.
Finalmente, o diagnóstico tem de ser diferencial, em especial para a
discriminação, muito difícil às vezes, entre psicose e retardo mental. É
importante dizer antes de tudo que uma discriminação exaustiva nem sempre é possível, por se encontrarem ambos os transtornos muito intrincados.
A CLÍNICA
DAS
PSICOSES
NA INFÂNCIA: UMA ATUALIZAÇÃO
Os estados psicóticos permanentes adquirem em sua evolução uma expressão deficitária, seja entendida desde uma hipotética lesão, seja pelo persistente uso de defesas psicológicas externas. Por outro lado, em sujeitos que
mostram um déficit global do desenvolvimento e são diagnosticáveis como
portadores de retardo mental, estados de desorganização psíquica e perda
de aquisições podem surgir como resposta a mudanças ou a estímulos suficientemente traumáticos, dada sua especial vulnerabilidade. A história do
desenvolvimento, a curva de dispersão dos subtestes de Wechsler e os antecedentes familiares serão de ajuda no diagnóstico diferencial.
5) Os recursos terapêuticos
Esse tema não será tratado exaustivamente aqui, mas mencionarei alguns recursos terapêuticos e farei comentários que provêm de minha prática clínica.
Deve-se considerar, em primeiro lugar, a institucionalização da criança como possível recurso terapêutico. Essa torna-se necessária e proveitosa
quando existir a convicção do médico de que seja negativa a mútua influência do paciente e do seu entorno. A produtividade psicótica, a resposta (violenta) do meio em relação ao paciente, a falta de contenção emocional para acalmar a criança, a necessidade de medicação e a recusa a usá-la,
ou quando se detectem situações de risco para si e para os outros, podem
levar à indicação de internação. Geralmente, se o lugar é adequado e o
jovem se integra ao grupo, este pode ajudá-lo a tomar consciência de seu
estado e contribuir à egodistonia e assim ser beneficiado com a separação
do meio familiar. Uma condição que é necessária, e nem sempre é existente, é a de que a instituição seja adequada no aspecto material e na ideologia
terapêutica. Mas, cabe explicar um pouco mais os motivos e a oportunidade da internação da criança, porque é nos casos de pacientes crianças que
mais se duvida e se rechaça esse recurso. Em geral, considera-se que a
relação com os pais é precocemente conflitiva e, ao trabalhar com um enquadre transferencial, pode-se notar que o paciente recebeu a transferência
de sentimentos confusos e caóticos da mãe em relação à sua própria mãe. A
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Arnaldo Smola
personalidade da mãe é, muitas vezes, pobremente estruturada e é possível
que a criança haja sacrificado inconscientemente sua própria individualidade para preservar a precária integração da sua mãe. Na mãe também opera o mecanismo de dissociação e a necessidade de expulsar essas partes
confusas. A criança será usada basicamente para a introjeção de tais partes
dissociadas. Nisso consiste parte da tragédia psicótica. A partir dessa compreensão é que se poderá aceitar como oportuna e necessária uma
internação.
A medicação, em especial os neurolépticos maiores, pode ser de ajuda para aumentar direta ou indiretamente o contato emocional. Em todos
os casos constituem um auxiliar importante ainda que com a seguinte ressalva: diminuem o prestígio que a psicoterapia tem para o paciente, ao compartilhar as conquistas desta. Deve-se medir a vantagem e a desvantagem
de sua administração caso por caso. Nunca serão um substituto da
psicoterapia.
Não se incluem nesse trabalho os chamados “tratamentos biológicos”
(Sackel, Cerletti) por considerá-los antiquados, desnecessários e excessivamente agressivos.
Em todos esses casos, consideramos que a psicoterapia útil é a de
inspiração psicanalítica ou, diretamente, a psicoterapia psicanalítica. A
delimitação entre essa e a psicanálise nem sempre é fácil. A aplicabilidade
de uma ou outra depende da formação do terapeuta, da possibilidade de
trabalhar em transferência, em especial com a transferência negativa, sem
que as resistências que sobrevenham sejam demasiado intensas, assim
como a regressão também não seja demasiado intensa.
A neutralidade do analista dependerá de que o paciente possa
exteriorizar suas fantasias na relação de transferência para serem aí processadas. Como se compreende, manter o contato e a situação analítica pode
ser difícil, ainda que, uma vez isso alcançado, os frutos aparecerão na contenção do paciente. A inevitável frustração da cura se evidencia com a
manutenção do estado infantil e regredido. A regressão é espontânea e não
deve ser provocada pela análise. A aplicação do método psicanalítico su-
A CLÍNICA
DAS
PSICOSES
NA INFÂNCIA: UMA ATUALIZAÇÃO
põe um certo desenvolvimento de funções cognitivas e o acesso ao pensamento simbólico. Entretanto, tem sido postulado por alguns autores que a
detenção dessas funções obedece a uma intenção defensiva e é o mesmo
método psicanalítico que pode resgatar o paciente de dito transtorno.
A intolerância à frustração move e, às vezes, obriga o terapeuta a conceder certas gratificações compensatórias, que seguramente deverão também ter limites. Isso leva a colocar em questão as terapias assim chamadas
de maternagem, cuja crítica excede os limites e a intenção deste trabalho.
Deve-se dizer-se que a neutralidade do analista é nesses casos relativa mas
o suficiente para autorizar a exteriorização de fantasias inconscientes. Essas fantasias expressam a ambivalência para com o analista, mas suas interpretações e permanência no campo terapêutico terminam por exercer
uma ação estruturante no psiquismo do paciente.
Para terminar, resta dizer que se trata de um período importante, em
que o esforço terapêutico resulta oportuno já que a proximidade da puberdade pode tanto produzir um aprofundamento da ruptura psíquica como
favorecer uma nova e mais proveitosa integração.
Ensaio
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Heloisa Poester Fetter
Revisão da tradução: Ane Marlise Port Rodrigues
Dr. Arnaldo Smola
Arenales 2949, 8º, “B”
C 1425 BEI – Buenos Aires – Argentina
Fones: 51-11-4862-5860 54-11-4825-0917
E-mail: [email protected]
484 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Selecionei inicialmente três
breves relatos clínicos. Eles foram
utilizados somente para delinear o
assunto que vou abordar e os sentimentos que pretendo discutir. Portanto, estes relatos não serão desenvolvidos ao longo deste artigo.
Peter Blos Jr.
Membro Titular da Associação
Psicanalítica Americana (APsaA).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 485
I. Uma residente de psiquiatria de
uma cidade do leste pediu para
falar comigo quando eu estava em
New York, participando de uma
conferência. Venho a saber que
ela deseja consultar-me sobre um
dilema pessoal. Quando ela estava trabalhando na internação psiquiátrica infantil, um menino de
Peter Blos Jr.
A Experiência
Emocional do
Analista de
Crianças e o
Conceito de
Contratransferência
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
seis anos de idade foi admitido e encaminhado para avaliação. Ele
apresentava um histórico de problemas sérios, com numerosos foster
placements1 que deixaram cicatrizes psíquicas. Para essa residente,
havia algo muito cativante nesse menino sem uma família. Com o passar do tempo ela, cujos filhos estavam crescidos e não moravam mais
em casa, tinha se tornado muito apegada ao menino. Estava, então,
apresentando um desejo irresistível de adotá-lo na sua própria família,
embora, como ela me disse, várias pessoas a haviam questionado sobre
isso.
II. Agneta Sandell, atual presidente da Swedish Psychoanalytical
Society, publicou em 1998 um relatório sobre aspectos de seu trabalho
analítico com Adam, que tinha quatorze anos e meio quando o tratamento começou (SANDELL, 1998). Ele havia fugido de casa e na época morava em uma instituição para adolescentes, quando teve um surto
psicótico. Em duas ocasiões, relata a analista, ela “passou dos limites,
movida por aquele sentimento de que algo não podia ser evitado”
(p.23). Na primeira ocasião, “com o pretexto da associação livre, ele
dirigiu sua fala sobre sexo e coisas sujas ao ponto do que era tolerável
e do que podia fazer sentido. Eu senti que ele estava tentando excitarme sexualmente e provocar-me além do meu controle. Ele não queria
que eu pensasse…” (ibid.). Até que ela finalmente desabafou dizendo:
“pare com isto”, e expressou-lhe um firme “ultimato”. Ela nos conta
que não era a primeira vez que fazia este tipo de observação, mas o tom
e a ênfase certamente eram. “Mas”, continua ela, “isto foi somente o
prelúdio” (p.24) para as subseqüentes tentativas de Adam para
controlá-la e intimidá-la. Chegou um dia em que as ameaças físicas de
Adam se tornaram mais sérias, e a Sra. Sandell repentina e impulsivamente reagiu “mais ou menos forçando-o a deixar a sala” (p.25). O
relato menciona o ressentimento, ódio, remorso e confusão gerados
por aquelas explosões espontâneas e incalculadas. Ainda assim, ela
1. Foster placement é um sistema adotado em alguns países em que a criança a ser adotada passa
um período de tempo convivendo com uma família que se dispõe a cuidá-la, até que seja adotada
legalmente por outra família. Pode acontecer, por vezes, de a foster family vir a adotar a criança.
(N. da T.)
486 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
III. Estou trabalhando com uma menina neurótica de uma família
estruturada. Ela tornou-se uma púbere e, como nós nos sentávamos um
de frente para o outro na mesa de jogos em meu escritório, ela por
vezes posicionava seu colo para a frente, exibindo os seios ainda em
desenvolvimento através de uma camiseta apertada. Em outros momentos, ela cobria seu corpo com roupas bem largas. Certo dia, usando
uma régua vermelha, ela começou a desenhar pequenas figuras grotescas de genitais masculinos e femininos isolados. Isso continuou por
muitos dias. Depois de algum tempo, havia dezenas numa página, e,
finalmente, esses desenhos evoluíram para desenhos de genitais unindo-se em relações sexuais. Minha paciente olhava para mim de forma
zombeteira, mas não dizia nada. Como isso continuava a acontecer
sessão após sessão, a atmosfera sexual na sala aumentava. Nós falamos com cuidado e com calma sobre seus rabiscos. Ela negava recatadamente qualquer conhecimento do vocabulário científico ou coloquial. Uma noite ela apareceu nos meus sonhos.
Como esses exemplos recentes ilustram, pacientes jovens estimulam
nos seus terapeutas sentimentos intensos, espontâneos, difíceis e complexos. Tenho certeza de que tais experiências são familiares a muitos
terapeutas, e ainda assim tais problemas são raramente mencionados na
literatura de psicoterapias de analistas de crianças e de adolescentes e discutidos somente de maneira informal entre colegas. Por quê? Penso que
essa é uma pergunta importante e me dou conta de que ela me acompanha
há muito tempo. Neste artigo, pretendo chamar a atenção para algumas das
dificuldades e confusões que envolvem a questão da contratransferência.
A contratransferência tem sido um aspecto implícito e significante da
psicanálise desde seu início. Sua existência é certamente presente no trata-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 487
Peter Blos Jr.
observa de forma arrependida que tais reações tiveram um efeito salutar em Adam, no seu trabalho analítico e em seu crescimento. No dia
seguinte ao que ela impôs a Adam que deixasse o consultório, ele a
surpreendeu chegando no horário para sua sessão e perguntando “posso voltar?”.
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
mento de Anna O. por Breuer, assim como no trabalho de Freud com Dora,
no de Jung com Spielrein e no de Ferenczi com Elma Palos (BARRON e
HOFFER, 1994). A contratransferência foi mencionada inicialmente, ainda que de forma não clara, por Freud na sua obra As perspectivas futuras
da terapêutica psicanalítica (1910). A preocupação bem articulada de
Freud era com o perigo particularmente limitador da emoção inconsciente,
o desejo e as defesas que emergem no analista pela transferência do paciente. A auto-análise, ele sugere, era uma idéia central necessária, preventiva e
que trazia cura. Dois anos mais tarde, no seu artigo Recomendações aos
médicos que exercem a psicanálise (1912), reiterou sua recomendação mas
sem usar a palavra contratransferência. Falando do inconsciente do analista como sendo “um órgão receptivo em direção à transmissão do inconsciente do paciente” (p.115), ele afirmou de modo um tanto nefasto que
“cada repressão não resolvida [no analista] constitui o que tem sido adequadamente descrito por Stekel como um ‘ponto cego’ em sua percepção
analítica” (p.116). Em Observações sobre o amor transferencial: novas
recomendações sobre a técnica da psicanálise (1915), Freud fez uma ligação clara entre transferência do paciente/reações contratransferenciais do
analista. As suas rigorosas advertências e observações sobre a escuta analítica imprimiu a essas recomendações uma visão de um analista ideal e benevolente, e essa visão durou mais de cinqüenta anos. Esse ponto de vista
separou, de forma muito intensa, a transferência, como um fenômeno rico
com significado clínico, da contratransferência. Recordo que, como residente, e mais tarde como um aluno em formação, presumi – como todas as
outras pessoas que eu conhecia – que a contratransferência era um reflexo
da inadequação do psiquismo de um indivíduo. Abend (1989), refletindo
sobre a formação que fizemos juntos anos atrás, coloca muito bem que:
“[Naquela época] a importância da contratransferência era obscura, carregada de conotações de pecado e culpa”. Mas a obra de Silverman, em
1985, sobre o analista idealizado, ilustra como em trabalho adulto isso é
uma impossibilidade clínica e um mito. Os estudos de Jacobs compilados
na sua obra Uses of the self (1991), abriram caminhos para a discussão dos
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 489
Peter Blos Jr.
sentimentos e fantasias do próprio analista e mostraram como a
contratransferência e suas manifestações podem ser observadas e utilizadas no trabalho com pacientes adultos.
Mas eu preciso fornecer mais informações. O primeiro desafio à opinião de Freud em relação à contratransferência surgiu no início dos anos
cinqüenta, quando Paula Heimann (1950) e Margaret Little (1951), ambas
londrinas, escreveram sobre o rico material que pode ser colhido através da
observação do impacto emocional do paciente sobre o analista, que é a
contratransferência. Na mesma década, Heinrich Racker (1953, 1957;
1968), de Buenos Aires, expandiu esse tema a uma enorme e complexa
dimensão. Desde Heimann, Little e Racker, todos utilizam a teoria de desenvolvimento kleiniana e suas formulações para explicar suas idéias. Considerei a observação de Kohrman et al. (1971) particularmente interessante
– eles afirmam que nem Melanie Klein nem Anna Freud mencionam o
assunto nas suas principais obras.
Entre 1951 e 1966, três artigos de Annie Reich sobre
contratransferência refutaram de forma enfática a introdução do pensamento kleiniano, tornando assim mais inflamado o debate teórico. Na opinião
de Reich, usando as reações do analista como as acima mencionadas, era
somente outro exemplo de análise selvagem, com todos os seus perigos
concomitantes. Ela insistia que a definição de contratransferência de Freud
era a única válida – uma reação defensiva inconsciente do psiquismo do
analista para com estímulos que emanam do paciente como evidência de
elementos não analisados da neurose do próprio analista. Assim como
Freud havia feito anteriormente, Reich sugeriu a auto-análise ou, se necessária, a continuidade do tratamento analítico como a única solução. Sem
esse cuidado, disse ela, o analista permaneceria limitado, restrito e incapaz
de entender corretamente as comunicações inconscientes do paciente.
Essa posição inflexível descreve todas as mais notáveis e isoladas observações oferecidas no penúltimo parágrafo do artigo de Reich, escrito em
1951. “Contratransferência”, escreveu ela, “é um pré-requisito necessário para a análise. Se não existir, faltam o interesse e talento necessários”
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
(REICH, 1973, p.154). Que eu saiba, ela nunca retomou essa idéia.
Um desenvolvimento mais recente é a aparente tomada da
contratransferência – tanto através do termo quanto através do conceito –
por aqueles influenciados pelos neokleinianos e pela Escola Britânica de
Relações Objetais. Apesar de não estarem referindo-se ao trabalho analítico com crianças e adolescentes, pelo menos inicialmente, e portanto muitas das minhas opiniões possam diferir das opiniões deles, eu creio que
trouxeram algumas observações muito interessantes. Seria lamentável se
alguns de nós, que possuem perspectivas teóricas diferentes, fôssemos deixar o domínio intelectual dessa questão para eles.
A literatura analítica sobre a contratransferência em análise de crianças é bastante escassa. Isso reflete não somente o que foi verdade na análise
de adultos, mas também os fatos especiais da vida em análise de crianças.
Posso mencionar o ego imaturo da criança e do jovem adolescente; o despertar na contratransferência, do comportamento materno ou paterno zeloso que parece tão natural no trabalho com crianças; e finalmente a aceitação com relutância do conceito de transferência, incluindo a neurose de
transferência. Nos últimos dez anos, de modo independente, Judy Chused
(1988) e Judy Yanof (1996) têm escrito de forma clara e definitiva sobre o
aparecimento da transferência no trabalho analítico com crianças.
Na realidade, existem vários trabalhos úteis sobre contratransferência
em análise de crianças, entre os quais gostaria de ressaltar dois artigos e
dois livros. O primeiro artigo sobre contratransferência em análise infantil
data de 1948 e é de autoria de Berta Bornstein, chamado Emotional
barriers in the understanding and treatment of young children. Apesar de a
palavra contratransferência raramente aparecer no texto, o título deixa pouca dúvida sobre a intenção do conteúdo do artigo. O exemplo de abertura
constitui-se de um relatório escrito por Ferenczi, em 1913, sobre Arpád,
um menino de cinco anos de idade que tinha fobia por galinhas. O menininho não podia falar de seus medos e preferia desenhar figuras ou brincar
com seus brinquedos, e Ferenczi, então, frustrado e desapontado, nomeou
outra pessoa para registrar observações sobre o comportamento de Arpád,
490 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 491
Peter Blos Jr.
seu brincar e seus relatos. Creio que se poderia citar esse caso como a
primeira manifestação registrada da interrupção causada pela
contratransferência no trabalho direto com uma criança por um psicanalista. Bornstein tinha evidentemente a mesma opinião, pois ela dá continuidade ao estudo de vários aspectos irrefutáveis da contratransferência que
ocorrem no trabalho analítico com crianças. Ou seja, como Annie Reich
comentaria três anos mais tarde na citação já mencionada neste estudo, a
contratransferência é tão inevitável no trabalho terapêutico psicodinâmico
com crianças como o é o no tratamento com adultos.
O primeiro dos “temas irrefutáveis” de Bornstein desenvolve-se a partir do conceito de etapas de desenvolvimento descritas por Anna Freud.
Refere-se ao efeito sobre o analista das limitações próprias do desenvolvimento (bem como sintomáticas) de um paciente infantil em particular.
Bornstein especifica também o efeito inevitável que o analista de crianças
tem sobre a dinâmica dos pais e da família. Ela considera também as reações parentais à ameaça implícita imposta a sua paternidade e maternidade
pelo analista e, de forma similar, a suposta interferência com as identificações da criança com as figuras paterna e materna. Visto sob outra ótica, ela
retorna ao tema inicial do efeito da criança sobre o analista. Mas ela agora
o faz dentro do contexto cultural da sociedade, com suas opiniões irracionais, arcaicas e inconscientes sobre a criança. Tomando um passo corajoso,
ela chama atenção para algo que chama de “o medo da criança” (p.693).
Conhecimento, formação, análise pessoal e experiência podem certamente
ajudar o analista de crianças, comenta ela, mas “as configurações emocionais relacionadas com o período da infância não podem ser dissolvidas”
(p.696). O “medo da criança” da sociedade manifesta-se em como as crianças são, ou podem ser, tratadas, mal entendidas, e como se espera que elas
se comportem. Finalmente, e talvez mais convincente para a questão contratransferencial, Bornstein nota que cada impulsividade, sedução e provocação das crianças continuamente desafiam o analista a “abandonar observação e interpretação” (p.696) e a ver-se, em regressão, utilizando pedagogias e outras formações defensivas inconscientes.
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
Nessas observações sobre os pressupostos axiomáticos das barreiras
emocionais, Bornstein limita especificamente seus comentários ao trabalho analítico com crianças. Entretanto, minha experiência leva-me a acreditar que crianças desde o início da fase em que começam a andar até a
metade da adolescência inevitavelmente geram “barreiras emocionais” ao
entendimento naqueles que trabalham com elas terapeuticamente. Nos comentários que faço neste artigo, minhas referências a “crianças” referemse a essa faixa etária mais abrangente.
O artigo de Bornstein tem tido uma história notadamente desconhecida para um trabalho que considero ser um clássico por sua abrangência,
durabilidade e penetração. Jerrold Brandell nos diz, em seu livro de 1991
intitulado Countertransference in psychotherapy with children and
adolescents, que o artigo de Bornstein não foi nem mesmo listado sob a
palavra-chave “contratransferência” até mais de quarenta anos depois de
sua publicação. Kohrman et al., cujo trabalho de 1971 eu discutirei em
seguida, comentam que eles souberam da existência desse artigo somente
através de outras pessoas que os leram. Estou inclinado a pensar que a
evasividade da importante afirmativa de Bornstein sugere que nossa área,
ainda que inconscientemente, possui uma longa e bem estabelecida aversão ao assunto da contratransferência. É comovente que uma das poucas
referências existentes – os comentários e revisões de Bob Kabcenell sobre
o trabalho de Bornstein – ocorrem somente numa compilação de artigos
comemorativos publicados em 1974, após a sua morte.
Kohrman et al., em seu estudo intitulado Technique of child analysis:
problems of countertransference (1971), são fiéis à tradição clássica e notáveis na abordagem a questões de descrição, classificação e nomenclatura.
Como Reich, porém mais diretamente, esses autores afirmam que a
contratransferência é inevitável em uma análise de crianças e discutem
maneiras pelas quais o reconhecimento desse fenômeno pode “dar continuidade ao desenrolar da análise de crianças” (p.488). Dentro desse pressuposto, eles referiram-se a painéis de discussão americanos realizados em
1957 e 1964, mencionando a contratransferência como “uma parte inte492 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 493
Peter Blos Jr.
gral da análise de crianças” (p.489), e foram por fim abertamente reconhecidos. Os autores sugerem que o termo “contra-reação” seja usado seletivamente para significar aquelas reações contratransferenciais que são parte de cada análise de crianças e que não são responsáveis pela repressão e
defesa do analista. Talvez hoje eles possam também estar usando o termo
“enactments”. Mas a diferença entre “contra-reação” e a reação neurótica e
pessoal do analista é confusa, e, no mundo real, penso que esses fenômenos devem inevitavelmente ter pontos em comum. Com relação à longa
demora antes que a transferência seja reconhecida como uma ocorrência
regular em análise de crianças, Kohrman et al. sugerem que, no transcorrer
de um esforço semelhante por aceitação, a contratransferência irá “de uma
forma evolucionária natural […] em breve ser aceita e reconhecida”
(p.492).
Apesar de o grupo de Chicago prever que a contratransferência seria
reconhecida “em breve”, vinte anos se passaram antes que o assunto fosse
retomado (em publicações) de forma substancial. Refiro-me ao livro de
Brandell (1991), no qual ele e seus colaboradores fazem uma tentativa de
revisar e classificar variedades de contratransferência da maneira como
elas ocorrem na psicoterapia com crianças e adolescentes de acordo com
categorias de diagnóstico. Eu considero essa abordagem interessante, mas
não convincente.
Com relação à literatura, o item final que desejo mencionar é o primeiro volume, publicado em 1996, da Monograph Series of the European
Federation for Psychoanalytic Psychotherapy. O título era
Countertransference in psychoanalytic psychotherapy with children and
adolescents, e o tema foi inesperadamente escolhido por Tsiantis e seus coeditores para liderar essa série. O que eles fizeram sugere significante interesse pelo tópico da contratransferência em círculos europeus. Minha impressão é que a maioria dos colaboradores dividem com os editores uma
tendência para conceitualizar de acordo com os neokleinianos e a tradição
de relações objetais. Ainda que observações úteis e interessantes sejam
apresentadas, quando leio esses ensaios percebo que algo distinto e vital
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
foi deixado de fora.
Antes de continuar minha busca pelo que está faltando em discussões
sobre contratransferência, devo acrescentar um ou dois comentários sobre
empatia. Na literatura sobre empatia em trabalhos com adultos, esse termo
tem sido conceitualizado como um tipo de tentativa de identificação com o
outro. Na nossa prática clínica não existe dúvida de que a capacidade de
empatizar com a criança e com seus pais é uma habilidade muito necessária, elaborada e aperfeiçoada. À medida que nos esforçamos com uma
criança que está com problemas e em sofrimento, mas que está
vigorosamente lutando para exteriorizar a sua dor, sua confusão e sua responsabilidade pela dor, devemos encontrar alguma coisa para amar nessa
criança, algo com o qual possamos empatizar. Ainda assim, na medida em
que a empatia possua a qualidade de uma pré-consciência boa da função
egóica que opere com algum controle e reconhecimento, penso que é improvável que possa ser aplicada quando um comportamento infantil difícil
começa a desgastar o analista. Na verdade, tenho descoberto que essa situação não incomum tende a resultar em perda de empatia e também na
perda de um entendimento sensível e fraternal.
Quando um indivíduo está numa situação de perigo, existe uma tendência a proteger a si mesmo. Isso pode manifestar-se em retaliações sutis
ou não sutis, isolamento, desistência a uma demanda, ou em algum outro
modo de defesa pessoalmente eficaz. Faz-se então um esforço consciente
no sentido de prestar atenção à barreira pela qual se está sendo tomado,
para colocar reações em suspenso e para refletir sobre o significado desse
desvio do tratamento. Empatia é certamente necessária e útil no trabalho
com crianças. Entretanto, considero que, devido à sua grande atração, ela
nos mantém distantes do entendimento do cenário confuso e complicado
das reações contratransferenciais.
O que torna esse tema tão difícil de identificar e definir? O que está
faltando que parece vital? Acredito que uma dica foi dada em um recente
encontro da Psychoanalytic Society, quando foram apresentados relatos da
análise com uma menina pequena. O trabalho analítico relatado era exce494 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 495
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lente e foi muito apreciado pela audiência. Foi uma surpresa, portanto, que
os questionamentos no período de discussão se centraram nos “pais difíceis e não empáticos” (como eles foram descritos por um palestrante na
audiência). Na verdade, os pais haviam sido pouco mencionados, não tendo sido o foco da apresentação. Então, uma analista de adultos colocou
uma questão interessante: “Como é que”, perguntou ela, “quando um trabalho analítico de crianças é apresentado, a história tende a ser percebida
como comovente e o paciente como simpático pelos membros da audiência? Eles ouvem e reagem ao diálogo infantil relatado com risadinhas de
aprovação, e riem da posição desconfortável em que a criança pode colocar
o analista”.
Refletindo mais tarde sobre essas questões e sobre as observações que
se seguiram, pareceu-me que as audiências freqüentemente, talvez de
modo inconsciente, identificam-se com a criança contra o analista-pai e,
dessa forma, evitam focalizarem-se na dor, nas defesas e nas pulsões derivativas comunicadas pela criança e das quais o analista deve esforçar-se
para manter consciente. Creio ser difícil manter-se focalizado no brinquedo e num diálogo que é repleto de manifestações de pulsões derivativas
brutas, ataques retaliatórios pelo superego, defesas severas ou de sedução
usada como distração. Como essas várias e dolorosas emoções oscilam no
decorrer do tratamento de uma criança, a habilidade de permanecer interessado é então desafiada. Como é difícil ser confrontado, quer seja no consultório ou através da apresentação do outro, com charme defensivo, anseio sedutor, ódio, sofrimento masoquista e destruição elementar contra
outros (incluindo o self). A enfática apresentação do meu colega tinha incluído todos esses elementos, assim como uma criança de quatro a sete
anos luta com a dor reprimida, o sofrimento e o medo. Eu não fiquei surpreso pelo fato de que mesmo analistas bem treinados por vezes remexeram-se nas suas cadeiras desconfortavelmente e deram risadinhas quando
tiveram a oportunidade de aliviar suas tensões. Eu descobri que a maioria
dos adultos preferem (ainda que inconscientemente) que emoções
desconcertantes experienciadas por crianças não sejam discutidas. Seria
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
muito melhor se elas fossem entregues a contos de fadas ou, atualmente, a
desenhos animados de violência e sexualidade sádica.
Um processo grupal inconsciente parece estar ocorrendo aqui. Por faltar-me um termo melhor, cheguei a conclusão de que seria uma resistência
coletiva. Ela afeta não somente analistas acostumados a trabalhar com
adultos (como na audiência da Sociedade), mas, devo dizer, analistas de
crianças também. Então reflito se essa resistência tem algo a ver com a
escassez de literatura sobre esse assunto e com a nossa tendência, como
profissionais, de manter nossas reações emocionais indesejadas fora dos
trabalhos publicados. Por outro lado, muitos de nós consultam colegas e
conversam informalmente sobre nossas reações afetivas, questões dolorosas que nos afetam e preocupações relativas ao analista que se sente “sem
saída”. Juntas, essas observações sugerem que a presença desaprovadora
de Freud ainda reside sobre nossas variadas reações contratransferenciais e
representações. Estamos ainda longe de considerar certas emoções indesejáveis como sendo aspectos necessários e aceitáveis, embora dolorosos, do
trabalho analítico com crianças. Em vez disso, freqüentemente as tratamos,
e às nossas preocupações a respeito delas, como uma evidência embaraçosa de nossos selves inadequadamente analisados.
Estou interessado em observar mais profundamente o fato de que,
quando consultamos nossos colegas, eles freqüentemente estão mais inclinados a darem-nos apoio do que ajudar-nos a estudar esse impasse – eu
posso dizer que tenho agido da mesma forma quando sou consultado por
um colega. É como se existisse uma barreira invisível, uma barreira que
impossibilita abordar o problema da transferência perguntando-se diretamente, por exemplo, “como este pai ou esta situação o faz sentir?”
Repensando sobre a minha formação, anos atrás, eu percebo que tais
questões não eram levantadas pelos meus supervisores, e eu, seguindo seus
conselhos, raramente trazia meus próprios sentimentos às sessões de supervisão. Recordo de um supervisor de crianças dizer-me que uma interpretação adequada e no tempo apropriado interromperia uma atuação infantil. Em outras palavras, a ação contínua de meu paciente indicava que
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eu não havia entendido a criança de forma correta e empática. Após alguns
anos tentando, e na maior parte das vezes falhando em alcançar tais resultados expressivos, concluí que a questão não era a validade das minhas
interpretações, mas sim a diferença na enunciação dessas – a atitude do
supervisor e reação autoritária à atuação, e em contrapartida o meu estilo
mais informal. Mas nós dois devíamos estar experienciando reações
contratransferenciais que, junto à minha idealização do meu supervisor,
estavam acontecendo de forma sutil. Essa é a história que me levou a questionar, com um toque de inveja, se os neokleinianos têm conseguido escapar da dúvida e dos autoquestionamentos quanto a essa situação, ao transformar as emoções reativas do analista em recursos maravilhosos, materiais capazes de trazer contribuições significantes ao entendimentos de pacientes!
Outras manifestações dessa “resistência coletiva” me vem à mente.
Por exemplo, eu considero o diagnóstico de nomenclatura DSM, acompanhado por instruções de prática, como sendo uma ferramenta eficaz de
distanciamento que remove emoções (exceto como emoções passageiras
que nos ocorrem) da esfera de conhecimento consciente do psiquiatra. Na
minha opinião, o uso fácil e difundido de medicamentos psicotrópicos é
outra característica da intolerância de nossa sociedade para com as formas
com que as crianças nos fazem experienciar emoções dolorosas. É doloroso ouvir, empatizar, e nos esforçamos para ajudar crianças a dominarem
seus impulsos e conflitos. Então administramos drogas para dissipar a emoção – a nossa própria emoção junto com a da criança.
O que tem sido argumentado contra essa resistência coletiva para o
reconhecimento das reações contratransferenciais em relação a crianças e
adolescentes problemáticos? Quais são os perigos que estimulam tais defesas? Discutiu-se abertamente e publicou-se sobre o primitivismo do conteúdo e emoção aos quais membros da equipe foram expostos em centros
residenciais de tratamento de idosos com orientação psicodinâmica. Por
exemplo, o artigo de Christ intitulado Sexual countertransference problems
with a psychotic child (1964) descreve seu trabalho com uma
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
esquizofrênica, uma jovem menina adolescente que estava em uma unidade de internação. Talvez seja esperado que, em crianças e adolescentes que
são borderline e psicóticos, as manifestações de pulsão agressiva e sexual
sejam óbvias. Precisamos nos perguntar se nossa resistência coletiva, juntamente com nossa dificuldade em relação à contratransferência é devida,
pelo menos em parte, ao fato de que as crianças que têm – ou parecem ter –
manifestações menos perturbadas da pulsão, são mais sutis e menos esperadas, enquanto que as defesas de ambos, criança e adulto, são mais intensas?
Sob tais circunstâncias, quando se trabalha com crianças que são problemáticas mas não psicóticas, podem nossos sentimentos confusos serem
menos justificados? Fazemos então um autodiagnóstico da neurose e, ao
aceitar o nosso erro e a nossa culpa, negamos o reconhecimento da motivação inconsciente da criança? A teoria das pulsões pode estar fora de moda,
mas sentimentos sexuais e agressivos e fantasias parecem não estar relacionados a isso. Eles não perderam seu poder motivacional, sua capacidade
de chocar quando expressos, ou de evocar intensas reações emocionais em
outros.
Como adultos que escolheram se tornar analistas, temos que, no decorrer de nossas próprias análises, estarmos alertas para os derivativos do
id, para superegos punitivos e para as várias necessidades de nossos selves
empobrecidos. Temos estado expostos a alguns de nossos próprios impulsos pré-genitais e a soluções egocêntricas inconscientes. Temos nos esforçado para controlar conflitos antigos de maneiras civilizadas e construtivas. Para alguns, isso pode ter incluído a motivação para tornar-se um analista de crianças! Entretanto, como aqueles dentre nós que se tornaram analistas nessa área descobriram, trabalhar com crianças que não podem viver
confortavelmente, adaptativamente e de acordo com o seu estágio de desenvolvimento no seu mundo familiar, escolar e de iguais, traz à tona uma
série de sentimentos – alguns antigos, outros novos, e a maior parte difíceis. Dentro de limites individuais, temos conhecimento de reações emocionais – a essência da contratransferência – em nós mesmos e podemos
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manter esses sentimentos conscientes. Mas a natureza do nosso trabalho
coloca-nos sob constante bombardeamento e, portanto, tensão. Não deveríamos ficar demasiadamente surpresos quando um sentimento intenso se
manifesta e experienciamos uma enorme avalanche de emoções.
Tampouco deveríamos surpreender-nos se, em uma defesa inconsciente
contra percepções indesejáveis (tais como aquelas relacionadas com pacientes e seus pais), nos encontramos usando as mesmas interpretações e
apoio que favorecem cada análise. Como ocorre freqüentemente em tratamentos psicodinâmicos, interpretação e apoio podem ser ambos corretos e
defensivos.
Também não adianta estarmos alertas para o fato de que nossas experiências de impotência, desesperança, ignorância e outros sentimentos
desprazerosos têm algo a ver com a experiência de self de um paciente
infantil em um mundo percebido como hostil. No consultório, deixamos as
crianças expressarem suas preocupações através do brinquedo. Como analistas, vários papéis nos são atribuídos: o de bebê negligenciado enquanto o
paciente é a mãezinha ocupada; o de aluno mal-comportado do qual o paciente é o professor sem empatia. Podemos ser requisitados a ser infinitamente maçantes e ignorantes e atribuir-nos papéis de pessoas que podem,
se tiverem tempo e sorte, reagir a esses papéis que nos foram designados.
Disseram-nos de forma direta para ficarmos quietos. Dentro de nós mesmos, esforçamo-nos com pacientes em idade de latência que se recolhem a
jogos solitários intermináveis ou que nos frustram ao lerem livros trazidos
de casa com o propósito exato de colocarem-se numa posição inalcançável
por nós. Não há lugar para esconder-se no consultório do analista de crianças – não há cadeiras atrás do divã, não há discretas retomadas de compostura, não há ocultamento de consternações ou de uma inundação de emoções (CHUSED, 1998). Tudo acontece à vista do paciente, inclusive enquanto estamos tentando decifrar o que está ocorrendo e às vezes nos perguntando “o que eu fiz para merecer isto?” ou “devo admitir o sentimento
que acabou de manifestar-se?”. Essas tornam-se então as questões da técnica – quanto, de que maneira e em que grau reconhecer que fomos tocados
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
emocionalmente?
Um exemplo de caso clínico: uma menina de sete anos começou sua
análise com uma incrível capacidade de comunicar sua história e seus sentimentos através de jogos dramáticos, e através do desenho e da construção
de livros. Dessa maneira deslocada, viemos a entender muito sobre sua
solidão e seus anseios. Entretanto, após um ano e meio ela tornou-se mandona e irritável. Ela passou a odiar-me abertamente, e eu comecei a achar
muito difícil gostar dela. Em cada sessão ela trazia um livro, o qual lia
atentamente, sentada num canto do meu consultório, fora do meu campo
de visão. Eu não tinha idéia da natureza do meu crime ou transgressão.
Nada do que eu dizia, até mesmo reconhecendo o seu ódio, parecia fazer
qualquer diferença. Apesar de que ela não causou nenhuma dificuldade
quanto a comparecer ao consultório; ela reclamava amargamente para seus
pais sobre quão inútil eu era e que o tratamento era um desperdício de
tempo e dinheiro. Além disso, ela disse a eles que o “Dr. Blos era feio”!
Como as semanas se arrastavam, eu comecei a sentir-me perplexo,
inútil, uma fraude que não merecia ser paga, e feio – como ela me descreveu. Além disso, eu sentia falta da menina que eu conhecera e gostara anteriormente. Então as sessões tornaram-se tediosas, e eu as odiava intensamente, ficando ansioso para que terminasse. Eu comecei a me perguntar:
“O que tinha dado errado? Onde eu havia falhado? Que tipo de analista tem
tais sentimentos aversivos em relação a um paciente?” Deveria dizer a ela
sobre a experiência emocional que eu estava vivenciando, sobre o meu
sofrimento, que eu sentia falta da menina que ela costumava ser, e de meu
desejo de evitá-la agora? E sobre o seu comentário depreciativo de que eu
era feio? Tal é o poder da contratransferência, que foi somente muitos anos
depois desse evento, na verdade quando eu escrevi este artigo, que a história do “sapo-príncipe” me ocorreu. Meninas não têm nenhum desejo de
beijarem seres feios, eu percebi tardiamente, e seres feios sentem-se indignos. Esse insight poderia (ou não) ter feito parte do tratamento de uma
forma produtiva, mas não existem motivos para debatê-lo agora.
O meu entendimento daquele período foi o de que a forma como ela
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estava me tratando era sua maneira de comunicar suas específicas experiências afetivas que caracterizaram alguns eventos de sua vida e determinaram como ela os percebeu. Entretanto, antes que nós pudéssemos falar
sobre esses sentimentos e eventos, ela tinha que “fazê-los”, e fazê-los para
mim. Somente mais tarde nós pudemos encontrar palavras, e mesmo assim
somente algumas delas. Essa foi uma análise que a paciente teve que terminar à sua própria maneira. E eu tive que tolerar o conhecimento que, ainda
que concluído, não estava terminado. Eu fiquei tão surpreso quanto ela
quando, na nossa última sessão, encheu seus olhos de lágrimas. Suas maçãs do rosto ficaram molhadas de lágrimas enquanto falávamos sobre dizer
adeus.
Existe outra complicação no trabalho com crianças: o fato de veículos
de expressão afetiva, hostilidade e agressão serem, socialmente, muito
mais permissíveis que sexualidade. Um perigo inato é que isso oferece à
sexualidade perversa uma modalidade alternativa para sua manifestação
não intencional. Lembro-me do trabalho, no começo de minha carreira,
com um menino de seis anos de idade. Em um determinado ponto, ele
demonstrou sua intenção de jogar um pesado caminhão de brinquedo para
o outro lado da sala e eu, reagindo à antecipação da agressão, disse a ele
que não o fizesse por motivos de segurança. Se ele se atrevesse a jogar o
caminhão, eu avisei, teria que lhe passar um sermão. Ele respondeu imediatamente com um movimento que indicava que ele iria atirar, e eu, com
igual prontidão, o impedi de fazê-lo. Repentinamente, o caminhão caiu, e o
menino, com meus braços ao redor dele, sentou-se contente no meu colo.
Eu fiquei espantado porque havia ficado preocupado com o comportamento agressivo e não pude pensar no seu desejo libidinal de estar perto de
mim, assim como ele desejava ficar próximo de seu distante pai.
Está claro que sentimentos agressivos e hostis podem ser ameaçadores e são freqüentemente misturados a sentimentos sexuais inconscientes
por parte da criança. É igualmente verdadeiro que sentimentos sexuais estimulados no adulto por um comportamento infantil são muito mais difíceis de reconhecer; e podem até serem perigosos em nossa sociedade litigi-
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
osa. O que aconteceria se minha paciente púbere, por exemplo, tivesse falado sobre seu desenho de genitálias e sobre nossas conversas com seus
pais? O que eles concluiriam disso? Qual seria a interpretação de um advogado? É assustador até mesmo colocar tais fantasias em palavras. Eu não
tenho respostas para essas situações, mas esses pensamentos certamente
me ocorreram e contribuíram para a dificuldade em permitir que esse material seja desvendado no ritmo do paciente.
Tenho a impressão de que resistência à contratransferência e ao estudo
de seus usos, perigos e contribuições para a análise de crianças é duplamente determinada. Primeiro, a contratransferência trata de sentimentos
desprazerosos e assustadores da mente do analista, sendo estimulados pela
intensidade e primitividade de expressões inconscientes de pacientes infantis e de seus pais. Segundo, a contratransferência envolve o despertar de
impulsos primitivos, hostis e sexuais por parte do analista em relação ao
paciente. Basta dizer que a estimulação de emoções perturbadoras por e
para com nossos pacientes coloca dificuldades especiais para aqueles dentre nós que devotam suas vidas profissionais ao entendimento e à ajuda a
crianças e seus pais.
Dentre os mandamentos psicanalíticos mais duradouros está o de que
“o ego estará onde o id estava”. É um objetivo do tratamento – embora não
necessariamente articulado dessa forma – para pacientes em idade infantil
e adulta a para seus analistas também. Mas as características das reações
contratransferenciais, com suas urgências de sentimentos e ocorrências
inesperadas – seguidamente em ações indesejáveis – interferem com a supremacia do ego tanto nesse momento, bem como um ideal. Nossos pacientes jovens, com seu desenvolvimento caracterizado pela impulsividade
e defesa, também pressionam esse ideal. A psicologia do ego tem estado à
frente do pensamento analítico nos últimos cinqüenta anos. É possível que,
com todas as suas imensas contribuições, tenha também servido como um
colaborador sofisticado e racional para a evitação da contratransferência?
Precisamos novamente voltar nossa atenção para a vida secreta do id para
tornarmo-nos mais conscientes sobre contra o que nossas defesas nos de502 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 503
Peter Blos Jr.
fendem? Eu penso que a análise de crianças contribui com um papel fundamental nesse desenvolvimento, e por causa disso acredito que a psicanálise
de crianças será a primeira a beneficiar-se.
Aprendemos que uma análise pode, na melhor das hipóteses, nos ajudar numa melhor adaptação às dificuldades da vida e às adversidades psíquicas. Dessa forma, usamos nossos sentimentos e capacidades de maneira
plena e encontramos prazer nisto. Análise não remove traumas, desejos e
expressões primitivas do id, nem tampouco remove as raízes de um superego punitivo. Não significa que todos os aspectos infantis tenham sido deixados para trás, mesmo para um adulto que tenha completado sua análise.
Nossa infância permanece conosco em algum lugar do nosso psiquismo. E
é, portanto, uma certeza que, como analistas infantis, continuaremos reenfrentando as mais difíceis e secretas partes de nós mesmos.
Um amigo comentou, após entrar em contato com o rascunho inicial
deste artigo, que “análise de crianças é como velejar”. Você deve resignarse sempre a sair fora do curso e lutar para retomar sua posição apropriada.
Como eu gosto de velejar, considero essa observação muito pertinente. No
trabalho analítico, a contratransferência é tão inevitável e imprevisível
como o vento, e devemos aprender a trabalhar com ele.
Talvez uma das atrações oferecidas por conceitos como identificação
projetiva e continente-conteúdo é que eles definem a intensidade e a maldade de sentimento e fantasia como pertencentes ao paciente. Ao localizar
o sentimento no outro – esses não são meus sentimentos –, fica mais fácil
para o analista tolerar esse estorvo afetivo como parte do trabalho, enquanto que o que estou argumentando é exatamente o contrário: os sentimentos
são realmente meus, e devo manejá-los da forma mais construtiva possível.
Por exemplo, a menina que me causava tanta frustração ao continuar lendo
seu livro e ignorando-me, por exemplo, certamente causou-me uma variedade de sentimentos e fantasias. Mas não acredito que havia uma correspondência direta com a experiência dela no passado. Muitas das minhas
reações pessoais se encaixariam em tal posição passiva e me levaram a
refletir sobre o que significaram para mim na minha experiência de vida.
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
Refletindo sobre contratransferência de uma forma mais aberta, sugeri
que é apropriado trazer a discussão desse processo para as supervisões. O
que, como e por que o analista está experienciando é uma informação valiosa sobre a análise – não somente para ser relegada à formação analítica.
Na verdade, talvez seja necessário examinar, mas com objetivos diferentes, o que o analista vivencia nas duas situações. É fundamental que aqui
sejam trazidos os tópicos de ação, jogo e interação para a discussão na
supervisão e também que possa ser feito um convite à reflexão sobre a
primitividade e intensidade dos sentimentos experienciados por crianças.
Como consideração final, penso que o reconhecimento da
contratransferência pode nos ajudar com nossas dificuldades ao selecionar
candidatos para os nossos programas de formação em análise de crianças.
Um primeiro passo é que nos tornemos conscientes da imensa precaução
inconsciente e autoprotetora que muitas pessoas têm ao se engajarem com
crianças que, por estarem infelizes, opõem-se ao estereótipo cultural da
infância como sendo “uma época dourada e muito comovente”. Um segundo passo será reconhecer diretamente que uma intervenção analítica propriamente dita pode causar uma experiência infantil dolorosa. Milton Senn,
Professor de Pediatria e Diretor do Child Study Center na Yale University,
fez uma pergunta inesperada quando me entrevistou para um treinamento
pediátrico: “Você pode machucar uma criança?”. Acredito ser essa uma
pergunta importante, que também se aplica à nossa área de trabalho e às
pessoas que trabalham nela.
Neste artigo, tentei mostrar que, no campo da psicanálise de crianças e
de adolescentes, a questão da contratransferência tem sido severamente
negligenciada pelos profissionais mais classicamente orientados, mas aclamada com entusiasmo pelos neokleinianos e pelo grupo das relações de
objeto. Tem havido um sentimento crescente, no entanto, de que a
contratransferência é tanto uma parte de toda a análise de crianças como a
transferência que agora acreditamos ser inevitável. Com tão pouca literatura e até mesmo uma percepção de que existe pouco interesse na literatura
existente, eu sugeri a idéia de resistência coletiva. Esse termo inclui o
504 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 505
Peter Blos Jr.
“medo de crianças”, uma reação sociocultural primeiramente notada por
Berta Bornstein, assim como o desconforto causado pela tendência infantil
ao impulso e à atuação. Notei uma variedade de maneiras pelas quais os
adultos se isolam da dor psíquica, sofrimento e confusão vivenciados pelas
crianças. Eu me pergunto se cinqüenta anos de psicologia do ego têm contribuído para a nossa defesa contra a percepção da manifestação da pulsão.
O reconhecimento de manifestações internas do id por analistas tem sido
embotado pela longa história de devoção ao ego?
Também levantei o questionamento de que os conceitos de identificação projetiva e continente-conteúdo, que localizam o sentimento
desprazeroso experienciado pelo analista como pertencente ao outro, também contribuíram para manter o analista fora de contato com seu próprio
inconsciente. Em minha opinião, a contratransferência compreende todos
os sentimentos e fantasias que são provocados pelas crianças em tratamento conosco, e que essas emoções são na verdade nossas. Como tais, elas
serão coloridas por nossas histórias pessoais e psíquicas. O quanto elas
interferem na nossa capacidade de realizar um trabalho bom e relevante vai
além da abrangência deste artigo. Precisamos ter a coragem de reconhecer
nossos sentimentos como sendo nossos, entender o que eles podem nos
dizer sobre nós mesmos, assim como sobre nossos pacientes, e encontrar
maneiras tecnicamente úteis para incluir essas observações no nosso trabalho diário. Necessitamos prestar atenção a eventos inter e intra psíquicos
em circunstâncias nas quais, como eu mencionei, poderemos nos encontrar
em uma situação de perigo.
Ao mencionar essas diversas linhas de pensamento e experiência juntas, espero ter aumentado o interesse e a curiosidade do leitor sobre esse
assunto difuso e evasivo. Escolhi usar o termo contratransferência para
incluir áreas que se sobrepõem entre reações pessoais e neuróticas a estímulos intensos. Sensibilidade ou vulnerabilidade específicas, assim como
defesa são obviamente um reflexo da personalidade incluindo gênero. Tentar separar reação neurótica de contra-reação “normal” e “esperada” irá, eu
temo, ser uma impossibilidade prática, exceto em casos de patologia crôni-
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
ca e severa do analista. Especificamente, nossa área de fenômenos
onipresentes da contratransferência necessita reconhecimento e discussão
em supervisão, em estudos de casos em congressos e na literatura.
Finalizo esta palestra da maneira como eu a iniciei – com um breve
relato clínico ilustrativo. Sou grato à Dra. Nancy Bleiden, uma estudante
de formação em análise de crianças, por permitir-me usar este material.
Lucia era uma menina de quatro anos e meio, encaminhada com diagnóstico de mutismo eletivo. Ela falava somente em casa com membros
da família. Uma avaliação minuciosa mostrou que Lucia se relacionava bem e de forma apropriada com sua nova médica, com exceção de
que ela não falava. No quinto mês de trabalho, os pais insistiram por
fazer um consulta medicamentosa com um psiquiatra infantil. Isso seguiu-se a várias sessões de comportamento incontrolável no consultório, o que não era típico de Lucia. Continuo agora com o relato da Dra.
Bleiden, usando suas próprias palavras:
“Um dia, pela primeira vez, eu percebi a relação entre sua recusa de
falar e seu comportamento rebelde: ela havia pisado numa boneca e a
quebrado. Quando eu mencionei isso, ela balançou sua cabeça querendo dizer ‘não’. Eu disse que às vezes ela realmente queria falar comigo
sobre seus sentimentos de rebeldia e de ruptura e, então, ficava tão
apavorada ao imaginar que eu não iria mais gostar dela [se me falasse
sobre esses sentimentos], que mentia para si mesma e dizia que na
verdade não queria falar comigo. Ela veementemente balançou sua
cabeça e parecia muito chateada pela interpretação. Eu fiquei surpresa
com sua forte reação e me dei conta do quanto eu significava para ela
como uma pessoa importante na sua vida. Questionei que, se ela pensou que eu disse que ela era ‘ruim’, na verdade eu estava tentando
dizer que eu pensei que ela estava sendo má consigo mesma ao não
deixar que falasse comigo quando ela tinha tantas coisas que queria
dizer. Talvez se ela tivesse permitido a si mesma saber o que realmente
queria falar, nós poderíamos aprender juntas sobre todos os seus sentimentos – os tristes, os sentimentos de raiva, e os felizes. Ela abruptamente veio do canto da sala e parou perto de mim olhando para o meu
rosto. Falando pela primeira vez, ela disse seriamente: ‘Estou triste
506 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopse
Neste estudo, três relatos clínicos breves ilustram os sentimentos intensos,
difíceis e complexos suscitados em analistas de crianças por seus pacientes infantis e adolescentes e seus pais. Nota-se que mesmo entre colegas essas reações
emocionais são reconhecidas com relutância, se reconhecidas, e são raramente
descritas na literatura que, conseqüentemente, é escassa nesse assunto. Uma exceção excepcional é o artigo de 1948 de Berta Bornstein, estudado neste trabalho.
Usando o conceito de contratransferência como base, experiências pessoais e clínicas são selecionadas para enfocar a prevalência dessas reações controversas,
evasivas e instáveis da maioria dos tratamentos. Mas o objetivo principal do é
encorajar analistas de crianças a reconhecerem a legitimidade de suas reações
emocionais e, enquanto não desejam encarar a relação direta de seus sentimentos
com os sentimentos inaceitáveis no paciente, encontram maneiras tecnicamente
úteis de integrar esses insights, pois eles podem refletir no seu trabalho diário
com pacientes, pais e supervisionandos.
Summary
The Affective Experience of the Child Analyst and the Concept of
Countertransference
Three clinical vignettes illustrate the strong, difficult and complex feelings
aroused in child analysts by their child and adolescent patients and their parents.
It is noted that even among colleagues, these emotional responses are acknowledged
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 507
Peter Blos Jr.
que a minha vovó morreu’. Eu fiquei bastante chocada e muito comovida, e meus olhos se encheram de lágrimas. Eu não disse nada sobre
isto, porém mais tarde eu me dei conta de que ela ficara olhando para
mim profundamente e de uma forma interrogativa. Eu comentei: ‘Eu
lamento que a sua vovó morreu. Às vezes as pessoas sentem que estão
tão tristes, que elas não têm palavras por estarem tão tristes. Eu fico
contente que você encontrou as palavras e fico contente que você me
deixou saber como você está triste com suas palavras, assim eu posso
começar a pensar com você sobre seus sentimentos tristes’. ‘Era a minha vovó Rae... minha velha vovó’ – ela disse, referindo-se à sua bisavó. Então ela quis brincar com barro. Esse foi o começo de nosso
cookie game”.
A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ANALISTA DE
CRIANÇAS E O CONCEITO DE CONTRATRANSFERÊNCIA
reluctantly, if at all, and rarely reported in the literature – which is consequently
sparse. An outstanding exception is Berta Bornstein’s 1948 paper which is reviewed.
Using the concept of countertransference as a touchstone, personal and clinical
experiences are culled to draw attention to the prevalence of these controversial,
elusive and unsettling reactions in virtually every treatment. But the lecture’s main
objective is to encourage child analysts to recognize the legitimacy of their
emotional responses and, while not seeking one to one correspondence with
unacceptable feelings in the patient, find technically useful ways to integrate such
insights as may result into their daily work with patients, parents, and supervisees.
Sinopsis
La Experiencia Emocional del Analista de Niños y el Concepto de
Contratransferencia
En este estudio, tres relatos clínicos breves ilustran los sentimientos intensos, difíciles y complejos suscitados en analistas de niños por sus pacientes
infantiles y adolescentes y sus padres. Se nota que incluso entre colegas esas
reacciones emocionales son reconocidas con resistencia, si reconocidas, y son
raramente descritas en la literatura que, consecuentemente, es escasa en ese asunto.
Una excepción excepcional es el artículo de 1948 de Berta Bornstein, estudiado
en este trabajo. Usando el concepto de contratransferencia como base, experiencias
personales y clínicas son seleccionadas para enfocar el prevalecimiento de esas
reacciones controversas, evasivas e inestables de la mayoría de los tratamientos.
Pero el objetivo principal es hacer que los analistas de niños tengan coraje de
reconocer la legitimidad de sus reacciones emocionales y, mientras no desean
enfrentar la relación directa de sus sentimientos con los sentimientos inaceptables
en el paciente, encuentran maneras técnicamente útiles de integrar esos insights,
pues ellos pueden reflejan en su trabajo diario con pacientes, padres y supervisionandos.
Palavras-chave
Análise de crianças; Contratransferência; Resistência do analista; Transferência.
Key-words
Child analysis; Countertransference; Analyst’s resistance; Transference.
508 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Análisis de niños; Contratransferencia; Resistencia del analista; Transferencia.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 509
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Palestra da Marianne Kris Lecture, originalmente intitulada “Countertransference:
Problems and Issues in the Analysis of Children”, apresentada em 28 de março de
1999, na reunião anual da Association for Child Psychoanalysts em Seattle, WA. Foi
posteriormente apresentada para a Michigan Psychoanalytic Society, para a Canadian
Association of Psychoanalytic Child Therapists e para a Houston-Galveston
Psychoanalytic Society. Publicado sob o título: Blos Jr., P. In the lion’s mouth: the
affective experience of the child analyst and the concept of countertransference.
Child Analysis: Clinical, Theoretical and Applied, v.12, p.37-59, 2001.
Este artigo foi traduzido e publicado nesta revista com a permissão do autor e do
periódico onde foi publicado em sua versão original em língua inglesa.
Tradução: Denise Maria Brites Garcia
Revisão da tradução: Silvia Stifelman Katz
Dr. Peter Blos Jr.
111 South Fourth Ave.
Ann Arbor, MI 48104 – USA
Fone: 1-734-994-5110
Fax: 1-734-769-2101
E-mail: [email protected]
510 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Conferência na SBPdePA
Um personagem atual
Sonia Abadi
Psicanalista. Membro Titular
e Didata da Associação
Psicanalítica Argentina.
Impecavelmente vestido, roupa de griffe, maleta de couro em
uma mão, o jornal de economia na
outra. A primeira entrevista foi
marcada por sua secretária. Não
sabe por que procura, foi encaminhado pelo médico clínico, acredita
que por essas duas vezes que começou com taquicardia e tonturas enquanto dirigia na estrada de volta
para casa. Foi feito o diagnóstico de
ataque de pânico e foi medicado.
Parece-lhe que necessita “arrumar algumas coisinhas que não andam bem”. Tenho a impressão de
que acredita estar consultando o
mecânico de carro ou o serviço de
computação. Gastrite de longa data,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 513
Sonia Abadi
A Subjetividade
Ameaçada: um
desafio para a
Psicanálise
A SUBJETIVIDADE AMEAÇADA:
UM DESAFIO PARA A
PSICANÁLISE
alguns picos de hipertensão, pratica esportes, consome bastante álcool. Sua
esposa ameaça abandoná-lo porque descobriu que sai com outras mulheres, e me pergunta o que deve fazer para que ela o perdoe.
Na segunda entrevista me conta sobre sua vida sexual. Sai do escritório toda tarde e necessita chamar uma mulher da longa lista que contém sua
agenda. Quando não consegue localizar alguma “amiga”, recorre a uma
prostituta. Encontram-se e vão a um motel. Só assim pode voltar para sua
casa, e isto todos os dias de trabalho.
Não está disposto a vir tratar-se mais de duas vezes na semana e, ainda
que ele possa interromper seu trabalho na metade do dia, decido dar-lhe os
horários do final de tarde. Digo-lhe entre brincadeira e seriedade: “Seguramente vai aliviá-lo saber que tem uma mulher garantida pelo menos dois
dias por semana”. Depois de um tempo de análise me confessará que é um
ejaculador precoce e que mantém uma relação sexual de “dois minutos e
meio: logo adormece por duas horas – como um bebê”. Me pergunto se terá
de pagar o pedágio de uma pseudogenitalidade para ter direito de revelar
seus aspectos regressivos; se a atividade sexual compulsiva é um recurso
quase auto-erótico, narcisista, ante vivências de desamparo e solidão.
Tem poucas lembranças, não sonha à noite, tampouco fantasia durante
o dia. Não fico com dúvidas de que a atividade sexual compulsiva, o consumo de álcool, a necessidade de exibir um automóvel importado ou um
relógio novo respondem a certa precariedade de seu mundo interno e a
alguma pobreza em sua vida cultural. Demorei um pouco mais para dar-me
conta de que as partidas de tênis, o carnê para freqüência à ópera são só
troféus sociais imitativos e estereotipados em uma busca de um querer ser,
ou parecer, um personagem padronizado. Quando me conta de seu laboratório de fotografia, me entusiasmo acreditando encontrar uma atividade em
que o imagino criativo e espontâneo, e em pouco tempo descubro que ele
copiou de seu cunhado, quem é um excelente fotógrafo, porque acreditou
que seria bom ter um hobby. Comprou as melhores câmaras, mas se queixa
de que não lhe ocorre nada original para fotografar.
Seu discurso é formal, recheado de frases feitas. Parecia que havia
514 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 515
Sonia Abadi
treinado para ter um tema de conversação. A idéia de treinamento aparece
com freqüência como o modo pelo qual se prepara para enfrentar situações
que lhe produzam ansiedade. Tem dois cachorros treinados, entre outras
coisas, para acompanhá-lo quando corre pelas manhãs. Com o tempo, saberei que tem um filho adicto com quem não pode falar. Nas reuniões sociais é conversador e divertido, ainda que reconheça aborrecer-se se não
bebe. Na intimidade não sabe de que falar.
Parecia que, ao não poder improvisar e assim aprender com a experiência, tenta decorar o “manual de instruções”. Quando seu método fracassa, decide que a solução é buscar mais opções para poder ter resposta a
todos os estímulos possíveis. Assim foi construindo um extenso mostruário de atitudes e frases pré-fabricadas para todas as ocasiões. O sentimento
de realidade é diluído devido a criação fantasiosa de estar atuando.
No tratamento, como na vida, se esmera para superar-se e não entende
por que não o consegue. O vínculo com os outros é bidimensional, como
em um plano, como se copiasse um personagem de cinema. As identificações são visuais e parciais, com grande distância do objeto. Pode ver e
mostrar-se, mas poucas vezes estar ou sentir.
Anuncia-me de uma sessão para outra: “Agora já entendi como tenho
de fazer isso, já mudei”. Pede instruções e receitas, pergunta se não existe
um livro que lhe diga o que se deva fazer.
A rigidez nas adaptações, a relação predominante com o mundo externo em detrimento do mundo interno, a dificuldade para fantasiar, a tendência à ação, a escassa angústia com um transtorno difuso do pensamento
simbólico me falam de uma personalidade como se, sobreadaptada, com
um transtorno narcisista ou falso self.
Sabemos que esse tipo de paciente sabe recorrer ao “poder da mente”,
às “técnicas de autoprogramação”, ao “controle mental” ou a alguma outra
técnica que lhes permita mais controle sobre seu mundo interno, sobre os
outros e sobre a realidade.
Como último recurso, alguns deles chegam a nossos consultórios referindo um mal-estar indefinido. Com muita freqüência foram encaminha-
A SUBJETIVIDADE AMEAÇADA:
UM DESAFIO PARA A
PSICANÁLISE
dos por seu clínico ou especialista devido a transtornos somáticos. Mas
também nos chegam desesperados e confusos como pais de um adolescente adicto ou de um menino com transtorno de conduta, algumas vezes ante
a enfermidade depressiva de seu cônjuge, o divórcio ou uma falência econômica. Nem sempre permanecem.
Atualmente nos preocupam cada vez mais esses transtornos, nossa
demanda clínica de cada dia. Mas, além disso: se bem parece evidente que
a sociedade atual facilita o aparecimento de certas patologias, não se poderia dizer também que foi a psicanálise que reconheceu “certa anormalidade” em personalidades aparentemente normais, mas com graus variáveis
de carências emocionais ou transtornos de caráter?
Nesses casos, trata-se de pacientes com transtornos de personalidade
cuja particularidade reside em estarem em sintonia com alguns ideais da
civilização atual. Pensei chamá-los “sóciosintônicos”.
Supostamente, essas características tampouco são consideradas sintomáticas pelo paciente, exceto por algumas dificuldades colaterais. Geralmente dizem respeito a traços valorizados e que não pretende modificar:
capacidade para tomar decisões rápidas, orgulho por poder conter as emoções, adição ao trabalho, satisfação por realizar inúmeras atividades simultâneas, supervalorização da autonomia e, ainda, da habilidade para transgredir as normas e leis. Alguns são quadros clássicos nos quais foram reforçados aspectos socialmente valorizados, outros são conhecidos desde
sempre como patologias sociais, outros ainda requerem descrições mais
originais.
Nessa categoria podemos incluir os hipomaníacos, com seus aspectos
exibicionistas, pseudo-exitosos e sua euforia; os psicopatas, com sua necessidade de controle sobre o mundo social; as personalidades de ação,
com sua dificuldade para fantasiar; os adictos, com sua pulsão peremptória
e sua dependência do objeto; as formas socialmente valorizadas da fobia,
quer dizer, suas defesas e condutas contrafóbicas; também certos
borderline, em quem a estrutura deficitária se encontra recoberta por adaptações estereotipadas, mas socialmente aceitas. Sujeitos dissociados de sua
516 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
O kit modelo para armar
No início da vida psíquica, a imagem, a palavra, a presença viva da
mãe, os outros, o entorno organizam a construção da subjetividade em uma
estrutura que articulará o corpo, os afetos e o pensamento.
As experiências corporais e emocionais, amparadas pelo suporte ambiental, se traduzem em vivências que começam a ter representação psíquica. Assim se origina a constituição de um Eu que percebe seu próprio existir, representa-o e lhe dá sentido, registrando-se como protagonista de uma
história com continuidade no tempo. As novas experiências se agregam a
esse núcleo originário e original, gerando a noção de que tudo que experimenta, da ordem do prazer ou do desprazer, incluindo o doloroso, pertence-lhe e forma uma unidade.
Gradualmente o self se torna coeso e se integra, não precisando cindir
nem renegar o percebido nem o experimentado. A integração se realiza
entre corpo, afeto e pensamento. Esses três níveis formam uma trama,
constituindo o tecido psíquico que será capaz de conter e absorver todas as
1. A autora utiliza esse termo para descrever um tipo de patologia (Patologia da marginalidade)
que define da seguinte maneira: “Quando a estrutura social faz uma exigência de adaptação ao
sistema muito intensa, as opções para o sujeito são a renúncia da subjetividade para sobreadaptarse ou a defesa de sua subjetividade às custas de ficar marginalizado ao sistema”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 517
Sonia Abadi
realidade psíquica e de suas emoções, que às vezes reaparecem com violência incontrolável.
Novas patologias relacionadas a valores de nossa civilização? Seria
arriscado afirmá-lo, mas as coincidências são muitas.
O ritmo de vida, os ideais de rendimento dos últimos anos afetaram a
vida individual e familiar com resultados sintomáticos evidentes. A necessidade de adaptação a um meio cada vez mais exigente tem polarizado
sintomatologias em direção à sobreadaptação ou à marginalidade1. Num
extremo, os bem-sucedidos com certa precariedade de sua vida afetiva; no
outro, os transtornos de aprendizagem, os fracassos no trabalho, as condutas transgressoras.
A SUBJETIVIDADE AMEAÇADA:
UM DESAFIO PARA A
PSICANÁLISE
novas experiências ao longo da vida.
Em termos gerais, o self é aquilo que conservou sua originalidade e
sua potencialidade de mudança e crescimento através da experiência, da
aprendizagem, das novas identificações. O transtorno de caráter é aquele
outro aspecto que permaneceu precocemente consolidado, destinado somente à função protetora e defensiva e, de algum modo, cindido, cristalizado e inerte.
No lugar do desenvolvimento da pessoa através da experiência e da
absorção da cultura, vai se “armando” um modelo feito de peças preexistentes, espécie de colagem, patchwork, ou meccano2. Esse modelo apresenta ao longo da vida uma pseudo-subjetividade que, no final, tem pouco
de original e cai na vala comum das convenções e estereótipos.
Na mulher, o modelo da boneca Olímpia, do conto O homem da areia,
de Hoffman, tem uma nova versão nas chamadas Barbies. Nessa linha se
encontram, também, a anorexia e, em geral, os transtornos de conduta alimentar, o body building compulsivo, as máscaras e disfarces representados
por um excesso na combinação física e no vestuário, que às vezes toca os
limites do teatral. A decoração quase cenográfica da moradia em detrimento do conforto. Tudo isso acompanhado de uma impostação das atitudes
corporais e gestuais, desaparecendo a espontaneidade e a naturalidade. Nos
casos extremos, nos encontramos frente a versões caricaturescas.
No homem, além de uma imagem corporal, vemos, também, uma
superatuação de atitudes pseudomasculinas: voz forte e autoritária, gestos
empolados ou discursos que podem variar desde o superficialmente culto
ou intelectual até uma exacerbada e teatral grosseria. Com o acréscimo da
necessidade de exibir símbolos de poder e, inclusive, da necessidade de
mostrar-se acompanhado de belas mulheres, que têm aqui o sentido de um
troféu para sua grandiosa virilidade.
Observamos assim um déficit na mentalização dos impulsos, o que
2. Termo utilizado pela autora para referir-se à situação na qual o indivíduo faz uma soma de
aprendizagens, conhecimentos, mas apenas como uma referência de tudo, havendo uma incorporação das identificações sem metabolização.
518 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 519
Sonia Abadi
gera uma falta de espaço intrapsíquico, substituído pela ação que, às vezes,
toma a forma de consumo compulsivo. Produz-se, dessa forma, uma saída
para a descarga direta que impede a elaboração, a seletividade, até a aprendizagem estética. Isso se observa com dramática freqüência naquelas pessoas cujos recursos econômicos e de poder superam amplamente seus recursos egóicos. O externo, a imagem, opera, assim, como elemento de
prótese para compensar o déficit e a pobreza da estrutura psíquica.
Nesses casos nos encontramos também com uma sexualidade mais
ligada às imagens que às sensações corporais, mas, também, mais vinculada às sensações epidérmicas que aos sentimentos. Essa sexualidade imaginária se expressa através da excitação do estímulo visual no consumo de
publicações e filmes chamados eróticos, em detrimento do conhecimento
emocional, experimental e da intimidade. Isso leva, às vezes, a atividade
sexual promíscua e a perversões como tentativas de reparação restitutiva
frente à ausência de vínculos emocionais de maior qualidade e integração.
E isso acontece não só com pessoas que não possuem nenhuma ligação
entre si, mas também com casais estáveis, cujos encontros sexuais podem
estar muitas vezes sustentados somente pelas fantasias individuais. O sujeito, superestimulado sensorialmente por um bombardeio de imagens percebidas de fora, não consegue ligá-las nem com seus afetos e fantasias,
nem empaticamente com o outro. Ao não haver mediação, as imagens persistem operando de um modo alucinatório e incitando à descarga somática
direta. Desse modo fracassa o encontro com a pessoa real que divide sua
vida e sua cama.
As tentativas de aliviar a angústia conseqüente à despersonalização
levarão a uma busca sempre ilusória e sempre frustrante que termina em
uma superdose infindável dos recursos estéticos e imaginários. Isso produzirá, em algum momento, uma deterioração da personalidade e da vida de
relação com vivências de vazio e depressão, quando não um colapso mesmo.
Essas pessoas, com todo esse pouco controle, pagam um custo alto
para manter a fachada. Sua violência se manifesta sob a forma de descargas
A SUBJETIVIDADE AMEAÇADA:
UM DESAFIO PARA A
PSICANÁLISE
somáticas, ataques de pânico ou transtornos de conduta: adições, perversões, agressões físicas e verbais, além de que os efeitos sobre seus vínculos
mais próximos podem ser devastadores.
Esses personagens configuram relações de amizade, de casal ou com
os filhos nos quais o outro encontra (ou crê encontrar) seu par, sua alma
gêmea ou seu ideal. A avidez pelas identificações rápidas e imitativas levaos a mimetizarem facilmente tanto os traços como as expectativas do outro. Por sua vez, o esvaziamento da própria subjetividade os faz particularmente aptos a serem objeto de projeções. Assim, cada um vê em si próprio
o que deseja ver, porque está disponível para assumir o papel que o outro
lhe propõe, gerando um efeito ilusório de especularidade ou
complementaridade.
No entanto, a violência aparece rapidamente na relação com o outro
como conseqüência da falta de empatia e da dissociação afetiva. Também
pelas crises de agressividade devidas à irrupção dos afetos cindidos. Como
já dissemos, algumas das seqüelas desses “destroços” afetivos e vitais poderá ser o desencadeante da consulta.
Talvez caberia perguntar-se o que ocorre na cultura da imagem com
aqueles que somam ao seu déficit no mundo interno a total ausência de
recursos materiais para construir uma imagem socialmente valorizada e
exitosa. Quem sabe, poderíamos pensar que a ausência de mentalização
dos impulsos e a dissociação psique-soma nas crianças, adolescentes e
adultos carentes facilitaria uma saída para a descarga na ação, promovendo
condutas impulsivas na linha do consumo de álcool, do roubo, ou da violência em geral?
Um lugar para ser
Aqui se coloca o dilema da analisabilidade do mesmo modo como em
todos os transtornos graves de personalidade, nos quais os mecanismos
predominantes se encontram mais na linha da cisão que na da repressão.
Nesses pacientes a estrutura psíquica carece da plasticidade suficiente para
abarcar a totalidade de suas vivências.
520 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 521
Sonia Abadi
Nesses casos, a função da análise é de inicialmente oferecer um espaço-tempo para acolher o cindido, favorecendo tanto a dissolução das cisões
como a possibilidade de regressão à dependência e a oportunidade de novas integrações menos mutiladoras para o self. Esse enquadre especializado servirá, por sua vez, de modelo concreto e de metáfora para a construção de um self que possa capacitá-lo para a experiência.
Volto ao meu personagem. Tento compreendê-lo empaticamente e sinto que fracasso. Encontro-me com um vazio tão angustiante que, quase
sem me dar conta, começo a revesti-lo de minhas projeções. Atribuo-lhe
sentimentos, fantasias, desejos. Pouco a pouco começo a suspeitar que
aquilo desse personagem que é parecido com uma pessoa é mera cópia sua
ou pura projeção minha.
Sei que esses pacientes vêm “programados” desde sua história e só o
que pedem na análise é que se os “re-programe” melhor.
Não é fácil subtrair-se ao horror do vazio. É inquietante trabalhar com
a ameaça de colapso que se adivinha (ou prediz) por trás da couraça. É duro
suportar a falta de empatia. É difícil conter o impulso de provocar, sacudir,
ou, em outras palavras, lidar com a própria violência contratransferencial.
Quem sabe o mais complexo seja resistir à tentação de re-educar, revestir
ou restaurar.
Destronar o personagem significa encontrar-se com a precariedade e
imaturidade do self indefeso, exposto à regressão e à dependência. Escassos de recursos e experiência, com tudo por aprender. Não fazê-lo significa
limitar o paciente a uma nova e custosa “remodelação decorativa” de si
mesmo.
Para trabalhar com esse tipo de paciente, a estrutura de caráter e os
conhecimentos do analista operam como uma resistência. E mais, considero necessário revisar a técnica clássica ainda no tratamento das neuroses, já
que a experiência nos ensinou que muitas vezes o tratamento de um neurótico se resolve através da instalação e cristalização de uma caracteropatia.
Poderíamos dizer que existe, por acaso, na análise, algo similar ao que em
bacterologia se denomina “troncos resistentes”, quer dizer, formas de re-
A SUBJETIVIDADE AMEAÇADA:
UM DESAFIO PARA A
PSICANÁLISE
sistência das neuroses por um excesso de adaptação ao tratamento, tornando esse ineficaz?
A terapia psicanalítica foi criada para atender à neurose talvez de forma demasiada. O histérico encontra ali um espaço onde desenvolver seu
mise-en-scène frente a um auditório atento. O obsessivo encontra no enquadre o material para satisfazer rituais, na elaboração psíquica a permissão para uma intensa atividade auto-erótica intelectual, e na necessidade de
reflexão um argumento para sustentar a inesgotável dúvida. O fóbico dispõe de um objeto acompanhante e do recurso de não atuar compatível com
suas inibições.
Na clínica, o enriquecimento da técnica permitiria evitar o aparecimento de uma sobreadaptação ao tratamento psicanalítico produzida pela
cronificação dos ganhos secundários; ganhos esses que podem aparecer no
âmbito terapêutico sob a forma de uma persistência de estruturas e atitudes
patológicas aparentemente assintomáticas, com tratamentos prolongados e
grande dependência da análise e do analista.
Para isso, o “ouro puro” da psicanálise precisa aceitar que, para outras
funções ou objetivos, podem fazer falta o cobre, outros metais e, ainda,
certas misturas de metais que lhe forneçam mais força, consistência ou
flexibilidade; um modelo terapêutico dedicado a lidar com patologias variadas e severas em um mundo cada vez mais complexo.
O modelo teórico deverá ser deixado em suspenso, arriscando-se a
navegar à deriva, tendo como única bússola a empatia, receptiva aos leves
sinais de vida que ainda se percebem. Já não se pode esperar encontrar-se
com a conflitiva edípica, nem com as ansiedades classificadas por categorias, nem sequer com os desejos ou fantasias mais ou menos proibidas. O
que se espera não é nem mais nem menos que o inédito, o que nunca foi
dito pelos outros pacientes nem escrito pelos outros analistas, o que o analista nem sequer descobriu em si mesmo: o nascimento de um ser único, a
chegada da subjetividade.
Evidentemente, seria pouco ético tanto respaldar como questionar os
valores de nossos pacientes. Mas seria ingênuo supor que alguns de nossos
522 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopse
A descrição de um personagem que pode aparecer atualmente em nossa consulta serve de pretexto para falar de novos transtornos de caráter e seus sintomas
mais freqüentes. São pacientes que possuem rigidez nas adaptações, relação predominante com o mundo externo em detrimento do mundo interno, dificuldade
para fantasiar, tendência à ação, escassa angústia com um transtorno difuso do
pensamento simbólico, como que sobreadaptado por um transtorno narcisista ou
falso self.
Sabemos que esse tipo de paciente pode recorrer ao “poder da mente”, às
“técnicas de autoprogramação”, ao “controle da mente” ou a alguma outra técnica que lhes prometa mais controle sobre seu mundo interno e melhor controle
sobre os outros e a realidade.
Como último recurso, alguns deles chegam aos nossos consultórios referindo-se um mal-estar indefinido. Com muita freqüência são encaminhados por seu
clínico ou especialista, devido a transtornos somáticos. Mas também nos chegam
desesperados e confusos como pais de um adolescente adito ou de uma criança
com transtornos de conduta; algumas vezes frente à enfermidade depressiva de
seu cônjuge, ou ao divórcio ou à falência econômica. Nem sempre permanecem.
Atualmente, preocupam-nos cada vez mais esses transtornos, nossa demanda clínica de cada dia. Mas, ainda mais: se bem parece evidente que a sociedade
atual facilita o aparecimento de certas patologias, não se poderia dizer também
que foi a psicanálise quem reconheceu “certa anormalidade” em personalidades
aparentemente sadias, mas com graus variáveis de carências emocionais ou transtornos de caráter?
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 523
Sonia Abadi
ideais não transparecem pela simples constituição da profissão que exercemos: nossa tríplice condição de cientistas, intelectuais e artesãos.
Esta tríplice condição se relaciona a três formas do verdadeiro que não
têm a ver com as verdades absolutas nem com outros modos de
dogmatismo. Como cientistas, somos levados à busca do conhecimento.
Como intelectuais, a uma concepção da vida enriquecida pelo pensamento
e pela criação da cultura. Como artesãos, ao compromisso pessoal com
cada sujeito como peça única, na legitimidade da autenticidade.
Formas do verdadeiro que se encontram em uma encruzilhada pelo
compromisso com o humano, tolhido por suas limitações e infinito em suas
potencialidades.
A SUBJETIVIDADE AMEAÇADA:
UM DESAFIO PARA A
PSICANÁLISE
Nesses casos, trata-se de pacientes com transtornos de personalidade cuja
particularidade reside em que estão em sintonia com alguns ideais da civilização
atual. Pensei em denominá-los “sóciosintônicos”.
Talvez essas características tampouco sejam consideradas sintomáticas pelo
paciente, salvo por algumas dificuldades colaterais. Trata-se, em geral, de traços
valorizados e que não pretende modificar: capacidade para tomar decisões rápidas, orgulho por poder conter as emoções, adição ao trabalho, satisfação por realizar uma atividade ilimitada, supervalorização da autonomia e ainda da habilidade para transgredir as normas e leis. Alguns são quadros clássicos nos quais se
reforçaram aspectos socialmente valorizados, outros são conhecidos desde sempre como patologias sociais, outros requerem descrições mais originais.
Sujeitos dissociados de sua realidade psíquica e suas emoções, que às vezes
reaparecem com violência incontrolável.
Novas patologias em relação aos valores de nossa civilização? Seria arriscado afirmar, mas as coincidências são muitas.
Summary
The Threatened Subjectivity: a challenge for the Psychoanalysis
The description of a character that usually appears at our consultations is an
excuse to speak of new character disorders and their symptoms more and more
frequent. They are patients who are rigid to adapt themselves, being their
predominant relation with the outside world at the expenses of the internal world,
the difficulty to fantasize, the trend to act, the little anguish with a diffuse disorder
of the symbolic thought, tell us of a personality over-adapted, with a narcissist
disorder or a false self.
We know that this kind of patients usually appeal to the “power of the mind”,
the “techniques of self-programming”, the “mental control” or some other
techniques that promise more control over their inside world, and a better control
over the others and the reality.
As a last resource, some of them arrive at our offices talking about an indefinite
uneasiness. Very frequently they were sent by their physicians or specialists due
to somatic disorders. But, they also come to us desperate and confused as parents
of an addicted adolescent or of a boy with conduct disorders, and sometimes due
to the depressive disease of their husband/wife, to divorce or to an economic
problem. They not always remain.
At the moment, we are more and more concerned with these disorders, with
our clinical demand. But besides this: although it seems evident that the present
society makes easier the appearance of certain pathologies one could not say that
524 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sinopsis
La Subjetividad Amenazada: un desafío para el Psicoanálisis
La descripción de un personaje que suele aparecer actualmente en nuestra
consulta sirve de pretexto para hablar de los nuevos trastornos caracterológicos y
sus síntomas más frecuentes. Son pacientes cuya rigidez en las adaptaciones, la
relación predominante con el mundo externo a expensas del mundo interno, la
dificultad para fantasear, la tendencia a la acción, la escasa angustia con un trastorno
difuso del pensamiento simbólico, nos hablan de una personalidad como sí,
sobreadaptada, con un trastorno narcisista o falso self.
Sabemos que este tipo de pacientes suele recurrir al “poder de la mente”, las
“técnicas de autoprogramación”, el “control mental” o alguna otra técnica que les
prometa más control sobre su mundo interno, y mejor control sobre los otros y la
realidad.
Como último recurso, algunos de ellos llegan a nuestros consultorios
refiriendo un malestar indefinido. Con gran frecuencia han sido derivados por su
clínico o especialista debido a trastornos somáticos. Pero también nos llegan desesperados y confundidos como padres de un adolescente adicto o de un chico
con trastornos de conducta, algunas veces ante la enfermedad depresiva de su
pareja, el divorcio o una debacle económica. No siempre se quedan.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 525
Sonia Abadi
it has been the psychoanalysis that recognized a “certain abnormality” in apparently
healthy personalities, with variable degrees of emotional deficiencies or character
disorders?
In these cases, they are patients with personality disorders, whose uniqueness
lays on the fact they are tuned with some ideals of the present civilization. I
considered calling them “socio-tuned”.
Of course, these characteristics are not considered symptomatic by the
patients, except for some collateral difficulties. They are valued characteristics
that we do not want to change: capability to make fast decisions, pride to be able
to restrain the emotions, addiction to work, satisfaction to make numerous
simultaneous activities, overvaluation of the autonomy and also of the ability to
transgress the norms and laws. Some are classical pictures, in which the socially
valued aspects have been reinforced, others are known as social pathologies, and
others require more original descriptions.
People dissociated from their psychic reality and their emotions that
sometimes reappear with uncontrollable violence.
New pathologies related to the values of our civilization? It would be
dangerous to affirm it. But the coincidences are many.
A SUBJETIVIDADE AMEAÇADA:
UM DESAFIO PARA A
PSICANÁLISE
En la actualidad, nos preocupan cada vez más estos trastornos, nuestra demanda clínica de cada día. Pero además: si bien parece evidente que la sociedad
actual facilita la aparición de ciertas patologías ¿no se podría decir también que
ha sido el psicoanálisis quien reconoció “cierta anormalidad” en personalidades
aparentemente sanas pero con grados variables de carencias emocionales o
trastornos del carácter?
En estos casos se trata de pacientes con trastornos de personalidad cuya
particularidad reside en que son sintónicos con algunos ideales de la civilización
actual. Pensé en denominarlos “sociosintónicos”.
Por supuesto estas características tampoco son consideradas sintomáticas
por el paciente, salvo por algunas dificultades colaterales. Se trata en general de
rasgos valorados y que no pretende modificar: capacidad para tomar decisiones
rápidas, orgullo por poder contener las emociones, adicción al trabajo, satisfacción
por realizar un sinfín de actividades simultáneas, sobrevaloración de la autonomía
y aún de la habilidad para transgredir las normas y leyes. Algunos son cuadros
clásicos en los cuales se han reforzado aspectos socialmente valorados, otros son
conocidos desde siempre como patologías sociales, otros requieren descripciones
más originales.
Sujetos disociados de su realidad psíquica y sus emociones, que a veces
reaparecen con violencia incontrolable.
¿Nuevas patologías en relación con los valores de nuestra civilización? Sería
arriesgado afirmarlo. Pero las coincidencias son muchas.
Palabras-chave
Subjetividade; Sobreadaptação; Personalidade narcisista.
Key-words
Subjectivity; Pseudo-adaptation; Narcissistic personality.
Palabras-llave
Subjetividad; Sobreadaptacion; Personalidad narcisista.
Referências
ABADI, S.; ANTAR, D.; BUSTAMANTE, A.; CARPOSSI, J.; ESCAPA, L.;
GREFFIER, C.; LONGARELLA, H.; O’DONNELL, P.; SZLACK, M.; REVERE,
N. Una vida no basta, normalidad y patología de la transicionalidad.
526 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Conferência
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Conferência realizada na SBPdePA em 29 de agosto de 2003.
Tradução e revisão: Augusta G. Heller e Heloisa Helena Poester Fetter
Dra. Sonia Abadi
Parera 62, 7° ”21”,
1014 Buenos Aires – Argentina
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 527
Sonia Abadi
______. Transiciones: el modelo terapéutico de Winnicott. Buenos Aires:
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Diálogos Psicanalíticos
Fernando Urribarri
Psicólogo (UBA). Discípulo de
Cornelius Castoriadis (Ecole
d’Hautes Etudes en Sciences
Sociales de París). Psicanalista
(APA). Fundador e coordenador
do Espaço André Green (APA).
Membro do Grupo Internacional
de Investigação (IPA) sobre
“Contratransferência com
pacientes limítrofes” dirigido
por Green.
Leonardo Goijman
Membro Titular e Didata da
Associação Psicanalítica
Argentina (APA).
Osvaldo Saidon
Psicanalista, Psicoterapeuta de
Grupos e Especialista em Análise
Institucional.
César Merea
Membro Titular e Didata da
Associação Psicanalítica
Argentina (APA).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 531
Buscando ampliar em cada nova
edição o intercâmbio com colegas nacionais e internacionais
assim como oferecer aos nossos
leitores o que há de mais atual no
desenvolvimento do pensamento
psicanalítico, este Diálogo trata
de uma discussão que a cada dia
se amplia, inclusive na própria
IPA. Pela sua importância, contamos com Fernando Urribarri
que escreveu sua introdução, especialmente para a Revista Psicanálise, da SBPdePA. A ele nosso agradecimento.
Comissão editorial
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
Encruzilhadas e
Horizontes da
Psicanálise
Contemporânea.
Psicanálise e/ou
Psicoterapia?
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
Encruzilhadas e Horizontes da Psicanálise
Contemporânea.
Por Fernando Urribarri
A idéia que me levou a organizar este número de Zona Erógena no
final de 2001 foi abordar as transformações clínicas no campo psicanalítico contemporâneo. Em primeiro lugar para explicitá-las, cartografá-las,
torná-las manifestas e analisáveis. Em segundo lugar, para poder abrir um
verdadeiro debate sobre as conseqüências teóricas profundas que as mesmas implicam.
Nesse contexto, a questão da relação psicanálise-psicoterapia é uma
encruzilhada chave. Nela convergem problemas de técnica, discussões
psicopatológicas, lutas político-institucionais (que vão desde o crescente
debate acerca da necessidade de incluir a formação em psicoterapia psicanalítica nos Institutos da IPA, até o conflitante problema do estatuto social
da psicanálise em relação com os seguros sociais de saúde).
Mas, essas questões fundamentais devem ser reconhecidas para serem re-organizadas, para não eclipsar o núcleo mais sútil e fundamental do
tema: o das mudanças na praxis psicanalítica. Uma mudança que envolve a
passagem desde a neurose como patologia de referência clássica aos estados fronteiriços como referência contemporânea. Uma mudança que desafia o método e o enquadre analítico. Uma mudança que implica modificações no trabalho psíquico do analista: desde sua capacidade para
“sobreviver”(Winnicott) a situações transferenciais e contratransferenciais
limites, até uma maior disposição criativa e imaginativa para resolver as
falhas mais ou menos graves de simbolização.
Este último é o tema do primeiro grupo internacional de investigação
clínica “qualitativa” criado em 2000 por André Green e financiado pela
IPA. Minha participação como membro do mesmo convenceu-me, ao dividir experiências com sete colegas da França, Inglaterra, Argentina e Estados Unidos, inclusive Otto Kernberg, da importância e vigência do debate
psicanálise-psicoterapia. Mas também o risco de que seu enorme potencial
532 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Psicanálise e Psicoterapia Analítica:
uma Temática Deste e de Todos os Tempos
Leonardo Goijman
A partir de que desencadeantes se propõe, neste momento, a confrontação entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica? Em que diferem as considerações que a motivam das que se esboçaram em outras épocas, ou será
que existe um denominador comum recorrente nesta necessidade de esclarecimento?
É evidente que existem questionamentos comuns entre os analistas de
todas as latitudes acerca desta tarefa, uma vez que a prática da psicanálise
se vê solicitada por idênticas exigências nos âmbitos em que se impôs. Por
um lado, a ampliação do campo de aplicação da psicanálise continuou sem
se deter desde o aparecimento de seu modelo, representado pelo enquadre
e pela técnica empregados no tratamento das neuroses de transferência.
Nessa medida, novos recursos técnicos se desenvolveram, levando, possivelmente, aqueles que divergem dessas concepções a propor, pela enésima
vez, a base comum de nossa ciência. Por outro lado, as modificações econômicas que acompanham a globalização, a grande concorrência das que
se atribuíram o nome de “terapias alternativas”, e a pressão das instituições
seguradoras de saúde para reduzir custos redundam em um crescente constrangimento nas condições de trabalho do analista, o que leva a temer-se
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 533
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
renovador se veja reduzido a opções ideológicas pré-estabelecidas.
Para evitar esses riscos, e abrir um verdadeiro debate científico multifocal e pluralista, esses três artigos foram selecionados por sua riqueza e
sua diversidade. Creio que o seu mérito principal é o de uma
heterogeneidade produtiva que o leva a abrir este tema sem sectarismos
nem dogmatismos, a meu juízo, a única maneira de afrontar as encruzilhadas atuais e transformá-las em novos horizontes para a psicanálise contemporânea, e o melhor modo de construir o futuro da psicanálise.
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
que a progressiva restrição das possibilidades econômicas dos pacientes
coloque em perigo a psicanálise.
Além disso, certas questões não obtêm respostas concludentes, e isso,
talvez, não seja pernicioso. Para alguns, o tema volta a ser a confrontação
do ouro com o cobre, agora não mais da sugestão, mas sim da psicoterapia.
Para outros, em uma postura extrema, não haveria uma só psicanálise senão que o tratamento padrão seria só um de seus múltiplos enquadres técnicos (BRUSSET, 1991). É frente a esses novos enquadres, recursos técnicos
e modos de condução das terapias que surgem, hoje, inquietações a respeito da “pureza” da psicanálise; situações que, ao longo desses cem anos,
motivaram com freqüência a conhecida expressão: “isso não é análise”,
referindo-se, por exemplo, à de crianças e psicóticos. Outros fazem a mesma recriminação aos que realizam tratamentos com enquadres diferentes
do tratamento padrão de quatro ou cinco sessões, no divã e sem um limite
fixo de tempo, etc.
Quando se produziu a ampliação das aplicações da análise aos campos
das psicoses e das perturbações das crianças, incorporou-se,
concomitantemente, a série de recursos técnicos que essas análises requerem. Assim ocorreu com a introdução do jogo, recurso que veio ocupar, em
boa medida, o lugar da associação livre verbal, utilizada com os adultos
neuróticos. Da mesma maneira havia trabalhado Freud quando descobriu
que a associação livre podia muito bem preencher o vazio deixado pelo
abandono da técnica hipnótica, na indagação do material inconsciente. E,
com relação a certos pacientes psicóticos e muitos fronteiriços, o emprego
de modelos de continência, tendências organizadoras do ambiente ou de
cuidado e uma aproximação compreensiva, mais que interpretante – em
uma tentativa imprescindível de favorecer o controle da ansiedade que
transborda –, permitiram o tempo de espera necessário para que esses pacientes pudessem começar a investir com êxito em seus sistemas motores e
lingüísticos, e voltar a conectar-se com o mundo externo.
Há quinze anos abordei, em um trabalho publicado pela Revista de
Psicoanálisis, a controvérsia entre a prática das duas técnicas. Tentei esta534 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 535
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
belecer diferenças, tendo em conta elementos técnicos, parâmetros numéricos predominantes nos enquadres, objetivos implícitos e explícitos. Os
parâmetros numéricos referiam-se à freqüência semanal de sessões e à duração de cada uma delas e do tratamento em sua totalidade. Quanto aos
objetivos, importava distinguir se o tratamento visava obter uma modificação sintomática, um apoio egóico, como era esperado da psicoterapia, ou
uma modificação da estrutura do psiquismo, mais própria, estritamente, da
psicanálise.
Também eram importantes os instrumentos empregados, tais como a
interpretação, a construção e o assinalamento, mais comuns na psicanálise,
ou indicações orientadoras, recomendações destinadas a criar um âmbito
protetor, utilizáveis em pacientes mais desorganizados ou em crianças ou
adolescentes nas psicoterapias.
Postulei, então, que se considerassem ambos procedimentos complementares e que no tratamento de um mesmo paciente pudessem ser assinalados períodos em que se recorresse, inevitavelmente, a procedimentos
aparentemente mais superficiais, e outros em que fosse possível utilizar
todo o arsenal da psicanálise. Propus designar ao primeiro deles “momento
psicoterapêutico” e, ao segundo, “momento psicanalítico”. No entanto, o
primeiro era imprescindível para que se pudesse chegar ao segundo. Este, o
da psicanálise em sua plenitude, se desenvolvia predominantemente em
uma situação em que, à mercê do livre emprego desses recursos, um analista localizava-se plenamente em um campo que facilitava a associação livre, a emergência de lembranças inéditas, o estabelecimento da transferência e que possibilitava um cenário no qual, com a atuação das inevitáveis
repetições, como expressões de traumas ocorridos em épocas precoces,
fosse possível sua elaboração.
Sigo mantendo, basicamente, minha postura de quase quinze anos,
ainda que durante esse período tenham surgido com maior clareza elementos que são importantíssimos considerar. Nas últimas décadas, o trabalho
do analista experimentou mudanças relevantes. Assim como a economia
produziu um crescimento dos grandes supermercados e centros de com-
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
pras em detrimento dos pequenos comerciantes e industriais, as grandes
instituições de seguro e assistência de saúde produziram uma redução das
margens em que se desenvolvem privadamente os profissionais. Há uma
restrição generalizada da disponibilidade econômica da população que
consulta. Pesam sobre os analistas as exigências de um mundo em que
progressivamente a riqueza vai desaparecendo da maioria e se concentrando em uma minoria, e em que os tempos se aceleram, tanto na comunicação como na produção e nas expectativas de resultados.
De maneira crescente, a saúde está sob os cuidados de empresas cada
vez mais poderosas, seja atuando como seguradoras nos casos mais favoráveis, ou como centros de atendimento, o que impossibilita a livre escolha
do profissional, transformando os conveniados aos seus programas em público cativo, que, inevitavelmente, devem recorrer a profissionais designados e, em grande medida, também a práticas psicoterapêuticas cuja orientação científica é imposta pela direção desses centros. Uma pergunta generalizada é, então: “Quem pode tratar meus problemas dentro da lista (ou
direção) de minha instituição de seguro médico?”. A consulta ao analista,
em muitos casos, passa a ser uma segunda opção, uma vez esgotada a antes
mencionada.
Isso induz o psicanalista a ter de estar atento às limitações trazidas
pelo paciente, que, invocando sua economia massacrada, pode apresentarse à consulta com a expectativa de uma forma de tratamento que resultaria
inválida ao trabalho do analista. Ainda que sempre tenhamos convivido
com as variáveis de tempo e dinheiro em nosso enquadre, o certo é que o
responsável por estabelecê-las é o analista, que deve estar atento para sobreviver a esse momento de instabilidade sem tornar-se, por isso, inflexível (M. Baranger).
É-nos imposta a exigência maior de detectar o ponto desde o qual
fortalecer a transferência, elemento fundamental para poder efetuar uma
intervenção de mudança ante uma pessoa que requer respostas desde o começo de seu encontro analítico.
Esse ponto de vista coincide com a observação de Robert Wallerstein
536 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 537
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
(1998), que assinalou com clareza que a restrição econômica geral desta
época e a que é resultante da concorrência com as terapias alternativas determinam que os pacientes disponham de menos dinheiro em seus bolsos
para uma psicanálise. Dito de passagem, essas terapias devem seu nome de
“alternativas” à circunstância de pretender uma outra via com relação à
psicoterapia que é reconhecida como básica e que é, sem lugar a dúvidas, a
psicanálise. E a psicanálise não pode ser estática, um campo fechado: “a
psicanálise não é filha da especulação, senão o resultado da experiência; e,
por esta razão, como todo novo produto da ciência, está inconcluso”
(FREUD, 1913).
A psicanálise vai interatuando com seu tempo. Nessa medida, vai sendo influenciada pelas condições externas e também influi sobre elas. Por
sua vez, a cultura recebeu a influência benéfica da psicanálise não só na
psicologia e na concepção de uma visão psicossomática dos padecimentos
do indivíduo, que influi, sem dúvida, na medicina em geral e de modo
especial na psiquiatria e na pediatria, mas também nas artes, especialmente
na literatura e no cinema.
A má utilização da psicoterapia analítica preocupa tanto quanto a deficiente utilização da psicanálise; existe subjacente o temor de que a psicanálise se dilua, e a psicoterapia seja difundida como se fosse psicanálise.
Sérios estudos sobre o tema têm concluído que sempre houve
inquestionáveis psicanálises, e outras que não foram eficazes, fossem com
intensa ou menor freqüência, e, por outro lado, também boas e más
psicoterapias, com muita ou pouca freqüência de sessões. “Não se pode
arrazoar sobre os casos extremos, mas sim sobre as proporções e as freqüências: existem análises face a face, assim como psicoterapias em posição deitada. A análise ideal existe, mas é exceção: o papel do analista está
quase reduzido ao de guardião do enquadre ou ao de suporte da transferência, porque o paciente faz o trabalho sozinho”, diz Bernard Brusset (1991).
A afirmação de que há psicoterapias face a face e análise em posição deitada é de validade universal e, possivelmente, seria subscrita por todos os
analistas. Que uma análise ideal existe, mas é excepcional, certamente se-
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
ria discutido por mais de um, mas resulta tranqüilizador, uma vez que alivia a exigência de que devem cumprir-se sempre os parâmetros do tratamento padrão. Que o analista trate de manter-se atento, como um guardião
da manutenção do enquadre, e se esmere para ser fiel à sua missão de servir
de suporte da transferência são duas excelentes recomendações.
Por sua parte, Edward Weinschel (1992) afirma: “Inclusive nas associações psicanalíticas norte-americanas e internacionais existem analistas
e sociedades que tomaram a posição de que uma análise satisfatória pode
ser conduzida com menos de 4 ou 5 sessões semanais e durante um período
relativamente breve. Isto não significa dizer que esses conceitos e técnica
não são componentes cruciais de todo trabalho analítico e de toda análise”.
Esse mesmo autor também considera que a apreciação dos tratamentos se
tornou mais “modesta”: em lugar de falar de curas analíticas, fala-se de
mudanças ou novas formações de compromisso; em lugar de “eliminar” o
conflito patológico, contenta-se somente em falar de sua modificação; já
não se espera mais uma análise completa ou resolver completamente as
transferências. E acrescenta: “já não sentimos que podemos ‘vencer’ as
resistências e pensamos mais em analisá-las; já não vemos mais o insight
como o sine qua non da análise e nos dedicamos mais a aumentar a capacidade de autoquestionamento e auto-observação; o sonho não é mais a via
regia para o conhecimento das atividades inconscientes da mente e resgate
das lembranças reprimidas per se, não é nem uma absoluta garantia de uma
análise exitosa nem sequer seu principal objetivo”.
Esse enfoque das expectativas da análise, mais que “modesto”, é benéfico, de maneira geral, e também mais realista. A substituição dos objetivos analíticos por outros mais viáveis não só não diminui a importância
do trabalho, mas, ao contrário, respeita os obstáculos. Sempre foi próprio
de nossa prática considerá-los, e não pretender sorteá-los com um subterfúgio ou dominá-los onipotentemente. Não obstante, parece-me necessário
manter certas metas como sinais orientadores da tarefa: a tomada de consciência (insight), o sonho como via regia, o ato falho e o sintoma neurótico,
assim como certas formas de resistência, e ainda as atuações, creio que
538 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 539
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
seguem sendo nossos suportes à realidade do inconsciente. Sem uma concepção da tarefa baseada nesses recursos é provável que o trabalho, em seu
conjunto, corra perigo, tanto tratando-se de psicoterapia como de psicanálise.
Transfere-se, então, a discussão para o processo de formação do analista, ou permanece, afora isso, a necessidade de se avaliar a correta utilização dos recursos, seja quanto a sua oportunidade como em relação a sua
intensidade, ainda quando quem os utilize seja um analista bem formado?
Há, em princípio, um bom ponto de acordo: Não é irrelevante que quem
implemente uma psicoterapia tenha uma boa formação analítica e uma boa
análise pessoal.. Isto é irreversível: não há o mesmo resultado se quem
conduz a terapia é um analista ou não. “Ser um analista” não implica somente ter feito uma boa formação e aprofundado seu auto-conhecimento.
Implica, além disso, ter sempre claro o significado de sua condição e refleti-lo em sua tarefa clínica.
Frente àqueles que se afligem pelo possível desaparecimento da psicanálise, entendemos o que segue: a psicanálise inaugurou um novo campo
de investigação do psiquismo humano, que é o do inconsciente, e isso é um
fato irreversível. Sua descoberta teve uma importância semelhante à descoberta copérnica e marca a diferença, que não será fácil de superar, com as
psicoterapias não-analíticas. A questão não se resolve com revelações
intempestivas acerca de modalidades de conflito constituídas, retiradas de
uma série de prescrições voluntárias. Acredito que as palavras de Freud
(1911) são muito conclusivas e podem constituir o melhor final deste artigo: “O fator patógeno não é este não-saber em si mesmo, senão o fundamento do não-saber em umas resistências interiores que primeiro o geraram e agora o mantêm”.
“Não se deve empreendê-la antes que se cumpram duas condições.
Em primeiro lugar, que o enfermo tenha sido preparado e ele mesmo já
esteja próximo do reprimido por ele; e, em segundo lugar, que seu apego
ao médico (transferência) tenha chegado ao ponto em que o vínculo afetivo
com ele lhe impossibilite uma nova fuga.
Só cumpridas essas condições se torna possível discernir e dominar
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
as resistências que levaram à repressão e ao não-saber. Assim, uma intervenção psicanalítica pressupõe absolutamente um prolongado contato
com o doente, e a tentativa de surpreendê-lo, em sua primeira visita ao
consultório, mediante a brusca comunicação dos segredos que o médico
inferiu, é reprovável tecnicamente, e com freqüência retribuída com a sincera hostilidade do doente sobre o médico, com o que se elimina toda possibilidade de futura influência.
Referências
BARANGER, M. de. Comunicação pessoal.
BRUSSET, B. (1991) L’or et de cuivre: la psychothérapie peut’elle être et rester
psychanalytique? Revue Française de Psychanalyse, v. 40, n. 3, p. 559-579.
FREUD, S. (1910 [1911]). El psicoanálisis silvestre. A.E., v. 11.
______. (1913[1911]). Sobre psicoanálisis. A.E., v. 12.
GOIJMAN, L. (1984) Psicoanálisis y psicoterapia analítica: antinomia o
complementariedad. Revista de Psicoanálisis, v. 41, n. 2/3.
WALLERSTEIN, R.S. (1998). Psicoanálisis: el futuro de una ilusión? Informativo de la Asociación Psicoanalítica Internacional, v. 7, n. 1.
WEINSCHEL E.M. (1992). Therapeutic technique in psychoanalysis and
psychotherapy. J. Amer. Psychoanal. Assn., v. 40, p. 327-347.
Psicanálise, Psicoterapia e Plano de Consistência
Osvaldo Saidon
Há alguns anos, era freqüente que os psicanalistas, ao escreverem sobre as psicoterapias, tratassem de diferenciar-se destas para afirmar a importância de uma teoria consistente e a sustentação do dispositivo analítico
frente ao choque dos pensamentos ilegítimos.
Hoje, em muitos sentidos, a situação inverteu-se, e é freqüente ver os
psicanalistas lembrarem a importância ética dos cuidados e do alívio do
sofrimento para ressaltar a importância da atividade psicoterapêutica. Essa
atitude leva-os, em muitos casos, a oferecer o potencial do pensar psicana540 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 541
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
lítico a serviço do procedimento terapêutico, seja através da ordem verbal,
corporal ou, inclusive, na orientação dos tratamentos farmacológicos.
Em realidade, o objetivo de estabelecer diferenças e hierarquias entre
a psicanálise e a psicoterapia é tão antigo como a existência dessas práticas. O próprio Freud já alertava sobre a existência da psicanálise silvestre e
o risco de que isso levasse a que seus descobrimentos servissem de argumentos a charlatões e oportunistas em um campo tão delicado da existência humana.
A dificuldade em estabelecer as diferenças entre a psicanálise e a
psicoterapia deve-se não só a problemas semânticos e teóricos, senão, fundamentalmente, ao fato de que por trás dessa questão se movem interesses
institucionais e mercadológicos diversos.
Digamos, ante tudo isso, que essa confusão não só afeta os leigos e os
pacientes, mas instala-se nos debates entre os próprios profissionais.
Nos congressos e reuniões psicanalíticas das mais diferentes tendências chamou atenção – nos Estados Gerais da Psicanálise, por exemplo –
um certo revigoramento de atitudes em defesa do chamado “ouro puro da
psicanálise” em relação às psicoterapias de cunho diverso que padeceriam
de vícios variados, como a falta de neutralidade, o apelo a saídas mágicas,
a falta de rigor científico, etc. Essa discussão, que não deixa de ter certo
valor teórico, reativa-se hoje na Europa, nos Estados Unidos, e está chegando ao nosso país pela necessidade de regular a prática psicoterapêutica
por parte dos seguros de saúde.
Aparece quase uma falta de sentido comum nesses debates quando
comprovamos que, em realidade, a maioria dos psicanalistas do planeta
pratica em seu trabalho cotidiano a psicoterapia, ensinando em escolas de
psicoterapia ou em cadeiras que levam esse nome. Está claro que os psicanalistas praticantes realizam o que se chama de psicoterapia psicanalítica,
e nisto se diferenciam de outras escolas psicológicas, como a gestalt, a
sistêmica, a reichiana ou outras que também realizam uma prática
psicoterapêutica que, como a psicanalítica, buscam validar-se em certa tradição científica e universitária.
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
Para colaborar nessa confusão, digamos que, em nosso país como em
outros, a psicanálise está suficientemente incorporada à ciência, à cultura e
à arte, para que, de algum modo, os postulados básicos da disciplina criada
por Freud estejam, como perspectiva presente, em praticamente todas as
práticas psicoterapêuticas.
Por outro lado, em nosso país existe, desde muitas décadas, um processo de institucionalização da prática terapêutica através da formação fundada e conduzida por psicanalistas. Inclusive as chamadas psicoterapias
alternativas – desenvolvidas desde os anos sessenta, e que vão desde experiências místicas até a realização de trabalhos que misturam práticas corporais com o uso de diversas drogas e com terapias através da palavra –, em
muitos casos compensam seus déficits de compreensão do funcionamento
psíquico usando termos e interpretações de estilo psicanalítico. Algumas
vezes, inclusive, temos discutido as diferenças na prática clínica entre os
psicanalistas institucionalizados e aqueles que saíram das instituições psicanalíticas. Diz-se que, definitivamente, não é muito diferente a prática
dos psicanalistas oficiais daqueles que optam por um trabalho mais alternativo. Acabaria se demonstrando, assim, que o alarde que acompanhou as
vicissitudes das rupturas nas instituições psicanalíticas não correspondeu a
uma diferença concreta na própria prática do ato psicanalítico.
Toda essa polêmica entre escolas careceria de sentido, se não estivesse, na realidade, em jogo a necessidade de contemplar um trabalho
terapêutico que atenda com idoneidade o mal-estar, o sofrimento e a mortificação pelo que os pacientes nos procuram.
Essa tem sido, de alguma maneira, a tarefa que deveriam empreender
as instituições psicanalíticas ou universitárias, mas que, no transcurso deste século, impelidas pelas mais diversas conjunturas socioeconômicas e
subjetivas, optaram em muitos casos em limitar-se a fazer uma espécie de
defesa fundamentalista da psicanálise.
G. Deleuze, um renovador não-psicanalista da teoria do inconsciente,
convida-nos a distinguir, nas disciplinas, entre um plano de organização e
um plano de consistência.
542 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 543
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
Na disciplina que aqui nos interessa poderíamos dizer que o plano de
organização é o que se destina a definir uma prática à medida que se adapte
a certos procedimentos ordenados e repetidos. Em nosso caso, tratamentos
prolongados, sessões de 50 minutos várias vezes por semana, manutenção
de certa neutralidade, interpretação estrita da transferência e outras modalidades que definiriam um procedimento correto da psicanálise.
O plano de consistência não se opõe a isso, mas seu interesse centra-se
em outra perspectiva, e se formulam outros tipos de questionamentos.
Trata-se de ver como sermos contemporâneos, hoje, na realização de
uma prática que leve em conta transformações da subjetividade em curso,
como fazer com que a complexidade da teoria se vá construindo para responder às necessidades clínicas que manifesta a singularidade de cada um
dos pacientes e dos grupos nos quais nos cabem intervir. Definitivamente,
tornar consistente a prática e a teoria psicanalíticas, tanto nos tratamentos
individuais como nas psicoterapias e nas intervenções mais diversas, com
grupos, com famílias, com casais e com instituições.
A clínica, nesse ponto, deve fazer uso daquilo que pode para manter a
função de cuidar que dá sentido a essa prática. Por isso é que, talvez, o que
chamamos plano de consistência não dê conta de todo o processo do trabalho clínico, senão de um aspecto, o mais provocador, o que nos dá sentido
para seguir pensando, mas, também, o que nos arrasta para um território
onde devemos nos armar com todos os equipamentos que sejam necessários para dar consistência ao processo e cuidar do paciente e de nós mesmos.
Acredito que é essa perspectiva clínica e de cuidados a que nos faz
insistir no estudo, docência e prática dos conceitos psicanalíticos, apesar
do crescente interesse que novos paradigmas ou novas lógicas nos despertam.
Não se trata de adicionar nossa voz aos que tagarelam sobre a
desatualização do pensamento psicanalítico, anunciando novas técnicas
terapêuticas. Mantemos um saudável pudor frente ao fácil embate que provocam as técnicas terapêuticas noveleiras, demasiado superficiais em suas
perspectivas teóricas, ou excessivamente místicas em seus objetivos
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
terapêuticos. Mas não podemos ocultar nosso tédio ante as afirmações puramente edípicas, familiares ou antropomórficas, que se repetem como
evangelho para dar conta da produção de subjetividade nesta era
massmediática. Os enquadres que utilizamos têm o valor de criar algumas
possibilidades para o trabalho; cada terapeuta tem suas maneiras de atuar,
de falar, de vincular-se com o paciente e seus conteúdos. Somos
maneiristas da maneira que a arte moderna o é no tratamento dos volumes
e da luz. Alberto Moravia, em relação ao maneirismo de Picasso, disse que
este, na arte, é “o que o sincretismo é para a religião e a tecnologia para a
ciência”. Então, a busca de maneiras, de estratégias passageiras, da experimentação, justifica-se hoje porque expressam nossa época sincrética e
tecnológica.
Nesse sentido, a experimentação no trabalho clínico não tem a intenção de promover uma técnica nova ou uma perspectiva de cura diferente.
Ela mesma é a atitude que expressa o modo em que a subjetividade hoje se
produz e a estratégia de desconstrução necessária para possibilitar o advento do inconsciente em sua potencialidade desejante e produtiva. Por isso
que, quando propomos o nome de maneirista para nosso modo de atuar,
estamos nos referindo a uma certa disposição de criar nos dispositivos (sessão analítica, sessão de grupo, grupo operativo ou de reflexão, grupo de
estudo) uma atitude clínica. Entendemos atitude clínica como o modo de
mobilizar um pensamento através das experimentações que vão possibilitando ou exigindo os processos de afetação em curso. A experimentação
que propiciamos ocuparia o lugar que anteriormente estava tão solenemente reservado à interpretação referente a certa teoria única e que se realizava
com certa técnica. Mas essa atitude, esse estilo reflete-se, fundamentalmente, em um modo de pensar e em um estilo que se produz nos encontros.
Portanto, não se trata de realização de jogos de relaxamento ou da
busca hedonista que promovem algumas correntes do potencial humano.
Trata-se de uma estratégia do pensamento, segundo o qual se levarão em
conta não só as lógicas significantes, o curso dos discursos, mas todos os
corpos que concorrem ao campo de intensidade que habita nossas existên544 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
A Psicanálise, a Psicoterapia
César Merea
O antigo debate sobre a psicoterapia e a psicanálise tornou-se atualmente político: trata-se de manter a hegemonia sobre a formação
psicoterapêutica por parte da psicanálise, mas mantendo, ao mesmo tempo,
a psicanálise como algo quimicamente puro, separado da psicoterapia.
Tudo isso frente ao “dilema” dos tributos “sociais” da psicanálise versus
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 545
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
cias. Assim, quando falamos de encontro em lugar de transferência,
estamos nos referindo à possibilidade de facilitar a produção desejante do
inconsciente através dos engendramentos que realiza. Todos temos vivido
esses momentos na relação clínica, nos quais, em algum momento, aparece
o encanto. Esse encanto é o afeto que reflete a riqueza do imaginário, quando este se abre à multiplicidade de sentidos, a sair do próprio deserto para
percorrer outros, gerando combinações e invenções. Acredito que são essas invenções que deveriam incluir-se na possibilidade de um trabalho psicanalítico, proporcionando a ocasião de partir para a experimentação.
Nos processos psicoterapêuticos, no que chamamos plano de consistência, trabalhamos com o inconsciente, mas tratamos de enfatizar sua atividade produtiva, mais que restitutiva, de uma história. Trabalhamos com
o tempo, mas, enquanto podemos, tratamos de deixar-nos arrastar mais por
seus processos de irreversibilidade e auto-organização do que por sua possibilidade de produzir regressões. Atendemos ao tempo da rememoração,
mas percebemos que um novo campo de pensamento se abre quando
estamos habitando a seta do tempo. Os silêncios, o timing, as escanções do
discurso, as passagens ao ato, o tempo das sessões, as interrupções, cada
vez mais tratamos de observá-las como processos de velocidade e lentidão
em um campo de intensidades. Então, o insight algumas vezes é o
surgimento de uma lembrança, mas, outras vezes, é um sentimento de vertigem, de velocidade do pensamento, de encanto ante uma potência que se
está desdobrando, um desejo que encontrou o modo de expressar-se.
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
seu regime profissional privado. Frente a isto, minha tese é conceber que
toda ação terapêutica na qual estejam presentes os pilares básicos da psicanálise É PSICANÁLISE, sob qualquer enquadre metodologicamente razoável. Isto significa abolir o termo psicoterapia psicanalítica. Então, no
máximo poderiam reivindicar o termo psicoterapia, com a correspondente
complementação, aquelas outras teorias que, tendo uma instrumentação
terapêutica, não estivessem baseadas na psicanálise, como as sistêmicas,
cognitivas, etc.
Portanto, se um terapeuta se forma psicanaliticamente e não repudia
essa teoria, toda a sua prática é psicanálise. Winnicott diz assim: “Fui convidado a falar do tratamento psicanalítico e, em compensação, um colega
foi convidado a falar da psicoterapia individual. Confio em que ambos
partiremos do mesmo problema: Como distinguir uma coisa da outra?
Pessoalmente não me vejo em condições de precisar a diferença. Para
mim, a questão é: O terapeuta teve formação analítica ou não? [...] Se
nosso propósito segue sendo verbalizar a consciência nascente em termos
de transferência, estamos fazendo análise; se não, somos analistas no
exercício de qualquer outra técnica que consideremos adequada para a
ocasião. E por que não?” (Sobre esses temas e o que é formação analítica
me aprofundei mais em um artigo do mesmo nome, de 1999.)
Concentrar-me-ei em uma seleção para esse artigo, em uma lista de
temas a revisar para o cotejo dessas atividades.
Enquadre
O enquadre é, para mim, uma função mental; é a maneira de estabelecer um marco na abordagem da organização interna de tempo-espaço subjetivo do paciente e de seu modo de relação com os objetos. E não é – ao
inverso – aquilo com o que pode ser confundido: uma organização de tempo-espaço da realidade externa em que deve fazer-se inserir a realidade
subjetiva. Da função formal do enquadre, no máximo admitirei a metáfora
de que é como a demarcação de um campo no qual se irá jogar um jogo.
O enquadre rigoroso da psicanálise foi visto como um impedimento
546 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
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Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
para o desenvolvimento de uma psicoterapia, sobretudo quanto à freqüência de sessões e à indeterminação da duração do tratamento. Mas se deve
assinalar que a noção de enquadre foi se cristalizando até converter-se em
alguns usos técnicos, em um fim em si mesmo dentro do tratamento, e sua
manutenção como sinônimo do mesmo e como objetivo terapêutico.
O enquadre, no entanto, desde outras perspectivas teóricas, é um meio
e não um fim, é como o campo e as regras para jogar um jogo – como disse
–, mas não é o próprio jogo. O enquadre é a condição para a apresentação
do fenômeno inconsciente, mas não é a tradução do inconsciente mesmo.
(Isto não quer dizer que, além disso, não tenha um significado particular
para cada paciente ou um tipo de organização psicopatológica.). Portanto,
o melhor rigorismo do enquadre consiste em que o terapeuta tenha sua
função muito clara dentro de sua mente, mais que nos sinais exteriores do
mesmo.
Ver um obstáculo técnico irrecuperável nos diferentes enquadres da
psicanálise e da psicoterapia para a utilização da teoria psicanalítica talvez
implique uma confusão entre o conceito de teoria e o que se levou a chamar
“teoria da técnica”. Esta última consiste em uma teorização direta dos elementos técnicos e realizada a partir deles; é o que elevaria o status dos
mesmos a constituir-se na origem mesma da teoria.
Freud, ao não confiar puramente no elemento técnico, senão experimentando com ele e teorizando paralelamente no andar da prática clínica,
produz o método de associação livre.
Por esse motivo creio que, tanto para um enfoque da articulação da
psicanálise e da psicoterapia, como para a consideração da psicanálise
mesma, é mais pertinente pensar que só existem a teoria e a clínica. A
clínica, por sua vez, implica na utilização de um método; da interação entre
a teoria preexistente e o método, surgem as ampliações e correções da teoria.
Com esse enfoque, resulta possível conceber melhor os reajustes do
método que podem levar a teoria a estender-se a novos objetos e situações
clínicas, sem perder nem o rigor do método, nem a espessura da teoria.
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
Transferência
Para Freud, a transferência é uma “falsa conexão” e um “obstáculo”
terapêutico que deve converter-se em um aliado, mas não pode tratar-se in
absentia nem in effigie. Isso implica que, sendo um fenômeno indesejável
na clínica, também seja insustentável. Então, sua abordagem será obrigatória, mas seletiva. Seguindo a linha da argumentação utilizada no ponto anterior, a transferência contém um fragmento estrutural da história do paciente que não deve ser mais importante que a própria história, ainda que
essa história se repita em seus vínculos transferenciais. É evidente que,
para considerar as relações entre psicanálise e psicoterapia, temos que distinguir entre a interpretação sistemática “na transferência” e a interpretação no momento oportuno “da transferência”.
O primeiro uso – admitindo que o paciente o suporte – conduz nos
fatos a uma maior regressão do paciente, o que nos faz perder essa parte
crescida “dona de si” (Freud) que, sob qualquer circunstância (e diagnóstico), é essencial para uma psicoterapia. Esse uso também converte o enquadre em um fim para o vínculo transferencial.
No outro esquema teórico-técnico, a transferência não é o vetor pelo
qual se formulam todas as interpretações, senão um vértice afetivo
inapreciável que, assinalado em seu auge – e não durante todo o tempo –
provoca, justamente, o desaparecimento da falsa conexão transferencial, e
isso ocorre em sua apresentação resistencial ou – em outro pólo – como
reforço da vivência atual no aqui e agora do que se está descobrindo da
história.
A uma interpretação transferencial oportuna e certa sobrevém a dissolução da falsa conexão transferencial e aparece a lembrança histórica e/ou
material, o que implica – além disso – numa ruptura de qualquer dependência imaginária que o paciente houvesse criado, aproveitando a existência
de uma relação assimétrica real, em que o poder e a autoridade são atribuídas ao terapeuta.
548 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Aceitando, de maneira geral, que seja a manifestação clínica da repressão e que tenha um caráter repetitivo, ela foi constituída como o elemento crucial para definir formas de psicoterapia entre quem diferencia
taxativamente esta da psicanálise. Foi assinalado que, conforme o tratamento que se faça dela, definem-se as formas de psicoterapia entre: a) as
que tratam de evitá-la (exemplo paradigmático: a hipnose); b) as que tratam de elaborá-las (exemplo paradigmático: a psicanálise); e c) as que tratam de apoiá-las (exemplo paradigmático: as psicoterapias de apoio). Poderia incluir-se uma quarta variedade que talvez seja um subtipo das outras
três em seu conjunto: as que a reconhecem intelectualmente e de alguma
maneira, em parte, a evitam e, em parte, a instrumentam: terapias de esclarecimento. Esta também pode ser uma vicissitude possível em um tratamento “silvestre”.
Se fazemos a tentativa de trabalhar psicanaliticamente as resistências
em um tipo de terapia que, por suas outras características (por exemplo,
pelo número de sessões), não seria chamada facilmente de psicanálise, deveríamos manter em mente pelo menos dois importantes assuntos: 1) a
noção freudiana segundo a qual a resistência é tudo o que se opõe ao progresso da cura; e 2) a descrição de Freud de resistências que provêm de
todos os estratos do aparelho psíquico: do ego (a repressão, a resistência da
transferência, o ganho secundário), do id (a compulsão à repetição) e do
superego (o sentimento inconsciente de culpa). Nesse ponto também se vê
que um terapeuta formado psicanaliticamente não poderia deixar de considerar todas elas ainda em um contexto que, pelo seu enquadre, se chama
psicoterapia. Mas sua interpretação será expressa com a adequação à maneira de intervenção.
Com esses elementos podemos pensar que localizar a forma predominante de resistência de cada analisando (ainda que saibamos que possa
mudar em diversos momentos) é imperativo, pois talvez seja um dos eixos
que definem a personalização da terapia, além de sua peculiar história.
É necessário lembrar que o resistido é temido principalmente por seu
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Leonardo Goijman, Osvaldo
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Resistência
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
caráter imaginário, mas que perde seu pretendido temível poder quando é
colocado por palavras no plano de sua significação. Além disso, o resistido
constitui e proporciona uma força para a cura e a resistência não pode ser
analisada independentemente disso.
Finalmente, em nenhum tipo de terapia pode-se esperar a “rendição
final” das resistências, senão que se deve buscar sua aceitação dinâmica
como parte do aparelho mental que o paciente descobre em seu tratamento.
De modo que tampouco nesse campo encontramos o fundamento de uma
diferenciação categórica entre psicanálise e psicoterapia.
Regressão
Há muito tempo que muitos terapeutas deixaram de considerar a regressão como um objetivo de um tratamento psicanalítico e uma garantia
de cura, que sempre demorava em aparecer. Muita adaptação, muita
iatrogenia e muita infantilização dos pacientes foi criada sob o império de
seu dogma.
Foi, portanto, outro conceito “obstáculo” para pensar a relação entre a
psicanálise e a psicoterapia. É certo, no entanto, que sua existência
empírica pode ser observada. Mas, novamente, seu enfoque clínico dependerá, em boa medida, da aproximação teórica com que se a compreenda.
Descreverei – sem ser exaustivo e só para a finalidade deste tema –
duas abordagens possíveis. Uma poderia denominar-se genética. Segundo
ela, o desenvolvimento de uma pessoa implica sucessivos passos, como
fases que se devem cumprir e que, recorridas na análise em sentido inverso, levam a sua reatualização sine qua non. Nesse enfoque, todos os objetos da vida adulta são representantes de outros primitivos, e todas as modalidades de relação de objeto remetem à relação com o peito ou com a mãe.
Nesse primeiro enfoque, a regressão é um objetivo terapêutico. Por isso é
que se torna possível seu deslizamento sobre formas de infantilização da
atividade terapêutica.
Outra abordagem que pode se denominar histórica concebe a constituição psíquica como momentos importantes que se apresentam
550 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Intervenções do terapeuta
Uso deliberadamente um termo genérico, pois me refiro a todas elas,
às interpretativas puras ou às mencionadas acima. Todas se ajustam em
grau e em forma (não digo por seu nível de “profundidade”) ao momento e
aos conteúdos que o paciente apresenta, o que inclui, desde logo, atender a
que se mantenha sua função de principal continente do processo
psicoterapêutico, quer dizer, que não provoquem descompensações no estado do paciente. Poder-se-á argüir que tais intervenções podem requerer
maior experiência no terapeuta formado psicanaliticamente, quando as realiza em um contexto que – por convenção e tradição a meu juízo – chamamos psicoterapia. Opino, no entanto, que requerem, mais bem, uma característica de estilo que inclui um componente narrativo em seu enunciado.
Já se advertirá que eu penso que a todo paciente que se dê e nos dê o
suficiente tempo mental, poderemos dizer tudo que a psicanálise pode dizer, não importando o número de sessões que realize nem a seqüência das
mesmas, nem o uso ou não do divã. Pois, finalmente, essas variáveis são as
que vieram a converter-se, por obra de uma tradição regulamentar e
simplificadora, no que se cristalizou como parâmetros que “diferenciam”
psicanálise e psicoterapia. Será necessário, isso sim, levar em conta a característica “artesanal” para cada paciente e momento, o que implica que a
interpretação será sempre o elemento continente central de qualquer tratamento. Porque a interpretação, vista desde essa distorção, é o que compreende (entende e contém) o grau de verdade que “interessa” e cura e, portanSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 551
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
reiteradamente em torno de acontecimentos significativos para o sujeito
(traumas e também identificações), que forjaram algum modo de funcionamento mental, configurando, por sua vez, estruturas de comportamento.
Neste segundo enfoque, o regressivo pode ser analisado em conexão direta
com o progressivo que toda estrutura também contém. Portanto, e como no
caso do enquadre e da transferência, o manejo de uma eventual regressão e
sua utilização dependerão da teoria que informe o procedimento do
terapeuta.
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
to, torna atraente um tratamento. A não ser, claro está, nas reações terapêuticas negativas perseverantes.
Associação livre e atenção flutuante
Associar livremente não é, na imensa maioria dos casos, um ponto de
partida da técnica que possa ser cumprido como um dever pelos pacientes.
Melhor dito, como todos sabemos, é um ponto de chegada, como resultado
exitoso de uma operação terapêutica. Chamo-a operação para poder distinguir imediatamente que me refiro tanto a um longo tratamento – que deixará a associação livre como uma atitude recuperável mais ou menos permanente frente a uma posterior atitude auto-analítica – como à resposta “casual” a uma intervenção do terapeuta em qualquer sessão, inclusive precoce, de um tratamento por qualquer motivo breve, que lhes dará, então, a
impressão de um potencial de cura maior dessa pessoa em qualquer contexto futuro. Portanto, tampouco o critério da associação livre nos serve
para criar uma divisão entre psicoterapia e psicanálise; ao contrário, devemos trabalhá-la em qualquer contexto terapêutico. Inclusive devemos
solicitá-la com freqüência, segundo minha opinião, quando observarmos
que o paciente não a pode seguir facilmente, com uma atitude de estímulo,
que é uma das “atividades” do método que devemos sustentar nos dois
campos.
Isso é mais visível ainda com a atenção flutuante. Além de resultar em
um grande esforço de imaginação conceber que um terapeuta formado psicanaliticamente possa “cindi-la” de sua bagagem metodológica, se supuséssemos que teríamos uma escuta diferenciada para casos “de psicanálise”, creio que teríamos uma escuta diferenciada para casos de
“psicoterapia” e outra para casos de “psicanálise”; creio que teríamos ainda uma séria complicação ou incoerência teórica, pois a atenção flutuante
não só tem de ver com o material clínico (suas repetições, ritmo analógico,
etc.), senão que também está enlaçada com os três grandes pilares teóricos
que atuam como representações-meta em torno do qual também organizamos o material para intervir.
552 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Processo. Elaboração
Se bem que existam algumas descrições pormenorizadas de processo
que diferenciam essas práticas, a meu juízo não substituem o fato de que
classicamente não houve necessidade dessas descrições por passos, porque
definitivamente tanto em uma como na outra prática produz-se um ciclo
iterativo de resistência e levantamento que, sendo uma característica do
psiquismo, não modifica em um ou outro campo, nem desaparece ainda
depois da psicanálise mais prolixa e prolongada. Portanto, aqui tampouco
se pode fundar uma diferença entre categorias de terapias, baseando-nos
em distintos tipos de processo, pois sempre essa diferenciação dependerá
das teorias que constituam nosso pensamento. Para um olhar psicanalítico,
não é diferente o processo de elaboração, pois sendo uma característica dos
“tempos” (internos) do psiquismo, sua possibilidade está presente em qualquer abordagem. É possível que seja diferente o “grau” de processo e elaboração, mas não segundo o “tempo” (real exterior) que se dedique à terapia, senão segundo a articulação que de ambos tempos se faça dentro dela.
Sugestão, “técnica ativa”, abstinência
Naturalmente, o conceito de sugestão resulta sempre questionável
como procedimento exercido pelo terapeuta em qualquer condição de tratamento que possa ser obstaculizado por sua subjetividade. Mas também
sabemos que um grau dela está presente na conduta mais objetiva e neutra
de um/a terapeuta, porque a sugestão é parte componente do valor de referência que todo humano tem com o semelhante, especialmente se este represente a figura de autoridade e se se está frente à transferência. Essa questão nos coloca, pois, uma das características da psicoterapia quando difeSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 553
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
Este último ocorre, gostemos ou não, qualquer que seja nossa inclinação técnica, pois a atenção flutuante é o lugar quase impossível entre nossos conhecimentos e nossa neutralidade, assim como a associação livre é o
lugar quase impossível para o paciente entre a repressão e o conhecimento
de seu inconsciente.
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
renciada da psicanálise, que é o fato de ela ser diretiva.
No entanto, cabe opor a este raciocínio que o conhecimento que surge
ao longo de um tratamento acerca do que um/a paciente deseja, teme e
realiza, ou evita (pelo menos no campo neurótico e ainda no borderline e
psicossomático), permite ao terapeuta fazer afirmações – que de qualquer
maneira estarão sujeitas à comprovação de seu grau de verdade à prova que
deverá surgir das respostas do paciente – que conterão uma indicação à
ação. Essa indicação, portanto, não surge dos desejos do terapeuta, senão
do conhecimento obtido pelo método, do qual o paciente pode necessitar
fazer e não o faz (ou em outros casos o inverso, necessitar não fazer e o
faz).
A meu ver, existe uma garantia de objetividade que faria desses tipos
de intervenções a única manifestação válida de “técnica ativa”, sem ruptura da abstinência, e que constitui outra postura teórica e de método que
volta a diluir a fronteira que tenta se instalar entre psicoterapia e psicanálise. Admito, isso sim, que talvez se requeira, para fundamentar melhor essa
postura, um aprofundamento da linha teórica que me leva a este pensamento, baseado em minha conceituação de um Aparelho Psíquico Extenso.
(Ver: La extensión del psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1994; e artigos
posteriores sobre a terceira tópica freudiana e sobre o aparelho psíquico
extenso ou quarta tópica).
Tratamento de prova
Pareceria que houvesse sido difundida a idéia de que este requisito
colocado por Freud se referisse ao começo de certos tratamentos potencialmente difíceis, ou a situações em que se devesse provar o funcionamento
da dupla paciente-terapeuta. Também parecera ser um conceito velho caído
em desuso. Sustento, no entanto, sua vigência e sua utilização em todos os
casos com o critério – cada vez mais necessário, atualmente, pelo tipo de
demanda que enfrentamos – de facilitar uma mediação fluída entre tratamentos que, pensados convencionalmente por seus parâmetros formais
como psicoterapia, tornam-se, por sua natureza e pelo enfoque do
554 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Tipos, graus ou modos de cura
Não pode existir um processo terapêutico que alcance graus do que
chamamos “profundo” que não atravesse os sintomas, curando-os simultaneamente. Reciprocamente, não pode existir um tratamento centrado na
“superfície” dos mesmos que não os modifique sem atuar, ao mesmo tempo, sobre a totalidade do psiquismo. A não ser que nos refiramos a atuações
hipnóticas ou de sugestão selvagem que, como sabemos, tem efeitos de
curtíssima duração. E tudo isso se deve a fundamentais razões teóricas. De
maneira que, é muito difícil dividir as curas entre “sintomáticas” e “estruturais”, porque ambos termos estão co-implicados nesse produto
transacional que é o sintoma. E, portanto, também é improvável e inconsistente utilizar esse critério como base de distinção entre psicoterapia e psicanálise. Em todo caso, diferentes maneiras de cura podem sobrevir conforme se utilizem diferentes teorias, mas não por sua suposta superficialidade ou profundidade.
As psicoterapias “aplicadas” à psicanálise
Diferente de uns 20 ou 25 anos atrás, em que, quando se falava de
psicoterapia, tinha-se em mente a terapia individual com fundamento psicanalítico, atualmente, com o nome genérico de psicoterapias, designamse operações realizadas não em pacientes individuais em período breve,
senão em objetos clínicos interpessoais muito diversos e complexos. Entre
eles, a família, o casal, os vínculos existentes entre alguns membros identificados de uma família, como correlato de uma psicanálise individual, ou
terapias vinculares nas análises de crianças. Também os diversos tipos de
terapias grupais que acompanham o tratamento de psicóticos ou grupos
com finalidades não precisamente terapêuticas, como os grupos Balint, ou
a interconsulta médico-psicológica e, certamente, a própria terapia de gruSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 555
Leonardo Goijman, Osvaldo
Saidon, César Merea
terapeuta, psicanálise e que, sendo assim, encontram ali sua cabal dimensão psicoterapêutica. Este conceito pertence ao campo dos princípios gerais do método e não ao das indicações pontuais da técnica.
ENCRUZILHADAS
E HORIZONTES DA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA.
PSICANÁLISE E/OU PSICOTERAPIA?
pos, além de grupos maiores, como os institucionais, etc. E isto quando não
ocorreu, como já se insinua, que se denominem essas práticas diretamente
como psicanálise.
No primeiro caso, pode-se entender, portanto, que a psicanálise, com
sua teoria mais forte, mais extensa e mais explicativa, se “aplicaria” à
psicoterapia e que esta se constituíra a partir de modificações técnicas destinadas, sobretudo – e não sem certa ilusão de nossa parte – a evitar as
situações produzidas na técnica regrada da psicanálise “pura” pelo enquadre, o processo, a resistência e a transferência (principalmente), e que se
tornam um inconveniente nas psicoterapias mais breves.
Desde outra perspectiva que tento salientar, esses campos
psicoterapêuticos trouxeram novos aportes teóricos, clínicos e
metodológicos para a psicanálise e uma confrontação mais ajustada das
teorias clássicas às relações intersubjetivas reais das pessoas. E isso é assim, tanto no âmbito de certos conceitos delimitados quanto no das concepções mais globais de abordagem teórica e técnica – inclusive de pacientes individuais – que sofrem influência por esse modo de pensar
intersubjetivo. Como se vê, e sublinhando as coisas para melhor destacálas, até poder-se-ia falar das psicoterapias “aplicando-se” a psicanálise.
O tempo de cura e o espaço de descobrimento
Apesar de todas as dificuldades teóricas e técnicas de que está aparelhado o pensar na realização da psicoterapia/psicanálise, penso que as duas
principais fontes de mal-estar nesse campo são: (a) o “tempo” do tratamento em sua relação com o significado da “cura”; e (b) a sustentação de um
espaço criativo e de um contexto de descobrimento atribuído idealmente à
psicanálise, sobre qualquer extensão da mesma em termos do que hoje,
todavia, chamamos psicoterapia.
Habitualmente manejamos em psicanálise duas noções de tempo: uma
cronológica marcada pelo relógio ou pelo calendário, e outra mental, não
sujeita a esses parâmetros e que pode ser o tempo quase sem tempo do
insight ou o tempo inadvertido e subterrâneo do trabalho do sonho ou do
556 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Diálogos
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trabalho de elaboração ou do luto. Apesar de seus diferenciais, esses dois
tempos não se encontram em relação de oposição radical, senão de
complementaridade, uma relação concêntrica e excêntrica “ao mesmo tempo”.
No entanto, uma exigência proveniente da alienação social do conceito de tempo cronológico (o “ter de estar bem”, etc.), tanto quanto de um
onipotente “furor curandis” dos terapeutas, parecem criar-nos uma espécie
de consciência de culpa que nos empurra para abreviar dito tempo.
O tempo mental é o que concebe que a saúde não vem depois da
psicoterapia ou da psicanálise, senão que a saúde é a realização da cura – e,
portanto, o processamento do conflito – e que isto é o que deveria permanecer como modelo mental depois de concluída a realização prática de um
tratamento.
Este outro manejo do tempo com inclusão do psíquico no cronológico, além de promover o acesso à temporalidade como fator princeps de
cura é, por outro lado, o único que pode chegar a garantir a manutenção de
uma atitude heurística de criação e descoberta, e romper a dicotomia de
pensar que só a psicanálise poderia dar-nos curas etiológicas, e a
psicoterapia somente curas sintomáticas.
Entrevista da SBPdePA
SBPdePA – Gostaríamos de
começar pedindo que o senhor nos
fale um pouco sobre a sua vida, seu
trabalho, sobre a sua trajetória profissional.
S. Marcano – Bom, minha vida
é uma longa história. Falemos, então, dos aspectos profissionais,
não?
SBPdePA – Sim, por exemplo,
o que o levou a seguir a carreira
psicanalítica.
Serapio Marcano
Membro Efetivo da Sociedade
Psicanalítica de Caracas.
S. Marcano – Bem, ontem eu
contava aqui como foi surgindo em
mim o desejo de ser psicanalista.
Possivelmente conseqüência de um
primitivo desejo de ser médico, o
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 561
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
SBPdePA
Entrevista
Serapio
Marcano
SBPDEPA ENTREVISTA SERAPIO MARCANO
qual provavelmente foi conseqüência de minha curiosidade de criança de
querer saber sobre o meu corpo e minha mente. Também influíram as identificações com personagens importantes, que eram os médicos do meu povoado – porque eu nasci em uma região muito pequena no interior do meu
país, que se chama Guasipati, no estado de Bolívar, que fica ao sul do país
e é vizinho do Brasil. Sempre tive desejo de estudar e também houve esse
desejo em meus pais. Eles eram pessoas simples, que nunca tiveram a oportunidade de ir à escola, porque nesses povoados não havia condições para
que existisse uma educação formal. Geralmente a educação se resumia em
aprender a ler e escrever.
A verdade é que a pergunta me levou a uma auto-análise. Eu sou o
filho mais velho de uma família inicialmente de três irmãos. De alguma
forma, incorporei dentro de mim, possivelmente em nível inconsciente,
pensaria agora, o desejo de meus pais de realizarem-se através de mim. Eu
lutava entre o desejo de minha mãe de que fosse engenheiro e o do meu pai
de que fosse médico. Terminei me identificando com o desejo de meu pai.
Como no meu povoado não havia mais que sexto grau primário, tive de ir à
capital do país para fazer bacharelado. Lá havia alguns familiares que também esperavam de mim, como sobrinho mais velho, neto mais velho da
família, que assumisse a realização de algo que eles não puderam realizar.
Claro que eu assumi isso como meu próprio desejo também.
Separar-se da família aos 12 anos, sair de um povoado pequeno para ir
para a capital não é uma tarefa nada fácil. Acrescentar esse luto aos que
temos de enfrentar normalmente é uma sobrecarga. Mas essa é a vida e isso
eu compreendi depois, o que me permitiu pensar em coisas que aconteceram durante a minha adolescência; por exemplo, como eu não chorei essa
separação pelas “vias naturais do chorar”, mas chorei de outras maneiras.
Costumava fazer gripes de repetição e eu não entendia por que, até que, já
estudando medicina com meu professor de patologia médica, ele falava da
relação entre as doenças e a mente, e de como havia um continuum através
do qual se dava a conduta humana na relação corpo-mente e realidade externa. Compreendi, então, que estivera chorando pelas “vias não-naturais
562 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – A paciente saiu da dermatite e foi para a lágrima, o que
já é um nível mais elevado de expressão. A psicanálise, dentro da medicina, é a área que mais lida com a capacidade de simbolizar sensações.
Como o senhor vê essa capacidade e os caminhos possíveis da
simbolização?
S. Marcano – Sim, todos sabemos que a linguagem em geral é uma
maneira de simbolizar os afetos e os processos que se dão dentro da nossa
mente, na fantasia inconsciente, e é também a forma de comunicar o que ali
sucede. Como bem colocou Bleger, são três as áreas através das quais se
expressa o conflito humano: a da palavra simbólica, a da linguagem do
corpo para simbolizar vivências e experiências que não conseguem ser expressas pela palavra e a dos atos. A comunicação do que sucede no interior,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 563
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
do chorar”, como dizia o sábio professor. Ele exemplificava com a doença
psicossomática de uma paciente sua: uma dermatite exudativa de uma senhora, mãe de um médico que era dermatologista. Ninguém conseguia
curá-la, e ela foi consultar com esse professor, que era um sujeito muito
especial. Em seu consultório, tinha um violino e uma cadeira de balanço
onde tocava o violino. Contou-nos, então, da consulta com aquela senhora,
que chegou toda vestida de preto e com luvas tapando as mãos, laceradas
pela dermatite. Ele então se sentou em sua cadeira e começou a tocar o
violino, e a senhora começou a chorar. E assim passaram-se várias consultas, nas quais ele tocava e a senhora chorava. Até que um dia ela já não veio
de luvas, mas seguia chorando. Em uma certa consulta, veio vestida com
meio luto e já não tinha mais dermatite exudativa. Ele nos dizia: Sabem,
alunos, ela tinha a dermatite porque estava chorando pelas “vias não-naturais do chorar”. No momento em que pôde chorar pelas vias naturais, não
necessitou mais fazer a dermatite. Essas lições me impactaram, porque me
fizeram descobrir que minha curiosidade sobre o funcionamento do ser
humano era global. A medicina física como única possibilidade não me
interessava particularmente.
SBPDEPA ENTREVISTA SERAPIO MARCANO
das fantasias, busca a sua saída. O ideal seria que pudéssemos nos comunicar fundamentalmente através da palavra simbólica, mas muitas vezes não
temos acesso a ela e então necessitamos buscar outras vias.
SBPdePA – A música do violino provocou uma melhora sem palavras
e funcionou como um veículo catalisador, não?
S. Marcano – Sim, como na etapa pré-verbal, quando não existe ainda
a palavra que exprima o que se quer comunicar. Então o sorriso ou o canto
da mãe, o choro do bebê, o contato físico, o olhar fazem essa comunicação,
e isso segue existindo mesmo quando somos velhos. Todos nós fazemos
uso, simultaneamente, da palavra e de outras maneiras de nos comunicar.
Nós, psicanalistas, podemos observar como, muitas vezes, durante a sessão, tanto o paciente como nós adotamos posições mais próximas ou mais
distantes. Essa é a linguagem do corpo que muitas vezes não costumamos
decodificar, mas que sempre está presente.
SBPdePA – Não sei se isso é correto, mas fala-se que Freud explorou
muito a literatura e a escultura, mas não tomou muito contato com a música, não a utilizando como referência nos seus escritos. Seria isso verdade?
S. Marcano – Essa pergunta é interessante, porque se escreveu realmente algo sobre isso, o fato de Freud não ter nenhum interesse pela música ou pelos músicos. Mas isso é falso, porque se examinarmos detidamente
todos os seus escritos veremos que muitos de seus pacientes tinham algo a
ver com a música, e ele costumava ir à ópera, em Viena. Não sei por que os
seus biólogos escreveram isso, talvez ele não tivesse uma inclinação particular, mas, inclusive, utilizava em seu consultório os argumentos das óperas para saber o que se passava com aqueles pacientes com os quais trabalhava.
A mim me tocou, por circunstâncias da vida, ser supervisor de uma
tese de mestrado de uma pessoa que era músico e também psicólogo, e ele
564 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 565
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
havia feito uma investigação acerca da relação que tinha Freud com a música. Essa pessoa, inclusive, criou um teste para, através da evocação de
canções, induzir ao conhecimento da fantasia inconsciente das pessoas.
Também na laborterapia sabemos que é possível utilizar a música como
um fator terapêutico. A musicoterapia já é algo que se utiliza em muitos
centros de tratamento para depressão, para mania. Essas ferramentas não
estão incorporadas no nosso trabalho psicanalítico, mas muitas vezes os
pacientes nos falam sobre concertos ou cantores que foram assistir ou lembram de alguma canção durante a sessão.
Minha diferença com a pessoa que estava escrevendo essa tese é: uma
coisa é utilizar, dentro da sessão analítica, a indução para que o analisando
associe um determinado tipo de música e dali se deduza a que está se referindo na sua fantasia; outra coisa é que se esteja alerta para, quando surja
um comentário sobre uma letra de uma canção, sobre uma música determinada, vermos como podemos ligar isso às fantasias como expressão do
inconsciente dessa pessoa.
Mas há outro ponto a respeito. Liberman era músico, e seu centro de
trabalho era a linguagem. Ele costumava prestar atenção nos tons de voz
que usávamos para falar com o paciente, às vezes mais baixo, às vezes
mais alto, às vezes mais suave, maternal, outras vezes mais forte, paternal,
tomando isso como meios de comunicar o que está agindo, de modo
subliminar, no vínculo analítico, mas que não é recolhido para ser
decodificado e se perceber como incide na tarefa que realizamos cotidianamente.
Mas, voltando à minha história, antes que fizesse contato com aquele
sábio professor de medicina, lá pelo quarto ano havia um professor de psicologia e filosofia (eram uma mesma matéria) que era uma pessoa muito
culta e recomendava leituras aos estudantes. Era advogado também. Um
dia recomendou e eu comprei um livro que se chamava “A personalidade
neurótica dos nossos tempos”, de Karen Horney, e outro cujo título era
“Alegra-te de ser neurótico”, do psicoterapeuta americano Louis Bich. Eu
os li com paixão, porque à medida que avançava a leitura me espelhava no
SBPDEPA ENTREVISTA SERAPIO MARCANO
que lia, e vi que tinha uma personalidade neurótica, e isso, ao mesmo tempo, me gerou a angústia terrível de ver o peso que implicava ser neurótico,
como se fosse uma espécie de tara. Mas talvez também tenha incrementado
em mim a fantasia de explorar minha própria neurose.
Chegou o momento em que me formei e fui trabalhar dois anos num
hospital geral, ainda que tivesse querido começar diretamente com psiquiatria, pois já sabia que era o que seguiria. Não pensava em psicanálise,
porque no meu país, nessa época (era 1962), não havia psicanalistas. Quando estava estudando medicina, entretanto, nenhum dos psiquiatras tinha
uma orientação que incentivasse nossa aproximação para conversar sobre
o que sentíamos como ser humano. Busquei conversar com um deles, mas
me frustrei. Mesmo assim nunca abandonei a idéia de que algum dia poderia buscar me conhecer melhor com uma pessoa que me acompanhasse
nessa viagem de exploração à minha mente.
Estava trabalhando como médico na capital do Estado onde nasci e
conheci um professor de psiquiatria em uma universidade nova, que começava a funcionar, vindo do Brasil, creio do Rio de Janeiro. Era um homem
interessante porque era muito culto, sobretudo porque tinha certa formação
filosófica, baseada principalmente na escola de Husserl, e em geral buscava alguma interação da psiquiatria com os pensamentos filosóficos. Eu
comecei a me aproximar, conversar com ele.
Quis sair do país para estudar, mas não consegui o apoio institucional
para fazê-lo. Fiz minha residência em psiquiatria em Caracas, e o destino
me colocou no primeiro curso de psiquiatria dinâmica que se deu na
Venezuela. Havia muitos psicanalistas argentinos que tinham imigrado
para lá, e o diretor do departamento de saúde mental era um psicanalista
que havia recém-chegado da França, onde havia feito sua formação psicanalítica. Nesse departamento estava também outro psiquiatra que se havia
formado nos Estados Unidos e que tinha também uma orientação dinâmica. Aproximei-me deles. Disseram-me, então, que eu iria fazer o curso de
psiquiatria no hospital novo que estava se formando. Eu agarrei o que me
deram, porque não estava para escolher. A minha fantasia era formar-me
566 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 567
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
com o líder dos psiquiatras no meu país; afortunadamente, não me mandaram até ele, porque era um psiquiatra organicista, que não acreditava em
nada que não fosse a sua corrente. Fiz um curso de psiquiatria de três anos
nesse hospital, que se chama Centro de Saúde do Leste, identificado como
o hospital Del Penhon, porque está situado em uma área de Caracas que
tem um grande rochedo. Eu diria que meu curso foi um minicurso de psicanálise com algo de psiquiatria e de neurobiologia que se usava naquele
momento. Estudamos com profundidade Herman Ninberg, Fenichel, as
obras completas de Freud.
Comecei, então, a buscar ajuda para analisar-me. Começaram a chegar analistas da Inglaterra, Argentina, Chile, gente interessada em psicanálise que buscou saída em outros países e que trouxe a influência de diversas
correntes psicanalíticas a Caracas. Com o tempo, esses analistas começaram a se organizar para formar uma instituição psicanalítica, buscando
apoio da IPA. Quando foram aceitos como Grupo de Estudos, começaram a
notificar que iram abrir seleção de candidatos para formar a primeira turma
de psicanalistas no país. Eu optei por fazer a seleção, que não foi feita pelos
analistas de lá. Vieram outros do México, do Brasil. Era 1967. Fui selecionado junto com mais três colegas, e fomos outra vez quatro primeiros filhos.
Novamente me tocou essa responsabilidade para com esses pais que
também esperam dos filhos que realizem transformações que eles não puderam realizar. Depois que terminei a psiquiatria e que ainda não se havia
aberto a sociedade local, tive a fantasia de ir a Londres para estudar em
uma das escolas existentes. Havia duas que eu pensava como possíveis, a
Tavistock Clinic e a Hamstead, de Anna Freud, mas não consegui a bolsa.
Também não era nada fácil, tinha uma família, três filhos, e também não
tinha toda a vontade de ir, porque não é fácil emigrar, deixar o país e repetir
a experiência de separação da minha adolescência. Formei-me, passei a
trabalhar em instituições psicanalíticas, fiz a docência psiquiátrica, incorporei-me à equipe docente da instituição e fiquei trabalhando no hospital
onde me formei como psiquiatra. Comecei trabalhando em instituições
SBPDEPA ENTREVISTA SERAPIO MARCANO
com crianças e adolescentes, fazendo uma autoformação, porque também
não havia cursos específicos. Iam muitos conferencistas à Venezuela falar
de psicodrama para crianças e adolescentes; começaram a chegar psiquiatras da Argentina, fazendo cursos e conferências sobre psiquiatria da infância e adolescência, e de alguma maneira fui fazendo uma espécie de currículo sobre essa temática. Acabei, com mais dois colegas, abrindo um serviço de psiquiatria da adolescência na Venezuela no mesmo hospital em que
me formei e também comunidades terapêuticas, até que me retirei do trabalho nos hospitais do Estado, porque não era satisfatório. Havia muitos obstáculos, falta de compromisso dos profissionais, e eu me retirei. Anos depois, o hospital entrou em crise institucional, não havia quem coordenasse
os cursos, e me chamaram para fazer isso. Aceitei, com a condição de que
me deixassem elaborar um programa de psiquiatria no qual não constasse
somente psicoterapia, farmacologia e psicopatologia, mas que abrangesse
a psiquiatria nos três níveis de atenção: primária, secundária e terciária.
Elaborar um programa social e comunitário no qual o psiquiatra estivesse
voltado para a prevenção, educação da sociedade, trabalho em colégios,
fábricas, autoridades, educando de alguma maneira para evitar a discriminação de pessoas com problemas graves de doença mental, para que o hospital seja um recurso ao qual se recorra quando não houver mais nada a
fazer, e que logo após a alta venha uma série de alternativas para reinserir
aquela pessoa na sociedade.
Mas o programa que começou com grande entusiasmo imediatamente
se frustrou, pois as autoridades do momento interpretaram mal o seu propósito e pensaram que eu pretendia me converter em alguém que lhes ia
tirar o espaço político. Era uma politicagem que não permitiu que pudéssemos seguir trabalhando. Comecei a trabalhar com outros colegas sobre violência, mas, para mim, foi uma experiência muito difícil. Levei muitos anos
para elaborar o que aconteceu, porque havia posto muito afeto. Depois de
20 anos, uns amigos, filósofos, psicólogos, sociólogos me convidaram para
escrever um trabalho sobre a violência. Resultou em um livro que se chama
“Terrorismo no Estado e violência psíquica”. Nele escrevi sobre a minha
568 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Ontem o senhor comentou sobre um período de crise política na Venezuela que afetou diretamente o trabalho dos psicanalistas.
Gostaríamos que nos falasse sobre como isso foi vivenciado e que recursos
mentais se pode contar em momentos tão difíceis como esses, nos quais a
prática fica impedida.
S. Marcano – Esse é um assunto que me preocupa, no bom sentido da
palavra: pré-ocupa. Põe-me a pensar para tentar me ocupar disso, porque
indubitavelmente quando nos ocupamos de uma maneira significativa,
quando somos tomados apaixonadamente pelas situações políticas nas instituições, sejam elas quais forem, desde as pequenas até a maior, que é o
Estado, corremos o risco de perder a neutralidade necessária para resgatar e
descobrir a subjetividade que está em jogo em nós e nos demais. O trabalho
de analista requer uma responsabilidade muito grande conosco e com os
demais de tomar uma posição ética, de tentar saber quais são as subjetividades dos outros e as nossas, que estão sempre num interjogo. Não podemos tomar partido, a priori, do que está acontecendo, porque isso cria
escotomas na leitura dos fatos. Nesse sentido, quando o analista se vê metido em política de um modo muito comprometido, corre o risco de sair do
seu papel, em seu trabalho, e entrar em colisão com os conflitos do paciente. Em países com regimes totalitários houve casos de psicanalistas que se
viram envolvidos em situações que não correspondem à sua posição e que
trouxeram problemas à instituição. Aqui no Brasil houve problemas desse
tipo (que não vou mencionar), e há suspeitas de que no Chile e na Argentina as pessoas também tenham se envolvido mais do que a ética permite.
Essa é uma situação muito delicada, porque nesses momentos predomina a
pressão, e isso inibe a possibilidade de se ter esclarecimentos e se alcançar
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 569
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
experiência vivida nesse hospital. Descrevo o fenômeno da violência
institucional e da violência psíquica contra todos os membros da comunidade e contra mim em particular. Na medida em que pude escrever e elaborar, aquele ficou como um capítulo encerrado da minha vida.
SBPDEPA ENTREVISTA SERAPIO MARCANO
a razão, além de impedir que descubramos o que sucede em nossas mentes
e que façamos uma leitura mais objetiva do que se passa lá fora também.
Isso me fez escrever um pequeno ensaio sobre quais são as posições políticas que assumimos e que correlação pode ter isso com as posições mentais.
Isso se pode traduzir em diversas teorias. Eu escolhi Meltzer, com sua teoria das posições mentais revolucionárias ou conservadoras, diferenciando
o conceito maniqueísta que se faz da palavra revolução, que na política se
toma como uma mudança radical na estrutura do Estado, quase sempre
com violência. O conceito de revolução que eu tomo tem mais a ver com a
abertura para uma atividade e uma presença transformadora,
enriquecedora, que vai mudando as estruturas quando essas estão preparadas para sofrer essas mudanças, tendendo sempre a uma maior integração
dentro do indivíduo, em particular, e em sua relação com outros indivíduos.
Essa é a idéia do livro, de oferecer aos colegas a oportunidade de pensar e examinar as posições que assumimos dentro e fora de nossos consultórios. Não sei se poderá ser lida, pensada e escutada, mas, bom, o fato de
não ter a garantia de que isso possa desencadear algum efeito não implica
que não nos inquietemos e não o ofereçamos aos outros para que pensem.
SBPdePA – Considerando que vemos muitas vezes posições partidárias dentro das instituições, lutas pelo poder, dificuldades de administrar e
cuidar como irmãos da casa dos pais, da herança, do legado, é de se perguntar o quanto a análise pessoal pode de fato promover nos analistas
essas mudanças, porque a conduta manifesta muitas vezes contradiz isso.
S. Marcano – É muito interessante esse ponto. Os analistas precisam
transmitir aos analisandos que a descoberta do inconsciente, por mais anos
de análise que tenhamos, nunca é completa, e que estamos convencidos de
que esse inconsciente vai estar sempre ali. E ainda que tenhamos transitado
pelo processo de descoberta do mesmo e ganhado terreno nesse inconsciente, ele nunca ficará tranqüilo e irá tratar de resgatar esse terreno que
perdeu, uma vez que há o risco sempre de se fazer regressões, sintomas,
570 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Assim como o violino naquele momento foi um veículo
catalisador de cura, a situação de poder é também um veículo catalisador
da regressão.
S. Marcano – Sim. O desejo de poder é inerente à condição humana.
O caso é que não há só uma forma de poder. Seu uso pode estar voltado
para uma transformação do trabalho em benefício de todos, o poder altruísta; ou, no outro extremo, o poder egoísta, que é quando lutamos por nós
mesmos. Isso está mais ligado às patologias do narcisismo. Eu diria que as
pessoas que investem em uma posição política ou num cargo ou posição
determinada desse poder grandioso e transformador são pessoas que estão
mais do lado do narcisismo do que de uma posição edípica mais integrada.
Nós, psicanalistas, somos seres humanos e não estamos isentos de fazer
regressões, de ter pontos cegos, escotomas e tampouco de padecer do
narcisismo patológico. Se pudermos estar convencidos, em nossa própria
análise, da existência do inconsciente, não teremos de nos assustar se descobrirmos que, de repente, há coisas que não estão indo bem conosco e que
necessitamos retomar a experiência de análise com um outro que funcione
como espelho para que possamos novamente nos perguntar o que há associado às nossas condutas, em nossas mentes, sintomas ou o que quer que
seja.
SBPdePA – Seria recomendável que a reanálise fosse com outro analista?
S. Marcano – Sim, porque a auto-análise não basta. Isso é pouco comum, pois significa uma ferida narcisista voltar a reconhecer que não somos auto-suficientes, onipotentes, oniscientes. Perguntamo-nos o que
aconteceu com nossos analistas que não instilaram dentro de nós a condiSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 571
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
nos mais diversos níveis na área da mente, do corpo, ou da conduta na
relação com a realidade exterior.
SBPDEPA ENTREVISTA SERAPIO MARCANO
ção de viver bem. Mas Freud já recomendava que o ideal é que se tivesse
um espaço para, com outra pessoa, voltarmos a nos interrogar sobre nós
mesmos.
SBPdePA – Qual a sua opinião a respeito das mudanças que a IPA
está instituindo no sentido de cada instituição poder fazer seu próprio
modelo de ensino, ter mais autonomia na sua formação?
S. Marcano – As instituições são, e a IPA é uma instituição, estruturas
de poder de administração. Idealmente, o propósito consciente e voluntário
de todos nós é de que esse poder deva alcançar a todos, e que quando elegemos uma autoridade para que nos governe o que fazemos é uma delegação
do nosso próprio poder, e não uma entrega incondicional. Mudar a concepção de como administrar esse poder em uma instituição não é nada fácil,
sobretudo se estudarmos a origem das instituições, ou da IPA em particular, a qual nasceu como se nos houvéssemos apropriado de um conhecimento do qual nos fizemos donos e o dividimos de tal forma que eu sou o
que o detém, o dou a quem quero e ponho as normas de como as vou dar e
de como o outro as vai exercer. Nesse momento se criam as normas de
como serão todas as outras instituições psicanalíticas.
Com o tempo, começam a haver mudanças em outras instituições que
causam conflitos, tensões e comoções na proposta de assumir certa autonomia, porque quem detém o poder se sente sempre ameaçado de que suas
normas sejam depostas e de que outro assuma seu lugar. Sempre se dá um
conflito que não está explícito, do qual não se fala, e nem mesmo nós,
psicanalistas, utilizamos a compreensão dos fenômenos grupais para examinar o que está acontecendo. Eu creio que as mudanças institucionais são
sempre muito lentas porque mobilizam muita ansiedade. Eliot Jaques fala
que as instituições, em realidade, constituem o continente das ansiedades
psicóticas dos indivíduos reunidos nessa sociedade. Por isso, muitas vezes,
vemos que quando há conflitos institucionais, aparecem condutas loucas
ou crises psicóticas em algum dos membros da instituição, porque toda
572 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Qual o papel da FEPAL dentro desse contexto, ou como é
que o senhor vê o seu papel dentro dela?
S. Marcano – Minha posição como presidente da FEPAL, de alguma
maneira, é a de devolver às instituições componentes o conhecimento de
que, em realidade, o que elas têm feito é delegar um mandato à minha
pessoa ou à comissão diretora que eu presido, e o que realmente eu proponho é que se recolham as vontades de cada um dos componentes da instituição mãe, e não que esta diga às instituições o que têm de fazer. Que essa
seja uma realizadora das expectativas de suas sociedades componentes,
nas quais há o desejo de realizar as mais diversas atividades para que se
continue ampliando e desenvolvendo a instituição psicanalítica. Nós sempre sonhamos com o ideal, e eu creio que podemos desejar um pólo utópico
na vida. A diferença é que temos de saber que nunca o alcançaremos, mas
que isso não implica que não lutemos para buscá-lo permanentemente. Se
soubermos que não o vamos alcançar, as frustrações frente às não-realizaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 573
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
transformação é vivida como uma ruptura do que está estabelecido e é sentida como uma angústia de desintegração. Então, como fazer para que possamos continuar contendo as ansiedades dos membros das instituições,
para que essas sigam evoluindo e para que se considerem as relações entre
as autoridades e os membros das instituições não como uma relação vertical de pais e filhos – em que esses pensam que os filhos não são suficientemente crescidos para poder ter vida própria e administrarem-se com autonomia suficiente – e sim como uma relação de filhos adultos com pais
adultos – na qual eu posso ter minha própria maneira de conduzir o meu
lar, que pode ser diferente da maneira como conduziu o meu pai comigo –
.e que isso não signifique que eu entrarei em conflito de parricídio, de
destrutividade, de violência que rompa definitivamente o vínculo entre a
família?
Eu creio que são problemas muito complexos e que às vezes deveríamos recorrer a outras disciplinas que nos ajudassem a pensar.
SBPDEPA ENTREVISTA SERAPIO MARCANO
ções desse ideal serão mais bem toleradas e com isso se poderá minimizar
a violência que surge ante a frustração. É preciso falar com os demais para
que, em conjunto, possamos buscar alternativas.
SBPdePA – Nem sempre as instituições podem conter essas sensações
e ansiedades, o que as leva a romper e fazer novas sociedades. Gostaríamos que nos falasse alguma coisa sobre esse movimento das rupturas e se
vocês, lá [Venezuela] já passaram por isso.
S. Marcano – Sim, considerando a raiz da divisão e dos conflitos que
se apresentaram na minha sociedade-mãe e ante a cisão que se deu nela,
escrevi alguma coisa acerca do que costuma conduzir às crises nas sociedades psicanalíticas, tomando basicamente duas linhas. Escrevi um trabalho
muito curto que se chama “O narcisismo como frente de conflito nas instituições psicanalíticas” e outro que se chama “Ideologia e crise nas instituições psicanalíticas”. As crises em geral são de crescimento, nas quais, de
alguma forma, vai se criando um mal-estar quando a instituição cresce e o
establishment institucional não evolui de igual maneira que o crescimento
dos membros dentro dela. Geralmente a crise aparece através da decisão de
quem deterá o poder dentro da instituição e a quem se lhe outorgará e a
quem não. Se a não-concessão desse poder é manejada de maneira violenta, a reação entre os membros será violenta. Se não se abre um espaço para
um diálogo através do qual se possam manifestar as diferenças, os malestares, e no qual se possa tolerar isso, teremos uma ruptura. Se não somos
masoquistas, não aceitaremos maus-tratos. Se o outro não pode mudar sua
posição, sua atitude sádica frente aos demais, isso também vai manter a
crise, e teremos de romper. Ficar ali sofrendo com esses mal-estares e queixas eu diria que é uma condição neurótica. Toda ruptura implica situação
dolorosa. Há inúmeras fantasias implícitas que muitas vezes não
correspondem à realidade. Há autoridades nas instituições que por sua idade, por sua trajetória, sentem que têm de ser colocados sempre na posição
do pai que dirige tudo que os demais têm de fazer e consideram os outros,
574 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – O senhor gostaria de acrescentar mais alguma coisa a
essa entrevista?
S. Marcano – Não teria nada em particular, simplesmente gostaria de
dizer que para mim é muito prazeroso compartilhar intimidades, falar desses assuntos que são delicados, pois dizem respeito à minha vida
institucional, às pessoas com quem tenho convivido, e que aprecio muito, e
ao processo de perdas, lutos, separações dolorosas que idealmente gostaria
que não tivessem acontecido, mas que fazem parte da vida de todo o ser
humano. Espero também que esse momento que estou compartilhando com
todos vocês aqui possa servir de experiência e que as coisas que eu estou
propondo para pensar possam circular também nessa sociedade. Muito
obrigado pela entrevista.
SBPdePA – Nós é que agradecemos por essa oportunidade que o senhor nos concedeu, nos brindando com tantas informações. Muito obrigado.
Entrevista
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Heloisa Helena Poester Fetter
Dr. Serapio Marcano
Calle San Rafael, Quinta “Shuruata”, Urb. Santa Fé Norte
Caracas 1080, Venezuela
Fones: 5822129763813 / 5822129795469
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 575
SBPdePA Entrevista Serapio Marcano
transferencialmente, filhos que têm de aceitar sempre o mandato do pai, o
que acaba levando à crise. E como isso segue dentro daqueles membros
que se separaram, não é de estranhar que eventualmente voltem a repetir o
mesmo. É a compulsão à repetição.
SBPdePA – Gostaríamos que
nos falasses da tua trajetória pessoal como psicanalista.
Antônio Luiz Bento
Mostardeiro
Membro Titular e Didata
da SBPdePA.
Mostardeiro – A minha trajetória para chegar ao mundo analítico
começou com o Curso de Especialização em Psiquiatria. Comecei em
1958, e conclui em 1960. Depois,
em 61, eu comecei a minha análise;
em 63 entrei em seminários (sou da
primeira turma da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre como tal –
ela foi reconhecida em 63); conclui
os seminários em 67, e as supervisões em 69. Fiz uma supervisão
com o Roberto Pinto Ribeiro, e uma
supervisão com o Paulo Guedes, e
depois supervisionei durante quatro
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 577
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
SBPdePA
Entrevista
Antônio Luiz
Bento
Mostardeiro
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
anos, por conta própria, com o Mário Martins. Foi um supervisor excepcional.
SBPdePA – Como se formou a primeira turma de psicanálise na tua
sociedade de origem?
Mostardeiro – Na verdade, foi em seguida. A Sociedade foi reconhecida e, logo no seu primeiro ano de existência, foi feito o curso. A formação já vinha sendo feita no tempo de “Grupo de Estudo”.
SBPdePA – E quantos candidatos havia?
Mostardeiro – Éramos vários: Eu, a Beatriz Piccoli, o Carlos Knijnik,
o Marcelo Blaya Perez, o David Zimerman, o Silvio Raya Ibañez, o Curt
Schwarz...Quem mais? Não recordo...
SBPdePA – Em termos teóricos, qual era a base do ensino da teoria
naquele momento?
Mostardeiro – Nós tínhamos uma disciplina que nos acompanhava
nos quatro anos de seminários, que era a Obra de Freud; uma outra disciplina que se mantinha todo o tempo era a Teoria Geral das Neuroses, em que
a gente estudava vários autores que possuíam obras sobre neuroses, como
o Fenichel, o Nunberg, enfim... Havia uma outra disciplina nos quatro anos
que era Teoria da Técnica, e uma outra em que eram estudados vários autores da relação de objeto, entre eles a Melanie Klein. A Melanie Klein talvez, depois de Freud, foi a que teve mais acento tônico na formação. Nós
não estudávamos Psicologia do Ego, praticamente. Era mais o estudo das
relações de objeto; Winnicott muito pouco.
SBPdePA – Daquela época para cá, o que tu consideras grandes
aportes teóricos que puderam acrescentar à tua experiência clínica?
578 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 579
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
Mostardeiro – Eu sou meio descrente em termos de aportes teóricos.
Eu acho que, na realidade, muito poucos autores psicanalíticos deram um
aporte teórico à psicanálise. Depois de Freud e Melanie, podemos citar
autores como Winnicott, Bion, enfim, mas são autores que eu acho que se
pegaram mais em um determinado tipo de detalhe. Winnicott, por exemplo, se prendeu muito à relação da mãe com o filho. Não era uma novidade
o que ele escreveu, só que ele botou um acento tônico sobre a relação real
com a mãe efetivamente boa, e tirou muito a ênfase que a Melanie colocava nos aspectos instintivos que havia dentro dessa relação. Acho que tem
autores que fizeram aportes importantes em termos de técnica, como a
Paula Heimann, a respeito da contratransferência, o Racker, na mesma época, na Argentina; depois houve muitos avanços nesse sentido... Eu estou
coordenando um seminário sobre História da Psicanálise, e um autor que
estudamos é Ferenczi. O Ferenczi, com quem a Melanie se tratou, levantou, lá por mil novecentos e vinte e poucos, a questão da transferência
materna; disse que o analista, nessa hora, tinha que se interpretar e se ver
diante do paciente como mãe. Ele levantou essa questão e Freud refutou,
dizendo que não se sentia bem sendo visto como mãe, porque atingia a sua
masculinidade. Então, na verdade, quando a gente pega essas coisas, vê
que são coisas muito antigas, tanto que Renato Mezan, naquele livro dele,
fala “de Ferenczi a Winnicott”. Ferenczi pode ser considerado um dos pioneiros da abordagem da contratransferência. Ele, inclusive, tem um trabalho que fala sobre a adaptação da família à criança; não é a criança se adaptando à família. E esse seu trabalho tem, posteriormente, um desenvolvimento que é o analista se adaptando ao paciente. Eu vejo a ciência assim:
tem determinadas pessoas que desenvolvem o núcleo da ciência, e outros,
ao redor, em geral, costumam desenvolver aspectos determinados. Então
eu acho que, em geral, o que a gente encontra são autores que pegam um
determinado ponto, focam ele, e o desenvolvem. Eu acho que no mundo
analítico, e também em outras ciências, há muito das pessoas quererem
desenvolver uma idéia dizendo que é original, que é nova, enfim, quando
na verdade é uma descrição de uma coisa antiga, apenas com novos nomes,
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
nova roupagem. Se vocês tomarem, por exemplo, um tema que está muito
em moda hoje em dia: a transgeracionalidade. A transgeracionalidade são
fantasias básicas da cultura. O Édipo é uma fantasia transgeracional em
termos freudianos. E assim existe uma porção de coisas que vocês podem
acrescentar a isso. Tem as peculiaridades das coisas de uma família, de
uma determinada cultura, mas não é uma coisa nova, é um desenvolvimento de um conhecimento que já existia.
SBPdePA – Nesse seminário sobre a História da Psicanálise, além
do Ferenczi, que outros autores tu destacarias?
Mostardeiro – Estudamos o Karl Abraham, que eu acho que é um autor muito importante; o próprio Freud, a gente vê a história da psicanálise
escrita por ele, a autobiografia também; tem a Anna Freud, o Ernest Jones...
SBPdePA – Qual a tua experiência como professor de Psiquiatria,
Psicoterapia e Psicanálise? Como vês a integração entre essas disciplinas?
Mostardeiro – A Psicoterapia Psicanalítica nasceu da Psicanálise, e
acho que o mal dela, se é que se pode dizer assim, é que até hoje ela se
alimenta da Psicanálise. Então, na verdade, ela é uma aplicação da Psicanálise. É estudar o aparelho psíquico, estudar suas características e adaptálas numa aplicação que pode variar de muitos formas. Tu podes fazer, por
exemplo, uma psicoterapia de apoio, em que tu estás usando o apoio através do entendimento que tu tiveste do caso, que a psicanálise te deu, à
medida que tu sabes onde é o ponto necessário para apoiar aquele paciente.
Tu podes entender uma causa externa desencadeante, e ver a possibilidade
de remover essa causa externa, o que também pode ser entendido através
da compreensão psicanalítica.
580 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Mostardeiro – Porque ela não cria corpo próprio. Eu acho que as coisas mais importantes, mais profundas da psicoterapia, ela não tem. Existe
uma coisa que eu acho que a gente tem de pensar que é que a compreensão,
o entendimento, mesmo, que a gente pode ter das pessoas, do psiquismo. É
aquilo que vocês falaram há pouco: a transferência e a contratransferência.
No momento que tu não tens um instrumento de trabalho em que tu vais
tratar disso, vai entender isso, o avanço aí fica pequeno. O verdadeiro
insight, a verdadeira compreensão, eu acho que só se dá através da compreensão da transferência e da contratransferência. Não é que isso não seja
possível na psicoterapia, mas acho que em psicoterapia isso só ocorre através de flashes.
SBPdePA – Nesse sentido, o que pensas sobre a questão da freqüência em psicanálise, que está sendo tão debatida atualmente?
Mostardeiro – Eu acho que para emergir a neurose transferencial e
também ver a contratransferência é preciso que exista uma determinada
freqüência. Eu não acho que uma sessão por semana, nem duas, vá fazer
isso. Não há estrutura para isso. Tem gente que acha que com três sessões
já daria; eu diria que isso depende tanto do analista, no caso, como do
paciente, em situações de exceção. Se fica sendo uma dupla privilegiada,
dá. Se não, quatro sessões. Tinha um psicoterapeuta francês, o sobrenome
dele era Schneider, que dizia que os pacientes de psicoterapia só tinham
insights verdadeiros com três sessões semanais. Eu acho que ele dizia isso
porque com três sessões semanais havia momentos em que eles alcançavam isso. A questão da Psiquiatria Biológica: eu acho que uma coisa é a
concomitância do atendimento de uma pessoa através de medicamentos e
de uma psicoterapia que auxilia esses medicamentos. Por outro lado, acho
que atualmente existe um exagero muito grande na maneira de pensar a
respeito das coisas biológicas, no sentido de colocar assim: ela é a solução
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 581
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
SBPdePA – Porque isso seria o mal dela?
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
de tudo. Eu já vi pessoas, por exemplo, em quadros fóbicos, “curarem”
com os “medicamentos que são indicados”; já vi pessoas “curarem” com
uma mistura de abordagens; e já vi pessoas “curarem” só com o atendimento compreensivo. Já vi todo o tipo de melhora. Algumas pessoas têm
uma posição dogmática em relação aos medicamentos. Uma coisa assim:
de paciente que toma “tal” medicamento e tem “tal” reação, o diagnóstico
é “tal”, como se fosse “2+2=4”; eu não acho que seja assim.
SBPdePA – Na tua opinião, que “momentos históricos” marcaram a
evolução da psicanálise no Rio Grande do Sul?
Mostardeiro – Eu acho que a psicanálise no Rio Grande do Sul, em
termos científicos, sofreu uma parada. Eu diria que o responsável por essa
parada ter sido sacudida foi a existência do “Mario Martins”1. Porque a
sociedade onde eu fiz a minha formação era uma sociedade que tinha um
determinado ponto de vista a respeito de como é que deviam ser os trabalhos, o que é que tu tinhas que escrever, o que é que tu tinhas que dizer.
Inclusive eu acho que não eram trazidas de fora pessoas que pudessem
dizer coisas diferentes; havia, um afastamento de quem pudesse perturbar
isso, a ordem estabelecida. Quando começaram a surgir outras possibilidades aqui no Rio Grande do Sul, isso mudou. Isso mudou no sentido de
virem mais pessoas de fora, de outras correntes, de outras maneiras de pensar...
SBPdePA – Quem, por exemplo?
Mostardeiro – Eu acho que até o próprio Joseph Sandler, quando veio
aqui, foi uma coisa assim. Se vocês pegam um trabalho do Sandler, verão
que ele faz trabalhos que, do ponto de vista da técnica que era usada aqui
1. O entrevistado está se referindo à Fundação Universitária Mário Martins, instituição dedicada
à assistência, ensino e pesquisa em psiquiatria e psicoterapia psicanalítica, fundada em 1987, sob
a coordenação do Dr. David Zimmermann. (Nota do Editor)
582 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Que outro “momento histórico” tu achaste importante
para nós?
Mostardeiro – Acho que um outro momento histórico importante para
o Rio Grande do Sul foi quando da criação da nossa sociedade, a Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. A nossa sociedade é uma sociedade que foi composta de uma forma muito heterogênea: tem gente que
veio da Argentina, do Rio de Janeiro, de São Paulo, daqui de Porto Alegre,
cada um tendo se analisado com analistas diferentes, tendo participado de
seminários diferentes, com orientações diferentes, e certamente isso aí dá
uma mistura que a gente tem de ver no que é que vai dar.
SBPdePA – E qual a contribuição que tu achas que a nossa sociedade
trouxe para a comunidade?
Mostardeiro – Eu acho que a principal contribuição de cunho científico é a diversificação. No momento em que tu tens um determinado grupo
que impõe a sua teoria e a sua maneira de pensar, o que é ensinado e o que
é feito tende a tomar uma característica dogmática e, na verdade, ser
dogmático em psicanálise é estancar tudo. No momento em que vem uma
outra sociedade, então, vem uma porção de coisas que balançam.
SBPdePA – Parece que a vinda de pessoas que fizeram formação na
Argentina trouxe uma base freudiana maior para a nossa sociedade.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 583
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
em Porto Alegre, de como é que era visto o paciente, não era igual. O
Sandler não era kleiniano; do ponto de vista do que ele fazia, ele era muito
mais freudiano. Sua esposa, Anne-Marie Sandler, também; punha, inclusive, em dúvida a veracidade das memórias primitivas. Se tu pegas o
Wallerstein, o Pollock, essas pessoas que estiveram aqui, também não pensavam igual. O trabalho do Pollock era um trabalho da Psicologia do Ego
que era assim: “se encontra isto, isto, isto, e o resto é divagação”.
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
Mostardeiro – Tem pessoas que vieram da Argentina que são até radicais nisso, mas o pensamento de Melanie Klein também era muito importante na Argentina. A influência kleiniana que predominou aqui na minha
sociedade de origem também veio da Argentina, ainda que o Lemmertz,
que era um dos fundadores da primeira Sociedade Psicanalítica de Porto
Alegre, também achava que não devia se ensinar Melanie Klein, que o
estudo de Melanie Klein deveria ser abolido do conhecimento dos analistas. Ele achava que o que ela dizia não valia nada, que era loucura pura. Eu
acho que ele se perdeu depois e o que ele dizia não perdurou, mas ele pensava assim. Nós temos gente na nossa sociedade que pensa assim. Tinha
uma época que eu coordenava o seminário de Melanie aqui no instituto de
nossa sociedade. Houve candidatos que disseram em seminário que achavam que não precisavam estudar nem aprender Melanie. Eu acho que eles
disseram isso fruto do que nós estávamos falando. O problema que pode
haver em um grupo heterogêneo é o problema de não se misturar, de não
formar um todo coeso, ainda que possa conservar a diversidade científica.
SBPdePA – E por que haveria essa tendência, dentro dos grupos,
para formar esses dogmas? É uma coisa fóbica, o que é isso?
Mostardeiro – Eu acho que isso tem uma característica fóbica. É que,
no momento em que nós lidamos com o ser humano, com a vida humana,
nós precisamos ter certeza de que nós estamos com a verdade na mão,
porque assim nós “não erramos”. Aí fica a voz da autoridade acima de
qualquer coisa, e a voz da autoridade tem a verdade. Existe um estudo a
respeito do dogmatismo profissional que chega à conclusão que a profissão
mais dogmática de todas é a dos médicos. Eu acho que é por causa disso,
pelo medo de matar, de serem responsáveis pela morte.
SBPdePA – Algum outro momento histórico?
584 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Quanto à abertura da formação analítica para a psicologia em nosso meio, isso contribuiria para a diminuição do dogma ou não
teria interferência nesse aspecto?
Mostardeiro – Acho que poderia haver uma interferência, mas acho
que a coisa principal... como é que eu vou dizer... eu acho que uma das
coisas mais difíceis que tem no ser humano, isso vale para pai, para mãe,
para analista, para terapeuta, é deixar as pessoas seguirem o seu caminho,
as pessoas se formarem, se criarem, e criarem a sua maneira própria de
pensar e de ser. Nós tendemos a querer que as pessoas se enquadrem no que
a gente acha e no que a gente pensa, e que as pessoas pareçam, vamos botar
nesses termos, que são nossos filhos. Não podem ser pessoas que não pareçam nossos filhos. E isso no mundo analítico vale muito, e as pessoas,
inclusive, acham que os seus pacientes serem assim, seus candidatos, vai
dar prestígio a elas. Ao passo que, se cada um segue seu caminho, não. Um
analista que esteve aqui contou uma história, não sei se foi na Califórnia,
não me lembro, que dizia que, na sociedade psicanalítica a que ele pertencia na sua cidade, uma vez por mês havia uma reunião heterogênea: as
diversas correntes que havia na cidade em termos de tratamento de pessoas
se reuniam para discutir; não só psicanalistas, mas terapeutas em geral. Eu
perguntaria: nós poderíamos fazer isso?
SBPdePA – Mais alguma coisa da história? Bem, tem, da tua história, a pergunta sobre o que foi marcante na tua experiência no Instituto
Psiquiátrico Forense?
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 585
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
Mostardeiro – Acho que tem, sim: a abertura da formação psicanalítica para as psicólogas, que também acho que foi uma coisa que foi obrigada
a existir, que abriu muito em termos de as pessoas terem possibilidade de
fazer a formação.
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
Mostardeiro – O que é que eu posso dizer sobre isso? O Instituto Psiquiátrico Forense, não sei como é que ele está hoje, mas na minha época
nós atendíamos muitos pacientes psicóticos, e eles tinham uma diferença
em relação ao paciente do Hospital Psiquiátrico São Pedro: eles eram indivíduos que tinham concretizado a fantasia inconsciente. Em uma ocasião,
eu estava examinando um psicótico para fazer o laudo dele, e ele disse que
“tinha matado o pai dele porque o pai dele estava no caminho dele e impedia que ele crescesse”. E eu perguntei assim: “tem mais alguém que atrapalha a tua vida?” “Minha mãe”, ele respondeu. Era um homem que dizia que
as pessoas que ele mataria seriam o pai e a mãe. O pai ele já havia matado;
se ele saísse de lá, iria matar a mãe. É uma concretização de uma fantasia
infantil. Eu diria, assim, que nesse sentido os pacientes no manicômio permitiam uma visão, uma compreensão de coisas que, em geral, nos outros
pacientes não estão presentes; as coisas ficavam mais caricaturais, mais
visíveis. Só que a impressão que me dá é que esse tipo de pessoa não tem
volta. Havia, por exemplo, um paciente psicótico que tinha estuprado a
mãe; nunca houve melhora em seu quadro psicótico. Nesse tipo de pessoa,
a possibilidade de reparação não existe. Eu tive pacientes lá com quem eu
trabalhei esse tipo de fantasia e que, no momento em que iam adiante e se
defrontavam com a realidade, eles diziam: “só me resta me matar”. Quando um paciente chegava nesse ponto e dizia isso, a sensação que dava na
gente era horrorosa, uma das piores coisas que eu senti na minha vida;
transmitia uma angústia, um negócio pavoroso. No manicômio nós conseguimos mudar alguma coisa, no sentido de se dar para o paciente uma liberdade de saída; isso era para pacientes especiais e, também, se a gente
via que a possibilidade de recidiva era algo mais remoto. Esse tipo de paciente que a gente está falando comete um crime de um tipo muito específico. Então, o risco que ele apresentava de voltar a delinqüir era o de a
gente surpreender no comportamento dele alguma aproximação de uma
situação em que ficasse de novo presente a história do seu conflito.
586 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Mostardeiro – Alguns tinham uma boa evolução, e às vezes havia pacientes que a gente nem sabia por que é que tinham evoluído bem. Nós
tínhamos lá um paciente que era “Pedro, o Grande”. O Pedro era um negrão
de dois metros de altura que tinha sido campeão de Box, Peso Pesado.
Então o que ele quebrou de dentes e de coisas lá dentro do manicômio foi
muito grande. Medicamento não o controlava. Ele era colocado em uma
cela, e se alguém passasse no corredor descuidado, perto da janela que
tinha na porta da cela, ele acertava com um soco. Esse homem, depois de
estar dez anos desse jeito, começou a melhorar, pôde sair da cela, deixou de
agredir, começou a conviver com os outros, a participar da terapia ocupacional, enfim, terminou tendo alta. Eu não sei o que é que houve com ele.
SBPdePA – Na tua opinião, quais as perspectivas atuais e futuras da
psicanálise?
Mostardeiro – Eu tenho um pensamento a respeito da psicanálise que
não tem que ver com a psicanálise como ciência, tem que ver mais com os
analistas. Eu acho que os psicanalistas, para que a psicanálise possa ir para
diante, deveriam acreditar, antes de mais nada, no instrumento que eles têm
na mão, e procurar usar esse instrumento da melhor forma possível. É a
única maneira de fazer com que a psicanálise vá para diante e que seja vista
como uma coisa sólida. A psicanálise não pode ir para diante se tu quiseres
levá-la adiante em termos de acomodações políticas, ou econômicas; aí
não dá. Aí implica numa adaptação da técnica e num abandono daquelas
coisas que permitem que o instrumento da análise da transferência exista.
Se tu tirares isso, aí a psicanálise não vai adiante. Eu acho que só há um
jeito de levar isso adiante: se os analistas, os candidatos, as pessoas em sua
análise individual se derem conta de que os verdadeiros avanços, as verdadeiras possibilidades de elaboração são sempre decorrentes da compreenSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 587
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
SBPdePA – Em geral, que evolução tinham os pacientes que saíam
do manicômio?
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
são da transferência, na experiência como pacientes e na experiência com
seus pacientes.
SBPdePA – Então tu achas que no tripé “análise, seminários e supervisão” a base seria a análise pessoal?
Mostardeiro – Eu acho que, no sentido de entender a análise e de ver
onde está o seu valor, acho que sim. Vocês encontram pessoas, entre analistas, que dizem assim: “a análise não muda ninguém, dá uma ajeitada”. A
análise muda. Eu acho que isso tem muito que ver com a experiência de
cada um. Aquilo que se passa com uma pessoa, e aí eu acho que não tem
escapatória, é a vivência que diz. Se não é assim, é intelectual, só intelectual.
SBPdePA – E sobre a supervisão, qual é a tua opinião?
Mostardeiro – A supervisão é uma coisa muito complicada no mundo
analítico. O primeiro simpósio que houve sobre supervisão foi em mil novecentos e cinqüenta e poucos, em que os participantes permaneceram desconhecidos e os seus trabalhos e suas contribuições também, tal era o tabu
para falar a respeito disso. Até 1982, havia 22 ou 23 trabalhos sobre supervisão publicados. Depois dessa data, deslanchou. Era muito estrito, e eu
acho que isso tem muito a ver com o fato de que quem publica trabalho
sobre supervisão, antes de mais nada, está se expondo. Inclusive, existe
uma série de conflitos entre supervisionando e supervisor, instituição e análise pessoal. Tem um autor de livros de técnica psicanalítica que fez uma
supervisão com outro grande autor. Então, ele atendia uma paciente em
supervisão que dizia que ele era parecido com o Clark Gable. E o
supervisor interpretou aquilo como uma fantasia da paciente. Esse analista
ficou inimigo do supervisor. Eu acho que para a pessoa que faz supervisão,
uma das cosias que tem de ter é a possibilidade de ver a transferência e a
contratransferência com seu paciente. O supervisor pode orientá-la nesse
588 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – E o que tu achas de uma formação na qual a maior importância é dada à supervisão?
Mostardeiro – Eu acho que as duas coisas têm de estar juntas. Essas
coisas que nós estamos falando, se tu vês num candidato problema na supervisão, a possibilidade que ele tem de entender esse problema é estar em
análise. Eu acho que as duas coisas se completam. O problema da supervisão é que nela estão presentes, também, aspectos transferenciais e
contratransferenciais. O supervisionando traz o caso que ele escreveu conforme ele viu, e o que a gente supervisiona é o caso que aquela pessoa que
está sendo supervisionada viu, que pode ser que esteja bastante próximo do
paciente, e pode ser que não. O supervisor também é uma pessoa que, para
entender o que o supervisionando está trazendo, tem de ser sensível ao seu
tom de voz, à maneira como ele traz o material; tudo isso são coisas que
estão presentes na supervisão, que não são coisas formais, mas que estão
presentes e que vão influenciar a maneira que o supervisor vai entender e
vai ver o caso que está sendo apresentado.
SBPdePA – Quais os indicadores para ver se o caso está evoluindo?
Mostardeiro – Tem casos de pessoas que não caminham. Por que não
caminham? Porque a pessoa não consegue interpretar o que precisa. Tem
que se poder observar movimentos evolutivos no paciente e no candidato
no uso do instrumento para o qual ele está sendo treinado. Os livros que eu
li sobre supervisão ajudam muito pouco. Alguns não ajudam nada. São
coisas que são muito impalpáveis. O que o supervisor está dizendo para o
supervisionando é digerível por ele? É dito de uma forma que ele possa
aceitar? Por outro lado, uma das coisas difíceis que eu vejo na pessoa que
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 589
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
sentido, o que não quer dizer que ela vá poder fazer. E eu acho que o não
poder fazer tem muito a ver com o que eu disse antes: quem não faz isso na
sua análise também não o faz quando atende o outro.
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
faz supervisão é acreditar no que está se passando com ela. O supervisionando diz lá uma coisa toda racionalizada e construída para o paciente. O
supervisor pergunta: “Mas o que é que tu pensaste nessa hora?” Quando a
gente vê, a pessoa pensou no que devia ser dito, mas não disse. E pergunta:
“Mas é lícito usar um pensamento que eu tive? É lícito usar uma coisa que
eu senti?” O supervisionando pode usar algo que sentiu em uma forma de
impressão sua para formular ao paciente. Ele estará dizendo uma parte da
verdade.
SBPdePA – Tu chamas isso de intuição?
Mostardeiro – Eu não sei bem se é intuição. Eu me lembro de uma
situação em que eu estava atendendo uma moça e eu fiz na minha cabeça
uma imagem de que eu estava com ela sentada no meu colo e que eu estava
ninando-a como quem nina uma criança. No material que ela estava me
trazendo não havia nada disso. Mas eu disse para ela que ela me dava a
impressão de estar desejando tal e tal coisa, e era verdade. Eu não acredito
em milagres, acredito que de alguma forma ela me transmitiu o que estava
se passando dentro dela. Por quê? Não sei. Que nome dar? Empatia? Intuição? Comunicação inconsciente? Eu não sei.
SBPdePA – Que tipos de patologia tu achas que são mais comuns de
buscarem análise nos dias de hoje?
Mostardeiro – Eu acho que se vocês pegarem aqueles trabalhos que a
Sonia Abadi trouxe para cá, dizem bem quais são os tipos de patologia que
hoje em dia procuram mais atendimento. Acho que são, fundamentalmente, distúrbios de personalidade. Não são mais aquelas neuroses clássicas
que Freud descreveu no início do século passado. E dentre os distúrbios de
personalidade, tem muito distúrbio narcisista. Eu acho que o distúrbio narcisista tem muito a ver com a forma traumática com que a criança passa a
sua infância, e o que tem na cultura é secundário a ele. Se tu pegas uma
590 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Qual é a tua experiência com pacientes difíceis, com situações difíceis em análise?
Mostardeiro – Eu vou voltar a uma coisa que eu já disse: eu acho que
os pacientes difíceis inicialmente vão ter um entendimento das suas dificuldades quando eles entenderem o aqui e o agora.
SBPdePA – Então, se eles entenderem, vão ter a chance de ir se tornando não tão difíceis?
Mostardeiro – Sim, se tu conseguires isso, que é difícil, acho que sim.
SBPdePA – Há pacientes difíceis e há circunstâncias difíceis no trabalho do analista...
Mostardeiro – O analista, em certo sentido, muitas vezes, em seu trabalho, tem que trair as suas convicções. Vamos pegar uma história assim:
eu acredito que a história do Édipo é de tal jeito. Em um determinado paciente, em um determinado momento, eu posso pensar que a história do
Édipo ali é diferente, e que inclusive isso pode alterar a minha visão do
Édipo. Essas coisas de que estamos falando são coisas que ditas assim...,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 591
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
criança, como a gente encontra, com alguns meses de idade, que a mãe
larga de manhã cedo na creche, mijada, com a roupa de dormir, e com a
mamadeira para o pessoal dar a ela, e vem buscá-la à noite, já com a criança mudada, de banho tomado, etc., é uma criança que, do ponto de vista da
onipotência infantil, da maneira que ela teria que evoluir, ela foi
traumatizada em tudo. Ela não teve uma constância de objeto, e sim objetos que a trataram de maneiras muito diversas. Ela não teve a oportunidade
de ir sofrendo as desilusões gradativamente, mas isso foi enfiado goela
abaixo, e a maneira que a criança tem de se defender disso é a defesa
narcísica.
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
mas são coisas que implicam em perdas importantes. O analista tem de
estar preparado para estar sempre perdendo. Eu acho que a possibilidade
que a gente tem de se manter bem é se a gente esperar as perdas, porque
elas estão sempre presentes. Não digo as grandes perdas, mas as pequenas
estão sempre ocorrendo. Eu acho que, no fundo, estamos falando de
dogmas, de não ter dogmas. Estar aberto para pensar e achar. Quando o
Ferenczi disse aquilo para o Freud (sobre a transferência materna) e Freud
deu aquela resposta, a pessoa que escreveu a respeito dele disse assim:
“ganhou a autoridade e perdeu a ciência analítica”.
SBPdePA – Qual a tua opinião sobre a analisabilidade?
Mostardeiro – A analisabilidade tem dois lados: tem o lado do paciente e tem o lado do analista. O lado do analista tem muito a ver com a sua
contratransferência. Por exemplo, se um paciente te causa rechaço, tu podes ter dois comportamentos. Um comportamento seria: “Vou encaminhálo a um colega, este paciente não me agrada e eu não vou atendê-lo”; outra
coisa é pensar assim: “Este meu rechaço faz parte do tratamento deste paciente. Eu tenho que entender o porquê desse rechaço, porque isso vai me
permitir ajudar esta pessoa”. Bom, agora a pergunta que cabe é: “Eu vou
poder fazer isso ou é melhor para nós dois que ele vá para outro analista?”
SBPdePA – Tu já fizeste isso, atender um paciente que tenha te causado rechaço?
Mostardeiro – Que tenha me desagradado, sim, mas que tenha me causado rechaço, não. Já fiz avaliação de pessoas que eu senti um rechaço tão
intenso que eu encaminhei para um colega. É claro que tem coisas que
podem te desagradar, mas não é isso, estou falando de coisas mais intensas.
SBPdePA – E da parte do paciente, o que ele poderia apresentar para
que tu não o indicasses a uma análise?
592 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Na tua experiência, o que achas que é o mais importante
para uma análise ser bem-sucedida?
Mostardeiro – Eu acho que já está incluído no que eu disse; acho que
é a possibilidade de o paciente e o analista se entenderem. Não digo se
entenderem sempre, mas predominantemente. Acho que não tem ninguém
que se entenda sempre com outro. Se se entendem setenta por cento das
vezes, já se entenderam muito.
SBPdePA – Como vês o psicanalista fazendo psicoterapia na situação
atual do mundo?
Mostardeiro – Tu estás vendo sob um determinado ponto de vista, mas
eu sou uma pessoa que, desde que terminei meu curso de especialização
em psiquiatria e fiz minha formação analítica, nunca deixei a psicoterapia.
Eu sempre tive muitos pacientes em psicoterapia. Então, na verdade, eu
não sinto a coisa bem como estás dizendo, e acho que a psicoterapia é um
instrumento válido, desde que tu reconheças as suas possibilidades. Do
ponto de vista de mudanças objetivas, talvez o paciente que eu tive que
mais mudanças fez era de psicoterapia. Era um homem que eu atendia sábado de manhã, que viajava toda a noite de sexta-feira de ônibus, desde a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 593
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
Mostardeiro – Eu não acho que todo mundo seja analisável. Estou de
acordo com Rosenfeld, que diz: “Tratar esquizofrênicos em análise, só em
casos muito especiais ou para fins de pesquisa”. A experiência que eu tenho com casos assim é que a gente trabalha, trabalha, trabalha e, de repente, desmorona tudo. Acho que uma psicose maníaco-depressiva também é
um quadro difícil de tratar em análise. Acho que se poderia dizer que o
diagnóstico também é algo seletivo para indicar uma análise. Poderiam se
dizer muitas coisas: o paciente tem de ser capaz de fazer uma aliança terapêutica, de ter insight, deve estar disposto a mudar, ou quer curar seu sintoma. Todas essas coisas vão dar o futuro do tratamento.
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
sua cidade, fazia a sessão, e tomava o ônibus de volta para a terra dele. Ele
viajava 1.400 km. Esse homem, quando veio se tratar comigo, tinha um
“câncer” (entre aspas); ele sofria de uma patologia gastrointestinal importante; quem mandava na casa dele e nos filhos era a mulher; profissionalmente, ele não ia adiante; enfim, ele mudou tudo isso. Ele se tornou, na sua
terra, um líder profissional; a sua relação com a mulher e os filhos mudou
completamente e curou suas doenças somáticas. Do ponto de vista
sintomatológico e de adaptação, ele mudou muito.
SBPdePA – E as mudanças permaneceram?
Mostardeiro – Permaneceram. Eu me encontrei com ele uns dez anos
após a alta, e ele estava bem.
SBPdePA – E esse tipo de mudança, tu não atribuis a mudanças internas?
Mostardeiro – Eu tenho impressão de que alguma mudança interna
ele fez, agora, eu acho que tem uma particularidade, que vocês falaram,
que é: o que leva uma pessoa durante anos a viajar 700 km de ida e 700 km
de volta para fazer uma sessão? O que é que passa na cabeça dele nessa
viagem?
SBPdePA – Tudo isso funcionou na psicoterapia desse paciente?
Mostardeiro – Eu acho que sim.
SBPdePA – Então, eram “várias horas” de tratamento. Tu estás nos
falando do grande investimento libidinal que é necessário para se fazer
um tratamento.
594 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
SBPdePA – Tem mais alguma coisa que poderias nos dizer, hoje?
Mostardeiro – O que eu posso dizer é que os casos difíceis que chegaram a um ponto crucial foram sempre casos que só a interpretação, a compreensão correta da transferência e da contratransferência, e o entendimento disso por parte da dupla é que permitiu algum resultado. Eu acredito
nisso; eu acho que é assim.
SBPdePA – Nós gostaríamos de agradecer, em nome de toda a equipe
da Revista de nossa sociedade, a oportunidade de conversar contigo sobre
psicanálise. Foi muito agradável; além de aprendermos, foi um exemplo
de como a psicanálise é algo que movimenta a vida, e de como manténs a
vitalidade analítica. Para nós, tu és um exemplo, nesse sentido, também.
Mostardeiro – Gostaria de acrescentar que eu acho que uma das coisas que, em geral, a gente não presta muito a atenção é a respeito da importância que tem para o seu meio um paciente melhorar pela psicanálise... o
número de pessoas que vai ser atingido por isso, que vai ser beneficiado
com isso... Isso pode ser como uma pedra tocada na água, em que as ondas
vão se propagando. Entretanto, um paciente pode se analisar e só obter
satisfações narcísicas com isso.
SBPdePA – Bem, aí é um desvio do uso...
Mostardeiro – É uma perversão...
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 595
SBPdePA Entrevista Antônio
Luiz Bento Mostardeiro
Mostardeiro – Sim, e ele era um homem que estava se sentindo uma
droga, em todos os sentidos. Tem pessoas que, quando vão se tratar, vêem
ali a última oportunidade de salvação, e se isso é sincero, é bom, porque
implica que elas vão se dedicar, que elas vão dar de si para fazer isso.
SBPDEPA ENTREVISTA ANTÔNIO LUIZ BENTO MOSTARDEIRO
SBPdePA – Bem, gostaríamos de agradecer de novo, muito obrigado.
Mostardeiro – Eu que agradeço.
Entrevista
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
A entrevista foi concedida pelo Dr. Mostardeiro em sua
residência, na noite de 10 de novembro de 2003.
Participaram da entrevista, representando a comissão
editorial: Ane Marlise Port Rodrigues e Silvia Stifelman Katz
Dr. Antônio Luiz Bento Mostardeiro
Rua Dr. Lauro de Oliveira, 80
90420-210 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone: 55 51 3331 5874
Fone: 55 51 3330 7805
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598 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE
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de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas);
O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem
ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em
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O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo
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* Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise.
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2.
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do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e
A sinopse deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir
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Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise.
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decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano
de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918).
600 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003
Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados,
por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se
houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por
exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983).
A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências
bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder
exatamente às obras citadas, sem referências suplementares.
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individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde
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poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de
dúvida, citar o nome por ex tenso.
Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras
maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação.
6.
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a.
Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios
padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 601
b.
O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o
c.
mesmo seja mantido pelo próprio avaliador.
d.
editorial estabelecido;
Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado,
em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de
sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa
Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua
aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha
liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.
PS. Para mais detalhes consultar revistas.
602 Psicanálise v. 5, n. 2, 2003