A Função do Outro na Espiritualidade dos Alcoólicos Anônimos: um

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A Função do Outro na Espiritualidade dos Alcoólicos Anônimos: um
A FUNÇÃO DO OUTRO NA ESPIRITUALIDADE DOS ALCOÓLICOS
ANÔNIMOS: UM ESTUDO PSICANALÍTICO
Autor: CIMARA BANDEIRA DE SOUSA CALDAS
Orientador: Raul Max Lucas da Costa
Modalidade: oral
Área: Psicologia
INTRODUÇÃO
A concepção nosológica de vício alcoólico foi elaborada no século XIX e, por mais que o
consumo do álcool tenha sido um assunto médico constante desde os primórdios, a descrição
de sintomas ocasionados por insistência, repetitividade e compulsão de práticas abusivas,
passou a consolidar-se apenas neste respectivo século.
Em 1849 houve o reconhecimento do alcoolismo como doença autônoma. E, através de
Magnus Huss realizou-se a utilização do termo alcoolismo pela primeira vez descrevendo
sistematicamente os danos físicos que tal afecção provocava. Assim, o alcoolismo passou a
pressupor uma doença que perturbaria funções cerebrais, sensoriais e musculares, gerando
danos em muitos órgãos. Portanto, a denominação corresponderia não ao órgão afetado, mas
a sua causa, o álcool. (CARNEIRO, 2010)
Nesta época, o vício moral era mais visado do que a própria doença orgânica, e vários autores
escreveram a respeito do tema, de forma que alguns corroboravam que o uso excessivo de
bebidas era algo que perpassava a interface da moral, e outros buscavam explicações
científicas em que o alcoolismo era considerado ora como doença do sistema nervoso, como
uma doença mental e hereditária, ora como uma doença da vontade. Como consequência
dessas concepções, geraram-se medidas de estigmatização, internamento e exclusão. Em
muitos casos, a hospitalização/asilação se tornou obrigatória.
Perpassando por todo esse contexto e abstraindo indiretamente de cada conhecimento
produzido na época, surge o principal movimento social de pessoas com alcoolismo, os
Alcoólicos Anônimos (A.A) no intuito de uma elaboração de um plano de sobriedade sem a
utilização de dogmas médicos ou religiosos.
O ano de 1935 foi o marco do surgimento dos Alcoólicos Anônimos na cidade de Akron nos
Estados Unidos. Bill Wilson, um de seus fundadores, concebia o alcoolismo como uma
alergia ao álcool, formulando os “doze passos” para a ascensão da sobriedade a partir da
abstinência total e de um projeto espiritual. (ALCÓOLICOS ANÔNIMOS, 2011)
Como o apoio divino é considerado essencial no programa de recuperação dos Alcoólicos
Anônimos, a partir deste contexto espiritual e do referencial psicanalítico, durante o estudo
observou-se uma equivalência entre o Poder Superior instaurado nos “doze passos” do A.A e
a noção lacaniana de Grande Outro como “(...) um lugar simbólico, lugar dos significantes,
onde as cadeias significantes do sujeito se articulam determinando o que o sujeito pensa, fala,
sente e age.” (QUINET, 2012, p. 22) Assim, o presente artigo objetiva apresentar a
correlação entre o Poder Superior enquanto Grande Outro, que funciona como agente de
supervisão e de manutenção da sobriedade entre os membros alcoólicos.
METODOLOGIA
O presente artigo sucede-se a partir de um projeto de pesquisa intitulado: Alteridade,
Espiritualidade e Sobriedade Entre Membros de Alcoólicos Anônimos em Juazeiro do NorteCE: um estudo psicanalítico.
Nesta revisão bibliográfica qualitativa, os dados foram obtidos a partir da literatura de A.A,
escritos Freudianos, tais como Totem e Tabu e Psicologia das Massas, análise dos trabalhos
de Lacan a partir de Antônio Quinet e leituras de Slavoj Zizek. No levantamento dos artigos
da fonte de dados BVS-PS I e SCIELO notou-se uma escassez de informações a respeito do
assunto abordado. Porém, encontraram-se autores tais como Campos E.A, Galvão V., Pereira
C.M, entre outros. E a partir das pesquisas realizadas, observou-se consonância entre outras
áreas do saber como a sociologia e antropologia que abordavam o programa de recuperação
de A.A e questões relacionadas ao alcoolismo.
A busca foi realizada por meio da combinação das seguintes palavras-chave: Alcoólicos
Anônimos, Espiritualidade, Psicanálise, Gozo e Alcoolismo, sendo todos os termos digitados
no idioma português. Adicionalmente, a busca realizou-se nos meses de maio a outubro de
2013, investigando publicações do período 2004-2013.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Este artigo foi de fundamental relevância para compreensões a respeito da estratégia
terapêutica espiritual adotada pelos membros da associação de ex-bebedores Alcoólicos
Anônimos. Logo, observou-se uma consonância entre os conceitos Poder Superior (outra
forma de dizer-se Deus neste programa de intervenção) e Grande Outro (noção psicanalítica
proposta por Jacques Lacan).
Por proporcionar prazer às pessoas, o álcool está quase sempre presente em ocasiões festivas
e, muitas vezes, fazendo parte do cotidiano das pessoas. Porém, para os membros de
Alcoólicos Anônimos, este álcool deixa de ser fator de sociabilidade e passa a ser o fator
promotor do alcoolismo.
Por não ter nenhuma proteção contra o primeiro gole, os Alcoólicos Anônimos abordam o
alcoolismo como uma “doença crônica e fatal” onde há uma “alergia” ao álcool, instaurando
a consciência de que jamais reassumirão o controle sobre o mesmo, admitindo e
internalizando que são doentes alcoólicos. Isto acaba por pressupor o primeiro dos doze
passos instaurados no programa de recuperação em A.A, que também apresenta doze
tradições para o convívio grupal. (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 2011)
De acordo com a literatura de A.A, como o alcoólico não possui defesas mentais eficazes
contra o primeiro gole, precisa do amparo advindo de um “Poder Superior” que auxilia na
defesa contra o álcool, de forma que nenhum ser humano é capaz de fazer sozinho. Dessarte,
os demais passos propostos no esquema de recuperação interligam-se na concepção espiritual
da doença alcoólica, uma afecção que somente a experiência espiritual é capaz de controlar.
Esta irmandade de ex-bebedores concebe o poder de Deus como “(...) um poder através do
qual pudéssemos viver, e precisava ser um poder superior a nós mesmos.” (ALCOOLICOS
ANONIMOS, 2011, p. 92). Percebe-se, portanto, que este Poder Superior é capaz de realizar
um milagre humanamente impossível na recuperação dos alcoólicos. Deus acaba por tornar
possível a libertação do egoísmo, fonte dos principais problemas na recuperação dos
bebedores-problema. De acordo com Campos (2004), a esperança dos alcoólicos é a
manutenção e o desenvolvimento de uma experiência espiritual e moral, e para isto, a
necessidade dos poderes de Deus.
A partir desta concepção espiritual proposta nas estratégias de sobriedade em A.A, pode-se
justapor a concepção de Grande Outro lacaniano: “Termo utilizado por Jacques Lacan para
designar um lugar simbólico — o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda,
Deus — que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva
em sua relação com o desejo.” (ROUDINESCO; PLON 1998, p. 558).
O alcoólico em recuperação está enraizado em uma cadeia de significantes que compõem as
formas de manutenção da sobriedade, onde o indivíduo busca uma lei, uma força que se torna
o responsável e o fiscalizador da recuperação alcoólica. Assim, a forma que o alcoolismo é
gerido no interior da associação de ex-bebedores Alcoólicos Anônimos, demanda
representações construídas em torno do alcoolismo e da recuperação, fundamentais na
elaboração do Outro coadjutor na ascensão da sobriedade.
Ao discorrer sobre “Os Outros em Lacan”, Quinet (2012) corrobora com a associação entre
Poder Superior e Outro, afirmando que a realidade simbólica é fundamental nesta
representação de ordem espiritual, que desempenha justamente esse conjunto de significantes
que se impõem e se determinam para o sujeito.
O Outro por ser um lugar simbólico, é recinto dos significantes que destinam e estabelecem o
que o alcoólico pensa, fala, sente e age, fiscalizando a mente, o corpo, o movimento, os atos,
sonhos e vigílias. Desta forma, Deus como Outro, atua como agente inspetor dos
comportamentos e da sobriedade em Alcoólicos Anônimos.
Para os alcoólicos, o eu ideal (o eu sóbrio) está submisso ao desejo do Outro, que é o Poder
Superior, constituído pela linguagem que se instaura na ordem dos significantes,
transportando o desejo na ordem simbólica, e cujo discurso constitui o inconsciente.
Conquanto, indiretamente, os indivíduos acabam tornando-se passivos neste processo de
reabilitação alcoólica, onde Deus, o Outro, meio de registro simbólico, age como uma
instância superior. A partir de Lacan, Zizek (2010) explica este processo como sendo uma
interpassividade, no qual o grande Outro age por mim poupando-me de certas atribuições.
Assim, quando os alcoólicos afirmam que estão em recuperação graças aos cuidados do
Poder Superior, eles assumem uma postura interpassiva. Slavoj Zizek (2010) consolida esta
ideia de interpassividade perante o Poder Superior da seguinte maneira: “Concedo ao Outro o
aspecto passivo (gozar) de minha experiência, enquanto posso continuar ativamente
empenhado” (p. 36). Ou seja, em Alcoólicos Anônimos atribui-se o mérito da sobriedade a
Deus, que proporciona o desempenho necessário à reabilitação durante este programa
espiritual.
CONCLUSÕES
De acordo com a literatura revisada, nota-se a importância da contribuição dos Alcoólicos
Anônimos na recuperação de sujeitos que buscam o parar de beber. O programa dos
alcoólicos em recuperação passou a orientar-se em um programa espiritual e moral
enumerado em doze passos, tornando-se arraigado em uma cadeia de significantes, no qual o
Outro/Poder Superior é aquele a quem os alcoólicos agradecem pelos cuidados de
manutenção da sobriedade, proporcionando sustento à doença alcoólica e permitindo que
seus egoísmos sejam derrogados, para que possam admitir suas impotências e carências,
restaurando a perspectiva de responsabilidade na vida destes indivíduos.
É possível que o grupo se mantenha até hoje devido a estes significantes que representam
grande influência no reestabelecimento da sobriedade e que permeiam esta associação de exbebedores. Assim, sem a solução espiritual deste programa de ação, apenas força de vontade
e autoconhecimento se tornam ineficazes no combate ao alcoolismo.
REFERÊNCIAS
ALCÓOLICOS ANÔNIMOS. São Paulo: JUNAAB, 2011.
CAMPOS, E.A. As representações sobre o alcoolismo em uma associação de ex-bebedores:
os Alcoólicos Anônimos. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1379-1387, set-out, 2004
CARNEIRO, Henrique. Bebida, abstinência e temperança antiga e moderna. São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2010.
QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
1998.
ZIZECK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar: 2010

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