mestrado victor.para pdf - Programa de Pós
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE/ PPGCA VICTOR HUGO NEVES DE OLIVEIRA UM ATO DE FÉ E(M) FESTA ANÁLISE DO ENCONTRO ENTRE DEVOÇÃO E DIVERSÃO NA DANÇA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE NITERÓI 2011 VICTOR HUGO NEVES DE OLIVEIRA UM ATO DE FÉ E(M) FESTA ANÁLISE DO ENCONTRO ENTRE DEVOÇÃO E DIVERSÃO NA DANÇA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense, Área de Concentração Teorias da Arte, Linha de Pesquisa Análise Crítica, para obtenção do Título de Mestre em Ciência da Arte. Orientador: Prof. Dr. Wallace de Deus Barbosa NITERÓI 2011 ii VICTOR HUGO NEVES DE OLIVEIRA UM ATO DE FÉ E(M) FESTA ANÁLISE DO ENCONTRO ENTRE DEVOÇÃO E DIVERSÃO NA DANÇA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense, Área de Concentração Teorias da Arte, Linha de Pesquisa Análise Crítica, para obtenção do Título de Mestre em Ciência da Arte. BANCA EXAMINADORA __________________________________ Professor Dr. Wallace de Deus Barbosa (Presidente e Orientador) Universidade Federal Fluminense __________________________________ Professora Dra. Lígia Maria de Souza Dabul (Membro PPGCA) Universidade Federal Fluminense __________________________________ Professora Dra. Helenise Monteiro Guimarães (Membro Externo) Universidade Federal do Rio de Janeiro iii Aos Invisíveis iv AGRADECIMENTOS Àquele que é Causa Primária de Todas as Coisas e aos homens de fé. Ao meu passado familiar, símbolo particular do encontro entre a religião da arte e a arte da religião. À minha mãe, Isaura e minha irmã, Mariana, pelo auxílio constante e o zelo extremoso; pelo silêncio oportuno e as lições diárias. Aos amigos caros, raros e diletos que me ensinam a apreender a Vida em sua totalidade e a enfrentar os obstáculos e celebrar as vitórias com humanidade e confiança. Aos invisíveis que me inspiram e que de modo fraternal e tolerante me aproximam daquele saber necessário e justo ao patrimônio de que disponho. Aos companheiros que abraçaram a execução da pesquisa, cooperando na elaboração de diversos de seus elementos compositores, como: Aquiles de Castro, Diana Cardinot, João Mors Cabral e Marcio Paulo Oliveira Vieira. Aos meus colaboradores, que através de apontamentos, discursos e depoimentos aprofundaram minha perspectiva analítica sobre o campo da pesquisa em questão. À amiga Ana Santos, representante da Biblioteca Geral da Universidade Portucalense, pela doação de acervo e informações imprescindíveis ao desenvolvimento da investigação e à cara amiga inglesa Julia Bardsley pela atenção. Ao Programa de Pós Graduação em Ciência da Arte por me conceder o privilégio de desenvolver a pesquisa com dignidade e bem-estar. E finalmente, à Comunidade da Mussuca, cujo carinho e afetuosidade temperaram esta dissertação, fazendo-me evocar nestas primeiras páginas que, aliás, foram as últimas a serem escritas, o que todos supõe: É aqui, onde tenho que acabar, que devemos começar. Frederic Jameson v Um pio de pássaro é todo o meu salmo. Rezo para Deus batendo os pés no chão E as mãos uma na outra quando assobio alto. Ele escuta. Carlos Rodrigues Brandão vi OLIVEIRA, Victor Hugo Neves de. Um Ato de Fé e(m) Festa: Análise do Encontro entre Devoção e Diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante. 2011 (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte – Universidade Federal Fluminense. Orientador: Dr. Wallace de Deus Barbosa. 148p.) RESUMO A pesquisa aqui proposta tem por escopo observar e examinar determinadas relações que se estabelecem entre corpo, dança e religião na prática ritual em louvor a São Gonçalo de Amarante – realizada em Mussuca/ Laranjeiras (SE) – anunciando a partir do encontro entre devoção e diversão fenômenos que revelam pontos de familiaridade entre as representações artísticas e as manifestações de religiosidade popular, auxiliando-nos, deste modo, a apreender planos de interseções e diálogos entre as categorias do sagrado e do profano no contexto cerimonial. O trabalho busca investigar, portanto, em um primeiro momento os arcabouços de imagens, lendas e histórias que motivam o ritual, examinando as substâncias míticas que cooperam, através da estruturação e do compartilhamento de ontologias sagradas, no processo de fixação e reorganização da Dança de São Gonçalo de Amarante; em seguida propõe-se a analisar a construção do espaço pesquisado apreendendo-o como sistema de valores que coopera no empreendimento de observação e interpretação das situações-rituais e por fim, discute os entrecruzamentos entre devoção e diversão nas ações e significações produzidas pelo corpo em movimento no âmbito do culto localizando, assim, possibilidades de discursos significativos sobre o ato de fé e(m) festa. Palavras-chave: 1. Dança folclórica brasileira. 2. Arte. 3. Religião. 4. Ritos e cerimônias. vii OLIVEIRA, Victor Hugo Neves de. Um Ato de Fé e(m) Festa: Análise do Encontro entre Devoção e Diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante. 2011 (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte – Universidade Federal Fluminense. Orientador: Dr. Wallace de Deus Barbosa. 148p.) ABSTRACT The purpose of the research proposal is to observe and examine certain relationships established between body, dance and religion in the ritual practice of São Gonçalo de Amarante – held in Mussuca/ Laranjeiras (SE) – from the meeting between devotion and entertainment phenomena which reveal points of relatedness between artistic representations and expressions of popular piety, helping us to seize the planes of intersections and dialogues between categories of the sacred and the profane in a ceremonial context. Initially, the study aims to investigate the general framework of images, legends and stories that motivate the ritual, examining the interaction of mythic substance through developing and sharing the ontological sacred in the process of fixing and reorganization of Dança de São Gonçalo de Amarante. The second stage is to analyse the construction of the space by seizing it as a value system that cooperates in the development of observation and interpretation of situations of ritual and finally, to discuss intersections between devotion and entertainment in the action and meanings produced by the body in motion within the cult, providing scope for meaningful discourse about the act of faith and the piety. Key-words: 1. Brazilian folk dances. 2. Art. 3. Religion. 4. Rites and ceremonies. viii ILUSTRAÇÕES Il. 1 Fra Angélico – O Juízo Final p. 17 Il. 2 Fra Angélico – O Juízo Final: Dança Cósmica dos Santos e Anjos p. 17 Il. 3 Giotto di Bondone – Cenas da Vida de Cristo: Entrada em Jerusalém p. 21 Il. 4 Imagem de São Gonçalo de Amarante à Cultura Eclesial p. 34 Il. 5 Imagem de São Gonçalo de Amarante no Imaginário Popular p. 39 Il. 6 Desenho Baseado na Descrição do Viajante Francês La Barbinais p. 42 Il. 7 Relatório com Índice de Mortalidade causada pela Cólera-morbo p. 54 Il. 8 São Gonçalo da Mussuca em Procissão Festiva aos Santos Reis p. 72 Il. 9 Saída dos Santos da Igreja São Benedito p. 73 Il. 10 Imagem do Retorno da Procissão p. 75 Il. 11 Fotografia de Mestre Sales p. 111 Il. 12 Fotografia de São Gonçalo de Amarante p. 113 Il. 13 Fotografia de Figura da Dança de São Gonçalo p. 115 Il 14 Legenda dos Elementos Formadores da Dança p. 118 Il. 15 Desenho da Formação Inicial da Dança p. 119 Il. 16 Desenho da Execução de Circulo Coreográfico A p. 119 Il. 17 Desenho dos Entrelaçamentos Coreográficos p. 120 Il. 18 Desenho dos Atravessamentos na Dança p. 120 Il. 19 Desenho da Execução de Círculo pelo Espaço p. 121 Il. 20 Imagem da Arrumação da Igreja e dos Andores p. 128 Il. 21 Figura da Dança em Traje de Ensaio p. 130 Il. 22 Estrutura do Espaço da Igreja Senhor da Cruz p. 131 Il. 23 Ensaio Ritual na Igreja p. 131 Il. 24 Imagem de José dos Santos com o Santo p. 133 Il. 25 Imagem da Procissão ao Senhor da Cruz p. 134 ix SUMÁRIO ANTES DA INTRODUÇÃO p. 1 INTRODUÇÃO p. 4 1 - “VIVA A SÃO GONÇALO VIVA” p. 10 1.1 - DANÇA E RELIGIÃO: HISTÓRIAS DO CORPO p. 10 1.2 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: HISTÓRIAS DO SANTO p. 27 1.2.1 - SANTO QUE VESTE BATINA p. 30 1.2.2 - SANTO QUE VESTE CALÇÃO p. 35 2 - MUSSUCA: LUGAR DOS SANTOS p. 44 2.1 - EU VOU AGORA PRA TERRA DE CONGA VOU VER ANGOLA p. 49 2.2 - MELHOR SER DOS SANTOS QUE SER DO CÃO p. 62 2.3 - FESTA DE REIS E(M) LARANJEIRAS P. 69 3 - REGOZIJAI-VOS NA FÉ p. 78 3.1 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: FÉ E(M) FESTA p. 78 3.2 - PORTA ESTREITA: ENTRE RITUAL E DRAMA p. 90 3.2.1 - MODALIDADES DO ATO(R) RITUAL p. 107 3.3 - GESTUALIDADE E(M) BRINCADEIRA: EXPRESSÃO DA DANÇA p. 117 3.4 - CELEBRAÇÕES E(M) CAMPO p. 127 3.4.2 - FESTA DO SENHOR DA CRUZ NA MUSSUCA p. 127 CONCLUSÃO p. 136 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 142 ANEXO 1 - DVD FLOR DAS LARANJEIRAS x ANTES DA INTRODUÇÃO: PONTO DE PARTIDA “Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?” (Clarice Lispector. A Hora da Estrela). Tudo no mundo começa com um sim: aquele sim que funciona, a guisa de metáfora, como instrumento representativo da fecundidade, generalidade e expressividade do Aparelho das Questões; aquele sim que, a maneira de imagem, se articula como ambiência abismal cuja escavação nos introduz mais e cada vez mais no Reino das Incertezas; aquele sim que, de modo semelhante à fé, evoca o sentido e a esperança sobre o Invisível e o Desconhecido. Ante este sim, nasce a pesquisa aqui proposta: um sim, articulado ao interesse em estudar e pesquisar de forma mais profunda a cultura popular e seus fundamentos; um sim que surge em minha vida desde os períodos iniciais do curso de Bacharelado em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2004, onde estabeleci contato com a disciplina Folclore Brasileiro, ministrada pela Professora Ms. Eleonora Gabriel, conhecida pela alcunha de Lola. Foi este primeiro sim, afilhado de muitos outros, que me aproximou de diversas literaturas que operam, com o bisturi da cientificidade, as questões relacionadas às manifestações populares, às expressões coletivas e ao caráter dinâmico das construções simbólicas humanas. Um sim, extremamente aguçado e fertilizado, quando da necessidade de utilização de tais arcabouços teóricos pelas investigações de alguns pesquisadores acerca de questões relacionadas à identidade, à coletividade, à cultura de massa, à indústria cultural e aos fatores vinculados às distinções (pré)conceituais entre arte e artesanato. As relações afirmativas entre jogo, festa e diversão para a elaboração de uma representação artística que transpunha as concepções idealistas e operava em concretude nas paisagens da Vida me chamavam a atenção de modo irresistível e, por isso, me induziram a participar do Processo de Seleção para Bolsas de Iniciação Artística e Cultural oferecidas pela Companhia Folclórica do Rio/ UFRJ neste mesmo ano. A experiência do sim me levou a inúmeros congressos, seminários e festivais que traziam como temática a discussão do popular, entre os quais destacam-se: Festival Nacional de Danças Populares em Belo Horizonte (MG), XI Congresso Brasileiro de Folclore em Goiânia (GO), III Festival Nacional de Folclore em Poços de Caldas (MG), XII 1 Congresso Brasileiro de Folclore em Natal (RN), XIII Congresso Brasileiro de Folclore em Fortaleza (CE), XIV Congresso Brasileiro de Folclore em Vitória (ES). Em 2004, o serviço do sim me possibilita estrear junto à Cia. Folclórica do Rio/UFRJ o espetáculo Pelos Mares da Vida que trazia em seu repertório manifestações populares relacionadas com o mar; brincávamos, então, de Cocos Nordestinos, Cirandas de Pernambuco, Cirandas de Tarituba, Siriá, Lundu, Carimbó, Dança do Peru representávamos o Boi de Mamão, Histórias dos Índios Guaranis e dos Navios Negreiros, louvávamos a Iemanjá, a Nossa Senhora dos Navegantes e a um santo, denominado São Gonçalo de Amarante, que trazia entre seus predicados a possibilidade de misturar o canto à oração, a dança à penitência, o riso à fé. Aos poucos, o serviço do sim se desdobrou em culto ao sim fazendo com que meu interesse por aquele santo que se fazia tão marginal – tendo em vista que não se localizava entre os ditados do sagrado tampouco se corrompia entre os convites do profano, mas se posicionava no entre, na divisa, na periferia, que a ele possibilitava mobilidade e deslocamento entre ambas as áreas de valores humanos – crescesse e comecei a me perceber intimamente relacionado a ele. Em cena, ao representar o ato de Dança de São Gonçalo de Amarante já não me empolgava a ilustração de um ritual, mas a vivência desta forma de louvor, já não me interessava a encenação de uma prática de fé, mas a experiência da devoção, por fim, já não me estimulava o desejo na permanência egóica, mas o trânsito no Divino. Dedicava-me, em cena-ritual, a iluminação para aquele santo, me entregando, por esta via, a uma realidade diferente da experienciada no espetáculo – apesar de nele estar inserido; contagiavam-me vibrações de fé e(m) festa, devoção e(m) diversão que me arrepiavam e me alteravam o estado da alma. Meu interesse e respeito por aquele homem-santo aumentavam cada vez mais, tornando o sim do louvor em sim de ligação: aí, naquela parte do espetáculo em que podia me dedicar a oração dançando para Gonçalo, nunca experimentei o não. Apesar, todavia, de meu interesse pessoal pela manifestação, somente no ano de 2007 pude, com o apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ir a campo, afastando-me, deste modo, dos estudos e observações realizadas apenas por vídeos e disponibilizando-me a conversas com os brincantes e visionamentos diretos da prática ritual: um novo sim, neste momento, se propunha como realidade, o sim do campo de pesquisa. 2 No final de minha graduação (2008) ao terminar o Curso de Bacharelado em Dança/ UFRJ, optei – pela experiência em campo e o contato com os atores sociais e, sobretudo, pela atração que a manifestação e o santo exerciam sobre a minha sensibilidade investigativa – por desenvolver a pesquisa monográfica acerca da Dança de São Gonçalo de Amarante, intitulando-a São Gonçalo de Amarante: Análise da Hibridação de Imagens Sagradas e Profanas no Ritual. No mesmo ano, estruturei o anteprojeto de mestrado, sendo selecionado para o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte (PPGCA) na Universidade Federal Fluminense, com a investigação Um Ato de Fé em Festa: Análise do Encontro entre Devoção e Diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante. Hoje finalizando após dois anos de estudos, análises e exames a pesquisa proposta ao PPGCA/ UFF, e apreendendo o sim da passagem, vislumbro campos abertos a novas discussões para o porvir, a partir de questões elípticas que iniciam e terminam a pesquisa: Qual a questão do trabalho? Em que de fato ela contribui para a vida das pessoas? O que pretende apresentar que ainda não foi feito ou dito? Por que pesquisar um fenômeno cultural, aparentemente, tão distanciado de minha realidade social? Tais interrogações fazem-me crer que o essencial da pesquisa proposta, não se dá pelo fato de discutir os arcabouços simbólicos da fé e da festa, ou os arranjos sígnicos da história do santo de Amarante, ou ainda por apresentar depoimentos dos atores sociais em ensaios videográficos, mas, sobretudo pela experiência sensível da devoção que nutro pelo santo e pelo espaço compartilhado na possibilidade de saberfazer, ter participado de alguma forma, da construção da devoção em diversão: no teatro, na rua, no estúdio de ensaio, em casa, entre os devotos da Mussuca, no cenário do sim. O olhar investigativo se constrói, por isso, farto de experiências, inquietações, esperanças e particularidades de um devoto, pesquisador-bailarino. A minha contribuição para o campo teórico, antes de ser aquela técnica e funcionalista ou estética e contemplativa, se estabelece como o caráter do santo: na fronteira, nos interstícios, na margem, flutuante entre o aqui e o acolá, mas sempre como um sim. O conhecimento da experiência e a experiência do conhecimento me unem as Vozes da Mussuca solidificando, deste modo, o ato de fé e(m) festa que dispomo-nos a celebrar. 3 INTRODUÇÃO “Há maior alegria quando se termina alguma coisa que quando se começa. Todo começo é repleto de inquietude, que cessa apenas quando se consegue o fim, apetecido, intentado, esperado e desejado que leva a começá-lo. O coração não canta vitória pelo que começa, mas pelo que termina” (Santo Agostinho. A Cidade de Deus). “Maior enim laetitia est, cum res quaeque perficitur: sollicitudinis autem plena sunt coepta, donec perducantur ad finem, quem qui aliquid incipit, maxime appetit, intendit, exspectat, exoptat; nec de re inchoata, nissi terminetur, exsultat” (Augustinus, saint. De civitate Dei). O estudo aqui proposto busca investigar determinadas questões acerca das relações estabelecidas entre arte e religiosidade popular na Dança de São Gonçalo de Amarante – produzida no povoado Mussuca, localizado na cidade de Laranjeiras/ SE – analisando aspectos promotores da hibridação dos elementos sagrados e profanos no culto ao santo e fomentando reflexões sobre as possibilidades de relacionamento entre os arcabouços estéticos e conceituais da performance e do ritual. Desse modo, a pesquisa pretende redimensionar campos de entendimento e apreender pares organizadores de conflitos nas sociedades contemporâneas, tais como tradiçãomodernidade, devoção-diversão e revelar – através do estabelecimento de antagonismos em equilíbrio, ou seja, valores de contraste em harmonia – caracteres heterodoxos e, por conseguinte, híbridos à estrutura de culto em questão. Tal estado de hibridação habilita-nos a perceber o ritual elaborado ao santo amarantino como um arranjo de processos cruzados, não normativos e fluídos, que orienta a dimensão simbólica da ação social a partir de um complexo patrimônio sígnico, que nos viabiliza expandir perspectivas em nosso processo de observação, 4 descrição, análise, extensão das bases da expressão popular e auxilia-nos a compreender os fundamentos da espécie de devoção multicultural e intersocietária que estrutura a Dança de São Gonçalo de Amarante. No entanto, esta natureza híbrida não se caracteriza como um fenômeno sincrético, sem embates; pelo contrário, o perfil de interação que a constitui, fomentado por movimentos heterogêneos e trânsitos interculturais, articula em si diálogos e confrontos, combinações e resistências que conquanto instaurem uma unidade dúctil entre valores antagônicos (qual o sagrado e o profano) e estimulem uma solução de continuidade entre estas modalidades da experiência ritual não às anula, tampouco as extingue. Observamos, pois que a cultura – qual estrutura processual deste campo de sociedades em interação – apresenta-se como uma crosta de sobreposições, atravessamentos e entrecruzamentos de significados cuja expressão revigora-se, constantemente, sofrendo subtrações, acréscimos, substituições, adições e, por fim, contínuas (trans)formações que determinam estruturas de significação à base social a partir da possibilidade de compartilhamento de determinadas formas simbólicas1, o que nos induz – qual Geertz (1989) – a afirmar que a cultura é pública porque o significado o é e nos exorta, por conseqüência, a aplicar em nossos processos investigativos um exame da cultura a partir da publicitação de significados. Aí, percebemos que cada cultura possui uma lógica particular estruturada sobre um conjunto de bens simbólicos que possibilita aos seus integrantes o compartilhamento de ideais, hábitos, costumes, ações, viabilizando, desta maneira, a participação e integração de seus indivíduos na organização social e facilitando-nos o entendimento de que toda sociedade humana se edifica através de processos que possibilitam aos homens identificarem-se e reconhecerem-se pela utilização de materiais culturais comuns. Donde depreendemos que: O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura (LARAIA, 2006: 68). Todavia, este conjunto de práticas e bens que estrutura a cultura não se submete a promoção de resultados cristalizados tampouco se estabiliza em padrões 1 Segundo Caune (2008), a forma simbólica organiza a percepção que o homem tem do mundo que o cerca e de sua experiência. Ela é, ao mesmo tempo, uma forma do conhecimento e uma matéria de conhecimento da experiência vivida, por isso, configura as relações interpessoais, estruturando vínculos entre o Eu e o Tu, e construindo o Nós. 5 comportamentais hermeticamente fechados, mas sim caracteriza-se por um movimento constante de (trans)formação – oposto a imagem da enseada permanentemente estática – que nos faculta apreender a dinâmica da cultura e a indigência da participação dos indivíduos na construção e reformulação de seus domínios. Neste contexto, a cultura é, aqui, examinada como uma produção dependente de quem a faz: o homem; e este nasce, transforma-se e morre o que torna inviável a compreensão de que os seus modos de produção possam permanecer preservados e estacionados no espaço-tempo. Por sua vez, o homem torna-se resultado do meio cultural em que foi socializado, caracterizando-se como herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e as experiências adquiridas pelas gerações anteriores o que garante à cultura a produção e o desenvolvimento da Humanidade. Isto significa que as sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação social e configuração são específicas. Vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro (...). Portanto, a provisoriedade, o dinamismo e a especificidade são características fundamentais de qualquer questão social (MINAYO, 2004: 13). Compreendendo, portanto, a cultura como “um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”2, buscamos identificar e elaborar, no estudo da estrutura ritual consagrada ao santo amarantino aproximações metodológicas entre o campo da antropologia e da semiótica apresentando níveis da dimensão social através de diferentes aspectos e abordagens sobre os homens e seus arranjos simbólicos, apreendendo – através do trabalho de campo – a manifestação do sensível e reflexionando sua apreensão. Esta apreensão da representação sensível que caracteriza o ato de se dançar a São Gonçalo de Amarante é, em nosso processo de pesquisa, relacionada à experiência dos informantes, o que nos fornece um lugar às interpretações autóctones dos costumes, expondo de modo dialógico, através de estruturas justapostas, uma produção colaborativa, estabelecendo uma poética do encontro entre os agentes da Pesquisa Social onde: O trabalho de campo não pode aparecer fundamentalmente como um processo cumulativo de coletar “experiências” ou de “aprendizado” cultural por um sujeito autônomo. Ele deve, antes, ser visto como um encontro historicamente contingente, não controlado e dialógico, envolvendo, em alguma medida, tanto o conflito quanto a colaboração na produção de textos (CLIFFORD, 2008: 203). 2 Geertz, 1989: 66. 6 Aí, o exame analítico indispensável à investigação da cultura em uma abordagem que valide o domínio dos sistemas de significações populares atinge seu ponto global que consiste em “auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nosso sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles”3, promover entendimentos mais profundos sobre a realidade discutida e compreender a especificidade de uma pesquisa apropriada a determinados setores do exame antropológico, como abordagem metodológica organizada na experimentação, na desestabilização4 e por coletividades, ensejando-nos o encontro do conhecimento comum, cotidiano, irremediavelmente localizado e qualitativo, com o conhecimento científico e técnico e avizinhando-nos de um estado de cientificidade “como uma idéia reguladora de alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos”5 que permite-nos estabelecer processos cruzados e encontros possíveis entre a razão científica, o pensamento artístico e os conhecimentos populares. Deste modo, a pesquisa proposta busca “abandonar a idéia de hierarquia de saberes para pensá-los, compreensivamente, numa relação de complexidade, de rede possível de nexos, de tecidos” (Künsch, 2008: 50) ensejando-nos não só aprofundar o diálogo entre as práticas de conhecimento, a sociedade e o mundo, como também exceder o paradigma rizoma da ciência moderna que: (...) tende a reduzir o universo dos observáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do conhecimento, do que resulta a desqualificação (cognitiva e social) das qualidades que dão sentido à prática, ou pelo menos que neles não é redutível, por via da operacionalização, a quantidades; um paradigma que desconfia das aparências e das fachadas e procura a verdade nas costas dos objetos, assim perdendo de vista a expressividade da face a face das pessoas e das coisas onde, no amor ou no ódio, se conquista a competência comunicativa (SANTOS, 2003: 34-5). Aí, apreendemos a indigência de fomentarmos teias de relações intersubjetivas que dialoguem com a complexidade do mundo, percebemos a necessidade de analisar a etnografia, sobretudo, como campo articulado de tensões, ambigüidades e indeterminações próprias de todo sistema de relações, utilizando seus arcabouços e fundamentos “não como a experiência e a interpretação de uma ‘outra’ realidade circunscrita, mas sim como uma noção construtiva, envolvendo pelo menos dois – e 3 Geertz, 1989: 17. O conceito de desestabilização surge como um dos efeitos da Antropologia Crítica de James Clifford e representa um desafio aos fundamentos da experiência etnográfica ao propor um conjunto de ambigüidades e indeterminações à noção antropológica de cultura. 5 Minayo, 2004: 12. 4 7 muitas vezes mais – sujeitos conscientes e politicamente significativos” (CLIFFORD, 2008: 41). Por isso, procuramos apresentar em nossos estudos um conjunto de experiências atravessado por influências intersubjetivas onde ao invés de promovermos a autoridade etnográfica em monovocalidade, como fundamento da pesquisa em questão, optamos por diluir fronteiras e compartilhar com os atores sociais a produção de nossa investigação gerando espaços dúcteis, flexíveis e fluídos entre os estados do conhecimento e favorecendo a construção de uma contigüidade orgânica que favorece a valoração dos saberes coletivos e locais. Para a promoção deste empreendimento, no entanto, empenhamo-nos em fomentar a polivocalidade para além da estrutura de apresentação textual dos depoimentos coletados (ou seja, para além das citações extensas e regulares que tendem a servir como exemplos ou testemunhos confirmadores) promovendo o encontro entre os agentes da pesquisa em recursos de hipermídia (produção de imagens fixas e dinâmicas) que – como linguagens contemporâneas – possibilitam a trama de diferentes dimensões dos fenômenos culturais, estabelecendo a meta-etnografia, a partir do potencial de representação dos seus suportes e tecnologias documentais, expandindo assim os modos de representação etno(GRAFICA). A partir destas relações, propusemo-nos a elaborar um vídeo documental, denominado Flor das Laranjeiras, como figuração de um trabalho pautado na polifonia onde estabelecemos um diálogo com os atores sociais de maneira a tomá-los não apenas como participantes da pesquisa, mas agentes colaboradores da poética do encontro social. Estruturamos o vídeo a partir dos princípios da multivocalidade, identificando e reconhecendo o que os agentes sociais desejavam dizer sobre si, o que se fazia relevante para o contexto coletivo e quais imagens eram mais constantes e permanentes no cotidiano do povoado; em seguida, iniciamos um processo de captura que possibilitasse a não simplificação e redução das dinâmicas da vida social como olhares, gestualidades, quefazeres, olores, imagens, contornos da paisagem, etc., pela busca de representação do ritual ao santo; e finalmente, buscamos perceber e captar interações significativas mediadas pela dimensão visual na construção das representações sociais. O vídeo, portanto, aqui anexado, articula-se como “texto” direcionado, sobretudo à comunidade da Mussuca e, simultaneamente, direcionado pela comunidade da Mussuca à Academia; após a elaboração do material vídeográfico, partimos para o povoado e fornecemos cópias em DVD a todos os entrevistados, atendidos por eles em 8 suas casas recebemos feedback acerca do vídeo, onde examinamos juntos aspectos que funcionam, aspectos que não funcionam, etc. Sentamos com cada uma das famílias em suas salas de estar e após estas conversas compreendemos a necessidade de estruturar o material textual da dissertação em três tópicos principais. O primeiro capítulo, “Viva a São Gonçalo Viva”, apresenta de modo histórico as relações entre corpo, dança, religião, e investiga as substâncias míticas que cooperam, através da estruturação e do compartilhamento de ontologias sagradas, no processo de fixação e reorganização da Dança de São Gonçalo de Amarante; para isto, examinamos os conteúdos referentes às histórias do santo, a nível eclesiástico e popular, observando nas estruturas de arquétipos referentes à sua personalidade traços ambíguos de encontros entre a devoção e a diversão. O segundo capítulo, “Mussuca: Lugar dos Santos” insere a pesquisa em seu campo de atuação e investigação, contextualizando a formação histórica de Laranjeiras e proporcionando informes acerca da construção social do povoado Mussuca; discutimos, para tanto, questões relativas à territorialidade, à etnicidade, à convivialidade e aos conteúdos deslocados e em trânsito que caracterizam o sagrado solene e o profano festivo no fluxo da prática social entre ritual e espetáculo. O terceiro capítulo, “Regozijai-vos na Fé” aborda e analisa os elementos constitutivos da Dança de São Gonçalo de Amarante perquirindo as relações entre devoção e diversão através dos conteúdos estruturais do sagrado e do profano, da festividade e da fantasia, do ritual e do drama, examinando, em seguida, as modalidades do ator ritual e a expressão da dança, em sua formação e estruturação. Desta forma, a pesquisa termina revelando, por meio da análise dos materiais coletados, o campo de nossas inquietações, mobilizações e descobertas; as conclusões oferecem as incertezas permanentes daquele que reconhece a incompletude do conhecimento e do discernimento dos quais se faz portador, mas que se tranqüiliza com o reconhecimento do domínio da contingência relacional entre arte e religião que há de nos possibilitar o deslocamento de uma margem à outra, transportando-nos através do texto em um rito de passagem contínuo e constante entre a fé e(m) a festa. 9 1 - “VIVA A SÃO GONÇALO VIVA” “Eu dançava para a escriba e o fariseu, mas eles não quiseram nem dançar nem me seguir; eu dançava para os pescadores, para Jacó e para João, esses me seguiram e entraram na dança” (Sidney Carter. Cristo, o Senhor da Dança). 1.1 - DANÇA E RELIGIÃO: HISTÓRIAS DO CORPO Insere-se em toda pesquisa, e isto ocorre seja qual for seu objetivo, a necessidade que se faz presente de apresentar ao público leitor a origem e os significados históricos dos objetos de estudo, numa tentativa de despertar o olhar, através do passado, às relações que se criam na contemporaneidade. Neste momento, então, propomo-nos a examinar as relações entre corpo, dança, religião e a trajetória do ritual a São Gonçalo de Amarante desde sua procedência européia até a chegada e transformação do culto em terras brasileiras. Com isso, porém, não buscamos conhecer estruturas de práticas sociais históricas unicamente no intuito de conhecê-las, mas – orientados pelo escopo de analisar nossa realidade atual – examiná-las, repercutidas e desdobradas, no conjunto de ações que configuram o homem contemporâneo. Este exame, que resulta em um maior entendimento e mais ampla compreensão das repercussões e desdobramentos das práticas sociais históricas na atualidade, parte da premissa de que corpo, dança e religião em conjugação, geram uma tríade que estrutura o ritual e aquelas formas de crenças que funcionam como fundamento para se pensar o homem e(m) a sociedade. A dimensão sensível desta triangulação estabelece o mistério hominal – conteúdo psico-físico-emocional – que se faz como ponto de convergência entre rito e crença, ao relacionar, enquanto prática do corpo (e do espírito), os homens aos invisíveis, compartilhando de maneira a-histórica e an-espacial os modos de conexão entre a Humanidade e o Ignoto. Segundo Bourcier (1987), tais modos de conexão são fornecidos pelos deuses aos mortais, desde os primórdios, através do estabelecimento de danças que promovam tanto louvor quanto alegria. A dança, portanto, representa desde as mais remotas eras a reunião de aspectos humanóides e divinos, morredouros e imortais, perecíveis e eternos, 10 expressando vínculos entre religião e arte, perenidade e fugacidade, sagrado e profano em todas as configurações sociais. Nesta perspectiva, pois, percebemos na prática do corpo pontos que apóiam a universalidade da dança em relação à universalidade da religião, universalidades estas que dialogam com as especificidades, tendo-se em vista que toda coletividade estrutura formas particulares de louvor, construções gestuais próprias destinadas para seus deuses, o que determina um conjunto de celebrações e manifestações específicas, onde cada organização societária estabelece um quadro de exaltação e expressão em dança à Fonte da Criação, e faz com que as relações históricas entre corpo, dança e religião se percam no tempo. Na Índia, por exemplo, a dança de Shiva, expressa uma visão da Criação do Universo, sua manutenção e destruição, a reencarnação do ser humano e sua redenção, considerando-se que Shiva é um deus bailarino, as mulheres que dançam em seu louvor são designadas servas de Deus e crê-se que a vida flui no ritmo dos bailados de Shiva. No Japão, a dança serve de ligação entre os homens e os deuses, expressa os mandamentos destes e fortalece a prece dos crentes; executadas desde a Antigüidade pelos sacerdotes mikos constituem-se em fonte de êxtase ou possessão divina. No Egito Antigo, os sacerdotes astrônomos representam os movimentos celestes com uma coreografia extremamente elaborada; estes balés ensinam aos homens o movimento figurado dos planetas e as leis que permitem prever, portanto, controlar as cheias do Nilo, tornando-as não destrutivas, mas fecundas. As danças fúnebres e as cerimoniais são como procissão, os movimentos têm como caráter espacial as linhas retas e os desenhos geométricos. Egypt displays a highly-developed dance ceremonial in its many hued religious usages. The cults in most temples were more or less associated with dances executed either by special dancers or by the priesthood itself (...). Plato relates that the dances of the Egyptian priests round the temple altars and the dance formations which they executed were intended to represent the movements of the planets, the constellations and the fixed stars in the heavens6 (BACKMAN, 1952: 02). 6 O Egito expõe uma dança cerimonial altamente desenvolvida no uso de suas matizes religiosas. Os cultos, na maioria dos templos, eram mais ou menos associados às danças executadas ora por bailarinos especiais ora pelo próprio sacerdócio (...). Platão diz que as danças dos sacerdotes egípcios circundam os altares do templo e as formações da dança que eles executavam eram destinadas a representar os movimentos dos planetas, as constelações e as estrelas fixas no céu (Tradução Minha). 11 Na Grécia Antiga, a dança tem um papel tão importante quanto no Egito, tanto a nível litúrgico como a nível cívico; os festejos, a educação, o treinamento militar, os aspectos da vida cotidiana, como um todo, engendram danças. In Greece and Italy, as in Egypt, dances of various kinds were customary on the burial of the dead. The purpose of these dances appears to have been to gladden the dead, but still more to exorcise and expel the evil demons which wait for them. In Greece and Italy the dead were comforted by boys and girls bearing wreaths and cypress branches, who executed solemn funeral dances with choral song. Immediately after the dancers came the priests (BACKMAN, 1952: 04)7. Atestam este fato dados recolhidos do livro As Leis de Platão, onde encontramos descrições cerimoniais a guisa daquelas que compõem a estrutura funeral dos sepultamentos dos sacerdotes de Apolo e Hélio. And after their death they shall be laid out and carried to the grave and entombed in a manner different from the other citizens. They shall be decked in a robe all of white, and there shall be no crying or lamentation over them; but a chorus of fifteen maidens and another of boys, shall stand around the bier on either side, hymning the praises of the departed priests in alternate responses, declaring their blessedness in song all day long; and at dawn a hundred of the youths (…) shall carry the bier to the sepulcher. And boys neat the bier and in front of it shall sing their national hymn, and maidens shall follow behind, and with them the women who have passed the age of childbearing; next, although they are interdicted from other burials, let priests and priestesses follow, unless the Pythian oracle forbid them8 (PLATO: 2008: 319). Nas Escrituras Hebraicas, igualmente observamos fortes referências à hibridação dos valores da fé e da festa, e por identificarmos materiais de louvor que se baseiam em estrutura de crença monoteísta, apreendemos aí campo fértil de relações estabelecido entre os homens e um Deus único, o que nos facilita o desenvolvimento e a articulação das próprias questões acerca dos atravessamentos do sagrado e do profano. 7 Na Grécia e na Itália, tal como no Egito, danças de várias formatações eram habituais no sepultamento dos mortos. O propósito destas danças parece ter sido agradar os mortos, mas, sobretudo, exorcizar e expulsar os demônios que os aguardavam. Na Grécia e na Itália, os mortos eram consolados por meninos e meninas que ostentavam coroas e ramos de cipreste e executavam danças funerais solenes com música coral. Imediatamente após os dançarinos vinham os sacerdotes (Tradução Minha). 8 Quando morrerem, sua exposição ao público, funeral e sepultamento serão distintos daqueles dos outros cidadãos: nestas ocasiões apenas trajes brancos serão usados e não haverão quaisquer gemidos ou lamentações. Um coro de quinze moças e outro de quinze rapazes permanecerão de cada lado do esquife e cantarão alternadamente um elogio aos sacerdotes sob forma de um hino em versos, celebrando a bemaventurança dos sacerdotes o dia inteiro. Na alvorada do dia seguinte o esquife será carregado/escoltado até a sepultura por uma centena de homens jovens (...); e ao redor do esquife, os rapazes na dianteira, entoarão seu canto nacional e atrás deles seguirão as moças cantando e todas as mulheres que ultrapassaram a idade de ter filhos; e próximos seguirão os sacerdotes e sacerdotisas como se o fizessem na direção de um túmulo santificado (Tradução Minha). 12 Em Êxodo (15:20), por exemplo, encontramos a dança da profetiza Maria, irmã de Aarão, que pega seu tamborim e acompanhada de todas as mulheres formam coros de dança ao perceberem que enquanto os israelitas caminham de pés enxutos, a cavalaria do faraó se perde no mar; no 2 Samuel (6:14) apreendemos a história de Davi que dança com todo o entusiasmo diante de Javé, ao conduzir a arca, em meio de aclamações e toques de trombeta; nos Salmos (149:3 e 150:4) percebemos as celebrações e louvações com danças, além de inúmeras outras manifestações, a nos apresentarem a comunicabilidade e intercâmbio entre Céu e Terra através do corpo. Tais referências históricas apontam a legitimidade dos vínculos entre devoção e diversão, arte e religiosidade, matéria e espírito, festa e fé. O corpo em dança alcança um estado religioso9 produzindo vínculos entre a própria intimidade e a divindade. Estes estados de manifestação da fé através da dança adquirem uso generalizado não somente nas práticas religiosas pré-cristãs ou pagãs, mas também na própria Igreja Primitiva10. No Evangelho encontramos referências notáveis promovidas por Mateus (11:17) e Lucas (7:32) às danças: nós tocamos para vós, e não dançastes. This, it is said, is a command which the Lord Jesus Christ himself gave, and dancing must therefore strengthen the adoration and worship of Christ. It is not clear what is here suggested, but it may refer to II Corinthians, 12, 2, in which St Paul describes how he was elevated to the third Heaven, to Paradise. Perhaps it implies that when St Paul found himself in the Heavenly Paradise he must have also participated in the celestial mysteries, to which especially belonged the round dances of the saints and angels11 (BACKMAN, 1952: 14). Em Atos do Apóstolo João, texto criado em Edessa, no fim do século II por Leucius Charinus (discípulo de João), e considerado apócrifo pela Igreja Católica, por constituir-se como parte do Cristianismo Gnóstico, encontramos a figura do próprio Jesus dançando junto aos discípulos. 9 Termo proveniente do latim religio que significa prestar culto a uma divindade, ligar novamente ou, simplesmente, religar. 10 A Igreja Primitiva, ou Igreja Antiga, compreende o período histórico desde o Pentecostes (ano 33 d.C.), quando os discípulos começam a pregar o Evangelho e com o batismo de cerca de três mil pessoas convertidas fundam a Igreja Cristã até a queda do Império Romano (476 d.C.). Divide-se em três fases distintas: a implantação, marcada pelo grande número de mártires e apologetas; a expansão, caracterizada pelo avanço missionário através do Império e mesmo além das fronteiras; o triunfo final sobre o politeísmo greco-romano, ao ser declarado o Cristianismo a única religião oficial do Império Romano (391 d.C.). 11 “Isso, dito, é um comando que o próprio Senhor Jesus Cristo deu, e o ato de dançar deve, portanto, reforçar a adoração e o culto ao Cristo. Não está claro o que é sugerido aqui, mas pode se referir ao II Coríntios 12, 2, onde São Paulo descreve como ele foi elevado ao Terceiro Céu, ao Paraíso. Possivelmente, isso implique que quando São Paulo encontrou-se no Paraíso Celestial, ele deve, também, ter participado dos mistérios celestes, especialmente àqueles que faziam parte das danças de roda dos santos e anjos” (Tradução Minha). 13 Before Jesus was seized by the Jews he collected his Disciples and spoke to them. He exhorted them to join him in a hymn of praise to the Father. He ordered them to form a ring and, whilst the Disciples held each other by the hand, he himself remained standing in the middle. He ordered them to answer ‘Amen’ whilst he sang a hymn. Meanwhile, the ring of disciples moved around him. The hymn was a song of praise, filled with mystical allusions12 (BACKMAN, 1952: 14-5) Este texto considerado complemento do Evangelho de Mateus (26:29-30), fez parte das obras interditadas pelo poder eclesial – sendo proibido por duas vezes, uma pelo Papa Leão I (440-461) e outra pelo Concílio de Nicéia (787) – e condenadas ao fogo; ei-lo, na íntegra em Couto (2007). Aí, pois, podemos efetivar um panorama que nos aproxime do modo como a dança era conduzida, no culto cristão: em estrutura circular, mãos dadas e sobrepostas, acompanhada de cantos e respostas; tal ênfase corporal adicionada ao valor das palavras bíblicas e ao ideário de promoção da dança no ritual de devoção ao Cristo, induz a sua adoção nos modos de louvor e adoração dos primeiros cristãos. Os cristãos costumavam dançar bastante nos primeiros anos da Igreja. Dançavam nos lugares de cultos e nos adros das igrejas. Dançavam nas festas dos santos e nos cemitérios junto aos túmulos dos mártires. Homens, mulheres e crianças dançavam – diante do Senhor, e uns com os outros (COX, 1974: 55). A este respeito, Brandão (1985:140) complementa: A Carta aos Gentios, escrita, por Clemente de Alexandria, morto em 216 d.C., descreve piedosas cerimônias cristãs de iniciação, acompanhadas de cantigas e danças de roda. Tal como ele, Eusébio de Cesaréia, morto em 339, fala de danças e hinos que pelos campos e cidades louvavam o Criador e festejavam vitórias militares do imperador Constantino. E prossegue Backman (1952: 22): From St Clement’s curious work, Stromata, we may cite the following, ‘Therefore we raise our heads and our hands to heaven (during prayer) and move our feet just at the end of the prayer – pedes excitamus. By the zest and delight of the spirit we achieve that being which can only be understood by reason; we seek by words of prayer to raise our body above the earth and uplift the winged soul by its desire for better things. In this way we reach blessedness and deliverance from the chains of the flesh which our soul despises13. 12 Antes que Jesus fosse preso pelo julgamento dos judeus, ele reuniu seus discípulos e falou a todos. Ele convocou-os a se juntarem em um hino de amor ao Pai. Ele ordenou que eles formassem um círculo e enquanto os discípulos se seguravam pelas mãos, ele se mantinha em pé no meio do círculo. Ordenoulhes responder Amem, enquanto cantava um hino. Enquanto isso o círculo dos discípulos se movia em torno dele. O hino era um cântico de louvor cheio de alusões místicas (Tradução Minha). 13 De curiosa obra de São Clemente, Stromata, podemos citar o seguinte. ‘Portanto, nós levantamos nossas cabeças e mãos para o céu (durante a oração) e movemos nossos pés apenas ao final da oração – pedes excitamus. Pelo entusiasmo e prazer do espírito, nós arquivamos aquela essência que somente pode ser compreendida pela razão; buscamos através da prece elevar o nosso corpo acima da terra e nossa alma através de seus desejos por coisas melhores. Desta forma, nós alcançamos a bem-aventurança e a libertação das cadeias de carne que oprimem nossa alma (Tradução Minha). 14 A declaração de São Clemente é importante, porquanto ao afirmar que os cristãos moviam os pés no final das orações, ele nos permite refletir sobre a realização destas gestualidades; o desejo de elevação tanto do corpo quanto do espírito estabelece uma unidade que possibilita o agenciamento de estruturas dialógicas entre fé e festa, apesar de já vermos, aí, uma tentativa de afastamento e uma oposição, conquanto ainda não acentuada, entre corpo e alma. A partir de determinado período, porém, as danças na Igreja passam a ser analisadas como uma atração desavergonhada, onde principalmente mulheres excitam a concupiscência dos jovens, transformando os espaços sagrados de devoção em ambiências impudicas e, por isso, profanas; atribuindo ao corpo, então, um caráter mais sensual que santimonial a Igreja engendra as primeiras proibições às atividades bailatórias. As primeiras vítimas do anátema foram as mulheres, reidentificadas, como aos tempos do paganismo, como intérpretes das forças mais profundas. Seguiram-se as condenações de toda a comunidade, que insistia em trazer para as cerimônias da igreja e para o interior do templo as danças que não pertenciam à nova liturgia. Numa fase sucessiva, e perante a impossibilidade de fazer as populações renunciar aos seus costumes ancestrais, assistiu-se à regulamentação desses festejos por parte da Igreja, de modo a controlar-lhes a periculosidade (SASPORTES, 1979: 14). Com referência a esta consideração, Backman (1952: 154) complementa: There can be no doubt whatever that the chief objection was to those forms of the dance which were vicious and indecent, with improper songs, and to the participation of women and the dancing together of men and women. For example, even when it seemed that St Augustine would have liked to forbid and condemn every form of church dance, he finally gave way when confronted with the often quoted biblical commands in the gospels of Matthew and Luke that whoever wishes to dance may dance. But neither is there any doubt that the opposition of the Church had already begun; the dance had led to such serious abuse that it had to be resisted. We have seen, however, that this resistance was not very successful and that not infrequently it was quite in vain. The Fathers of the Church and other theological writers were certainly correct when they pointed out that pagan influence was the cause of the energetic efforts of the newly-converted to retain the dances of their cult. These pagan dance customs contributed, without the slightest doubt to the vigour of the dance even within the Christian Church. These pagan customs are to be found preserved by those of pure Christian faith since the earliest days of the Church14. 14 Não há dúvida de que a principal objeção foi àquelas formas de dança que eram viciosas e indecentes, com canções impróprias, participação de mulheres e danças em que homens e mulheres dançavam juntos. Por exemplo, quando Santo Agostinho proibira e condenara todas as formas de dança na igreja, ele teve que ceder, quando confrontado com os comandos bíblicos frequentemente citados nos evangelhos de Mateus e Lucas: quem quer que deseje dançar que dance. Mas, também não há qualquer dúvida de que a oposição da Igreja já havia começado; a dança levava ao abuso grave que tinha de ser resistido. Vimos, porém, que essa resistência não foi muito sucedida e que não raro era completamente em vão. Os padres da Igreja e outros escritores teológicos foram certamente corretos quando apontaram que a influência pagã era a causa dos esforços enérgicos dos recém convertidos para reter a dança em seus cultos. Estes 15 Lutando, pois, pela sobrevivência em solos romanos, onde os costumes pagãos dominam as tradições populares, a Igreja adapta suas datas comemorativas às da Roma pagã. As festas que já se celebram em tal época, e as quais a Igreja não consegue exterminar, juntam à sua configuração os símbolos e signos da nova religião e a dança, produzida pelo povo, é incorporada à estrutura ritual. Assim, os acontecimentos bíblicos passam não só a ser narrados, como também cantados e representados, juntamente a pinturas murais, esculturas e a edificação dos primeiros templos católicos, criando um conjunto de formas utilizadas pela igreja para propagar o conteúdo de suas doutrinas entre os mais humildes e analfabetos. A propósito Valéria Rachid15 observa: A Igreja não cria novas danças para serem praticadas em seus rituais, mas aproveita aquelas já feitas pelo povo e que foram aprovadas pela tradição antiga. Na verdade, a Igreja ainda não possui força suficiente para exterminar os hábitos pagãos, tendo que se apoiar em algumas estratégias para converter as massas populares. Os padres, por exemplo, irão construir suas igrejas nos antigos locais onde existiram os templos da Antiguidade. Há também a criação de um calendário católico onde os dias santos serão comemorados no mesmo período das festividades pagãs, bem como a utilização de incensos, velas, músicas e sinos – artefatos aprovados pelos rituais antigos. Como a dança fazia parte dessas tradições, ela também será incluída nos rituais da Igreja. Em linhas gerais, portanto, apreendemos que não faltou à civilização romana a herança dos ritos das velhas religiões pagãs assim como da religião monoteísta judaica. Os cânticos e danças com os quais esses povos veneram seus deuses influenciam a arte romana e se estendem às primeiras comunidades cristãs que, ainda sem ritos próprios ou liturgia com normas fixadas, adotam-nas, adaptando-as para seus próprios cultos. Os primeiros cristãos, então, mantêm as belas movimentações simbólicas herdadas dos hebreus, dentre as quais as rondas solenes em volta dos altares tendo ao centro o próprio bispo ou as procissões semelhantes às realizadas nos cultos egípcios de Isis e Osíris. A adaptação de cultos, como os que representavam anjos dançando em círculo enquanto louvavam a Deus, deram origem às árias dançáveis, isto é, salmos interpretados numa linguagem rítmica e acentuada. costumes da dança pagã contribuíram, sem a menor dúvida para o vigor da dança mesmo dentro da Igreja Cristã. Estes costumes pagãos encontram-se preservados por aqueles de fé cristã pura desde os primeiros dias da Igreja (Tradução Minha). 15 Otavio, 2004: 33-4. 16 Ilustração 1: Fra Angélico - O Juízo Final (c. 1432-1435) Museo di San Marco, Florença. Ilustração 2: Fra Angélico - O Juízo Final. Detalhe Dança Cósmica dos Santos e Anjos (1432-1435) Museo di San Marco, Florença. No século IV, entretanto, com o Cristianismo tornando-se religião oficial do Estado Romano16, tornam a surgir controvérsias sobre o uso da dança em cerimônias 16 Faz-se interessante observar que o processo de adoção do Cristianismo como religião oficial do Estado Romano precede uma série de perseguições e ataques à Causa Cristã; a conversão em massa que os cristãos promoveram, com o passar das décadas em Roma, fez com que os templos pagãos se esvaziassem e o lucro desta exploração religiosa diminuísse. Segundo Steyer (1996: 49-0), “o fato de os cristãos negarem-se a oferecer incenso e orações à figura do imperador, considerado pelos cristãos como um ato idólatra, era, no entanto, julgado pelas autoridades civis como crime de lesa-majestade. Assim, a primeira perseguição por parte do Império Romano aconteceu com Nero, em 64 d.C. A tradição acusou Nero de ter incendiado a cidade de Roma. Vendo-se ameaçado, incriminou os cristãos”. No correr dos anos seguiramse muitas outras perseguições que deixaram a Igreja Cristã completamente arrasada, entre as quais se destaca as movidas pelo Sétimo Severo (193-211), por Décio (249-251), por Diocleciano (284-305) e seu sucessor Galério, antes de morrer porém este último arrepende-se e assina (em 30 de abril de 311) o Edito de Tolerância que pela primeira vez ampara por lei a Igreja Cristã. Após a morte de Galério, nova disputa 17 evangélicas; os homens edificam um dualismo entre fé e festa embotando, deste modo, as relações entre corpo-dança-religião. A Igreja passa, então, a menosprezar as atividades do corpo, sublimando o pensamento à transcendência e elevando o espírito ao cerne da Verdade reforçando o lugar da matéria como obstáculo à manifestação plena da alma – imortal e imperecível – pelo seu potencial de pecado e perdição. A hierarquia religiosa, que aos poucos se separa da massa dos fiéis comuns, cedo também começa a estabelecer as regras do controle do culto legítimo. Já no século IV há controvérsias sobre a legitimidade dos festejos dos fiéis comuns. São Basílio Magno, bispo de Cesaréia, condena alguns anos mais tarde os mesmos cantos e danças que antes aceitara no interior de sua igreja. O bispo desconfia das solturas do povo e começa a ver mais sensualidade de mulheres do que devoção (BRANDÃO, 1985: 140). Assim, percebemos que à medida que a Igreja estrutura seus alicerces e domina boa parte do continente europeu, começa a haver uma grande preocupação, pela maneira como as formas e elementos religiosos estão sendo usados pelo povo o que conduz as manifestações do corpo para as ambiências externas ao templo. Mas, por quê? Tentando desvendar essas reservas do clero católico em relação à dança, cabe colocar as razões que geralmente são invocadas pelas hierarquias para expulsá-las dos templos. Nesse contexto a acusação mais freqüente é o caráter sensual das danças e, por conseguinte, o uso indevido do corpo no recinto sagrado, o que transformaria o lúdico em lúbrico, o rito cristão em rito pagão. Evidentemente que muitas dessas danças provieram de ritos pagãos, ou melhor, de outras formas religiosas etiquetadas como pagãs na ótica cristã, mas que em outros momentos foram aceitas e/ou toleradas e apropriadas pela Igreja com funções pedagógicas. A acusação de sensualidade a que então se recorre, passa a ser uma forma de deslegitimar o que antes fora considerado compatível com o espaço sagrado. Vê-se, pois, que a própria atitude da Igreja não é uniforme e os limites entre sagrado e profano vão variando numa mesma instituição ao longo do tempo (DANTAS, 1999: 114). Encontramos inúmeras referências às proibições à prática da dança religiosa como questão do corpo, da sensualidade e da legitimação de estados profanos no espaço sagrado da igreja, do século IV até o século XVIII; em 300-303, encontramos o Concílio Provincial em Elvira, perto de Granada, que ordena as mulheres não serem autorizadas a realizar vigílias em igrejas em que sob o manto da oração, elas caiam em pecado, donde nos parece seguro afirmar que as vigílias eram combinadas com danças e a proscrição tem um significado muito especial à medida que corrobora o entendimento de que a dança já era realizada nas igrejas neste período. Em o ano de 539, apreendemos o Concílio de Toledo que expressa a esperança de que a prática, contrária a religião, de pelo poder torna Constantino Imperador de Roma, este assina o Edito de Milão, em 313 – decreto que eleva o Cristianismo ao status de religião lícita, o que implica em liberdade plena à Igreja e seus adeptos; mais tarde em 391 o Imperador Teodósio proíbe o culto pagão (politeísta) e adota o Cristianismo como religião oficial do Império. 18 dançar e cantar sons desavergonhados nas festas dos santos e enquanto o povo espera pela saída das procissões nas igrejas possa, com a ajuda dos padres, ser erradicada de toda a Espanha. No século VII, novo Concílio de Toledo (633) censura a Festa dos Tolos com suas músicas e danças nas igrejas e o Concílio de Châlons-sur-Saône (639654) faz-se contra as músicas despudoradas e indecentes cantadas nos bailes de coro feminino. No século VIII, o Concílio de Lessinas (743) proíbe leigos de executarem danças corais e freiras de cantarem nas igrejas, pois havia sido dito: “Minha casa será uma casa de oração”. O Concílio de Roma, no ano de 826, queixa-se das senhoras, especialmente nas festas de aniversários dos santos, em que vinham à igreja somente para cantar sons impudicos e executar danças corais; no meio do século IX, o Papa Leo IV ordena que as mulheres devam ser impedidas de dançar e tocar nas igrejas e nos seus adros. Além disso, no inicio do século X, o público é intimado a abster-se dos sons e gargalhadas diabólicas à noite na presença dos mortos quando o padre John III ameaça com excomunhão as mulheres que visitam sepulturas a fim de bater tambores e executar danças. No ano de 1009 surgem novas proscrições contra os sons diabólicos e as gargalhadas à noite na presença dos mortos; De Sully, bispo de Paris, em 1198-1199, proíbe a Festa dos Tolos nas igrejas francesas e refere-se a proibições semelhantes, em datas anteriores, pelo Cardeal Pierre. O Sínodo de Cahors (1206) ameaça com excomunhão as pessoas que dançam dentro ou em frente às igrejas e em 1207 o Papa Inocêncio III investe contra a Festa dos Tolos e a indecência de jogos de padres e diáconos. A preocupação com a dança em cerimônias religiosas dentro da igreja, como questão do corpo, é explicitada de modo mais grave no interdito do Concílio de Avignon, em 1209, onde se decreta a impossibilidade de durante as vigílias dos santos haverem espetáculos de danças e de carolas17. Percebemos, portanto que: As autoridades da Igreja sustentaram uma luta desesperada, primeiro para garantir a compostura na dança e depois, perdida essa batalha para abolir a dança de vez. Século após século, bispos e concílios baixavam decretos, advertindo contra as variadas formas de danças que se executavam dentro e nos adros das igrejas. Mas elas perduravam. Por fim, em 1298, o Concílio de Würzburg declarou-as grave pecado (COX, 1974: 56). 17 Carola é um nome feminino, do latim Chorea. Segundo Backman (1952), chorea significa uma dança de roda, usualmente com som, comum de ser vista nos vasos da Antiguidade. 19 No entanto, esta interdição definitiva não extingue os costumes instaurados no início da Igreja; os ritos pagãos, envolvidos às práticas eclesiásticas não são abandonados simplesmente pela reação contrária dos seus primeiros incentivadores (padres, bispos, papas) e continuam a participar da religião e cultura do povo apesar de ao longo dos séculos seguirem-se proibições e interditos como o Sínodo de York (1377), o Sínodo de Noyon (1389), o Concílio de Paris (1429), o Concílio de Narbonne (1551), o Concílio de Lyons (1566-1567), declarações do Arcebispo de Cologne (1617) e do Bispo de Barcelona (1753) entre inúmeras outras; nenhum único século se passa sem uma proscrição realizar-se, donde apreendemos que a persistência popular nas expressões de louvor caracterizadas pela Igreja como diabólicas, demoníacas e pagãs se faz contínua. Isto porque: Em muitos casos, os costumes e as crenças dos camponeses europeus representam um estado de cultura mais arcaico do que aquele testemunhado pela mitologia da Grécia clássica. É verdade que a maior parte das populações rurais da Europa foi cristianizada há mais de um milênio. Mas elas conseguiram integrar ao seu cristianismo uma grande parte de sua herança religiosa pré-cristã, de uma antigüidade imemorial. Seria inexato supor que, por esta razão, os camponeses da Europa não são cristãos. È preciso, porém, reconhecer que a religiosidade deles não se reduz às formas históricas do cristianismo (...); ao se cristianizarem, os agricultores europeus integraram a sua nova fé a religião cósmica que conservavam desde a préhistória (ELIADE, 1992: 132). Esta herança mítica dos tempos imemoriais fez com que as práticas de louvação através do corpo adquirissem novas formatações e abordagens, porquanto: Proscritos do santuário, os dançantes foram para a praça, para o adro da igreja, e de volta para o cemitério. Acompanhavam ao lado das procissões, ou tomavam até totalmente conta delas. Apareciam nas peregrinações. Animavam os dias e festas dos santos. O culto com dança continuava também em movimentos cristãos fora do alcance dos decretos conciliares, e se mantém vivo até o presente (COX, 1974: 56). Neste ínterim, as procissões assumem o espaço de diálogo entre a devoção e a diversão, misturando em sua estrutura sagrado e profano e promovendo estratégias conciliatórias entre fé e festa. Além disso, o fato de as procissões apresentarem-se como ato de culto nas Escrituras Hebraicas18 auxilia a sua legitimidade como rito cristão, possibilitando à Igreja a concessão de continuidade às manifestações, consideradas 18 Em 2 Samuel (6:3-5) encontramos Davi reunindo os melhores homens de Israel e partindo à Baala de Judá para transportar a arca de Deus, no caminho os homens fazem festa, entusiasmados e cantam ao som de cítaras, harpas, tamborins, pandeiros e marimbas; em 2 Crônicas (5:5-7) apreendemos o transporte da arca e dos utensílios sagrados pelos sacerdotes levitas até o Debir do Templo; em Judite (15:12-16) vemos o instante em que as mulheres israelitas organizam uma dança em honra de Judite, esta última segue na frente de todos, dirigindo a dança das mulheres, e os israelitas seguem atrás, armados, coroados e cantando hinos. 20 profanas, no exterior de suas dependências e, simultaneamente, no contexto de suas práticas cerimoniais. Nos primeiros séculos da Era Cristã torna-se comum, por isso, a reunião dos Nazarenos – ainda no tempo das perseguições – para conduzir o corpo dos mártires até o lugar do sepulcro, como encontramos descrito nas Atas dos Martírios de São Cipriano. Haviam procissões organizadas como visitações aos sepulcros de São Pedro e São Paulo em Roma e aos cemitérios dos mártires na Terra Santa. No Evangelho encontramos a apoteótica procissão que foi a entrada de Jesus em Jerusalém descrita com entusiasmo pelos evangelistas e referências históricas se seguem desde as mais remotas eras. Ilustração 3: Giotto di Bondone – Cenas da Vida de Cristo: Entrada em Jerusalém (1304-1306) Cappella Scrovegni (Arena Chapel), Pádua. Daí, percebermos que a distinção entre rito pagão e cristão é pura visão de espírito ou efeito da racionalização, quando os fenômenos religiosos escapam à lógica e à razão vulgares; afinal: O baptismo católico começou por ser um banho pagão; sacrificar animais à divindade era o principal acto do culto exigido por Deus, hoje é um rito pagão. A distinção cristão/pagão é como a que existe entre religioso/supersticioso: é uma questão de fronteiras entre classes sociais e cultura dominante e dominada: as práticas das elites e das camadas eruditas são inteligentes, aceitáveis, religiosas e cristãs; as do povo – sobretudo as do povo rural – são obscuras, supersticiosas e pagãs. Aliás “pagão” (et. paganus) significa exactamente isso: “rural, habitante de uma aldeia”. Pagãos, com conotação de “mau religioso”, foi o termo que os primeiros teólogos cristãos das cidades do Império Romano criaram para designar os habitantes das 21 aldeias que eles encontraram muito arraigados aos seus costumes locais (SANTO, 1988: 149-0). As procissões, portanto, como heranças pré-cristãs, difundem-se – de modo especial – pela Península Ibérica, onde a formação das monarquias ocorre após as guerras de reconquista de seus territórios, dominados pelos árabes durante oito séculos; tais dramatizações coletivas e em trânsito com dança e canto adquirem, neste período, surpreendente dimensão coreográfica e cenográfica, de tal modo que o padre jesuíta e historiador da dança Claude François Ménestrier denomina o seu desenvolvimento como ballets ambulatoires. Em sua obra Des Ballets Ancient et Modernes selon lês Règles du Théatre (1682), ele aponta para a expansão do balé, presente em quase todos os tipos de representação e refere-se aos cortejos portugueses e espanhóis. Até mesmo nas cerimônias mais santas, na Espanha e em Portugal, são admitidos, na Igreja e nas mais sérias e graves procissões (...) os portugueses tem balés ambulatórios que se dançam nas ruas de uma vila, e vão em diversos lugares, com maquinismos móveis e representações. Fazem-no em festas de santo e nas solenidades maiores (Ménestrier apud MONTEIRO, 2002: 24-5). Neste texto, portanto, datado de 1682, apreendemos que conquanto as relações entre corpo-dança-religião tenham sido direcionadas para o espaço de ação das procissões, estas ao revés de repelir, não se tornam suficientemente úteis para exterminar a prática de se dançar, apesar dos interditos, dentro das igrejas. Em Portugal, por isso, dois séculos antes das observações efetivadas por Ménestrier, encontramos proibições realizadas pelo poder civil e eclesiástico em uma Constituição de Braga, no ano de 1477 que, graças às considerações do padre jesuíta e historiador de balés, podemos depreender não surtiram efeito. Porém mandamos e estreitamente defendemos sob pena de descomunhom que assi homens como molheres eclesiásticos e seculares que por cumprir sua devoçam quiserem ter vigília em algua igreja ou mosteiro, capela ou irmida, non sejam ousados fazer nem consentir nem dar lugar que hi se façam jogos, momos, cantigas nem bailhos nem se vistam os homens em vestiduras de molheres nem molheres vestiduras de homens, nem tangam sinos nem campanas nem orgoões nem alaudes, guitarras, violas, pandeiros, nem outro nenhum instrumento, nem façam outras desonestidades pelas quaes muitas vezes provocam e fazem vir a ira de Deos sobre a terra (SASPORTES, 1979: 14-5). Exatamente por esta época, um Portugal enriquecido e cheio de uma efervescente cultura popular começa a expandir seus domínios por meio da rota marítima comercial com as regiões orientais, o que resulta na conquista de novas terras. O descobrimento de nosso país, produto da expansão marítima portuguesa, traz consigo 22 a implantação dessa comovente cultura popular ibérica, impregnada de ares medievais em terras brasileiras. Ao que parece, a tradição de comemorar o louvor aos santos e divinos chega aqui pelos jesuítas e devotos e é aplicada como instrumento de catequese a população local. Cantar, tocar instrumentos, dançar e representar parecem as melhores formas de comunicar as idéias de uma nova religião e retirá-los do paganismo, como expressa Brandão (1985: 143): Os missionários jesuítas costumavam a catequizar os índios com o recurso de autos e dramas litúrgicos que faziam traduzir inclusive para a “língua geral”, falada em quase toda a Colônia. De novo e com a liberdade que os interesses da empresa conversionista torna necessária, índios e brancos e mais os negros escravos, tempos depois, cantam, representam e dançam dentro das igrejas e nas procissões. Esta ação coletiva promove a integração entre setores subalternos e elevados da sociedade, permitindo aos indivíduos colonizados participarem como agentes ativos das celebrações públicas, favorecendo, desta maneira, tanto a fruição individual do lúdico, do jogo e da brincadeira como a geração de sociabilidades festivas. A este respeito, José Ramos19 esclarece: A intromissão progressiva de representantes das camadas situadas abaixo da dos detentores dos poderes político-econômico-administrativos locais em cerimônias religiosas de caráter coletivo, dentro e fora das igrejas, tornou-se possível pela herança medieval do cristianismo ocidental, que desde cedo adotara a dramatização de episódios da história sagrada com fins de propagação, às maiorias, dos princípios do Evangelho, através de exemplos. O que havia ocorrido, pois, nos primeiros anos do Cristianismo na Europa repete-se séculos depois em terras de domínio português. Com intuito de ensinar não apenas os costumes civilizatórios, mas os valores religiosos que embasavam tais costumes (aproveitando e fomentando nas igrejas a tendência à participação coletiva, característica dos ritos pagãos) os padres jesuítas – emissários da Igreja – utilizam-se da mímica, dos bailados, dos cantos e procissões como elementos de dominação e difusão cultural. Segundo Priore (1994), este tipo de celebração, na qual um desfile de fiéis acompanha o pálio sob o qual segue o sacerdote, ou os andores, fora instituído no Brasil desde o governo-geral de Tomé de Souza, quando chegaram aqui os primeiros jesuítas, donde percebemos que o processo de deslocamento da dramatização ritual dos episódios da história, das igrejas para as ruas, efetiva-se já no primeiro século da colonização. Com o passar dos anos, porém, a partir das Visitações do Santo Ofício às terras Brasileiras e à medida que portugueses vindos com o escopo de explorar a colônia aí se 19 Tinhorão, 2000: 67. 23 fixam, o que antes eram representações e cortejos andantes de jesuítas e índios começa a se estruturar através do maior número de atores sociais da cultura popular portuguesa. Percebendo, então, alguns abusos que começam a ocorrer com a mistura de colonos, índios e tradições populares, a Igreja luta contra a tradição por ela inventada. Aquilo mesmo que a Igreja introduzira e usara, seja para a catequese de índios e negros, seja para um intolerante controle simbólico da ordem social, passa a ser definido como prática profanadora, quando feito dentro e fora da igreja, sem a presença e a direção do clero (BRANDÃO, 1985: 145). Assim, apreendemos já no século XVII que o esforço pela moralização dos costumes religiosos afasta a igreja de tais celebrações, legando-as ao povo. O Alto Clero passa a admoestar as igrejas e seus fiéis incitando-os a não promoverem jogos, bailes ou festas sob o princípio de que tais formas de crença e culto não celebram os ofícios, mas pervertem os homens; as perseguições às atividades bailatórias no contexto religioso da Igreja no Brasil prosseguem e no século XIX, como nos aponta o texto a seguir, extraído de um bispo do Maranhão em 1858, ainda encontramos providências eclesiásticas que condenem as folgas e divertimentos da devoção popular. Condenei o uso de bailes de São Gonçalo, tão freqüentes por toda esta ribeira, acreditando o povo que eles são não só coisa muito lícita, mas agradável a Deus. Fiz-lhe ver que não há inimigos mais perigosos do que os divertimentos noturnos, como essas danças imodestas, que obrigam a tantas despesas ruinosas. Disse-lhes que tais bailes não são de São Gonçalo, mas do diabo, e só próprios para perverter os costumes, e fazer-nos perder a salvação eterna, lançando-nos no abismo do pecado (Azzi apud BRANDÃO, 1985: 145). Este processo de romanização da igreja, que Dantas (1999) designa como o esforço de conciliar a Igreja Brasileira com o Papado, possui como eixo principal a manutenção da hierarquia eclesiástica, através da condenação sistemática dos modos de devoção popular: cantos, mímicas, danças, músicas, etc. Mas, como ocorrido na Europa Medieval, as tradições populares já se tinham apossado da estrutura social e não seria a interferência do clero, com sua intolerância para com os modos de crença do povo, que exterminaria o que já tomara o gosto e a forma de ser de seus habitantes. Daí, depreendemos que ao condenar a operação religiosa popular e autônoma a Igreja Católica contribui substancialmente à construção daquilo que reconhecemos como Catolicismo Popular20. 20 O catolicismo popular compreende as mais diversas manifestações religiosas, sendo influenciado tanto pelo catolicismo renovado (posterior ao Concílio de Trento, cujas reformas ortodoxas buscavam no século XVIII, invalidar hábitos e costumes religiosos populares) quanto pelo catolicismo tradicional (trazido pelos portugueses ao Brasil, no período colonial, que reforça a devoção aos santos e valoriza as romarias, procissões e as ações de pessoas leigas como, por exemplo, as benzedeiras). Através do catolicismo popular, o homem comum repõe a sua religiosidade, sem deixar de lado seus ritos, deuses, 24 Ao definir como legítimos apenas os seus símbolos, sua doutrina, suas cerimônias litúrgicas e o ofício dos seus sacerdotes, ela [a Igreja] finalmente constitui juridicamente um outro lado da vida religiosa católica. Aquele que, sendo realizado à margem dos domínios diretos da Igreja, sempre teve um poder de penetração e de reprodução de formas de religiosidade entre as classes populares muito maior do que o da própria Igreja (BRANDÃO, 1985: 146). Descortinando, portanto, a conversão à Igreja Católica podemos analisar que muitas estruturas societárias continuam a praticar suas danças, cantos, versos e dramatizações, que conquanto ligadas à comemoração de algum santo/a católico/a, contém em si o sentido da tradição pagã: manifestações de fertilidade, relações de amor e arcaísmos simbólicos. Isto se faz possível, apesar do contexto de proibições e perseguições às práticas de devoção em diversão, por dois motivos principais: o primeiro diz respeito à necessidade de ação e celebração dos agentes populares, promotores destes rituais, e o segundo ao fato de que, as instituições possuem suas regras e normas de conduta, todavia, são gerenciadas pelas pessoas, agentes que constroem as instituições e estas possuem suas maneiras de vivê-las; deste modo: Embora a Igreja defina suas posições através de documentos diversos ela não se constitui num bloco monolítico onde todos seus agentes atuam do mesmo modo e no mesmo ritmo. Há sempre uma margem de adequação das ordens emanadas de Roma aos contextos diversos, que passa pela biografia dos padres e sua inserção no meio em que atuam. Isto permite um certo poder de barganha para o estabelecimento das várias alianças locais, deixando espaço para que certos grupos de dança que são excluídos de algumas cidades persistam em outras (DANTAS, 1999: 117). Assim, os modos populares de representação coletiva da fé, apesar dos freqüentes embates com a ideologia dominante, persistem na manutenção, articulação e desenvolvimento de arranjos simbólicos e espaços sociais construídos para aquela prática de devoção que se ampara em particularidades, especificidades e peculiaridades próprias a determinadas situações e grupos sóciopolíticos que escapam à ordem comum das coisas, ratificando, por este meio, os aspectos motivacionais da crença na força coletiva e histórica das expressões religiosas e sensíveis em questão. A presença de apologistas clericais às ações populares permite o estabelecimento de expressões míticas distintas daquelas validadas pela Igreja, que dialogando com as formas de culto e ritual produzem versões alternativas sobre fatos, dados, homens. práticas e mitos, partes de um imaginário secularmente transmitido nas lendas e narrativas cotidianas. Assim, o catolicismo popular é visto como o espaço das práticas religiosas de pessoas batizadas que se professam católicas sem a presença da constelação sacramental, funcionando como uma variante do catolicismo oficial, utilizado no processo de evangelização do mundo novo. O que o caracteriza é a individualização das relações do homem com os seres sagrados, sobretudo com as almas e os Santos. 25 Estas versões alternativas que engendram espaços de religiosidade fértil entre as dimensões do sagrado e do profano se organizam a seguir como histórias do santo (clericais e populares), ambiências relacionadas ao perfil ontológico do beato amarantino, cuja elucubração de ordem epistemológica pretende apreender os vínculos existentes entre ambas as abordagens narrativas e perceber as propriedades e os valores que se desdobram em tempos e espaços, fluxos e intensidades de louvor, como dispositivos para a mistura entre o conteúdo religioso e as formas de diversão popular, a partir do pensamento mítico que estrutura o ritual: na rua, no altar, no corpo e(m) movimento. 26 1.2 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: HISTÓRIAS DO SANTO Todo espaço de religiosidade e ação ritual estruturam substâncias míticas que fornecem modelos para o comportamento humano e, por isso, conferem significado e valor à existência; realidades culturais, extremamente complexas, tais substâncias míticas ou mitos servem para revelar o sagrado e os modelos exemplares que o sustentam como estandarte, alimentando os ritos e as atividades humanas a ele relacionadas. A guisa de relato de um acontecimento sobrenatural, ou a maneira de uma história de caráter sagrado, o mito fortalece a partir de suas bases o ciclo da religiosidade e a manutenção periódica de suas causas, articulando-se como uma realidade original que responde a necessidade religiosa, a aspirações morais, a constrangimentos e imperativos de ordem social e, até, a exigências práticas; afinal: (...) o mito exerce uma função indispensável: ele exprime, realça e codifica as crenças; salvaguarda os princípios morais e impõe-os; garante a eficácia das cerimónias rituais e fornece regras práticas para uso do homem. O mito é, pois, um elemento essencial da civilização humana; longe de ser uma vã fabulação, é, pelo contrário, uma realidade viva, à qual constantemente se recorre; não é uma teoria abstracta nem uma ostentação de imagens, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática (ELIADE, 1963: 24). O compartilhamento destes saberes-práticos reflete a estrutura e o conjunto de relações sociais que garantem validade à modalidade do discurso mítico, tendo em vista que nos revelam a natureza constitutiva do mito como uma formação de feixes de relações significantes, porquanto, históricas e nos induzem a crer que “a substância do mito não se encontra nem no estilo, nem na narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada”21. Cada mito, neste sentido, narra modelos exemplares representativos de uma ontologia sagrada e, deste modo, gera e/ou reatualiza agenciamentos epistemológicos cujo escopo consiste em contribuir à manutenção histórica da santidade do mundo, ou seja, o Cosmos. A compreensão de que o mito tem por principal função cooperar, através de suas narrativas, no processo de fixação dos modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas relacionadas auxilia-nos, pois, a apreender o fato de que seus aspectos circunscrevem-se à expressão de realidades que assumem o papel de apresentar como um fenômeno sagrado (desde o Universo até seus fragmentos como um animal, uma instituição, um comportamento humano) torna-se ocorrência entre os homens, comunicando-os, relacionando-os e religando-os ao Mais Alto. 21 Lévi-Strauss, 1985: 242. 27 Nesta perspectiva, que corresponde aos vértices de comunicação, relação e união com as divindades, os mitos substancializam traços característicos, atributos desta triangulação, que os diferenciam de outras narrativas: 1) constituem uma história de atos de seres sobrenaturais; 2) tal história é considerada absolutamente verdadeira, por tratar de realidades ou do próprio sagrado; 3) referem-se à criação (aqui se entende valores, comportamentos, hábitos nobres, etc.); 4) constituem um conhecimento que, por ser modelar e referencial, deve ser vivido; 5) tornam-se vividos quando atualizados no conjunto de práticas humanas através de uma verdadeira experiência religiosa. Toda criação brota da plenitude. Os deuses criam por um excesso de poder, por um transbordar de energia. A criação faz-se por um acréscimo de substância ontológica. É por isso que o mito que conta essa ontofania sagrada, a manifestação vitoriosa de uma plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas: só ele revela o real, o superabundante, o eficaz (ELIADE, 1992: 82). Ora, quando a Igreja formula um modelo exemplar de homem cujo caráter (devoto, penitente, benévolo, casto, fraterno, amoroso, solícito e caridoso), torna-se ideário de comunhão com o Divino cria-se aí uma utilização de categorias do pensamento mítico onde a virtude (através da qual o homem torna-se sobre-humano), a verdade (que consagra a narrativa como realidade), os valores (que fecundam e geram comportamentos sublimados), o exemplo (que se caracteriza como conhecimento modelar) e o exercício de atualização do modelo pelos devotos (como experiência religiosa), tornam-se elementos incontestáveis porquanto reais. Assim, igualmente ocorre quando a tradição oral ou os agentes da cultura popular produzem imaginários e simbolismos que favorecem a espécies de comportamentos que rompem à ordem normal e regulada das coisas, legitimando e justificando esta transformação, que se desdobra em manifestação ritual, em atos de um ser (trans)humano, atualizando nesta espécie de homem virtudes marcadas pela irreverência comportamental. O pensamento mítico, neste sentido, organizado por um conjunto de versões (eclesiais e populares) estrutura arquétipos que prolongam e completam as relações dos homens com a vida (histórias, práticas, tempos, espaços, pessoas) alargando e organizando através do binômio ordem-desordem possibilidades de articulação da fé, a partir de dois eixos simbólicos distintos, pois enquanto que no primeiro encontramos narrativas míticas configuradas como um corpo homogêneo e alinhavado de forma ordenada, coerente e indivisível, no segundo eixo os mitos apresentam-se de maneira desordenada ou fragmentada, assemelhando-se a tecidos de patchwork em que não predominam a lógica, tampouco a coerência. 28 Com efeito, indagamos se o eixo desestruturado seria a forma arcaica e primordial do mito, posteriormente organizada por clérigos e sacerdotes ou, se ao contrário, esta forma fragmentada já seria o resultado de um longo processo de deterioração e desorganização sofrido pela matéria mítica, inicialmente, coerente e ordenada. No entretanto, o que nos interessa não é determinar a anterioridade ou a posterioridade das variantes míticas, mas, sobretudo, perceber os mitos, compreender suas estruturas e organizações, observar seus aspectos e funções, analisar e interpretar seus mecanismos e processos, entendê-los, portanto, como fatos humanos, dentro de uma perspectiva histórico-religiosa e, desta maneira, inferir os fenômenos míticos e as abordagens rituais que assumem validade no culto a São Gonçalo de Amarante. Neste contexto, identificamos o estabelecimento de duas formatações de celebração que acabam por construir histórias, mitos e estruturas de lendas diferenciadas que acordam cada qual com o conjunto de práticas rituais e formas de crenças com as quais se afilia. No culto a São Gonçalo, por isso, apreendemos duas composições históricas que visam engendrar um processo de reconhecimento do santo no mundo; a primeira, produzida pela Igreja, trata de oficializar um discurso biográfico narrativo, apresentando atributos da vida do bem aventurado que apontem aspectos motivacionais para sua veneração entre os homens; a segunda elaborada pelos agentes populares, busca compartilhar socialmente a própria crença, através de versos, cantos e gestualidades capazes de construir e comunicar qualquer significado ritual e coletivo: de um lado, logo, apreendemos um santo que veste batina, de outro aquele mesmo santo vestindo calção. A seguir, portanto, dispomo-nos a conhecer estas narrativas que favorecem a representação do beato amarantino com inúmeras valências simbólicas; examinar pontos de divergências e conciliações entre a história oficial e o conteúdo da tradição oral; compreender as tramas que se tecem na urdidura do sagrado e do profano na estrutura mítica que fomenta as formas de crença e louvor ao santo e, por fim, depreender a indigência de se analisar a natureza expressiva do culto numa perspectiva dialógica com o corpo. 29 1.2.1 - SANTO QUE VESTE BATINA Neste momento, nos propomos a tratar da personagem mítica Gonçalo de Amarante, partindo de trechos de sua hagiografia22 encontrados em uma evidência documental datada de 1591 realizada no Mosteiro D’Anunciada em Lisboa, coletada por Francisco Fernandes Galvão, no livro Sermões das Festas dos Santos. Neste documento, apreendemos particularidades do caráter devocional do santo amarantino e peculiaridades de sua formação eclesiástica, construídas desde a tenra idade como estruturas sígnicas a corroborarem a predestinação daquele ser aos ofícios da Santa Igreja. Vede logo quãto se pode fiar, neste assento e officio do glorioso S. Gõçalo, pois tudo o do mundo enjeitou, cuja meninice foy cõ tantos presagios do que depois aviamos de ver, que lo dia de seu baptismo pós os olhos em Christo crucificado, & depois naõ tomava o leyte da ama sem o ver; & aquelle Senhor quem disse que da cruz avia de trazer todas as cousas a si, até a tenra idade de S. Gõçalo atrahio de modo, que já então lhe roubava os olhos hum Deos crucificado (...). O milhor de tudo o que possuya offereceo a Deos (...). Em estado de clérigo foy este Sãto devoto & penitente, & tam casto (...) em estado de Abbade tam amigo dos pobres, tanto amor as ovelhas: no de peregrino, a devação com que foy visitar os lugares santos; no de frade tão solicito de pregar, & ensinar23 (GALVÃO, 1613: 5). Em linhas gerais, o texto nos habilita perceber que já o nascimento e a juventude de Gonçalo testemunham sinais de santidade, sinais estes desenvolvidos ainda mais após seu ingresso nos serviços sacerdotais: clérigo penitente e casto; abade com amor fraternal aos pobres; peregrino devoto; frade solícito e generoso; etc. Estas virtudes não são somente arranjos com os quais se decoram a história de uma pessoa, mas conceitos graves e modelos exemplares de um mito que nos propõe seguimento. Nascido na freguesia de Talgide, próxima às Caldas de Vizela, no ano de 1187, Gonçalo ainda menino estuda rudimentos com um devoto sacerdote. Mais tarde freqüenta a Escola Arquiepiscopal em Braga onde após a sua ordenação beneditina recebe a mercê de zelar por uma paróquia rica na aldeia de São Paio de Riba-Vizela, apesar de sua humildade e resistência. No entanto, o interesse e zelo fraternal que Gonçalo nutre pelos pobres e deserdados subtraí a extensão de sua felicidade, afinal, Gonçalo não se interessa por paroquianos ricos, roga, então a Virgem Maria solução profícua e entendimento ante os seus problemas e, durante sua permanência em tais 22 Hagiografia consiste em um tipo de biografia que descreve a história de vida de santos, beatos e servos de Deus. Nestes documentos, por isso, há maior preocupação em apresentar conteúdos da vida religiosa do biografado do que o histórico dos fatos. 23 Na reprodução do texto encontramos problemas técnicos no que diz respeito à grafia de determinadas palavras, que adaptamos à forma de uso contemporâneo. 30 sítios de serviço evangélico, compartilha toda a soma de proventos adquiridos com os pobres. Decorridos alguns anos de incessantes esforços para o bem temporal e espiritual de seu rebanho, resolve viajar, a fim de conhecer os lugares santos da Palestina e visitar os túmulos de São Pedro e São Paulo, em Roma, deixando um sobrinho como substituto. Ao voltar alguns anos depois se desola com o estado de sua paróquia, mal dirigida pelo seu parente, o qual, além de tudo, o maltrata quando por ele repreendido. Neste entrecho, o dinheiro arrecadado para os pobres é usado para comprar bons estábulos, cavalos e cães, seu sobrinho se torna homem faustoso e dissoluto, despendendo, por isso, em festas, passatempos e folganças as rendas paroquiais; como o sobrinho diz a todos que seu tio faleceu após seu retorno ninguém o reconhece devido às transformações ocorridas em seu corpo pela ação do tempo e intempéries da longa peregrinação de quatorze anos. Gonçalo é, então, expulso, após ser espancado brutalmente pelo sobrinho ingrato, por uma matilha de cães, que às dentadas lhe afastam da residência. Aqui, apreende-se mais um elemento que sustenta, a nível mítico, o ritual de devoção a São Gonçalo de Amarante: a luta contra o mal, encarnado na figura representativa de seu sobrinho, que nos orienta à necessidade da defesa da moralidade dos preceitos cristãos e a pureza e renúncia daqueles que abraçam o sacerdócio. Banido pelo parente, Gonçalo resignado opta por se tornar ermitão e segue em caminhada até chegar à região distante, denominada Amarante, onde se fixa dando continuidade às visitas aos doentes e à evangelização dos aflitos, mas onde principalmente se dedica às orações e jejuns. Sente, no entanto, necessidade de encontrar um caminho mais seguro que o possibilite alcançar a Graça Eterna. Jejua uma Quaresma inteira a pão e água e suplica, fervorosamente, a Nossa Senhora lhe permita a benção da compreensão. Eis que Gonçalo recebe a aparição da Virgem concitando-o a ingressar naquela Ordem que tinha o costume de começar o ofício com a “Ave Maria Gratia Plena”, Gonçalo busca o Convento dos Dominicanos e aí ingressa. Desejando cada vez mais se aperfeiçoar nas virtudes cristãs, suplicou à Virgem Maria que lhe mostrasse o caminho para realizar sua aspiração. Nossa Senhora lhe apareceu e o aconselhou a tomar o hábito de São Domingos. Dirigindo-se para Guimarães, ali fez noviciado e, após a solene profissão, pediu ao prior para voltar ao eremitério de Amarante, onde, com o auxílio de um companheiro dominicano, prosseguiu sua vida evangélica e caritativa (MEGALE, 2009: 114). 31 Lá, próximo ao local de estabelecimento de sua ermida situa-se o rio Tâmega, cuja travessia é possível apenas pela presença de uma ponte construída em 106, pelo Imperador Trajano (53-117); ante a necessidade coletiva, o sacerdote resolve edificar nova ponte para facilitar o transporte de mercadorias de uma zona a outra e para esta empreitada, que necessita de recursos pecuniários, conta com a caridade popular. Muitos dos milagres que a ele são atribuídos aí se iniciam. Em suas andanças arrecadando fundos para a construção da ponte, o sacerdote amarantino pediu esmolas a um homem rico, mas boêmio. Encontrando um momento de diversão, o homem deu-lhe um bilhete e disse que fosse até a sua casa e o entregasse a sua mulher para receber a esmola. Lá chegando, a esposa disse-lhe que o bilhete autorizava dar ao sacerdote o peso do bilhete em trigo. Não se fazendo de rogado pediu que pesasse o bilhete e que aceitaria a esmola mesmo sendo alguns grãos de trigo. A mulher pôs o bilhete em uma balança e nem mesmo todo o trigo que havia no seu celeiro equiparara-se ao peso da pequena folha de papel (FERNANDES, 2004: 38). E prossegue: De outra feita, durante os trabalhos na construção da ponte, deram ao sacerdote uma junta de bois bravios. Com uma só ordem, o padre conseguiu submetê-los ao trabalho como se fossem adestrados a anos. Sempre vistoriando pessoalmente as obras quando o frade chegava à margem do rio e chamava os peixes, esses corriam em cardumes saltando aos seus pés (FERNANDES, 2004: 38). Ainda durante as obras na ponte percebemos outros milagres: no intuito de evitar o sobe e desce dos operários para obter água fresca, o bem-aventurado toca com o bordão de abade em uma rocha e dali faz surgir uma fonte de água abundante. Além da água, o padre toca outra pedra e de lá faz surgir uma fonte de vinho para alegrar e fortalecer os trabalhadores. Em outra ocasião, muitos operários lutam para demover uma enorme pedra que atrapalha o serviço geral, com uma só mão o santo remove a pedra, segundo depoimento de alguns presentes, com a ajuda dos anjos. Faz-se mister observar as relações estabelecidas entre tais estruturas sígnicas e a rede de conceitos que tecem a zona ritual de louvor ao santo: a água é símbolo mítico que indica produção maternal e instaura no mais profundo inconsciente individual e coletivo ideários de origem, simbolismos de prosperidade, arquétipos de fertilidade e fecundidade à numerosas culturas. As pedras e rochas, por sua vez, são elementos igualmente associados às fórmulas de culto ancestral, de acordo com suas estruturas, viabilizam relações com símbolos fálicos, ou quando arredondadas, com atributos maternais; em Portugal, por exemplo, muitas rochas arredondadas ou furadas foram integradas, no passado, ao culto de Maria – santa de devoção de Gonçalo. 32 Nos trechos hagiográficos inseridos nos Sermões dos Santos constatamos, através da exposição elaborada por Galvão, dados que atestam o ingresso do padre a Ordem Dominicana sob direção do beato Pedro Gonzáles, seu milagre ao gerar água e vinho da pedra e o seu chamamento aos peixes. He o glorioso S. Gonçalo hum ramalhete de todas as virtudes & todos os estados tem que imitar nelle. Quem tem hum jardim a que está afeiçoado, se vê hua planta fermosa em outro alheo cobiçaa muyto pera o seu; assim pera aver toda a differença de arvores de ba fruito, neste jardim da ordem do Patriarcha S. Domingos que a Virgem Nossa Senhora plantou na terra, do qual ella he a guarda & protectora vendo no habito de Clérigo ao Glorioso S. Gonçalo, planta fermosa, & de tãto preço, trouxeo pera este jardim da Religião do Patriarcha S. Domingos, peraque cõ elle ficasse mais nobre & engrandecida. Muy conhecido foy Moyses24 por as grandezas que fez com a vara: mas o nosso Santo fez mais, porque elle tocou com a vara na pedra, & tirou agoa: mas o gloriso S. Gonçalo agoa e vinho; & os proprios peixes lhe obedecião de sorte que se lhe metião nas mãos, pêra ser sustentação de seus officiaes, porque mais estimavão perder a vida com servir ao nosso Santo, que possuila quietamente na agoa onde estavão. Tem outra qualidade este sãto muyto pera estimar que he Santo, & mais Portuguez. (GALVÃO, 1613: 5-6). Tempos depois, de tais realizações, o sacerdote cai enfermo e se despede de sua comunidade anunciando haver recebido uma revelação da Santíssima Virgem com relação ao dia de sua morte. Morre o beato em 10 de janeiro de 1259, em seu humilde leito de palha do eremitério, confortado pelo companheiro de hábito, em meio a visões celestiais e prometendo a todos auxílio e cooperação mesmo após sua morte física. Dizia S. Bernardo fallãdo com seu irmão Gerardo defunto; & assim o glorioso S. Gonçalo disse, que mais nos avia de aproveitar morto que vivo. Pois lembrovos glorioso Santo, que já que vivo cõ tantos milagres ennobrecestes Portugal, agora mayores os fazeis, se então nos servistes de exemplo, agora de intercessor pera nos alcançar a graça e gloria (GALVÃO, 1613: 6). Aí, percebe-se que a revelação da data da morte consiste, outrossim, em base para o mito de São Gonçalo de Amarante porquanto descreve a irrupção do sagrado, atribuído à imagem da Virgem Maria, conferindo valores às preces e orações dos sinceros devotos do Nazareno e ratificando o lugar dos justos e eleitos na cosmologia cristã. Mais tarde, em meados do século XIV, a ermida primitiva construída por São Gonçalo e sob a qual seu corpo fora sepultado é ampliada em igreja e doada para o Convento de São Domingos pelo Cardeal D. Henrique. Em 1543, o rei de Portugal, D. João III, fervoroso devoto que toma a iniciativa de negociar em Roma a beatificação de seu padroeiro, manda erguer suntuoso templo e convento, ainda hoje existentes, no local 24 Êxodo 17 33 da ermida – monumento histórico da cidade de Amarante – e em 1552 o monarca encarrega D. Afonso de Lencastre, comendador da ordem do Cristo e embaixador português em Roma para juntamente com frei Julião, representante do mosteiro dominicano de Lisboa, tratar da beatificação de frei Gonçalo. Devoção particular sim, mas não apenas isso pode explicar o esforço do rei português no processo de canonização. Havia um contexto de disputa internacional entre Portugal e Espanha em suas fases áureas no pós expansão marítima. Tal disputa estendia-se em diversos campos e o “domínio” dos santos não fugiu a isso: ‘... nos séculos barrocos, Portugal e Espanha costumavam disputar entre si para saber qual dos reinos ostentava o maior número de santos e beatos reconhecidos por Roma’ (FERNANDES, 2004: 39-0). Apesar dos esforços portugueses, todavia, o processo encaminhado pelo rei D. João III é perdido e em 1561 Dom Rodrigo Pinheiro, bispo do Porto, por incumbência del Rei D. Sebastião, do Arcebispo de Braga e da Ordem de São Domingos, organiza novo processo, então, aprovado pelo papa Pio IV que intitula, no mesmo ano, frei Gonçalo beato; sua festa passa a ser então celebrada no dia de sua morte e autorizada por todo o reino português. O seu culto espalha-se pelos domínios ultramarinos de Portugal, chegando à Índia e ao Brasil como o confirma um longo e engenhoso sermão do Padre António Vieira sobre S. Gonçalo. Todavia, apesar de todos os esforços, o processo de canonização do beato amarantino não avança e, por conseguinte, este não se torna santo sendo outorgado pela Igreja como bem-aventurado e reconhecido oficialmente como Beato Gonçalo de Amarante. Ilustração 4: Imagem de São Gonçalo de Amarante à Cultura Eclesial. 34 1.2.2 - SANTO QUE VESTE CALÇÃO Após um breve histórico das relações entre corpo, dança e religião ao longo dos tempos e da análise da hagiografia de São Gonçalo de Amarante em Portugal, partimos para a interpretação da estrutura que o ritual apresenta no imaginário popular, onde paralelo à história oficial, assentada nos dados hagiográficos da vida do frei dominicano, encontramos os dados míticos que estruturam-se na oralidade popular, remanescentes de tradições pagãs, cuja origem remonta tempos imemoriais em que o povo carregado de emoções e entusiasmos, celebra os ciclos das estações relacionados aos períodos produtivos da Natureza. A temática inicial do culto popular a São Gonçalo de Amarante nasce, então, com a carga dramática baseada em ideários de prosperidade, fertilidade e produtividade, de onde apreendemos a devoção principalmente feminina. Em Portugal se realizam duas festas por ano em louvor do santo, em janeiro e junho, períodos dos solstícios de inverno e verão europeus, o que remonta os rituais pagãos da Antiguidade. Anteriormente celebrada, por todo o estado nacional em janeiro, a festa foi transferida, em muitas regiões, para o mês de junho e integrada ao ciclo de festas dos solstícios de verão. Somente em Vila Nova de Gaia e em Aveiro, ainda se celebra a festa ao santo no período de abertura do ano. A primeira festa efetuada no dia de sua morte ou no domingo próximo, 10 de janeiro, tem a particularidade de conservar aspectos dos rituais que assinalam um tempo de renovação e apontam relações entre os homens e o Tempo Cósmico, tendo-se em vista que o Cosmos é concebido como uma unidade viva que nasce, se desenvolve e se extingue no último dia do ano para renascer no dia do Ano Novo. Percebemos, pois, uma correspondência cósmico-temporal cuja natureza faz-se religiosa; afinal, aí, o Cosmos é identificável ao Tempo cósmico (o “Ano”) e tanto um como o outro são realidades sagradas, criações divinas, suscetíveis de celebração. Durante a segunda festa para São Gonçalo, percebemos a realização de uma romaria aonde as mulheres vendem bolos – na forma de falo – chamados “testículos de São Gonçalo”. Assim, o ritual se liga a questões de fertilidade feminina, se tornando um culto erótico, remontando caracteres das tradições pagãs locais, afinal, “nesta festa ainda no princípio do século se vendia pão e doce de formas bizarras, quando não arremeda a figura humana ou a de animais, em reminiscências fálicas e ofiolátricas e bem pintalgadas de cores vivas” (Mattos apud Guimarães, 1993: 152). 35 Observamos, portanto, nestes festejos, permanências e deslocamentos de características da religiosidade pagã; entre os romanos, por exemplo, o mês de janeiro (do latim janua, porta) era comemorado como Calendas Ianuarii (Calendas de Janeiro), festejos com grupos populares a cantar e dançar ao som de tambores e outros instrumentos até aos templos, em cada início de ano que integravam e envolviam os homens a um imaginário que os ligavam a idéias de reinício, prosperidade e fertilidade; por isso: A festa de São Gonçalo (...) neste sentido, tem a particularidade de conservar aspectos dos rituais que assinalam um tempo de renovação. A festa que coincide pela via do calendário com a “festa de Jano”, evoca o Deus romano que é representado com dois rostos que se opõem, um olhando para a frente e outro olhando para trás. Se tivermos em mente esta representação, que aponta para abertura, reinício das coisas e as habituais características da Idade de Ouro atribuídas ao reinado de Jano, tais como a idéia de abundância talvez possamos compreender melhor a associação entre São Gonçalo de Amarante e elementos contidos no seu ritual de fertilidade tanto em Portugal, quanto no Brasil (SANTOS, 2004: 226). Inferimos, pois, que esta festa antiga de ascendência romana, ainda que com o decorrer dos anos tenha sido cristianizada, mantém o seu caráter propiciatório, de invocação do culto da fertilidade que se deve concretizar no ano que começa. Apreendemos, ante esta perspectiva, que o mundo renova-se anualmente em relação ao tempo gerando estados de vínculos espaços-temporais que estruturam uma imagem cíclica, mapas circulares de proposição à renovação, uma unidade que se faz, por isso, repetível através de processos de atualização. A vida Cósmica é imaginada sob a forma de uma trajetória circular, identificando-se com a estrutura temporal do Ano, onde a cada Ano Novo surge um Tempo “novo”, “puro” e “santo” porquanto ainda não utilizado pela Humanidade. Visto que o Ano Novo é uma reatualização da cosmogonia, implica uma retomada do Tempo em seus primórdios, quer dizer, a restauração do Tempo primordial, do Tempo “puro”, aquele que existia no momento da Criação. É por essa razão que, por ocasião do Ano Novo, se procede a “purificação” e à expulsão dos pecados, dos demônios ou simplesmente de um bode expiatório. Pois não se trata apenas da cessação efetiva de um certo intervalo (como imagina, por exemplo, um homem moderno), mas também da abolição do ano passado e do tempo decorrido (ELIADE, 1992: 66-7). Aí, encontramos, além da purificação, outros sentidos rituais para tais celebrações: a combustão dos pecados, a anulação dos erros e equívocos perpetrados, um esquecimento das faltas do indivíduo e da comunidade como um todo, ideários de fertilidade e prosperidade, etc. Este estado de fenômenos relacionados à santificação dos indivíduos está presente na produção hagiográfica eclesial que constrói a narrativa, dita oficial, e fomenta a crença, e seus desdobramentos, em torno do santo amarantino. 36 Apesar de não descobrirmos dados oficiais que apontem para a origem associativa do culto a São Gonçalo de Amarante às celebrações das Calendas de Janeiro, sabemos que o aspecto atual da festa em Portugal faz-se como resultante da dispensa elaborada por diversas ordens, no início do século XVI, a pescadores e mareantes para que estes andassem com o objetivo de recolher esmolas destinadas aos custos da canonização do santo. O desdobramento desta permissividade eclesial engendrou processos que ainda hoje escandalizam as autoridades municipais e religiosas: a lubricidade das danças; a grosseria das canções, geralmente obscenas; todas aquelas pantomimas carregadas de simbologia erótica e, por fim, os trajes, que se prestavam facilmente à imoralidade ou, pelo menos, a brincadeiras grosseiras. Assim, na festa em Aveiro, como meio de pagar promessas ou encomendar alguma graça, lançam-se cavacas doces (bolos secos feitos de claras de ovos, farinha de trigo e cobertos de açúcar) do cimo da capela de São Gonçalinho e estas são guardadas durante o ano como símbolo de proteção ou fertilidade. A cada badalada do sino, a gente da cidade corre para apanhar os doces com redes, chapéus, guarda-chuvas invertidos, etc. Tal festividade é marcada pelo pagamento de promessas ao santo, onde os fiéis agradecem o seu poder de cura às doenças ósseas (mal comum entre os trabalhadores do mar) e à resolução dos problemas relacionados à união conjugal. Há ainda a dança dos mancos, isto é: (...) uma dança de homens, pretensamente diminuídos dos membros, que assim agradecem ao santo o tê-los curado de alguma enfermidade dos ossos. Mas, igualmente as mulheres entram na dança que também se realiza no terreiro, e não só as do povo, mas também... algumas senhoras e cavalheiros da primeira sociedade aveirense (Santos Junior apud GUIMARÃES, 1993: 150). Por sua vez, a festa de Vila Nova de Gaia, organiza-se em romaria, onde três cortejos distintos percorrem ruas e vilas e se encontram, ao final da tarde, na igreja de Mafamude: os Mareantes do Rio Douro, as Comissões Velha e Nova de Rasa. Com pequenas variações a composição dos cortejos é esta: à frente o mordomo dos mareantes com a cabeça do santo, a imagem de São Gonçalinho e o penitente vestido de São Roque. A este grupo segue-se o alferes – o porta bandeira – e os maiorais; em volta destes dois grupos, à frente durante as voltas à igreja ou atrás durante os trajetos acompanham-nos os restantes festeiros. No final do dia os Mareantes do Rio Douro se encontram no adro da Igreja de Mafamude com os dois grupos de festeiros da Rasa. Cumpre-se, então, com sucesso o ritual de entrar na igreja com a cabeça do santo voltada para a porta, rezar, pedir, louvar, agradecer e, por fim, depor oferendas no altar 37 do santo; o público presente irrompe numa explosão de alegria cantando que o santo a eles pertence, enquanto lá fora, ao redor do templo, os tocadores dão três voltas, seguidos pelas mulheres de todas as idades que bailam e cantam estribilhos. De regresso à beira-rio, o grupo dos Mareantes desce pelas antigas ruas que ladeiam a Avenida da República, para cumprimentar uma ou outra família de artífices gaienses, até que tudo termina na varanda da sua sede, mostrando ao povo presente a satisfação da tradição cumprida há várias gerações. No Brasil, outras tantas estórias e práticas são contadas e elaboradas sobre o santo, através das quais podemos perceber claramente que a hibridação dos valores profanos e sagrados foi decisiva não só para a sobrevivência do culto popular entre os europeus, como também para sua implementação em terras da América Portuguesa. Por isso, neste ponto, partimos para a interpretação da estrutura que o ritual apresenta em terras brasileiras a fim de melhor apreendermos aquilo que fundamenta o que hoje denomina-se Dança de São Gonçalo de Amarante. Entretanto, apesar de a presença do culto ao santo circunscrever-se em vários estados (Alagoas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe) como uma das inúmeras manifestações tradicionais brasileiras que compõe ao lado das Folias de Reis, Congadas, Cavalhadas, Moçambiques e outros, o rico repertório do catolicismo popular no Brasil, pretendemos observar suas características particulares em solos sergipanos. Lá, onde se dança para o santo no povoado quilombola da Mussuca, a versão mais contada pelos moradores sobre a história de São Gonçalo (que mistura dados hagiográficos à tradição popular), é a de que se tratava de um sacerdote católico que a certa altura da carreira religiosa resolveu se direcionar para missões mais populares. Então, teria se tornado marujo e observando que nos portos das cidades portuguesas havia sempre mulheres à espera dos marinheiros para vender-lhes o corpo, ele teria improvisado instrumentos com bambus e madeira, e sempre no fim da tarde ia ao cais onde tocava músicas e convidava as mulheres para dançar. São Gonçalo é um santo Ele já foi marinheiro Vamo S’imbarcar com ele Para o Rio de Janeiro25 25 Esta associação do beato marinheiro a sua vinda para o Rio de Janeiro provavelmente deve-se ao fato de ter sido nesta capitania encontrado referências ao santo no século XVI. Segundo Fernandes (2004), a devoção amarantina no Brasil-Colônia tem como referência mais antiga a construção de uma capela 38 Dada história constrói um caráter peculiar a Gonçalo, pois, relaciona diretamente o santo enquanto enviado divino encarregado do cumprimento de missão com um ser – típico da sociedade brasileira – dotado de uma necessidade da festa, dança e música. Ilustração 5: Imagem de São Gonçalo de Amarante no Imaginário Popular Segundo Cascudo (1984), São Gonçalo converte as mulheres através da dança, como um estróina, acompanhando-as com danças e, simultaneamente, penitenciando-se, para purgar as faltas, com pregos nos sapatos. As músicas cantadas contêm mensagens de devoção a Deus, convertendo assim muitas prostitutas aos ideários cristãos, promovendo casamentos e alianças matrimoniais. São Gonçalo é um santo Casamenteiro das veia Por que não casar as moça? Que mal lê fizero a ela? Vê-se, aí, no canto popular da Mussuca preferência do santo à realização dos casamentos das velhas, isto é, mulheres que já ultrapassaram a idade de ter filhos ou já perderam a virgindade. A essa tradição de casamenteiro das velhas, o cônego Eugênio Moreira explicou que em vida e exercendo seu ministério sacerdotal, o padre Gonçalo havia legitimado inúmeras ligações ilícitas na freguesia de Ovelha. E como muitas dessas ligações eram de anos, o sacerdote passou a ser apelidado de casamenteiro das velhas de Ovelha e depois passou para a tradição popular como casamenteiro das velhas (FERNANDES, 2004: 70). Por isso, acredita-se que Gonçalo seja um santo casamenteiro, cuja proteção as mulheres invocam para dar início a uma vida matrimonial, a uma fase de prosperidade e próxima à baía de Guanabara, posterior a 1579, quando Gonçalo Gonçalves, o Velho, a mandou erguer em sua recém adquirida sesmaria. 39 fertilidade. A relação de São Gonçalo com a vitória sobre o mundo, o poder de subrepujar com as virtudes o vício, e vencer com o bem o mal, são cantadas nos versos: Vou pedir a Deus do Céu Pra ele vir me ajudar Pra vencer esta batalha Esta batalha real Existem ainda versos que aproximam, a guisa de sua hagiografia, o beato amarantino da Virgem Maria, em relação de intimidade e afeição: Vamo S’imbora meus marujo Pra cidade da Bahia São Gonçalo Navegante Nossa Senhora da Guia26 Tais dados justificam, provavelmente, a popularidade do beato amarantino como santo casamenteiro, padroeiro dos violeiros e da fertilidade humana, protetor dos marinheiros e o quadro de expressões simbólicas que estruturam seu ritual no Brasil. A festa de São Gonçalo, por isso, surge nas terras da América Portuguesa carregada de sensualidade e heranças de um paganismo – tolerado pela Igreja Lusitana, até certo grau, devido aos interesses de procriação à povoação do reino e controle das terras brasileiras – que favorece a política imperialista no processo de expansão demográfica e, por isso, a repercussão do ritual no Brasil-Colônia. Os interesses de procriação abafaram não só os preconceitos morais como os escrúpulos católicos de ortodoxia, e ao seu serviço vamos encontrar o cristianismo que, em Portugal, tantas vezes tomou características quase pagãos de culto fálico. Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade: Santo Antônio, São João, São Gonçalo de Amarante, São Pedro, o Menino Deus, Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bonsucesso, do Bom Pastor. Nem os santos guerreiros como São Jorge, nem os protetores das populações contra a peste como São Sebastião ou contra a fome como São Onofre – santos cujos a popularidade corresponde a experiências dolorosamente portuguesas – elevaram-se nunca a importância ou ao prestígio dos outros patronos do amor humano e da fecundidade agrícola (Freire apud FERNANDES, 2004: 73). Uma das mais fortes referências históricas à festa realizada como louvor e adoração a São Gonçalo de Amarante consiste em registro realizado por Le Gentil La Barbinais, no século XVIII, mais precisamente ano de 1718, na Bahia. Em seu livro Nouveau Voyage au tour du Monde27, o autor apresenta de modo descritivo a forma de louvor coletiva dedicada ao santo amarantino. 26 Nossa Senhora da Guia consiste em um dos títulos atribuídos a Virgem Maria, neste caso acentua seu caráter de padroeira dos navegantes, cujo culto se faz comum em Portugal. 27 Nova Viagem ao Redor do Mundo 40 Le 4. de fevrier le Viceroi nous invita à aller passer trois jours à une lieue de la Ville, où l’on celebroit la Fête d’un Saint peu connu dans notre calendrier, mais fort fameux dans ce Pays sous lê nom de San Gonzáles D’Amarante. Nous partîmes en compagnie du Viceroi & de toute la cour. Nous trouvâmes auprès de l’Eglise dédiée à Saint Gonzáles une multitude etonnante de gens qui dansoient au son de leurs guitarres. Ces danseurs faifoient retentir la voûtre de l’Eglise du nom de San Gonzáles d’Amarante. Si-tôt, que lê Viceroi parut, ils l’enleverent & l’obligerent à danser & à sauter; exercice violent qui ne convenoit gueres à fon age, ni à fon caractere: mais c’eût été une impieté digne du feu, au sentiment de ce peuple, s’il avoit refusé de rendre cet hommage au Saint dont on celebroit la fête. On nous fit aussi danser bom gré malgré, & c’étoit une chose assez plaisante que de voir dans une Eglise des prêtres, des femmes, des moines, des cavaliers, & des esclaves dancer & sauter pêle-mêle, & crier à pleine tête viva San Gonzáles d’Amarante. Ils prirent ensuite une petite statue du saint qui étoit sur l’Autel, & se la jetterent a la tête les uns des autres: en un mot, ils firent ce que faifoisent autrefois les payens dans un sacrifice particulier qu’ils avoient coûtume de faire tous les ans à Hercules pendant lequel ils fouettoient & accabloient d’injúres la Statue du demi-Dieu28 (LE GENTIL LA BARBINAIS, 1728: 155-7). Neste contexto, podemos perceber a estrutura da festa como um espaço de divertimento e folia, gozação e brincadeira, permeada pela fé, intimidade (que se conjuga a um estado de “desrespeito”) e devoção ao santo, que mistura as classes e as hierarquias sociais mais distanciadas. As descrições de La Barbinais sobre a dança praticada ao som de violões; as vibrações decorrentes destas danças e zoadas; a falta de ordenação entre os saltos e cantos; o insulto à imagem do santo lançado de um lado para o outro; atestam o transbordamento do sagrado e sua confluência ao profano. Estas matizes, portanto, compõem o universo simbólico das festas ao santo amarantino no Brasil, tonalizando-o como mais ou menos permissivo, mais ou menos faustoso, mais ou menos lúdico, mais ou menos sensual, participando de uma realização não cristalizada e possível de ser realizada em qualquer período do ano; afinal: Há uma observação unânime entre todos os pesquisadores da Dança de São Gonçalo no Nordeste ou no Centro Sul do país: mais do que quase todas as outras, ela é uma dança votiva. Não se dança para São Gonçalo em um seu 28 Em quatro de fevereiro, o Vice-Rei nos convidou para passar três dias em um lugarejo onde as pessoas celebrariam a Festa de um Santo pouco conhecido em nosso calendário, mas muito famoso neste país sob o nome de São Gonçalo de Amarante. Partimos em companhia do Vice-Rei e toda a corte. Ao aproximarmo-nos da igreja dedicada a São Gonçalo, percebemos uma multidão incrível de pessoas que dançavam ao som de seus violões. Estes dançarinos faziam vibrar a abóbada da igreja de nome São Gonçalo de Amarante. Assim que perceberam a chegada do Vice-Rei cercaram-no e obrigaram-no a dançar e saltar; exercício violento não adequado à sua idade nem à sua posição: mas, aos olhos daquele povo, seria uma impiedade digna do inferno, se ele tivesse recusado render homenagem ao santo comemorado na festa. Também nós tivemos que, a mal grado nosso, dançar e foi extremamente interessante ver dentro de uma mesma igreja padres, mulheres, monges, cavaleiros e escravos dançarem e saltarem de modo tão desordenado, gritando de corpo e alma, Viva a São Gonçalo de Amarante. Eles, então, pegaram uma pequena estátua do santo que estava no altar e começaram a lançá-la sobre as cabeças uns dos outros: em uma palavra, eles realizaram aquilo que, em tempos idos, os pagãos costumavam fazer, todos os anos a Hercules durante o qual eles chicoteavam e insultavam a estátua do semi-deus (Tradução Minha). 41 dia de festa, como entre negros para São Benedito ou para Nossa Senhora do Rosário; muitos devotos com quem conversei sequer sabia qual é o ‘dia de São Gonçalo’. Também não se ‘encosta’ a dança em outras festas. Como em Minas, Goiás e São Paulo, grupos de congos e moçambiques fazem durante festas ao Divino Espírito Santo. Fora do período da Quaresma, dança-se para São Gonçalo em qualquer noite, com preferência pela de sábado. A função29 sempre é feita a pedido de um devoto promesseiro que com o propósito de salvar sua dívida – pessoal ou herdada – entra em contato com uma equipe de folgazões, define com ela uma data, promove a dança e arca com os gastos do transporte dos folgazões, da decoração do local da dança e da alimentação dos dançadores por uma noite (BRANDÃO, 2001: 197). Ilustração 6: Desenho baseado na descrição do viajante francês La Barbinais. Assim, compreendemos que a Dança de São Gonçalo determina-se por um grupo precatório que saí, essencialmente para cumprimento de promessas; neste contexto, a ausência de fixação de um calendário religioso rigoroso torna todos os aspectos em motivos de celebração: desde o pagamento de promessas, a conjugação com outras festas comunitárias, onde o santo amarantino compartilha as honrarias com outras entidades, como em Festas de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Senhor da Cruz até as comemorações das fundações das cidades que levam o seu nome, como ocorre em Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais (mais o estado de Piauí que mudara o seu para Amarante, equivalente). 29 A Dança de São Gonçalo é também conhecida como folga ou função em algumas regiões do país. 42 Em verdade, o fato de não encontrarmos registros atuais sobre a realização de festas para São Gonçalo se deve ao processo de romanização – anteriormente referido – engendrado pelo esforço de padres e comunidades eclesiais no século XIX. Os diversos documentos oficiais proibindo as festas religiosas no interior das igrejas fazem com que estas desapareçam do calendário litúrgico, assumindo por vezes novos nomes e modos de articulação, mas certamente permanecendo nas práticas rituais dos homens devotos que distanciados das paróquias tornam-se sacerdotes violeiros, dançadores e versejadores. Por tais dados podemos perceber que, apesar de algumas referências portuguesas, pois, persistirem na Dança da Mussuca, esta se apresenta como um rico repertório singular ainda que (na verdade, justamente por ser) formado de matizes culturais diversas. A proximidade dos devotos com o santo, a relação intimista que entre eles é estabelecida proporciona a forma peculiar de culto (que escapa à ortodoxia oficial que se busca com a canonização) que difunde o “Bem Aventurado Amarantino” como signo de fé e festa. Desse modo, o culto se estrutura como um ato de fé, uma devoção profundamente enraizada, uma longa oração que se canta e dança coletivamente, assumindo um papel de (re)união dos laços comunitários com o Divino. Os devotos, que, indiferentes às definições dadas sobre o que fazem, sentem a necessidade de dedicar um tempo de suas vidas à adoração do santo, através de saídas em grupo cantando, comendo, brincando e trocando sorrisos e ofertas, são os atores sociais que constroem sua fé a partir de uma reza que se dança. 43 2 - MUSSUCA: LUGAR DOS SANTOS “Entrando na cidade, você topará com um grupo de profetas descendo do lugar alto, acompanhados de harpas, tamborins, flautas, cítaras; eles estarão em transe” (I Samuel. 10:5). O estudo das relações entre corpo, dança e religião, o histórico das comemorações associadas às representações míticas da figura de Gonçalo e a adoração do santo estruturam o que no capítulo anterior denominamos Dança de São Gonçalo de Amarante: um ato de prática social que integra aspectos da fé e(m) festa, aproximando dimensões sensíveis das formas de representação ritual às abordagens de diversão coletiva, fomentando sociabilidades festivas. Introdutório, porém, o primeiro capítulo apenas apresenta o projeto aqui proposto de conhecer-se o ritual e as relações que ele produz; segue-se daí, portanto, a necessidade de apresentarmos neste momento o campo de pesquisa e atuação de nossas observações e análises delimitando e aprofundando, deste modo, determinados alcances informativos. A relevância dos parâmetros de estudo do campo de abrangência da investigação proposta consiste, pois, em estratégia simultânea de análise dos processos de permanência e mudança, continuidade e ruptura, conservação e superação, estabelecidos pelo corpo social ao longo dos tempos e resultantes de conflitos, embates, produções e interações culturais: arranjos de encontros entre memória e esquecimento; afinal: Compreender a génese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do nãomotivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir (BOURDIER, 2009: 69). Ante esta perspectiva, o campo de pesquisa torna-se espaço material e simbólico que integra os agentes sociais em processos de etnicidade e comunidade onde, orientados para a produção de efeitos sociais, desenvolvem operações de propriedades coletivas que visam determinar a representação que os outros venham a ter destas propriedades e de seus portadores. As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradoiros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição 44 legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos (BOURDIER, 2009: 113). Percebemos, com isso, que a capacidade de determinação e imposição de atributos quaisquer ao conjunto de grupos sociais realiza o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo. Esta unidade gera entre os indivíduos princípios de pertinência que tornam o espaço partilhado por eles em ato de eficácia, visibilidade e manifestação para os outros, e para eles mesmos, daquilo que são, atestando, desse modo, existência a coletividade que aspira à institucionalização. Assim “qualquer enunciado sobre a região funciona como um argumento que contribui – tanto mais largamente quanto mais largamente é reconhecido – para favorecer ou desfavorecer o acesso da região ao reconhecimento e, por este meio, à existência” (BOURDIER, 2009: 113). Assim, o sentido auto-declaratório da identificação étnica que se constrói a partir do compartilhamento de saberes e fazeres em campo de atuação comum, ou relacionado a princípios de pertencimento, articula-se como pressuposto daquilo que designamos como territorialidade: estrutura de relações e significações comuns produzidas e ratificadas por um dado grupo que co-habita o mesmo espaço territorial, onde a ocupação coletiva vincula-se ao domínio e utilização de códigos básicos à reprodução e (des)envolvimento do corpo social. A interação cognitiva e afetiva, espiritual e material, individual e conjunta dos homens com os lugares pelos quais transitam, configura, pois, mais que espacialidades, dinâmicas de vida que eclodem em sentidos, intuições, significados, experiências, desejos e atos. Observar o campo, como lugar fértil de manifestações humanas, instaura o caráter do modus vivendi, em que podemos perceber marcas de vínculos entre o espaço e a memória, o lugar e o homem, o altar e o santo; o uso e a circulação do espaço simbolicamente (com)partilhado, resultante de táticas, estratégias e ações de conflitos, embates, debates que envolvem diferentes indivíduos e aspectos cotidianos, revela-nos a experiência dinâmica, complexa e difusa da vida social. Este modo de vida constitui-se de associações nem sempre estáveis, histórias relativamente reconhecidas, vínculos de sociabilidade e aspectos de afetividade que nos auxiliam perceber o encontro do caráter da devoção e diversão em um ato de fé e(m) festa. Apreender as representações do espaço como espaços de representação habilitanos, logo, a estabelecer relações às dimensões constitutivas do fenômeno ritual como 45 aquilo que se constrói no e pelo movimento através de táticas, ocasiões, usos e apropriações que corroboram para o valor do conhecimento prático, sensível, comum. Na verdade, a implicação do movimento redunda em formas-pensamento que ao vincularem saber-fazer revelam relações entre o que é visível (a materialidade do espaço) e aquilo que se faz invisível (a memória e o esquecimento) criando no ambiente topografias de sentido ou poéticas do espaço. Assim, compreendemos que a territorialidade fomenta, por seu caráter intersubjetivo e pelas relações corpo e(m) espaço, campo propício à criação de dispositivos artísticos cuja potência de expressão e força coletiva encontra-se na convivialidade, ou seja, nos símbolos partilhados por uma série de memórias, esquecimentos, narrativas, evocações, plasticidades, materialidades, etc., que transformam as experiências em conhecimento e os conhecimentos em experiência; neste sentido, como afirma Maffesoli (2010), a experiência, seja ela qual for, encerra uma potencialidade cognitiva. As experiências do conhecimento e o conhecimento das experiências promovem a integração e a colaboração dos indivíduos no grupo social aproximando-os, através do compartilhamento de significados e usos que (in)formam a disposição de aderência ao lugar, daquilo que podemos designar como tradição. A paisagem da pesquisa habilitanos, portanto, a partir da composição do lugar, a apreensão da conjugação de reminiscências e olvidos ou permanências e mudanças que desdobram o conjunto da ação ritual. A prática cotidiana, por isso, torna-se experiência compartida que orienta os homens a organizarem estratégias e táticas que estruturam modos de saber, fazer, viver comuns: a poética. Baseada, tanto em relações de forças que servem de base a uma gestão de pertencimento e relações com a exterioridade como em fenômenos que não promovem o sentido de propriedade, fundamentando por seu não-lugar uma dependência do tempo – afinal, como nos afirma Certeau (2008) o próprio é uma vitória do lugar sobre o tempo – esta poética manifesta a relação entre local e global, privado e público, tradicional e contemporâneo, expressando flutuações e soluções de continuidade entre as dimensões geradoras de conflitos do espaço-tempo. Aí, a estratégia reconhece e identifica especificidades de saber-fazer-viver que sustentam e determinam o poder de conquistar para o grupo social um lugar próprio, um poder que se estrutura como preliminar deste saber-fazer-viver e não apenas como seu efeito ou atributo; a tática, por outro lado, é determinada pela ausência de poder, vale 46 pela pertinência que dá ao tempo, às circunstâncias, que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável. Sob este aspecto, a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás mais a coerções que as possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo nas ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder (CERTEAU, 2008: 102). É exatamente por intermédio destas atuações de poder e resistência que a cultura popular estabelece as matizes da religiosidade social que se articula como um quadro de referência, através de metáforas e símbolos, ao conjunto de sentidos que estruturam o modus vivendi coletivo. Segundo Certeau (2008), tais práticas do espaço tecem condições determinantes da vida social – usos culturais, modelos sociais e coeficientes pessoais – e expressam-se por figuras de estilo que tanto estabelecem formações justapostas e elípticas quanto ressemantizam os lugares vividos como presenças de ausências: onde aquilo que se mostra designa aquilo que não é mais; por isso: Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo (CERTEAU, 2008: 189). Aí, espaço e memória inspiram, através de um aglomerado de crenças, materialidades e abstrações, maneiras de identificar, significar e atualizar sistemas e representações sensíveis que constituem oposição à ordem estabelecida e ao estado de fato. Os fragmentos das histórias, em formatações materiais e imateriais, estabelecem uma estrutura residual que funciona à guisa de fator de sociabilidade, pois, ao estabelecer um sentido simples e tradicional de vida, estabelece simultaneamente o sentido do termo “co-existir”, gerando espaços e momentos que exprimem de forma significante a intensidade do ser/estar com. Assim, o espaço articula-se como domínio onde as representações socioculturais se desdobram, mas, sobretudo como ambiência que difunde patrimônios culturais ao promover o reconhecimento da coletividade. Reconhecendo, portanto, as relações estabelecidas entre o espaço social e o conteúdo ritual e identificando-o como ponto enriquecedor aos estudos de caráter antropológico, a seguir, propomo-nos contextualizar a formação histórica do campo de abrangência teórica de nossa investigação: a região de Laranjeiras (o Vale do Cotinguiba) e o povoado Mussuca (remanescente de quilombo), discutindo o processo 47 de formação de quilombos no Brasil, descrevendo o espaço social em que a manifestação se desenvolve e ampliando, dessa maneira, as possibilidades de relacionamentos entre bens materiais e imateriais. Em um segundo momento, desejamos discutir as questões relacionadas à coletividade, etnicidade e pertencimento ao povoado que legitima a Mussuca como: lugar dos Santos. 48 2.1 - EU VOU AGORA PRA TERRA DE CONGA VOU VER ANGOLA HINO LARANJEIRENSE Sob as asas do condor Que desta terra é o emblema Vamos cantar o poema De nosso brio e valor! De nosso brio e valor! De nosso brio e valor! Oh! Gênio da liberdade! Misto de íris e arrebóis! A tua luz nos invade, Teu calor nos faz heróis! Avante! Para o porvir! É nosso grito de guerra! Seja o destino da terra: Não parar, sempre subir! Não parar, sempre subir! Não parar, sempre subir! Aqui começa nossa incursão pelo campo de abrangência da pesquisa onde em busca de significados e relações entre o espaço e ação ritual deliberamos investigar a paisagem analisando, a partir dos dados históricos, os fios tênues que arranjam tensão e elasticidade no encontro entre devoção e diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante. A poética do rito, portanto, encontra-se emaranhada na rede que tece a história do lugar estruturando e vivificando aí o núcleo comum do imaginário coletivo e da composição mítica que fomenta o ato de fé e(m) festa onde a terra articula-se como solo da tradição e a cidade funciona como cenário e percurso do sagrado e do profano. Eis Laranjeiras, cidade localizada a 23 quilômetros da atual capital sergipana [Aracaju], com uma população de 26.903 habitantes30, dimensão de 162.538 km2, e localidade que integra junto a outros seis municípios a região do Vale do Cotinguiba (a 30 Censo Populacional 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 49 saber, Carmópolis, General Maynard, Maruim, Riachuelo, Rosário do Catete e Santo Amaro de Brotas), cujo povoamento data de 1594, quando da primeira doação das terras aos donatários, após a vitória e conquista de Cristóvão de Barros sobre os índios em 1589. Neste período abundam laranjeiras no local que viria a ser o da atual Cidade de Laranjeiras, em território da antiga freguesia de Nossa Senhora do Socorro do Tomar da Cotinguiba, e por isso, os primeiros habitantes da incipiente povoação ao construírem por volta de 1606 um porto fluvial, chamam-no Porto de Laranjeiras: um porto que garante amplo desenvolvimento ao comércio local até o ano de 1637, quando a povoação de Laranjeiras sofre a ação devastadora do domínio holandês. Por isso, somente após a guerra com os holandeses e a retirada e partida definitiva destes é que se inicia um período que permite o estabelecimento humano de forma mais estável na região. Em este tempo, em conseqüência da vantajosa posição geográfica de Laranjeiras, o seu sítio torna-se centro de colonização e evangelização; o Porto de Laranjeiras faz retornar o progresso ao povoado que se reerguia com grande velocidade depois da passagem dos holandeses. Em 1701, à margem esquerda do Riacho São Pedro, os Padres da Companhia de Jesus constroem a primeira igreja com convento, denominando-a de Retiro, provavelmente, por sua posição distanciada do porto. Como segunda residência, de 1731 a 1734, os jesuítas constroem, a pequena distância da atual Laranjeiras, sobre uma pequena colina, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Comandaroba. A esta época a povoação de Laranjeiras pertence à Freguesia de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba que não possuí povoados organizados como vilas, mas distribuídos em seu todo por uma estrutura de fazendas mais ou menos afastadas umas das outras. Entretanto, graças ao comércio ensejado pela presença do porto, Laranjeiras passa por um período de desenvolvimento e crescimento que a eleva, em 7 de agosto de 1832, a condição de vila independente do território de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba. Certamente, esta alteração se dá não somente pelo aumento de volume do comércio local estabelecido pela atuação do porto fluvial, mas também em decorrência da grande influência política dos proprietários de terras e comerciantes da região que se dirigem aos Ilustríssimos e Exímios Senhores Conselheiros da Província de Sergipe d’El Rey solicitando-lhes que proponham ao Poder Executivo a criação da Vila de Laranjeiras. 50 Entre as razões apresentadas destacam-se as seguintes: a povoação é a mais populosa e possui o comércio mais fértil de toda a província (no ano de 1824, o povoado crescera demograficamente 40% mais que em 1800, além de no século XIX Laranjeiras consolidar-se como porto regional, desempenhando importante papel na exportação e importação de produtos e como local da mais importante feira regional, localizada então à beira do Cotinguiba) e dista da capital, a cidade de São Cristóvão, o espaço de seis léguas por caminhos escabrosos, mal cultivados e cortados por rios caudalosos como o Pitanga e Poxim, que em várias estações do ano com as suas enchentes impedem o trânsito aos viajantes e, com isso, dos recursos que ficam retidos na Câmara. Assim, Laranjeiras consiste, na ocasião de 1824, em uma povoação, que apesar de apresentar índices significativos de progresso, não possui a devida organização política e social, ou seja, os mecanismos operacionais do poder público em funcionamento, o que facilita o extravio de rendas públicas e garante a impunidade nos delitos; cônscios dos prejuízos de toda ordem que tal estado de coisas causa ao povoado, os laranjeirenses se articulam e se manifestam à favor da emancipação política de Laranjeiras. Além disso é da maior necessidade que se proponha a divisão da Freguesia daquela Povoação com a antiga de N. S. do Socorro com as demarcações que parecerem mais adequadas, e isto pelos motivos os mais palpáveis, e salientes, e de imperiosa utilidade pública, que são: Primeiro – o não residir o Paracho naquela Povoação, mas sim na do Socorro distante dela duas legua por máus caminhos, e com um rio de permeio, e outros obstáculos, deixandoa ao desamparo sem um certo e efectivo sacerdote que administre o pasto espiritual aos Freguezes ali residentes, sucedendo até morrerem alguns sem os sacramentos da Igreja, vendo-se nas circunstâncias de assalariarem a um Capelão para lhes dizer Missa em dias de preceito com grossas pensões pecuniárias para não ficar a Capela existente nesses dias fechada aos Fiéis, o que já tem sucedido. Segundo – porque de fógos da mesma Povoação, e população imensa, que vive como segregada do grêmio da Igreja pelo abandono do Pastor. Terceiro porque os Suppes, têm erecta a sua custa na mesma Povoação a mais decente, e rica Capela com mui luzida Irmandade, Instituição do Sacramento perene, com patrimônio suficiente, que pode servir de matriz no caso de divisão (OLIVEIRA, 1981: 43). Esta valiosa informação sobre Laranjeiras, concedida em documento oficial em 1824 pelo Governo Provincial de Sergipe a Dom Pedro I, solicitando a elevação da povoação à categoria de vila, bastante eloqüente no que concerne à oportunidade desta providencia solicitada ao Governo Imperial, habilita-nos apreender as relações estabelecidas entre o piedoso e o profano, o sagrado e o secular, os vínculos imbricados entre a autoridade eclesiástica e o poder civil na povoação. Neste contexto, a ausência de um pároco que habite o povoado, o fato de alguns moradores falecerem sem os 51 sacramentos da Igreja, a edificação de rica capela pelos suppes adiciona-se ao crescimento e prosperidade do povoado e à impraticabilidade de comunicação nos períodos de inverno entre Laranjeiras e São Cristóvão, como fatores relevantes à compreensão de que a emancipação se fazia indispensável. Todavia, apesar da ampla articulação da elite local apenas em 1832 Laranjeiras é elevada à categoria de vila, na província de Sergipe; o decreto de emancipação emitido em 07 de agosto de 1832, durante o período da Regência, mas em nome de Dom Pedro II diz: Art 1.o Fica erigida em villa a povoação de Laranjeiras, e com ella creados todos os lugares da governança, que lhe são inherentes, tendo um escrivão de orphãos, e outro de geral, os quaes serão egualmente tabelliães de notas. Art 2.o O districto será o que fica marcado como se segue: - Sahhirá da barra do Poixim seguindo pelo rio Poixim-Mirim até sua nascença, e dahi procurará pelo rumo mais recto o engenheiro do cajueiro de Joaquim José Silva, e dahi o engenho do Solabro, deste a meter no rio Jacaracica, por este abaixo até sua foz no rio Sergipe, e por abaixo até a sobredita barra do Poixim (OLIVEIRA, 1981: 46). Entretanto, apesar do povo de Laranjeiras haver reclamado, junto à criação da vila, a produção de uma paróquia, somente em 06 de fevereiro de 1835 a Assembléia Legislativa decreta a respectiva Lei, que em seu Artigo 4.o aponta que “fica creada freguezia a capella do Santíssimo Coração de Jesus da povoação das Laranjeiras, desmembrada da freguesia de N. Senhora do Socorro pela divisão do termo da sua villa” (OLIVEIRA, 1981: 53-4). A paróquia, deste modo, tem como Igreja Matriz a do Santíssimo Sacramento, primitiva capela que mal acomodava a décima parte do povo nas missas conventuais e menos ainda nas festividades, e que apenas mais tarde seria ampliada para o adequado desempenho de suas novas e importantes funções. Em 1848 a vila de Laranjeiras é elevada à condição de cidade; a temporada de dezesseis anos em que Laranjeiras permanece como vila, todavia, estabelece um período marcado por ampla e intensa atividade econômica, social e política que fomenta a expansão da forma urbana do lugar: organização e instalação da Câmara Municipal [relocada no ano de 1850], a criação da Alfândega e da comarca de Laranjeiras, contratação de iluminação pública, fundação de pequeno Hospital do Senhor do Bomfim, etc. Todo este crescimento faz com que em 1855 Laranjeiras torne-se objeto das cogitações do Presidente Ignácio Barbosa para sede da capital da Província, o que não se realiza por motivos políticos; contudo, conquanto não se tenha tornado capital, Laranjeiras transforma-se, na época, no lugar mais importante de Sergipe, conservando 52 por longos anos sua hegemonia. Seu progresso ressoa para além das fronteiras da província onde cercando o ajuntamento urbano, os engenhos e os prados aumentam, largamente, os domínios da freguesia com terras favoráveis ao plantio da cana-deaçúcar. Sergipe vivia do açúcar, mas a Província, por força do contrabando e de consciente e interesseira negligência fazendária, não se beneficiava, proporcionalmente, de significativa arrecadação de importação e exportação, que era “uma das mais irregulares do Império”. Maria da Glória Santana de Almeida cita a fala, em 1843, do Ministro da Fazenda Joaquim Francisco Viana: “Se exporta 20 e tantas mil caixas de assucar, parte dellas he verdade que vão para outras províncias mais allí há hoje casas inglezas estabelecidas que exportão diretamente muito assucar para a Europa e todavia não sei se a província rende 30 ou 40 contos, quando eu estou persuadido de que podia exceder a sua renda muito mais de 100 contos todas às vezes que se faça a fiscalização com a devida exatidão...” (FIGUEIREDO, 1977:22). No relatório apresentado em 02 de julho de 1856, pelo Presidente da Província de Sergipe, Doutor Salvador Correia de Sá e Benevides, à Assembléia Legislativa, percebemos o panorama político, administrativo e social do município de Laranjeiras naquela ocasião, ou seja, oito anos após ser elevada a posição de cidade. Comprehende este município 73 engenhos; empregão-se seus habitantes á cultura da canna e cereaes. O terreno em geral é fertil, e bem poderia ser que se prestasse com vantagem a outra qualquer cultura, como a do café, chá, e fructas, tanto indígenas, como exóticas; mas ou seja por ignorância, incúria, e desleixo dos lavradores, ou porque toda a sua atenção esteja absorvida nos interesses que promette a canna e na necessidade absoluta de mandioca e cereas, o certo é que não cuidão de outra cultura e se algumas vezes o tentão é em pequena escala, e imperfeitamente. Parte dos habitantes se emprega no commercio, sendo a cidade de Larangeiras o ponto da província, onde elle mais medra, e se desenvolve; outra parte emprega-se em officios mecânicos, como pedreiros, carpinteiros, ferreiros, alfaiates, sapateiros, &c (...). Suas principais necessidades são: uma prisão segura e commoda na cidade de Larangeiras; um hospital de caridade, cujas proporções correspondão ao tamanho, e população do lugar, o que não se obtem com o que existe, cujas mesquinhas dimensões e recursos o inhibem a preencher o fim a que é destinado; uma casa de mercado que abrigue a população que em numero extraordinário concorre á feira da cidade, a qual tem lugar no meio da rua, exposto o povo ao sol e chuva, e cercado de animaes que promiscuamente se confundem amarrados, ou soltos occasionando confusão, susto, e tornando immundo o lugar de tão grande reunião com grave detrimento das regras prescritas á bem da salubridade pública31. Aí, apreendemos a constante batalha da Câmara para a construção de cadeias, a inauguração de hospital que atenda ao fluxo local, a casa de mercado para as atuações da feira regional que se realiza, ainda hoje, em Laranjeiras, assim como a efetivação de projetos de abastecimento de água, planos de calçamentos, etc. A emergência de um hospital que atenda a demanda local é, certamente, conseqüência da grave epidemia de 31 Benevides, 1856: 34. 53 cólera-morbo que assola a província de Sergipe, entre os anos de 1855 a 1856, ocasião em que a cidade de Laranjeiras apresenta os maiores índices de mortalidade. Ilustração 7: Relatório com Índice de Mortalidade na Província causada pela Cólera-morbo (Maroim, 1856: Mapa 7). Concebemos também o quadro de serviços e as produções mais comuns na cidade onde os engenhos de cana estabelecem número considerável dentro da economia local, com mão de obra certamente escrava. A presença destes engenhos nos orienta, como apontador de dados, a inferir que muito dos conjuntos de práticas sociais e saberes da região são nestes espaços entrelaçados e estruturados; os engenhos funcionam como aquele espaço onde sociabilidades são construídas e traços culturais mediados pelas 54 ações rituais, mas igualmente por ambiências de conflitos, poder e resistência: contrastes e disputas entre permanência e ruptura. A religião desempenha na sociedade laranjeirense um importante e ambivalente espaço de continuidade e extrusão da ordem das coisas constituindo-se como abordagem da cultura dominante no processo de manutenção de sua hegemonia – porquanto através das irmandades incorporavam-se os negros escravos à comunidade da fé católica e, com isso, mantinha-se e fomentava-se as ordens vigentes tendo-se em vista que enquanto os aristocratas cultuavam a seus santos e santas nos altares domésticos, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, sede da Irmandade do Santíssimo Sacramento, que associava os ricos da região, os pobres e pretos congregavam-se na Irmandade de São Benedito, sediada na igreja homônima, para cultuar seus patronos com festejos e celebrações realizados no dia de Reis (06 de janeiro) com Cheganças, Cacumbis, Maracatus, Taieiras, Danças a Santos e outras celebrações – e, simultaneamente, em processo de transformação, pois, ao assimilarem e submeterem-se as relações de dominação e submissão, os negros criavam espaço de articulação e enfrentamento, através de solidariedades étnicas que incorporavam e subvertiam os valores do grupo dominante: algumas vezes através do caráter de uma religião hibridizada e descontraída com os fatores que alimentavam sua matriz original, outras vezes através da estruturação de redutos de resistências negras denominados quilombos ou mocambos32. O processo de construção espacial da cidade ao longo da história, entretanto, não contempla os grupos negros, o que induz-nos a observar e analisar os quilombos como um dos catalisadores das questões sociais emergidas no sistema escravista sergipano e nos possibilita entender, através de sua formação sócio-espacial, a cultura, a política, os processos de discriminação e segregação espacial como elementos que ressaltam a singularidade da experiência de um contexto de escravidão africana como algo significativo do ponto de vista da territorialidade e etnicidade. Assim, percebemos o escravo negro como um componente dinâmico que atuando em estruturas de lutas, reajustes, negações e, por isso, de resistências e transformações ao sistema, instaura o desgaste à ordem, aparentemente permanente das coisas, consubstancializando vínculos de trabalho-propriedade, relações familiares, sexuais, artísticas, políticas e culturais. 32 Segundo Campos (2005: 32), quilombo era uma designação utilizada entre os indivíduos de fora, os negros preferiam chamar seus agrupamentos de cerca ou mocambo. 55 Aqui, apesar de reconhecermos que o quilombo – organização cuja primeira definição que se tem é uma resposta do Rei de Portugal à consulta do Conselho Ultramarino, datada de 02 de fevereiro de 1740, onde quilombo é designado por “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” – se estruture como ampla força de resistência ao sistema escravocrata, convém observar que o quilombo não constitui um coletivo insulado, povoado tão-somente por negros; para o seu nicho de atividades e práticas dirigem-se inúmeros indivíduos tão explorados quanto os negros na sociedade da época: fugitivos, criminosos, índios, mulatos, entre outros. Muitas vezes, através desses grupos, eram informados da aproximação de expedições punitivas contra eles. Em Sergipe, de forma especial, os quilombolas eram auxiliados pelos escravos das senzalas que muitas vezes os escondiam quando eles faziam incursões aos engenhos. Esta solidariedade constante foi responsável pela prolongada vida destes quilombos os quais, à aproximação dessas expedições já haviam se retirado do local, levando quase sempre o produto das suas roças e mantimentos produzidos pela economia quilombola (MOURA, 1981: 18). Deste modo, depreendemos que a vitalidade dos quilombos sergipanos dá-se pela aliança com os escravos das senzalas, pelo apoio e ligações com grupos de marginalizados e pela proteção oferecida por alguns senhores aos cativos fugidos. O Jornal de Aracaju de 5/2/1873 ao anunciar a captura de “escravos fugidos nas matas dos engenhos de Periperi Novo e Velho”, comenta que “continuam ainda ousados os quilômbolas, a despeito das sérias providências que se tem tomado para extinguí-los. E que todos secundem a ação da autoridade por bem da tranqüilidade dos proprietários da província” (...) E fazia votos de que “em breve se realize a extinção dos quilombos, e para isso convém que todos os proprietários sofredores auxiliem as autoridades nas diligências necessárias”. Relatório do Chefe de Polícia Manoel José Espínola Junior informa, no mesmo ano: “vem de longa época a existência dos quilombos em diversos pontos da província. Reunidos em grupos em Laranjeiras, Divina Pastora, Rosário, Capela e Japaratuba, são uma constante ameaça à segurança individual e à propriedade (...). Para isso não pouco concorrem alguns proprietários dos referidos municípios, os quais por um desleixo criminoso não só deixam que esses escravos se acoitem em suas terras como também não impedem que se relacionem com os que possuem nos seus engenhos, o que é de grande proveito àqueles, que não podem ser apreendidos sem grande dificuldade (FIGUEIREDO, 1977: 89-0). Deste modo, depreendemos que a amizade, proteção e sentido de solidariedade que quase todos os escravos de engenhos votam aos quilombolas tornam-se grandiosos obstáculos à captura dos negros fugidos: os avisos dos informantes e os refúgios nas próprias senzalas, no caso de qualquer emergência, possibilitam que os quilombolas estabeleçam constante prevenção contra os ataques. Espaços de transformação do regime econômico-social escravista, os quilombos instauram em seus arranjos de produção e convivência novos regimes sociais que 56 inserem os negros em um panorama de cidadania e participação na economia local. Os quilombos, portanto, orientam e organizam as comunidades negras à vivência de fatores sociais que se encontravam desarranjados, proporcionando confluências entre a alegria e a esperança, o entusiasmo e a gratidão, a festa e a fé, motivando os ideais de liberdade e o reconhecimento da possibilidade da Vida. PRINCIPAIS QUILOMBOS EM SERGIPE 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Quilombo de Capela Quilombo de Itabaiana Quilombo de Divina Pastora Quilombo de Itaporanga Quilombo do Rosário Quilombo do Engenho Brejo Quilombo de Laranjeiras Quilombo de Vila Nova No entretanto, conquanto os quilombos e as rebeliões negras tenham, de um modo geral, motivado espaços de autonomia e libertação na sociedade escravista, isto não favorece a geração de diálogos e articulações entre a Casa Grande e a Senzala, mesmo dentro de contextos abolicionistas, negros e brancos ocupam, por isso, espaços paralelos de atuação pelo ideal da liberdade. Joaquim Nabuco dizia textualmente: “A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição ou ao crime homens sem defesa e que a Lei de Linch, ou a justiça pública, imediatamente haveria de esmagar”. E diz mais, justificando esta posição oportunista: “Suicídio político porque a nação inteira, vendo uma classe, e é essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta à vingança bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais cujas paixões, quebrando o freio do medo, não conheceriam limites no modo de satisfazer-se, pensaria que a necessidade urgente era salvar a sociedade a todo custo por um exemplo tremendo e este seria o sinal da morte do abolicionismo” (MOURA, 1981: 79-0). Aí, percebemos que a força política do abolicionismo era tão moderada quanto conservadora o que diverge do caráter propositivo das manifestações negras, prenhes de lutas e negações à ordem do sistema escravista. Somente na última etapa da escravidão, avança uma modalidade de abolicionismo, que designamos como radical, imprimindo caráter e conteúdo mais profundos do que aqueles recomendados por Nabuco, congregando politicamente abolicionistas e escravos em casos de ataques, rebeliões e formação de quilombos que entrecruzam uns e outros na mesma luta: o fim da escravidão. 57 A notícia da Abolição, Lei no 3.353, de 13 de maio de 1888, chega a Sergipe através de “participação telegráfica do Governo Imperial” ao Presidente Olímpio Manoel dos Santos Vital, que expediu “comunicação a todos os chefes de repartições, Juizes de direito, municipais e promotores, e em geral a todas as autoridades da província, recomendando-lhes a pronta e imediata execução da Lei”. Ela – adianta o Presidente – “não perturbou de leve a ordem pública nesta Província. A maior parte dos escravos ficou nas propriedades de seus antigos senhores, mediante a percepção de salário e estou convencido que o trabalho da lavoura não sofrerá com a medida adotada” (FIGUEIREDO, 1977: 92). Apesar da esperança coletiva de que a abolição não prejudicaria a ordem pública na província de Sergipe, em Laranjeiras as conseqüências da abolição da escravatura transformam a vida na cidade, gerando graves embaraços à organização agrária; o funcionamento dos engenhos, por exemplo, antes realizado com mão de obra assalariada gera grandiosos déficits, com o fim do sistema escravocrata, para o regime econômico da cidade. Assim, no fim do século XIX, a baixa produção nos engenhos e na agroindústria demove inúmeros indivíduos do local em busca de centros mais populosos e compensadores. Com o passar do tempo, após a abolição da escravatura, os velhos canaviais se transformam em pastagens para o gado bovino e os antigos engenhos são parcialmente substituídos pelas usinas. Tal estado de coisas, todavia, qual a modernização da agroindústria açucareira, chega à cidade em plano insuficiente para a manutenção e circulação da antiga riqueza local, porquanto aos efeitos da libertação dos escravos soma-se o fato da proximidade entre Laranjeiras e a capital (transferida para Aracaju desde a segunda metade do século XIX, 1855) e a fundação da linha ferroviária; com a crise econômica que se desdobra no século XX, Laranjeiras passa por um longo período de evasão e êxodo. A cidade conserva, porém, em diversos de seus povoados relações estabelecidas entre os fatores promotores da hibridação cultural dos fenômenos que convergem à devoção a diversão: conjugação de valores do sagrado e do profano e reunião de redes sociais entre fé e festa. O povoado Mussuca33, distante três quilômetros do centro do município de Laranjeiras, é um destes espaços que se destacam na região do Vale do Cotinguiba por apresentar traços que, a partir do elo da ancestralidade local, relacionam religiosidade e 33 Lima (2005) apresenta duas possibilidades para a origem da palavra Mussuca, na primeira o autor observa a possibilidade de o termo ser um topônimo sergipano de origem africana e na segunda uma ocorrência de variação do termo mussuco oriundo do vocábulo quicongo munsuko, língua banto falada atualmente em Angola e Moçambique, que denomina no primeiro país um aldeamento cativo e no segundo o tributo pago pelos colonos nativos por cada palhoça. 58 arte através do conjunto de manifestações culturais. O fato de ser uma comunidade negra rural, considerada como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares (2006) e pela coletividade (de modo geral) garante a posse da propriedade e determinados direitos estabelecidos por lei, entretanto, não assegura o desenvolvimento local que permanece alijado de tecnologias, atendimento médico, rede de esgoto, segurança, espaços de lazer, etc. O alto índice de analfabetismo no povoado e a realidade de trabalho local (que hoje se distribuí entre usinas, extração de pedra e pesca) revelam que o grande número de investimentos e ações do Governo Provincial destinados à região, em fins do século XIX, onde constatamos contratações de professores e aluguéis de espaços que funcionem como escolas para a educação pública de seus moradores não foi suficiente para destituir o preconceito e a segregação social, permanecendo durante décadas os mussuquenses apartados de uma possibilidade de ascensão social e econômica. Localizado próximo aos antigos engenhos do Pilar, da Ilha, Pindoba e Gravatá, a primeira vista, podemos supor que é contraditória a eleição de espaço tão contíguo à área dos engenhos para a formação de quilombo; todavia, a opção pela área de intenso fluxo justifica-se pela necessidade de articulação entre os escravos fugitivos e os escravos cativos, aquilo que Gomes (1996) denomina de campo negro. Em verdade, essa implantação estratégica em uma elevação recoberta pela densa vegetação de Mata Atlântica, fortemente defensiva, funciona como esconderijo, favorecendo simultaneamente a proximidade conveniente e o distanciamento indispensável dos segmentos opressores. Estas buscas por lugares remotos e pelas matas têm sido identificadas em alguns trabalhos que abordam o tema como elementos que caracterizam o processo de formação dos quilombos no Brasil já que a formação destes espaços era preferencialmente efetivada em áreas cobertas por arvores. Lugares de difícil acessibilidade as florestas foram os melhores aliados dos africanos e negros cativos brasileiros visto que para os colonizadores o mato era um espaço impenetrável e desconhecido: um inferno militar. A este respeito Campos (2005: 32) complementa: A localização de qualquer quilombo privilegiava principalmente os lugares cujo acesso não fosse facilitado às forças da ordem imperial. A intenção era fazer a defesa do território ou efetuar a fuga em condições vantajosas frente ao adversário. Para isto, utilizavam estratégias que impediam o fim da instituição dos quilombos. 59 Uma destas estratégias é a adoção de lugares altos que garantam visão privilegiada, estratégica e panorâmica do entorno como se dá no povoado da Mussuca donde podemos observar o antigo engenho Pilar, divisar o rio Cotinguiba e apreender Aracaju. O sentido da visão, nesta perspectiva relaciona-se diretamente com a noção de poder fundando uma tecnologia de propriedade cujo escopo consiste em promover a resolução de questões de vigilância e instabilidade. Em seu livro Mussuca: Fragmentos da África em Sergipe, Alberto Lima elabora uma divisão de seis setores para analisar a área do povoado Mussuca, desde a entrada da comunidade até os limites com o povoado vizinho denominado Cedro. Aí, observando o processo de subdivisão da comunidade, o autor nos apresenta uma gruta designada Pedra Furada onde, segundo depoimentos fornecidos por moradores, os negros e escravos fugitivos refugiavam-se quando procurados pelos senhores nos mocambos. Entretanto, antes de homogeneizar a perspectiva sobre a etnicidade local este dado traz para a região polêmicas e discussões sobre as conseqüências históricas da formação quilombola. Isto porque existem incongruências sobre este tema fomentadas e apresentadas por inúmeros moradores que não se felicitam com a herança quilombola atribuída ao local. Esta negação ao histórico quilombola do local é natural quando pensamos que na sociedade escravista quilombo era sinônimo de horror ou ação terrorista produzido por grupo de malfeitores e bandidos insatisfeitos com a ordem, aparentemente, natural das coisas; afinal, embora o quilombo se caracterizasse, de modo geral, como um grupo defensivo: (...) em determinados momentos, tinha necessidade de atacar a fim de conseguir artigos e objetos sem os quais não poderia sobreviver, especialmente pólvora e sal. Fazia igualmente sortidas para conseguir mulheres e novos membros para o reduto. Convém notar, porém, que o quilombo, além de não ser completamente defensivo, nunca foi, também uma organização isolada. Para seu núcleo convergiam elementos igualmente oprimidos na sociedade escravista: fugitivos do serviço militar, criminosos, índios, mulatos e negros marginalizados. Tinham, igualmente, contato com os grupos de bandoleiros e guerrilheiros que infestavam as estradas (MOURA, 1981: 18). Em verdade, o negro age, sem homiziar qualquer tendência criminógena contra o sistema que o oprime e humilha o que o torna eixo para as questões relativas às ilicitudes e violência, entretanto, a Província de Sergipe, em linhas gerais, apresenta constantes deformações sociais, criminais e morais que inviabilizam a possibilidade de situar exclusivamente no negro a fonte da criminalidade: a falta de fiscalização do dinheiro público chega a ponto de não haver numerário para o pagamento do 60 funcionalismo; assassinatos são reproduzidos impunemente pela proteção que os malfeitores recebem da elite da Província, potentados dispõe a seu sabor e impunemente a vida e propriedade alheia, produzindo crimes contra a honra das famílias. A este respeito, encontramos dados no depoimento de Antônio José da Silva Travassos, datado de 1875: “A Província era martirizada pelos assassinatos com tanta imoralidade que os assassinos cruzavam os povoados, vilas e cidades, decidindo da sorte de seus habitantes por tal forma que o povo ironicamente os denominava ‘chefes de polícia’. Chefes de polícia porque “levavam o luto e a orfandade às famílias, sem poder a justiça pública entregá-los à severidade dos castigos penais, porque viviam sob a proteção dos poderosos”. (FIGUEIREDO, 1977: 86) Neste caso o fato, que antes de mais nada, é indicativo, revela-nos as contrariedades e conflitos que envolvem ideologicamente a comunidade e, com isso, expõe o saber heterogêneo que caracteriza a memória. As dimensões qualitativamente distintas que caracterizam a memória, no plano das representações sensíveis, não indicam tão-somente oposições de contrariedade ou de contradição, porém, ensejos de justaposição que correspondem às relações inversas de retorções e distorções de discursos e dimensões heterônomas. Aí, percebemos o problema da contrastividade onde a contradição sobre o grupo étnico se faz a partir dos sinais de subtração desenvolvidos pela diferença com que os próprios atores sociais formulam o entendimento sobre a origem comum. Os elementos considerados socialmente significativos, por estabelecerem o processo de divisão das terras, suas formas de uso e ocupação, a partir dos laços de parentesco não conciliam ou convergem horizontes sobre a afiliação étnica e histórica do local, e o sentido dos destinos compartilhados entre as individualidades, favorecendo desencontros simbólicos no seio da coletividade. Isto nos habilita, pois, não a pretender analisar aqui os aspectos de uma população estritamente homogênea, nem os resíduos de ocupação temporal do espaço, mas, sobretudo, examinar no povoado Mussuca práticas cotidianas de resistência de modos de vida e territórios. Por isso, estas (con)tradições inserem o coletivo da Mussuca naquilo que são: um grupo de homens e mulheres que estruturam em meio às divergências de pensamento-ação, fomentando desde a estrutura seminal de formação do povoado, as tramas justapostas entre o sagrado solene e o profano festivo. 61 2.2 - MELHOR SER DOS SANTOS QUE SER DO CÃO Entre as tramas que estruturam o sagrado solene e o profano festivo nos conhecimentos tradicionais, modos de fazer, rituais, festas, manifestações literárias, musicais, plásticas cênicas e lúdicas, santuários, igrejas e espaços sociais que congregam práticas culturais coletivas no povoado Mussuca reconhecemos redes que favorecem a construção simbólica sobre o lugar exercendo forte influência sobre aquilo que os homens organizam como vida comum e sociabilidades: a etnicidade. Estas redes articulam e movimentam propriedades que compõem o saber e a prática local, formulando em si conceitos e sentidos sobre a comunidade e seus indivíduos, postulando atividade e contínuo retorno a origem e funcionando, deste modo, como justificativa às realizações e experiências humanas. O resultado epistemológico da atuação de tais redes promove a contextualização e a justaposição de determinados fenômenos sociais responsáveis pela identificação e representação dos grupos humanos; tais fenômenos cujos vértices representam 1) a relação dos indivíduos de determinada comunidade entre si; 2) a relação dos indivíduos de determinada comunidade com outros historicamente semelhantes; 3) a relação dos indivíduos com realidades consideradas externas a eles constituem a tensão entre especificidade, semelhança e contraste que caracteriza as sociedades contemporâneas. A intensidade das diversas projeções, com vistas ao reconhecimento das peculiaridades, contigüidades e referências entre as sociedades, busca relacionar a cultura local à cultura global desalojando as identidades no tempo e nos espaços, permitindo apreender as culturas populares não como permanências, mas processos abertos e flexíveis à atuação do homem. Como reconhecer o fluxo livre das atividades humanas, identificar a mobilidade das formas pensamento-ação, descrever as articulações dos processos sociais, analisar o percurso dos patrimônios e históricos das celebrações, interpretar crenças e hábitos como ações simbólicas e reter o entendimento daquilo que designamos como popular na estreita fixação do passado? Faz-se mister examinarmos a cultura não como arranjo normativo e sim dinâmico cujo caráter extingue aquele pensamento que concebe a existência de sociedades auto-suficientes, insuladas do mundo contemporâneo ou que não tendem à formação de novos ideários e práticas. Exatamente aí, as formas simbólicas reconhecidas por Bourdieu (2009) como aspectos ativos do conhecimento, nos 62 fornecem o caráter integrador e dialético da etnicidade, cuja noção consiste não em atestar a existência de grupos étnicos, mas em colocar tal existência como problemática, questionando e perquirindo os processos responsáveis pela validação e pela definição de tais grupos étnicos como sistemas de representação cultural. Por isso, conquanto reconheçamos que a etnicidade fomenta na coletividade o espírito de solidariedade através de forças que estabelecem lealdades e estimulam a integração coletiva instaurando indicadores do reconhecimento étnico, o que aspiramos, aqui, não é analisar tais indicadores, mas os contextos nos quais estes se articulam na vida social, porquanto: (...) a contextualização social de tais “indicadores” é uma forma mais útil de compreender a maneira pela qual “indicam”, e o que significam do que forçálos em paradigmas esquemáticos ou despi-los, transformando-os em sistemas abstratos de regulamentos, que, de alguma maneira os geraram. O que nos permite falar desses indicadores em uma linguagem comum e de uma forma útil, é o fato de que todos registram uma sensibilidade comunitária, ou seja, que representam para todos que participam daquela comunidade, uma disposição de espírito comum (GEERTZ, 2006: 23). Tal estado de comunidade confere às ligações étnicas a força coercitiva derivada do dever moral da solidariedade que se constrói no sentido de pertencimento ao grupo; no reconhecimento das peculiaridades do grupo; nos vínculos elaborados ou simbolicamente diferenciados por indicadores; nas ligações afetivas ou vínculos baseados num passado comum; nas emoções e no sentimento do sagrado que lhes estão associados, etc. Todavia, aí, não se restringe, pois em relações intersocietárias ela provoca ações, reações e realizações diversas entre grupos promovendo dinâmicas e transformações. A etnicidade, assim, permite aos indivíduos situar seu espaço de representações e identificações simbólicas em uma ordem social mais ampla promovendo, através da distintividade humana, novas interpretações e significações donde depreendemos que a etnicidade é um continuum caracterizado tanto pela variação interna quanto pela mudança: que nos permite um entendimento dos trânsitos entre as formas de louvor ao santo amarantino da promessa ao espetáculo. Neste modelo a etnicidade é tratada como um sistema simbólico, ou seja, um conjunto de idéias coercitivas sobre a distintividade entre si e os outros que fornece uma base para a ação e a interpretação do outro. As categorias étnicas são símbolos cujo conteúdo varia em função das situações, mas que formam em conjunto um sistema de significações interligados. Nesta abordagem não existem grupos étnicos definidos a priori, mas um conjunto de variável de categorias étnicas que só possuem significações porque são definidas e utilizadas por pessoas que possuem uma compreensão e expectativas comuns em relação às diferenças fundamentais que separam as pessoas em sua sociedade (POUTIGNAT, 1998: 110). 63 Descobrimos, logo, que antes de pensarmos em grupos étnicos se faz relevante reflexionarmos acerca dos contextos interétnicos porque é na interação entre pessoas de contextos culturais distintos que apreendemos a necessidade de afirmar, refutar ou ignorar definições, conceitos e formas pensamento-ação que permitem a inteligibilidade das situações e dos acontecimentos. Assim, a etnicidade é aqui avaliada como um modelo de interação social da identidade étnica que não supõe uma essência fixa ou caráter primordial ao grupo, mas, auxilia-nos a examinar as percepções dos seus membros e o processo por eles utilizado para que estas os distingam de outros grupos. Nesta abordagem, a identidade étnica é definida como um quadro cognitivo comum que constitui um guia para a orientação das relações sociais e a interpretação das situações. Os símbolos e as marcas étnicas são referentes cognitivos manipulados em finalidades pragmáticas de compreensão de sentido comum e mobilizados pelos atores para validar seu comportamento (POUTIGNAT, 1998: 115). Daí, depreendermos que as peculiaridades culturais não constituem a essência da etnicidade, mas aquelas porosidades que permitem formas de interação entre “nós” e “não-nós”: sistema de classificação binário como sagrado/profano, preto/branco, puro/impuro que no auxilia compreender a questão da construção da etnicidade no povoado Mussuca a partir das relações históricas do lugar e os processos pelos quais o ritual vem passando no rumo da espetacularização. Toda relação binária estabelece o que Barth (1969) define como fronteira, situações em que as identificações étnicas são mais operantes e os traços distintivos reconhecidos, reafirmados e, portanto, marcados. Tais marcadores se desdobram desde elementos de qualidade primária como aqueles que acompanham o indivíduo desde o nascimento: as características físicas, o nome, a afiliação social e religiosa, até os dispositivos de relações intersocietárias, como situações de dominação e reconhecimento do principio da distinção. Por isso, não é a origem comum que constitui traço característico da etnicidade, mas a crença na origem comum que substancializa e naturaliza os atributos de determinados grupos. Embora determinados atributos culturais (como a língua) estejam em melhor posição para serem nisso utilizados, nenhum pode merecer o crédito de uma validade universal e essencial para a identificação étnica. Nem o fato de falarem uma mesma língua, nem a contigüidade territorial, nem a semelhança dos costumes representam por si próprios atributos étnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados como marcadores de pertença por aqueles que reivindicam uma origem comum34. 34 Ibidem: 163. 64 Desta maneira, a etnicidade estabelece um conhecimento comum à medida que promove compreensão partilhada do mundo, numa reciprocidade de perspectivas permitindo as rotinas da vida e as atividades organizadas em conjunto e, simultaneamente, um conhecimento de embate, conflito e emergência que deriva da aproximação com realidades externas e contrastantes. Na Mussuca percebemos que o sentido de comunidade estabelece-se pela forma que o povoado traça a distinção e elabora o aprofundamento da diferença entre “nós” e “não-nós” através do sobrenome; o fato de a maioria dos moradores da Mussuca possuírem o sobrenome “dos Santos” legitima no campo de ação simbólica e no quadro das dinâmicas sociais uma comunidade de sentido, ou seja, que se fundamenta no princípio do nome para estruturar a crença nos arcabouços sígnicos comuns como a memória, o esquecimento, o conjunto de valores, etc. Tal simbolismo parental estrutura o sentido de continuidade entre os homens e as relações do sagrado fundando estreitas relações de dever e responsabilidade na manutenção dos cultos, formas de louvor e adoração; estes arranjos de sentido são transmitidos pela convivialidade que edifica pontes entre passado e presente pela evocação da memória, dos gestos, das presenças ancestrais e míticas como significações in-corporadas no conjunto de práticas rituais humanas. A transcendência imanente, fenômeno reconhecido por Mafessoli (1998) como aquilo que surge de uma dimensão além das individualidades e de um contexto de grupo e coletividade determina a representação do sensível a nível coletivo e, por isso, instaura uma linhagem que transcende o próprio grupo estabelecendo, numa perspectiva imaginária, a comunidade da natureza afetiva ou o comum emotivo. Este estado de coisas configura no reconhecimento da origem comum os pressupostos indispensáveis para a nossa atual análise acerca dos fundamentos que alicerçam os ideais de pertencimento na comunidade; porquanto: É nos lugares que se forma a experiência humana, que se acumula, é compartilhada, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado. E é nos lugares, e graças aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham forma, alimentados pela esperança de realizar-se (...) (BAUMAN: 2009: 35). Ao caminharmos pela Mussuca ouvimos, muitas vezes, diversas pessoas dizerem que o povoado é uma família só e ao observarmos que o sobrenome indicia este dado – porquanto por ele podemos perceber que a maior parte da comunidade possui uma alcunha comum que se designa por Santos – resolvemos inquirir alguns moradores sobre o porquê do sobrenome coletivo, obtendo, dentre muitas, a seguinte resposta: “É 65 melhor ser dos Santos do que ser do Cão”, que instaura entendimentos claros sobre os alicerces que orientam os vínculos traçados entre unidade familiar e religiosa no espaço de convívio. Aí, apreendemos que o espaço de convívio, por sua vez, torna-se uma “casa cultual” onde o povoado além de significado cosmológico adquire papel ritual; afinal: Instalar-se num território equivale, em ultima instância, a consagrá-lo. Quando a instalação já não é provisória, como nos nômades, mas permanente, como é o caso dos sedentários, implica uma decisão vital que compromete a existência de toda a comunidade. “Situar-se” num lugar, organizá-lo, habitá-lo – são ações que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Universo que se está pronto a assumir ao “criá-lo”. Ora, esse “Universo”, é sempre a réplica do Universo exemplar criado e habitado pelos deuses: participa, portanto, da santidade da obra dos deuses (ELIADE, 1992: 32). O lugar dos Santos, portanto, faz-se como ambiência das relações entre os homens e o Ignoto, cuja expressão simbólica é rica e complexa: a teofania como revelação e aparição “dos Santos” no espaço (con)sagra o lugar pelo fato de torná-lo em terra santa e, deste modo, em região mais próxima de Deus. Entretanto, tal aspecto que relaciona e integra as individualidades consigo, entre si, com o meio e com as forças ocultas da Criação passa nos últimos anos por um processo de transformação e consubstancialização que promove relações entre as comunidades locais e as sociedades globais, repercutindo na relação entre arte, religião, mercado e promovendo alterações entre as dinâmicas do ritual e do espetáculo. Dentre o quadro de relações estabelecidas entre as comunidades locais e as sociedades globais que estruturam regiões glocais percebemos que aquilo que antes se edificava como vida transita ao domínio da representação, onde o espetáculo funciona como a afirmação da aparência onde tudo que é vivido torna-se, aparentemente, negado para se tornar visível. Os aspectos da visibilidade não prescindem elementos dramáticos e plásticos que conquanto não correspondam ao cotidiano coletivo, ali estão como figuração de realidades idealizadas e comprometidas com a ficção. No entanto, ainda assim o espetáculo, aqui, não representa nada mais do que a expansão dos mecanismos e dos sentidos da prática comum; seu campo de atuação revela nestas regiões glocais relações entre vida social e mercado, porém, de modo que a vida social e sua expressão não se artificializem de todo; há, por isso, nos atos espetaculares populares, que poderíamos designar como espaços de transição, algo de cultual que imprime uma dimensão renovada ao ritual, de acordo com as circunstâncias, 66 sem, todavia promover privações, automações e o pseudo-uso da vida. Em Mussuca, por exemplo, o ato espetacular redimensiona em espaço-tempo a ação ritual, entretanto, não a descaracteriza, permitindo e habilitando os atores sociais, através de ensejos de improvisação e louvor, brincadeira e respeito, ambiências de comunhão com o sagrado entre si. Faz-se mister, porém, ressaltar que se entre os devotos brincantes a estrutura ritual mantém a experiência sensível quando nos instantes de espetáculo não se dá o mesmo com o público de observadores; porquanto, se na Mussuca, de modo geral, os observadores da forma de louvor são sujeitos que, de uma maneira ou outra, se encontram próximos das dinâmicas de significações do culto, em espaços externos à comunidade os observadores se organizam enquanto público – não assistentes de uma prática religiosa, mas espectadores de uma performance artística – promovendo, então, a banalização acerca dos conteúdos de reverência mantenedores da experiência coletiva. Assim: Enquanto para os “visitantes”, pela natureza do caso, as realizações religiosas só podem ser apresentações de uma perspectiva religiosa particular, podendo ser apreciadas esteticamente ou dissecadas cientificamente, para os participantes elas são, além disso, interpretações, materializações, realizações da religião – não apenas modelos daquilo que acreditam, mas também modelos para a crença nela. É nesses dramas plásticos que os homens atingem sua fé, na medida em que a retratam (GEERTZ, 1989: 83). Por isso, para um público desviado dos aspectos motivacionais do rito: O espetáculo não canta os homens e as suas armas, mas as mercadorias e as suas paixões. É nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixão, realiza, de fato, na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astúcia da razão mercantil o particular da mercadoria gasta-se ao combater, enquanto a forma-mercadoria tende para a sua realização absoluta (DEBORD, 1997: 44). O objeto prestigioso na ação ritual perde valor no ato espetacular, tornando-se vulgar no instante em que se propõe a comunicar e interagir com escopos, públicos e circunstâncias que divergem da realidade sensível inerente ao culto. Neste sentido, a intencionalidade da obra, o contexto em que ela está inserida, as causas que a motivam e os arcabouços que a fundamentam como estrutura de identificação coletiva perdem a significância seminal ante a comunidade espectadora. Certamente, este fenômeno subtrai o caráter peculiar de culto que as individualidades devotas engendram perante o campo de forças eletro-magnética-afetivas propiciadas pelos crentes locais e pelo ato genuíno de fé que estes desdobram como assistentes do ritual, no entretanto, cada um 67 dos devotos pode operar na dimensão intima a conciliação com as bases fundamentais do ritual, possibilitando assim que, conquanto a recepção dos fenômenos artísticoreligiosos se dêem de forma artificial, eles desenvolvam o espaço do rito e(m) espetáculo; afinal, a presença do sagrado no profano depende da capacidade de transcendência, atemporalidade e do comportamento mítico do ser-devoto. A seguir, pois, pretendemos analisar de modo mais minucioso as relações, aqui, apresentadas: identificando e analisando processos de deslocamento e superposição entre as essências do sagrado e do profano, observando e discutindo os aspectos compositivos do ritual e do drama, apreendendo e analisando as estruturas de manifestação do ator ritual e, por fim, examinando a gestualidade da dança entre as tramas emaranhadas do jogo, da festa e do ritual. 68 2.3 - FESTA DE REIS E(M) LARANJEIRAS Domingo, 10 de janeiro de 2010. Apesar do calor da cidade de Laranjeiras abafar o som dos tambores, o relógio marca 09h00min anunciando-me, assim, que as cerimônias preparadas para a manhã já começaram. Sigo, então, em direção à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (localizada na Rua José Prado Franco) para visualizar, por mais um ano – desde 2007, a missa em louvor a Nossa Senhora do Rosário, a São Benedito e também a coroação da Rainha das Taieiras, a Chegança e a manifestação dos Cacumbis. Após o término da cerimônia me dirijo ao almoço e às 15h30min parto, novamente, rumo às ruas da cidade a fim de acompanhar a participação do grupo de São Gonçalo na procissão festiva aos Santos Reis35. Certamente, segundo o calendário católico esta data expressa tão somente as cerimônias referentes aos Reis, tendo em vista que São Benedito e N. S. do Rosário devem ser festejados, respectivamente em abril e em outubro. No entretanto, há um descompasso entre a data destinada pela Igreja para a homenagem devida aos referidos santos e o momento em que ela é realizada na cidade. A propósito, Padre Diógenes Oliveira Silva, pároco da cidade de Laranjeiras (Depoimento: 2010) comenta: Na verdade quem sai na procissão são, justamente, os santos de devoção do povo negro (...) santos negros: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o certo seria também sair os Santos Reis, mas aqui eles carregam justamente as imagens de outros santos, no caso: São Benedito, N. S. do Rosário e São Gonçalo (...) são os que mais saem. Tal desencontro entre a doutrina eclesiástica e a efetiva celebração aos santos na cidade que aproxima estruturas simbólicas diversas e, de certo modo, explicita um campo de crenças distintas consiste em uma herança da situação dos negros nas confrarias religiosas (espécies de irmandades que congregavam os indivíduos legitimando a hierarquia da sociedade escravista, separando em corporações religiosas do Santíssimo Sacramento e São Francisco, os senhores, e em irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, os escravos) e, portanto, deve ser analisada a partir das relações de dominação, subjugação e interesses materiais aos quais os negros e suas crenças estavam submetidos; afinal: É no eixo entre sagrado e profano, em que interesses materiais e aproximações simbólicas de tradições diversas se intercruzam, que se deve entender o descompasso entre a prescrição eclesiástica e a efetiva celebração 35 As comemorações do Dia de Reis são, em Laranjeiras, vinculadas aos festejos de encerramento do Encontro Cultural, por isso, ocorrem de modo geral em um domingo próximo ao dia 06 de janeiro. 69 dos santos na cidade com uma importante festa, cuja realização foi registrada no século passado no mês de janeiro. A data da festa, ao que parece, atendia à adequação das celebrações caras aos escravos às exigências do calendário agrícola de uma sociedade escravocrata. Com seus muitos dias santificados, o período natalino parecia mais apropriado à suspensão dos trabalhos nos campos (...) A justificativa apresentada no Compromisso da Irmandade do Rosário da cidade de Alagoas, antiga capital da Província vizinha, aprovado em 1830, é significativo ao determinar que: “Em razão desta Confraria ser composta em sua maioria de pretos cativos, a festa de Nossa Senhora do Rosário que se celebra no primeiro outubro será transferida para dezembro” (...) É importante ressaltar que é a condição dos pretos escravos que é invocada para justificar o deslocamento da data da festa para o ciclo natalino que medeia entre o fim de dezembro e o início de janeiro. Por outro lado, as aproximações estabelecidas através das figuras dos reis que se intercruzam – Reis de Congo ou do Rosário que são coroados, os três Reis Magos, um dos quais preto, que se postam diante de Jesus Menino – fornecem o quadro simbólico de suporte às celebrações dos santos patronos dos negros no dia 6 de janeiro (DANTAS, 1999: 120-1). Em seu livro Registros dos Fatos Históricos de Laranjeiras, o Padre Filadelfo Jônatas revela a continuidade das associações entre os Santos Negros e a Festa de Reis, durante a década de 30, ao apresentar uma descrição da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito; no entanto, na ocasião o cônego não aborda a presença da dança em louvor ao santo amarantino, o que nos induz a crer que esta ainda não era associada aos Festejos dos Reis. Modesta, simples e ainda não concluída, tendo aos pés Laranjeiras e mais abaixo o rio Contiguiba, acha-se assentada em pequena Colina a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, que tem 100 palmos de comprimento, 40 de largura, uma sacristia, um púlpito, um côro e três altares com as imagens de Nossa Senhora do Rosário, S. Gonçalo, Santo Antonio e São Benedito de S. Filadelfo, assim chamado porque nasceu na aldeia de S. Filadelfo, na Cecília. Os homens de cor concentraram todas as suas devoções neste templo, onde nas célebres tradicionais festas de Reis mais de cem pretos se apresentam fantasiados, representando os Reisados, Cheganças, Congos, Taieiras, Mouramas, Marujadas e Maracatu, comemorando as guerras entre os Cristãos e os Mouros, entoando cânticos à Virgem do Rosário, Vencedora em Lepanto (OLIVEIRA, 2005: 59). Inferimos, pois, que a participação da Dança de São Gonçalo na Festa de Reis é um fenômeno recente, resultante das relações estabelecidas entre a política cultural, a prefeitura e a Igreja (na década de 70) quando há um projeto de associação entre folclore e turismo à promoção da cidade de Laranjeiras. Assim, apreendemos o porquê de em registros sobre as práticas rituais na igreja não encontrarmos, até a década de 70, na cidade de Laranjeiras, referências sobre o ritual a São Gonçalo. Seu José Ranulfo Paulo dos Santos, mestre violeiro do grupo de São Gonçalo da Mussuca e irmão de Dona Nadir, atesta esta hipótese em entrevista (2010) ao comentar que o grupo de São Gonçalo brinca no Dia de Reis há não mais de quarenta anos: O São Gonçalo brinca (...) na Festa de Reis, em Laranjeiras, tem (...) uns quarenta anos (...) foi um prefeito que (...) tinha lá (...) que chamava Zé de 70 Ireno, ele andava lá pela Mussuca, que ele tinha fazenda e passava lá e via nós fazendo a promessa pra São Gonçalo, fazendo a brincadeira lá na Mussuca e lá ele convidou o finado meu pai pra ir a uma Festa de Reis em Laranjeiras (...) aí nós foi presentar na Festa de Reis; aí ele botou o São Gonçalo como a prefeitura responsável e nisso ficou: até hoje. Dona Nadir, filha de Mestre Paulino e cantadora do grupo de São Gonçalo (Depoimento: 2009) complementa: Na época que entrou os político na Mussuca (...) tinha um prefeito que se chamava Zé de Ireno e tinha o vice que era Zé Sobral. Aí, disse assim: “Seu Paulino eu vô fazer um trabalho com o senhor que é pra vocês representar este grupo nim Brasília” (tá com trinta cinco anos, você veja bem). Aí acertou tudo quando foi em fevereiro, no dia 10 de fevereiro, aí o grupo se aprontou – tava tudo certo, a passagem tudo certa já e foram pra Brasília. De lá, quando voltou (...) eles botaram Grupo Folclórico (...) aí ficou (...) o São Gonçalo ficou sempre viajando (...). Mas, este grupo de São Gonçalo só era mesmo pra promessa. Aí, percebemos a flexibilidade e plasticidade dos tempos sagrados a ressignificar no universo cotidiano, através de agenciamentos políticos e interesses materiais, as instâncias da fé e do rito engendrando, desse modo, diálogos entre diferentes sistemas de devoção em as terras de Laranjeiras. Laranjeiras, em uma das ruas e vielas que tramam sua tessitura, encontro os sangonçalistas36 (reunidos em frente ao Centro de Convenções); conversamos sobre o atraso de alguns figuras que ainda não haviam chegado e acerca do calor daquela tarde. Percebo que eles estão nervosos, ansiosos ou enfadados, não saberia dizê-lo o porquê e no exato momento em que inquiriria sobre tal estado de tensão, um sinal inicia a procissão induzindo aos dançadores a correr para acompanhá-la nas posições originárias e a mim igualmente a fazê-lo para acompanhá-los. Seguimos em cortejo em direção a Praça Matriz (também conhecida como Praça Dr. Heráclito Diniz Gonçalves) e neste instante percebo que outros integrantes surgem, juntando-se ao grupo e estruturando a formação adequada aos casos de procissão: mariposa e músicos à frente, patrão, figuras-adultos, patrão mirim e seus dançantes; prosseguimos pela Rua José Prado Franco (também conhecida por Rua Direita) até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Observo que a mariposa traja uma saia branca, um bolero branco aberto sobre uma blusa de mesma cor e porta uma faixa branco-prateada nos cabelos além de alguns acessórios (anel, cordão, pulseira e brincos); os tocadores vestem blusa pólo azul e calça branca ou preta; o patrão traja sua indumentária ritual habitual com sua caixa 36 Termo utilizado por Alceu Araújo para designar os devotos e participantes da dança na zona rural paulista. 71 atravessada no ombro; os dançantes o seguem em numero de nove (provavelmente pelo fato de alguém não ter conseguido chegar a tempo da saída da procissão) e, logo após, o grupo mirim (com quatorze meninos dançantes) coordenado pelo patrão mirim. Ambos os grupos cantam e dançam com o escopo de chegar a Igreja São Benedito, porém, cada qual possui uma jornada37 diferente para o momento; enquanto os adultos cantam “Quizamba”38, as crianças cantam “Suzanê”. Os grupos de dançantes se deslocam, então, em fila saltando e requebrando-se; porém, ao alcançarmos a Praça Augusto Maynard o grupo dos veteranos dá início a um desenvolvimento coreográfico onde cada fila de dançantes realiza voltas que se encontram no meio e seguem à frente (novamente em fila); os homens pulam e gingam estabelecendo aí um jogo de negociação, conflito e sensualidade. “Brincando com o desequilíbrio, o corpo oscila nas direções laterais, fazendo da ginga ‘uma zona intermediária e ambígua, situada entre o lúdico e o combativo’” (COUTO, 2003: 64-5). Ilustração 8: São Gonçalo da Mussuca em Procissão Festiva aos Santos Reis Às vezes, quando os guias se encontram a meio caminho, retornam por trás da roda (con)fundindo o olhar do espectador que busca o encontro das formas simples; tais entrelaçamentos são motivos para (trans) ou (con)fusão de cores e arranjos que geram a alegria, o riso espontâneo, a fé e(m) remelexo. Percebo que as crianças param suas brincadeiras para observarem pais, tios, primos e desse modo, desenvolver aquela 37 Segundo Cascudo (1984: 365), as jornadas consistem em uma série de versos cantados sem interrupção, estruturando-se, deste modo, como ato onde percebemos quadras decoradas e algumas improvisadas alusivas ao culto. 38 Segundo Dona Nadir (Depoimento: 2010), a jornada Quizamba, não deve ser cantada senão em procissões. 72 propriedade gestual promovendo a (in)corporação e assimilação daqueles saberes coletivos encarnados na gestualidade mussuquense. Os meninos, entre seis e treze anos, rejubilam-se e apreendo, então, que o processo de inserção das crianças no universo ritual atende e revela-nos, antes de mais nada, a preocupação da comunidade e dos devotos com o porvir das práticas e sistemas de fé da Mussuca e a implementação atual de um projeto de sucessão dos atores sociais envolvidos no ritual. A propósito Neilton Santana, (Depoimento: 2010) nos esclarece: Aí, né, essa idéia que teve de botar os meninos pequenos para dançar o São Gonçalo foi uma boa idéia (...) onde assim, não vai poder acabar, né?! (...) Porque assim, eu já vim de mirim, aí veio meu primo, veio meu irmão (...) É como se fosse uma escala (...) dos menores para os maiores. Isso aí vai até quando não der mais porque isso vai facilitar o resgate do São Gonçalo (...) e os que vêm depois aí, vai surgir mais forte (...) Quem era mirim vai ficar jovem, quem era jovem vai ficar adulto (...) Para não morrer o São Gonçalo. Seguimos pela Rua Direita, enquanto as crianças seguem caminhando em silêncio, os veteranos (à frente) cantam a jornada “Vosso Reis Pediu uma Dança”. Ali, nas proximidades do Museu Afro-brasileiro já se escuta as canções provenientes da igreja, mas os dançantes persistem em suas manifestações de fé realizando pequenos giros pela dimensão estreita da rua. Então cantam e dançam e somente quando estamos em frente à igreja eles param; outros grupos, porém continuam em os quadros de expansões de fé em festa, dentre os quais se destaca os Cacumbis. O relógio já aponta 16h40min quando chegamos à igreja, a canção eclesiástica reclama bênçãos para toda a nação brasileira em tons maviosos, graciosos e singulares: Protege o povo brasileiro Que vem feliz te agradecer Oh Nosso São Benedito A fé não lhes deixe perder Ilustração 9: Saída de Santos da Igreja São Benedito 73 Enquanto a música toca suave misturando-se aos sons graves emitidos pelos instrumentos dos cacumbis, as imagens dos santos (S. Gonçalo Garcia, S. Benedito e N. S. do Rosário, respectivamente) descem, em andores carregados por homens diversos, o plano inclinado da igreja e fundam a hierofania na procissão. Os sangonçalistas seguem atrás de N. S. do Rosário, a música cantada cessa e os sinos tocam fomentando a idéia do tempo sagrado e da fundação de um novo mundo, representado pela cosmogonia39 do eterno retorno. Provavelmente, o grupo de sangonçalistas segue a Nossa Senhora do Rosário por não ser São Gonçalo Garcia o santo da predileção comunitária, afinal segundo, Marcos de Oliveira Souza, historiador e pesquisador de educação patrimonial e religiosidade popular (Depoimento: 2009): Existe o São Gonçalo de Amarante que é a devoção do São Gonçalo que dança e existe São Gonçalo Garcia. São Gonçalo Garcia era filho de uma portuguesa com um indiano. Não! A mãe dele era indiana e o pai era português, por isso que ele tem esta cor morena (...) E São Gonçalo, ele foi para o Japão e os franciscanos foram fazer uma missão e eles tavam até bem a missão; mas você sabe: em toda organização sempre tem aquele que se incomoda quando o trabalho de um sobressai, né?! E tavam se incomodando e fizeram a cabeça do Imperador e o Imperador mandou pregá-lo na cruz (você tá vendo o símbolo da cruz) e mesmo pregado na cruz (...) enfiavam lanças nele (...) Aí, por isso que tem esta devoção. Como aqui a devoção é da devoção africana, Nossa Senhora do Rosário sempre teve esta identidade com os africanos, São Benedito era devoto de Nossa Senhora do Rosário e São Gonçalo Garcia tinha uma devoção a Nossa Senhora do Rosário – a mãe de Jesus, a medianeira de todas as graças. Por isso, todos os santos que vocês vêem na festa de Reis sempre eles têm um caráter um pouco voltado à cor africana (...) a devoção popular africana. Uma banda de música toca então determinadas marchas de simbolismo cívico, e todo o cortejo segue até o final da Rua Direita ou Rua José do Prado Franco (ponto do Chico Preto, entre a Rua da Palha e a Rua Comandaroba); ambos os grupos de São Gonçalo seguem silenciosos enquanto alguns outros grupos como o Samba de Pareia e os Cacumbis retomam seus cantos. No ponto do Chico Preto, apreendo que os grupos retornam em formato coreográfico (em simultaneidade, aqueles que vão à direção do fim da rua fazem o percurso por fora e aqueles outros que retornam o fazem por dentro). O carro de som toca canção religiosa (enquanto os grupos se arranjam pelos meandros estreitos da cidade); sem deixar, contudo, de perceber os tambores e vozes, a algazarra e a alegria dos homens e mulheres na cidade, posso apreender alguns versos da música eclesiástica: 39 Aqui, aplicamos o termo para designar o modelo exemplar da Criação Divina, das ações e mitologias dos santos e o processo de reatualização deste modelo pela ação simbólica dos homens. 74 Segura na mão de Deus (2X) Pois ela, ela te sustentará Não temas, segue adiante e não olhes para trás Segura na mão de Deus e vai A procissão, em seu retorno, passa novamente pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, alcança a Praça Augusto Maynard e, a eito, prossegue rumo a Praça da Matriz. Neste momento, a Igreja Matriz abre suas portas e toca seus sinos congregando ali não apenas devotos, mas pesquisadores, turistas, rede autóctone, senão pelos ideais religiosos pelo apelo à celebração. Ilustração 10: Retorno da Procissão A procissão segue pela Rua do Roque (ou Rua Sagrado Coração de Jesus) e percorre a Praça Samuel de Oliveira e a Praça da República, porém aí percebo que a sua estrutura faz-se diversa, há predomínio da serenidade e o silêncio envolve a ação cerimonial, apreendo que após a passagem pela Matriz, quase todos silenciam. A ordem da procissão apresenta-se, então, mais claramente: à frente um jovem empunha uma cruz todo vestido de branco, seguido de dois outros jovens; atrás destes algumas crianças vestidas de anjos seguem; a seguir, determinadas pessoas sustentam as bandeiras do Brasil, de Sergipe, seguidas de outras três bandeiras. Após, provêm alguns estandartes com imagens da Virgem do Rosário e em suas laterais os homens da Chegança; a este quadro segue a figura do padre (promovendo orações, tal qual a Ave Maria) e dos Cacumbis. Em seguida, vem a imagem dos santos: São Gonçalo Garcia, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Os devotos de São Gonçalo de Amarante acompanham a Nossa Senhora, porém já não tão contíguos e concentrados em torno da 75 Virgem, mas próximos a todo o conjunto de pessoas que “guardam” o cortejo (turistas, pesquisadores, comunidade local, etc.). Finalmente, a banda passa seguida das senhoras do Samba de Pareia e alguns brinquedos e bonecos (en)cantados. A procissão prossegue pela Rua João Ribeiro (ou Rua do Cangaleixo), transpõe a Rua Josino Menezes (antiga Praça da Conceição) onde fica localizada a Igreja de Nossa Senhora da Conceição (também conhecida como Igreja do Galo) e segue pela Rua Francisco Bragança, por onde retorna à Rua Direita e à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito: aí, os sinos tornam a tocar para legitimar a entrada dos santos na igreja e a cerimônia tem seu “fim”. Agora são 17h40min. Leoziro dos Santos e José Neilton dos Santos – Nenel, pai de Neilton Santana – (figuras adultos de São Gonçalo) me convidam enquanto os sinos continuam a tocar para irmos ao bar bebermos uma cerveja, aceito o convite, apesar de não beber alcoólicos e de temer perder alguma manifestação relevante da cerimônia; em seguida, seguimos para residência de Dona Adelaide Ribeiro Vieira para promover uma visita com dança, o relógio aponta 17h54min. A visita, nestas circunstâncias, consiste em uma homenagem que se eleva ao plano dos afetos: só é realizada para pessoas especiais e representativas ao grupo; no caso de Adelaide, a visita é uma saudação especial ao Mestre Oscar Ribeiro (um dos maiores folcloristas de Laranjeiras, piloto da Chegança Almirante Tamandaré, seu falecido e saudoso pai) que se estrutura como tradição. A propósito, Adelaide (Depoimento: 2010) nos esclarece: O São Gonçalo dança na minha casa por sermos filhas do Mestre Oscar e por uma tradição que já vem acontecendo há muitos e muitos anos, não só o São Gonçalo, mas todos os grupos como: Chegança, Taieiras, Cacumbi, Reisados, etc. Nas outras residências são afinidades de amizade, mas aqui na minha casa é uma tradição desde os tempos do meu saudoso pai. Em a casa de Adelaide, os dançantes entoam três jornadas e apesar da casa estar cheia de gente, eles desenham o espaço com suas coreografias cheias de sinuosidade, volúpia e fé; primeiro realizam uma pequena introdução sem cantos apenas com os instrumentos tocando, depois dançam “Nas Horas de Deus Amém”, “Suzanê” e a “Chula”, após esta ultima jornada os homens se abaixam e ao finalizar a música Mestre Sales reclama algumas vivas: Viva a Deus do Céu! E o coro responde: Viva! Viva a São Gonçalo de Amarante – Viva! Viva aos Tocadores – Viva! Viva a Secretária de Cultura – Viva! 76 Infelizmente, a “Viva” à Secretária de Cultura como forma de saudar e estreitar laços com uma convidada ilustre, representante da política cultural do estado, que ali está, torna-se vão. À noite, ao percorrer as ruas da cidade de Laranjeiras, os mestres dançantes não conseguem jantar com tranqüilidade, devido à precariedade da refeição oferecida pela Prefeitura e não conseguem efetivar as obrigações relacionadas às atividades do Encontro Cultural de Laranjeiras marcadas para o horário em que a noite caí. Sem espaço para encenar e dramatizar suas manifestações, devido a deslocamentos arbitrários realizados pela Secretária de Cultura de Laranjeiras que fornece o lugar das representações populares para o “show” do Padre Antonio Maria, os grupos populares vão se deslocando pelas ruas da cidade sem obter informações sobre as representações que realizariam em aquele tempo. Após, algumas horas de pé, que simbolizam nada mais nada menos do que a falta de respeito e o descaso da Prefeitura da Cidade de Laranjeiras a todos os pesquisadores congregados no evento, mas, mormente, aos mestres populares (que são apenas valorizados na “capital do popular” em estruturas de simulacro) optamos por nos retirar daquele recinto, todos os pesquisadores se comprometeram em enviar cartas e artigos a congressos, jornais e revistas reclamando itens de valorização aos mestres populares no evento que não sejam apenas seus nomes em programas que nem sequer se cumprem. Por fim, seguimos com Dona Nadir (cantadora do Grupo de São Gonçalo) para a rodoviária da cidade fizemos uma boa batucada como protesto e criamos nosso espaço de queixas, ativismo e promoção da arte popular. Ao término de nossos jogos em roda e de nossas exclamações sobre o absurdo descaso, ovacionamos o ônibus que levaria os sangonçalistas e demais grupos para Mussuca gritando inúmeras vezes o nome do povoado, batendo palmas e dando vivas à Cultura Popular! 77 3 - REGOZIJAI-VOS NA FÉ “Louvem a Deus com dança e tambor, louvem a ele com cordas e flauta! Louvem, a Deus com címbalos sonoros, louvem a ele com címbalos vibrantes!” (Salmo 150). 3.1 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: FÉ E(M) FESTA Em seu livro, O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões, Mircea Eliade (1992: 14) propõe que “a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano”, apresentando, pois, ambas as categorias da experiência humana no mundo como distintas e contrárias. Segundo o autor, a manifestação do sagrado – aqui designada por hierofania, cujo conteúdo etimológico indica algo de sagrado que se nos revela – instala o homo religiosus em um espaço não homogêneo, consistente, qualitativamente diferenciado dos espaços cotidianos/utilitários e em um universo real à medida que “potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição entre sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo-real”40. Desse modo, a experiência numinosa (do latim numen, “deus”) torna possível ao homem a estruturação de um mundo onde a hierofania revela o real através da irrupção do sagrado e produz uma rotura dos níveis cósmicos, ou seja, possibilidades de trânsito entre a Terra e o Céu que suscitam a passagem de um modo de ser a outro, a comunhão com o Ignoto e representam o desejo de viver em um Cosmos puro e santo, tal como era no princípio, no instante mítico da Criação. Neste sentido: (...) o sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade. O desejo do homem religioso de viver no sagrado equivale, de fato, ao seu desejo de se situar na realidade objetiva, de não se deixar paralisar pela relatividade sem fim das experiências puramente subjetivas, de viver num mundo real e eficiente – e não numa ilusão41. A instalação do sagrado, portanto, em uma espécie de Cosmos estrutura-se como forma indispensável aos arranjos da religiosidade que integra o homem à natureza devocional, amparando-o, protegendo-o e afastando-o, periodicamente, dos aspectos profanados da vida; a experiência do espaço tal como é vivida pelo homem religioso, 40 41 Eliade, 1992: 16. Ibidem: 27. 78 por um homem apto a viver a sacralidade do mundo, assume um valor existencial que implica orientação, aquisição de um ponto fixo e a fundação de um espaço qualitativamente diferenciado dos demais; por isso, sobretudo, é que: (...) a vida religiosa e a vida profana não podem coexistir no mesmo espaço. Para que a primeira possa desenvolver-se, é preciso arranjar-lhe lugar especial do qual a segunda seja excluída. Vem daí a instituição dos templos e dos santuários: são parcelas de espaço reservadas às coisas e aos seres sagrados e que lhes servem de moradias; porque não podem se estabelecer em terra senão com a condição de se apropriar totalmente dela num raio determinado42. No entanto, o desejo do homem religioso de mover-se em um mundo numinoso, sua necessidade de existir em um universo total e organizado, ou seja, em um Cosmos, sua tentativa de permanência em estados supraterrestres colaboram à estruturação não apenas do processo de sacralização do espaço, mas também na organização e inscrição de conteúdos e significados religiosos à dimensão temporal. Assim, apreendemos que o tempo também não é para o homem religioso, nem homogêneo, nem contínuo e, por isso, não se situa na duração temporal ordinária, mas faz-se potencialmente reatualizável e indefinidamente recuperável ou repetível43; portanto: (...) a vida religiosa e a vida profana não podem coexistir nas mesmas unidades de tempo. É, pois, necessário destinar à primeira dias ou períodos determinados dos quais todas as ocupações profanas sejam eliminadas (...) Não existe religião nem, por conseguinte sociedade que não tenha conhecido e praticado essa divisão do tempo em duas partes estanques, alternando uma com a outra conforme uma lei variável de acordo com os povos e as civilizações; é até muito provável, como dissemos, que tenha sido a necessidade dessa alternância que levou os homens a introduzirem, na continuidade e na homogeneidade da duração, distinções e diferenciações que ela não comporta naturalmente (DURKHEIM, 2008: 373). Desta maneira, compreendemos que “o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente”44 caracterizando-se, portanto, como um tempo ontológico por excelência, ou seja, um tempo que não se esgota, não muda, não flui. Depreendemos, pois, que: O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das quais a mais importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um tempo circular reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Esse comportamento em relação ao Tempo basta para distinguir o homem religioso do homem não religioso. O primeiro recusa-se a viver unicamente no que, em termos modernos, chamamos de “presente histórico”; esforça-se 42 Durkheim, 2008: 373. Utilizamo-nos, aqui, do termo repetição “não como algo alienante que exclui a capacidade criativa do ser humano, mas como forma de reviver, de resgatar a mitologia e o tempo mítico nas condições sociais de hoje e na perspectiva do novo” (LARA, 2008: 28). 44 Eliade, 1992: 59. 43 79 por voltar a unir-se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode ser equiparado à Eternidade45. Deste modo, se para o homem não-religioso o Tempo não pode apresentar nem roturas, nem heterogeneidades, nem deslocamentos entre as modalidades da experiência humana no mundo, para o homem religioso, a duração temporal profana pode ser potencializada periodicamente pela inserção, por intermédio dos ritos, de um Tempo sagrado, não-histórico, estruturado pela cosmogonia do eterno retorno. A extrema facilidade com a qual as forças religiosas se irradiam, se difundem e se confundem às coisas do mundo profanado nada tem, portanto, de surpreendente se avaliarmos sua concepção, formulação e composição como estruturas exteriores às coisas, espaços, tempos e pessoas nas quais elas residem. Elas não são, com efeito, senão forças coletivas hipostasiadas, ou seja, forças morais; constituem-se das idéias e dos sentimentos que o espetáculo da sociedade desperta em nós, não das sensações que nos vêm do mundo físico. Elas são, portanto, diferentes das coisas sensíveis nas quais as situamos. Podem tomar de empréstimo a essas coisas as formas exteriores e materiais sob as quais são representadas; mas não lhes devem nada daquilo que constitui a sua eficácia. Não se ligam por laços internos aos diversos suportes sobre os quais se colocam; não têm raízes aí; segundo uma expressão que já empregamos e que pode servir para caracterizá-las melhor, elas lhes são acrescentadas. Assim, não existem objetos que, com a exclusão de todos os outros, estejam predestinados a recebê-las; os mais insignificantes, os mais vulgares até, podem exercer essa função: são circunstâncias adventícias que decidem quais serão eleitos (DURKHEIM, 2008: 389). Aí, percebemos que sagrado e profano não são propriedades das coisas, mas significações que se estabelecem pelas atitudes dos homens perante coisas, espaços, tempos, pessoas, através de seus processos de ritualização e suas tentativas de transubstancialização da natureza que promovem coisas inertes, tal como pedras, árvores, fontes a sinais visíveis de uma teia invisível de significações. “Todos eles são símbolos, ou pelo menos elementos simbólicos, pois, são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças” (GEERTZ, 1989: 68). Neste sentido, deduzimos que em um ritual o que se faz não é: (...) uma veneração da pedra como pedra, um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere46 (ELIADE, 1992: 15). A este respeito, Rubem Alves (1984: 26) complementa: 45 Ibidem: 60. A expressão ganz andere indica o totalmente outro; manifestando o sagrado um objeto qualquer parece uma outra coisa, sem deixar, entretanto, de ser ele mesmo. 46 80 Pão como qualquer pão, vinho como qualquer vinho. Poderiam ser usados numa refeição ou orgia: materiais profanos, inteiramente. Deles não sobe nenhum odor sagrado. E as palavras são pronunciadas: “Este é o meu corpo, este é o meu sangue...” – e os objetos visíveis adquirem uma dimensão nova, e passam a ser sinais de realidades invisíveis. Esta visão auxilia-nos a compreender a relação estabelecida entre o mundo secular/profano e a utilidade e efemeridade das coisas e aproxima-nos de um entendimento do sagrado como arranjo de fenômenos perenes e sobre-humanos, ou seja, “o que vai além da compreensão e da explicação do homem e o que ultrapassa sua possibilidade de mudá-lo”47. O homem, por isso: Sente-se ligado às coisas sagradas por laços de profunda reverência e respeito; ele é inferior; o sagrado lhe é superior, objeto de adoração. O sagrado é o criador, a origem da vida, a fonte da força. O homem é a criatura, em busca de vida, carente de força. Vão-se os critérios utilitários. (...). Sentese dominado e envolvido por algo que dele dispõe e sobre ele impõe normas de comportamento que não podem ser transgredidas, mesmo que não apresentem utilidade alguma. De fato, a transgressão do critério de utilidade é uma das marcas do círculo do sagrado (ALVES, 1984: 61). Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 12 EXT – MUSSUCA – MANHÃ Cena: Enquadramento de Danilo dos Santos em entrevista Duração no vídeo: 11’39” a 12’16” Finalidade expressiva: Apresentar os vínculos sociais estabelecidos pela prática ritual a partir de emoções e afetos que regulam as relações dos homens entre si e com o Ignoto. O sagrado e o profano se instalam, portanto, não como forças doutrinárias, a despeito de Rubem Alves (1984) afirmar que a essência da religião seja a força (conjugando no termo fé, devoção, respeito e esperança), mas sim como significações e emoções que regulam as relações dos homens com os homens, dos homens com a natureza, dos homens com os deuses; tais significações e emoções, todavia, não derivam de propriedades intrínsecas dos objetos – afinal, “o sagrado (...) não é um valor absoluto, mas um valor que indica situações respectivas”48 – mas consistem em atributos elaborados e decodificados pelos próprios sujeitos, o que nos induz a relativizar as estâncias possíveis de manifestação do homem no mundo e nos conduz a apreender possibilidades de trânsito, deslocamento ou fluxo entre as esferas do real e o do irreal; porquanto, como nos informa Durkheim (2008: 390): 47 48 Canclini, 2006: 192. Gennep, 1978: 32. 81 (...) se as forças religiosas nunca têm lugar próprio, a sua mobilidade torna-se facilmente explicável. Já que nada as vincula às coisas nas quais as localizamos, é natural que, ao menor contato, escapem, a despeito delas mesmas, por assim dizer, e se propaguem mais adiante. A sua intensidade incita-as a essa propagação a que tudo favorece . E prossegue: Por si mesmas, essas emoções não estão ligadas à idéia de nenhum objeto determinado; mas, como se trata de emoções e como elas são particularmente intensas, são também eminentemente contagiosas. Elas se alastram, pois; estendem-se a todos os outros estados mentais que então ocupam o espírito; penetram e contaminam sobretudo as representações nas quais se exprimem os diversos objetos que o homem, no momento, tem nas mãos ou sob os olhos: os desenhos totêmicos que cobrem o seu corpo, os bull-roares que faz ressoar, os rochedos que o circundam, a terra em que pisa etc. É assim que esses objetos assumem valor religioso que, na realidade, não lhes é inerente, mas lhes é conferido do exterior (DURKHEIM, 2008: 390-1). Ora, se sagrado e profano são experiências com possibilidades de re-localização, trânsito e circulação – à medida que são elaboradas pelos homens e podem ter suas estâncias relativizadas – é possível pensarmos em perfis interativos, entre estes campos, articulados por diálogos e confrontos, combinações e resistências, que conquanto instaurem uma solução de continuidade entre estas modalidades da experiência ritual não necessariamente as anula, tampouco as extingue: eis o limiar. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado49. E, com efeito, é quase impossível que o sagrado consiga concentrar-se de modo absoluto, irrestrito e hermético em ambientes espaciais e temporais que lhes são atribuídos; é inevitável que haja um vazamento que indique tanto um estado de isolamento e mútua oclusão quanto um caráter de extraordinária contagiosidade e fugacidade entre sagrado e profano; desta maneira: (...) por uma espécie de contradição, o mundo sagrado parece tender, por sua própria natureza, a se propagar nesse mesmo mundo profano que, por outro lado, exclui: ao mesmo tempo que o repele, tende a derramar-se sobre ele assim que se aproximam (DURKHEIM, 2008: 384). Aí, apreendemos que se produz uma rotura de nível que abre espaço à comunicação e possibilita a passagem, de ordem ontológica, de um modo de ser a outro, promovendo destacamentos e integrações, oposições e junções, saliências e inibições, traços ambíguos de perfis, a priori, significativamente diversos e opostos. Este espaço limiar – qual a pele ou a membrana dos organismos vivos que serve ao intercambio do 49 Eliade, 1992: 24. 82 mundo interior com o exterior, através de suas porosidades, formando uma unidade complexa indivisível que caracteriza a presença do homem no mundo, ou ainda como o osso que promove o intercâmbio entre as camadas mais íntimas de nosso ser e os arranjos de cadeias musculares – engendra espaços limítrofes, onde sagrado e profano se encontram, confundem e fecundam campos difusos e indeterminados no espaço entre: o cenário da intertransponibilidade. O limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem (ELIADE, 1992: 25). Esta visão teleológica50 do limiar conjugada à sua multivalência simbólica possibilita-nos perceber uma extensão do conteúdo essencial e, por isso, profundo do sagrado e do profano e permite-nos, sobretudo, apresentar e desenvolver reflexões acerca das novas e possíveis estruturas de relação entre o real e o irreal que como eventos fomentam traços de oposições complementares e contrastes em novas harmonias a partir da festividade e da fantasia – categorias limiares que transcendem o hiato entre sagrado e profano e estabelecem a afirmação jogralesca e imaginosa às situações da vida consideradas radicalmente contrárias, reunindo através da conjugação de seus elementos aspectos do real e do irreal. Esta reunião nos induz a crer que “entre outras coisas, é o homem em sua verdadeira essência, um homo festivus e homo phantasia. Celebrar e imaginar são partes integrantes de sua humanidade”51 e, por isso, sem estas potências, que vinculam o homem ao passado e ao futuro em presença, este não seria um ente-histórico. Assim, compreendemos que a festividade habilita o homem a ampliar seu quadro de experiências (re)vivendo eventos do passado e atualizando a cosmogonia exemplar através da remodelação de símbolos presentes; esta capacidade, entretanto, de relacionar o homem ao passado não é elaborada tão somente por nossa capacidade intelectual, mas pelo exercício da ação; afinal “o passado não se revoca recordando-o apenas, mas revivendo-o”52. Neste espaço de re-validação do pretérito, apreendemos a festividade “como uma ocasião socialmente aprovada para expressar sentimentos normalmente reprimidos ou negligenciados”53 cuja composição essencial abarca três elementos: 1) excesso 50 Termo proveniente do vocábulo grego telos que significa fim, propósito. Cox, 1974: 20. 52 Ibidem: 18. 53 Ibidem: 26. 51 83 consciente; 2) afirmação celebrativa; 3) justaposição, que propicia-nos, respectivamente a dispensa das convenções sem o elemento das infrações, ou seja, “o comportamento é dominado pela liberdade decorrente da suspensão temporária das regras de uma hierarquização repressora”54, o prazer e alegria da ação e a manifestação dos contrastes entre celebração e o espaço/tempo ordinário que nos permite apreender, de modo mais apurado, o estado das coisas que nos cercam, num processo de reconhecimento nítido entre o domínio do cotidiano e o universo dos acontecimentos extracotidianos. É por isso que a própria idéia de cerimônia religiosa de alguma importância desperta naturalmente a idéia de festa. Inversamente, toda festa quando, por suas origens é puramente leiga, apresenta determinadas características de cerimônia religiosa, pois, em todos os casos, tem como efeito aproximar os indivíduos, colocar em movimento as massas e suscitar assim estado de efervescência, às vezes até de delírio que não deixa de ter parentesco com o estado religioso. O homem é transportado fora de si mesmo, distraído de suas ocupações e de suas preocupações ordinárias. Assim, de ambas as partes, observam-se as mesmas manifestações: gritos, cantos, música, movimentos violentos, danças, procura de excitantes que restaurem o nível vital etc. Observou-se muitas vezes que as festas populares levam a excessos, fazem perder de vista o limite que separa o lícito do ilícito; o mesmo se dá com as cerimônias religiosas que determinam como que uma necessidade de violar as regras normalmente mais respeitadas (DURKHEIM, 2008: 456). Por sua vez, a fantasia possibilita ao homem alargar as fronteiras do futuro, aproximando-nos através dos devaneios à dimensão do porvir sem precauções e/ou reticências; sua manifestação plena – como conjunto de aspectos estéticos, emocionais e simbólicos da vida humana – não se dá, todavia, tão somente pela preparação do futuro, mas conjurando-o e desvelando-o. Daí, apreendermos na fantasia elementos de arte e de criatividade consciente, atributos de invenção e inovação, aspectos opostos a unidades espúrias. A fantasia é, no sentido que eu emprego o vocábulo, “imaginação avançada”. A fantasia não conhece barreiras. Não apenas suspendemos as normas de conduta social, mas toda a estrutura da “realidade” de cada dia. Pela fantasia não só nos transformamos em nosso próprio ser ideal, mas em gente totalmente diferente da que somos. Abolimos os limites de nosso poder e de nossa percepção. Pairamos no ar (COX, 1974: 66). E, de fato: A imaginação criativa é muito mais rica do que as imagens; ela não consiste na habilidade de evocar impressões sensoriais e não se restringe a preencher as lacunas do mapa oferecido pela percepção. É chamada “criativa” porque consiste na habilidade de criar conceitos e sistemas conceituais que podem não encontrar nenhum correspondente nos sentidos (...) e também porque suscita idéias não-convencionais (TURNER, 2008: 45-6). A fantasia, portanto, se apresenta aqui como a transmutação de formas e símbolos familiares e a elaboração de impulsos e idéias que irrompem o estado presente, 54 DaMatta, 1997: 49. 84 cooperando ativamente no processo de transcendência do mundo e sublimidade da existência, desafiando todos os cânones existentes sobre o útil e o real e favorecendo, deste modo, estados de hibridação e relações entre o sagrado e o profano. Com efeito, ainda que, como definimos, o pensamento religioso seja algo completamente diferente de um sistema de ficções, as realidades às quais ele corresponde só chegam, no entanto, a se exprimirem religiosamente se a imaginação as transfigura (...) O mundo das coisas religiosas é, portanto (...) mundo parcialmente imaginário e que, por essa razão, presta-se mais facilmente às livres criações do espírito55. Nesta perspectiva, percebemos que o ritual ao propiciar forma e ocasião à expressão da festividade e da fantasia, por intermédio do movimento, gesto, canto, dança, invenção e criação, desempenha papel fundamental à articulação e expressão de estruturas limiares que permitem aos homens conviverem periodicamente na presença dos deuses, participando dos valores da religiosidade e da santidade do mundo, através do riso, da festa, do pagode e(m) ação. Desta maneira, o caráter cerimonial do rito articula-se como drama, ou seja, ação constituída pela força coletiva onde o que é fundamental é que os indivíduos estejam reunidos, sentimentos comuns sejam experienciados e estes se exprimam por atos compartilhados em um processo de partilha do sensível56. O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, em ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais um ato (...) O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural (...) O ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente reproduzido na ação. Portanto, a função do rito está longe de ser simplesmente imitativa, leva a uma verdadeira participação no próprio ato sagrado (HUIZINGA, 1990: 18). A perspectiva do ritual como evento re-atualizado, dentro do processo natural, a identificar-se com um acontecimento cósmico, auxilia-nos a perceber o agenciamento entre a substância da devoção e a textura da diversão – que inclinam os homens a executarem determinados atos e a experimentarem certas espécies de sentimentos através do reconhecimento de conceitos, concepções e disposições que participam de uma ordem de existência geral e coletiva – e a partir da promoção deste encontro apreender a exibição de fenômenos consagrados destinados a provocar admiração e respeito pelos ideários religiosos. É no ritual – isto é, no comportamento consagrado – que se origina de alguma forma essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas. É em alguma espécie de forma 55 Durkheim, 2008: 454. “Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas” (RANCIÈRE, 2009: 07). 56 85 cerimonial – ainda que essa forma nada mais seja que a recitação de um mito, a consulta a um oráculo ou a decoração de um túmulo – que as disposições e motivações induzidas pelos símbolos sagrados nos homens e as concepções gerais da ordem da existência que eles formulam para os homens se encontram e se reforçam umas às outras (GEERTZ, 1989: 82). Aí, portanto, apreendemos o drama como ação em um mundo (com)partilhado simbolicamente, cuja estruturação se funde à motivação da elaboração dos atos rituais. Em verdade, o rito não possui essência diferente do mundo que nos cerca, mas corresponde, sobretudo, a (trans) e (con)substancialização de nosso entorno e sistemas habituais de crença, funcionando como um aspecto das relações sociais, onde “o princípio sagrado outra coisa não é senão a sociedade hipostasiada e transfigurada”57. Por isso, o “mundo do sagrado não é uma realidade do lado de lá, mas a transfiguração daquilo que existe do lado de cá” (ALVES, 1984: 98-100). Nesse sentido, o estudo dos rituais não seria um modo de procurar as essências de um momento especial e qualitativamente diferente, mas uma maneira de estudar como os elementos triviais do mundo social podem ser deslocados e, assim transformados em símbolos que, em certos contextos, permitem engendrar um momento especial ou extraordinário (DAMATTA, 1997: 76). Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 09 INT – TRANSPORTE ALTERNATIVO – MANHÃ Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo Mirim no transporte. Duração no vídeo: 07’45” a 08’42” INT – CENTRO DE CONVENÇÕES – MANHÃ Cena: enquadramento de Grupo de São Gonçalo Mirim em ação performática Duração no vídeo: 09’10” a 09’48” Finalidade expressiva: Apontar o modo pelo qual os elementos triviais da vida ordinária se deslocam e transformam em símbolos rituais, como expressão gestual, musical e memória do corpo. Depreendemos, pois, que a matéria-prima do mundo ritual é a mesma que garante plasticidade à vida diária e que entre elas as diferenças são apenas de grau não de qualidade; o rito, portanto, estrutura-se como a permanência que se realiza, contraditoriamente, na passagem e, por isso, é limiar, espaço/estágio intermediário entre profano e sagrado, plano irreal e realidade. Neste caminho, podemos analisar o corpo que dança, em contexto ritual, como lugar de atravessamentos dos conteúdos sagrados e profanos, espaço próprio à 57 Durkheim, 2008: 416. 86 manifestação da cosmogonia, ou melhor, à atualização do “eterno retorno” da Criação Numinosa. Isto porque o pensamento religioso se exprime a partir da transfiguração da imaginação, afinal “as entidades religiosas são entidades imaginárias”58, processos gerados pelas livres combinações do espírito, que nos induzem a compreender melhor a natureza do culto, à medida que evidenciam um importante elemento do rito: a estética. Considerando, pois, que o “objeto estético tem em primeiro lugar uma existência física”59 apreendemos, nestas celebrações da devoção em atos de diversão, a fé qual abstração adimensional a concretizar-se tridimensionalmente no corpo que dança e cultua a Vida e compreendemos a possibilidade de o corpo tornar-se lócus da hierofania; afinal “ a espiritualidade não impede nem contradiz a corporalidade e a estética” (PAVIS, 2010: 262). Dançando os indivíduos podem estabelecer o seu modo de existir, de viver e de se relacionar com o mundo, renovando-se. Têm a possibilidade de efetivar todas as interações possíveis, intensificando as relações sociais, as criações, o potencial comunicativo, retornando ao tempo sagrado (LARA, 2008: 45). A este respeito, Durkheim (2008: 455) nos informa: Assim, a religião não seria ela mesma se não deixasse algum espaço para as livres combinações do pensamento e da atividade, ao jogo, à arte, a tudo o que recreia o espírito cansado por aquilo que há de demasiado pesado no labor cotidiano: as próprias causas que a trouxeram à existência determinam esta necessidade. A arte não é apenas ornamento exterior com que o culto se revestiria para dissimular o que pode ter de muito austero e de muito rude; mas, por si mesmo, o culto tem algo de estético. O corpo inserido em um contexto ritual é o estágio intermediário que possibilita a passagem entre a porta que distingue e relaciona o mundo profano e o sagrado, concretizando “tanto a delimitação entre o ‘fora’ e o ‘dentro’, como a possibilidade de passagem de uma zona a outra”60 que através da atualização das atividades simbólicas rearranjam a trama social organizando um universo que abriga homens e deuses, festa e devoção, folia e oração numa situação alternada e indissolúvel que promove e estrutura o ritual; tal estado de indissolubilidade, que nos aponta incoerências e ambivalências, se reflete não apenas nas práticas devotas, mas também no imaginário coletivo, onde percebemos que o mundo para os devotos (em especial àqueles que se prestam a modos inconscientes de atividade ritual) é percebido: (...) como uma teia de forças em iteração, forças de diferentes tipos e intensidades que tendem ao equilíbrio. Num universo sacralizado, qualquer ação do homem ganha caráter ritual, direcionando-se para equilibrar a sua força vital com as demais energias do Cosmo. E convivem em continuum o 58 Alves, 1984: 30. Vázquez, 1999: 115. 60 Eliade, 1992: 146. 59 87 mundo dos homens, da materialidade, e o mundo invisível, dos ancestrais e divindades. Sendo, pois, a vivência do sagrado total e quotidiana, ela não exclui as emoções humanas, o prazer e a alegria: a fé com festa que tanto intriga aos cronistas (DIAS, 2001: 866). A devoção como atividade lúdica estrutura-se, então, como um misto de fé e(m) festa, em processo de completude (fundador dos rituais representativos, como ilustração e transfiguração coletiva da vida social) que nos habilita analisar não uma simples transferência de valores do real para o irreal ou o reverso, mas, sobretudo celebrar o hibridismo, a impureza, a mistura, a (trans)formação originária de combinações, diálogos e reconciliações dos contrários – coincidentia oppositurum; assim: Mesmo com suas especificidades, os opostos são necessários e interdependentes, pois o sagrado não seria o que é sem o profano, o qual não sobreviveria sem a atuação do sagrado. A reciprocidade é, portanto, necessária e fundamental (LARA, 2008: 40). A reunião destes elementos aparentemente incongruentes; a capacidade de emparelhar, há um tempo, modos de ser, à primeira vista, contraditórios; o congraçamento matiz a matiz dos símbolos e poderes de uma esfera sagrada à outra profanada auxilia-nos a descobrir o elemento lúdico que existe e, potencialmente, se estabelece em estados tão graves como a fé e nos habilita a perceber o estreito parentesco entre riso e oração através da brincadeira. “E brincar significa literalmente ‘colocar brincos’, isto é, unir-se, suspender as fronteiras que individualizam e compartimentalizam grupos, categorias e pessoas”61. Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 12 EXT – MUSSUCA – MANHÃ Cena: Enquadramento de Adelilton em entrevista. Duração no vídeo: 11’00” a 11’38” Finalidade expressiva: Indicar o valor do entusiasmo, da alegria e da brincadeira no ritual como fundamento para a manutenção e desdobramento da fé entre os devotosbrincantes. A propósito Rahner (apud COX, 1974: 152) complementa: Brincar é entregar-se a uma espécie de magia, encenar para si o totalmente outro, antecipar o futuro, fazer de mentiroso o abominável mundo dos fatos (...) o espírito se prepara a aceitar o inimaginado e inacreditável, a entrar num mundo onde valem leis diferentes, a ser aliviado de todos os pesos que o oneram, a ser livre, régio, descontraído e divino. 61 DaMatta, 1997: 62. 88 Ante esta perspectiva, apreendemos nítidas evidências a corroborarem, através de diversos ângulos, à familiaridade entre o riso e a oração; ambos estabelecem a suspensão de fronteiras, nos direcionam a um espaço/tempo sublimado e a estados de entendimento que não se circunscrevem ou limitam ao mundo dos fatos. O riso, portanto, se enraíza na oração e esta, por sua vez, se desdobra naquele; ambos são formas lúdicas. É coisa estranha que a teologia cristã tenha perdido durante tantos anos o seu senso do cômico. Dante, talvez o maior poeta cristão de todos os tempos, não foi sem razão que batizou sua obra-prima de Divina Comédia. Dom Quixote, criação da consumada imaginação de Cervantes, é, sem dúvida, uma figura cômica, no mais amplo sentido do termo. Na época em que esses homens escreveram, os escultores cinzelavam, nas catedrais, carrancas, e os pintores debuxavam quadros dum Deus criança, sentado no colo da mãe e brincando com o globo terrestre. Deus Ludens é o Deus que brinca. Faz piscadelas aos homens, sua criatura-séria-demais, abrindo-lhe a dimensão cômica de tudo isso (COX, 1974: 156). A festividade e a fantasia, portanto, estruturas limiares que congregam o sagrado e o profano na elaboração dos rituais representativos projetam na autenticidade do riso e da oração, através da ludicidade e esperança, a voz da fé. O fundamento do humor está diretamente relacionado à disposição religiosa, pois é ele que põe à mostra o quanto se reduzem as coisas terrenas e humanas, sob a medida de Deus, fomentando nos homens a necessidade de participação na luta por um mundo mais justo e fraterno de modo equilibrado e são, a partir dos dispositivos da sacralidade do corpo profanado ou dos agenciamentos profanos do corpo em ação de graça. Deste modo, inferimos que o corpo que dança nos rituais promove a partir da prática gestual, programada pelos mecanismos da fantasia e da festividade, o estabelecimento dos traços sincréticos e relações hibridizadas entre sagrado e profano; o homem funda ontologicamente as estranhezas (ou seja, o lugar em que as oposições, as contrariedades, as dualidades, os opostos se transformam uns nos outros, fundindo-se e confundindo-se) em seu ser, instituindo aí o binômio fé e(m) festa e estruturando o (des)aparecimento dos contornos da Vida no entre. Esta religiosidade onde a alegria é o principal ingrediente da fé, numa vivência sagrada impregnada de lúdico promove soluções plásticas e tramas fluidas às relações do homem no mundo, transformando o ato devocional não em estrutura oposta ou separada da vida social, mas, sobretudo como essência, âmago, cerne de nossa existência em sociedade. 89 3.2 - PORTA ESTREITA: ENTRE RITUAL E DRAMA Os conteúdos limiares estruturantes da relação entre sagrado e profano como a festividade, a fantasia, o riso e a oração que em conjugação instituem o binômio devoção e diversão, permitem-nos, neste momento, analisar o perfil interativo que se estabelece entre ritual e drama na realização da Dança de São Gonçalo de Amarante, dispondo-nos, assim, a discutir os estados intermediários que revelam uma solução de continuidade entre a ação cultual e o ato dramático, ou seja, a passagem de um estado de espírito a outro que possuem ambos como denominador comum a construção de metáforas e a representação do sensível. A metáfora, portanto, é o conceito-chave em nossos estudos sobre ritual e drama; e à medida que orienta nossa atenção para além dos cistos, nódulos ou pontos de interseção que representam linhas de repouso cristalizadas, definidoras e estáticas e amplia nossa compreensão sobre o desconhecido a partir daquilo que é conhecido possibilita fecundidade e adequação às nossas idéias; afinal: A metáfora é, em sua definição mais simples, uma maneira de proceder do conhecido para o desconhecido (...) É uma forma de cognição na qual as qualidades que definem uma coisa são transferidas em um insight instantâneo, quase inconsciente, para alguma outra coisa que nos é, graças a sua complexidade ou distância, desconhecida (Nisbet apud TURNER, 2008: 21). Assim, a metáfora, além de conduzir nossa atenção à dinâmica possível ao processo de identificação dos fenômenos e dilatar nosso entendimento acerca do incomum, possibilita que nos aproximemos de um dado território sem que necessariamente seu repertório sistêmico de idéias aí se aplique de modo imediato e literal. “Esta visão enfatiza a dinâmica inerente à metáfora, em vez de meramente comparar os dois pensamentos, ou considerar que um ‘substitui’ o outro. Os dois pensamentos agem em conjunto, eles ‘engendram’ o pensamento em sua coatividade” (TURNER, 2008: 25). Neste sentido, buscamos analisar o aspecto global das manifestações expressivas (ritual e drama) atribuindo através dos dispositivos da livre e metamórfica, aberta e dinâmica, combinação do pensamento que as constituem o exame da estrutura processual da ação social que além de apontar a construção de metáforas como força 90 motriz para o entendimento das práticas culturais espetaculares62, abarca, em si, a complexidade plástica do movimento, sua expressão e caráter lúdico e jocoso e sua dimensão estética. Neste ínterim, apreendemos o ritual como um “comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas à rotina tecnológica tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos”63, ou seja, como ação que se origina nas formas e concepções religiosas e funda um comportamento consagrado coletivamente; daí, a declaração de Durkheim (2008: 460), ao concluir, que “os ritos são, antes de tudo, os meios pelos quais o grupo social se reafirma periodicamente”, porquanto em o ato cultual o sentimento constituído das impressões de segurança e de respeito, solidariedade e integração despertados nas consciências individuais promove e reflete, através dos dispositivos da fé, a força coletiva. Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 04 INT – SALA DE COSTURAS – MANHÃ Cena: Enquadramento de mulheres do povoado preparando a indumentária ritual a ser utilizada pelos devotos-brincantes no ritual. Duração no vídeo: 01’31” a 02’02” Finalidade expressiva: Exibir a dimensão do ritual, como expressão da força coletiva, na estruturação de sentimentos de solidariedade e integração repercutidas mesmo entre as entidades inviabilizadas de tomar parte ativa da dança, mas nem por isso impossibilitadas de participarem e integrarem o ritual. O rito é, portanto, um sistema pelo qual a crença além de se (re)velar, se (trans)forma, e se (di)funde no campo da ação social cuja eficácia, por isso, está estritamente relacionada à sua adequação e eficiência em comunicar: evidenciando a idéia da partilha e(m) comunhão e reunindo indivíduos ou grupos a determinadas regras de conduta; por isso: A fé comum reanima-se naturalmente no seio da coletividade reconstituída; ela renasce porque se vê nas mesmas condições em que nascera primitivamente. Uma vez restaurada, ela triunfa facilmente de todas as dúvidas privadas que puderam surgir nos espíritos. A imagem das coisas 62 Pavis (2008: 163) define a prática cultural espetacular como uma espécie de “cultura em ação” que não se encerra às artes da cena, mas se expande de modo elíptico na direção das cerimônias, rituais e comportamentos humanos. 63 Turner, 2005: 49. 91 sagradas retoma força suficiente para resistir às causas internas ou externas que tendiam a enfraquecê-la (DURKHEIM, 2008: 415). Depreendemos, pois, que os “rituais parecem partilhar alguns traços: uma ordenação que os estrutura, um sentido de realização coletiva com propósito definido, e também de que eles são diferentes dos do cotidiano”64 e esta partilha de crenças que projetam ideais coletivos sobre o plano cultural dá-se por intermédio de redes simbólicas; afinal, “os significados só podem ser ‘armazenados’ através de símbolos” (GEERTZ, 1989: 93). O símbolo é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades específicas do comportamento ritual; é a unidade última de estrutura específica em um contexto ritual (...) um “símbolo” é uma coisa encarada pelo consenso geral como tipificando ou representando ou lembrando algo através da posse de qualidades análogas ou por meio de associações em fatos ou pensamentos (TURNER, 2005: 49). À medida que apreendemos os rituais não “como momentos essencialmente diferentes (em forma, qualidade e matéria-prima) daqueles que formam e informam a chamada rotina da vida diária” (DaMatta, 1997: 76), mas como um aglomerado de aspectos das relações sociais, compreendemos também, por conseqüência, que “os símbolos estão essencialmente envolvidos com o processo social”65 e, por isso, em constante processo de perlaboração66. O símbolo ritual, portanto, é aqui percebido como elemento dinâmico que se diferencia do símbolo de referência67 por não ser exclusivamente cognitivo e convencional, mas por revelar através de suas propriedades de condensação (coisas e ações representadas por uma única formação simbólica/ economia de referência), unificação (aglomerado de significados díspares na estruturação de um símbolo ritual dominante) e polarização de significados (estruturação de pólos de significados distintos – (1) pólo sensório, responsável pela produção de desejos e sentimentos; (2) pólo ideológico, responsável pela produção de conteúdos morais e coletivos) a saturação e conjugação de qualidades emocionais e convencionais e, deste modo, mobilizar a liberação de tensões, conscientemente ou não, no campo da ação humana. A propósito, Geertz (1989: 93-4) complementa: Tais símbolos religiosos, dramatizados em rituais e relatados em mitos, parecem resumir, de alguma maneira, pelo menos para aqueles que vibram 64 Peirano, 2000: 10. Turner, 2005: 49. 66 Adotamos o termo perlaboração para indicar um processo contínuo e freqüente de re-significação a partir de estados de anamnese, anagogia e anamorfose que nos habilitam re-escrever o símbolo. 67 Segundo Langer (1962: 62) o símbolo referencial opera sobre “a função de referência ou direção de interêsse do usuário a algo à-parte do símbolo, e a natureza convencional da conexão entre o símbolo e o objeto por ele referido, conexão em virtude da qual a referência ocorre”. 65 92 com eles, tudo que se conheceu sobre a forma como é o mundo, a qualidade de vida emocional que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se quem está nele. Dessa forma, os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia com uma estética e uma moralidade: seu poder peculiar provém de sua suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar um sentido normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real68. Assim, o ritual estrutura-se como uma tentativa de “conservar” a provisão de significados gerais em torno dos quais cada indivíduo e sociedade interpreta sua experiência e organiza sua conduta a partir de seus aspectos cognitivos, existenciais e seus arcabouços valorativos – seu estilo moral e estético. “Pois é graças aos símbolos que o homem sai de sua situação particular e se ‘abre’ para o geral e o universal. Os símbolos despertam a experiência individual e transmudam-na em ato espiritual, em compreensão metafísica do Mundo” (ELIADE, 1992: 170). Tais aspectos e arcabouços são condições fundamentais, portanto, à compreensão dos significados que estruturam o sistema ritual e à análise do relacionamento deste mosaico sensível ao processo social, onde a prática vincula-se a crença e esta, por sua vez, aos símbolos rituais que ofertam aos homens: (...) uma garantia cósmica não apenas para sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que, compreendendo-o, dêem precisão a seu sentimento, uma definição às suas emoções que lhes permita suportá-lo, soturna ou alegremente, implacável ou cavalheirescamente (GEERTZ, 1989: 77). O ritual, parafraseando Geertz, é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas em um processo cosmológico. Por cosmologia: I mean the body of conceptions that enumerate and classify the phenomena that compose the universe as an ordered whole and the norms and processes that govern it. From my point of view, a society's principal cosmological notions are all those orienting principles and conceptions that are held to be sacrosanct, are constantly used as yardsticks, and are considered worthy of pepetuation relatively unchanged (Tambiah apud PEIRANO, 2000: 11)69. E, acrescenta: 68 Aqui, o autor utiliza o termo real para designar e indicar o continente das situações convencionais e formais que caracterizam o cotidiano. 69 “Refiro-me ao corpo de concepções que enumeram e classificam o fenômeno que compõe o universo como um todo ordenado e as normas e os processos que o regem. Do meu ponto de vista, as noções cosmológicas de uma sociedade são todos aqueles princípios orientadores e aquelas concepções que são consideradas sacrossantas, são constantemente utilizadas como pontos de referência e são consideradas dignas de uma perpetuação que se faça, relativamente sem alterações” (Tradução minha). 93 As such, depending on the conceptions of the society in question, its legal codes, its political conventions, and its social class relations may be as integral to its cosmology as its "religious" beliefs concerning gods and supernaturals. In other words, in a discussion of enactements which are quintessentially rituals in a "focal" sense, the traditional distinction between religious and secular is of little relevance… (Tambiah apud PEIRANO, 2000: 11)70. Daí, a habilidade do ritual, como processo cosmológico, em atravessar diversas camadas sociais e validar sentidos complexos em sua tessitura, acerca das relações hibridizadas entre sagrado e profano, devoção e diversão, fé e festa; o símbolo ritual, entretanto, para exercer tais agenciamentos, atravessamentos e entrecruzamentos, aplica-se como elemento dinâmico a condensar um fato relativamente desconhecido que, todavia, é postulado como existente; o símbolo ritual é, pois, metáfora da vida social, aquilo que liga o ignoto ao conhecido. Pois as metáforas compartilham uma das propriedades que atribuí aos símbolos. Não estou falando da multivocalidade, da sua capacidade de ressoar entre vários significados de uma só vez, como um acorde na música, embora as metáforas-radicais sejam multivocais. Estou falando de um certo tipo de polarização do sentido no qual o sujeito subsidiário é, na realidade, um – universo – profundo de imagens proféticas semivislumbradas, e o sujeito principal – o visível, plenamente conhecido (ou que se supõe plenamente conhecido) –, no extremo oposto, adquire novos e surpreendentes contornos e valências do seu companheiro obscuro (TURNER, 2008: 45). Um símbolo ritual, como uma metáfora, está vivo prenhe de significados cujos valores axiomáticos/ propriedades rizomatosas situam o ritual em campos significantes que se desdobram de modo dinâmico qual a dimensão cultural; os símbolos instigam a ação social e articulam-se como forças que influenciam e determinam pessoas ou grupos para a ação; o símbolo é uma unidade de ação. A este respeito, Turner (2005: 52) nos esclarece: Os símbolos, como eu disse, produzem ação, e os símbolos dominantes tendem a se tornar focos de interação. Os grupos mobilizam-se ao seu redor, cultuam-nos, desempenham outras atividades simbólicas perto deles, e acrescentam-lhes outros objetos simbólicos, frequentemente para formar santuários compostos. E, continua: (...) as propriedades cruciais de um símbolo ritual envolvem esses desdobramentos dinâmicos. Os símbolos instigam a ação social. Num contexto de campo71, poderíamos inclusive descrevê-los como “forças”, na medida em que constituem influências determináveis que inclinam pessoas 70 “Como tal, dependendo das concepções da sociedade em questão: seus códigos legais, suas convenções políticas e suas relações de classe social podem tanto ser parte integrante de sua cosmologia quanto suas crenças ‘religiosas’ relativas aos deuses e aos sobrenaturais. Em outras palavras, em uma discussão sobre enactments que são essencialmente rituais, em um sentido focal, a tradicional distinção entre religioso e secular é de pouca relevância...” (Tradução minha). 71 “No contexto atual, ‘campos’ são os domínios culturais abstratos nos quais os paradigmas são formulados, estabelecidos e entram em conflito” (TURNER, 2008: 15). 94 ou grupos para a ação (...) é num contexto de campo que as propriedades por nós descritas, ou seja, polarização de significados, transferência de qualidade afetiva, discrepância entre significados e condensação de significados manifestam-se de forma mais eloqüente (2005: 68). As propriedades do símbolo ritual – condensação, unificação e polarização de significados – auxiliam-nos a apreendê-los como constituídos tanto por uma função oréctica72quanto por uma função cognitiva, ante a ausência daquilo que presumimos, mas ainda não concebemos e que por escapar ao conceito pleno nasce do “fracasso”; por isso: Símbolos assemelham-se a horizontes. Horizontes: onde se encontram eles? Quanto mais deles nos aproximamos mais fogem de nós. E, no entanto, cercam-nos atrás, pelos lados, à frente. São o referencial do nosso caminhar. Há sempre os horizontes da noite e os horizontes da madrugada... As esperanças do ato pelo qual os homens criaram a cultura, presentes no seu próprio fracasso, são horizontes que nos indicam direções. E esta é a razão por que não podemos entender uma cultura quando nos detemos na contemplação dos seus triunfos técnico/ práticos. Porque é justamente no ponto onde ele fracassou que brota o símbolo, testemunha das coisas ausentes, saudade de coisas que não nasceram73. Assim, apreendemos que o símbolo ritual ao discriminar coisas, espaços, tempos, pessoas e entidades e relacioná-los a sinais visíveis de uma trama invisível de significações promove, não apenas através de propriedades referenciais, mas também de propriedades de condensação, unificação e polarização, a validade da ação ritual no contexto das representações religiosas, cujo conteúdo sagrado: (...) se instaura graças ao poder do invisível. E é ao invisível que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos céus, o desespero do inferno, os fluidos e influências que curam, o paraíso, as bemaventuranças eternas e o próprio Deus. Quem, jamais, viu qualquer uma destas entidades?74 O símbolo ritual articula-se como estrutura umbralina das relações entre sagrado e profano porquanto (trans)forma e (con)funde os elementos profanos em representações sagradas à medida que os envolve e reconhece pelos nomes e poderes do invisível promovendo aí relações de metáfora entre aquilo que se apresenta como revelado e descoberto e isto que se identifica como obscuro e velado. A força de um ritual “ao apoiar os valores sociais repousa, pois, na capacidade dos seus símbolos de formularem o mundo no qual esses valores, bem como as forças que se opõem à sua compreensão, são ingredientes fundamentais”75. 72 Oréctico é um neologismo derivado de orexis, termo geral para designar todas as funções, fenômenos e formas afetivas e sensoriais do organismo. 73 Alves, 1984: 22. 74 Ibidem: 25-6. 75 Geertz, 1989: 96. 95 Não se deve esquecer que os símbolos rituais não são meramente signos representando coisas desconhecidas; eles são considerados como possuindo eficácia ritual, como carregados de poder de fontes desconhecidas, e como capazes de agir sobre pessoas e grupos que entram em contato com eles de modo a mudá-los para melhor ou em uma direção desejada. Os símbolos, em resumo, têm tanto uma função oréctica (orectic) quanto uma função cognitiva. Eles produzem emoções e mobilizam desejos (TURNER, 2005: 90). Neste sentido, ao conjugar metáforas e validar estruturas do invisível à manifestação da própria crença, o símbolo ritual situa-se como estrutura da fantasia na rede cultual, cujo aspecto funciona como “um húmus do qual faz brotar a habilidade do homem de inventar e inovar”76, ressignificar e perlaborar, enfim, ritualizar. A exemplo do ritual, a fantasia edifica-se em símbolos, na transmutação de formas familiares e na elaboração de impulsos e idéias que ultrapassam os confins da limitação consuetudinária; aí, sua habilidade em possibilitar, tanto quanto o ritual, ao homem transcender o mundo empírico, a partir dos elementos deste, e apreciar a sublimidade e o mistério da existência. O ritual é, pois, ação que proporciona e corporifica a fantasia na sociedade e na história. O ritual é a “fantasia corporalizada”. E é importante o termo “corpo”. Indica ele que no ritual a fantasia não é só mental. São igualmente importantes o gesto e o movimento. O termo “corpo” significa ainda uma locação histórica e social. Quem nos situa num lugar é nosso corpo. Recebemo-lo de nossos pais e por meio dele nós tocamos, batemos, acariciamos e transmitimos a vida ao futuro. De modo semelhante, é pelo ritual que a fantasia se inspira na história, atinge outras pessoas e abarca o futuro. Ela não está simplesmente vibrando no éter. Na fantasia, nosso corpo físico é abandonado e um corpo imaginário, muitas vezes marcadamente diferente do corpo físico, assume o comando (...) A fantasia só “conecta” e exerce sua função quando está corporalizada (COX, 1974: 78). A corporeização da fantasia, o ritual, compõe-se de elementos (trans) e (con)substancializados que têm a propriedade de devir espaço-corpo produzindo pontos de contato, cruzamentos, interfaces porosas e diáfanas entre corpo e(m) espaço como representação do ser em ação. O corpo, desta maneira, inserido em uma perspectiva ritual “torna-se também ele espaço. Os movimentos do espaço do corpo não se detêm na fronteira do corpo próprio, mas implicam-no por inteiro: se o espaço do corpo se dilatar, por exemplo, a dilatação atingirá o corpo e o seu interior”77. Por isso, o corpo da fantasia – a estrutura ritual – é aqui apreendido: (...) não como um “fenômeno”, um percebido concreto, visível, evoluindo no espaço cartesiano objetivo, mas como um corpo metafenômeno, visível e virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformador de espaço e de tempo, emissor de signos e transsemiótico, comportando um interior ao 76 77 Cox, 1974: 63. Gil, 2009: 53. 96 mesmo tempo orgânico e pronto a dissolver-se ao subir à superfície. Um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo por intermédio da linguagem e do contato sensível, e no recolhimento da sua singularidade, através do silêncio e da não-inscrição. Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, devir mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal78. Este corpo paradoxal – que fomenta estados contrastantes no indivíduo em situação ritual – é cena a engendrar uma superfície de imanência que impregna a consciência do corpo ao espaço da consciência e o processo de reconhecimento das formas dinâmicas79/expressivas ao corpo e aos seus movimentos habilitando o ato cultual a preparar “a construção de um plano de imanência em que as ações do corpo já não se distinguem dos movimentos do pensamento”80; o ritual é, portanto, ação simbólica a se estruturar como drama social. Entretanto, a noção de ação simbólica como empreendimento ou evento social, permite-nos expandir a análise sobre o drama para além daquilo que convencionamos chamar de representação – isto é, uma cena realizada com o objetivo de “re-presentar um presente que estaria noutro lugar e antes dela, cuja plenitude seria mais velha do que ela”81 – situando-o e identificando-o com a trama processual da ação social. O ritual, como drama social, portanto, é espaço de “mudança” onde determinados conflitos evidenciam-se através de inúmeras operações simbólicas; lugar entre aqueles períodos de estabilidade onde as situações sociais se encontram reguladas por um conjunto de normas bem definidas; ambiente que, por sua própria natureza, torna-se propício à fantasia à medida que, ao revés de apresentar significados explícitos ou conteúdos claros e inequívocos, provoca sensações de dúvidas e incertezas, promove paradoxos, contradições e estados intermediários e estimula o preenchimento de suas lacunas de sentido. 78 Ibidem: 56. A expressão formas dinâmicas é definida por Langer (1962: 83-4) como aquelas formas produzidas pelo movimento, quão os fios de chuva a aspergirem formas sinuosas nas vidraças, os mosquitos a traçarem círculos no ar, ou bandos de pássaros a revolutearem no espaço. 80 Gil, 2009: 36. 81 Derrida, 1971: 157. 79 97 Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 05 INT – VARIADOS – MANHÃ Cena: Enquadramento de Nadir e Sales, ambos em entrevista. Duração no vídeo: 13’15” a 14’43” Finalidade expressiva: Apresentar incongruências e conteúdos desencontrados entre as informações oferecidas pelos atores sociais, o que favorece a possibilidade de preenchimento das lacunas de sentido da Dança de São Gonçalo de Amarante ante o cenário estruturado por dúvidas e incertezas sobre o fim do ritual. A relação entre drama e conflito pontualmente apreendida nas operações efetivadas pelo símbolo ritual demarca a vinculação entre a vida ordinária e os instantes de (con)substancialização dos elementos cotidianos, denominados por Turner como estrutura e antiestrutura ou communitas, respectivamente. Segundo o autor (2008: 41-2), estrutura é o que mantém as pessoas separadas, define suas diferenças e limita suas ações, já a communitas são aquelas condições que escapam ou desenham-se fora das ou nas periferias da vida cotidiana. Neste sentido, o clima do ritual é dado não por meio de transformações essenciais do mundo, mas por meio de manipulações dos elementos e relações deste mundo que permitem, através de combinações inúmeras, modos de salientar aspectos do mundo cotidiano no ato ritual. Nesta dialética social, a estrutura institui a antiestrutura e em um segundo momento a antiestrutura revitaliza a estrutura social; pois: (...) a “antiestrutura” não configura a ausência de estrutura, mas um modelo alternativo e espontâneo de organização social que emerge momentaneamente nos interstícios da sociedade. A “antiestrutura”, pois, dialoga com a “estrutura social” contribuindo inclusive, para a revitalização desta última (SILVA, 2005: 39). A antiestrutura ou communitas configura um espaço liminar, elíptico e incoerente que acompanha a elaboração e execução dos dramas permitindo, aí, a interação entre sagrado e profano, promovendo encontros e interações entre diversos pontos e estados, e fomentando a noção de margem ao ato ritual. A condição liminar furta-se à rede de classificações que, de modo geral, determina a localização de valores e posições no plano cultural e escapa à cristalização das denominações utilitárias e comuns ao universo cotidiano, por isso, as entidades liminares não possuem status; afinal: (...) não são nem uma coisa nem outra; ou podem ser as duas; ou podem não estar nem lá, nem cá; ou podem, até, não estar em parte alguma (em termos 98 de qualquer topografia cultural reconhecida), e estão, em última análise, “aquém e além” de todos os pontos fixos, no espaço-tempo da classificação estrutural (TURNER, 2005: 142). Tal aspecto de antagonismos em equilíbrio auxilia-nos a compreender e exemplificar a condição liminar a partir da natureza devocional que caracteriza a prática ritual dedicada, como pagamento de promessa, aos mortos a partir da Dança de São Gonçalo de Amarante no povoado Mussuca. Por isso, conquanto encontremos à promoção de nossos estudos determinadas dificuldades – fomentadas pelo fato de o sentido religioso, que engendra o ato de se dançar para os mortos, encontrar-se transformado pelo alto índice de apresentações informais estruturadas em espetáculos, encenações e festas sem perfil, explicitamente, devoto onde o rito “de uma prática social vinculada a um contexto religioso, o qual se constituía em sua única motivação de realização; passa a ser objeto de apreciação em apresentações e outros tipos de eventos distantes de sua razão inicial: o pagamento de promessa”82 – persistimos na árdua tarefa de investigar os arcabouços cosmológicos fundadores do pensamento religioso da Mussuca, movimentando esforços na compreensão do ritual e analisando, desse modo, seu alcance social. Além do mais, apreendemos que: Essa ambigüidade demonstra que a função real de um rito consiste, não nos efeitos particulares e definidos que parece visar e pelos quais normalmente são caracterizados, mas em uma ação geral que, mesmo permanecendo, sempre e por toda a parte, semelhante a si mesma, é, no entanto, suscetível de assumir formas diferentes de acordo com as circunstâncias (DURKHEIM, 2008: 459). Neste sentido, apreendemos que pouco importa as espécies sensíveis sob as quais os indivíduos se reúnem e organizam o culto ritual, mas sim que comunguem em ação e pensamento no processo cerimonial porquanto um mesmo ritual pode nascer de diversas causas, produzir múltiplos efeitos e adquirir inúmeras estruturas. Deste modo, mesmo quando um rito serve apenas para distrair não podemos considerá-lo como nãorito; afinal: (...) o ritual não pode ser considerado falso ou errado em um sentido causal, mas, sim, impróprio, inválido ou imperfeito. Da mesma maneira, a semântica do ritual não pode ser julgada em termos da dicotomia falso/verdadeiro, mas pelos objetivos de “persuasão”, “conceptualização”, “expansão de significado”, assim como os critérios de adequação devem ser relacionados à “validade”, “pertinência”, “legitimidade” e “felicidade” do rito realizado (Tambiah apud PEIRANO, 2000: 12). 82 Bomfim, 2006: 110. 99 Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 13 EXT – LARANJEIRAS – NOITE Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo Jovem dançando pelas ruas da cidade. Duração no vídeo: 12’20” a 13’13” Finalidade expressiva: Exibir a apresentação do grupo de jovens fora do contexto de pagamento de promessa e expor a impossibilidade de considerar em tais casos a manifestação como um ‘não-rito”. Inferimos, pois, que a experiência ritual expressa não somente a representação da rede de códigos pertencentes ao vocabulário da tradicional Dança de São Gonçalo de Amarante, mas também um contínuo diálogo entre o estado presente do rito, seu conjunto de crenças e a ordem social, que nos auxilia a perceber que ao concebermos o ritual como: (...) a colocação em foco, em close up, de um elemento e de uma relação (...) é mais ou menos inútil classificar os ritos quando não se entendem bem as relações básicas de que são construídos. E, de fato, entender as relações básicas do mundo social é, automática e simultaneamente, entender o mundo ritual (DAMATTA, 1997: 83). Daí, depreendemos que o rito de morte atesta e soleniza o reconhecimento coletivo de que os mortos continuam a estabelecer relações com os vivos e legitima a possibilidade de uns auxiliarem aos outros através de um conjunto de orações, missas, procissões, cantos e danças, ou seja, cerimônias que validem simbolicamente a ordem social. A ação ritual, pois, acontece “em um universo político, sociocultural, econômico e simbólico. Ela concebe, sustenta e se alenta de todos esses elementos. Ela é memória, é tradição” (ROSA, 2002: 22). Esta memória articulada como dramatização dinâmica da experiência coletiva apresenta quatro fases principais e acessíveis à observação, a saber: ruptura ou separação, crise ou intensificação da crise, ação corretiva ou retificação e reintegração. 1. A ruptura de relações sociais formais, orientadas pelas normas estabelecidas, ou seja, o descumprimento deliberado de alguma regra ou lei crucial que regule as relações em sociedade é o que observamos nesta primeira etapa; no pagamento de promessa aos mortos esta ruptura dá-se pela intromissão do plano invisível no mundo material. Ou seja, apesar de a doutrina católica estabelecer lugares definitivos aos finados, qual o 100 céu, o inferno, o limbo e um único lugar provisório: o purgatório – que caracteriza-se como uma sociedade intermediária – percebemos que os mortos apreendidos aqui tal qual “entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos”83 que os possibilita a ocupação de um lugar mitológico na estrutura ritual, tendo em vista que (são raros os devotos que acreditam de modo ortodoxo no purgatório como pena aos mortos devedores) quase “todos crêem que eles permanecem no mundo dos vivos ou em algum lugar de onde podem vir de volta aos vivos para falar com eles” (BRANDÃO, 2001: 196). 2. Na segunda etapa apreendemos o estabelecimento da crise – momento em que indivíduos e entidades se dividem e assumem posições contrárias: conflitos, perturbações e atos de violência tornam-se comuns; na dança aos mortos a crise (e seu processo de escalada) inicia-se quando o morto devente impossibilitado de pagar promessa por haver sido separado das condições sociais de atualização da dívida – pode procurar convencer os vivos da indigência do cumprimento de seu voto para que sua entrada no Reino dos Céus, através da elaboração da dança, se faça sem empecilhos; atestam este fato os relatos coletados em campo onde percebemos que a alma – segundo a crença coletiva – após o tempo irremediável de sua purgação, se dirige em sonho84 a um de seus amigos, parentes ou familiares e implora (com insistência) para que seja realizada a promessa, por ela não cumprida (quando encarnada) a São Gonçalo de Amarante. Este grau de insistência pode gerar perturbações nervosas e incômodos que se perpetuam até a elaboração do ritual e que, por isso, caracteriza a escalada da crise; a culpa e o arrependimento do falecido, entretanto, em não ter cumprido o voto ao santo é o que determina a fundação da crise, tendo em vista que os devotos atribuem 83 Turner apud Nascimento, 1999: 44. A tradição do sonho como elemento de contato entre homem e invisível, tem origem nas culturas hebréias e pagãs da Antiguidade, como apreendemos em Gênesis 37:5, na História de José e seus irmãos. O Cristianismo herdou esta tradição, no seus primeiros tempos, no entanto, no século IV a Igreja busca monopolizar a sua interpretação, intercedendo assim na relação onírica entre os indivíduos e o Ignoto. 84 101 ao santo um perfil paradoxal, atribuindo-lhe caracteres prestimosos e vingativos, pois de maneira geral: acredita-se que não existe possibilidade de que um promesseiro “seja salvo”, “descanse em paz”, ou “vá para o Reino de Glória”, possuindo sem haver pago uma dívida de promessa com São Gonçalo. Dívida assumidamente contraída através de um voto feito e reconhecido como “válido”, isto é, atendido pelo santo. Uma promessa sempre deve ser cumprida, por pequena que seja (...) Mais do que outros santos de culto católico (...) São Gonçalo (...) é considerado (...) um santo atento e vingativo. Não perdoa o devente e possui poderes para conseguir junto à própria divindade que o promesseiro “não entre nos céus” mesmo que seus outros pecados sejam leves o bastante para livrá-lo definitivamente da “maldição do inferno”, e até de um estágio prolongado no purgatório (BRANDÃO, 2001: 192). 3. A retificação do campo de relações é o estágio onde todos os gêneros de dramas sociais se desdobram através de dispositivos compensatórios e “mecanismos” responsáveis pela integridade e continuidade das ações sociais. A ação corretiva na promessa aos mortos dá-se quando o mensageiro do solicitante falecido busca o grupo de dançadores de São Gonçalo e “promesseia” (isto é, realiza um pedido de pagamento de promessa), responsabilizando-se, então, pela refeição ritual (o almoço) e pela preparação do espaço onde será saldada a dívida. Ligando-se ao sagrado através de relações pessoais e contratuais regidas pelo princípio de “toma lá, dá cá”, o devoto encontra na promessa a contraparte dos benefícios que espera dos santos. O cumprimento desta é, por conseguinte, condição indispensável à manutenção da relação estabelecida entre santo e devoto. A morte do promesseiro antes de cumprir o voto causa uma quebra nesse equilíbrio, com repercussões negativas para o morto e seus parentes vivos, que deverão providenciar o pagamento da promessa do defunto a fim de estabelecer o equilíbrio rompido (DANTAS, 1976: 18). 4. Na fase da reintegração que caracteriza-se pelo restabelecimento da ordem, há uma reconciliação dos sujeitos e entidades envolvidas no conflito e uma articulação do drama à unidade social, que habilita o homem a apreender e relembrar a validade da promessa na reunião dos laços comunitários com o Divino, através de um conjunto sígnico estruturado em relações regidas pelo princípio da troca, onde o devoto encontra no voto os benefícios esperados. A promessa, pois, “enquanto expressão da relação homem-divindade, encontra na dança de São Gonçalo uma alternativa de associar o lúdico ao sacral, fazendo da dança um rito destinado a manter a reciprocidade santo e devoto”85; estas celebrações, portanto, “postulam uma reciprocidade e fazem parte 85 Dantas, 1976:18. 102 de um sistema de relações em que tudo repercute tudo: os homens gozam da proteção propiciada pelos santos (...) em troca daquilo que lhes oferecem” (WACHTEL, 1996: 91). Analisando estas etapas do rito percebemos que os sonhos são agentes indispensáveis à promoção da Dança para os Mortos, pois parecem desempenhar função não prescindível no intercâmbio entre vivos e não vivos; a partir deste evento “(quando, após a morte, os espíritos aparecem a amigos ou familiares...), verifica-se uma certa amplitude e uma certa ‘simbolização’, como a assumida na interpretação dos sonhos ao longo de todas as épocas e civilizações”86 que nos permite – ao apreendermos o trabalho dos sonhos como indício de que “o inconsciente é dinâmico e não constituído por formações arquetípicas cristalizadas”87 e ao percebermos os mitos não “como estruturados pela tradição de uma forma marcadamente ‘estável’, onde a estrutura das narrativas é pensada de modo fechado, com pouca ou nenhuma atenção para o processo de mudança social”88 – estabelecer uma contigüidade orgânica, uma relação direta entre as esferas do sonho, do mito, e do ritual, configurando uma tríade sobre modos de fazer afirmações e articulações sobre as relações da cultura: uma produzindo imagens, outra palavras, a terceira ações. No entanto, embora esta ação ritual seja desenvolvida no âmago de um conflito e, justamente, por isso se estruture como drama social, sua natureza não exclui a razão da festividade; pelo contrário, a retificação do campo de relações sociais, através de mecanismos responsáveis pela ação corretiva da crise, reclama o estado de fé e(m) festa, inaugurando no ato cultual o encontro entre devoção e diversão que mobiliza os agentes sociais a revigorarem o prazer de viver sob a proteção e o auxílio do Incriado articulando-os a fonte que movimenta a força coletiva: o conjunto de crenças, histórias e saberes comuns. Mas, o que tem a festividade a ver com tudo isso? A festividade é o meio de refrigerar a história sem fugir dela. A festividade como “excesso legitimado”, como alegria e como justaposição, representa um papel indispensável na restauração do senso humano para a paisagem mais ampla em que se processa a história. Dá-lhe uma perspectiva da história, sem removê-lo do terror nem da responsabilidade que carrega em sua qualidade de fazedor da história. Como? (COX, 1974: 50). Ao reconhecermos que as festas celebram alguma coisa, um acontecimento, um fenômeno ou evento histórico localizado no passado ou no futuro e identificarmos a 86 Malinowiski, 1984: 176. Barbosa, 2001: 117. 88 Ibidem: 118. 87 103 estrutura festiva como composição que agrega tanto elementos que lhe são inerentes quanto aspectos que lhe escapam, apreendemos a festividade quão um corpo composto que não se faz como um enredo insulado ou como mera afirmação da história, mas como fenômeno que articula agentes cônscios no processo de reajustamento entre crenças, histórias e saberes ao panorâma da Eternidade; por isso: Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico. Em outras palavras, “saem” de seu tempo histórico – quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais – e reúnem-se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no Tempo mítico e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que “não decorre” – pois não participa da duração temporal profana e é constituído por um eterno presente indefinidamente recuperável89. Aí, depreendemos que a festividade não indica superficialidade, seu estado fundado por um período representativo de tempo reservado à expressão plena dos sentidos e sentimentos, admite o conflito e o drama; afinal, “a verdadeira celebração não foge diante da realidade da injustiça e do mal, mas se realiza de maneira mais autêntica, onde se reconhecem e superam essas realidades negativas e não, onde são evitadas”90, inferimos que a festividade não se confunde com frivolidade porquanto àquela faz-se indispensável um espaço de originalidade e não de absurdidade que se assemelha à confiança lúdica e à frivolidade cínica – respectivamente, e por fim, observando a festa como o lugar em que os homens tornam-se contemporâneos dos deuses e do acontecimento mítico primordial compreendemos que seu ambiente é dos mais adequados à solução de crises, conflitos e perturbações sociais. No tempo consuetudinário, há sempre o risco de esquecermos o que é fundamental: que a existência não é dada por aquilo que chamamos de Natureza, mas uma criação do Ignoto; nas festas, ao contrário, reencontramos plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimentamos a santidade da existência humana como criação divina e não nos furtamos em observar as representações do sensível a nos apontar que o matiz de nossa embrionária sensibilidade religiosa é a fé e sua manifestação na gestualidade lúdica e no riso, projetando-nos em oração e alegria à esperança. Desta maneira, percebemos que a fé encontra no riso a possibilidade de comunicar e estender seus fundamentos e a estrutura da força coletiva, induzindo o 89 90 Eliade, 1992: 75. Cox, 1974: 29. 104 homem a mover-se e, sobretudo, comover-se à compreensão dos fenômenos do mundo comum; assim, “o riso tem justamente a função de reprimir as tendências separatistas. Seu papel é corrigir a rigidez, transformando-a em flexibilidade, readaptar cada um a todos, enfim aparar arestas” (BERGSON, 2004: 132). Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 15 INT – CENTRO DE CONVENÇÕES – MANHÃ Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo Mirim louvando ao santo. Duração no vídeo: 15’01” a 16’07” Finalidade expressiva: Apresentar o processo de iniciação das crianças no ritual como fundamento da estruturação da força coletiva, onde o riso ao revés de reprimido é utilizado para favorecer o sentido comum e a fé no porvir. A festa como arcabouço da fé, ou a fé como substrato à festa representa e descobre o estreito parentesco entre atividade lúdica e religião, estabelecendo encontros entre o ritual e o jogo, fomentando o enlace entre culto religioso e jogo cênico e promovendo associações e similaridades entre os aspectos sociais do complexo “jogofesta-ritual”. A representação sagrada, neste circuito triádico, estimula-nos a apreender o perfil interativo que o coordena como conjunto de atividades livres e voluntárias, conscientemente tomadas como “não sérias” e exteriores à vida habitual (ou seja, processos de evasão e transformação da vida cotidiana), mas ao mesmo tempo capazes de absorver os homens de maneira intensa e total dentro de limites espaciais e temporais próprios – a nível físico ou material – orientando-os, por um conjunto de ordens e regras que dispõem e motivam os indivíduos a compreensão do mundo trans-humano e a celebração deste Ser Supremo. A palavra celebrar quase diz tudo: o ato sagrado é celebrado, isto é, serve de pretexto para uma festa. A caminho dos santuários, o povo prepara-se para uma manifestação de alegria coletiva. As consagrações, os sacrifícios, as danças e competições sagradas, as representações, os mistérios, tudo isto vai constituir parte integrante de uma festa. Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos, que as provas a que é submetido o iniciado sejam cruéis, que as máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não impede que o ambiente dominante seja de festividade, implicando a interrupção da vida quotidiana (HUIZINGA, 1990: 25). No terreno da celebração, portanto, as fronteiras do jogo, da festa, do ritual se dissolvem no campo da atividade e do movimento, eliminando nódulos inseridos entre tais representações coletivas e fomentando um estado de compartilhamento onde ideais 105 e práticas adquirem fluidez e ductilidade possibilitando, assim, a construção de uma contigüidade orgânica entre as formas de expressão social, através da dança, da música, da cena. 106 3.2.1 - MODALIDADES DO ATO(R) RITUAL Aplicamo-nos a análise das modalidades da experiência sagrada e profana em hibridação, para melhor compreendermos o binômio que se constata na formação do ritual ao santo amarantino, onde a diversão é (con)sagrada pelo ato devoto. Este binômio – que se constrói a partir das relações entre fé e festa com que os sangonçalistas participam a todo o momento da estrutura cultual – patenteia autênticas expressões de religiosidade e ludicidade que influenciam, estruturam e articulam as representações sensíveis. Daí, a relevância de se conceber, anteriormente, um espaço analítico acerca dos relacionamentos entre devoção e diversão, como processos estruturais de contínuas e persistentes (inter)ações simbólicas. Neste momento, todavia, após analisarmos o complexo triádico elaborado entre jogo-festa-ritual, dispomo-nos a compreender a trama que ordena os vínculos entre os atores rituais e suas “personagens”, examinando a plástica ritual, analisando os objetos da manifestação popular e investigando os traços compositores do drama social. Esta composição, que configura as relações que o homem devoto produz em estado de atuação ritual, encontra-se intimamente vinculada àquilo que exorta a humanidade a celebrar deuses e naturezas, chorar os mortos, dignificar os vivos, provocar angústias ou admiração, gozar de prazer, convencer e seduzir, festejar o amor, solenizar os reencontros, dialogar com potências invisíveis, rir, zombar, recitar, cantar, dançar: a habilidade de associar corpo e espírito em um acontecimento social espetacular91. Tal estado de associação entre corpo e espírito, na dimensão social espetacular, promove agenciamentos e cruzamentos que atravessam as condições nodais que observamos, habitualmente, nos dados da realidade e não-realidade; os fatores cristalizados que examinamos, usualmente, como distintivos do sagrado e profano; as qualidades perras que consideramos, frequentemente, como permanências isoladas do ser e não-ser; habilitando-nos, deste modo, a uma compreensão mais dilatada da Vida. 91 “Por ‘espetacular’ deve-se entender uma forma de ser, de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma forma distinta das ações banais do cotidiano” (PRADIER, 2009: 24). 107 Neste sentido, apreendemos que há um processo de “co-habitar” corpo e(m) espírito que entrecruza cotidiano e drama como modalidades do ato(r) ritual, aplica (ainda que de modo dialético) a ambivalência do convívio ator e personagem e, por isso, promove tênues limites entre vida e arte através de (trans) e (con)substancializações simbólicas. Estas associações, portanto, entre corpo e espírito, ator e personagem, cotidiano e drama, engendram possibilidades de relacionamento entre o “rito” e o “teatro”, identificando-os como categorias que representam, embora substancializados de modo diverso, eventos da mesma natureza, elípticos em si: são performances. Para esclarecer a diferença que deve ser considerada entre eventos performáticos entendidos como “ritos” e aqueles definidos como “teatro”, Schechner destacou as noções de “eficácia” e “entretenimento”. De acordo com ele, uma performance defini-se como “eficácia” quando tem repercussões significativas na sociedade, tais como solucionar conflitos, provocar mudanças radicais, redefinir posições, papéis e/ou o status dos atores sociais (...) Inversamente, as performances voltadas para o “entretenimento” não alteram de modo efetivo nada na sociedade, conforme seria o caso dos espetáculos teatrais. Portanto, para Schechner, seria esta polaridade, entre “eficácia” e “entretenimento”, que consiste na diferenciação considerável do “rito” (ou “ritual”) para o “teatro”, pois, segundo ele, de fato, nenhuma performance é puramente “entretenimento” ou absolutamente “eficácia”, uma vez que dependendo das circunstâncias, ocasião, lugar e, principalmente, o tipo de envolvimento da audiência, “rito” pode ser visto como “teatro” e vice-versa (SILVA, 2005: 49-0). Assim, depreendemos que a formação e vivência no mosaico devoção-diversão é “sujeito-dependente”, no entanto, conquanto seja um processo individual faz-se, constantemente, “impregnado de certa qualidade social. Trata-se de um processo vivido por um indivíduo concreto, mas condicionado pela sociedade em que vive”92, ou seja, é validada por um conjunto de bens simbólicos que possibilita aos homens o compartilhamento de determinados ideais, hábitos, costumes, ações, viabilizando, desta maneira a participação e integração dos indivíduos na organização social e facilitandonos o entendimento de que toda sociedade humana se edifica através de processos que possibilitam aos homens identificarem-se e reconhecerem-se pela utilização de materiais culturais comuns. Esta relação, pois, de “sujeito-dependência” localiza-se a nível pessoal e coletivo, processo do substrato individual e dos materiais culturais de que dispomos nos atos performáticos, que induz o ato(r) ritual a estruturar categorias de transportation e transformation. 92 Vázquez, 1999: 137. 108 O primeiro termo faz referência a uma experiência que caracteriza qualquer tipo de evento performático, independentemente dele se apresentar aos olhos do observador como “eficácia” ou “entretenimento”. Isso sugere que participar de uma performance implica deslocar-se para determinado local, estar no ambiente exclusivo ou, então, penetrar os espaços reservados, físicos e simbólicos de um “mundo recriado” momentaneamente; envolver-se na experiência singular de “ser levado a algum lugar”, quando num estado de “transe”, ou o desafio (psicológico) de tornar-se “outro” sem deixar de ser a si mesmo, quando da representação cênica de um personagem qualquer (...) O processo de transportation consiste em uma experiência temporária que, às vezes, também implica um status permanente. Essa experiência Schechner denomina transformation, que se refere ao desdobramento de certos eventos performáticos que instituem um novo papel e/ou condição de status para o performer na sociedade, bem como propiciam ao ator social, na qualidade de performer ou de espectador, desenvolver uma “consciência crítica” de si mesmo e do “mundo lá fora” ou da realidade social em que está inserido (SILVA, 2005: 50). Esta relação entre “ritual” e “teatro”, induz-nos a perceber a situação dos sangonçalistas como atores rituais na Dança de São Gonçalo de Amarante que promovem e articulam personas93 ao seu papel social transitando pela experiência singular da liminaridade ou ambigüidade de papéis e estruturas, transportando e transformando-se em “sujeitos duplos”, promovendo o compartilhamento simultâneo de estados de um “não-eu” e “não não-eu”. Ainda reconhecemos o ator, mas sabemos que ele é simultaneamente um outro. É o jogo de reviramento de si, articulado à questão do olhar, que multiplica situações, opera deslocamentos, deslancha a ação, confunde planos, divide, revira, aproxima e afasta o eu e seu outro, ao mesmo tempo em que os mantém unidos (MIRANDA, 2008: 63). Em verdade, o “ator não pode ‘ser’ e construir um outro ser [a personagem] ao mesmo tempo. É a impossibilidade física de dois corpos ocuparem o mesmo lugar no mesmo instante, e também a impossibilidade psíquica de haver dois egos numa só psique” (Cohen, 2007: 94), todavia a condição liminar habilita o artista-devoto a vivenciar estados conflitantes e contraditórios, inviáveis e, no quadro de representações comuns, impossíveis. Por isso, conquanto apreendamos que se “a personagem não for concretamente individual em cada uma de suas ações, não será uma personagem artisticamente realizada”94, notamos que no ato ritual o papel de personagem não pode ser visto como desvinculado da vida pessoal de quem o representa, mas como indissociável desta, eis a função do rito (como ação performática): fundir (em encontros possíveis) vida e arte; afinal, em um ritual, esclarece Geertz (1989: 82), tanto o mundo 93 Aqui, adotamos os termos persona e personagem como equivalentes, conquanto reconheçamos que há diferenças entre aquele (comum para designar arquétipos e universais) e este (corrente para algo mais bem definido ou convencional). 94 Eco, 2006: 213. 109 vivido como o imaginado fundem-se em um só, mediados por um único conjunto de formas simbólicas. Atesta este relacionamento intrincado entre a personagem e o ator o fato de a figura representada não possuir um lugar concreto na vida social; pois, “a personagem não existe, biologicamente falando”95, sua existência é uma remodelação do corpo físico e cultural do ser que se mostra, um processo de extrojeção96. A atuação da personagem, logo, faz-nos compreender a plasticidade existente no comportamento humano; ao compô-las, inspirados no imaginário coletivo que através de um conjunto de crenças, orienta a fé no santo amarantino, os devotos não perdem sua integridade enquanto homens, mas se desdobram em elementos da ação performativa. A noção de persona aqui utilizada, portanto, é a do papel que o indivíduo preenche em dramas sagrados, sendo na Dança de São Gonçalo de Amarante, tal papel desempenhado por uma equipe que se subdivide em quatro grupos: 1) Patrão: Líder do grupo, esta é a personagem que detém a última palavra em qualquer situação interna ou externa tornando-se responsável por todas as atividades que envolvem o ritual. O domínio do grupo, o saber lidar com as pessoas em comunidade, a criatividade e alegria constante são fundamentais para o exercício do papel. Representante de São Gonçalo vestido de marinheiro (posto que a crença local traça uma ligação do santo com o mar) a função primordial do patrão é comandar a dança através de sinais e gestos convencionais tocados na caixa (instrumento musical). O patrão usa um tênis branco, calça branca com uma fita vermelha de cada lado, compreendendo toda a extensão da peça, e tem um cinturão preto. A roupa de cima é uma camisa branca de manga comprida – normalmente dobrada até a metade do antebraço –, com detalhes em azul na gola, que se estende para a parte de trás da peça, de onde se percebe duas âncoras brancas – uma de cada lado. Na parte da frente da camisa está bordado “S. Gonçalo de Amarante”. E por fim um quepe azul e branco, com um brasão na frente. A menção ao marinheiro que se acredita por aqui, que tenha sido São Gonçalo (BOMFIM, 2006: 74-5). 95 Aslan, 1994: 63. Cohen (2007: 105) propõe o uso do termo extrojeção para designar o processo pelo qual o performer compõe sua persona a partir de sentidos e emoções que lhe são particulares. 96 110 Ilustração 11: Mestre Sales Segundo José Ranulfo Paulo dos Santos, conhecido como Mestre Ranulfo (Depoimento: 2010), o primeiro patrão denominado Mulungu ao retornar à África elege como líder da brincadeira Manoel Dadare; então: (...) ficou Manoel Dadare como patrão (...) aí, foi quando ele morreu, ficou Heitor, brincou, brincou, brincou. Quando ele não pôde mais brincar entregou a outro (...) ao finado Manoel Ligório – ficou brincando – quando o finado Manoel Ligório não agüentou brincar mais, entregou a Zé Augusto (que é irmão de finado Arthur) quando Zé Augusto enfraqueceu (...) aí, ele não pôde mais (...) entregou ao finado Arthur de Aragão. Meu pai [Mestre Paulino] nesta altura era rapaz novo, não tava nem na Mussuca, ele tinha brincado na idade de doze anos, mas foi pra Salvador pra estudar um bocado de ano. Quando meu pai chegou, ele chegou com trinta e poucos anos, aí foi brincar. Neste entrecho, apreendemos os nomes dos seguintes patrões: Mulungu, Manoel Dadare, Heitor, Manoel Ligória, Zé Augusto, Arthur de Aragão, José Paulino e ao acrescentarmos a alcunha do atual patrão Sales, habilitamo-nos a elaborar uma estimativa acerca da origem do culto nas terras mussuquenses, tendo em vista que tal função abarca dois fatores: I) o primeiro diz respeito à participação do devoto no núcleo de dançadores antes de se tornar patrão; afinal, o devoto precisa ter integrado o grupo de figuras por determinados anos, antes de destacar-se como líder, e à medida que a entrada no grupo de veteranos se dá apenas a partir de dezoito anos, o ingresso ao cargo de patrão demanda idade superior aos trinta anos; II) o segundo vincula-se ao “tempo de serviço” do patrão, pois, sendo uma dança de considerável exigência e alto vigor físico, dificilmente os homens ocupam a posição de patrão com idade acima dos setenta anos. Seguindo esta perspectiva estimativa e considerando a média de trinta anos para os dois últimos patrões e vinte anos para os demais, voltamos à década de oitenta, 111 quando Paulino entrega a função a Sales e, seguindo o processo de antecedência, retornamos aos anos da década de cinqüenta. A partir daí, temos seis nomes, o que resulta em 120 anos contando desta data e nos leva ao ano de 1830, século XIX; talvez a idade da manifestação seja mais recente, quiçá mais retrógrada, no entanto, isto apenas um estudo mais voltado ao universo de composição histórica da Dança de São Gonçalo de Amarante, poderá afirmar, estimula-nos, neste momento, tão-somente levantar dados, comparar histórias e promover pontos possíveis e fecundos às investigações do porvir. A apresentação dos patrões no relato de Mestre Rufino, nos faz observar, contudo, que se em décadas passadas encontrar um substituto para a função de patrão parece ter sido tarefa natural, hoje em dia uma problemática relaciona a figura do patrão ao fim da manifestação. Mestre Sales (Depoimento: 2010) em um desabafo diz que “pra ser patrão tem que ser uma pessoa que não faça nada”, os jovens da Mussuca trabalham, estudam e, por isso (pelas responsabilidades, distintas às de seus pais, que a eles são atribuídas) temem e recusam assumir uma posição tão grave e séria reconhecida por todos como a de uma liderança local, o que induz Sales a exclamar que: Daqui uns dias vai parar [fala do fim da brincadeira] porque eles tão tudo trabalhando, não têm tempo de brincar, (...) só quem tem um tempuzinho só os mirins que por enquanto não trabalha ninguém ainda (...) Aí, com o tempo, São Gonçalo vai acabar. O fato de muitas apresentações ocorrerem em “meio de semana” torna este fato ainda mais problemático porquanto ocupados, os devotos deixam de integrar o circuito de pagamentos de promessa e as apresentações durante a semana ou deslocam calendários e datas cerimoniais. Inserimos em campo, por isso, uma grave especulação sobre o desfecho da manifestação na Mussuca [Você acredita que a Dança de São Gonçalo de Amarante vai morrer?]; percebemos a presença de apologistas e apocalípticos, mas a resposta mais profunda que recebemos nos foi fornecida por um jovem de, aproximadamente, treze anos chamado Fernando Gomes da Silva; eis aqui: “Não, porque é popular da Mussuca”. 2) Mariposa: Originalmente, única componente do gênero feminino a participar da dança, esta personagem (atualmente representada por Dona Maria Santana, esposa de Mestre Sales) conduz a imagem do santo em uma embarcação à frente do grupo, durante os cortejos e procissões. Este barco assume papel de destaque durante a Dança de São Gonçalo de Amarante propiciando aos homens devotos uma infinidade de gestos 112 simbólicos. Diante de sua figura, os folgazões ajoelham-se, benzem-se e ditam vivas ao santo. Assumindo a função de ponte entre o céu e a terra, a embarcação – portando a imagem do santo – é uma espécie de altar (objeto ausente no repertório dos cortejos) móvel, conduzido pelos devotos como um elemento de alto simbolismo e estimulante de uma estrutura de fé. Decorada com fitas, a embarcação traz por intermédio de sua composição um estado de renovação da vida onde a profusão de cores e formas alimentam a esperança na chegada de um tempo de graça e beleza. Ilustração 12: São Gonçalo de Amarante Apesar de nos tempos hodiernos a personagem não possuir indumentária fixa, tampouco um repertório gestual definido e reconhecido como tal, Maria Nadir dos Santos, Dona Nadir (Depoimento: 2010) nos esclarece que no passado a mariposa compunha uma persona complexa ao afirmar que: A mariposa não é este gesto, a roupa dela não era deste jeito, a mesma roupa, o sapato que o homem usava ela também usava. A roupa da mariposa era ou um azul claro ou então branca (...) o vestido dela era de manga por aqui [aponta para o cotovelo] dispunhada. O colarinho, a gola era batida (...) Naquela gola colava bico, aqui na manga colava bico, aqui na cintura colava bico e era saia tudo comprida, franzida, bem rodada. E aquele gorro branco na cabeça (quando não era um pano branco de renda na cabeça), colares e tudo. E agora a mariposa não usa (...) opa: colar usa, mas não é pro São Gonçalo, a roupa nunca é pro São Gonçalo – quer dizer que a origem do São Gonçalo não tá completa, não é como começou. No entanto, ainda que a consideremos incompleta em suas ações, esta personagem traz a delicadeza do caráter feminil à cena, orientando os devotos, folgazões e transeuntes a um encontro primordial entre a devoção e a diversão em seu movimento, sorriso, afabilidade e generosidade a todos. 113 3) Tocadores: Em número de quatro (ou três) não se limitam apenas a tocar os instrumentos, mas fomentam serenidade, harmonia e sutilidades à ação ritual. Dois tocam cavaquinho e os dois outros violão (é comum haver apenas um único violão), não possuem indumentária fixa, embora, nos últimos tempos percebamos uma preocupação com um traje comum entre estes. Neste grupo, o maior representante é Mestre Ranulfo (Depoimento: 2010) que inicia-se no ritual como dançador mas descobre especial vocação à música. Eu tava com idade de doze anos; aí papai disse – “Ranulfo” – “Sim, senhor” – “Eu vô dar um treino em você no São Gonçalo”; aí, finada minha mãe – “Vá meu filho” (...) Eu brinquei umas quatro vezes; depois tio de minha mãe disse – “Paulino, compre um cavaquinho que é pro Ranulfo aprender pra ele ficar de tocador de São Gonçalo. Aí, papai me comprou um cavaquinho e eu fui lá aprender; aí, ele disse – “Mas, tem que procurar mais quatro” – procurou o finado Arnaldo, procurou o compadre Agostino, Zé Augusto e o finado Zé Pereira (que é irmão de Zé Augusto). Aí, nenhum deu pra violão só deu pra violão eu; aí, eu comecei a tocar mais eles. Dentre este complexo de personas podemos considerar a cantadora – papel criado recentemente – cuja função é tirar os cantos; esta função, em verdade, pertence ao patrão, todavia, devido às condições vocais de Mestre Sales este papel passa a ser executado por uma segunda pessoa: Maria Nadir dos Santos ou Dona Nadir (filha do antigo patrão, Mestre Paulino e irmã de Mestre Ranulfo). A cantadora não possui indumentária fixa e por ser uma importante mestre popular da Mussuca, por integrar, coordenar e dirigir diversos movimentos culturais, porta-se, de modo geral, com vestidos estampados e rodados representativos de outras manifestações. Sobre sua iniciação como cantadora, Nadir (Depoimento: 2010) comenta: Na época (...) eu cantava com meu pai, mas não era assim, como eu faço parte agora, sabe?! Aí, o tempo foi passando, meu pai ficou véio (...) aí passou a doença de meu pai, aí meu pai não agüentou mais nem cantar e nem brincar. Aí, Seu Sales como já brincava que era figura de frente, aí meu pai colocou ele pra ser o pratrão. Perguntou as figuras todas, mas ninguém aceitou; aí, Sales ficou, entendeu?! Disso pra cá (...) Edivaldo que era figura também ficou cantando, sabe?! Puxando o grupo (...) Como o grupo virou, assim, para representar em todo evento, aí Edivaldo saiu – ele disse que só ia brincar agora quando fosse promessa – porque quando ele entrou pra brincar só era só por promessa. Aí, eu fiquei cantando no São Gonçalo, eu passei ainda uns quase cinco anos sem cantar, sabe?! Aí, depois foi quando eu me separei do meu ex-marido, aí foi que eu comecei mesmo com tudo: a cantar todas festas que tinha até hoje. 4) Dançadores ou Figuras: Em número de oito nas situações tradicionais de pagamento de promessa este número pode aumentar nas apresentações de palco, de caráter informal. Dois deles são os guias ou figuras de frente cujas principais funções são liderar as fileiras de dançadores, iniciar as evoluções e tocar uma espécie de instrumento musical feito de bambu (chamado de pule ou reco-reco ou querequexé) e 114 tocado por uma baqueta; em geral, é o patrão que escolhe quem há de ficar na posição de figura de frente e como diz José Neilton dos Santos, apelidado como Nenel, pai de Neilton dos Santos (Depoimento: 2010) “algum da gente que se interessar pode brincar de frente”; porém, segundo Mestre Ranulfo (Depoimento: 2010) o mais habitual é o treinamento aos figuras de modo extensivo, dos treinos, então, “aquele que dá pra guia é aquele que fica”. O modelo “exemplar” acerca da indumentária ritual dos figuras está em Cadernos de Folclore, Dança de São Gonçalo, de Beatriz G. Dantas onde percebemos que: À exceção do patrão, que se veste de marinheiro, influenciado pelos versos que afirmam que “São Gonçalo é santo, ele já foi marinheiro”, os dançarinos têm sua indumentária ritual à base de trajes e adornos femininos. Por cima das calças usam anáguas e saias floridas que lhes chegam até a altura dos joelhos, traje que é completado por uma blusa cavada de cor branca, geralmente rendada. Um xale colorido enfeitado de fitas atravessa-lhes o tronco em diagonal, sendo preso na cintura. Na cabeça usam turbante branco enlaçado de fitas coloridas. Pulseiras, colares e brincos servem-lhes de adornos. Os colares no entanto são mais do que simples enfeites, pois deverão ser usados necessariamente quando da realização da dança, mesmo durante o “ensaio geral”, quando não trajam a indumentária acima registrada. Embora não tenham cores específicas nem se lhes atribua significado especial, são símbolos identificadores dos dançarinos (DANTAS, 1976: 06). A este respeito, Falcão (2006: 06) ratifica: A indumentária ritual dos dançantes é composta por calça de brim branca, camisa branca sem manga com bicos na gola e nas cavas, saia estampada com bicos de renda, um xale branco de crochê enfeitado com fitas coloridas enviesado no peito das figuras, um lenço branco com uma fita vermelha ou azul, como tem sido ultimamente na cabeça, além dos adereços, colares, brincos e pulseiras. Na ponta de cada fila ficam os guias que tocam cada um o pule, forma de reco-reco feito de bambu. Ilustração 13: Neilton dos Santos - Figura da Dança de São Gonçalo 115 No entanto, segundo Dona Nadir (Depoimento: 2010) algumas coisas descritas por Dantas transformaram-se, durante os anos: algumas quadras foram esquecidas, ritmos perdidos, detalhes incorporados, o que justifica reivindicações por parte dos partidários da tradição que rejeitam modificações e mudanças na estrutura ritual. Não é como era antigamente: as músicas é uma música só, é que eles mudaram de ritmo; as roupas é as mesmas roupas, mas não é como era antigamente; as saias são curtas não têm roda; eles não usa anágua, entendeu?! Não usa pó, não usa brinco, não usa pulseira e o que eles usam mal é o colar e acabou! Mas, na época quando começou era tudo: era pó, era colar (...) porque era tudo mulé. E prossegue: Os gesto dele dançar não é como era antigamente porque o São Gonçalo não é saltando, na hora da chula, não é aquele remelexo todo, não é! Era tudo normal, mexia um pouquinho, sabe?! (...) Mas, agora não, eles dançam que nem tá dançando o arroxa. E a saia era tudo rodada, era tanto (...) que minha mãe botava goma nas anágua; e as anágua era tudo de bico, os homens parecia uma mulé mesmo. As críticas de Dona Nadir às modificações pelas quais o ritual passa, como dinâmica em processo da cultura popular, possibilita-nos apreender que o que o homem é pode estar tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que ele acredita, que se torna inseparável dele. Esta indissolubilidade permite-nos avaliar o cruzamento entre devoção e diversão como produto de uma sociedade formada das mais diversas matizes culturais. Por isso, a partir desta breve análise das personagens tentamos promover através destas quatro figuras a revelação de um todo ritual; entretanto, sabemos haver ainda muito a desvendar. E, aprender, a pensar os saberes locais como estruturas dinâmicas, com estes artistas, ditos populares, é apenas o primeiro passo de nossas investigações. 116 3.3 - GESTUALIDADE E(M) BRINCADEIRA: EXPRESSÃO DA DANÇA Neste tópico pretendemos observar e descrever aspectos estruturais da gestualidade mussuquense na formação da Dança de São Gonçalo de Amarante, promovendo a análise do crescente diálogo entre devoção e diversão a partir da anatomia simbólica da estrutura física97 dos sangonçalistas, ou seja, das confecções sígnicas e psicomotoras do corpo que dança no contexto ritual. No entanto, ao revés de utilizarmo-nos da descrição do movimento corporal como unidade correspondente à prática gestual – o que reduziria a elaboração do movimento a depósito localizado em alguma qualquer vereda do passado – optamos, aqui, a relacioná-la e integrá-la ao exame do corpo ritualizado pela prática coletiva. Isto porque escrever sobre a dança é diferente de descrever a dança. O que a descrição busca fazer é uma tentativa de aproximação do universo gestual que, dificilmente será apreendida em seu todo, na forma como acontece e com as sensações que provoca (LARA, 2008: 21). Por isso, não adotamos, em nossa pesquisa, a descrição do movimento como elemento substituto do movimento, propriamente dito, tampouco efetivamos uma relação de filiação ou parentela entre este e aquela, mas perfilhamos o exercício da descrição como fenômeno relevante para uma maior compreensão dos discursos sociais. Neste contexto, a descrição de movimento não forma uma unidade com seu movimento original. Há necessariamente uma diferença entre a descrição e a dança. Pesquisadores não pretendem descrever com absoluta precisão, nem preservar a dança, mas abrir novas possibilidades de entendimento. Ao invés de estabelecer correspondentes, símbolos e significados, a descrição multiplica as possibilidades de interpretação, de associações teóricas, e a criação de mais material escrito e coreográfico (FERNANDES, 2002: 28). Assim, propomo-nos a analisar e decodificar, através da descrição ritual, a formação e estruturação da dança em louvor ao santo amarantino, desenvolvendo conciliações entre a realidade estética e social e promovendo, desse modo, o encontro entre as dimensões expressivas e os arcabouços culturais que organizam o universo cerimonial. Esta brincadeira em formato de coreografia se organiza em jornadas, ou seja, cantos que estabelecem a seqüência do conjunto e estruturam a ordem-ritual proposta a seguir: 97 Rodrigues (1997: 43) define como estrutura física a forma pela qual o corpo se organiza para realizar diversas categorias de linguagem de movimento. 117 Jornada 1: Nas Horas de Deus Amén Nas Horas de Deus, Amén (2X) Pade, Filho e Espírito Santo (2X) Ore Vive, Ore Viva (2X) Refrão Viva a São Gonçalo Viva (2X) Essa Premera Cantiga (2X) São Gonçalo é Um Santo (2X) Para São Gonçalo Eu Canto (2X) Casamenteiro das Veia (2X) Refrão Refrão Eu Perdi a Minha Agulha (2X) Porque Não Casar as Moça ? (2X) No Caminho de Amerante (2X) Que Mal lê Fizero a Ela? (2X) Refrão Refrão Quem Dançar o São Gonçalo (2X) São Gonçalo é Um Santo (2X) Tem Que Ter o Pé Ligeiro (2X) Feito do Pau da Afavaca (2X) Refrão Refrão Na Saída do Batente (2X) Quem Não Tem Cama nem Rede (2X) Tem Garrocha no Terreiro (2X) Dormi no Couro da Vaca (2X) Refrão Refrão Le Vem o carro Cantando (2X) Deus nos Salve a Casa Santa (2X) Cheio de Cravo de Rosas (2X) Onde Deus Fez a Morada (2X) Refrão Refrão São Gonçalo Vem no Meio (2X) Onde Mora o Cálice Bento (2X) Escolhendo a mais Formosa (2X) E a Hóstia Consagrada (2X) Refrão Refrão São Gonçalo é Um Santo (2X) Vamo S’imbora meus marujo (2X) Ele Já Foi Marinheiro (2X) Pra cidade da Bahia (2X) Refrão Refrão Vamo S’imbarcar com Ele (2X) São Gonçalo Navegante (2X) Para o Rio de Janeiro (2X) Nossa Senhora da Guia (2X) Refrão Nos dois primeiros versos da jornada, todos os figuras e a cantadora se concentram elevando assim o plano mental e benzem-se – realizando o sinal da cruz – e apenas no terceiro verso, os dançantes iniciam a estrutura coreográfica. As duas fileiras realizam então cada qual um círculo pelo espaço – Il. 14: Legenda 118 coordenadas pelos figuras de frente – aqui designado Círculo A. Em seguida, os dançantes invertem o círculo, fazendo-o no sentido contrário (Círculo B) até retornarem à formação inicial. A seguir, um dos guias segue ao encontro do patrão e ambos realizam um jogo de aproximação de calcanhares e rodopios (com uma e outra perna); o figura de frente, então retorna a seu lugar e o segundo guia efetiva o mesmo jogo de calcanhares e giros com o patrão. Os figuras subseqüentes realizam a mesma manobra (alternando-se continuadamente os figuras equivalentes de cada Ilustração 15: fileira) e após terminarem assumem a posição momentânea dos guias Formação Inicial até que os figuras seguintes realizem as mesmas evoluções com o patrão e os substituam. A corporalidade dos figuras ao encontrar com o patrão é variável, estruturada por diversas matizes gestuais, no entanto, percebemos em comum uma movimentação, que através de suas qualidades expressivas caracterizam a atitude interna dos indivíduos; a mobilização do dançante ocorre em fluxo livre, espaço indireto – ou melhor, em “atenção expandida por milhares de pontos ao mesmo tempo, como se seu corpo tivesse olhos em todos os poros, e se movesse com todos esses simultâneos focos”98 – e peso leve. Tais fatores de movimento associados caracterizam, Il. 16: Círculo A ao instaurar um tempo contínuo consagrado pela circularidade e sinuosidade do “eterno retorno”, um impulso expressivo de transformação mágico. O Impulso Mágico (...) combina os fatores de peso, fluxo e espaço, excluindo o fator tempo. Ou seja, ao mover-se em Impulso Mágico, o corpo mantém seu tempo constante (...) e parece prender a atenção dos espectadores, como se os hipnotizasse. Como o nome indica, “mágico” refere-se a esta combinação de sentimento (fluxo), sensação (peso) e atenção (espaço), instalando uma atmosfera de eternidade, onde o tempo parece ter parado (FERNANDES, 2002: 131). Aí, apreendemos porque para “o homem religioso (...) a duração temporal profana pode ser ‘parada’ periodicamente pela inserção, por meio dos ritos, de um 98 Fernandes, 2002: 108. 119 Tempo sagrado, não histórico (no sentido de que não pertence ao presente histórico)”99. O tempo torna-se uma dimensão repetível, que ao articular-se com os fatores de peso, fluxo e espaço gera uma temporalidade incomum, suspensa e atemporal. Após as manobras realizadas por cada figura com o patrão, os guias que, então, se encontram no final das fileiras realizam o Círculo A e retornam pelo Círculo B às posições iniciais – confundindo os olhares que observam. Em seguida, o patrão entrelaça uma das fileiras de dançantes percorrendo o espaço entre os seus integrantes acompanhado por todos os figuras da outra fileira. O patrão retorna pelo mesmo espaço entre os figuras da fila que permanece estacionária, gingando no lugar para um Ilustração 17: Entrelaçamentos lado e outro e ao recompor as duas fileiras no espaço, coordena a realização dos Círculos A e B, então a outra fileira efetua os entrelaçamentos e, em seguida, novamente fazem Círculos A e B. Neste momento, os brincantes atravessam um o espaço do outro e ao encontrarem-se no centro realizam manobras e giros. Novamente, executam Círculos A e B retornando à formação inicial e favorecendo-nos, assim, a apreensão de que os movimentos circulares se apresentam de modo insistente nos percursos espaciais da estrutura ritual. Ilustração 18: Atravessamentos 99 Eliade, 1992: 61. 120 Ambas as filas são orientadas pelo patrão a realizarem, então (lado a lado) um círculo pelo espaço. Ao retornarem para seus lugares realizam Círculos A e B e tornam a serem orientados pelo patrão a fazerem um outro círculo, porém no sentido contrário. Ilustração 19: Círculo pelo Espaço Novamente, efetivam Círculos A e B e tornam a jogar com os calcanhares de seus respectivos pares; aí, percebemos que apesar da qualidade do peso aplicado ao ato coreográfico os esforços empregados pelos pés na relação com o solo são variados e apreendemos que: Duas ações ocorrem simultaneamente: enquanto um dos pés recolhe energia do solo, o outro libera energia para o solo. Na ação de recolher, os pés sugam o solo (ventosa) acentuando o contato do metatarso e calcâneo e o conseqüente aumento do arco do pé. Na ação de liberar os pés se expandem no solo, ampliando, progressivamente sua área de contato. O movimento desenvolve-se pela alternância dos pés nas respectivas ações (RODRIGUES, 1997: 46-7). Cada figura (a começar pelos guias) seguida do correspondente da fileira oposta segue em direção ao patrão e realiza um círculo em seu entorno, retornando a seu lugar inicial nas fileiras. Neste giro, percebemos a predominância da flexão dos joelhos em todos os dançantes o que “possibilita aos pés desempenharem uma gama de movimentos altamente articulados100” e influencia, significativamente, a relação sinuosa estabelecida no corpo como um todo; aí, nesta operação tortuosa, sem dúvida, percebemos que é o corpo inteiro que se junta para efetivar a ação; no entanto: (...) cada região do corpo – cabeça, tronco, braços, pernas – exerce uma por vez um papel principal. A hierarquia entre esses seguimentos nunca é fixa, cada um podendo, por sua vez, concentrar os olhares e se colocar no coração do evento gestual. Cada seguimento se torna então no centro do movimento 100 Rodrigues, 1997: 48. 121 da energia, como se, em uma espécie de uma democracia cultural (...) todo seguimento pudesse, a qualquer momento, encabeçar o poder101. Em seguida, os figuras realizam Círculos A e B; após os últimos versos, o patrão dá toques acentuados na caixa e finaliza, desse modo, a jornada. Percebemos, através das observações realizadas em campo, que as jornadas que se seguem, no processo de sobreposição da estrutura ritual, apresentam um fraseado coreográfico comum que, com exceção da chula, sofrem apenas determinadas subtrações no percorrer da cerimônia festiva e, por isso, tornam-se prescindíveis de descrição. Jornada 2: Vosso Reis Pediu uma Dança Vosso Reis Pediu uma Dança É de Ponta de Pé, é de Calcanhar; E o coro responde: Aonde Mora Vosso Reis de Conga É de Ponta de Pé, é de Calcanhar Jornada 3: Adeus Parente Adeus Parente que eu vou imbora Pra terra de Conga vou ver Angola Mas eu vou imbora, eu vou agora Pra terra de Conga vou ver Angola Segundo relatos compartilhados, durante o processo de pesquisa em campo, percebemos que esta jornada faz-se, continuadamente, como referência a despedida de alguém, que importante para a coletividade local, parte em direção das terras de Conga ou Angola. Entre as personalidades mais comumente presentes nos depoimentos, todavia, destaca-se a figura do santo amarantino e de um velho negro chamado Mulungu (ambos relacionados diretamente com a origem do ritual na Mussuca). Segundo Nadir (Depoimento: 2010) a música é uma despedida de São Gonçalo às suas companheiras de jornada, realizada a partir dos versos de sua despedida e seu retorno à sua terra natal: “Eu vô viajar, eu vô pra terra de Conga e de lá eu vô ver Angola”; entretanto para Ranulfo (Depoimento: 2010) os versos da música apontam a figura de uma outra personagem chamada Mulungu (negro cativo habitante das terras de Angola, considerado o primeiro chefe de São Gonçalo na Mussuca) que após a alforria resolve retornar à sua terra natal, dizendo: “Eu vô imbora, (...) nós tamo forro, (...) eu vô m’imbora pra Angola”. 101 Pavis, 2010: 277. 122 Jornada 4: Jiruarê Ô jiruarê ô isquitin bamba ê Ô jiruá, jiruá isquitin calamundê Ô jiruarê ô isquitin bamba ê Ô vai, vai, isquitin calamundê Nesta jornada a cantadora oferece o canto a um dos guias e ele segue cantando o primeiro e terceiro verso, enquanto os demais e a cantadora cantam o segundo e o quarto. Esta jornada diferencia-se coreograficamente das demais por subtrair o desfecho comum às outras com o circulo entorno da figura do patrão. Dona Nadir nos informa (Depoimento: 2010) que apesar de não saber o que significam estes termos, ela tem o dever de “falar as línguas que era antigamente de quando começou” e, prossegue afirmando que mesmo não sabendo falar explicado, sua função é “falar da origem do grupo”, ou seja, cantar os termos que são reproduzidos desde a época da escravidão. Jornada 5: Mamãe Zambi Inderêrê Mamãe Zambi (coro) Ó ia ia mãe Zambi, que faz aqui Inmderêrê Mamãe Zambi (coro) Ai, ai, ai mãe Zambi, oi ela ali Inderêrê Mamãe Zambi (coro) Oh papai diz a missa pra mamãe ouvi Inderêrê Mamãe Zambi (coro) Ò ia ia mãe Zambi, oi ela ai. Inderêrê Mamãe Zambi (coro) As informações coletadas em campo sobre Mamãe Zambi anunciam o encontro entre esta e o santo amarantino e apontam à validade do conjunto de crenças do imaginário coletivo que sustentam o ritual na região. De acordo com Dona Nadir (Depoimento: 2010): Mamãe Zambi era uma mulher e ela também fazia parte do São Gonçalo (...) Na época que brincava só era mulé (...) ela se chamava a Mamãe Zambi porque ela era escrava (...) adepois (...) São Gonçalo tirou ela dessa vida (...) aí ela foi brincar São Gonçalo (...) Mas, na época (...) ela chegava pra assistir o grupo brincar, né?! Aí, ela não fazia parte do grupo, (...) depois ela ficou fazendo parte porque ela foi chegada das escravidão (...) aí sempre que São Gonçalo tava brincando com as mulheres ela aparecia. Repare a música: Inderêrê Mamãe Zambi/ Ó ia ia mãe Zambi, que faz aqui. Ainda há hipóteses, entretanto, de a jornada Mamãe Zambi estar diretamente vinculada à figura de Nzambi (que significa Deus em kimbundo e atesta herança 123 angolana no ritual) ou Zambi que como sabemos é a designação de Deus na nomenclatura ubandística, cujo ponto apresentamos a seguir: Ponto de Zambi (Deus) Só Zambi é quem governa o mundo Só Zambi sabe governar Só Zambi é quem governa o mundo Só Zambi sabe governar Foi Zambi quem deu a estrela Que guiou Oxóssi lá no Juremá Foi Zambi quem deu a estrela Que guiou Oxóssi lá no Juremá Mas ele é rei, ele é rei, ele é rei Mas ele é rei, ele é rei Orixá Jornada 6: Suzanê Ô Suzanê Cadê mãe Suzana Ô Suzanê Mãe Suzana morreu Ô Suzanê No tope da ladeira Ô Suzanê Mas meu Deus cadê ela Ô Suzanê Vamos orar por ela Ô Suzanê Ai, ai mãe Suzana Jornada 7: Chula Chorei Maria já chorei não choro mais A vida de solteiro já gozei não gozo mais Refrão Essa Premera Cantiga Tem Garrocha no Terreiro Para São Gonçalo Eu Canto Refrão Eu Perdi a Minha Agulha Le Vem o carro Cantando No Caminho de Amerante Cheio de Cravo de Rosas (2X) Refrão São Gonçalo Vem no Meio Quem Dançar o São Gonçalo Escolhendo a mais Formosa (2X) Tem Que Ter o Pé Ligeiro Refrão Na Saída do Batente 124 São Gonçalo é um santo Vo pedir a Deus do Céu Ele já foi marinheiro (2X) Pra Ele vir me Ajudar (2X) Vamo s’imbarcar com ele Pra vencer esta batalha Lá pro Rio de Janeiro (2X) Esta batalha real (2X) Refrão Refrão São Gonçalo é Um Santo Deus nos salve a casa santa Casamenteiro das Veia (2X) Onde Deus fez a morada (2X) Porque Não Casar as Moça? Onde mora o cálice bento Que Mal lê Fizero a Ela? (2X) E a hóstia consagrada (2X) Refrão Refrão São Gonçalo é um santo Eu canto é pra São Gonçalo Feito do Pau da Afavaca (2X) Eu canto é com tanto amor (2X) Quem não tem cama nem rede Eu gosto de São Gonçalo Dorme no couro da vaca (2X) É o santo protetor (2X) Refrão Refrão A jornada, a única que se produz de modo completamente diferente das demais, se inicia com um passo que embarca os dançantes em um ritmo de “dois para lá, dois para cá”, os figuras, com braços direcionados para o Altíssimo e mãos na altura da cabeça, requebram o quadril ao som da música e jornadeiam realizando Círculos A e B. Em seguida promovem encontros (a começar com os guias e em sucessão) com os figuras subseqüentes da fileira oposta, em que reproduzem movimentos de quadris e produzem movimentos laterais de tronco finalizados com uma aproximação de cabeças, que quase se tocam. A este respeito, Rodrigues (1997: 54) comenta que o “gesto de ‘bater cabeça’, mais do que um cumprimento, uma saudação, significa entregar-se às forças divinas e assim estabelecer a união do interior com o exterior”. O estado de efervescência em que se encontram os fiéis reunidos traduz-se necessariamente, no exterior, por movimentos exuberantes que não se deixam submeter facilmente a fins muito estreitamente definidos. Eles explodem, em parte, sem objetivo, manifestam-se apenas pelo prazer de se manifestar, comprazem-se em toda espécie de jogos (DURKHEIM, 2008: 454). Nesta dinâmica “efervescente” o último figura vai a frente das fileiras e ao encontrar com o patrão faz referências à umbigada, em uma gestualidade sensual – carregada de potenciais de volúpia. As fileiras realizam Círculos A e B, algumas vezes, e finalizam a jornada. Estas simulações de umbigada – que trazem sentidos de sensualidade e sexualidade à dança e estabelecem a presença de jogos de sedução, conquista e desafio que caracterizam a composição coreográfica – estruturam relações 125 entre os ritos de fecundidade que estão vinculados à prática ritual e à dimensão mítica de São Gonçalo. Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 17 INT – CASA DE ADELAIDE – NOITE Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo adulto dançando em louvor ao santo Duração no vídeo: 16’46” a 17’25” Finalidade expressiva: Exibir a execução da jornada Chorei Maria pelos devotosbrincantes. Percebemos, nas estruturas de movimento produzido pelos quadris dos sangonçalistas um caráter gestual sinuoso e ondulado que integra a geração, a concentração e a dimanação de energia e instaura o estabelecimento das conjunções entre fé e festa; afinal: A bacia representa um vaso que recebe e nutre, interligando-se ao aspecto da vitalidade, sendo um gerador de energia para todo o corpo. Observamos a sensualidade e a sexualidade conjugando com o sentido mais genuíno de sacralidade implantada na bacia (RODRIGUES, 1997: 50). Jornada 8: Nas Horas de Deus Amén Jornada 9: Instrumental de Chula Os figuras iniciam a jornada, em o mesmo ritmo da chula (gingando o corpo em um ritmo de “dois para lá e dois para cá”), em seguida executam Círculos A e B e ao retornarem à formação inicial realizam afastamentos e aproximações com seus correspondentes da fileira oposta. Em requebros constantes de quadril, os figuras se aproximam da figura do santo amarantino e ajoelham-se, fazendo flexões laterais de tronco e pedindo vivas ao Ignoto. 126 3.4 - CELEBRAÇÕES E(M) CAMPO 3.4.1 - FESTA DO SENHOR DA CRUZ NA MUSSUCA Domingo, 04 de abril de 2010: após três meses de ausência, estou de volta ao povoado Mussuca onde acompanho os festejos do fim de semana pascal (Sexta-Feira Santa, Sábado de Aleluia e Domingo de Páscoa) hospedado na residência de Mestre Sales. Acordo, então, às 07h20min com Dona Santana varrendo a casa e reclamando a presença de alguns pesquisadores intrometidos que estão no portão aguardando para fazerem filmagens de Mestre Sales se aprumando e seguindo para o ensaio e apreendo, de imediato, meu privilégio no campo de relações estabelecido com o povoado; a hospitalidade com que me recebem aponta a construção de redes de alianças e fomenta o entendimento de uma consideração mútua (entre eu e eles) baseada em uma relação gentil, afetuosa e consagrada por uma cordialidade branda e brincalhona. Após me levantar, Dona Santana e eu conversamos sobre a festa do dia anterior e minha animação, dança e “rebolation”102 nos festejos de Sábado de Aleluia; são 08h25min quando sigo para tomar café e me arrumar para as celebrações do Domingo de Páscoa. Partimos em direção à igreja (onde será realizado o ensaio do grupo) às 10h00min, a chuva caí. Logo aparece um carro, olho em seu interior (ao volante, um senhor e no banco ao lado uma senhora) e reconheço dois dos pesquisadores “intrometidos” – que agora adquirem a simpatia da família e descubro serem do IPHAN – eles fornecem carona para as crianças e à Dona Santana; eu e Mestre Sales, contudo, prosseguimos a pé. Nosso percurso, todavia, não se faz monótono, Seu Sales caminha lentamente dando toques na caixa e convocando os figuras a participarem do ensaio, percebo que muitos se negam a seguirem com ele, mas ele prossegue atraindo os homens reticentes; ao passarmos pelo bar da sogra de Vanilson (conhecido na comunidade como pilhinha – uma das figuras de frente que se negou a assumir o posto de patrão, após Sales) somos convidados por ele a tomar refrigerantes. Mestre Sales não aceita e pergunta se ele não irá ao ensaio, ao que é respondido com uma recusa (provavelmente fundamentada no fato de pilhinha estar, desde o ano de 2009, com uma lesão visual): “este ano não vô não”; o patrão prossegue sua marcha, porém um tanto decepcionado, afinal “o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não apenas encoraja a 102 Single lançado pelo grupo de axé Parangolé, no final do ano de 2009. 127 devoção como a exige, não apenas induz a aceitação como reforça o compromisso emocional”103. Ao chegarmos à Igreja Senhor da Cruz percebo que há três imagens de santos sendo aprumadas, por um conjunto de três homens e quatro mulheres ocupados com o ofício de organizar a igreja e arrumar os andores. Ilustração 20: Arrumação da Igreja e dos andores Pergunto a Dona Santana (Depoimento: 2010) sobre os outros santos ao que ela me responde: “Antigamente, só havia Senhor da Cruz e São Gonçalo depois que surgiu esta outra aí” – se referindo a Nossa Senhora da Conceição. Por sua vez, Jaílza Bispo dos Santos – filha de Eupídeo Bispo dos Santos, um dos mais antigos figuras de São Gonçalo (Depoimento: 2010), comenta que a motivação da presença de São Gonçalo na Festa do Senhor da Cruz na Mussuca é fenômeno recente e resultante das relações conflitantes entre os interesses eclesiásticos e o conjunto de crenças do povoado no processo de legitimação e promoção do padroeiro, indicado e determinado pela Igreja, do lugar. Antes a festa de São Gonçalo era separada (...) aí depois que passou pra ser Senhor da Cruz. Aí sai Senhor da Cruz mais São Gonçalo. Porque o povo falava que aqui, só na Mussuca, que tinha duas festas que era a Festa de São Gonçalo e a Festa de Senhor da Cruz. Aí, depois juntaram tudo pra fazer uma festa só (...) Em todos povoado só tinha uma festa só, só tinha um padroeiro e na Mussuca (...) tinha dois padroeiro que era São Gonçalo e Senhor da Cruz. Aí, saí Senhor da Cruz na frente e depois São Gonçalo. 103 Geertz, 1989: 93. 128 Atesta este fato o relato de Dona Nadir (Depoimento: 2010): Que eu alcanço aqui na Mussuca todo ano tinha Festa de Senhor da Cruz; não era naquela igreja era numa capelinha pequenininha (...) que só cabia mesmo o altar e os santos (só e pronto), só cabia quatro ou cinco pessoas, o resto ficava do lado de fora porque não cabia ninguém. E a festa do São Gonçalo era no dia 16 de agosto não era misturado com do Senhor da Cruz, não. Daí, inferimos que a associação das celebrações de louvor a São Gonçalo de Amarante aos Festejos do Senhor da Cruz auxilia a promover e atribuir um lugar secundário ao santo amarantino – desprovido de maiores importâncias e marginalizado no contexto hierárquico proposto pela Igreja – ao mesmo tempo em que valida o ideário do Senhor da Cruz como “dono da casa” e, por isso, padroeiro do lugar. Apreendemos, pois, que a Igreja mantém-se, nos dias hodiernos, na posição conjuntiva e conglobada, que o período colonial havia lhe concedido, interferindo e propondo hierarquias rituais estruturadas a partir da coordenação eclesiástica. Todavia, percebemos que a população insiste em afirmar que homenageado nestas terras é São Gonçalo de Amarante, muito embora haja certa aceitação ao Senhor da Cruz como padroeiro da Mussuca. De acordo com estes depoimentos, percebemos que várias posições antagônicas se configuram na confecção ritual, explicitando a posição da Igreja como agente coordenador da festa e interventor na elaboração dos ritos. A incorporação, portanto, de Nossa Senhora da Conceição no ritual e a admissão eclesiástica do Senhor da Cruz como padroeiro do povoado no lugar que (não institucionalmente, mas simbolicamente era e, de certo modo) continua sendo ocupado pelo santo amarantino podem ser fenômenos apreendidos como tradições inventadas, ou seja: (...) um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente uma continuidade em relação ao passado (...) histórico apropriado (...) a nova tradição é, muitas vezes, de origem recente (HOBSBAWN, 1997: 9-10). Tal estado de continuidade em relação ao passado, no entretanto, faz-se à guisa de superficialidade, afinal “são reações a situações novas que assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através repetição quase obrigatória” 104 da . Este dado nos permite apreender o porquê de a Festa a São Gonçalo de Amarante (anteriormente realizada em agosto na Mussuca) ser deslocada para o período das cerimônias pascais. 104 Hobsbawn, 1997: 10. 129 Os figuras chegam pouco a pouco e estruturam uma formação de oito devotos (dentre os quais percebemos um processo de mistura dos grupos jovem e adulto ou veterano – por questões relativas à desmotivação, falta de tempo e ao ofício de cada qual). Dá-se início ao ritual de ensaio: os homens trajam calça jeans, blusa branca (com exceção de dois figuras que vestem blusas estampadas), pano branco na cabeça e colares variados. Dona Nadir usa como vestuário um vestido de estampa floral e porta uma tiara na cabeça, Sales veste uma roupa de marinheiro antiga (comum aos ensaios). As jornadas cantadas são “Nas Horas de Deus Amén”, “Vosso Reis Pediu uma Dança”, “Adeus Parente”, “Jiruaê”, “Mamãe Zambi”, “Suzanê”, “Chula” e “Nas Horas de Deus Amén”. Ilustração 21: Figura em Traje de Ensaio Percebo que o corpo que dança apresenta-se como espaço de relação, lugar dos agenciamentos entre as potências sagradas e profanas, espaço próprio à manifestação da cosmogonia; o corpo inserido no contexto ritual torna-se um sítio primordial e, por isso, articula-se como elemento-chave para o entendimento da tensão entre devoção e diversão que através da atualização das atividades simbólicas rearranjam a trama social. 130 A organização do espaço da igreja é a seguinte: Ilustração 22: Espaço da Igreja Senhor da Cruz Chove torrencialmente; enquanto o ensaio é realizado a igreja é simultaneamente preparada para a Missa Pascal, a chuva penetra o espaço deixando o piso escorregadio, alguns figuras resvalam, outros caem sensibilizando algumas pessoas da comunidade que estavam na assistência a varrer a água que invade a igreja, direcionando-a aos umbrais. Durante a música “Mamãe Zambi” no verso que diz “oi ela aí”, Nadir faz referência às chuvas que caem do céu – apontando possibilidades de sincretismo religioso para aqueles que conhecem sua simpatia e predileção aos cultos e entidades da Umbanda; ao término da música há uma forte trovoada e ela diz: “Viva a Deus Senhor!”, favorecendo-nos a compreensão de que ao revés de recebida como problemática a chuva é grande benção do Ignoto. Ilustração 23: Ensaio Ritual na Igreja 131 Ao término da cerimônia e após as “Vivas” habituais de Mestre Sales o público se dispersa; os preparativos para os festejos da igreja tornam-se mais urgentes, há uma grande movimentação de assentos em seu interior e outros trabalhadores cooperam para a recolocação da “ordem” na paróquia. Retiro-me e sigo a pé para a casa de Sales (Dona Santana e as crianças retornam de carona e o patrão opta por ficar no caminho a fim de se reunir a alguns figuras que estacionam no bar), onde me aguardam para a refeição, espaço de construção dos laços de afinidade e parentesco que permitem mais uma vez ouvir Dona Santana dizer que eu pareço um dos seus; isto porque: (...) as refeições tomadas em comum criam um laço de parentesco artificial entre os participantes. Parentes, com efeito, são seres, naturalmente constituídos da mesma carne e do mesmo sangue. Mas a alimentação refaz continuadamente a substancia do organismo. Uma alimentação comum pode, portanto, produzir os mesmo efeitos que uma origem comum (DURKHEIM, 2008: 405). Após o almoço, encaminho-me com Luciana (uma das filhas de Mestre Sales) para o show na tenda e após as apresentações sigo, novamente, para a Igreja Senhor da Cruz, lá assisto a missa dividida, então, em duas partes: 1) Cerimônia Batismal – com início às 14h30min e término às 15h00min e 2) Missa Pascal – com duração aproximada de uma hora. Não percebo durante o batizado nenhum dos figuras presentes na igreja, apenas quando a missa – propriamente dita, formada pelos ritos iniciais, liturgia da palavra, liturgia eucarística e ritos finais – inicia percebo a presença de Seu Sales, agora vestido com sua indumentária ritual padrão, na igreja. A missa prolonga-se sem nenhuma circunstância digna de menção e ao seu término dá-se início a procissão; o relógio marca 16h10min quando me situo externo ao universo eclesiástico farto de cores e visualidades. O roteiro da procissão segue da Igreja Senhor da Cruz (localizada na Mussuca de Baixo) para a Mussuca de Cima e após passar pelo cemitério do povoado, retorna à Mussuca de Baixo. A disposição da procissão é a seguinte: à frente seguem seis crianças trajadas de anjos (vestidas de branco); em seguida, vêm os mastros dos santos: o primeiro é de Nosso Senhor da Cruz, em segundo o mastro de uma coroa enfaticamente representando a Virgem pelos dizeres: “Nossa Senhora, Rogai por Nós”, após percebo outros quatro mastros dentre os quais o ultimo consiste na figura de São Gonçalo de Amarante (referenciada no imaginário popular, com a viola na mão). Após, senhor José dos Santos (62 anos de idade) conduz a imagem do santo violeiro em sua embarcação; a condução da imagem (antes realizada nos festejos do Senhor da Cruz por Dona Santana) passa às 132 suas mãos (e assim será até o dia de sua morte) desde o momento em que uma promessa a favor de sua saúde foi efetivada pelo santo há seis anos atrás. Ilustração 24: José dos Santos A seguir, vêm os padres e os andores com a imagem do Nosso Senhor da Cruz, Nossa Senhora da Conceição e, por último, São Gonçalo de Amarante: uma falange de devotos segue as imagens dos santos, acompanhada pela banda do município de Laranjeiras – tocando músicas cívicas – e os grupos de cultura popular: sangonçalistas (mirins e adultos105); as moças e senhoras do Samba de Coco e alguns policiais que vigiam as “costas” do cortejo seguidos de ambulância. A procissão (...) reúne (...) o alegre ao triste, o sadio ao doente, o puro ao pecador e, mais importante, as autoridades ao povo. Pois, ao mesmo tempo em que o santo homenageado está num andor e separado do povo por sua natureza e pela mediação das autoridades que o cercam, ele caminha com o povo e dele recebe na rua (e não na igreja) suas orações, cânticos e piedade (DAMATTA, 1997: 65). Durante a procissão visualizo alguns fiéis do Grupo de Oração que estavam na missa, eles cantam: Segura na mão de Deus (2X) Pois ela, ela te sustentará. Não temas, segue adiante e não olhes para trás Segura na mão de Deus e vai E uma outra canção: Quando Jesus Passar Quando Jesus Passar 105 Aqui, conquanto digamos adultos, reconhecemos que o grupo estava marcadamente estruturado pela mistura dos grupos adulto e juvenil. 133 Quando Jesus Passar Eu Quero Estar no Meu Lugar Percebo que as músicas raramente são tocadas em simultaneidade – como ocorre na Festa de Reis em Laranjeiras – o que inviabiliza a sobreposição de sonoridades; entre as pausas da banda cívica e do Grupo de Oração posso apreender em determinado momento os sangonçalistas adultos tocando, cantando e dançando a jornada “Suzanê” e as crianças, em seguida, jornadeando com “Quizamba” e “Suzanê”. A festa, então, transforma dor em alegria, a desesperança em fé, a história em riso, transubstancializando o corpo em linguagem e arte, brincadeira e devoção, a festa é transfiguração da organização social, que ao solicitar espaços mais irreverentes às convenções herdadas torna-se fato político, religioso ou simbólico; por isso: Os jogos, as danças e as músicas que a recheiam não só significam descanso, prazeres e alegrias durante sua realização; eles têm simultaneamente, importante função social: permitem às crianças, aos jovens, aos espectadores e atores da festa introjetar valores e normas de vida coletiva, partilhar sentimentos coletivos e conhecimentos comunitários (PRIORE, 1994: 10). Este compartilhamento simbólico permite ao sagrado se instaurar e mobilizar o pensamento e as ações dos devotos assumindo e promovendo um ideal coletivo que o relaciona à ordem pública e, portanto, à dimensão social; as atividades cerimoniais, portanto, “colocam a coletividade em movimento; os grupos se reúnem para celebrá-las. O seu primeiro efeito é, pois, o de aproximar os indivíduos, de multiplicar os contatos entre eles e de torná-los mais íntimos. Já, por isso mesmo, o conteúdo das consciências muda” (DURKHEIM, 2008: 418). Ilustração 25: Imagem da Procissão ao Senhor da Cruz 134 A procissão termina às 17h00min com a entrada dos santos e fiéis na igreja, ao som de música suave tocada pela banda cívica; no interior da igreja, Padre Diógenes Oliveira Silva diz: “E agora vamos todos pedir para que N. S. Jesus Cristo nos acompanhe” e todos respondemos: “Amén”. Noite alta, os grupos da Mussuca se apresentam na tenda, tanto o São Gonçalo mirim quanto o grupo adulto tocam as mesmas jornadas: “Nas Horas de Deus Amén”, “Vosso Reis Pediu uma Dança” e “Chula”. Os dançadores, apesar de exaustos, buscam a direção de suas casas ou a companhia de pessoas amigas onde a íntima comemoração de seus familiares ou do grupo os aguarda. A oração é cumprida; as ações de graças realizadas em formas de brincadeira, jogo e dança; as súplicas erigidas ao Alto e, finalmente, a fé vivenciada como história sobre eles, é prática que a Mussuca conta a si mesma – para não esquecer quem é. 135 CONCLUSÃO De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que (...) estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro (Fernando Sabino. O Encontro Marcado). Alcançamos, neste momento, o desfecho da pesquisa; entretanto, apesar de reconhecermo-nos a caminho das considerações finais, aí chegamos não porque tenhamos posto termo ao material de análise ou porque tenhamos alcançado a graça plena de uma conclusão em nossas investigações, mas tão-somente porque somos interrompidos pela idéia de que a pesquisa se faz inesgotável optando, deste modo, por desdobrá-la na direção de caminhos novos, consubstancializando quedas, medos e estados de sono, tornando a busca em encontro. Nossa deambulação intelectual, portanto, faz-se como um sentido onde o encontrar é o próprio buscar e buscar o encontro entre a devoção e a diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante é o próprio encontro; encontrar, porém, não é de modo algum encontrar no sentido do resultado prático ou científico, encontrar é tornear (como tourner em francês), dar a volta, ir em volta de, é buscar ainda em meio à circularidade, como se o sentido da busca fosse um giro. Então, estabelecemos uma busca que (con)torna o que é busca em objeto, pois achá-lo seria perdê-lo e engendramos estratégias de pensamentos nômades que rejeitam a demora (como dimora em italiano), a morada em um reino seguro de relações, formas e conceitos. A análise da estrutura ritual da Dança de São Gonçalo de Amarante através daquilo que pesquisamos, sentimos, apreendemos, festejamos, bailamos, transcendemos, nesta acepção, representa o conjunto de sentidos experienciados e o corpo da experiência de sentidos aqui apresentados que fundamentam a discussão acerca dos conteúdos referenciais da devoção e da diversão e o exame daqueles agentes geradores de tensão, elasticidade e maleabilidade na discussão de seus elementos. 136 Estudamos, por isso, as relações entre a fé e a festa através dos dispositivos do sagrado e do profano, das espacialidades e temporalidades de relação com o Ignoto, dos mecanismos da fantasia e da festividade, do limiar e da liminaridade, aproximando, deste modo, conceitos e realidades, promovendo diálogos entre saber e fazer e, por fim, conciliando o riso à oração. A Dança de São Gonçalo de Amarante, portanto, além de ser reconhecida como uma manifestação popular presente no imaginário religioso coletivo, define-se como um processo histórico de relações cujo contexto gestual e motivacional revela e expressa diversos fatores e sentidos que transitam entre o mito e o rito. O estudo das relações entre corpo, dança e religião e a análise dos conflitos e pontos de tangência ou encontro entre as dimensões da arte e religiosidade popular habilitam-nos, na pesquisa proposta, a abordar as conexões entre a realidade social e o conteúdo ritual, estruturando aquilo que designamos por histórias do corpo e auxiliam-nos a investigar os vínculos entre as substâncias míticas e o comportamento cultual, organizando aquilo que identificamos como histórias do santo: processos de atravessamentos de valências simbólicas. Neste contexto, apreendendo de um lado a imagem do santo que veste batina, e do outro a imagem daquele mesmo santo vestindo calção, buscamos analisar as elipses, incoerências, emendas e conciliações entre as composições históricas que edificam a (con)tradição de louvor ao beato amarantino, disponibilizando-nos a analisar a natureza expressiva do ritual em uma perspectiva dialógica com seus sistemas de crença e as manifestações do corpo. O corpo como lugar de encontro entre a manifestação artística e religiosa, por isso, orienta as discussões acerca das relações entre os elementos sagrados e os aspectos profanos que desdobram as redes de significação e a expressividade plástica do ritual. Entretanto, conquanto tenhamos nos empenhado em auxiliar – através da apresentação do caráter religioso da festa – a formulação de concepções, estruturas de reconhecimento e aproximações necessárias à compreensão dos estados da devoção e da diversão em hibridação, não nos propomos, aqui, a pormenorizar o ritual, mas, sobretudo a analisar – no conjunto de ações e histórias – as cerimônias e, desse modo, fomentar a apreensão da celebração religiosa como estrutura local das dramatizações sociais. Por isso, não resolvemo-nos investigar apenas os significados de ordem cultural circunscritos a prática gestual, mas também optamos por expandir nossos horizontes no entendimento da imagem, do mito e dos ritos; deliberamos considerar o todo ritual não 137 como encenação teatral baseada no fenômeno da espetacularização, mas fomentar a compreensão do culto como elemento dinâmico da expressão coletiva; e, por fim, optamos em conciliar os signos que compõe o drama organizando o pensamento na vinculação dos bens simbólicos às bases da sociedade. Neste campo de tensões, desvelamos a imagem do mito como aquele meio de expressão e comunicação que Joly (2006) designa como o vínculo que nos une às tradições mais antigas cuja memória reativada fomenta autonomia, solidariedade e significado aos panoramas de representação humana e encontramos, na estruturação destas urdiduras simbólicas pela imagem do mito, a configuração de dramas plásticos que compõe o sistema de signo do ritual. Daí, iniciamos uma análise acerca dos mecanismos que agenciam o espaço da Mussuca à prática devocional, examinando a cultura popular como uma tessitura de elementos que não falam por si, e nada significam individualmente, mas que adquirem ampla representação na conjuntura do evento; segundo Arantes (2006), o significado é função do contexto de ocorrência desdobrado através das relações sociais entre atores, memória, esquecimento, discursos sobre o cotidiano e sobre o imaginário em notas e/ou observações sobre aquilo que se estrutura como comum. Observar, portanto, a Dança de São Gonçalo de Amarante é observar simultaneamente o enredo determinado pela tradição católica/popular e as histórias sobre o espaço em que a manifestação se desdobra; o lugar prenhe de metáforas e informações sobre a comunidade insere a pesquisa, pois, em campo amplo de possibilidades articulando questões acerca do pertencimento através de conteúdos relacionados a formação do povoado: a territorialidade, a etnicidade e a convivialidade. Entretanto, ao examinarmos o espaço da Mussuca, o que pretendemos não é identificar aspectos materiais do povoado ou identificar as formas geométricas, mas relacionar ambiências, objetos e ações, revelando aspectos significantes que nos aproximem daquilo que Milton Santos (2006) define como espaço híbrido: geografias afetivas de objetos e ações, materialidades e eventos. O espaço, pois, como sistema de valores coopera no empreendimento de análise e interpretação das situações do ritual dentro do contexto de fé e(m) festa em que está inserido tendo em vista que sua dinâmica estrutura a síntese entre os conteúdos sociais e as formas espaciais; afinal: É a sociedade, isto é, o homem, que anima as formas espaciais, atribuindolhes um conteúdo, uma vida. Só a vida é passível desse processo infinito que 138 vai do passado ao futuro, só ela tem o poder de tudo transformar amplamente. Tudo o que não retira sua significação desse comércio com o homem, é incapaz de um movimento próprio, não pode participar de nenhum movimento contraditório, de nenhuma dialética (SANTOS, 2006: 70). Assim, a vida como espaço híbrido de ações e materialidades, compósito de plasticidades e gestualidades, habilita-nos a apreender a partir da noção de campo, adotada pela investigação, as representações do espaço como espaços de representação, aproximando-nos o olhar daquilo que se estabelece como ponte sígnica entre aquilo que é visível e o que se dá a ver de modo invisível. A radiação desta formas de organização de saber-fazer vinculadas ao espaço sugere a constituição daquilo que apreendemos como entorno vivido: lugar de trocas, matriz poética da cognição, sentido de afetos. A representação sensível se constrói, por isso, de maneira que a consciência pelo lugar se superponha a consciência no lugar, efetivando em presença as relações temporalizadas entre passado, presente e futuro; desta maneira, examinamos o espaço como campo de forças em interação capazes de significar as realizações humanas através de seus arcabouços, atributos e caracteres: dinâmicos, não normativos e transitórios, porquanto, em formação. A partir destas relações, investigamos o campo de atuação entre os parâmetros correspondentes ao domínio do profano e do sagrado, analisando aspectos promotores da devoção e diversão na experiência do espaço-tempo como composição da religiosidade, ou seja, conjunto de símbolos capazes de elevar os homens à transcendência e sublimar intimidades, espacialidades e temporalidades. Aí, as motivações da ação ritual examinadas no contexto religioso revelam-se como forças morais auxiliando-nos a apreender o trânsito estabelecido entre sagrado e profano na estrutura daquilo que reconhecemos como objetos, atos, acontecimentos, qualidades, etc., não como propriedades de tais coisas ou representações, mas como fenômenos a elas atribuídos pela atuação dos sujeitos em coletividade. Por isso, Durkheim (2008: 415) nos revela que “a única maneira de renovar as representações coletivas que se referem aos seres sagrados é retemperá-los na própria fonte da vida religiosa, ou seja, nos grupos reunidos”, porquanto é no sentido comum, agenciado pela sociabilidade, que o caráter sagrado impregna os objetos de culto e adoração; o sagrado não está em suas constituições naturais, mas lhes é acrescentado pela crença na consciência partilhada. Os níveis do sagrado e do profano como campos de significação da fé e da festa engendram espaços de comunicabilidade, geradores de passagem, estados híbridos e confusos que articulam acentos expressivos distintos ao rito elaborado no povoado 139 Mussuca; o limiar, neste sentido, examinado como a imagem da ponte ou da porta estreita, abundante nas estruturas míticas que conjugam devoção e diversão, coopera na formulação do entendimento de que o cenário “entre” é abstração sígnica, representativa daquilo que Aumont (2009) identifica não como uma presença direta do mundo visível, mas a presença da forma, dos princípios que formulam visibilidade à arte e à religião em união. A análise deste princípio de visibilidade possibilita, aqui, que estudemos e examinemos os suportes, mecanismos e dispositivos que a partir da idéia do limiar atualizam os desdobramentos visíveis na Dança de São Gonçalo de Amarante, como a festividade, a fantasia, o jogo, a esperança, o humor, a fé, fomentando encontros equilibrados entre o riso e a graça, a folia e a oração, a brincadeira e a procissão. Outrossim, discutimos o lugar da metáfora, como conceito-chave à percepção de determinados aspectos das manifestações expressivas analisando, então, conteúdos sobre a formação do ritual, do drama, e sobre o lugar do corpo na semântica da celebração. Um corpo composto de matéria especial cujas propriedades habilitam-no a se combinar de modo tão estrito ao espaço do mito e do rito que tem a potência de ser no espaço e de devir espaço estruturando texturas e confecções sobre a própria crença nos arranjos que edificam a potência de expressão dos sujeitos ativos e envolvidos ao ritual. Este corpo que se relaciona com o passado, o futuro e se estrutura como presença da devoção em aliança com a diversão é, pois, a essência daquilo que designamos como vida, a desenvolver ambiências de imanência entre a consciência e o espaço, a memória e o desejo relacionando suas esferas simbólicas e valências sígnicas. Este corpo do ator ritual aponta que, em verdade, existem tênues limites entre vida e arte, cotidiano e representação, apresentando-nos, desta maneira, a natureza performativa em que os homens estão a todo instante inseridos: campo de experimentação estética do espaço da vida, evocação sugestiva de sentidos, corpo de consciência do corpo. Estas ações performativas, segundo Glusberg (2009), operam não necessariamente com o corpo, mas com o discurso do corpo, onde a ilusão de um corpo desprovido de significados se desvanece, por completo, habilitando-nos a investigar no corpo, através de experiências, afetos e práticas, as histórias compartilhadas. A gestualidade em estado de brincadeira, portanto, como expressão da dança é investigada a partir deste vínculo entre corpo-ritual e prática social, onde cantos, versos e dramas desenham mapas de religiosidade que aproximam as trocas entre os homens e 140 o sagrado, através de um conjunto cartográfico de relações identificadas por Brandão (1981) como estáveis (fidelidade, amor, devoção, proteção, fé) e atuais (entendidas como atualizadas durante a reza e a dança: os gestos, os cânticos, as histórias). A alegria popular revelada em cada ato de consagração caracteriza os aspectos da hibridação dos valores sagrado e profano no quadro de representação cultural que estrutura a Dança de São Gonçalo de Amarante na Mussuca; cada particularidade, cada especificidade, cada peculiaridade estabelece-se aqui como arranjo simbólico a comunicar aquilo que os homens através da participação ativa no domínio da religiosidade, da territorialidade, da memória e do esquecimento edificam como construção acerca deles mesmos. A análise, pois, aqui verificada faz nos crer que a Dança de São Gonçalo de Amarante é um conjunto de histórias, narrativas, ações sobrepostas umas às outras ao mesmo tempo; sua organização não se dá de forma hierarquizada, do artístico ao religioso, do popular ao performativo, do profano ao sagrado, mas elíptica de modo que as suas camadas compositoras se interpenetrem continuamente estruturando aquilo que Matos (1998) define, em nível de entrecruzamentos temporais, como “alegorias de reminiscências”. A guisa de conclusão, portanto, apreendemos a dança como a ressignificação da vida onde a sobreposição, anunciando a validade da crença em todas as coisas, aproxima os homens do santo, através da incorporação de seus atributos, da união, da solidariedade e do inconsciente a revelar o valor da religião no cotidiano, expressando através da plasticidade e da expressividade do ritual, as interações entre o real e o irreal, apresentando a partir dos fenômenos sensíveis a dimensão e valor da experiência compartilhada em estâncias comuns de representação simbólica e, por fim, mostrando que o santo está presente (pois seus fiéis lhe são caros) a cada encontro entre a devoção e a diversão em atos de fé e(m) festa. 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Rubem. O que é Religião. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. ARANTES, Antonio Augusto. O Que é Cultura Popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. ASLAN, Odette. O Ator no Século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994. AUMONT, Jacques. A Imagem. 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