Interface- Revista da Faculdade de Educao e Letras - NUSC
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Interface- Revista da Faculdade de Educação e Letras/ Mestrado em Nova Iguaçu Julho/dez de 2001 Educação. Unig- Cinema e Sociedade: Glauber Rocha , “o profeta alado” Ana Lucia Lucas Martins * Resumo: . O artigo trata da relação entre trajetória e obra do cineasta Glauber Rocha, sua contribuição para um pensamento cinematográfico e de uma herança audiovisual que constitui um repertório de imagens para pensar o Brasil. Palavras –chave: cultura brasileira; cinema; sociedade A imagem do “viajante”, do “nômade” é evocada com frequência para se referir ao cineasta Glauber Rocha. Brasil (interiores), Paris, Cuba, América Latina, Itália, Praga, África, Espanha, Egito, Estados Unidos, Portugal, etc, não são lugares que o cineasta percorreu por inadvertido turismo. São roteiros particulares de viagem que se incorporaram em sua obra. O inquieto jovem baiano, nascido em 1939 em Vitória da Conquista, vai construir uma trajetória em que vida e obra estão radicalmente indissociadas. Muito jovem Glauber Rocha foi formando uma cultura literária (lia Jorge Amado, Érico Veríssimo, Poe, Kipling, Dickens e Stevenson); filosófica (Nietzsche e Schopenhauer) e cinematográfica: aos 13 anos participava de cineclubes e escrevia críticas de filmes na Bahia. Os filmes realizados por Glauber Rocha exprime, ao seu jeito, os lugares, as pessoas, os tempos, a vida. “Timido, descontraído, boçal, ingênuo, luminoso em qualquer circunstância nosso filme está nos contando, nos repetindo, nos interpretando”1 . O comentário do crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes constituiu uma revelação de sua própria descoberta * Socióloga, Doutora em Ciências Humanas pela UFRJ, com a tese “Representações de Pobreza Urbana no Cinema Brasileiro”, autora de Livres Acampamentos da Miséria, Ed. Obra Aberta, Rio de Janeiro, 1993. Atualmente professora do Mestrado em Educação da Universidade Iguaçu, UNIG onde trabalha as disciplinas Cultura Brasileira e Imagem e Educação. 1 Salles Gomes, P.E. Um intelectual na linha de frente. Rio de Janeiro. Embrafilme, 1986. do cinema nacional, incluindo-se como parte de uma “intelligentsia” que durante décadas, ignorou a filmografia brasileira. O desinteresse pelo cinema como parte da cultura havia deixado uma herança um pouco desoladora para jovens cineastas que floresciam no Brasil no final dos anos 50. No início dos anos 60, o estreante Glauber Rocha assinalava a ausência de um pensamento cinematográfico que pudesse servir de referência salvo o que se encontrava em filmes de Humberto Mauro e Mário Peixoto, mesmo assim pouco conhecidos para sua geração. O baixo nível da crítica e os filmes “colonizados” teriam sido a herança que encontraram. Glauber Rocha foi um dos iniciadores de um movimento de renovação do cinema brasileiro com mudanças na concepção e na prática cinematográfica no Brasil. O cineasta pertenceu a uma geração que partilhava do projeto coletivo de construir um olhar descolonizado, fazendo filmes cuja temática e linguagem pudessem ser legítima expressão da realidade brasileira, um país pobre, subdesenvolvido e em busca de sua própria identidade. Em suma, sua geração pretendeu construir um cinema que pudesse estar em simbiose com a cultura nacional. A filmografia de Glauber Rocha inicia-se com a busca experimental no curtametragem Pátio (1959), filme influenciado pela experiência do movimento concretista brasileiro e termina em A Idade da Terra (1980), último trabalho que realiza antes de morrer em agosto de 1981. Do “formalismo” de Pátio ao “antiformalismo” de A Idade da Terra a obra de Glauber Rocha exprimiu com força avassaladora seu tempo. Em Barravento, primeiro longametragem, de 1961, Glauber Rocha expõe sua convicção e entusiasmo no cinema como um instrumento de denúncia social, revolucionário e de transformação de consciências. Na carta enviada para Alfredo Guevara o cineasta comunica sua idéia sobre o filme: “versa sobre problema social dos negros pescadores do litoral da Bahia que vivem uma situação terrível de exploração” e afirma que lhe interessava “ver até que ponto um filme pode contribuir para o esclarecimento de questões inerente ao homem e à sociedade”. 2 Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro/ Antônio das Mortes (1969), são filmes de longametragem que se realizam em momentos de intenso engajamento na vida sociocultural e política brasileira. Filmado em 1963, antes do golpe militar, Deus e o Diabo trata do Nordeste rural, temática privilegiada no contexto da época pelo seu 2 Carta de 27/12/1960 publicada em Glauber Rocha, cartas ao mundo(org).O Bentes, São Paulo, Ed.,Companhia da Letra 1997. significado político e social. Os personagens e locações de Deus e o Diabo iriam compor um retrato do Brasil que era partilhado também por outros jovens cineastas que viriam constituir o cinema novo. É o caso de Rio 40 Graus(1955), Rio Zona Norte(1957), Vidas Sêcas (1963) de Nélson Pereira dos Santos; O Grande Momento (1959) de Roberto Santos; Cinco Vezes Favela (1962) composto por cinco curtametragens (Um Favelado de Marcos Faria, Escola de Samba Alegria de Viver de Cacá Diégues, Zé da Cachorra de Miguel Borges, Couro de Gato de Joaquim Pedro de Andrade e Pedreira de São Diogo de Léon Hirszman); O Sol sob a Lama (1962) de Alex Viany; A Grande Feira (1962) de Roberto Pires ; Bahia de Todos os Santos (1961) de Trigueirinho Neto, entre outros. Ambientados no campo ou na cidade os filmes vão realizar uma abordagem crítica de problemas nacionais. Glauber Rocha na “Estética da Fome” publicado em 1965, sintetiza o que significou essas primeiras experiências cinematográficas da qual ele foi um dos mais expressivos protagonistas e líderes: “O cinema novo descreveu, poetizou, discursou, analisou, exercitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujos, feios, descarnados, morando em casas feias, sujas, escuras” . Para o cineasta seria na representação deste “miserabilismo” que teria estado a grandeza dos filmes conseguindo “comunicar” ao mundo a miséria do país, não mais visto como elemento “exótico” , mas a miséria como um “sintoma trágico”. As realizações de Terra em Transe (1967) e do seu primeiro filme a cor O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968/69) inscrevem-se num contexto sóciocultural e político bastante distinto dos anteriores. Há ainda dois curtas de encomenda Amazonas, Amazonas e Maranhão 66, ambos de 1966. O golpe militar de 1964 gerou uma adversidade política que trouxe frustração das expectativas revolucionárias do início da década de 60. Em Terra em Transe já não é o povo o protagonista mas os intelectuais. O problema político que encena tem como personagem um poeta e político Paulo Martins que dilacera-se no conflito entre a poesia e a política e morre sem conseguir resolver as contradições de Eldorado, país latinoamericano do qual participara intensamente das lutas políticas. Em relação ao O Dragão da Maldade Glauber Rocha afirma que este filme teria sido o seu “ajuste de contas com a cultura cinematográfica (...) depois da tempestade, eu fiz um filme que foi um filme popular, nacionalista, por excelência, no sentido mais nobre da palavra”.3 3 Rocha, Glauber. O Século do Cinema. “A passagem das mitologias” ( João Lopes). Rio de Janeiro. Ed. Alhambra, 1985. Quando Glauber Rocha realiza o filme muitas mudanças haviam transcorrido em relação aos temas e a linguagem de diretores vinculados à geração que havia transformado a prática cinematográfica no Brasil. A importante filmografia realizada pela geração de cineastas do cinema novo suscitou várias polêmicas com significativa repercussão entre intelectuais, artistas e um público de “esquerda” que consumia os produtos da indústria cultural em acentuado crescimento. Era intenso o debate em que avaliava-se as consequências políticas da falta de diálogo dos filmes com um público mais amplo, os problemas econômicos decorrentes do baixo número de expectadores, a necessidade de mudanças na narrativa, o recurso da película em cor. O “ajuste de contas” de que fala Glauber Rocha parece ser, em parte, tanto a opção por um cinema espetáculo, comercial, possível de atingir um grande público quanto uma nova leitura do mundo rural. Segundo um crítico brasileiro, o filme articula reflexão política e filme de aventuras encenando conflitos na zona rural do nordeste : (...) a iconografia de cangaceiros, beatos e jagunços compõe um espetáculo de cores alheio à estética da fome, mais atento à coreografia da violência no cinema internacional e à estética do kitsch posta em cena pelo tropicalismo”4. Paralelo à realização do O Dragão da Maldade Glauber Rocha filma, em 1968, o longametragem experimental Câncer, em 16 mm, preto e branco, um ensaio “amargo” em que tematiza a violência psicológica, racial e sexual. O que se segue na filmografia de Glauber Rocha é um período de filmes realizados fora do Brasil. A conjuntura política interna inviabilizara a permanência dele no país e de muitos da sua geração. África, Europa, Cuba participam da produção de seus três próximos longametragens. O Leão de Sete Cabeças é uma co-produção CongoItália de 1970. Realizado no Congo, Glauber Rocha define o filme como um “documento sobre um happening político dentro da África” 5 . É uma “convocação à revolução tricontinental”, denúncia do colonialismo. Com o filme o cineasta afirma ter tido a intenção de ter uma “expressividade didática e informativa”. Imediatamente Glauber Rocha realiza, em Barcelona, Cabeças Cortadas, (1970) numa co-produção Espanha/Brasil. Se em O Leão havia a tentativa de “explicar a história de uma ponto de vista materialista” em Cabeças seria a ruptura radical com aquela perspectiva: “é um filme feito no terreno do delírio, da interioridade, no território de minha própria loucura. O filme não teve roteiro, é como se fosse a filmagem de um sonho(...) se Deus e o Diabo, Terra em Transe e todos esses filmes são materialização de sonhos culturais, Cabeças Cortadas a matéria é o 4 5 Xavier, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro. Ed. Brasiliense, 1993. Rocha, G. op cit. inconsciente puro, a fantasmagoria cultural(...) ”6. História do Brasil, um trabalho de montagem, em co-direção com Marcos Medeiros, combina imagens de filmes nacionais documentários, de ficção e fotos em que pretendia sintetizar toda a história do país. Glauber Rocha parece manifestar desagrado com o filme que lhe ocupara por tanto tempo (foi realizado entre Cuba e Itália de 1971 a 1973 e finalizado em Paris em 1974), e teria servido para “satisfazer necessidades políticas”. Em seguida, em 1975, o cineasta ainda filma na Itália, produção italiana, o longa experimental, brasileiro, Claro . Após cinco anos de exílio, Glauber Rocha retorna ao Brasil e realiza dois documentários um curta e um médiametragem, ambos em 1977, sobre personagens da cultura brasileira. Di Cavalcanti filmado durante o velório do amigo morto, celebra o pintor Emiliano Di Cavalcanti e Jorjamado no Cinema trata da trajetória do escritor e de suas obras adaptadas para o cinema. Em 1980, o cineasta encerra sua trajetória com o polêmico a Idade da Terra. Sobre este filme ele o resume numa entrevista em Sintra, Portugal, quatro meses antes de sua morte: “com o filme a Idade da Terra , eu já estava mais ligado aos rituais primitivos, quer dizer ao teatro do irracional que é o teatro popular, mas já não no sentido de documento histórico, político ou etnográfico, mas no sentido órfico, quer dizer, no sentido de pegar naquela matéria e transformá-la numa matéria audiovisual. Essa matéria estrutura um discurso que não se define, porque já não existe aquela crença - é um problema filosófico - na racionalidade da história, ou seja numa dramaturgia que leve a resultados catárticos, como se arte fosse uma metáfora que com a revolução tudo resolvesse . A Idade da Terra reflete essa luta entre a história e a fantasia solta (...)”7 . * Esse brevíssimo inventário das obras de Glauber Rocha faz pensar que passados 40 anos do seu primeiro filme O Pátio, o legado do cineasta, “um novo mundo audiovisual”, continua a nos interpelar, em particular no que diz respeito a uma sociedade desigual, injusta uma espécie de “testemunho da violência”. A trajetória de Glauber Rocha parece revelar uma individualidade, ou melhor uma biografia ameaçada pela incorporação exasperada de um determinado processo histórico, social e político que resultou em rupturas políticas, exílios, construção de novos mapas cognitivos. Até o fim o cineasta buscou nos filmes um meio de elucidar “questões inerentes ao homem e à sociedade”. 6 7 Rocha, G. op cit. Rocha, Glauber. op.cit Glauber Rocha, o “profeta alado” como o definiu o crítico e amigo Paulo Emílio Salles Gomes, foi e é “uma de nossas forças e o Brasil a sua fragilidade”. Cinema and Society: Glauber Rocha “the winghed prophet” Ana Lucia Lucas Martins ABSTRACT: In this essay is examined the Glauber Rocha’s trajectory and films to show his contribution to the brazilien history and cinematographic thought. Keys-word: brasilien culture; cinema; society Referências Bibliográficas: I. BENTES, I. (org.) Glauber Rocha, cartas ao mundo. São Paulo. Ed. Companhia das Letras, 1997. II. LUCAS MARTINS, Ana L. “Representações de Pobreza Urbana no Cinema Brasileiro”. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 1999. III. SALLES GOMES, P.E. Um intelectual na linha de frente . Rio de Janeiro. Embrafilme, 1986 IV. ROCHA, G. “Uma Estética da Fome.”. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira. Ano 1, n.3, julho, 1965. . V. ROCHA, G. O Século do Cinema. “A passagem das mitologias” ( João Lopes). Rio de Janeiro. Ed. Alhambra, 1985. - XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro. Ed. Brasiliense, 1993.