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GT 9
Museu, Patrimônio e Informação
O GT 9 aborda Análise das relações entre o
Museu (fenômeno cultural), o Patrimônio
(valor simbólico) e a Informação (processo),
sob múltiplas perspectivas teóricas e práticas
de análise. Museu, patrimônio e informação:
interações e representações. Patrimônio musealizado: aspectos informacionais e comunicacionais.
GT92750
SUMÁRIO
A TRAJETÓRIA DA FORMAÇÃO DA COLEÇÃO DE OBJETOS DE CIÊNCIA &
TECNOLOGIA DO OBSERVATÓRIO DO VALONGO
Maria Alice Ciocca de Oliveira, Marcus Granato.........................................................................2753
INTERATIVIDADE EM MUSEUS: UM ESTUDO CRÍTICO DO CONCEITO DE
INTERATIVIDADE DE JORGE WAGENSBERG
Luisa Maria Gomes de Mattos Rocha............................................................................................2768
PRESERVAÇÃO DE CIANÓTIPOS DO FUNDO OBSERVATÓRIO NACIONAL
DEPOSITADOS NO ARQUIVO DE HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS DO MAST
Ana Paula Corrêa de Carvalho, Marcus Granato, Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda.............2785
PATRIMÔNIO, A CIDADE E SUAS CAMADAS: A FORÇA DA ARTE NA CONSTRUÇÃO DOS
ESPAÇOS
Carlos Eduardo Ribeiro Silveira ...................................................................................................2803
PAJELANÇA MUSEALIZADA: O MUSEU DO MARAJÓ E O IMAGINÁRIO MARAJOARA
Luiz Carlos Borges, Karla Cristina Damasceno de Oliveira.........................................................2818
CULTURA MATERIAL, COLEÇÃO E MUSEU: NOTAS INTRODUTÓRIAS A BIOGRAFIA
CULTURAL DA COLEÇÃO DE PRANCHAS DE MANOEL PASTANA DO MUSEU DE ARTE
CONTEMPORÂNEA CASA DAS ONZE JANELAS EM BELÉM DO PARÁ
Rosangela Marques Britto..............................................................................................................2834
A HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA SOCIAL E A POLÍTICA DE PATRIMÔNIO CIENTÍFICO
NO BRASIL EM MEADOS DO SÉCULO XX
Priscila Faulhaber..........................................................................................................................2852
O JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO: INSTITUIÇÃO EMBLEMÁTICA NO
PANORAMA DA CIÊNCIA E DA MUSEOLOGIA BRASILEIRAS
Lilian Mariela Suescun, Tereza Cristina Scheiner.........................................................................2867
NAVIO-MUSEU BAURU E INFORMAÇÃO: TRAJETÓRIA HISTÓRICA E MUSEALIZAÇÃO
SOB O FOCO DA DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA
Roseane Silva Novaes, Diana Farjalla Correia Lima....................................................................2883
MUSEU: NOVOS ASPECTOS INFORMACIONAIS, COMUNICACIONAIS E GERENCIAIS
Rosane Maria Rocha de Carvalho..................................................................................................2901
INFORMAÇÃO ESPECIAL NO MUSEU – ACESSIBILIDADE: A INCLUSÃO SOCIAL DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA VISUAL
Ana Fátima Berquó Berquó, Diana Farjalla Correia Lima...........................................................2917
MUSEUS E MUSEOLOGIA: NOVAS SOCIEDADES, NOVAS TECNOLOGIAS
Monique;Tereza Magaldi;Scheiner.................................................................................................2935
GT92751
MUSEUS E PESSOAS NO MUSEU DA PESSOA: PENSANDO O VIRTUAL COMO SOCIAL.
Monique;Tereza;Bruno Magaldi:Scheiner:Soares.........................................................................2954
O PAPEL ESTRATÉGICO DAS COLEÇÕES CIENTÍFICAS NA CONSTRUÇÃO DA
MEMÓRIA NACIONAL
Marcio Ferreira Rangel..................................................................................................................2970
A JANGADA DA MEDUSA NAUFRAGA NA COSTA CHILENA: FRONTEIRAS FÍSICAS E
CONCEITUAIS NA LEITURA DE UMA OBRA DE ARTE CONTEMPORÂNEA
Nilson Alves Moraes.......................................................................................................................2982
CURADORIA E AÇÃO INTERDISCIPLINAR EM MUSEUS: A DIMENSÃO
COMUNICACIONAL E INFORMACIONAL DE EXPOSIÇÕES
Julia Nolasco Moraes.....................................................................................................................2999
A INFORMAÇÃO PATRIMONIAL E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DAS
ESTRATÉGIAS DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DO IPHAN E IPHAEP
Danielle Alves Oliveira, Carlos Xavier Azevedo Netto..................................................................3015
GT92752
COMUNICAÇÃO ORAL
A TRAJETÓRIA DA FORMAÇÃO DA COLEÇÃO
DE OBJETOS DE CIÊNCIA & TECNOLOGIA DO
OBSERVATÓRIO DO VALONGO
Maria Alice Ciocca de Oliveira, Marcus Granato
Resumo: Este trabalho apresenta a trajetória da formação da Coleção de Objetos de C&T do
Observatório do Valongo. Para isso, inicialmente, buscou-se a sua caracterização como patrimônio da
C&T do Brasil, situando-a como uma coleção histórica de ensino e pesquisa, no âmbito das coleções
universitárias. Em seguida, foi construída a trajetória da formação da coleção, através do levantamento
de informações sobre os objetos que foram usados nas aulas práticas das disciplinas relacionadas à
Astronomia, Geodésia e Topografia, ministradas no Observatório Astronômico da Escola Politécnica
do Rio de Janeiro, nome anterior do Observatório, nas aulas práticas e nas pesquisas realizadas no
Curso de Graduação de Astronomia, no Observatório do Valongo, unidade da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada a partir do final do século XIX, tendo como ponto de
partida a fundação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1874, terminando nos primeiros anos
do século XXI, quando a Coleção de Objetos de C&T do OV foi reconhecida como representante
da memória institucional. Destacam-se aqueles momentos singulares identificados na trajetória
construída: o momento inicial, quando foram adquiridos os primeiros objetos, antes da fundação do
próprio Observatório, a partir da criação da Escola Politécnica (1874); a fundação do Observatório
da Escola Politécnica (05/07/1881); a transferência do Observatório do Morro de Santo Antonio
para a Chácara do Valongo (no Morro da Conceição - 1924 e 1926); o período de pouca utilização
Observatório (1936-1957); a criação do Curso de Astronomia (1958); a aquisição do conjunto de
instrumentos pelo acordo do MEC com países do leste europeu (1970); a mudança de olhar para os
instrumentos, marcada pelo desenvolvimento de projetos de preservação da memória institucional;
a formação da coleção, a partir das atividades realizadas em parceria com o Museu de Astronomia e
Ciências Afins.
Palavras-chave: Museologia; Patrimônio científico. Coleções. Observatório do Valongo.
Abstract: This paper presents the process by which a collection of science and technology (S&T)
objects was formed at Valongo Observatory. First, the collection was characterized as being part
of Brazil’s S&T heritage, and more particularly as a historical educational and research collection,
within the broader context of university collections. Next, an understanding of how the collection
was formed was built up by gathering information on the objects used in the practical lessons from
the Astronomy, Geodesy and Topography disciplines given at Observatório Astronômico da Escola
Politécnica do Rio de Janeiro, the former name of Observatório do Valongo, and in the practical
lessons and research undertaken as part of the undergraduate course in Astronomy at the same place
when it became part of the Federal University of Rio de Janeiro. The time frame for the research
starts at the end of the 1800’s with the founding of Escola Politécnica do Rio de Janeiro in 1874,
and goes until the first decade of the 21st century, when the collection of S&T objects from Valongo
Observatory was recognized as representing its institutional memory. Key moments in the course of
GT92753
the collection are highlighted: the starting point, when the first objects were acquired even before
the observatory was founded after the creation of Escola Politécnica (1874); the founding of the
observatory (07/05/1881); its transfer from Santo Antonio hill to Valongo mansion (on Conceição
hill -1924/1926); the period during which the observatory was little used (1936-1957); the creation of
the astronomy course (1958); the acquisition of the set of instruments by an agreement between the
Ministry of Education and Culture and Eastern European countries (1970’s); the shift in the way the
instruments are viewed, with the development of projects to preserve institutional memory (1996);
and the formation of the collection through activities undertaken in partnership with MAST.
Key-words: Museology, scientific heritage, collections, Observatório do Valongo.
INTRODUÇÃO
A Coleção de Objetos de Ciência e Tecnologia (C&T) do Observatório do Valongo (OV) é uma
coleção histórica de ensino e pesquisa, constituída por instrumentos, aparatos e acessórios científicos
fabricados nos séculos XIX e XX. Foram utilizados nas aulas práticas no ensino da astronomia, geodésia
e topografia no Observatório do Valongo, Instituto da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, até
a década de 1950, era denominado Observatório Astronômico da Escola Politécnica. Este observatório
foi fundado em 1881, com a principal missão de ser utilizado para o ensino da Astronomia e da Geodésia
dos alunos da Escola. Ficava inicialmente localizado no Morro de Santo Antonio, até ser transferido, na
década de 1920, para a Chácara do Valongo, no Morro da Conceição, ambos localizados no centro da
cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
A Coleção é composta por cerca de 300 objetos e abrange as áreas de Astronomia, Geodésia,
Topografia, Química e Fotografia. Entre os seus objetos encontram-se lunetas, pêndulas, comparador e
medidor de placas siderais, cronógrafos e muitos acessórios como objetivas, oculares e filtros. Forma
um conjunto que se divide em dois grupos, de acordo com a sua atuação na história da instituição.
Um grupo é formado por objetos fabricados no final do século XIX e início do século XX.
Foram, em sua maioria, importados da Europa, com poucas, porém importantes, exceções de objetos
fabricados no Brasil, como a luneta equatorial fabricada pela Oficina José Hermida Pazos.
O outro grupo é formado por objetos fabricados após a década de 1950. São, na sua maioria,
objetos fabricados pela firma Carl Zeiss, adquiridos por um convênio entre o Brasil e as Repúblicas
Democrática Alemã e Popular da Hungria (BRASIL, 1969), que ficou conhecido como Acordo MEC/
Leste Europeu.1 Esses objetos estão expostos em diferentes locais dentro do Observatório, como o hall
de entrada, onde estão, entre outros, a luneta meridiana Julius Wanschaff e uma pêndula astronômica
Peyer Favarger e na cúpula do telescópio T. Cooke & Sons.
Outros objetos da coleção estão expostos no térreo do prédio da luneta Pazos, em uma vitrine
1 BRASIL. Decreto-lei nº 861 de 11 de setembro de 1969. Autoriza a contratação de empréstimos externos, no valor global
equivalente a U$$30.000.000,00 em moeda-convênio, para aquisição de equipamentos e materiais de ensino na República Democrática
Alemã e República Popular da Hungria, e dá outras providências. Senado Federal. Portal Legislação. Disponível em: http://www6.
senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=94452. Acesso em: 30 de mai. 2010.
GT92754
ao redor do pilar que sustenta a luneta, em sua maioria objetos que pertenceram ao Observatório
Astronômico da Escola Politécnica. A apresentação dos objetos em vitrines, ou fora delas, segue
os procedimentos museológicos relacionados à exposição de acervos. No entanto, em função da
instituição não estar aberta ao público para visitação de forma continuada não se enquadra ainda como
instituição museológica, apesar de contar com uma coleção que está organizada segundo os preceitos
da Museologia.
A busca das informações apontadas pelas marcas dos objetos da Coleção de C&T do OV foi
orientada pela biografia cultural das coisas (KOPYTOFF, 2008; ALBERTI, 2005) e pela proposta,
apresentada por Jim Bennett, de uso da abordagem prosopográfica no estudo sobre coleções, em
que o objetivo é estudá-la como um conjunto, construindo uma biografia coletiva e não dos objetos
individualmente. O estudo teve por base a trajetória do percurso pelos quais os objetos passaram,
levantado através de um conjunto de questões padronizadas, sobre a origem, o uso, a produção e o
destino dos objetos da coleção.
As respostas foram dadas através das informações obtidas nas produções bibliográficas,
para a fundamentação teórica conceitual e nos documentos arquivísticos, para o levantamento dos
fundamentos contextuais sobre a aquisição e uso dos objetos no ensino da Astronomia no Rio de Janeiro.
Procurou-se utilizar os princípios da documentação museológica para alcançar o resultado pretendido
de traçar a trajetória desse conjunto de artefatos. Esse processo constituiu a base para determinação de
características formais e contextuais dos objetos
Os documentos consultados foram os de caráter administrativo, institucional e didático, entre eles,
atas, relatórios, ofícios, regulamentos, artigos científicos, fotos, programas e currículo das disciplinas,
relativos à criação e à administração da Escola Politécnica, da Faculdade Nacional de Filosofia, da
Escola Nacional de Engenharia e do Observatório do Valongo. Foram pesquisados no Arquivo
Nacional, no Museu da Escola Politécnica; na Biblioteca do Observatório do Valongo; no Protocolo
Histórico da Escola Politécnica, no Arquivo Geral da Cidade, na Divisão Patrimonial da UFRJ e em
arquivos eletrônicos, onde foram localizados cerca de mil documentos com informações relevantes
para a pesquisa, de um conjunto inicial de milhares de documentos ligados à Escola Politécnica e ao
Observatório.
As informações encontradas nesses documentos foram muito importantes para o conhecimento
sobre como os objetos foram adquiridos ou para que foram usados, inclusive daqueles que não se
tinha nenhum dado. A semelhança dos tipos de objetos citados nos documentos com os que são parte
da coleção contribuiu para o conhecimento sobre seu possível uso, como os acessórios ou objetos que
eram partes de um conjunto.
A análise das notas de compra, relatórios de pesquisa, artigos e trabalhos científicos, ofícios
administrativos, currículos, processos de compra, entre outros, esclareceu o uso desses objetos, como as
máquinas fotográficas, as vidrarias de laboratório, os chassis de placas fotográficas, objetos fotográficos
e outras peças importantes no desenvolvimento das atividades de ensino e pesquisa no Observatório,
GT92755
como os instrumentos citados nas planilhas usadas nas aulas práticas do Observatório, no Morro de
Santo Antonio, na década de 1920, teodolito, cronômetro, barômetro e termômetro.
O conhecimento dos projetos desenvolvidos nas décadas de 1960 e 1970, sobre ocultações de
estrelas e manchas solares, esclareceu o uso dos acessórios presentes na coleção como oculares e filtros,
usados em fotos lunares e solares. A citação de tipos de objetos nos temas apresentados nos currículos e
os tópicos dos trabalhos desenvolvidos nas aulas também foram fundamentais para o conhecimento do
uso desses objetos, os inventários e listas de grupos dos objetos de alguns períodos contribuíram para a
compreensão das presenças e perdas na coleção. Outros dados interessantes foram conhecidos através
dos documentos que revelaram a dinâmica das atividades da instituição. Informações sobre aquisições,
transferência, abandono, desgaste, modernizações e sucateamentos. Aos poucos, durante o processo de
pesquisa, cada objeto recebia uma explicação e se incorporava como elemento real da Coleção.
Outra fonte importante de dados foram as marcas encontradas nos próprios objetos, algumas
vezes determinantes para a continuidade da pesquisa devido a dificuldade de identificação dos objetos,
uma característica nesse tipo de coleção. Dessa forma, datas, nomes de fabricantes, carimbos e placas
gravadas foram essenciais para a identificação e esclarecimento da importância dos objetos na coleção,
como a data de 1910, gravada na equatorial T. Cooke, a de 1880 gravada na equatorial Pazos ou
o carimbo da Comissão Científica de Exploração, realizada no Ceará, entre 1859 e 18612, em um
calibrador de nível de bolha.
Os dados coletados formaram um quadro que apresentou os aspectos inerentes ao próprio objeto
e ao seu uso no ensino e na pesquisa no Observatório, assim como, informações sobre as fontes de
referência dos dados apresentados. Após analisados e inter-relacionados, esse dados demonstraram os
percursos e os traços comuns aos elementos do grupo, estabelecendo características que contribuíram
para um conhecimento mais completo da coleção que permitiu a construção da trajetória da formação
desse conjunto de artefatos. Neste trabalho, serão apresentados somente alguns desses fatos que
traduzem parte dessa trajetória.
2 A TRAJETÓRIA DA FORMAÇÃO DA COLEÇÃO NO MORRO DE SANTO ANTONIO
A seguir serão apresentadas informações referentes à trajetória do conjunto de objetos do
Observatório no período em que esteve situado no Morro de Santo Antonio, no centro da cidade
do Rio de Janeiro. Essa fase constitui o momento inicial de criação dessa instituição e, aqui nesse
trabalho, foi dividida por temática com informações sobre a aquisição dos objetos e sobre o uso dos
mesmos nas aulas práticas que aconteceram naquele local.
2 A “Commissão Scientífica de Exploração”, também conhecida como Comissão Científica do Império ou Comissão das Borboletas,
foi uma expedição científica organizada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1856 e realizada entre os anos de 1859 e
1861, com o objetivo de reunir informações sobre recursos naturais e sobre as populações indígenas no interior do país, cujo pesquisador
responsável, nas áreas de Astronomia e Geografia, foi Giacomo Raja Gabaglia, matemático e professor da Academia de Marinha.
(BRAGA, 2004)
GT92756
2.1 Sobre a Aquisição de Instrumentos
A formação do conjunto instrumental que daria origem à coleção de Objetos de C&T do
Observatório remonta a um período anterior à sua fundação. Isso pode ser constatado através de
documento encaminhado ao Ministério do Império pelo diretor interino da Escola Politécnica, Ignacio
da Cunha Galvão, contendo um pedido para a compra de uma luneta e um orçamento3 de 1880. Nessa
documentação vinha a indicação para a aquisição de uma luneta que fora examinada pelo Dr. Manuel
Pereira dos Reis, correspondendo a um valor de 750$000 (setecentos e cinqüenta mil réis) para a sua
compra. É interessante citar que um recibo simples de 24 de julho de 1880 acusa a compra de uma luneta
astronômica no valor de 760$000 (setecentos e sessenta mil réis)4. A coincidência da data dessa compra
com a data gravada na luneta fabricada por José Hermida Pazos permitiu a suspeita de que a luneta seja
a luneta Pazos, uma das principais peças da coleção, por sua originalidade e uso no Observatório.
Em 1906,5 uma nota de fornecimento de Carlos Raynsford atestou a compra de um prisma e o
conserto de um nível para a luneta meridiana acotovelada, o que trouxe luz ao processo de aquisição da
luneta acotovelada Julius Wanschaff . Da mesma forma, um ofício e uma nota fiscal de 1907 elucidaram
o processo de aquisição do teodolito astronômico de Paul Gautier6 e de um cronógrafo Peyer Farvager.7
Parte da trajetória de outro instrumento da coleção, a luneta equatorial T. Cooke & Sons, também
foi esclarecida pela proximidade da data presente em alguns documentos com a data (1910) gravada no
próprio objeto, elucidando o seu processo de solicitação, compra, recebimento e instalação.
Um documento de 1907, com a solicitação de informações ao fabricante T. Cooke & Sons foi
o registro que deu início à trajetória desse objeto no Observatório. Posteriormente, no Diário Oficial e
nos Relatórios da Diretoria da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1908, foram encontrados dados
sobre a liberação de verba para a compra de um telescópio do mesmo tipo, entre 1908 e 1910, dados
sobre a construção de uma torre para a instalação de um telescópio e, ainda em 1910, dados sobre a
chegada e instalação de uma equatorial T. Cooke & Sons no Observatório.
Outros documentos, como esquemas de instalações, por exemplo, para a transmissão da hora
servindo o receptor do apparelho Morse do Chronographo, trouxeram informações sobre os tipos de
instrumentos e o seu uso, como pêndulas, cronômetros, cronógrafo, relé, barógrafo, trazendo grande
contribuição para o entendimento da formação de parte da coleção.8
3 Orçamento datado de 2 de julho de 1880, encaminhado ao Ministério do Império através do oficio n.59, de 3 de julho de 1880, da
Diretoria da Escola Politécnica. AN IE3 82 (1880).
4 Recibo manuscrito de 24 de julho de 1880 que acusa a compra de uma luneta astronômica no valor de 760$000 (setecentos e
sessenta mil réis) (AN - IE3 82).
5 Nota fiscal da Casa Raynsford. Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1906, no valor: R$185$000 (cento e oitenta e cinco Réis),
referente ao conserto de um nível e compra de um prisma (AN- IJ2 187).
6 Solicitação manuscrita pedindo $5:600$000 contos de Réis, para a compra de uma luneta de passagem e um teodolito P. Gautier;
e um Oficio de 26 de janeiro de 1907 da Escola Politécnica autorizando a compra.
7 Nota fiscal da Casa Raynsford, datada de 20 de dezembro de 1907 no valor de $457:000 (quatrocentos e cinqüenta e sete Réis)
(AN- IJ2 183).
8
Schema de Installação para a transmissão da hora servindo o receptor do apparelho Morse do Chronographo” (UFRJ/OV/
Biblioteca).
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2.2 Sobre o uso dos Instrumentos nas Aulas Práticas
A freqüência dos alunos e o conteúdo aplicado nas aulas práticas no Observatório, entre os anos
de 1896 e 1934, foram conhecidos através das informações contidas em cinco livros de registro, que
cobrem o período entre 1896 a 1934, onde eram anotados: o dia da aula e o conteúdo aplicado, assinado
pelo preparador e pelo “Lente da Cadeira”. A análise das informações trouxe esclarecimento sobre os
instrumentos da coleção e, também, sobre o uso de instrumentos similares, conforme pode se perceber
nas citações dos livros a seguir referentes aos períodos entre 1914-19169 e 1917-1918 10. “Examinouse a medir uma distância zenithal e a determinar a hora no Chronometro.” Assinado pelo Lente da
Cadeira Amoroso Costa em 20 de agosto de 1914. “Fizerão-se leitura nos micrômetros do theodolito de
Gauthier e medirão ângulos.” Assinado pelo preparador da cadeira Orozimbo Lincoln Nascimento, em
26 de agosto de 1914. “Ensinou-se a manusear mappas do céu e descreveu-se a equatorial.” Assinado
pelo preparador da cadeira Orozimbo Lincoln Nascimento, em 23 de maio de 1917. “Observou-se
numa luneta meridiana, no theodolito e na equatorial (satélites e crateras)”. Assinado pelo Lente da
Cadeira Francisco Bhering, em 02 de fevereiro de 1917.
Outros detalhes sobre o uso de instrumentos como teodolito, cronômetro, barômetro e termômetro
foram conhecidos através de algumas planilhas referentes a exercícios práticos de determinação da
hora11 e de determinação da latitude12, realizados pelos alunos no Observatório, em 1923, existentes no
Fundo Amoroso Costa13 do Arquivo de História da Ciência do MAST.
Neste período, as notas fiscais trouxeram conhecimentos sobre a aquisição de vários
instrumentos. No entanto, muitos não puderam ser localizados na coleção, uma vez que as informações
encontradas apresentavam somente o nome dos instrumentos sem dados dos fabricantes. Por outro lado,
de alguns poucos, como o teodolito de Paul Gautier, a equatorial T. Cooke & Sons, a luneta acotovelada
Julius Wanschaff, o cronógrafo e a pêndula Peyer Farvager, foi possível conseguir informações que
confirmassem serem os objetos existentes hoje na coleção.
No entanto, o conhecimento dos tipos de instrumentos e do seu uso nas aulas práticas, através
dos relatórios de atividades e dos livros de freqüência, compuseram dados interessantes sobre a rotina
das aulas, os conteúdos aplicados e a dinâmica dos alunos. Além disso, através das informações sobre
instrumentos semelhantes, encontrados nesses documentos, foi possível correlacionar com o uso
daqueles que se encontram na coleção, enriquecendo o conhecimento sobre os mesmos.
9 Livro de freqüência dos alunos nas aulas prática de Astronomia no Observatório Astronômico da Escola Politécnica no Morro de
Santo Antonio. Rio de Janeiro, 1914-1916. (UFRJ/OV/Biblioteca)
10 Livro de freqüência dos alunos nas aulas prática de Astronomia no Observatório Astronômico da Escola Politécnica no Morro de
Santo Antonio. Rio de Janeiro, 1917-1918 (UFRJ/OV/Biblioteca).
11 Planilha de determinação da hora pelo método Zinger. Observações realizadas no Observatório Astronômico da Escola Politécnica
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1923 (MAST/Arquivo - AC.T.3.015 ).
12 Planilha de determinação da latitude pelo método Sterneck Observações realizadas no Observatório Astronômico da Escola
Politécnica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1923 (MAST/ Arquivo - AC.T.3.016.).
13 Lente Catedrático da Cadeira de Astronomia e Geodésia, entre os anos de 1924 a 1930, no Observatório Astronômico da Escola
Politécnica.
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3 A TRAJETÓRIA DE FORMAÇÃO DA COLEÇÃO NA CHACARA DO VALONGO SEÇÃO
A seguir serão apresentadas informações sobre a trajetória do conjunto de objetos do Observatório
no período a partir de sua transferência para o Morro da Conceição, situado próximo ao Morro de Santo
Antonio, ambos no centro da cidade do Rio de Janeiro. Essa fase foi dividida em duas temáticas principais:
o processo de transferência do Observatório em si e os fatos relacionados ao curso de Astronomia,
ministrado nesse local até os dias de hoje, onde também se inserem as pesquisas ali realizadas.
3.1 A Transferência do Observatório para a Chácara do Valongo
Entre os anos de 1924 e 1926, o Observatório foi transferido para a Chácara do Valongo, em
função da realização de melhoramentos no Morro de Santo Antonio, local onde estava anteriormente
situado. Para isso, os instrumentos foram desmontados e encaixotados, sendo transportados por veículo
ou à cabeça, de um morro ao outro, através de uma distância de aproximadamente 1km. Entre esses
objetos, destacam-se as grandes lunetas equatoriais Hermida Pazos e T. Cooke & Sons.14
O primeiro instrumento a ser montado foi a luneta Hermida Pazos, instalada em um prédio, onde
se encontra até hoje, que guarda grande semelhança com o pavilhão original no Morro Santo Antonio.
Para a luneta equatorial T. Cooke & Sons foi construído um pavilhão de forma circular com 5,50m
de diâmetro, em dois pavimentos, onde ela está montada até hoje. Os outros instrumentos ficaram
guardados nas caixas até a ocasião de serem instalados.
A partir de 1926, o Observatório Astronômico da Escola Politécnica passou a funcionar na
Chácara do Valongo. As aulas práticas foram ministradas até 1936, pelo assistente da Cadeira de
Astronomia, Orozimbo Nascimento, ano em que faleceu. Sendo posteriormente ministrada, de forma
esporádica, pelo lente da Cadeira Dr. Allyrio H. Mattos, Professor Catedrático da Disciplina até 1954,
quando se aposentou.
Poucos registros e informações foram encontrados entre 1936 e 1957. Contudo, ao se comparar
o inventário15 de 1920 com uma lista de instrumentos de 1957, foi constatada uma grande redução no
conjunto de instrumentos. Apesar de não terem sido encontradas provas documentais sobre os motivos
dessa perda, o abandono do Observatório, entre as décadas de 1940 e 1950, após a morte do Assistente,
parece ser o provável motivo. Outra lista, de 1967, onde foram relacionados instrumentos enviados para
a Escola de Engenharia, na já Universidade Federal do Rio de Janeiro16, trouxe esclarecimentos sobre a
ausência de sete teodolitos e dois sextantes.
14 Demonstração dos serviços executados no Morro de Santo Antonio para mudanças e instalação provisória do Observatório da
Escola Politécnica e das respectivas verbas obtidas para este fim, entre 1924-1926 (UFRJ/OV/Biblioteca). p.24
15 Documento considerado uma peça preciosa do acervo histórico, é um manuscrito onde estão relacionados os bens móveis e
imóveis, separados por categoria de materiais. Está dividido em três partes: a primeira com os bens adquiridos até 1920, a segunda
relaciona os itens adquiridos no ano de 1921 e a terceira apresenta fotografias relacionadas a alguns desses bens (UFRJ/OV/Biblioteca).
16 Com a transformação da Universidade do Brasil em Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo decreto nº 60.455-A de 13 de
Março de 1967 foi extinta a Faculdade Nacional de Filosofia e o Curso de Astronomia foi incorporado ao Instituto de Geociências. O
Observatório do Morro do Valongo foi transformado em Órgão Suplementar do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza.
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3.2 O Curso de Astronomia no Observatório do Valongo
Em 29 de novembro de 1957, foi aprovada pela Congregação da Faculdade Nacional de Filosofia
(FNFi) da Universidade do Brasil17, o Curso de Graduação em Astronomia18. As aulas iniciaram
em 1958 e o Observatório do Morro do Valongo, então parte da Escola Nacional de Engenharia, da
Universidade do Brasil, passou a ser a sede das aulas práticas do curso, disponibilizando suas instalações
e equipamentos para uso dos professores e dos alunos.19
No currículo aprovado (CURSO, 1960, 2) para o desenvolvimento do curso, as atividades
referentes à prática astronômica eram ministradas na terceira e na quarta séries, onde eram estudados
os instrumentos e os seus usos: nível, teodolito, luneta meridiana, cronômetro, cronógrafo, pêndulas,
sextantes, telescópio, observações visuais, fotográficas, fotométricas, espectroscópicas, termoelétricas
e polarimétricas.
O uso dos instrumentos, nesta fase do observatório, gerou produções acadêmicas e científicas,
algumas foram divulgadas em publicações do próprio Observatório.
Em 1960, o Observatório do Morro do Valongo publicou o primeiro fascículo do Boletim do
Curso de Astronomia, de um conjunto de cinco fascículos publicados entre os anos de 1960 e 1966, com
o objetivo de dar “[...] conhecimento dos trabalhos didáticos e fornecer os resultados das observações
astronômicas realizadas pelos professores e alunos do Curso de Astronomia [...]”, conforme palavras
do Professor Luis Eduardo da Silva Machado, então, Diretor do Observatório. (MACHADO, 1960).
Os trabalhos identificados neste Boletim trouxeram esclarecimento sobre o uso dos instrumentos
e acessórios da coleção. Por exemplo, pode se constatar o uso do cronômetro Peyer Farvager em um
artigo sobre a determinação das coordenadas geográficas das cúpulas das equatoriais Pazos e T. Cooke
& Sons, (ENGEL, 1960, p.20).
Dentre as inovações, no Valongo, destaca-se a montagem de um pequeno, mas funcional,
laboratório fotográfico, instalado para revelação das fotografias obtidas nas observações astronômicas
realizadas nas pesquisas e para as aulas da disciplina de técnicas fotográficas, ministradas pelo professor
Guilherme Wenning, oriundo do Instituto Militar de Engenharia. Essa informação esclareceu a presença
na Coleção dos objetos ligados a área de Fotografia.
Diante da nova estrutura estabelecida com a criação do Curso de Graduação, o Observatório, a
partir de 1961, passou a participar de programas internacionais de observação e pesquisa astronômica,
envolvendo atividades20 como: registros fotográficos da fotosfera solar, registro fotográfico da superfície
17 Em 1920 a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a Faculdade Nacional de Direiro e a Escola Nacional de Medicina, compuseram
a Universidade do Rio de Janeiro, que depois foi denominada Universidade do Brasil e, mais tarde, Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Nesta instituição foi fundado o Observatório Astronômico da Escola Politécnica que, posteriormente, ficou conhecido como
Observatório do Valongo.
18 Ata da reunião, extraordinária, realizada no dia 29 de novembro de 1957 na Faculdade Nacional de Filosofia - FNFi (UFRJ/
PROEDES/Arquivo).
19 Ata da sessão da Congregação da ENE da FNFi da UB, realizada em 8 de abril de 1959. 4f. (UFRJ/Museu da Escola Politécnica).
20 [Relatório] de 19 de setembro de 1962, dos Professores do curso e astronomia da FNFi e os integrantes do grupo de trabalho que
opera no Observatório do Valongo da Universidade do Brasil. Resumo das atividades do curso de astronomia e os resultados obtidos no
OV desde 1959. Para Presidente do Conselho Nacional de Ensino e Pesquisa da Universidade do Brasil. Processo n.4.643/62 (UFRJ/
GT92760
lunar, registro fotográfico das superfícies planetárias, observações micrométricas de estrelas duplas,
observações relativas à astrometria meridiana, registro fotográfico de eclipses do Sol e da Lua, registro
de ocultações de estrelas pela Lua,21 registro de posição de cometas.
Os resultados dessas observações geraram trabalhos publicados nos números do Boletim de
Curso de Astronomia e numa série denominada Contribuições do Observatório do Valongo, entre 1966
e 1972. Esses dados eram apresentados em tabelas mensais que eram enviadas às instituições receptoras
das contribuições dos centros de cooperação internacional dos programas de observação astronômica,
como Observatório Federal de Zurich, o Royal Greenwich Observatory e a Yale University.
Um ofício datado de 1965, enviado ao Presidente do Conselho de Pesquisa da Universidade do
Brasil, esclareceu e confirmou o uso dos seguintes instrumentos nesses projetos:
[...] o observatório do Morro do Valongo conta com o material mínimo para a
execução do programa de observações: Telescópio foto-visual Cooke-12”; Telescópio
Pazos 116mm; Micrometro filar de posição Cooke; Câmeras fotográficas especiais;
Cronógrafo de fita; Bateria de cronômetros; Material fotográfico, filmes, chapas e
drogas; Dois rádios receptores e Laboratório fotográfico.
A partir da década de 1970 e até a década de 1990, o Curso de Astronomia passou por algumas
reformas curriculares que tinham por finalidade atualizar o ensino da Astronomia. Essas reformas
também determinavam alterações do seu conjunto instrumental, ocasionando modernizações, aumento
e diminuição do número de objetos desse conjunto.
As reformas curriculares passaram a destacar técnicas fotográficas, aplicadas aos métodos de
observação e redução astronômica, o uso da informática, impulsionando a substituição dos equipamentos
por outros mais adequados às novas tecnologias. (CAMPOS, 1995, p.4).
Na década de 1970, o conjunto instrumental do Observatório teve um importante acréscimo
com o recebimento de equipamentos provenientes do acordo MEC/Leste Europeu (BRASIL, 1967a).
A partir daí, recebeu e instalou em seu Campus um telescópio refrator Coudé, importante para pesquisa
sobre o Sol, quatro telescópios portáteis para uso no ensino e nos projetos de extensão universitária22;
um visor de cometa; um fotômetro rápido GII com acessórios; um projetor de espectros modelo SP-II
com acessórios; um comparador de placas siderais Blink; uma objetiva acromática; um aparelho de
medição de coordenadas (coordenatógrafo) modelo Ascorecord, para uso nas reduções e interpretações
dos dados resultantes de observações astrográficas.
Esses equipamentos e seus acessórios, como chassis e suportes de placas, fazem parte da Coleção.
Quando em uso, foram empregados no ensino do Curso de Astronomia, nas pesquisas realizadas no
OV/Biblioteca).
21 Ocultações rasantes de estrelas pela Lua.
“A ocultação de uma estrela pela Lua se verifica quando esta em virtude do seu movimento orbital ao redor da Terra interpõe-se entre
o observador e a estrela. O estudo desse fenômeno é feito com o intuito quase que exclusivo de fixar a posição do centro da Lua,
relativamente ao campo estelar vizinho.
A presença do relevo lunar, montanhas e crateras, ocasionam nas ocultações rasantes, uma série de reaparições e desaparições da
estrela. O rigoroso registro desses sucessivos instantes permite o levantamento da topografia lunar junto aos seus pólos.(MACHADO,
1973, p.6-7).
22 Relatório das atividades do OV no ano de 1973 (Datilografado) (UFRJ/OV/Biblioteca).
GT92761
Observatório do Valongo e em atividades de extensão, como nas observações voltadas para o público
externo. Destacam-se os estudos ligados à área de astrometria, desenvolvidos entre 1980 e 1990, em
conjunto com o telescópio astrométrico, instalado no Observatório de Capricórnio, em Campinas,23 o
coordenatógrafo e o comparador de placas astrográficas, que formaram um conjunto cujo uso resultou
em trabalhos acadêmicos e científicos publicados.
No curso de graduação, foram usados na realização de trabalhos de iniciação científica e na
pesquisa,24 entre eles, em projetos sobre astrometria, fotometria de asteróides e cometas, na obtenção
da posição precisa dos corpos celestes em placas fotográficas. Também foram usados na redução de
dados das placas astrográficas obtidas pelos astrônomos do OV em observações no European Southern
Observatory - ESO - La Silla, nos Andes Chilenos, e na Estación de Altura El Leoncito, Observatório
Astronômico da Universidade de San Juan, nos Andes Argentinos (MACHADO, 1984, p.3).
Foram, também, usados nos projetos de integração com a comunidade, quando eram montados
os telescópios de campo para observações astronômicas de eventos como eclipses e passagens de
cometas. Na passagem do Cometa Halley, em 1986, o evento foi observado pelo público visitante nos
telescópios portáteis, incluindo entre eles os quatro telescópios portáteis Zeiss/Jena e, também, a luneta
astronômica Zeiss/Jena, que foi colocada no Pão de Açúcar para observação do fenômeno, pelo público.
4 NOVAS TRAJETÓRIAS
A partir da década de 1990, com as inovações tecnológicas, muitos equipamentos usados no
Observatório foram sendo substituídos, alguns foram guardados por pessoas que viam neles algum tipo
de valor. Outros permaneceram intocados, talvez pelo seu tamanho, o que dificultava seu descarte.
No final da década de 1990, a preocupação com a preservação dos elementos referentes à
memória institucional despertou o interesse para a recuperação desses objetos que refletiam o passado.
Dessa forma, em 1996, um levantamento realizado com o objetivo de conhecer quais os objetos
que ainda existiam e que podiam ser considerados históricos, constatou a necessidade de se adotar
medidas para sua recuperação e preservação. Dessa forma, entre 1997 e 2005, foi desenvolvido em
três fases o projeto Preservação da Memória Astronômica do Observatório do Valongo, quando foram
recuperados alguns instrumentos e cúpulas e preparados lugares específicos para expor os instrumentos
restaurados. A partir desses resultados, entre 2007 e 2008, foram iniciados outros dois projetos, quando
foi recuperado outro espaço para exposição dos objetos. Ainda em 2008, foi firmado um convênio com
o Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST, para a recuperação, identificação, documentação e
organização dos objetos.
23 Devido à falta de condições apropriadas, tanto atmosféricas quanto do terreno, esse equipamento não pode ser instalado no OV.
Foi enviado para Campinas, SP, Brasil, onde foi construído um prédio para recebê-lo no “Pico das Cabras”, uma região favorável
que foi considerada favorável para a instalação, que foi realizada a partir de um convênio entre a UFRJ, a Prefeitura de Campinas, a
UNICAMP e PUCC, estabelecendo um Programa de cooperação técnico-científica, principalmente em pesquisas astrométricas.
24 Ofício n. 58/87, datado de 11 de junho de 1987, da Diretoria do OV para a Reitoria da UFRJ (UFRJ/OV/Biblioteca).
GT92762
Como resultado dessas iniciativas, foi preservado um conjunto de documentos que representam
a memória institucional e parte da história da prática de ensino da Astronomia no Brasil, em especial no
Rio de Janeiro. Constituindo, também, parte do patrimônio universitário e da Ciência e Tecnologia do
Brasil. Esse conjunto inclui a Coleção dos Objetos de C&T do OV.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção da trajetória da formação da coleção permitiu identificar várias etapas pelas quais
os objetos passaram, nas quais esses objetos transitaram de úteis a obsoletos e abandonados, até serem
percebidos como reflexo de um passado que precisava ser recuperado, quando foram então reunidos
e tratados transformaram-se em testemunhos reconhecidos das práticas realizadas no Observatório.
É importante destacar que o aporte de conhecimentos e metodologias realizado pela Museologia foi
fundamental para chegar ao resultado obtido, seja através das informações obtidas a partir dos objetos
em si, seja em função dos procedimentos de documentação utilizados que propiciaram um melhor
conhecimento dos objetos e do seu conjunto, seja através da teoria museológica relacionada ao estudo
das coleções.
A construção da trajetória trouxe mais do que o conhecimento sobre as aquisições, usos,
produções e destino desses objetos, contribuiu para a caracterização da coleção como patrimônio da
Ciência e Tecnologia do Brasil, transformando-a em um conjunto portador de referências à memória do
grupo que a detém. Ela traz potencialidades onde se reconhecem práticas, representações, expressões,
conhecimentos e técnicas gravadas nas marcas de seus objetos e que, pouco a pouco, ao serem
conhecidas, formaram suas identidades.
Conforme a trajetória dos objetos era conhecida, cada objeto ou grupo de objetos da coleção
recebia explicações que o confirmava como participante das atividades realizadas no Observatório.
Durante o processo de construção da trajetória da coleção foi interessante compreender que o mais
importante não era provar que um objeto da coleção era o que estava citado nos documentos, mas
perceber que as informações os caracterizavam como itens reais daquela coleção, não só pelo seu uso,
mas, principalmente, por terem sido importantes na construção da identidade institucional e elementos
ativos no desenvolvimento da C&T brasileira.
No âmbito da Museologia, além das contribuições já mencionadas, os esforços que levaram à
formação da coleção permitem vislumbrar futuramente sua transformação de coleção visitável em uma
coleção museológica25, já que é possível que o Observatório se constitua, no futuro, em um museu.
Quando, então, as informações obtidas sobre os objetos da coleção possam ser usadas para a construção
de narrativas sobre o ensino da Astronomia em exposições abertas ao público, assim como, utilizadas
25 Art. 1o da lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009. “Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem
fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural,
abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.”
GT92763
para as atividades desenvolvidas como extensão universitária. Ainda nesse âmbito, esses dados servirão
para complementar as informações que compõem a documentação da coleção, disponibilizada na Base
de Dados Minerva26 do Sistema de Documentação da UFRJ.
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GT92767
COMUNICAÇÃO ORAL
INTERATIVIDADE EM MUSEUS: UM ESTUDO CRÍTICO
DO CONCEITO DE INTERATIVIDADE DE JORGE
WAGENSBERG
Luisa Maria Gomes de Mattos Rocha
Resumo:
Este trabalho tem por objetivo realizar uma reflexão critica sobre o conceito de interatividade
proposto pelo físico Jorge Wagensberg, tendo como fundamentação teórica a teoria crítica de Jürgen
Habermas e os estudos sociais de Bruno Latour. Ênfase será dada ao experimento como recurso
interativo museológico para a divulgação e a aprendizagem informal em ciência e tecnologia, uma
vez que é conceito central da teoria do físico. A análise realizada constitui um olhar sobre os conceitos
de Wagensberg que evidencia a necessidade de assumirmos a complexidade do diálogo entre ciência
e sociedade no campo museológico.
Palavras-chave: interatividade; museus; experimento; Jorge Wagensberg.
Abstract:
This work aims to make a critical reflection on the concept of interactivity proposed by physicist Jorge
Wagensberg, from the critical theory of Jürgen Habermas and the social studies of Bruno Latour.
Emphasis will be given to the experiment as a museological interactive resource for the scientific
dissemination and informal learning in science and technology, since it is a central concept of the
physical theory. The analysis is a look at the concepts of Wagensberg which highlights the need to
assume the complexity of the dialogue between science and society in the museum field.
Key words: interactivity; museums; experiment; Jorge Wagensberg
1. Introdução
Os conceitos podem assumir diferentes significados em outras áreas do conhecimento ou em
diferentes contextos socioculturais, na medida em que no seu desenvolvimento histórico ao cruzar
fronteiras, disciplinares ou ontológicas, se redefiniram pela associação com outros conceitos, teorias
e práticas, em função de novos problemas. O conceito de interatividade tem sido objeto de discussão
em diferentes áreas, mas sua aplicação na área de museus encontra na divulgação científica um campo
fértil de problematização e análise.
A partir de algumas considerações históricas sobre o experimento como recurso interativo
das exposições de museus de ciência, apresentaremos o conceito de interatividade proposto pelo
físico e diretor do Museu de Ciência Cosmocaixa de Barcelona, Jorge Wagensberg, que defende
uma Museologia baseada na emoção como elemento fundamental para transmissão do conhecimento
científico e apóia-se no “experimento” como recurso principal interativo. Pretendemos discutir os
GT92768
conceitos do físico através do suporte teórico conceitual da teoria crítica de Habermas e dos estudos
sociais de Bruno Latour.
Especial ênfase será dada ao experimento como recurso interativo museográfico para a
divulgação e a aprendizagem informal em ciência e tecnologia.
2. Considerações históricas sobre o experimento
Desde o surgimento do Exploratorium de São Francisco em 1969, com a proposta didática do
físico Frank Oppenheimer (1912-1985) de criar uma coleção de experimentos sobre os fenômenos
científicos para ser manuseada pelo público, que se iniciou um movimento nos museus de ciência em
prol da implantação de exposições que propiciassem a “interatividade” através dos experimentos.
Contudo, a idéia de apresentar estes experimentos tem sua própria historicidade.
Na visão de Jan Rupp (1995, p.488), a idéia de demonstração e apresentação didática de
fenômenos científicos tem sua origem no teatro de anatomia pública. Ele se inicia na Itália e na
Alemanha no século XVI, como palestras anuais sobre “os segredos da natureza” apresentados a uma
audiência de homens e mulheres de diferentes classes sociais utilizando-se da técnica da dissecação
de cadáveres, do uso de microscópios e de outros experimentos em animais.
Na perspectiva de Robin Rider (1983, p. 129) o teatro de anatomia pública se reporta, no
século XV, às dissecações anatômicas para estudantes ocorridas nos cursos de medicina. O fato é que
no século seguinte estes adquirem o caráter teatral com o demonstrador exercendo um duplo papel,
de cirurgião e de condutor do espetáculo.
Reconhecendo as suas vantagens pedagógicas, os professores de filosofia experimental, no
século XVII, adotam a prática de demonstrar verdades científicas para seus alunos. As demonstrações
teatralizadas ganharam as preferências dos alunos ao invés dos experimentos, o que direcionou mais
tarde às apresentações para a “magia natural” (RIDER, 1983, p.133).
A consolidação do caminho se manifesta na fundação do museu do Collegio Romano pelo
professor de matemática, filosofia natural e línguas, Athenasius Kircher, que mesmo sendo um
defensor do método experimental praticava a magia. Esse museu era dedicado a curiosidades e magia
natural, e tinha uma abordagem museográfica baseada no entretenimento através de jogos de magia
natural e experimentos demonstrativos da ciência popular (RIDER, 1983, p.116). Outras instituições,
como a Royal Society de Londres realizavam demonstrações a partir dos experimentos descritos e
desenhados na publicação da Academia Del Cimento, com o intuito didático de mostrar a “natureza
em ação” como forma de “ensinar aos seus membros necessitados de experiência científica como
arrancar os segredos da natureza” (RIDER, 1983, p.112).
No século XVIII, as conferências públicas da ciência se não apelavam para a magia buscavam
na apresentação de fenômenos elétricos o assombro e o entretenimento capaz de mobilizar o público.
Quem realiza este experimento é o fabricante de instrumentos científicos, Jean Antoine Nollet, que
GT92769
na qualidade de conferencista tinha que agradar seu público baseado na sua reputação e na escolha do
assunto e da atração. Desta forma, como afirma Rider (1983, p.114),
Os museus que requerem a participação do público seguem o vivo exemplo dos
conferencistas públicos e dos fabricantes de instrumentos do século XVIII, que
levaram os experimentos demonstrativos às esquinas das ruas e aos salões. Comum
a todos é seu apreço pela surpresa e mistério no experimento como espetáculo.
Preocupado com a relação entre ciência e público, Jan Rupp (1995, p. 495/502) analisa que
as academias reais européias, constituídas a partir do século XVII, institucionalizam a ciência e a
transformam em um “negócio”, com posições assalariadas para os curadores de experimentos e
procedimentos para o acesso público a verdade e validade dos mesmos através da discussão entre
testemunhas da demonstração experimental. Na sua visão, entre os séculos XVIII e XIX no ocidente
europeu, criou-se uma “esfera pública” voltada para a experimentação, teste e discussão de conceitos
da “nova ciência”, manifesta como um campo social altamente diversificado, contestado e complexo.
Os principais problemas na construção desta esfera pública foram à seleção dos participantes no
debate e a inclusão de um público heterogêneo na cena experimental. Para contornar estes problemas
Rupp (1995, p.503) enfatiza o estabelecimento de regras político-morais como, por exemplo, nos
teatros de anatomia, a origem do sujeito de dissecação (presos), a queima dos seus restos e os códigos
de comportamento durante a dissecação (autocontrole, tolerância, modéstia e polidez do público e dos
participes da discussão).
Na sua perspectiva, a esfera pública tem que criar as suas próprias regras enfatizando o interesse
comum, pois quanto mais heterogêneo o background dos debatedores e testemunhas e mais variada as
suas opiniões, autocontrole e tolerância mútua são requeridos para o desenvolvimento do debate. Para
o autor “regras similares são prescritas para comportamento nos museus, igrejas, concertos e parques
públicos criados no fim do século XIX” (RUPP, 1995, p.503).
Desde 1794, com a criação do Musée National de Téchnique na França, já eram concebidas
exposições a partir de algumas premissas conceituais que atualmente configuram o conceito de
interatividade, bem como as áreas do conhecimento que a sustentam: Educação e Ciência (VALENTE;
CAZELLI; ALVES, 2005, p.192).
Naquela época, os objetos de cunho técnico e científico, ainda que tivessem um valor
documental por serem instrumentos criados no processo de construção do conhecimento humano,
eram apresentados em perfeito estado de funcionamento para demonstração ou manuseio do visitante.
Tal ação adquiria um caráter prático-pedagógico associando tanto o desenvolvimento de competências
técnicas quanto à importância do papel da ciência e da tecnologia no “progresso” da humanidade.
Como afirma Robert Fox e Pietro Redondi (1998, p.92-98), o museu tinha como finalidade não apenas
“agrupar máquinas”, mas realizar cursos sobre teoria e prática das artes industriais e de ofício. Por
isso mesmo, seu orçamento previa gastos com experimentações e com professores de cada profissão.
Em sua política de coleção estava manifesto a necessidade de abrigar numa sala as novas invenções,
na qual “os cidadãos deverão aos poucos se iluminar com os bons modelos e iluminar os artistas pela
GT92770
justeza de suas observações” (1998, p. 129).
No século XIX, inicia-se na França o processo de vulgarização1 com o “objetivo de colocar
a ciência na vida das pessoas” e com isso inserir-lhe no âmbito político, econômico e literário
(BENSAUDE-VINCENT, 1993, p.49/50). A presença da ciência na vida social se amplia pelas
exposições universais, sendo a primeira em 1851, no Palácio Cristal em Londres. O cientista francês
Louis Figuier entendia que a vulgarização tinha como objetivo não somente colocar a ciência como
o centro do sistema cultural2, mas tentar provar sua característica pedagógica e formadora. Para
tal, desenvolveu um método de exposição que conferia um fio narrativo às descobertas da ciência,
descrevendo invenções, ilustrando sua utilização e “tornando compreensíveis e familiares os novos
objetos e materiais que as exposições universais apresentam” (1993, p.22). Reforça essa visão a
análise de Bensaude-Vincent (2001, p.102/104), na qual as exposições universais inseriram-se nessa
missão educacional incentivando a apropriação do conhecimento científico e técnico através das
máquinas em funcionamento numa “celebração” ao progresso.
O movimento propiciou o surgimento de diversos museus de ciência na segunda metade
do século XIX, nos quais a ciência era apresentada como sendo “prática, útil, divertida, recreativa,
popular e entretenimento” (BENSAUDE-VINCENT, 2001, p.103). Destacamos que ambas as visões
evidenciam que o “experimento”, entendido aqui desde a demonstração da ciência biológica até das
novas tecnologias, tem uma trajetória histórica como recurso expositivo ou de apresentação, capaz de
subsidiar em diferentes contextos históricos e culturais a sua utilização como solução para o diálogo
ciência e público.
No século XX, segundo Lins de Barros (1997, p.3), uma maior ênfase foi dada aos princípios por
detrás das máquinas como forma de educar, divulgar e inserir o cidadão no mundo do conhecimento:
“a ciência se faz com o experimento, embora não esteja a ele restrito. Ou seja, não basta experimentar;
mas não se pode ingressar na linguagem da ciência pós-galileana sem que se experimente ou sem
o conhecimento do resultado da experiência” (1997, p.4). Não se pode esquecer que a origem do
conceito de interatividade está na área da Física que, pela sua influência nas práticas e métodos no
mundo científico, propiciou uma rápida propagação nos espaços institucionais museológicos.
As exposições passam a ter como exigência à apresentação de objetos museais, históricos
ou construídos, direcionados para a manipulação ou participação física do sujeito, denominada de
interatividade hands on. Percebemos, assim, a tentativa de colocar em prática a idéia do contato físico
com o objeto de conhecimento como uma etapa do processo de aprendizagem.
No fim de 1960, segundo Lins e Barros (1997, p.4/5), o conceito de experimento foi revisto,
de forma a não mais se apoiar no objeto museológico nem exclusivamente em atividades de “apertar
botões”, mas no desenvolvimento de aparatos interativos capazes de evidenciar um princípio ou
conceito científico, ainda que para isso se fragmente o experimento em diversos aparatos. O caminho
1 A autora esclarece que antes do século XIX já existia um processo de difusão científica voltado para o âmbito literário que se
distingue da vulgarização pela característica desta de colocar a ciência na vida social (BENSAUDE-VINCENT, 1993, p.53).
2 Figuier utilizava a metáfora do sol (BENSAUDE-VINCENT, 2001, p.102).
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foi à forma encontrada de contornar as chamadas “caixas pretas” em que diversas ações e conceitos
intermediários de um dado experimento agiam como um obstáculo para a sua compreensão por não
serem de domínio público.
3. A teoria da interatividade de Jorge Wagensberg
Escolhemos enfocar o conceito de interatividade proposto pelo físico e diretor de museu,
Jorge Wagensberg, a despeito da existência de outras teorias, em função da ancoragem na ciência e
no método científico, em particular no experimento.
Na atualidade, Jorge Wagensberg (2003a; 2003b) defende uma Museologia baseada na emoção
como elemento fundamental para transmitir conhecimento científico para o público. O desafio da área
seria a construção de elementos emblemáticos que fiquem na memória coletiva do cidadão sem,
contudo, perder o rigor científico. Afastando-se do enfoque clássico da pedagogia, Wagensberg (2003b)
denomina sua forma de interessar a diferentes públicos pela ciência como “interatividade emocional”.
Ela estaria relacionada à conversação: “Experimentar é conversar com a natureza. Pensar é conversar
consigo mesmo. E um bom museu propicia também a conversa entre os visitantes”. Os elementos
museográficos teriam a função de “prover estímulos” à interatividade, que poderia ser classificada em
três tipos: a interatividade manual ou da emoção provocadora (hands on); a interatividade mental ou
da emoção inteligível (minds on) e a interatividade cultural ou da emoção cultural (heart on).
Na sua visão, a interatividade manual introduziria o sujeito no problema científico, abrindo a
possibilidade de conversação, na medida em que poderia sugerir uma nova manipulação ou suscitar
questões a serem feitas e respondidas pelo sujeito. Contudo, Wagensberg (2003b) entende que a
interação baseada no ato de pressionar um botão para acionar um processo pré-programado constituise numa “caricatura”. Isso porque os aparatos considerados interativos, apesar de gerarem uma
atividade física, limitam a interação por apresentar um resultado único e fechado e um conhecimento
pronto e acabado. A interação não asseguraria um envolvimento mental.
A interatividade mental significa, para Wagensberg (2003b), praticar a inteligibilidade
da ciência, distinguir o essencial do acessório, descobrir as convergências e divergências. As
“convergências” seriam as mais difíceis porque se baseiam no que há de comum entre os diferentes
objetos e/ou fenômenos e as áreas do conhecimento, além de correlacionar a sua essência - o comum com a vida cotidiana. A interatividade cultural prioriza as identidades coletivas dos museus, trabalhadas
na interação social entre os visitantes através da exploração de experiências afetivas, cognitivas e
culturais, desencadeando um processo de compreensão do conteúdo científico e de construção de
conhecimento (WAGENSBERG, 2003b).
Wagensberg (2003b) faz ainda referência ao “método da emoção inteligível”, que se baseia
no prazer de descobrir “convergências” como forma de despertar emoções sobre a inteligibilidade
do mundo. A ciência e seu método científico constituem a base do processo de divulgação científica,
GT92772
que se apóia em três princípios: objetividade, inteligibilidade e dialética. A objetividade reside na
escolha da forma mais direta e isenta de observação do objeto. A inteligibilidade na elaboração de uma
representação mais densa e resumida que o objeto representado. E a dialética reside na possibilidade
do conhecimento ser modificado pela experiência.
O físico enfatiza que o elemento museológico e museográfico prioritário é a “realidade”,
entendida como o fenômeno ou objeto real científico. O físico pretende mobilizar o sujeito para a
busca por conhecimento através de estímulos, despertando também o interesse pela prática científica
(WAGENSBERG, 2003b).
4. Análise crítica da teoria de Jorge Wagensberg
Nesse subitem pretendemos analisar criticamente, sob o prisma comunicacional, a teoria
de interatividade de Jorge Wagensberg pontuando algumas questões e desafios para o conceito nos
museus. Num primeiro olhar percebemos que a abordagem da “interatividade emocional” do físico
está baseada no conceito de experimento.
Um experimento é para Ziman (1925, p.47), “uma observação passível de ser reproduzida”.
Nesse sentido, o autor explica que em circunstâncias determinadas a experiência pode ser repetida
inúmeras vezes até que os seus resultados o convençam da sua validade, desta forma, a prova
experimental passaria a ser de “conhecimento público”. Tal definição aponta para os próprios padrões
da ciência para validação do conhecimento que, neste caso, passaram a repousar nas evidências ou
provas obtidas através do método experimental, que após a sua formulação e realização, prescinde
de um sujeito determinado, visto que pode ser substituído alcançando o mesmo resultado. As regras
e padrões científicos foram constituídos histórica e culturalmente, como pode ser evidenciado na
obra “Galileu Galilei” de Bertolt Brecht. Nesta, Galileu precisou de provas e, mais do que isso, ele
teve de mudar o próprio critério de validade da ciência, evidenciando que o experimento poderia
produzir bases seguras para a ciência, assim como a tecnologia - no caso o telescópio - poderia ser
um instrumento de amplificação do olhar humano.
O pensamento científico contemporâneo, segundo Chauí (2005, p.221, 232/240), estaria
baseado na demonstração e na prova, fundadas nos procedimentos científicos. A teoria científica
resultaria das observações e dos experimentos, uma vez que estes, através de métodos experimentais
rigorosos, teriam a função de produzir e verificar conceitos. Tal como mencionado por Ziman, as
características do experimento residem na observação e na possibilidade de verificação. MuñozMartinez (2003, p.15) o relaciona ao recurso da repetição, a comprovação de conjecturas e hipóteses
e ao modo de verificação. Chauí (2005, p.232/233) introduz outros aspectos importantes relativos ao
método científico como a relação causa e efeito, a objetividade, o instrumentalismo e a linguagem
específica e própria.
No âmbito da ciência, ao optar pelo experimento como base da interatividade Wagensberg
GT92773
se apóia no método científico das ciências experimentais, com regras e padrões específicos de
validação do conhecimento. Contudo, essas regras e padrões por se apoiarem na racionalidade
dos procedimentos para a validação de conteúdos tendem a reduzir os problemas à manipulação
metodológica da realidade, descolando-se dos problemas prático-morais da vida social. Como afirma
Lins e Barros (1997, p.6): “a ciência introduzida por Galileu levou-nos a um aparente distanciamento
do mundo. O experimentador recorre a um instrumento, olha através de um aparato o mundo e, dessa
forma, dele se distancia”.
Analisando sob o prisma da ciência reconstrutiva de Habermas, ter como base o experimento
constitui ocultar o próprio processo dialético de produção do conhecimento que está baseado num
“processo simultaneamente subjetivo e objetivo, onde não se pode separar a verdade e o método,
isto é, as condições de possibilidade do conhecimento de suas condições de verificabilidade” (2002,
p.93). Retiradas as “condições de possibilidade do conhecimento”, advindas do sujeito formulador
e apresentando apenas as suas condições de verificabilidade, estamos deixando a tarefa de construir
uma teoria para o público da exposição que, neste caso, não compartilha do mesmo contexto que o
cientista que a produziu, além de não saber na prática as regras e os jogos de linguagem que interagem
na comunidade científica. Ao contrário, a experiência3, característica dos espaços museológicos,
pressupõe um sujeito ancorado no tempo e no espaço, com uma identidade e uma história, indicando
que as suas condições iniciais são sempre diversificadas, incorporando as variações biográficas
como formação e pertencimento a coletivos culturais e sociais. Assim, enquanto o experimento está
ligado a construção do saber científico, o con­ceito de experiência está associado a um processo de
acolhimento de todas as possíveis dimensões do real, lidando com emoções e com sentido, sem se
preocupar com explicações ou causalidade.
No experimento do museu, subtrai-se da sua reprodução o contexto da descoberta, da
demonstração4 e da aplicação, privilegiando-se um aparato mecânico ou analógico que em si não
contém todas as articulações prévias de sentidos: contexto histórico, científico (hipóteses, buscas,
erros e acertos, resultados e suas variações, contexto de uso e de justificação) e cultural. Subtrai-se,
a dimensão da compreensão e se aposta na observação, ainda que sob a forma de uma apresentação
dinamizada. Tal substituição do sujeito-cientista por um sujeito qualquer se torna uma peça chave
para entender porque o aparato interativo das exposições torna cada vez mais o museu de ciências em
3 Entendemos a experiência museológica a partir da definição de Museologia de Waldisa Russio Camargo Guarnieri:“a relação
profunda entre o homem, sujeito que conhece, e o objeto, parte da realidade à qual o homem também pertence e sobre a qual tem o
poder de agir, relação esta que se processa num cenário institucionalizado, ou o museu” (1990, p.7). Essa definição foi apresentada pela
autora no Encontro do ICOFOM/ICOM em Estocolmo, no ano de 1981 e, até hoje, constitui um dos marcos teóricos da Museologia
brasileira, em função da correlação que estabelece entre homem, objeto e realidade, no espaço museológico. No plano relacional, a
autora menciona a importância da percepção, do seu registro e da memória. No humano, os aspectos filosóficos, éticos, psicológicos
e cognitivos, incluindo as relações inter-humanas e sociais, considerando seus aspectos sociológicos e políticos. No objeto, tanto os
seus aspectos materiais, em função da sua conservação, quanto aqueles decorrentes da construção e comunicação do conhecimento.
No espaço museológico, a relação homem e objeto, essencialmente sob o prisma da comunicação (GUARNIERI, 1990, p.7). Assim, a
experiência museológica ocorreria na interação desses três elementos, tendo como locus privilegiado o espaço museográfico, visto na
sua dimensão comunicacional.
4 O contexto da demonstração pressupõe a reprodução de uma parte do experimento para um público especializado.
GT92774
um “museu de dois segundos”5 ao invés de um espaço de comunicação. A reprodução do experimento
como aparato interativo de uma exposição, ainda que esteja inserida no âmbito do museu, não
contempla a definição de experiência, uma vez que objetivam resultados fechados, formatados e
consolidados, não permitindo ao “sujeito ancorado no tempo e no espaço, numa identidade e uma
história” a diversificação oriunda dos seus coletivos culturais e, portanto, a formatação de sua própria
experiência.
A cientista da informação González de Gómez (2006, 55/58), ao discorrer sobre a questão da
narração apóia-se em Agambem (2005) para analisar o empobrecimento do homem moderno pela
reformulação dos parâmetros da experiência. Na visão de Agambem: “o homem, expropriado de sua
biografia e sua experiência, torna‑se incapaz tanto de ouvir como de narrar”. Como coloca a autora,
as experiências não teriam deixado de existir, mas elas se efetuariam fora do homem:
Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de
vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da terra [...] a
maioria esmagadora da humanidade recusa‑se hoje a experimentá‑las: prefere que
seja a máquina fotográfica a ter a experiência delas (AGAMBEM, 2005c, p. 23 apud
GONZÁLEZ DE GÓMEZ 2006, p.58).
González de Gómez (2006, p.58) evidencia que frente ao “espetáculo generalizado ‑ nos
termos de Desbord ‑ aparentemente só ficaria como saída a recusa da experiência empobrecida”,
uma vez que: “O que o homem moderno encontraria todos os dias, pelo contrário, seria um bazar
abarrotado de imaginários e experiências formatados, encenando uma sociedade de abundância”.
O experimento é uma aposta numa dimensão cognitiva dissociada de uma prática social, ou
seja, uma experiência formatada modelizada e digerida para uma apresentação de “dois segundos”
ao grande público. Na visão de Habermas (2004, p.19), uma experiência deveria ser analisada da
“perspectiva de um ator envolvido, no contexto que põe a prova as ações guiadas pela experiência.
(...) sem a possibilidade de um recurso ao material não interpretado das sensações, a experiência
sensível perde sua autoridade inquestionável”.
Nesse sentido, no contexto museológico, se não temos um arsenal cultural que nos permita
identificar tanto a ordem do sensível quanto a sua origem, ainda que nos pareça claro sensorialmente,
não se constitui um “dado a partir do qual podemos inferir suas possíveis causas” (MUNOZMARTINEZ, 2003, p.46). Por outro lado, a experiência está condicionada por “um sistema de
associações e inferências prévias, crenças e pré-conceitos”, que se torna difícil de ser interpretada
sem o domínio do contexto de pré-compreensão de determinadas regras e normas que regem o
processo de investigação científica, as experiências prévias, a tradição e o horizonte de expectativas
da comunidade científica (MUNOZ-MARTINEZ, 2003, p.18).
Numa comunicação pessoal a Rolando Garcia, Piaget mencionou que “não conhecemos
5 “Museu de dois segundos”: esta frase foi cunhada em comunicação pessoal por um profissional de museu se referindo ao tempo
necessário para que um aparato interativo produzisse um movimento ou reação sem que o visitante se deslocasse para outro aparato
para apertar um novo botão.
GT92775
o que vemos; vemos o que conhecemos” e, com isso, elucidou que não podemos entender algo
que se constitui apenas por uma pura sensação sem dar lugar a uma percepção (interpretação).
Exemplificando, podemos preparar um corte histológico do tronco de uma árvore para ser observado
no microscópio em uma exposição, mas um sujeito qualquer ao vê-lo, identificará apenas manchas
e cores sem qualquer significado. Depois de estudar o tema e observar as preparações das lâminas
talvez este sujeito entenda o que deve ver e o verá, pois já o conhece ao menos em seus aspectos
genéricos. Como afirma Piaget, a informação não se obtém a partir de objetos particulares ou físicos,
mas das próprias ações que exercemos sobre eles e esta constrói pouco a pouco o nosso conhecimento
(MUNOZ-MARTINEZ, 2003, p.52).
Latour e Woolgar (1997, p.36) ampliando esta análise abordam a posição do observador em
um laboratório científico: “O sentido que nele procuramos encontrar não vem do fato de que esta ou
aquela montagem experimental nos sejam familiares, mas da possibilidade que temos de fazê-las
corresponder a conhecimentos e experiências anteriores”. O experimento como aparato interativo
museológico inscreve-se numa abordagem de causalidade, na qual supostamente seria possível a
dedução direta da causa pelo efeito. Se não conseguirmos obter o conhecimento “do quê” como
chegaríamos ao “porquê” a partir do efeito de um aparato? Por exemplo, do choque proveniente do
gerador Van der Graff ao conceito de eletrostática empregada na Física Nuclear.
Segundo David Ross (1987, p.73/74), temos conhecimento “do quê” e não do “porquê”
em duas situações: quando nossas premissas não são imediatas, senão que elas mesmas requerem
demonstração, e quando inferimos a causa do efeito, o mais inteligível do mais familiar. Logo, se algo
não nos é familiar, se não conseguimos interpretar ou produzir sentido, como conseguiremos fazer o
caminho de volta e chegar ao inteligível desta suposta relação linear direta causal. O autor esclarece
que não conseguiremos alcançar o conhecimento do “porquê” em função da violação de regras
precedentes estabelecidas pela ciência, a saber, que devem ser imediatas (contexto da descoberta)
e combinadas para se chegar a conclusões mediatas (contexto de justificação). Por isso mesmo,
na visão de Ross (1987, p.73/74), “O conhecimento ‘do quê’ não é, assim, a ciência propriamente
dita”. Como afirma Habermas (2004, p.104): “Saber ‘o quê’ está ligado a saber ‘porquê’ e, portanto,
a possibilidade de ser criticado e fundamentado”. Ou ainda, nas palavras de Paulo Freire (1992,
p.68): “Entre compreensão, inteligibilidade e comunicação não há separação”, na medida em que são
momentos simultâneos de um mesmo processo ou ato.
Coadunam com esta visão Piaget e Garcia (1992, p.9 apud ANTÓN, 2003, p.141) quando
afirmam que no processo de conhecimento, não somente os estágios sucessivos de construção das
diferentes formas de saber são seqüenciais, na medida em que respondem as possibilidades abertas do
anterior e condicionam os posteriores, como cada novo estágio inicia com a reorganização, em outro
nível, das principais aquisições anteriores resultando numa integração.
Antón (2003, p.141) esclarece que a dicotomia entre o contexto da descoberta e da justificação
GT92776
provém da concepção linear do desenvolvimento do conhecimento, o qual se agrega por justaposição6
de várias etapas. Decorre daí que se os caminhos do conhecimento são diferenciados, percepções,
esquemas operatórios, sentidos compartilhados, relação sujeito-objeto constituem partes de um
processo único para cada indivíduo que, numa ação comunicacional, desempenham um papel
definitivo na compreensão de um conteúdo.
Ao comparar com a abordagem Wagensberg (2003a), em particular o método científico e o
experimento como possibilidade de comunicação com o público dos museus, concluímos que ele
se apóia numa determinada prática científica, de domínio de um determinado grupo, para interagir
com outros grupos que não necessariamente a dominam. Quando fora do domínio dos instrumentos,
sentidos e teorias propostas numa comunicação torna-se difícil o entendimento, ainda mais quando se
propõe reconstruir inversamente a relação causal da ciência. Não se pode esquecer que chegar a causa
é construir uma teoria e esta envolve estabelecer um sistema de relações a partir da interpretação
das regularidades observadas. O sistema não procede da experiência, nem é diretamente observável
a partir das percepções: “é construído pelo sujeito em sua interação com o objeto” (ANTON, 2003,
p.153).
No segundo empiricismo, Latour também propõe outra compreensão da percepção que
tenta superar duplamente o objetivismo e o subjetivismo. A percepção marca e define o evento, não
podendo ser eliminada, mas antes agregada à experiência. Da mesma forma, ela constitui aquilo que
remete a um ponto de vista, a um lugar, entendido aqui não como algo subjetivo, mas como aquilo
que é apropriado por estar incrustado nas circunstâncias da experiência. Por tudo isso, a percepção
tanto define o seu olhar quanto o desvia para um mundo que se apresenta (2005 apud, GONZÁLEZ
DE GÓMEZ, 2006, p. 60).
Quando Wagensberg (2003a) estabelece os princípios da objetividade e da inteligibilidade está
referendando a posição de uma observação direta e isenta do objeto e de uma representação baseada
na síntese promovida por um grupo de especialistas que compartilham sentidos. Essa discussão
nos remete a posição do observador baseada na experiência sensorial e a experiência comunicativa
baseada na compreensão.
A observação apóia-se em coisas perceptíveis e utiliza a descrição científica dos fatos para
explicar os fenômenos, constituindo-se numa atividade individual em que se opera sozinho, quer
compartilhe ou não com uma comunidade um sistema conceitual em que as experiências se baseiam.
A compreensão direciona-se para o sentido da proposição, existindo uma intersubjetividade de sentido
que, uma vez suposta, possibilita o seu entendimento (HABERMAS, 2002, p.66).
No caso, apoiando-se na neutralidade, objetividade e inteligibilidade da ciência, Wagensberg
retira o que existe de comum, o mundo de vida, e termina por isolar ambos da realidade social. Não
se pode esquecer que realidade e linguagem estão entrelaçadas de tal forma que a segunda atua como
um filtro, através do significado, no acesso a primeira. Isso porque os atores compartilham o mesmo
6
Justaposição: uma etapa substitui a anterior e tem certa relação com ela, mas não tem conexão com as anteriores.
GT92777
mundo no qual realizam a sua práxis, quer sejam ações de intervenção ou de comunicação, mas aonde
não existe intersubjetividade de sentidos não pode haver comunicação (HABERMAS, 2004, p. 44).
Wagensberg exclui o sujeito cognoscente e sua capacidade de propor e criticar, na medida em que
torna os dois “mundos” incomensuráveis.
O experimento como uma representação simbólica de um determinado conceito científico
insere-se em uma dupla perspectiva. A primeira refere-se a um processo de musealização baseado
numa racionalidade instrumental7, na qual o museu se reveste do poder de escolher um “objeto”
de um determinado contexto de produção para retirá-lo e incluí-lo num espaço de representação
simbólica do mundo da vida8.
A segunda está ligada ao potencial de comunicação do experimento, ou seja, reside no plano
da racionalidade comunicativa. Isso porque o experimento apresenta um enfeixamento de sentidos
oriundos do seu contexto social, histórico e cultural capaz também de potencializar outros sentidos.
Contudo, os sentidos são produzidos na ação dos sujeitos no mundo da vida e, portanto, um experimento
produzido por um determinado grupo social com sua significação atrelada ao contexto cultural da
época, quando apresentado dissociado de seu contexto de origem e numa relação de causalidade
tende a não produzir qualquer sentido a outro grupo social em outro contexto histórico e cultural.
Mais do que isso, visto como uma representação simbólica na qual apoiados e retirados às bases
para a proposição acerca dos estados de coisas no mundo, as suas regras de produção imbricadas
no seu contexto histórico-cultural são constitutivas e definidoras sob o ponto de vista de uma ação
comunicativa.
Assim, Latour e Woolgar (1997, p.20) fazem uma crítica a forma de apresentar o conteúdo
científico, uma vez que isola a “dimensão cognitiva dos fatores sociais que a circundam”, ou seja,
não se efetua “a união entre esses dois conjuntos - o conteúdo científico e o contexto social”, quando
muito se realiza uma “justaposição” de ambos. Os autores desenvolvem o conceito de circunstâncias,
rompendo com a visão tradicional “do que está em volta”, ou seja, algo independente da prática
da ciência, para assegurar que estão ligadas, mais que isso, imbricadas na prática (LATOUR;
WOOLGAR, 1997, p.269). Contudo, alertam quanto à opacidade dessas circunstâncias ao final da
construção do fato científico, uma vez que “os fatos são construídos de modo a que, uma vez resolvida
a controvérsia, eles sejam tomados como fatos adquiridos” (LATOUR, 1999, p.202).
Para superar a opacidade, os museus geralmente optam por apresentar o experimento e o
7 Na visão de Habermas (2002, p.44), a ciência alcançou o status de único conhecimento verdadeiro, e a metodologia científica
constitui-se na base de análise da validade dos procedimentos para produção de conhecimento. A razão passa a ser determinada
apenas pelo seu aspecto formal, sendo a racionalidade dos conteúdos dependente da racionalidade dos procedimentos – a validade
dos conteúdos submete-se à dos resultados. Essa racionalidade instrumental tem sua instância de legitimidade reduzida aos problemas
surgidos na manipulação metodológica da realidade, descolando-se dos problemas prático-morais da vida social.
Na visão de Chauí (2005, p.237) a razão instrumental compreende a transformação de uma ciência em ideologia e mito social e a
concepção da ciência como instrumento de dominação, controle e poder sobre a natureza e sociedade.
8 Esclareço que entendo este processo como um determinado “olhar” que transcende a materialidade do objeto e, por isso mesmo,
pode ser pensado em termos de idéias, conceitos ou teorias. Isto não quer dizer que não defenda a importância do objeto real museológico
nas exposições.
GT92778
seu sentido originário fechado, coisificado, congelado no tempo, naturalizado como uma coisaem-si. Então, Latour e Woolgar (1997, p.131) chamam atenção que na opacidade torna-se difícil
não gerar a “falsa impressão de que a ciência trata da descoberta (mais do que da criatividade e da
construção)”. Acreditamos que evidenciar o “enfeixamento de sentidos” da época de produção do
experimento constitui um movimento que busca delimitar o domínio de sua construção específica.
Indo mais além, a reconstrução das circunstâncias imbricadas na prática científica que originou este
experimento significa ampliar o processo de compreensão na medida em que localiza e especifica-o
num determinado contexto histórico-cultural e, por isso mesmo, possibilita a sua superação, pois
evidencia que aquele experimento constitui uma resposta a questões que os homens se colocam
acerca do mundo e que, muitas vezes, permanecem virtualmente, assumindo atualizações pontuais no
tempo e no espaço, nas quais outras respostas produto de outras circunstâncias são produzidas. Por
isso mesmo, se faz necessário estimular um terceiro movimento, o de problematizar estas questões
virtualizadas que promovem diferentes atualizações no tempo e espaço, propiciando a dimensão
crítica da construção humana e permitindo a “abertura aos outros sentidos” em outras fronteiras e
esferas ancoradas no mundo de vida dos sujeitos sociais no seu tempo.
Dessa forma, a superação da “coisificação” talvez resida em promover articulações dos
conceitos propostos pelo experimento com outros saberes da esfera social e cultural, em especial com
instâncias da cognição, da moral e da expressividade, que, atuando na ordem dos conhecimentos, dos
valores e do sensível possibilitam ultrapassar o tempo no qual se inscreviam. Como os sentidos são
construídos coletivamente no mundo da vida somente pela articulação do experimento com o último
possibilitará ao museu explorar o seu potencial de comunicação, na medida em que o re-coloca nos
jogos de linguagens da prática social.
Ao estabelecer um paralelo com a visão pragmática de Wittgenstein9, só seria possível
apreender o uso de um experimento científico quando se está preparado, ou seja, já se tem o domínio
do seu uso em um contexto qualquer interacional, e não porque se tem o conhecimento das regras de
seu uso naquele contexto. Sobre os processos de significação, Wittgenstein (1979, p.188) acrescenta
que o que nos aparece como “algo”, pode nos levar a uma primeira palavra de identificação intuitiva
num contexto de vivências cotidianas, mas para configurá-lo como “algo” precisa estar numa préimersão no mundo de significações inclusive as socialmente constitutivas. O que se vê e se aprende
depende do “horizonte de expectativas” construído no mundo de vida e, nem mesmo assumir o papel
de um pretenso observador neutro poderá superar esta falsa visão do conhecimento.
As exposições em museus de ciência envolvem uma heterogeneidade de atores, regras e
contextos cujo, mesmo uma abordagem positivista das ciências naturais que pressupõe a “eliminação
do sujeito”, não encontra sustentação no seu espaço comunicacional. Isso porque uma racionalidade
monológica, que não abre a possibilidade de uma orientação racional para a ação social dos sujeitos,
9 Os jogos de linguagem são definidos pelo autor como “o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada”
(1979, p.12) e neste sentido, cada jogo tem suas regras e contextos com diferentes exigências e, portanto, descobrir a significação é
desvendar este conjunto de práticas.
GT92779
não contempla os múltiplos processos e interações na constituição do conhecimento humano.
Reduzindo o conhecimento racional a procedimentos técnicos, esta visão ignora o sentido da ação
humana no âmbito da prática, ou seja, as motivações e intenções dos agentes e o processo histórico
da sua constituição.
O princípio da inteligibilidade da teoria de Wagensberg (2003b) como uma das principais
características da interatividade mental recai no mesmo problema, por se referir à capacidade inteligível
do sujeito frente ao objeto observado. A distinção entre “essencial e acessório” ou “convergências e
divergências” dos diferentes objetos e a sua correlação com outras áreas do conhecimento, incluindo
aqueles advindos da prática cotidiana, constituiu uma possibilidade somente apresentada quando se
constrói o significado do objeto em todo o seu horizonte de potencialidade. Além disso, a competência
para tal distinção reside primeiramente no domínio das práticas científicas para depois produzir as
suas possíveis correlações. Entretanto, como já foi mencionada, a visão do observador, segundo
Latour e Woolgar (1997, p.58), é preferencialmente dos documentos ou inscritores e, como produto
final, mascaram as etapas intermediárias de sua construção.
O princípio da dialética de Wagensberg apóia-se na possibilidade do conhecimento ser
modificado pela experiência pela colocação do indivíduo no papel de quem elaborou o conteúdo
científico - o pesquisador, uma vez que este assume que “os estímulos que favorecem a criação de
um conhecimento são os mesmos que favorecem sua transmissão” (2003a). Para analisar tal princípio
partiremos da reconstrução da mediação entre teoria e prática de Habermas, conforme interpretação
de Mühl (2003, p.290), na qual o interesse constitui substrato da construção do conhecimento humano
a partir da práxis social. Para o autor, a relação teoria e prática não pode ser entendida como a
aplicação ou a derivação de uma instância para outra, mas como uma interação dialética entre os
dois campos que adquirem uma unidade circunstancial pela atividade reflexiva e crítica do sujeito.
Essa mediação se faz através de três critérios: verdade, a capacidade de resistência das teorias aos
discursos científicos; autenticidade, a capacidade de através de processos de experimentação resistir
aos processos de reflexão de determinados grupos, e prudência, a escolha da ação adequada a solução
de problemas. No caso, a relação teoria e prática não se reduz à função cognitiva e técnica, mas
a reconstrução pública de teorias e práticas com a participação de interessados na elaboração do
conhecimento a partir de suas vivências reais. Portanto, não está desvinculada do sujeito intérprete e
participante do processo, ou seja, a relação está mediada por interesses orientadores da ação humana,
ainda que de cunho racional.
Ao esclarecer a relação teoria e prática e defini-la como uma interação dialética, apresentamse subsídios para analisar a proposta de Wagensberg sob o prisma comunicacional. Na visão de
Habermas (2002, p.85), o “estímulo” reside no interesse visto como substrato da construção do
conhecimento humano a partir da práxis social, portanto, situado no mundo de vida de cada sujeito
social. Wagensberg (2003a) situa tal estímulo no âmbito dos procedimentos científicos de construção
do conhecimento, ao invés de situá-lo no que a ciência tem de comum com a esfera social que é a
GT92780
capacidade humana de apropriar-se comunicativamente do mesmo objeto. Situando-se na ciência e
não na esfera social adota-se uma visão reducionista que separa as duas instâncias e, cria uma lacuna
na comunicação entre ambas. Ao invés de mudar o plano de análise, Wagensberg acaba por reforçar
a ciência como instância de construção da racionalidade humana.
Essa visão é evidenciada quando Wagensberg (2003b) escolhe o método científico. Reduzindo
o conhecimento racional a procedimentos técnicos, aproxima-se da visão positivista que ignora o
sentido da ação humana no âmbito da prática, ou seja, as motivações e intenções dos agentes e o processo
histórico da sua constituição. Colocar o indivíduo no papel de quem elaborou o conteúdo científico por
via de uma ação instrumental, ou seja, pela interação (física ou mental) do experimento, como forma
de “modificar o conhecimento” do sujeito, não constitui uma ação com potencial comunicacional,
uma vez que o sujeito constrói sentido a partir das suas vivências no mundo intersubjetivo de vida.
Tal mundo abrange a esfera social e cultural, nas quais se operam relações pessoais da vida cotidiana,
tendo como base a comunicação com o objetivo de alcançar o entendimento sobre algo do mundo
(HABERMAS, 2002, p.88).
A interatividade mental, eminentemente cognitiva, deveria estar associada a outros saberes
como o prático, o moral e o estético numa ação que busca o entendimento com os sujeitos sociais.
Nas palavras de Habermas: “Os processos de entendimento mútuo do mundo da vida carecem, por
isso, de uma tradição cultural em toda sua latitude e não apenas das bênçãos da ciência e da técnica”
(1989, p.33). A interatividade cultural, proposta por Wagensberg (2003b), tem como locus a recepção,
priorizando a abordagem das identidades coletivas do museu. Nesse prisma, o museu como um
espaço de produção de sentido, somente possível no mundo da vida, deveria buscar a integração
entre os diferentes domínios do conhecimento, da moral, da arte e deste com as tradições culturais
que são produzidas na vida social. Ela não pode ser pensada e aplicada apenas sob o ponto de vista
da recepção, conforme Wagensberg propõe para a interatividade cultural, mas em todo o processo
comunicacional museológico, sobretudo na concepção e produção dos programas de exposições.
Por fim, Wagensberg refere-se à emoção nas três instâncias classificatórias da interatividade.
Tal característica atuaria como um elo comum na heterogenia do público, tanto em termos de faixa
etária como na sua formação escolar, cultural e social.
Ao refletir sobre os processos emocionais e a possibilidade de estabelecer um elo entre os
sujeitos heterogêneos, acreditamos que este aspecto seria desejável até mesmo incentivado nas
exposições dos museus. Entretanto, o seu ponto de ancoragem nas práticas científicas estabelece
uma barreira para que essa interação se efetue. Isso porque um denominador comum dos sujeitos,
proveniente da sua condição humana, constitui a ordem do sensível. Contudo, a sua possibilidade
está relacionada à biografia dos indivíduos construída coletivamente nas práticas sociais e culturais e,
portanto, remete aos sentidos do mundo da vida. Dessa forma, apostar apenas em uma das instâncias
da esfera cultural10 constitui reduzir as possibilidades de interação do plano emocional e alijar os
10 Denominação de Habermas que compreende as instâncias da ciência e tecnologia, estética e moral.
GT92781
processos sociais e comunicacionais de produção de sentido.
5. Considerações finais
Ao longo deste texto, procuramos realizar uma análise crítica do conceito de interatividade
como utilizado pelo físico e diretor do Museu Cosmocaixa, Jorge Wagensberg a partir teoria crítica
de Jürgen Habermas e dos estudos sociais de Bruno Latour.
Essas duas correntes de pensamento, apesar de divergentes em muitos aspectos, não
deixam de representar diferentes faces de questões que perpassam a produção do conhecimento da
atualidade. Tendo como preocupação comum o enriquecimento da experiência, estas duas abordagens
se complementam e apontam para a necessidade de uma visão mais ampla dos conceitos, práticas
e recursos museológicos que embasam as ações de comunicação em ciência e tecnologia. A
complexidade das questões atuais demanda uma perspectiva de conjunto, sempre provisória, parcial
e historicamente condicionada, mas que tem sua importância assegurada nos processos de avaliação
da dimensão de cada elemento inserido numa estrutura significativa.
Assim, ao apresentar uma reflexão sobre o potencial do experimento como recurso interativo
buscamos subsidiar práticas fundamentadas em concepções atuais da filosofia da ciência que assumem
a complexidade das ações de divulgação de ciência e do seu diálogo com o mundo sociocultural que
permeia o cotidiano da nossa sociedade.
Longe de esgotar ou encerrar o olhar sobre os conceitos de Jorge Wagensberg, este estudo
sinaliza para a importância de analisar criticamente os pressupostos filosóficos que subsidiam a práxis
museológica, de tal forma que possamos promover a mudança do nosso papel instrumental de reforçar
contextos instituídos para sermos sujeitos instituintes de novas possibilidades históricas.
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GT92784
COMUNICAÇÃO ORAL
PRESERVAÇÃO DE CIANÓTIPOS DO FUNDO
OBSERVATÓRIO NACIONAL DEPOSITADOS NO ARQUIVO
DE HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS DO MAST
Ana Paula Corrêa de Carvalho, Marcus Granato, Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda
Resumo: O presente trabalho aborda a preservação de plantas arquitetônica, em especial, as plantas
manufaturadas pelo processo de reprodução cianótipo. Aponta outros três processos também
relacionados: blueprint, Pellet e diazo. Realizou-se um levantamento bibliográfico de literatura
nacional e estrangeira sobre: técnicas e métodos empregados na reprodução de plantas arquitetônicas
entre os anos de 1850 até 1920, preservação e conservação de acervos de plantas arquitetônicas,
metodologias de identificação de plantas produzidas pelo processo cianótipo. Será apresentado um
estudo realizado com um conjunto de plantas arquitetônicas francesas produzidas pelo processo
cianótipo, datadas de cerca de 1870, e pertencentes ao fundo Observatório Nacional (ON),
depositado no Arquivo de História das Ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST.
Esses documentos se encontravam em estado precário de conservação. Foram feitas analise visual,
fotomacrografias, fotomicrografias e análises por fluorescência de Raios X em fragmentos/amostras
dessas plantas arquitetônicas. Essa abordagem teve por objetivo identificar o processo de produção
e alguns fatores/elementos de degradação do cianótipo, contribuindo para subsidiar a elaboração de
uma proposta de conservação para o conjunto estudado.
Palavras-chave: museologia, preservação, plantas arquitetônicas, cianótipos, conservação.
Abstract: This paper addresses the preservation of architectural plans, especially the ones manufactured
by the cyanotype process. Other three related processes, blueprint, diazo and Pellet, are also discussed. A
review of national and international literature was conducted on the following aspects: techniques and
methods employed in the reproduction of architectural plans between the 1850 to 1920; preservation
and conservation of collections of architectural plans; methods of identifying plans produced by the
cyanotype process. It will be presented a study of a set of French architectural plans produced by
the cyanotype process, dated about 1870, belonging to the National Observatory (ON) collection,
deposited in the MAST’s Archives of the History of Science. These documents were in a precarious
state of conservation. It was conducted visual analyzes, photomacrographs, photomicrographs and
analysis by X-ray fluorescence in fragments / samples of mentioned architectural plans. This approach
aimed to identify the production process and some factors that affects the degradation of cyanotypes,
helping to subsidize the development of a conservation proposal for the group studied.
Key-words: museology, preservation, architectural plans, cyanotipes, conservation.
1- INTRODUÇÃO
Os acervos de documentação arquitetônica são uma fonte de consulta frequente e têm sua
importância reconhecida internacionalmente. Na prática, devido às suas especificidades, tais como as
GT92785
dimensões, os diferentes suportes e técnicas de produção, torna-se difícil a sua guarda e preservação
de forma adequada.
Pelo fato da grande utilização das plantas arquitetônicas no período de obras e pelas muitas
modificações e adaptações que o original pode sofrer, é habitual produzirem-se inúmeras cópias.
Estas, entretanto, necessitam ser legíveis e de boa qualidade visual, a fim de que as informações
nelas presentes possam ser identificadas com precisão. No caso de documentos em escala, deve-se
optar por processos de impressão nos quais o papel não sofra alterações dimensionais, a fim de não
comprometer a precisão das medidas.
Por outro lado, a conservação inadequada, também resulta em perdas ou danos, dificultando a
utilização dessa massa documental na produção de novos conhecimentos. Na visão de Hidesheimer
(1987), praticamente todos os países conservam arquivos com plantas de arquitetura, de cuja busca e
conservação se ocupam os arquivos, os museus, os institutos especializados e, às vezes, as bibliotecas
das instituições. No entanto, a preservação de acervos de qualquer natureza/suporte não constitui
um fim, uma ação em si mesma. Ela se relaciona com o patrimônio, com o que ele representa, com
a memória, com critérios de “escolhas” e com políticas de preservação e de proteção do patrimônio.
O objeto de estudo desse trabalho se insere no contexto do século XIX, são as plantas
arquitetônicas, em especial, as reproduções em processo cianótipo, processo descoberto na década de
1850, tendo o auge da sua utilização nos anos 1880 e subsistindo até meados de 1950.
O processo surge na conjuntura de grande demanda construtiva, principalmente nas décadas
de 1870-1890, que estava ligada à economia, à ciência, ao social e à efervescência da burguesia,
do capitalismo e da industrialização. A idéia de “civilização” e “progresso” se exemplificava na
construção de prédios, pontes, escolas, estações ferroviárias, entre outros. O ritmo dessas construções
não permitia que se fizessem mais desenhos arquitetônicos a bico de pena ou com nanquim aquarelado
e nem cópias com retoques de aquarela e guache. Para acompanhar o ritmo das construções, as técnicas
de reprodução fotográficas/mecânica eram mais dinâmicas e econômicas.
Na efervescência da Belle Époque ocorre uma grande proliferação de desenhos de arquitetura
e de suas cópias e a constituição de empresas especializadas em explorar o potencial técnico da
cianotipia, como meio de reprografia. Ware (2003) cita, por exemplo, que as empresas de engenharia
usaram o processo cianótipo para documentar estudos topográficos importantes.
2 O CASO DO PROCESSO CIANÓTIPO: PRODUÇÃO E DEGRADAÇÃO
Nesse item, serão apresentadas informações relacionadas à produção e à degradação dos
cianótipos, divididas em subitens que envolvem os constituintes e a formação da cor no processo, os
diferentes tipos cianótipos e as causas da sua degradação.
2.1 Constituintes e formação da cor
As primeiras técnicas de reprodução como a cianotipia começaram a ser utilizadas por volta
GT92786
de 1850. Segundo Ware (1999), o processo cianótipo é um processo de impressão fotográfica e
foi inventado pelo cientista e astrônomo inglês John Herschel (1792-1871), em 1842. O processo
cianótipo utiliza um composto orgânico de carbono, nitrogênio, enxofre e hidrogênio (CSN2H4 ou
(NH2)2CS), que resulta em uma impressão em tons de azul. No caso, o cianótipo seria então uma
fotografia em que a imagem por revelação é produzida com a formação do azul da Prússia1.
O azul sempre foi um pigmento difícil de ser encontrado na natureza e nem sempre é uma
cor fácil de produzir. Os pigmentos azuis do passado costumavam ser caros, o azul ultramarino,
por exemplo, era feito de lápis-lázuli (uma pedra preciosa, moída), cujo preço na Idade Média era
comparável ao ouro e a cor era símbolo de majestade e riqueza. Outro tom de azul, como o cobalto,
era venenoso, sendo carcinogênico (WARE, 1999). Para nosso objeto de estudo, a cianotipia, é
interessante compreendermos um pouco da história do chamado azul da Prússia.
Descoberto por acaso em Berlim, em 1705, pelo pintor e químico alemão Heinrich Diesbach,
o azul da Prússia é um composto sólido inorgânico. Na Idade Moderna, foi o primeiro azul obtido por
síntese e uma descoberta de grande sucesso comercial na época (WARE, 1999).
Diesbach tentava produzir uma cor vermelha usando ferro e sulfato de potássio, quando o
potássio foi contaminado com óleo animal (que era preparado a partir de sangue). Dessa reação,
resultou a cor azul. Diesbach percebeu que era mais barato produzi-lo do que o azul ultramarino.
A receita do azul da Prússia permaneceu em segredo até 1724, quando foi publicada na revista
Philosophical Transactions, o que permitiu sua difusão não só na Europa como em outros lugares.
Foram organizadas compilações e palestras públicas sobre o azul da Prússia (LOWENGARD, 2006).
Segundo Ware (2003), a molécula do azul da Prússia (Fe+3[Fe+2(CN)6])- tem o elemento Ferro
em dois estados de oxidação, as formas tri (Fe+3) e divalentes (Fe+2). Devido a estes dois estados de
valência do Ferro, ocorre uma transferência de carga que absorve a luz no comprimento do vermelho
(700nm). Essa energia absorvida mantém a transferência, mas como a luz que volta da molécula
está sem o componente vermelho, que foi absorvido, a cor que se observa é o azul. A cor é, portanto,
resultado de uma transferência de carga.
O azul da Prússia é formado em 3 etapas:
1ª etapa: Reação do carboxilato de Fe+3 com a luz e formação do carboxilato de Fe+2.
hn + 2[Fe+3(C2O4)3]3- ® 2[Fe+2(C2O4)2]2- + C2O42- + 2CO2
onde hn é a energia luminosa.
Como podemos notar, a luz faz a reação acontecer, por isso a reação é conhecida como de
foto-decomposição do carboxilato. É o mesmo tipo de reação que acontece quando se deixa a celulose
exposta à luz, provocando a sua decomposição e formando grupos carbonilos (cetonas e aldeídos),
que têm a cor amarela.
1
Recebeu esse nome por ter sido usado no tingimento dos uniformes militares prussianos.
GT92787
2ª etapa: Decomposição do carboxilato de FeII em Fe+2 e carboxilato (C2O42-)
[Fe2+(C2O4)2] 2-
=
Fe2+(aq) + 2 C2O42-
Ressaltamos que uma vez formado o íon [Fe2+(C2O4)2]2-, este reage com a água do ambiente,
decompondo-se em Fe+2 e o carboxilato.
3ª etapa: Reação do Fe+2 com o ferricianeto e formação do ferroferricianeto (cor azul)
Fe2+(aq) + [Fe3+(CN)6]3- → Fe3+[Fe2+(CN)6]Como se observa, o íon Fe2+, livre no meio, reage com o ferricianato, transferindo-lhe a carga.
Como o produto formado é insolúvel, sedimenta-se no papel e adere à fibra de celulose, propiciando
a formação da imagem.
Embora a fórmula tenha sido atribuída a Herschel, foi Anna Atkins quem trouxe o processo
cianótipo para a fotografia, difundindo seu uso. Atkins ficou conhecida por ser a primeira mulher
fotógrafa. Como se interessava por botânica, seus primeiros trabalhos utilizando o processo cianótipo
foram livros documentando plantas - aqui usado no sentido botânico do termo. Em 1843, ela produz
o primeiro livro inteiramente fotográfico2. Atualmente, este exemplar encontra-se no National Media
Museum, em Brandford, Inglaterra (WARE, 1999).
2.2 Causas da degradação
Ware (2003) desenvolveu um estudo para o Museu Nacional de Fotografia, Cinema e Televisão,
em Brandford, na Inglaterra, sobre a degradação, vulnerabilidade e os níveis de danos do processo
cianótipo. Ware aponta as três principais causas de degradação a que estariam sujeitos os cianótipos,
que tem relação com as propriedades químicas do azul da Prússia, identificando três direções distintas
em que o processo cianótipo é vulnerável: a redução fotoquímica, a hidrólise alcalina e a peptização
aquosa.
Na redução fotoquímica, o oxigênio do ar participa como agente redutor do Fe3+ a Fe2+, sendo
que a luz desempenha um papel de catalizador:
hn + 2[Fe3+(C2O4)3]3- → 2[Fe2+(C2O4)2]2- + C2O42- + 2CO2
A hidrólise é um termo aplicado a reações orgânicas em que a água efetua uma troca com
outro composto. No caso, a hidrólise alcalina é uma reação química que se processa em meio aquoso
com presença de um composto alcalino. Neste processo, a água participa como agente da reação e
favorece a produção do óxido férrico hidratado e íons de ferrocianato.
A terceira causa de degradação, a peptização aquosa, ocorre com a transformação de uma
substância sólida numa solução coloidal. Há uma dispersão espontânea do azul da Prússia em água,
2 No endereço: http://www.alternativephotography.com/wp/history/cyanotype-history-john-herschels-invention, é possível
visualizar uma Imagem de 1843 do livro “Photographs of britisth alge” de Anna Atkins; inteiramente composto por imagens fotográficas,
em processo cianótipo.
GT92788
por isso é desaconselhável qualquer tipo de tratamento de conservação/restauração envolvendo
cianótipos em meio aquoso, pois no processo de lavagem (aquoso) perde-se a densidade da linha por
ação do agente peptizante (água).
Os efeitos de destruição podem ser respectivamente: o esmaecimento/descoloração, o
branqueamento e a dispersão. Cada um leva a uma perda de azul da Prússia na imagem, mas cada um
é quimicamente distinto em suas causas e produtos.
2.3 Os diferentes cianótipos
Após a morte de Herschel, em 1871, a cianotipia foi “reinventada”, sendo o principal mercado
para essa técnica a cópia de desenhos/plantas arquitetônicas. Ressaltamos, no entanto, a mudança na
terminologia que caracterizamos a seguir:
a) se o processo for fotográfico, a terminologia usada será processo cianótipo3;
b) se o processo for usado para desenhos arquitetônicos, a terminologia será:
- Processo Pellet - imagem positiva (linhas azuis sobre fundo branco);
- Processo Blueprint - imagem negativa (linhas brancas sobre fundo azul).
Para alguns autores, especialistas e estudiosos da técnica, quando se refere especificamente
aos desenhos/plantas arquitetônicos, o nome do processo passa a ser blueprint, o processo negativo
- linhas brancas sobre fundo azul, ou processo Pellet, o processo positivo - linhas azuis sobre fundo
branco. Assim, percebe-se apenas uma mudança de nome, da seguinte forma: fotografia = cianótipo;
plantas arquitetônicas = blueprint (negativo) ou Pellet (positivo). No que concerne à composição
química, seria praticamente a mesma composição, com pequenas variações.
A seguir, são apresentadas nas Figuras 1 e 2, plantas arquitetônicas do acervo do MAST. Nos
exemplos, ambas as plantas foram classificadas, inicialmente, como cianótipos.
Figura 1 - Planta do acervo MAST classificada inicialmente como cianótipo. Vue en plan du bordé
código ON-PL 0050 – planta 5 parte 2 (Foto da autora, 2010).
3 Segundo o dicionário do SAA - A Glossary of Archival and Records Terminology. Onde cianótipo (cyanotype) é usado para definir
fotografia.
GT92789
Kissel (1994) afirma que o papel sensibilizado4 empolgou os arquitetos, que passaram a fazer
seu uso, tornando-o bastante popular nas firmas de arquitetura, em 1870. Segundo a autora, a expansão
comercial deste papel fez surgir firmas especializadas na sua produção e comercialização, sendo a
primeira companhia a Marion, em Paris, no ano de 1876. Nos Estados Unidos, do mesmo modo,
foram criadas muitas empresas especializadas em fazer cópias de plantas arquitetônicas usando esta
técnica. A produção barata e o resultado de boa qualidade visual tornaram este método muito popular.
Figura 2 - Planta do acervo MAST classificada inicialmente como cianótipo. Sem título, código
ON.pl.0050 – planta1 (Foto da autora, 2010).
As primeiras máquinas de exposição da cianótipa, à iluminação artificial, datam de cerca
de 1895, sendo usadas até a década de 1930 (KISSEL, 1994, p.45). O processo que antes utilizava
a exposição natural à luz solar passa a ser feito através da exposição à luz elétrica, passando a ser
artificial.
3 ALGUNS PROCESSOS DE REPRODUÇÃO DE PLANTAS ARQUITETÔNICAS,
CARACTERÍSTICAS, IDENTIFICAÇÃO E DEGRADAÇÃO
Nesse item, serão apresentadas informações relacionadas a alguns processos de produção de
plantas arquitetônicas, mais especificamente o Blueprint negativa, o pellet e o diazótipo, destacando
suas características, procedimentos de identificação e causas da degradação.
3.1 Processo Blueprint negativa
Como apresentado, o processo blueprint foi usado por firmas de arquitetura, desde 1870 até a
II Grande Guerra Mundial, principalmente nos Estados Unidos (KISSEL, 1994). Já no ano de 1870,
temos o primeiro papel pré-sensibilizado, entretanto seu uso comercial se dá a partir de 1876. Em
4 A respeito do papel pré-sensibilizado: os papéis utilizados para o desenho de plantas e mapas eram comprados em rolos de 10 a 20
metros, tendo entre 75 a 100 cm de largura e já vinham com uma camada sensível para impressão. (RIVAS e BARBACHANO, 1987).
GT92790
1920, são criadas máquinas completas para fazer plantas arquitetônicas - expunham, processavam e
secavam.
O azul é o melhor indicador de um blueprint e é essencial reconhecer os vários tipos de tons
de azul da Prússia (Fe4[Fe(CN)6]3), que podem ocorrer. São imagens de alto contraste, embora a
intensidade do azul dependa de alguns fatores como a emulsão, o tempo de exposição e a quantidade
de luz a que foi exposta na sua manufatura.
A impressão tem superfície fosca com fibras dilatadas, típicas do processamento à úmido. A
parte da impressão permanece com cor uniforme, ocasionalmente manchada pela solução (emulsão)
de sensibilização, se for mal aplicada.
O processo de reprodução/cópia dos desenhos arquitetônicos, resultando em blueprint
negativa, acontecia da seguinte forma: o papel que, inicialmente, era revestido com gelatina, era
sensibilizado com uma solução contendo partes iguais de citrato de ferro, amônia e ferrocianeto
de potássio e, então, deixava-se secar em área escura e fresca. O papel sensibilizado era exposto à
luz, tendo sobre ele um desenho original em suporte translúcido ou transparente. Nas áreas onde a
luz batia no papel (exceto naquelas bloqueadas pelas linhas no desenho original), os sais férricos
presentes eram reduzidos a sal ferroso. O tempo da exposição era determinado pelo exame visual ou
pelo uso de tiras de teste de papel sensibilizado, que eram expostas simultaneamente e verificadas.
Ao final da exposição, o papel passava por um banho por imersão. Em contato com a água, o
sal ferroso produzia o ferrocianeto férrico (pigmento conhecido como azul da Prússia (Fe[Fe(CN)6]3).
O papel era então lavado para retirar os remanescentes de sal férrico (onde não houve exposição),
deixando aparecer as linhas brancas, que formam a imagem (blueprint negativa). Com o decorrer
do tempo, a qualidade do papel-suporte da cópia variou. Antes das máquinas de processamento,
geralmente, o papel era resistente, contendo 25% de fibras de trapo e possuía poucas impurezas
químicas para não interferir no processo.
Sobre o processo de degradação do blueprint, podemos citar que freqüentemente estão
presentes resíduos de ácidos orgânicos ativos, que prejudicam a estabilidade da impressão ao longo
do tempo. Já a degradação causada quando expostos à luz pode ocorrer muito rapidamente (algumas
vezes em menos de uma hora sobre luz fluorescente), provocando o esmaecimento. Em alguns casos,
pode ocorrer uma reversão do esmaecimento, quando a impressão/documento retorna à armazenagem,
ou seja, é acondicionado em local escuro, embora este fenômeno não seja constante. Por esse motivo,
a exposição à luz deveria ser reduzida ao mínimo.
Os pigmentos de azul da Prússia são sensíveis a atmosferas alcalinas, causando tendências a
desenvolver tons de marrom, especialmente se a umidade relativa no ambiente é alta. Para evitar tal
problema, geralmente se recomenda armazenagem em invólucros de pH neutro, sem reserva alcalina,
e o controle da umidade relativa e sua manutenção dentro dos níveis aceitáveis.
A sugestão de armazenagem seria em filmes de poliéster, que agem como barreira à
alcalinidade. Ao fazer este isolamento com uso do poliéster, os blueprints podem ser armazenados
GT92791
juntos a outros suportes. O processo, segundo Kissel e Vigneau (1999), é resistente à imersão, embora
isso possa resultar em algum esmaecimento. No caso de inundação, considera-se que a blueprint pode
ficar imersa mais de 24 horas sem o risco de perda completa da imagem, o que indica nos casos de
emergência, a prioridade no salvamento de outros acervos.
Na Figura 3, apresentada a seguir, podemos observar um produto do processo blueprint em
plantas arquitetônicas. Por esse motivo, trata-se apenas de uma questão de nomenclatura/terminologia,
pois os processos são semelhantes.
Figura 3 - Exemplo de blueprint negativo (linhas brancas sobre fundo azul)5. Acervo: MAST, planta ON_
PL0048 2. (Foto da autora, 2010)
3.2 Processo Pellet6
Geralmente o processo Pellet é descrito junto com o processo blueprint positiva, pois os
resultados são muito próximos na aparência. Os produtos desses processos podem ser armazenados
juntos com segurança, porque seus elementos de manufatura são idênticos e não são prejudiciais um
ao outro. Ambos são constituídos por linhas em azul da Prússia e fundo claro (ausência do pigmento).
A patente Pellet data de 1877 (KISSEL e VIGNEAU, 1999). Esse tipo de cópia de plantas7 foi
produzido para ser apresentado nos escritórios dos departamentos de construção, com o propósito de
uma leitura mais clara, uma vez que o processo Pellet produz uma impressão no mesmo nível de um
desenho original.
Como as diferenças da imagem da linha são mínimas, para Kissel e Vigneau (1999) é
importante saber distingui-las daquelas impressões em diazótipos. Desde que não haja emulsão, as
fibras do papel são vistas facilmente sob uma lupa. Tal como na blueprint negativa, as fibras aparecem
tingidas de azul, como podemos observar na Figura 4. Entretanto, ao invés do fundo, agora as linhas
5 Segundo KISSEL e VIGNEAU (1999), o blueprint pode conter listras/traços com pontos, se um excesso de sal ferroso estiver
presente durante a fase de processo e freqüentemente tem um tom azul suave fraco. É possível ainda, encontrar variedades no tom do
azul (KISSEL e VIGNEAU, 1999, p.35).
6 Também aparecem como sinônimos: cianótipo positivo e blueprint positiva (KISSEL e VIGNEAU, 1999).
7 Aqui usado como termo no sentido arquitetônico.
GT92792
é que têm aparência colorida e tingida, quando vistas em ampliações.
Figura 4 - Fotomicrofotografia de amostra da planta ON-PL 0051-planta 10, é possível observar a interface
de listas e as linhas azuis pousam na superfície do papel devido à emulsão (aumento de 400x)8. Acervo
MAST. (Foto da autora, 2010).
Outros indícios pelos quais podemos afirmar o processo são, segundo Kissel e Vigneau (1999):
o fundo da planta feita pelo processo Pellet tem um branco claro9 com ocasionais pontos azuis (ver
Figura 5); porém, as linhas do desenho são uniformes, como podemos observar nas Figuras 6 e 7.
O suporte é sensibilizado, exposto e processado de modo similar à blueprint, mas os processos
químicos envolvidos são um pouco diferentes. A solução de sensibilização contém sais férricos em
uma substância coloidal, tal como a gelatina; os sais férricos têm a propriedade do colóide (insolúvel),
ao mesmo tempo em que é solúvel quando misturado com o sal ferroso. O papel é exposto e os sais
férricos são reduzidos a sal ferroso nas áreas que são atingidas pela luz através do desenho original.
A impressão é então processada em um banho.
Figura 5 - Fotomacrografia10 da planta ON-PL 0051-planta 10, onde é possível observar ocasionais pontos
azuis, uma das características do processo. Acervo MAST. (Foto da autora, 2010).
8 Equipamento utilizado: Invverted metalurgical microscope XJL-17 , modelo DM 200M, fabricado por GX Microscopes.
9 Nesse caso o tom do fundo da planta apresenta uma tonalidade escurecida, provavelmente devido a acidez do papel.
10 Fotomacrografia feita com a utilização dos equipamentos PHASE-ONE-45 e máquina fotográfica HASSELBLAD. Foram
utilizadas lentes com 80mm, aplicadas a tubo de extensão, de altura variada conforme detalhamento da fotografia retirada.
GT92793
6
7
Figuras 6 e 7 - Fotomacrografia11 da planta ON-PL 0051-planta 10, onde podemos observar a uniformidade e
a densidade das linhas do desenho. Acervo MAST. (Foto da autora, 2010).
Os sais ferrosos e a gelatina solúvel são enxaguados, enquanto que os sais férricos combinam
com produtos químicos em solução para produzir o azul da Prússia. A impressão é então lavada
em água com auxílio de pincéis para remover a solução coloidal que permanecia no fundo branco.
Aplicava-se então um banho levemente ácido para eliminar os sais inativos que ficavam e para
intensificar a densidade das linhas azuis.
O processo de degradação segue o mesmo princípio válido para o blueprint: freqüentemente
contém ácidos orgânicos residuais ativos, que podem prejudicar sua estabilidade em longo prazo.
Ambos, blueprint e Pellet esmaecem quando expostos à luz e isto pode ocorrer rapidamente. Sobre
armazenamento, podemos dizer que podem ser armazenados juntos com desenhos, desde que usando
filme de poliéster para separá-los.
3.3 Processo diazótipo12
É um processo realizado por meio do revestimento de uma superfície do papel com uma solução
que contém um diazocomposto13, que se decompõe ao ser exposto à luz. Em seguida, o composto,
nas partes não-expostas, é convertido em uma imagem colorida formada por um diazocorante, por
revelação, através do uso de uma solução alcalina ou com amônia gasosa.
O diazótipo foi inventado por volta de 1880, quando muitas pesquisas estavam sendo feitas com
corantes aromáticos usados na indústria têxtil. A patente inicial descreve um processo negativo, mas,
em 1890, uma patente foi feita para um processo positivo direto. Hoje os diazótipos são impressões
positivas.
Os primeiros diazótipos eram processados por imersão em um banho alcalino (processo
úmido) ou pincelados com uma camada de solução alcalina sobre um lado (processo semi-úmido).
Isto causava uma distorção do suporte e, mesmo sendo o custo de manufatura mais baixo que o
blueprint, o processo não foi amplamente usado até 1920.
11 Fotomacrografia feita com a utilização dos equipamentos PHASE-ONE-45 e máquina fotográfica HASSELBLAD. Foram
utilizadas lentes com 80mm e aplicadas a tubo de extensão que possui altura variada conforme detalhamento da fotografia retirada.
12 A palavra ozalid é um anagrama de diazol, nome da substância com que a empresa Ozalid fabricou esse papel e registrou a marca.
13 Composto que contém o grupo NH2 unido com carbono em um radical orgânico.
GT92794
Os diazótipos são produzidos sem uma emulsão. O corante é formado diretamente sobre
a superfície do papel opaco, que é feito com fibras de algodão ou madeira. A imagem é formada
pela reação química do composto aromático com um reagente radical de base fenol ou naftol. Por
esse motivo, a cor da linha irá depender da escolha do “reagente”. A linha azul do diazótipo será
produzida quando um reagente naftol (C10H7OH) é usado. Entretanto, as fibras tingidas podem ser
facilmente vistas usando uma lupa que permita uma ampliação de 10x a 30x. O fundo do diazótipo
é freqüentemente branco manchado, salpicado e sujo. Esta “sujeira” pode ser causada por um
número de variáveis, dentre elas as reações prematuras acidentais do corante (devido a condições de
armazenagem instáveis)14.
O maior indício para identificação do diazótipo está ligado à degradação causada pelos reagentes
químicos residuais, que oxidam e causam ao suporte papel o retorno a um amarelo amarronzado. Esta
coloração é sempre mais pronunciada ao longo da margem da impressão e ocorre apenas no lado da
imagem.
Quanto ao processo de degradação, podemos observar que, ao contrário de muitos processos
de impressão que são realizados a úmido ou lavados, o diazótipo tem uma química residual que
permanece no papel porque, na etapa de secagem, freqüentemente é empregado ar quente. A
degradação de diazótipo é ligada a este fator, que é inerente à manufatura.
Dessa forma, as impressões a seco são mais ácidas do que as impressões produzidas com
processos semi-úmidos. Isto é importante quando os suportes em papel ficam degradados e quebradiços,
devido aos ácidos residuais. Se os papéis são de fibras de madeira, podem ser encontrados rasgos e
dobras e/ou fraturas muito prejudiciais. Alguns suportes tornam-se desidratados e frágeis. Sobre a
questão da ação da luz, os diazótipos podem se decompor quando expostos à luz, isso ocorre em
função do revestimento que recebem durante o processo de produção. Os corantes aromáticos são
estáveis em radiação ultra-violeta (UV), mas não em condições ácidas.
Segundo Kissel e Vigneau (1999), se os fenóis oxidam em ambiente alcalino, este material
deveria ser acondicionado em folders de pH neutro ou isolados de papel com reserva alcalina por
invólucros de filme de poliéster. Recomenda-se, portanto, separá-los de documentos que usam a
amônia como processador dos produtos de enxofre contidos em alguns diazótipos.
4 - PLANTAS ARQUITETÔNICAS EM PROCESSOS CIANÓTIPO DO ACERVO MAST:
IDENTIFICAÇÃO, CARACTERÍSTICAS E ESTADO DE CONSERVAÇÃO
O Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) possui em seu Arquivo de História da
Ciência (AHC) documentos textuais, iconográficos, cartográficos (incluindo plantas arquitetônicas)
14 No artigo: “Photo-reproductive process used for the duplication of architectural and engineering drawings:creating Guidelines for
identification”, é possível encontrar fotografias que caracterizam o processo diazótipo. Os autores fizeram comparação desse processo
com o processo Pellet, cianótipo, entre outros. Disponível em: >http://cool.conservation-us.org/coolaic/sg/bpg/annual/v14/bp14-05.
html< . Acesso em: 20 de Mai. 2011.
GT92795
e impressos na área de ciência e tecnologia, que foram doados à instituição. O fundo arquivístico
cartográfico do Observatório Nacional - ON, depositado no AHC, é composto de plantas encomendadas
para a locação da instituição, então Imperial Observatório, quando esta deixou o Morro do Castelo
e veio instalar-se no Morro de São Januário. O acervo é compreendido de 53 dossiês, nos quais
podemos encontrar: plantas de situação do campus; locação de instrumentos; estrutura e engrenagem
de rotação de cúpulas metálicas; corte do prédio sede e construções; entre outros. Estes dossiês foram
divididos segundo os assuntos, a cronologia e a origem dos documentos.
Um grupo com 22 plantas de origem francesa, identificado como produzidos pelo processo de
reprodução em cianótipo e que possui as mesmas características de deterioração, foi separado para
tratamento. Neste grupo, as plantas estão organizadas em três dossiês, correspondendo aos códigos
ON.Pl.0050, com 6 plantas; ON.Pl.0051, com 14 plantas; e ON.Pl.0052, com 2 plantas. Todos os três
conjuntos foram atribuídos a firma Societé Anonyme des Anciens Etablts Cail, sendo que o conjunto
0050 não possui data; o conjunto 0051 tem como data 1890; e no conjunto 0052 a referência é o ano
1887. Neste caso, a organização do conjunto privilegiou o agrupamento cronológico. É sobre esse
conjunto que trataremos a seguir.
A descrição desses dossiês identifica as plantas como sendo da Cúpula 7,50m. Algumas
informações, obtidas no levantamento do histórico do acervo, apontam que as plantas foram
encomendadas para abrigar a equatorial fotográfica, possibilitando a participação do Brasil no projeto
de cooperação internacional denominado “Carta do Céu”15, em 1887. Por inúmeras razões, dentre as
quais a proclamação da República, o Brasil acabou sendo substituído pelo Observatório de La Plata,
na Argentina. O conjunto estudado constitui-se de plantas que foram produzidas em Paris, conforme
pode ser observado pelos carimbos, idioma e outras informações constantes no suporte.
O conjunto de 22 plantas arquitetônicas veio para o MAST na época de sua criação, juntamente
com o restante do acervo arquivístico do Observatório Nacional. Inicialmente, essas plantas ficaram
acondicionadas numa mapoteca na edificação onde foi instalado o Arquivo de História da Ciência da
instituição. O processo de acondicionamento utilizado foi através de folder de papel neutro.
Podemos dizer, de acordo com a análise visual, com o resultado das microanálises (ver Figuras
4, 6 e 7) e com base na bibliografia estudada, que o conjunto aqui estudado pode ser caracterizado como
produzido pelo processo cianótipo. Esses dossiês de plantas de origem francesa foram selecionados
para o estudo de caso, depois que alguns dos exemplares, tratados entre os anos de 1987 e 1992, não
apresentaram resultados satisfatórios de conservação.
A maioria das plantas foi tratada entre 1987 e 1988. As plantas apresentavam, de acordo com
a ficha técnica, os seguintes danos: a acidez acentuada, sujeira, presença de fitas adesivas (mágica e
gomada), manchas (de fungos, cola e sujidades), carimbos, partes faltantes, dobras, rasgos, bordas
15 O projeto “Carta do Céu” foi de grande relevância científica, por ter envolvido diversos países, diferentes culturas e níveis de
desenvolvimento cientifico. A proposta, por iniciativa e coordenação do Observatório Astronômico de Paris, previa a construção de um
grande catálogo astro-fotográfico e um completo mapeamento do céu por meio de fotografia, o que só foi possível no final do século
XIX, devido às várias descobertas científicas e invenções, entre elas a fotografia.
GT92796
frágeis, escritos à caneta. O tratamento utilizado nessa época foi de limpeza mecânica, desacidificação
aquosa por imersão (água deionizada e carbonato de cálcio), enxertos e reforços com papel japonês
e cola CMC (carboximetil celulose). Antes do tratamento, o pH das plantas era, em média, de 4,
passando a 6-7, após o tratamento.
A restauração de grande parte deste conjunto foi realizada na tentativa de dar aos documentos
em estado crítico de conservação condições de uso e, especialmente, de manuseio ou reprodução.
Essas plantas se encontravam muito quebradiças e, em sua maioria, apresentavam-se como “quebracabeças”, algumas com perdas.
Foram recuperadas e reunidas as fichas-diagnóstico e de tratamento produzidas nas décadas de
1980-1990. Em seguida, foi realizado um novo diagnóstico do conjunto, mantendo-se os códigos de
identificação de cada planta. Para efeito de observação da situação atual na qual se encontra o acervo,
foram anotados nesta ficha o histórico dos tratamentos e as intervenções anteriores. Nesta etapa,
foi feita a verificação e conferência de cada ficha e código com as respectivas plantas e elaborado o
diagnóstico de cada uma, constando de codificação, identificação, data dos três dossiês em cianótipo,
presença de carimbos, cor da linha, cor do papel, cor do fundo, número de camadas, aspectos da frente
e do verso. Além desse diagnóstico qualitativo, todas as plantas foram fotografadas (frente e verso),
com o objetivo de documentar e auxiliar na análise visual. Para essa etapa foi necessário padronizar
a terminologia. As plantas foram separadas/agrupadas pelo conjunto e ordem.
Foram estabelecidos parâmetros específicos para a análise visual desse acervo, com o objetivo
de identificar conjuntos com características visuais semelhantes. Foram observados aspectos da
frente e do verso dos documentos. Tal abordagem considera como método de observação: a cor
da linha (desenho); a cor do fundo (suporte); e as marcas de produção, como os carimbos, escala,
número original da planta e datação. Nesta etapa, foi estabelecida uma terminologia para observação
dos efeitos visuais resultantes do processo em cianótipo, principalmente em relação aos aspectos
da cor de fundo que caracterizam o anverso das plantas. Para tal, foram padronizados os termos:
fundo translúcido e fundo malhado em marrom claro, médio e escuro. No verso de algumas plantas,
destacam-se manchas de coloração azul, que são atribuídas ao resíduo do processamento, e manchas
pontuais de migração, características do processo cianótipo.
Os carimbos são fontes importantes para recuperação de informação, a qual se baseia no
conteúdo visual da imagem dessa área na planta, além de informações escritas que por acaso possam
estar presentes. De uma forma geral, pode-se dizer que, dentre as muitas funções do carimbo, os mesmos
podem conter: legenda de titulação e numeração dos desenhos; identificação da empresa/firma; o
profissional responsável pelo projeto; identificação do cliente; nome do projeto ou empreendimento;
titulo do desenho; indicação seqüencial do projeto (número ou letra); escalas, data, autoria do desenho
do projeto e indicação de revisão. Nem sempre, todas essas informações estão presentes.
Nesse conjunto de plantas estudado, identificaram-se carimbos em 20 plantas e, ao avaliar
GT92797
esses carimbos, verificou-se que são de três tipos diferentes. A Figura 8 (a, b e c) apresenta imagens
características desses carimbos. No carimbo mostrado na Figura 8a, encontramos as seguintes
inscrições: “Societé dês Anciens Anonyme Établissements Cail”.16 Neste caso, a inscrição contém
informações sobre a firma que foi responsável pela elaboração do projeto e os números da planta
original e de expedição.
a
b
c
Figura 8 (a, b e c) – Imagens características dos três tipos de carimbos encontrados nas plantas. (Fotos da
autora, 2010)
No carimbo da Figura 8b, temos a data da expedição dessa planta, 1890. Temos também uma
assinatura que até o presente momento ainda não foi identificada. É provável que essa assinatura
seja do engenheiro chefe que elaborou a planta. Na Figura 8c, aparece o nome/inscrição F.Claude. E,
embaixo, se lê um endereço de Paris e uma marca que provavelmente seria do fornecedor/fabricante
do papel.
Outra forma de caracterizar o processo, além da análise visual (cor da linha, carimbos, entre
outras), é pela presença do ferro, um dos elementos fundamentais no processo cianótipo. No caso das
plantas em estudo, separarou-se um fragmento que foi analisado pela técnica da fluorescência de raios
X (XRF)17. Esta técnica permitiu investigar a composição dos pigmentos e alguns elementos químicos
presentes na amostra. Como podemos observar nas Figuras 9 (a e b), os elementos encontrados no
papel foram o cálcio (Ca) e o ferro (Fe). Os elementos encontrados na tinta, entretanto, o cálcio parece
ser proveniente apenas do papel, pois se encontra em baixas intensidades. O ferro, por sua vez, foi
identificado em intensidades bem mais altas do que no papel, caracterizando sua presença na tinta
azul.
Na análise atual do estado de conservação, pode-se dizer que o conjunto de plantas apresenta
oxidação acentuada do suporte, provavelmente devido ao residual da técnica de confecção da planta
(cianotipia) e manchas distribuídas por toda a superfície. Essas manchas podem se apresentar de forma
pontual ou uniformemente distribuídas. Outros danos constatados foram: partes faltantes, dobras,
rasgos, bordas frágeis e suporte quebradiço. Algumas apresentam ainda, manchas provenientes da
16 Informações obtidas nos sites: http://en.structurae.de/firms/data/index.cfm?id=f000033; http://www.archivesnationales.culture.
gouv.fr/camt/. Acesso em: 03 de Fev. de 2011.
17 Realizado no laboratório do Instituto de Física da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UERJ. Equipamento
utilizado: Sistema de Fluorescência de Raios X ARTAX da Bruker, colimação do feixe: 650 µm, voltagem: 20 kV, corrente: 200 µA.
GT92798
remoção da fita gomada; manchas marrons escuro formadas devido ao contato (migração) de uma
planta em processo de degradação para outra; manchas em tom azul, provavelmente do resíduo do
processo de composição dessa própria planta (cianótipo).
a
Figura 9 a -Espectro de Fluorescência de Raios X
(XRF). Elementos encontrados no papel: cálcio (Ca)
e ferro (Fe). Elementos encontrados na tinta: ferro em
intensidade elevada.
b
Figura 9 b- Imagem da área analisada.
Planta ON-PL 0051-planta 10. Acervo
MAST. (Foto da autora, 2010)
Em continuidade à análise mencionada, verifica-se que as plantas que não foram submetidas
a tratamento aquoso de desacidicação aparentam uma estabilidade maior do suporte, tendo em vista
que os danos não se agravaram. Grande parte dessas plantas aparenta esmaecimento da cor azul (cor
da linha do desenho). Em outros casos a cor do fundo da planta (suporte) atrapalha a visualização do
desenho. No que tange à elaboração dos desenhos, alguma plantas foram aquareladas.
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA CONSERVAÇÃO E ACONDICIONA-MENTO
DESSAS PLANTAS
Após as análises e reflexões realizadas, para efeito de tratamento de conservação das plantas
estudadas, recomenda-se a limpeza mecânica apenas com trincha macia, nas plantas em que for possível
fazê-lo. A consolidação do suporte pode ser realizada por meio da união das partes fragmentadas da
planta com o uso da técnica de reforço, utilizando-se tiras de papel japonês com adesivo e pouca
umidade.
Para o acondicionamento, deve-se usar material de pH neutro, não sendo recomendável o
uso de invólucro em papel alcalino. Já a indicação para o uso do poliéster, aparece nos trabalhos de
Hamill (1993), de Reed e colaboradores (1995) e do ICA (2000). No caso do conjunto de plantas
do MAST, sugerimos a confecção de invólucro de poliéster. Posteriormente, o material deve ser
acondicionado em invólucro do tipo passe-par-tout com papel cartão de alta gramatura (1200g/m²)
neutro e poliéster, a fim de dar estabilidade ao documento e possibilitar seu manuseio e armazenagem
adequados. Essa embalagem serviria ao mesmo tempo de suporte para quando se fizer necessário o
deslocamento da planta, evitando danos na manipulação da obra. Devido à fragilidade do suporte das
GT92799
plantas, recomendamos a realização de acondicionamento individual.
A digitalização, ou qualquer outra forma de reprodução dessas plantas, sem tratamento de
conservação, torna-se inviável, tendo em vista o estado de degradação e fragmentação em que se
encontram. O aconselhável seria primeiramente a consolidação do suporte, através do tratamento de
conservação já proposto. Quanto à reprodução dessas plantas, deve-se ter cuidado na sua manipulação
e, além disso, recomenda-se ainda a utilização de baixo nível de luz e calor no método utilizado.
Quanto à umidade e temperatura, devem-se evitar variações bruscas desses parâmetros no
interior do local de guarda. De acordo com a bibliografia sobre o assunto, é recomendável que, no
caso específico de cianótipos, a temperatura e umidade estejam em torno, respectivamente, de 18
a 22oC (variações de +3oC) e de 50 a 60% (variações de +5%) (RIVAS, BARBACHANO;1987,
p.4). Entretanto, o Manual do Conselho Internacional de Arquivos (ICA; 2000, p.92) recomenda as
seguintes condições para guarda do acervo temperaturas da ordem de 18oC e umidade relativa entre
35% e 45%.
No que tange ao mobiliário de guarda, recomenda-se utilizar mapoteca horizontal de aço, que
pode ser feita/confeccionada sob medida para esse fim. A mesma deve ser forrada com papel cartão
neutro ou outro material inócuo (polionda, entre outros). É também recomendável a utilização de
mesas (mobiliário de apoio) de dimensões adequadas, para que as plantas possam ser manuseadas de
forma segura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Plantas arquitetônicas constituem-se em fonte importante de informação e são registros
específicos que se relacionam com as técnicas e com o contexto cultural de determinada época. Por
outro lado, são confeccionados em material que se decompõe com bastante rapidez, nas condições
em que são normalmente acondicionados. Portanto, sua vida útil é relativamente curta, determinando
a necessidade de utilização de tecnologias de reprodução para preservar a informação ali contida.
A conservação, seja curativa, seja preventiva, desses suportes torna-se imprescindível para que as
plantas possam ser manipuladas e reproduzidas em outros suportes. Por outro lado, por parte dos
profissionais da conservação, é importante saber como identificar corretamente a técnica que originou
o documento para melhor preservá-lo.
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COMUNICAÇÃO ORAL
PATRIMÔNIO, A CIDADE E SUAS CAMADAS: A FORÇA DA
ARTE NA CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS
Carlos Eduardo Ribeiro Silveira
Resumo: A proposta de pesquisa apresentada a seguir objetiva abordar a complexa e dinâmica
relação entre os cidadãos e o cenário característico das cidades modernas, bem como sua participação
na construção da memória social e das identidades. A fim de construir esse panorama, recorre-se às
diferentes edificações de interesse histórico, que assumem posto de símbolos, na esfera do patrimônio
e às suas diversas e, por vezes, antagônicas, relações com a cidade. Optou-se por analisar o centro
histórico da cidade de Juiz de Fora privilegiando, na malha urbana, a Avenida Getúlio Vargas, já que
esta guarda exemplos de bens arquitetônicos tombados e de grande representatividade no processo
de desenvolvimento econômico, social e urbano da cidade. Busca-se, ainda, o entendimento dos
processos de musealização presentes neste mecanismo. Percorrendo este sítio histórico, é possível
constatar que a cidade mescla percepções, diferentes grupos sociais e narrativas, destacando os vários
discursos, representações e disputa de sentidos. É na fusão de todas essas costuras e camadas que a
cidade permite aflorar sua própria urbanidade, (re)construindo, a cada novo olhar, o seu patrimônio:
“cidade palimpsesto”, termo empregado por Andreas Huyssen para se referir a Berlim, cidade cujas
“marcas” do passado são repetidamente apagadas para que possam, assim, dar lugar a novos registros.
Na tradição local, o que se pretende é demonstrar que neste patrimônio está concentrado - ou reunido
- o genius loci. Os primeiros resultados obtidos apontam que a inserção de ‘objetos-arte’ na relação
‘espaço público – habitantes – intervenção – arte – história’, dá margem a importantes estudos
multidisciplinares, além de tornar explícitas as inúmeras manifestações que o ‘olhar’ descortina, tanto
como objeto de percepção, quanto como máquina de ver.
Palavras-chave: patrimônio e museologia; paisagens simbólicas; memória social e identidade;
arquitetura.
1. INTRODUÇÃO
No atlas do seu império, ó Grande Khan, devem constar tanto a Fedora de pedra
quanto as pequenas Fedoras das esferas vidro. Não porque sejam igualmente
reais, mas porque são todas supostas. Uma reúne o que é considerado
necessário, mas ainda não o é; as outras, o que se imagina possível e um
minuto mais tarde deixa de sê-lo.
Ítalo Calvino
A proposta de pesquisa apresentada a seguir pretende abordar a complexa e dinâmica relação
entre os cidadãos e o cenário característico das cidades modernas, bem como sua participação na
construção da memória social e das identidades. A fim de construir esse panorama, recorre-se às
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diferentes edificações de interesse histórico, que assumem posto de símbolos, na esfera do patrimônio.
Este projeto retirado para submissão sob forma de certificação, pois constatou-se, nesta proposta,
significativa qualidade e grande relevância social.
Optou-se por analisar o centro histórico1 da cidade de Juiz de Fora privilegiando, na malha
urbana, a Avenida Getúlio Vargas, já que esta guarda exemplos de bens arquitetônicos tombados
e de grande representatividade no processo de desenvolvimento econômico, social e urbano da
cidade. Busca-se, ainda, o entendimento do processo de musealização2 presentes neste mecanismo.
Percorrendo este sítio histórico, é possível constatar que a cidade mescla percepções, diferentes
grupos sociais e narrativas. Desse modo, destacamos os vários discursos e representações e disputa
de sentidos. É na fusão de todas essas costuras e camadas que a cidade permite aflorar sua própria
urbanidade, (re)construindo, a cada novo olhar, o seu patrimônio: “cidade palimpsesto”, termo
empregado por Huyssen (2000, p. 92) para se referir a Berlim, cidade cujas “marcas” do passado
são repetidamente apagadas para que possam, assim, dar lugar a novos registros. Na tradição local,
o que se pretende é demonstrar que neste patrimônio está concentrado - ou reunido - o genius loci
(ROSSI, 2001, p.147-200). Segundo documento do International Council on Monuments and Sites
(ICOMOS), “genius loci é o valor único e indivisível inerente a todos os monumentos. Está sempre
presente, e retorna caso o monumento – marca da atividade humana na paisagem - seja revelado e
suas características tornem-se familiares e populares novamente.” (tradução nossa)3
Optou-se por privilegiar o município de Juiz de Fora, por razões profissionais e pessoais e
por seu lugar de destaque no estado de Minas Gerais. A cidade, quando avaliada pelo ranking de
desenvolvimento humano da Organização das Nações Unidas (ONU), obteve marcas expressivas nas
áreas relativas à qualidade de vida e investimentos. Com a população de cerca de 500 mil habitantes,
Juiz de Fora tem um ”PIB per capita de R$ 6,2 mil e uma das mais altas expectativas de vida do
Brasil”.4
O período de maior desenvolvimento de cidades, em toda a História do Brasil, corresponde à
mineração aurífera em Minas Gerais, no início do século XVIII. A origem de Juiz de Fora remonta
a essa época e, desde suas primeiras povoações, já mostrava “características de periferia, margem,
1 A consolidação da área que hoje consideremos como centro histórico da cidade de Juiz de Fora, começa a se estruturar no final
do século XIX, com a instalação da Estação Central da Estrada de Ferro às margens do Rio Paraibuna, dando origem ao primeiro
núcleo urbano central da cidade. Aquela área tornou-se a porta da entrada de Juiz de Fora e, com o crescimento econômico advindo
da crescente industrialização na cidade, na Praça da Estação e em seu entorno imediato construiu-se o conjunto arquitetônico que
despertou o interesse para essa pesquisa. Com a decadência do processo de industrialização em Juiz de Fora, a criação de trechos
ferroviários que não mais passavam pela cidade e, principalmente, com a criação de Belo Horizonte, observa-se o inicio do processo
de degradação daquela paisagem urbana.
2 Para Jeudy (1990, p. 132) o processo de musealização faz com que o patrimônio perca sua dinamicidade e se torne algo artificial
e estático, petrificando-o: “Tudo pode ser dito da coisa petrificada, o mistério e a descoberta não maculam pois sua integridade torna-se
atemporal. Parada na imagem, parada no tempo: a memória moderna funciona como gás petrificante projetado sobre aquilo que ameaça
mexer-se.”
3 ZSOLT, Visy. (In:) Genius loci – the spirit of archaelogical sites. Disponível em: <http://www.icomos.org>. Acesso em agosto
de 2010.
4 Fonte: Prefeitura de Juiz de Fora. Disponível em:<http://www.pjf.mg.gov.br> Acesso em agosto de 2010.
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fronteira, que a tornam extremamente rica na tecitura do urbano”. Como relata Musse (2006, p.12):
Via de passagem, ao longo do Caminho Novo, no século XVIII; parada de tropeiros,
entreposto comercial, vila que surge do capital advindo das lavouras de café, em
meados dos oitocentos; cidade construída pelo sonho do Novo Mundo dos imigrantes;
pólo industrial que corresponde ao ideal da nação idealizada pela República, Juiz de
Fora se mostra como um rico objeto de pesquisa, exatamente por ser um lugar que
não pode ser identificado ou descrito com facilidade e certeza.
Ao longo das margens do Caminho Novo surgiram vários postos oficiais para o registro e
fiscalização de ouro que era transportado em lombos de mulas. Estes postos deram origem às cidades
de Barbacena e Matias Barbosa. Em função das hospedarias e armazéns, ao longo do caminho,
outros pequenos povoados foram surgindo, como Santo Antônio do Paraibuna que, posteriormente,
possibilitou a fundação da cidade de Juiz de Fora. Assim,
apesar de estar situada geograficamente no estado de Minas Gerais [...] nunca
compartilhou do projeto da mineiridade, ele próprio um discurso produzido no final
do século XIX e início do século XX, para dar conta das diversidades culturais e
territoriais da região [...] Por ser vila e cidade, só constituídas em meados do século
XIX, Juiz de Fora não comungou da estética barroca das cidades “mineiras” [...]. (p.
13)
Admitindo essa peculiaridade no processo de consolidação do município, objetivamos analisar as
edificações, espaços e territórios localizados em sítios históricos urbanos5 privilegiando os fenômenos
que subjazem aos mecanismos de revalorização patrimonial das cidades, enfatizando a materialização
destas unidades dotadas de sentidos. Intentamos, ainda, perceber o espaço urbano como o local
onde, por excelência, manifestam-se as permanências, rupturas, continuidades e relações do antigo
com o novo. O patrimônio - transformado ou tomado como um imaginário - mostra-se presente,
constituindo-se numa ponte entre o passado e o futuro (ou entre um passado suposto ou idealizado e
um futuro ‘desejado’), lembrando-nos que a cidade é fruto de uma complexa construção históricosocial, portanto, sujeita a uma seleção arbitrária e a uma organização e hierarquização simbólica
prévia e condenada a uma visão ou estratégia utilitária.
Uma vez que aceitamos o envolvimento da população como questão fundamental à preservação
dos bens patrimoniais, reportamo-nos à “Carta de Quebec” (1982)6. O conceito de patrimônio é
definido, na Carta, para além do significado material de posse de edificações históricas, e seu valor
perpassa pelo significado que representa para determinado grupo social. Como conseqüência dessa
5 “Os Sítios Históricos Urbanos Nacionais e os Conjuntos Urbanos de Monumentos Nacionais são locais privilegiados onde
repousam experiências coletivas e princípios de identidade. Os monumentos são sinais que perpetuam os testemunhos das sociedades
passadas - das possibilidades perdidas, assim como dos processos formadores de nossa realidade presente. Estes lugares da memória
devem ser avaliados no sentido de os valorarmos do ponto de vista de sua representatividade ou de sua vinculação ao processo histórico
de formação da nacionalidade.” Fonte: Brasil. Ministério da Cultura. Programa Monumenta. Sítios históricos e conjuntos urbanos de
monumentos nacionais: norte, nordeste e centro-oeste. Brasília: Ministério da Cultura, Programa Monumenta, 2005, p. 10.
6 INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br>. Acesso
em setembro de 2011.
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visão diferenciada, pela primeira vez a palavra ‘cidadão’ como agente de preservação, é colocada
em pauta, sendo imputadas, a cada agente social, a responsabilidade e a participação na proteção dos
bens culturais da coletividade. A população tem o legítimo direito de participar de qualquer decisão
relativa às ações de intervenção, controle e uso do patrimônio nacional, devendo ser esclarecido e
informado sobre todas as questões que envolvam seus bens culturais; o patrimônio nacional é um
“tesouro” que “pertence” a todo grupo social.
2. INTERRELAÇÕES ENTRE PATRIMÔNIO, PAISAGEM URBANA E MEMÓRIA SOCIAL
Analisar as heterogêneas edificações de interesse histórico/patrimonial que compõem
as paisagens urbanas, especificamente da cidade de Juiz de Fora (MG), considerando sua
instrumentalização na construção das narrativas patrimoniais voltadas para a criação da ideia de
‘pertencimento’. Procura-se, ainda, abordar as perspectivas simbólicas e a relatividade espaçotemporal que integram a contínua requalificação presentes no processo de musealização de tais
espaços. Espera-se que os resultados dessa pesquisa sejam integrados ao base de dados da Instituição
(Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES/JF) e sirvam de fonte de consulta para o corpo
discente da graduação em Arquitetura e Urbanismo, uma vez que a referida pesquisa encontra eco no
escopo teórico e prático nas disciplinas específicas afins.
Para que o objetivo geral seja atingido, propomos os seguintes objetivos específicos:
1. Refletir acerca da interrelação patrimônio7, paisagem urbana8 e memória social�;
2. Levantar e catalogar as edificações tombadas, na esfera municipal, situadas na avenida
Getulio Vargas, entre o Largo do Riachuelo e a Praça Antônio Carlos (incluindo seu entorno imediato)
3. Abordar as perspectivas simbólicas ativadas nos processos de patrimonialização� e
musealização dos espaços urbanos;
4. Estudar as estratégias utilizadas na ativação das narrativas patrimoniais voltadas para a
noção de “pertencimento” junto aos quadros sócio-culturais locais.
5. Criar um banco de dados que relacione as edificações e as características urbanas (paisagens)
analisadas
Pensar e refletir sobre a cidade e seus espaços é tentar entendê-la como fenômeno em contínuo
processo de transformação no espaço e no tempo, quais os fundamentos nela envolvidos e quais são
os novos valores que pretendemos ter nos dias de hoje e, também, em nosso futuro; é examinar a
7 Seguindo definição geral do IPHAN sobre Patrimônio Cultural, tem-se que “O patrimônio cultural não se restringe apenas a
imóveis oficiais isolados, igrejas ou palácios, mas na sua concepção contemporânea se estende a imóveis particulares, trechos urbanos
e até ambientes naturais de importância paisagística, passando por imagens, mobiliário, utensílios e outros bens móveis.” IPHAN,
ibidem, idem.
8 Elaborado nos anos 1960, paisagem urbana é um conceito que exprime a arte de tornar coerente e organizado, visualmente, o
emaranhado de edifícios, ruas e espaços que constituem o ambiente urbano. Tal concepção foi primeiramente formulada por Gordon
Cullen (1983) e exerce forte influência em arquitetos e urbanistas exatamente porque possibilita análises sequenciais e dinâmicas da
paisagem a partir de premissas estéticas, isto é, quando os elementos e jogos urbanos provocam impactos de ordem emocional.
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relação histórica por ela estabelecida com os homens, e o que ela significa. Ao entrelaçarmos todas
essas condições, no composto que lhe serve de estrutura, percebemos a cidade como polis9, local do
encontro não só dos seus habitantes, mas de vários tempos, espaços, saberes, tecnologias, produtos,
tradições e culturas acumulados pelo homem. Sobre a rede de possibilidades através das quais a
cidade se manifesta, temos que
Mesmo em uma única cidade, são várias as realidades e amplíssima as dimensões
abrigadas: a materialidade, a realidade, a fantasia, o imaginário e o simbólico habitam
nela, conjunta e simultaneamente. Pensar “as várias cidades de uma cidade” implica
invocar diversas dimensões, atributos e disciplinas [...] (BRANDÃO, 2006. p. 10-11,
grifo do autor).
As cidades geram possibilidades de diálogos e de encontros entre o espaço e o tempo (que
dependem do corpo e da memória da comunidade, de cada um dos seus componentes, com seus
códigos, tradições e existências compartilhadas), fatores que atuam na determinação das identidades
individuais e coletivas. Portanto, “uma das funções dos imaginários sociais é o de organizar o domínio
do tempo coletivo sobre o plano simbólico, mas é mais complexo o campo de sua abrangência,
particularmente no campo político [...]10”.
Vê-se a questão do patrimônio imbricada nas relações sociais da contemporaneidade; por
outro lado, a memória (individual ou coletiva), é sempre uma construção que se dá no presente, em
permanente fuga, tanto para o passado, quanto para o futuro. O passado não deve ser pensado como
representação, mas sim, como um produto do desejo de eternidade, sob o regime do seu fabrico:
um produto indispensável para a vida cotidiana; enquanto a memória, projetada para o futuro, fazse registrar nos atuais suportes de perpetuação da vivência humana. A respeito desse desejo de
permanência e das relações possíveis entre a articulação entre tempo e memória, Huyssen (p.30)
observa:
Tratas-se mais da tentativa, na medida em que encaramos o próprio processo real de
compreensão do espaço-tempo, de garantir alguma continuidade dentro do tempo,
para propiciar alguma extensão do espaço vivido dentro do qual possamos respirar
e nos mover.
Quando se trata do passado coletivo - a história e suas construções mnemônicas, seus sinais
– este é um produto de uma negociação social, uma construção da realidade, às vezes, “ficcional”.
A memória coletiva resvala na questão política, obedecendo a regras e negociações complexas,
seguindo as normas pelas quais as mais diferentes organizações sociais estruturam suas narrativas,
orais ou escritas, sobre seu passado.
O valor coletivo mais abrangente é a cultura, quando a entendemos como “uma rede de
9 Polis é a Cidade, entendida como a comunidade organizada, formada pelos cidadãos livres e iguais, na Grécia Antiga – CidadesEstado. A polis aparece em contraponto a oikós, que designa as relações, na esfera da comunidade doméstica.
10 MEIRA, Ana Lúcia G. O passado no futuro das cidades: políticas públicas e participação dos cidadãos na preservação do
patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2004. p. 34.
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significados que podem se expressar de forma simbólica.”11 Parte dela se materializa e se coletiviza
como símbolo relativo às identidades, além de se estabelecer como cenário da vida pública, de se
transmitir e ampliar. É o patrimônio ou bem cultural12, em sentido amplo. Por isso, de certa forma,
o patrimônio coletivo encontra-se em construção e ampliação constantes, mesmo que uma parte
importante dele (como documentos, bens materiais e imateriais e outros suportes da memória) tornese alvo de apropriações específicas.
Na prática, é possível perceber que existe uma ampliação do conceito de patrimônio a
novos objetos e realidades, sendo que, em alguns casos, isso se dá de maneira simbólica: coleções,
museificação, arquivamento individual ou público de bens, tombamento de bens materiais e registro
de bens imateriais. Nas cidades, esse processo de cristalização da memória, logo, do patrimônio, pode
ser percebido no procedimento que visa a revitalização de alguns espaços urbanos, a fim de tornar
possível uma vivência integral desses espaços, porque “A memória vivida é ativa, viva, incorporada
no social – isto é, em indivíduos, famílias, grupos, nações e regiões. Estas são as memórias necessárias
para construir futuros locais diferenciados num mundo global.” (ibidem, idem, p. 36)
Ainda buscando entender a cristalização da memória nos espaços urbanos, observamos o que
nos mostra Freitag (2002, p. 46):
Segundo tais teóricos (Lévi-Strauss e seus adeptos estruturalistas), a organização do
espaço urbano exprime a lógica de uma cultura. Trata-se de uma lógica das oposições,
de antagonismos que ajudam a delimitar a natureza da sociedade, as proibições das
liberdades, as regras sociais das leis naturais, o espaço sagrado do profano. O espaço
urbano materializa o que pode e o que não pode acontecer entre os membros de uma
aldeia, tribo, comunidade, sociedade.
Desta forma, esta pesquisa visa gerar respostas através de uma análise das condições
arquitetônicas, sociais, econômicas e culturais que permitiram que a cidade de Juiz de Fora construísse
o conjunto patrimonial que nos chega nos dias de hoje, discutindo os processos que, nas representações
culturais da Atualidade, permitem construir os mecanismos simbólicos no universo do patrimônio; e
também avaliando as relações existentes entre a construção das paisagens e territórios e o patrimônio
urbano.
A relevância desta pesquisa está associada à atualidade do tema cidade (seus espaços, territórios
e lugares), que dá margem a importantes estudos inter e/ou multidisciplinares, fato que se faz notar,
especialmente, na segunda metade do século XX, por ocasião do surgimento do Modernismo na
arquitetura e no urbanismo. Por se tratar de campo múltiplo, facetado e complexo, torna-se impraticável
aproximar-se da cidade seguindo apenas uma abordagem e através de uma única área de conhecimento.
11 ibidem, p. 25.
12 Como exemplo dessa afirmação, pode-se citar a Carta de Burra (Austrália), resultante do encontro internacional do ICOMOS
– Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, 1980 – onde se lê a seguinte definição: “o termo bem designará um local, uma
zona, um edifício ou uma obra construída, ou um conjunto de edificações ou outras obras que possuam uma significação cultural,
compreendidos, em cada caso, o conteúdo e o entorno a que pertencem”. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
NACIONAL. Cartas Patrimoniais. Brasília: IPHAN, 1995.
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3. A CIDADE E A MUSEALIZAÇÃO
O objeto teórico de investigação parte da seguinte questão principal: seriam as edificações de
interesse histórico/patrimonial, em Juiz de Fora, objetos que apresentam condições de se inserirem
nos contínuos processos de musealização, na paisagem urbana, admitindo-se que a percepção do
patrimônio dá-se apenas no momento “presente”? Já o nosso objeto empírico trata da experiência de
análise de caso do centro histórico da cidade de Juiz de Fora, cujas edificações tombadas e de interesse
histórico encontram-se concentradas na avenida Getúlio Vargas, conformando o cenário urbano.
Os últimos trinta anos são o reflexo de um novo modo de produção mais flexível, que surgiu
no início da década de 1980. A homogeneidade da sociedade industrial fora substituída por uma
imensa diversidade de estilos de vida, na qual se apresentam grupos de variados tipos.
A evolução dos meios de comunicação trouxe a possibilidade de maior difusão da informação,
promovendo uma transformação na relação das atividades econômicas com o território, tornando-as
mais independentes do espaço físico, ao mesmo tempo em que aumentou sensivelmente a visibilidade
do território. Isto porque a maior capacidade de comunicação permitiu que o território se transformasse
em mercadoria para ser consumida pela classe econômica de renda mais elevada. A globalização
transformou o conceito de cidade, de destino final e permanência para o lugar dos fluxos.
Pensando-se nas estratégias para o processo de intervenção nas áreas centrais, foram poucas
as inovações nesse período. Percebe-se essas inovações através da mudança do foco da intervenção,
no tamanho dos projetos, a forma de gestão e a propagação desses feitos decorrente da sua ampla
e intensa divulgação, conduzindo a uma proliferação de grupos e associações que passaram a se
envolver nessas intervenções. Intervir no espaço urbano, desta forma, torna-se uma ação mais ampla.
Além das regiões centrais, outras áreas também desgastadas passam a ser focalizadas, como aquelas
decorrentes da obsolescência das estruturas industriais, portuárias, ferroviárias, entre outras.
Enquanto nas áreas centrais a questão da preservação histórica se mantém, nas demais, a
busca pelo novo passa a ser o campo fértil para as experiências arquitetônicas, restringindo-se ao
antigo centro a história da cidade. Nas três últimas décadas, alguns mecanismos aperfeiçoam-se e a
cidade passa a ser pensada, definitivamente, como um empreendimento a ser gerenciado, mediante
a adoção de princípios do planejamento estratégico e o uso de um forte instrumento: city marketing.
Dá-se ênfase à gestão urbana assumida como uma política de governo e ao projeto urbanístico como
elemento catalisador.
Tomado como lugar de manifestações culturais, o conceito de patrimônio adquire grande
importância porque guarda em si e promove as diversas expressões imateriais dos processos culturais
humanos; fato que reforça a importância da diversidade e corrobora a instituição das identidades
culturais.
O olhar sobre a cidade, como estrutura (desde a paisagem até às edificações), passou a existir,
no mundo ocidental, a partir do século XV. Neste período, com o Renascimento italiano, existe uma
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ruptura com os discursos precedentes que a consideravam apenas como signo de vida dos moradores,
ou como seu referente histórico e social. O período conhecido como Antiguidade Clássica - refere-se a
um longo período da História da Europa que se estende aproximadamente do século VIII a.C. à queda
do Império romano do ocidente, no século V d.C - passa a ser reconhecido como modelo de referência
e modelo para a ‘cultura’, com destaque para as Artes e Arquitetura. Esse distanciamento em relação
à história e o reconhecimento deste mecanismo (que se constrói através de relações de contraste,
distinção e diferença em relação ao passado), são o registro de um processo de amadurecimento que
se tornou essencial para o início das ações de preservação, em nível internacional.
A cidade é um fenômeno complexo, apresentado-se em constante transformação, tanto no
espaço quanto no tempo. É cenário dos ambientes contemporâneos construídos pela luz, pelo reflexo
pelo reflexo e pelas imagens que gera mecanismos de atração e repulsão. Sua evolução espacial delimita
e define, no ambiente construído, lugares que são conhecidos e vivenciados pelos habitantes. Essa
paisagem urbana desenha o espaço onde, por tradição, manifestam-se as rupturas, as continuidades,
as permanências e as relações entre o ‘novo ‘ e o ‘antigo’. Resultante de uma complexa construção
histórica, a cidade é uma interrelação entre o futuro e o passado, gerando fronteiras. Estas, por vezes,
não se deixam ver através do instrumento fisiológico do olhar, revelando-se sobre a forma de películas
ou de coberturas translúcidas, constituídas por um conjunto de universos que as perpassam, para, ao
final, sugerir um só conjunto.
A atualidade incita os homens a criar limites voltados para dentro, e não para alguma outra
possibilidade de construção, como a investigação do passado, no presente. Isso acaba impedindo
que os cidadãos vejam algo que esteja além da sua realidade distorcida. A cidade constrói-se pela
agregação de várias cidades, de inúmeros lugares que vão se inserindo nas fissuras do urbano, onde a
vida cotidiana desenvolve-se, repleta de relações.
No nível do seu terreno, a cidade já não é mais produto daquilo que os olhos conseguem
alcançar. Da sua superfície, em volumes, ela é labirinto: conjunto de ruas, de entradas, de saídas
interceptadas pelo fluxo das grandes vias. A cidade é a transição do conflitante vazio dos fluxos que
atravessam o lugar, cuja marca original destina-se ao encontro, à esquina, à confluência. É o espelho
do cidadão; do encontro e do estranhamento produzido por ele, uma vez que os homens organizam-se
para produzir e trocar. Ao acionar este mecanismo, desenham o espaço e o reproduzem.
Uma das primeiras formas de conservação da memória foi a tradição oral, que permaneceu
por muito tempo na história da humanidade. Na seqüência, observa-se a inserção de outros suportes
materiais. A respeito dessas “sociedades sem escrita”, Pierre Lévy13 acusa a ação do tempo como
agente transformador e, ao mesmo tempo, aglutinador de representações que são transmitidas através
de ritos, narrativas e mitos. Encontramos, então, nas sociedades orais primárias, além de uma memória
estreitamente ligada às habilidades técnicas, uma circularidade cronológica e um tempo que sempre
13 LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução Carlos Irineu da Costa.
1. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
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está ligado ao devir (estilo cronológico marcado, principalmente, pela impossibilidade de se encontrar
um ponto de referência fixo e pela participação de seres onipresentes).
Sobre a capacidade humana de pinçar alguma informação registrada longe de sua zona de
atenção, Lévy (1993, p. 79) aponta que:
É impossível ativar todos os nós de nossa rede mnemônica ao mesmo tempo, já que
os recursos da memória de trabalho e dos processos controlados são limitados. [...]
A estratégia de codificação, isto é, a maneira pela qual a pessoa irá construir uma
representação do fato que deseja lembrar, parece ter um papel fundamental em sua
capacidade posterior de lembrar-se desse fato.
Para Lévy, a memória humana, a longo prazo, está amarrada à duas estratégias de
armazenamento: codificação (baseada na maneira em que se constrói dada representação) e elaboração
(acréscimos que conectam, a todos os momentos novos itens à informação alvo). Essas mesmas
estratégias mostram-se como mecanismos falhos, uma vez que a memória humana tem dificuldades
em separar o ‘original’ das ‘elaborações agregadas’ e esquemas pré-estabelecidos. A partir destas
proposições, o autor nos enumera elementos que tomam algumas representações mais propensas a
sobreviver através dos tempos e, essa lista de características acaba por dar subsídios para um conceito
de mito: “O mito codifica sob a forma de narrativas algumas das representações que parecem essenciais
aos membros de uma sociedade. [...] há poucas possibilidades que outros gêneros de organização das
representações possam transmitir conhecimentos de forma tão duradoura.” (ibidem, p. 92).
As memórias representadas são, assim, os locais adequados para o estudo do imaginário e da
constante (re)formulação de suas identidades. O processo pelo qual a identidade é redefinida altera-se
constantemente, de acordo com as relações de força entre o eu e o outro, já que estes se encontram
no eterno conflito de aceitar e rejeitar; ceder e enrijecer; unir e separar; lembrar e esquecer. Nesses
conflitos surgem as identidades, sempre em contraposição a outras e em luta por sua aceitação. Afinal,
não há como existir o eu sem o outro, assim como as identidades não podem ser estáticas, graças à
diversidade existente na sociedade e pelo fato de não existir uma origem pura e com total coerência.
O espaço, pensado além do ambiente físico, simbólico e relacional, demanda uma área de
conhecimento específica e se apresenta como um lugar capaz de gerar um complexo sistema de
informações, revelando-se como o resultado de uma equação composta pelas relações entre os objetos
e as ações, os fluxos e os elementos estáticos. A capacidade de apreensão do espaço, pelo homem, está
intrinsecamente ligada à mediação tecnológica e às diversas formas de linguagem. Estas dão corpo
aos mecanismos seletivos que filtram e determinam as sensações que possibilitam que o homem tome
posse dos ambientes.
Reforçamos que seja importante entender a estreita associação entre as esferas psicológica
e física, no que tange à aceitação de que ‘lugar’ é um espaço da cidade que se torna perceptível,
pela população, por conter significados profundos, representados por imagens referenciais fortes, ao
mesmo tempo individuais e coletivas.
Na sociedade informacional, o papel das cidades é construído através de redes flexíveis de
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fluxos de pessoas, de materiais e, sobretudo, de informação. Percebemos uma troca nos mecanismos:
os espaços de lugar dão vez aos espaços de fluxos. A política urbanística do início dos anos de 1980,
apostava na “reconstrução” da cidade consolidada. Tratava-se de se olhar a cidade a parir do bairro –
antes de se buscar uma visão mais ampla -, de reivindicar o espaço público e os signos coletivos de
identidade e atuar mediante a ações programadas de maneira pontual, adequadas às morfologias já
existentes.
Recentemente, tem-se notado a necessidade de se integrar o “setor comercial” como peça
essencial de estratégia de organização urbanística e, mais concretamente, como peça de revitalização
dos centros urbanos. Este urbanismo adota adjetivos distintos como: estratégico, cultural, turístico,
entre outros, e que se diferencia por estar menos interessado na disposição dos objetos (permanentes
ou não), nas configurações estáveis ou nas cristalizações definitivas, e mais interessado em acomodar
os processos.
Cultura e renovação urbana têm significado, muitas vezes, valorizar o solo, ampliar o afluxo
de pessoas às áreas criadas como proposta de “espaços públicos”. Porém o espaço urbano, como
lugar simbólico, sempre estará imbricado na memória coletiva, nos valores de um grupo determinado,
inclusive na economia local. A valorização do espaço comum, de um território compartilhado, está
construída em um movimento que tem como base o desejo comunitário – traços de afeto. Este quadro
complementa o fenômeno conhecido como “patrimonialização” onde
O paradigma já não é o espaço físico, mas os fluxos de comunicação e poder que sobre
ele se estabelecem. Mas, ainda aqui, a malha neuronal se fundamenta e se orienta
pela geografia: o espaço permanece patrimônio, servindo de base e justificativa para
toda uma enorme gama de relações político-sociais que se articulam no tempo, de
forma sincrônica ou diacrônica. (SCHEINER, 2004. p. 66)
4. ESPAÇOS FLUIDOS E ESTUDOS TEÓRICOS
Para a elaboração da pesquisa e sua posterior consolidação, o manejo de fontes de dados
primários torna-se o principal instrumento de trabalho. A pesquisa documental é o principal meio de
fomento teórico e técnico a ser utilizado, o que implica no contato com as principais publicações,
livros e artigos sobre as técnicas e tecnologias de expressão, representação e análise da arquitetura.
Pretende-se que seja utilizado o acervo bibliográfico do proponente, o acervo existente em bibliotecas
da Instituição financiadora e outras fontes que sejam passíveis de ser adquiridas, bem como outras
referências disponíveis em bases digitais. O olhar lançado sobre esta proposta parte, à princípio, da
esfera própria do Patrimônio em estreita relação com a arquitetura/urbanismo e, por conseguinte, vem
revestido das bagagens acadêmica e prática inerentes a essas áreas de conhecimento.
Devido à pluralidade de disciplinas envolvidas neste campo de conhecimento, dividiu-se o
conteúdo a ser pesquisado em grupos de afinidade – categorias -, visando gerar coerência na pesquisa.
Para completar essa primeira etapa, percorreremos mais três passos, que envolverão: leituras sobre
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a temática escolhida – revisão de literatura – com vistas a enquadrar o projeto e seu conteúdo no
cenário acadêmico, buscando respaldo sobre a pertinência do tema; levantamento in loco do ambiente
urbano a ser estudado; desenvolvimento de textos/artigos que contemplem o conteúdo.
Desta forma, a intenção é de fundamentar essa pesquisa a partir da interseção entre as
abordagens das diversas e fluidas construções dos espaços e territórios e dos estudos teóricos sobre
o patrimônio, arquitetura e urbanismo, uma vez que as discussões e elaborações a respeito deste
vêm ganhando espaço nas últimas décadas, graças à elaboração de documentos internacionais, como,
por exemplo, a Carta de Veneza14. Optamos por trabalhar com o entendimento das relações do ser
humano com o mundo, admitindo que estas relações nascem através dos estímulos ou mensagens que
o homem recebe habitando determinado ambiente ou paisagem: a inserção do homem nos ‘novos
lugares’ através da (re)construção dos ‘lugares’ que reforçam as imagens que povoam a subjetividade caso, por exemplo, das requalificações de áreas históricas degradadas; e essa subjetividade permanece
sustentável entre os grupos humanos que lhes dá origem, ou seja, é condição que se faz necessária à
consolidação dos lugares do urbanismo da pós-modernidade - não-lugares15.
Essa tessitura permite entender que existe uma estreita associação entre as esferas psicológica
e física no que tange à aceitação de que “lugar” é um espaço da cidade que se torna perceptível
pela população por conter significados profundos, representados por imagens referenciais fortes, ao
mesmo tempo individuais e coletivas; e também construir uma reflexão acerca da identificação –
sentimento de pertencimento: a ausência de identificação do cidadão com o seu espaço/cidade pode
acontecer quando seu meio social não se reflete como o resultado de alguma expressão cultural que
lhe traga a sensação de pertencimento – questão do afeto (que passa pelo domínio do patrimônio).
Buscando o entendimento pleno do objetivo que norteia esta pesquisa, identificamos a
experiência de análise de caso do centro histórico da cidade de Juiz de Fora, cujas edificações tombadas
e de interesse histórico encontram-se concentradas na avenida Getúlio Vargas, conformando o cenário
urbano. De acordo com Serra (2006, p.141), “o plano de pesquisa deve prever quais e quantos serão
os produtos da pesquisa, em termos de relatórios parciais e final”. Ao final da pesquisa espera-se que
tenha concluído um relatório que possa ser publicado em formato eletrônico, de tal forma que fique
disponível e sirva de fonte de consulta para acadêmicos e para profissionais. Também serão produzidos
relatórios parciais, os quais registrarão o desenvolvimento da pesquisa. Paralelamente ao relatório,
espera-se que, ao final, seja formado um banco de dados que possa também ser disponibilizado na
Internet. Além de ser uma forma sistematização do material coletado durante a pesquisa, esse banco
de dados constitui uma fonte de consulta para os demais pesquisadores.
Como produto da pesquisa e de divulgação dos resultados alcançados, propomos a redação de,
no mínimo, um artigo para ser publicado em anais de congresso ou periódico científico.
14 II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos. Maio de 1964. Disponível em: < http://portal.
iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=236 >. Acesso em agosto de 2010.
15 AUGE, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução Maria Lúcia Pereira. Campinas:
Papirus, 1994.
GT92813
5. PRIMEIROS PASSOS, PRIMEIRAS RESPOSTAS
Como primeiros materiais levantados, cujas fontes de pesquisa englobaram pesquisas
bibliográficas (em livros, artigos de periódicos e de congressos científicos, dissertações, teses,
entre outros) sobre os temas patrimônio, intervenções urbanas (na contemporaneidade), história e
consolidação da cidade de Juiz de Fora, os bolsistas e voluntário levantaram e catalogaram algumas
edificações tombadas, na esfera municipal, situadas na avenida Getulio Vargas, entre o Largo do
Riachuelo e a Praça Antônio Carlos (incluindo seu entorno imediato). A fim de fomentar o corpus
teórico desta pesquisa, os alunos cumpriram as seguintes etapas:
5.1 Em pesquisas realizadas na Divisão de Patrimônio Cultural (DIPAC), em Juiz de Fora,
o grupo optou por edificações que pontuassem de maneira expressiva o percurso espacial recortado
neste estudo e que também apresentam material de pesquisa satisfatório;
5.2 Participação no Seminário “Olhar sobre o que é nosso – O patrimônio cultural em seus
diversos aspectos”, realizado pela FUNALFA/DIPAC, Prefeitura Municipal de Juiz de Fora;
5.3 Pesquisas sobre intervenções urbanas, realizada na biblioteca do Campus Arnaldo Janssen;
5.4 Leitura e fichamento do livro: PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenções urbanas. São
Paulo: Ed SENAC, 1997, pois trata-se de um dos maiores pesquisadores sobre Intervenções Artísticas
em área Urbanas do Brasil;
5.5 Pesquisa na internet sobre projetos arquitetônicos e urbanísticos de intervenção em áreas
de Patrimônio Tombado;
5.6 Leitura de partes das dissertações:
• BRAGA, Paula Marques. Reurbanização no Centro Urbano de Salvador: Patrimônio
Cultural, Turismo e Participação Social. Dissertação de mestrado: Programa de Pós-Graduação
em Urbanismo. PUC/Campinas, 2008.
• GIACOMET, Luciane. Revitalização Portuária: Caso Porto Madero. Dissertação de
Mestrado: Programa de Pós-graduação em Arquitetura. UFRS, 2008.
5.7 Consulta e leitura das Cartas Patrimoniais, buscando interfaces com o projeto.
5.8 Uma vez realizadas as primeiras visitas e pesquisas no DIPAC, o grupo de pesquisa
achou por bem concentrar o trabalho nas três edificações a seguir, tanto pela quantidade de material
encontrado, quanto pela importância das mesmas para a construção da memória coletiva de Juiz de
Fora, além do potencial latente para futuras de requalificação urbana:
A. Edifício da Escola Normal de Juiz de Fora
B. Antiga Diretoria de Higiene (DCE)
C. Fábrica Bernardo Mascarenhas
As cidades, assim como os museus, são instrumentos capazes de reproduzir as imagens,
os interesses e as trocas, tanto em nível individual quanto coletivo. Da disposição dos elementos
que os representam e os constroem (de maneira geral, nos museus temos os ‘objetos’, enquanto nas
cidades, as ‘arquiteturas’) elaboram-se narrativas e discursos, olhares e codificações. Através dos
‘objetos’ e das ‘arquiteturas’ nos é possível estabelecer pilares para metáforas e resgates temporais.
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Essas ‘edificações-objeto’, mediadoras entre os habitantes e sua história, constituem-se “lugares de
memória”16, fazendo desse cenário urbano um poderoso ente produtor de discurso. Os agentes, desta
forma, absorvem e lêem a cidade de acordo com sua capacidade de ‘legibilidade’.
É a garantia dessa relação que assegura a função das edificações como ‘objetos’ portadores
de valores simbólicos, além de afiançar a preservação desse patrimônio edificado, que materializa as
dinâmicas político-sociais que construíram o ambiente do passado e atravessam a relação ‘espaçotempo’. O ato do tombamento, por si só, não assegura a musealização dessas edificações que passam
a absorver diversas representações sociais, revestidas do papel de testemunhos e/ou documentos;
agentes sígnicos atuantes na manutenção da memória social. Musealizar esses bens, significa a
garantia da integridade de parte dos traços sociais que dão corpo às suas estruturas identitárias. Tais
edificações imprimem valores aos significados culturais próprios da cidade, valorizando-os e os
diferenciando dos demais municípios e seus espaços urbanos, possibilitando, desta forma, debates e
discursos das forças internas e externas que atuam sobre eles, ao assumirem a condição de “objetos”
passíveis de estabelecer algum tipo de comunicação.
06. REFERÊNCIAS
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16 Pierre Nora distingue dois tipos de memória: uma memória “tradicional”, que é “imediata”, e uma memória que sofre
transformações ao passar à “história”: “À medida que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular
religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi.” (NORA, 1993, p. 15)
GT92815
Instituto de Estudos de Assuntos Transdisciplinares (IEAT). BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (org.).
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Abstract: The work presented broaches the subject of the complex and dynamic relation among the
citizens and the scenery characteristic from the modern cities, as well its participation on building
the social memory and the identities. with the intention to build this scene, we recall different and
interest historical and artistic buildings, as they assume post of symbols, on scope of the heritage.
In such case we choose to analyze the Juiz de Fora’s historical midst, favoring, on urban network,
the avenue Getúlio Vargas, as much as it keeps important examples of architectonic toppled and big
representatively into the issue of economic, social and urban city’s development. We also searched for
the perception of the musealization processes present on this mechanism. Walking through this historic
site, it is clear that the city blends perceptions, different social groups and narratives, highlighting
the various discourses, representations and meanings. It is the fusion of all these layers that tbrings
to the city its own urbanity, (re) building, every new look, its heritage, “palimpsest city,” Andreas
Huyssen term used to refer to Berlin, a city whose “brands” of the past are repeatedly erased so that
they can thus give rise to new records. In local tradition, the aim is to demonstrate that this heritage is
concentrated - or meeting - the genius loci. For this approach, were used as sources of reference, the
methodology used by the curators responsible for the “4th Biennial of Berlin”, on the question ‘public
space - population - intervention - art - history’, the timeliness of the theme ‘city’ which gives rise to
important multidisciplinary studies, and the innumerable manifestations of the ‘look’ reveals both an
object of perception, and as a seeing machine.
Key-words: heritage and museum; symbolic landscapes; social memory and identity; architecture.
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COMUNICAÇÃO ORAL
PAJELANÇA MUSEALIZADA: O MUSEU DO MARAJÓ E O
IMAGINÁRIO MARAJOARA
Luiz Carlos Borges, Karla Cristina Damasceno de Oliveira
Resumo: No âmbito de uma cartografia do imaginário marajoara, a pajelança cabocla - termo que se
refere a uma prática curativa tradicional em que se mesclam elementos mágico-religiosos, princípios
de medicina popular e uso de plantas medicinais – ocupa um lugar de destaque. Conquanto seja
tradicional no arquipélago do Marajó, a prática da pajelança tornou-se estigmatizada, seja em função
das pressões exercidas pela igreja, seja devido à presença de médicos e ao uso cada vez mais corrente
de medicamentos industrializados. Essa nova situação tem provocado, na população em geral, uma
atitude de rejeição da pajelança, embora muitos continuem acreditando na força curativa dos pajés e
recorrendo a eles, ainda que de forma encoberta. Em outro quadrante da paisagem cultural marajoara
encontra-se o Museu do Marajó, sediado na cidade de Cachoeira do Arari, e responsável pela coleta,
colecionamento e exibição de representantes culturais da ilha, e no qual existe uma musealização da
pajelança. Esta comunicação trata da pajelança (enquanto elemento representativo da cultura e do
imaginário marajora) e de sua musealização; procurando entender a complexa relação entre esses três
atores sociais: os pajés, o museu e a população de Cachoeira do Arari, tendo por referência a noção
de patrimônio, balizado, enquanto expressão de valor, entre ressonância e aderência. Nossa principal
questão consistiu em saber em que medida, dado esse balizamento e tendo em vista as contraditórias
atitudes frente à pajelança, podemos considerar que essa prática mágico-curativa constitui um
patrimônio cultural marajoara.
Palavras chave: Imaginário. Marajó. Museu. Patrimônio. Pajelança
1 ENCANTAMENTO MARAJOARA
A Ilha do Marajó (com superfície de, aproximadamente, 49.606 Km2 - área equivalente ao do
estado do Rio de Janeiro) integra o maior arquipélago flúvio-marinho do mundo (o arquipélago do
Marajó) e está localizada na foz do Rio Amazonas. A ilha recebe, também, influências de outros rios
de grande porte que deságuam na Baía do Marajó, como o Tocantins e o Pará.
A Ilha abriga 12 municípios e está dividida em duas microrregiões: a leste localiza-se a
Microrregião dos Campos, que compreende os municípios de Cachoeira do Arari, Chaves, Muaná,
Ponta de Pedras, Salvaterra, Santa Cruz do Arari e Soure. No lado oeste da Ilha, localiza-se a
Microrregião dos Furos, da qual fazem parte os municípios de Afuá, Anajás, Breves, Curralinho e
São Sebastião da Boa Vista (IPHAN, 2006).
Marajó possui uma história marcada pelo contato, ora mais ora menos intenso, entre a
população nativa e missionários, viajantes e exploradores vindos de diversas partes da Europa, que
deixaram contribuições determinantes para o desenvolvimento local. A presença desses personagens
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inscreve-se nas diversas marcas, especialmente as culturais, que são encontradas na paisagem sóciourbana da ilha. Aliada à diversidade biológica, a riqueza cultural produzida pelo homem marajoara,
dá ao lugar um tom especial que se intensifica a partir da aura de mistério e de misticismo que cerca
Marinatambalo1.
A paisagem marajoara caracteriza-se por sua biodiversidade, da qual se destaca a exuberância
da mata, além de ser recortada por rios e igarapés nos quais vive uma grande variedade de peixes,
jacarés, botos e sucuris, constituindo, portanto, um cenário propício à presença, no imaginário local,
de um grande elenco de personagens das histórias de encantarias2. Ali são contados e recontados
inúmeros casos, dentre os quais o do vaqueiro encantado que cavalga à noite, protegendo os campos;
da menina que vira vaca no Lago Arari; da mãe de fogo; da arraia encantada do Lago Arari; e da
grande cobra que mora debaixo da Ilha.
Os primeiros habitantes da região do Arari - conforme indícios arqueológicos - foram os índios
Aruãs, também denominados Homens do Pacoval. De acordo com Denise Schaan (2007), o Pacoval
é um enorme teso – designação de monte artificial, construído, ainda no período precolombiano,
pela população nativa, e que não alaga durante as cheias - localizado às margens Rio Arari, que
conserva os vestígios mais evidentes da ocupação humana dessa região. Ao longo da história, essa
região foi visitada, escavada e explorada por diversos arqueólogos (profissionais e amadores) e
naturalistas, como Derby (1871); Joseph B. Steere (1871); Ferreira Penna (de 1871 a 1873); Ladislau
de Souza Mello Netto (1882); Algot Lange (1913); Antônio Mordini (1926); Carlos Estevão Oliveira
e Helen Palmatary (1941) e Tom Wildi (1954 e estendida por, aproximadamente, 20 anos). As peças
arqueológicas retiradas do Pacoval foram distribuídas para diversos museus do mundo.
Ainda segundo Schaan (1999), a cultura marajoara formou-se a partir de pequenos grupos
horticultores3 que se estabeleceram no centro da Ilha e no entorno do Lago Arari, com domínio cultural
a partir do século V, mil anos antes da chegada dos europeus. O legado desses povos é representado,
principalmente, pelos diversos sítios arqueológicos encontrados ao longo da bacia do Rio Arari, em
que são encontrados testemunhos e registro da vida cotidiana e de rituais funerários desses povos.
A colonização e a cristianização da região tiveram início com a chegada dos padres da
Companhia de Jesus, a partir de 1700 (MIRANDA DA CRUZ, 1987; MARAJÓ, 1992; BAENA, 2004)
1 “As antigas denominações do arquipélago eram baseadas em vocabulário indígena. Assim, Marinatambalo, chamado pelos índios
e espanhóis – em um relato de Walter Raleigh (sec. XVI), encontra-se a denominação marinatambal; Camamôro, pelos holandeses
(FARES, 2003, 27); Ilha do Marajó, Joanes, Ilha Grande de Joanes ou Joannes, ou ainda Juanes; Ilha dos Nheengahibas (MARAJÓ,
1992; LA CONDAMINE, 2000; AGASSIZ; AGASSIZ, 2000; WALLACE, 2004; BAENA, 2004). No período colonial foi criado o
título de Barão da Ilha Grande de Joanes, cujo primeiro agraciado foi Luís Gonçalo de Sousa de Macedo (1640-1727).
2 “O termo encantaria relaciona-se às poéticas de tradição orais e as personagens referem-se ao conjunto narrativo que inclui não
só o mito, mas os textos originários dos lendários, anedóticos, fábulas, e outras formas de natureza prosaica e outras versificadas. As
narrativas amazônicas muitas vezes, implicam nas histórias de vidas dos narradores, neste caso não se pode atribuir o caráter ficcional
a elas, mas compreendê-las como uma construção em que os saberes simbólicos e imaginários misturam-se e sobrepõem-se” (FARES,
2007, p. 1).
3 Utilizavam possivelmente uma agricultura intensiva, complementada pela caça, pesca e coleta de frutos e plantas silvestres
(SCHAAN, 1999, p.1).
GT92819
e ainda hoje é forte a influência da igreja católica na Ilha. Na cidade de Cachoeira do Arari, desde 1968,
encontra-se instalada a Congregação das Religiosas de Maria Imaculada, que mantém uma relação
muito próxima e intensa com a comunidade, tanto no que se refere às atividades do Centro Social
(com a oferta de cursos), quanto em rotineiro apoio no hospital local, além de prestar assistência em
questões relativas a disputa de terras, por exemplo. Apesar da presença das Irmãs, existe um dilema
que acaba por acarretar embaraços para parte dos moradores. Trata-se da ausência sistemática de um
pároco no município, deixando os católicos sem os ritos semanais, e impossibilitando a realização de
casamentos e batizados.
A cidade de Cachoeira do Arari, segundo dados da Companhia Paraense de Turismo –
PARATUR (PARATUR, 2003), possui uma área de 3.102km² (ocupando o 37º lugar, no Estado,
em extensão territorial) e uma população de 20.460 habitantes, de acordo com dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2010). Em linha reta da capital paraense, encontra-se a,
aproximadamente, 67km de distância. A área abrange grande parte da região dos campos naturais que,
durante o inverno amazônico (época das chuvas, de dezembro a março), ficam quase que totalmente
submersos. Quando o inverno é rigoroso, parte da estrada desaparece, impedindo o tráfego rodoviário
para o município e isolando-o por essa via de acesso. Neste período, as embarcações se tornam a
única alternativa de transporte para a população.
Sua economia gira em torno da pecuária - principalmente na criação de bovinos e bubalinos,
uma das maiores do Estado, sendo que sua produção é destinada, quase que exclusivamente, para o
mercado externo - e da pesca. O comércio é fonte de renda para algumas famílias, mas os principais
empregadores do município são a Prefeitura e o Estado. Em termos de infra-estrutura urbana, a cidade
possui energia elétrica, correios, telefonia fixa, abastecimento de água e coleta de lixo. O crescimento
urbano desordenado aliado à falta de espaço faz com que surjam habitações em áreas no leito do Rio
Arari, como o Bairro do Choque que, periodicamente, sofre com as cheias.
O abastecimento de água atende metade da população da cidade (52,6%); não existe tratamento de
esgoto e a coleta de lixo atende apenas a 1,0% da população. O lixo domiciliar e o hospitalar são
depositados a céu aberto a 500 metros da PA-154 (estrada de acesso ao município), representando
sérios riscos de contaminação e poluição ambiental. De acordo com o IBGE, o município possui 14
estabelecimentos de saúde pública, sendo 12 não possuem médicos e apenas 1 possui internação,
dispondo, contudo, de 19 leitos para uma população de mais de vinte mil pessoas (IBGE, 2010).
2 PAJELANÇA: RITUAL E COLEÇÃO
Neste cenário amazônico, localizado entre o Rio Arari e os campos naturais, foi fundado o Museu
do Marajó (doravante, MdM) - surgido do idealismo do Padre Giovanni Gallo4. A originalidade dessa
4 Giovanni Gallo (Turim, 1927 -, Cachoeira do Arari, 2003) era padre, mas sem exercer o sacerdócio, morou mais de 30 anos
no Marajó. Publicou obras em que analisa sua função pastoral e a cultura marajoara: Marajó: A ditadura da água (1980), Motivos
GT92820
instituição – que abriga um expressivo acervo da cultura da região – reside no modo como os objetos
foram expostos. Merece destaque, sobretudo, o que o Padre Gallo chamou de computadores caboclos
(Figura 1), ou seja, instalações de estrutura simples, compostas por uma série de mecanismos que
podem ser manipulados pelos visitantes.
Figura 1: Computador caboclo utilizado em exposição itinerante
Foto: Paulo de Carvalho, 2008.
Confeccionados em materiais como madeira e fios de algodão, esses “computadores” aguçam
a curiosidade do público, graças ao seu apelo à interatividade. Segundo Giovanni Gallo, “o brasileiro
tem os olhos nas pontas dos dedos” (GALLO, 2007) e um museu nesta região não poderia seguir os
moldes tradicionais, segundo os quais os visitantes estão proibidos de tocar nas peças em exposição.
Sendo assim, o “Favor Não Tocar” não se coadunaria com as especificidades da cultura regional.
Acreditamos ser essa uma das razões que levaram Padre Gallo a projetar a exposição como um
brinquedo, montado a partir da utilização de materiais facilmente encontrados na região.
A informação sobre os objetos expostos é desvendada pouco a pouco, a partir das escolhas que
o visitante faz ao puxar cordas, girar manivelas, levantar, abrir e fechar tapumes. Segundo Linhares
(s.d.), nenhum outro museu, na região, possui um acervo nos moldes do MdM. Na exposição,
Padre Gallo utilizou-se da técnica de hands on5, então uma novidade que passou a ser explorada
principalmente em museus de ciências. Essas características expográficas permitem ao visitante
ornamentais da cerâmica marajoara – modelos para o artesanato hoje (1990) e O Homem que implodiu (1996).
5 O uso sistemático, em exposições interativas, do recurso hands on (manipulação direta de aparatos pelo visitante) deu-se a partir
do anos 1970. O recurso a essa técnica está relacionado ao aumento do número de crianças nos centros de ciências (CHELINI; LOPES,
2008).
GT92821
explorar diferentes nuances do conteúdo expositivo, a cada experimentação ou em nova visita.
Ao considerarmos as observações realizadas em Cachoeira do Arari, bem como o fato de que
todo espaço museal, enquanto lócus de informação e comunicação, configura-se como produtor e
ordenador de sentidos, podemos entender e analisar o MdM como um lugar ou magma de significação
(BORGES, 1999), com o qual que os moradores mantêm laços de identificação e de afeto, estendidos,
também, à figura de seu fundador. É comum, ao chegar à cidade, o visitante ser abordado com
perguntas do tipo: “já conhece o Museu?”, ou, “já visitou o Nosso Museu?”. Isso é compreensível, se
considerarmos que o MdM foi feito para e com a comunidade, valorizando e aproveitando os saberes
locais.
O MdM foi fundado, em 1972, na cidade de Santa Cruz do Arari - Ilha do Marajó, com a
proposta de promover o desenvolvimento da comunidade através de sua cultura. O acervo do MdM
começou a ser formado a partir da doação de fragmentos de cerâmica e peças arqueológicas6 que eram
encontradas pelos moradores do lugar, evidenciando desde o início das atividades do Museu a intensa
participação da comunidade. Em vista dessas condições locais de produção, podemos dizer que seu
acervo constitui uma representação daquilo que significa ser marajoara.
Ainda em Santa Cruz do Arari, Gallo criou o “Projeto Piranha”, que consistiu no embalsamamento
e na exportação, para a Europa, das piranhas recolhidas mortas nas redes dos pescadores. Tal atividade
objetivava a inclusão social por meio da geração de renda e do desenvolvimento sustentável7 para os
moradores da localidade de Jenipapo, localizada às margens do Lago Arari. Os recursos provenientes
da exportação foram transformados em melhorias para a comunidade, como evidencia a construção
de pontes em madeira8, entre outras.
Em 1983, o MdM foi transferido para Cachoeira do Arari, vizinho daquele município, tendo
sido instalado no prédio de uma antiga fábrica de óleos. Com o apoio dos moradores, Pe. Gallo
ampliou o acervo sobre o qual desenvolveu pesquisas arqueológicas e etnográficas. Anexo ao prédio
foi criado um arboreto, com espécimes da flora local, onde também vivem algumas cutias (Dasyprocta
aguti). A presença da vegetação, aliada à excessiva umidade da região e a constante falta de recursos
financeiros e humanos fazem com que não só a coleção9 de pajelança, mas todo o acervo do MdM,
sofram com a constante carência (e pode-se dizer ausência) de ações de preservação, conservação,
manutenção e restauração, contrariando o que preconizam as Cartas Patrimoniais (IPHAN, 2004).
Na década de 1980, Pe. Giovanni Gallo começou a reproduzir os motivos ornamentais da
cerâmica arqueológica do acervo do MdM. Em 1990, lançou a primeira edição do livro “Motivos
6 O acervo arqueológico possui peças de cerâmica produzidas entre os séculos V e XIII e é composto por mais de 100 artefatos e
centenas de fragmentos de cerâmica marajoara, recebidos como doações da comunidade (SCHAAN, 2007).
7 De maneira simples, podemos definir desenvolvimento sustentável como um conjunto de processos ecologicamente viáveis e
socialmente justos em relação a esta e às próximas gerações.
8 A localidade do Jenipapo, como tantas na Ilha do Marajó, é construída sobre palafitas para enfrentar as cheias do inverno marajoara
– as pontes são as ruas suspensas sobre as águas do Lago Arari (CARVALHO, 2008).
9 Neste trabalho utilizaremos o conceito de coleção desenvolvido por Pomian para o qual coleção é “qualquer conjunto de objetos
naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção
especial num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar do público” (POMIAN, 1984, p. 53).
GT92822
ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o artesanato de hoje”, cujo material ilustrativo,
desenhado e fotografado por ele, deveria ser aplicado não apenas em roupas, mas, no artesanato em
geral, com o objetivo de comercializá-lo (GALLO, 2005). A partir desse trabalho, iniciado na década
de 1980, os motivos marajoaras saíram dos objetos e passaram para as ruas, sendo reproduzidos nas
praças, postes, fachadas de casa, laterais de ônibus etc. A reprodução de cerâmica em Cachoeira do
Arari também se insere nessa popularização, uma vez que o MdM organizou cursos para a promoção
da atividade ceramista local.
De acordo com Schaan (2007), pode-se dizer que, antes de Pe. Gallo, pouco ou nada se sabia
sobre a importância, para a história local, dos achados arqueológicos. Destaquemos, ainda, que o
contrabando de peças arqueológicas era uma atividade muito comum na região. Mais recentemente,
alguns moradores têm reconhecido a importância desse legado cultural e patrimonial. Uma evidência
desse reconhecimento reside no uso diacrítico dos motivos marajoaras para caracterizar os elementos
caracteristicamente regionais, os quais se popularizaram a ponto de se constituírem em uma tradição
(LINHARES, s.d.; SCHAAN, 2007). Neste sentido, tanto o reconhecimento como o uso diacrítico
podem ser assimilados ao conceito de tradição inventada, nos termos de Hobsbawn e Ranger (2002).
No MdM pode ser encontrada não apenas a história dos povos que ocuparam a região,
mas também um fragmento da memória da cidade, além de coleções que falam sobre a dimensão
biossociocultural da Ilha, como espécimes da fauna taxidermizados, a exemplo do peixe-boi
(Trichechus inunguis) e do boto tucuxi (Tricherus Iningis). Há, ademais, um acervo sobre crenças
populares e sobre o modo de ser e de viver do homem marajoara. Nesse acervo destacam-se peças
como as que se referem à reima10, aos ofícios dos ilhéus, às habitações, às vestimentas, às festividades
e à pajelança cabocla, esta última categoria representada por objetos que remetem à sua cosmologia
e aos seus ritos. Enquanto semióforos, os objetos do acervo nos remetem aos restos ou vestígios da
história que materializam a memória (BELLAIGUE, 1993).
Como o nosso objeto de análise é a coleção de pajelança cabocla do MdM, consideramos
necessário situar o leitor quanto ao entendimento da pajelança cabocla na Ilha do Marajó, tal qual
representada no MdM, e quais as relações que a população de Cachoeira do Arari mantem com
esses objetos. É principalmente no campo da Antropologia que encontramos a maioria dos estudos
sistemáticos sobre essa prática popular, a exemplo dos trabalhos de Maués e Villacorta (2004) para
quem a pajelança é “uma forma de xamanismo” em que um pajé, incorporado por caruanas, ou
encantados, realiza trabalhos de cura de doentes. Desde o século XIX, o termo ‘pajelança’ tem sido
utilizado por não-praticantes para designar, de forma depreciativa, um sistema de crenças e práticas
curativas e, deste modo, estigmatizar cultural e socialmente os praticantes e/ou crentes desse tipo de
rito (MAUÉS; VILLACORTA, 1998; FIGUEIREDO, 2008; FIGUEIREDO; RODRIGUES, 2009).
10 “A reima é um sistema classificatório de restrições e proibições alimentares aplicados a pessoas em estados físicos e sociais
de liminaridade. É caracterizada por oposições entre alimentos perigosos (reimosos) ou não-perigosos (não-reimosos)” (MOTTAMAUÉS; MAUÉS, 1978).
GT92823
A pajelança11 pode ser entendida como um sistema de crenças que mescla elementos da tradição
indígena, africana e do catolicismo popular, além de possuir estreita relação com o meio ambiente,
seja devido à utilização de recursos fitoterápicos necessários ao preparo de banhos, chás e ungüentos,
seja por conta da delimitação de espaços sagrados reservados aos seres sobrenaturais. Assim, na
pajelança encontramos um amálgama de crença mágico-religiosa, prática de medicina popular e um
amplo conhecimento e uso de plantas medicinais, e no qual a figura/presença do encantado constitui o
núcleo central de crença e culto. Os encantados são seres sobrenaturais, invisíveis às pessoas comuns,
que habitam “no fundo” (região imaginária subterrânea ou subaquática), uma área conhecida como
encante (MAUÉS; VILLACORTA, 1998; FARES, 2006). Neste sistema de crenças, as pessoas que
“não morrem”12 são levadas para o encante, por encantados que “se agradam delas”, e onde elas se
desenvolverão e se tornarão, elas também, seres encantados13.
Os espaços em que ocorrem as aparições dos encantados são sagrados, e aqueles que ousam
profaná-los podem ser punidos. Desta maneira, os encantados podem ser entendidos como guardiões
da ordem estabelecida contra os descontroles humanos. São guardiões dos espaços, punindo, de
diferentes maneiras, quem os molesta; quem pesca ou caça além do necessário; quem maltrata
os animais; quem destrói as florestas; quem penetra nos lugares sagrados sem pedir licença ou
permissão.
Na sede do município de Cachoeira do Arari ainda é possível encontrar alguns pajés, embora
a maior parte deles more no interior. Comumente, os moradores recorrem aos pajés14 para tratarem
de seus males, sejam do corpo ou do espírito. Entretanto, são poucos aqueles que assumem15 que se
utilizam desses serviços, ou que conhecem pajés, ou ainda, que acreditam nessa prática curativa. Tal
atitude de denegação – que, em certo sentido, expressa uma atitude distanciamento em relação a essa
prática cultural - constitui-se ideologicamente em uma forma de contra-identificação. Isso se deve,
de um lado, à pressão exercida pelas igrejas católica e protestante, que satanizam a pajelança e, de
outro, pelo uso, cada vez mais freqüente, de medicamentos alopáticos e industrializados e da presença
de médicos16 e postos de saúde. Além do discurso de satanização veiculado pelos religiosos, os pajés
11 Neste trabalho, trataremos da pajelança cabocla ou rural, praticada por populações rurais não indígenas. Maués e Villacorta
consideram a pajelança cabocla como parte integrante do catolicismo popular das populações rurais e de origem rural amazônicas. Para
saber mais sobre o assunto, ver Maués e Villacorta (1998).
12 Pessoas que desapareceram (no mar, nos rios, nas matas) e cujos corpos nunca foram encontrados, vem daí a suposição de que não
morreram, mas que foram abduzidas por algum encantado.
13 “É comum a idéia de que, se alguém for levado por algum encantado para visitar o encante, deve evitar comer as coisas que lhe são
oferecidas, caso contrário se encantará, não podendo mais viver no mundo da superfície, como os demais seres humanos. Há também
a idéia de que os grandes pajés (conhecidos às vezes como “sacacas”) são levados pelos encantados para o fundo, onde aprendem sua
arte; mas, neste caso, eles retornam à superfície, como xamãs, para poder praticar a pajelança” (MAUÉS; VILLACORTA, 1998, p. 8).
14 Muitas vezes, esse termo é usado em sentido depreciativo. Os oficiantes dessa prática mágico-curativa preferem se auto-identificar
como “curadores”.
15 O mesmo foi observado por Maués e Villacorta na localidade de Itapuá, localizada no município de Vigia, nordeste paraense. Para
maiores informações, ver Maués e Villacorta (1998).
16 “Se a pajelança cabocla pode ser considerada uma forma de culto mágico-religioso, ela também possui um componente de
medicina, onde a magia – como em todas as formas de medicina, inclusive naquelas consideradas como erudita e ensinadas nas
universidades – desempenha um papel relevante. Ela é, para as populações rurais e de origem rural da Amazônia, uma das formas mais
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também são acusados, pelos médicos, de curandeirismo e charlatanismo.
Maués e Villacorta (1998) afirmam que a pajelança tem sido combatida, pela igreja católica,
desde o período colonial, segundo informações contidas no Livro da Visitação do Santo Ofício da
Inquisição no Estado do Grão-Pará (1763-1769). A sistemática perseguição à pajelança pode ser
uma possível explicação para maior concentração de pajés fora da sede municipal, em virtude das
dificuldades de deslocamento e também pela ausência, nesses rincões, de profissionais de saúde. No
livro Marajó, romance em que retrata a sociedade marajoara do início do século XX, Dalcídio Jurandir
mostra que a religiosidade (na forma de catolicismo popular, protestantismo, kardecismo, rituais de
curas ou pajelanças) é um importante componente da vida do marajoara (JURANDIR, 2008).
Na paisagem amazônica e, especificamente na de Cachoeira do Arari, as histórias sobre
encantados são parte inextricável da rotina diária dos habitantes, havendo relação entre o imaginário
marajoara e o sistema de crenças da pajelança, em que o primeiro justificaria a relação dos habitantes
locais com os espaços encantados e, igualmente, com o meio ambiente. Ao nos referirmos a
imaginário, nos apoiamos em Castoriadis para quem o imaginário é a uma instância ligada às formas de
representação, pela qual estabelecemos com o mundo uma relação mediada pelas formas ideológicas,
sendo, por conseguinte, um fator que permeia toda comunidade humana. É por essa mesma razão que é
possível dizer que o imaginário desempenha o papel de fator instituinte da sociedade, ao permear, tecer
e manter coesa a realidade social. Ainda de acordo com Castoriadis, a sociedade, enquanto instituição
histórico-política, se inscreve em um magma de significações (históricas, culturais, discursivas), uma
vez que “... a instituição da sociedade, e o mundo de significações correlativo, emerge como o outro
da natureza, como criação do imaginário social” (CASTORIADIS, 1982, p. 399).
O imaginário atua através do simbólico e cria efeitos de evidência segundo os quais existimos
em uma comunidade cujos interesses e valores comuns afiguram-se como naturalmente constituídos.
Assim, podemos pensar o imaginário marajoara como o elemento responsável por manter a aura de
mistério que envolve a ilha - especificamente em alguns lugares do município de Cachoeira do Arari,
como o Lago Guajará, muito respeitado pelos moradores do lugar, por ser considerado de encantaria.
Outro componente importante formador desse imaginário são os elementos culturais de origem
indígena, européia e africana que produziram o que Garcia Canclini (2008) chamou de hibridização,
qual seja, uma dinâmica cultural mediante a qual práticas e processos que existiam separados
combinam-se e formam novas práticas e processos. Embora as populações indígenas tenham, desde
o período de colonização, sido paulatinamente desculturadas, uma parte de sua herança cultural ainda
se mostra muito presente, na forma de recordação atualizada, principalmente através dos rotineiros
achados arqueológicos.
O culto aos encantados é o fator principal que atua na manutenção das práticas de pajelança, especialmente no que se refere à produção de banhos, chás, ungüentos, defumações, beberagens, entre outros,
requisitadas dentre as várias medicinas populares existentes no mercado de bens simbólicos e no campo médico-religioso. Pode, pois,
como outras formas de medicina popular, ser considerada, também, como uma forma de ciência” (MAUÉS; VILLACORTA, 1998, p.
27-28).
GT92825
produzidos a partir do conhecimento tradicional da biodiversidade amazônica e marajoara, em particular. Para
Darell Posey, povos tradicionais desempenham um papel fundamental na implementação de práticas de sustentabilidade, pois “muitos dos ecossistemas ‘naturais’ são resultado de suas práticas tradicionais” (POSEY, 1997,
p. 345), onde as diversidades ecológicas e culturais encontram-se interligadas.
3 PAJELANÇA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
A partir das relações estabelecidas entre o marajoara e o espaço que o circunda, podemos
relacionar a pajelança marajoara ao patrimônio, se tomarmos como referência o artigo 2 da Convenção
para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, segundo o qual patrimônio cultural imaterial
consiste nas práticas, expressões, conhecimentos e técnicas que comunidades, grupos e indivíduos
reconhecem como tal (UNESCO, 2003). O termo patrimônio que, em sua origem, estava relacionado
às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade, enraizada no tempo e no espaço
(CHOAY, 2001), admite atualmente uma diversidade de qualificativos (histórico, artístico, cultural,
material, intangível, virtual...), o que lhe dá um caráter polissêmico, um termo-cabide. De acordo
com Choay (2001), após a II Guerra Mundial, a noção de patrimônio foi ampliada, acrescentando-se,
aos palácios e igrejas, fábricas, usinas, teatros, casas, bairros, aldeias etc. A Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) criou, em 1997, o título de obra-prima do
Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, concedido a espaços, ou lugares, onde são regularmente
produzidas expressões culturais e manifestações das culturas tradicionais e populares.
O Registro, instituído pelo Decreto 3551, de 4 de agosto de 2000, é o instrumento legal
para o reconhecimento e a valorização do patrimônio cultural imaterial brasileiro, compreendido
como os “saberes”, “ofícios”, “festas”, “rituais” etc., configurados como referências identitárias dos
grupos que, fundados na tradição, produzem e/ou praticam manifestações culturais como expressão
de sua identidade (CAVALCANTI, 2008). Os bens a serem registrados são definidos pelos grupos
interessados, os quais encaminham ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
suas solicitações para que essa instituição avalie a pertinência, ou não, de uma dada tradição,
manifestação ou objeto cultural como patrimônio nacional. Se o registro for autorizado, o bem cultural
será inscrito em um dos quatro livros em que o IPHAN divide as categorias patrimoniais, de acordo
com suas características: “Livro dos Saberes” (ou modos de fazer), “Livro das Celebrações”, “Livro
das Formas de Expressão” e “Livro dos Lugares”.
O processo de registro deverá ser renovado a cada 10 anos, pois, segundo Brayner (2007), o
registro é uma referência de determinada época. Cavalcanti (2008) ressalta que a relevância para a
memória, a identidade, a formação da sociedade brasileira, a continuidade histórica, sua reiteração,
transformação e atualização são critérios fundamentais para legitimar a relevância do registro de
um bem cultural. Embora no âmbito do atual processo de patrimonialização tenha sido estabelecida
a categoria patrimônio intangível ou imaterial, separada do patrimônio material ou tangível, e
conquanto tenham sido criadas leis que visam proteger os bens imateriais, em termos práticos não
GT92826
como separar o material do imaterial. Quando muito, no que tange à noção de patrimônio cultural,
é possível distinguir o tangível do intangível17. Devemos considerar, segundo Cavalcanti (2008),
que a patrimonialização deve basear-se na noção de valor e de referências identitárias que os grupos
conferem aos seus bens culturais (BOYLAN, 2006; CAVALCANTI, 2008). Observamos também
que, além do patrimônio implicar a afirmação das identidades, é um campo atravessado por interesses
contraditórios, tensões, conflitos e disputas, de tal sorte que a patrimonialização (enquanto processo)
resulta de uma escolha de posições nesse campo de tensão, como forma, que também é política, de
legitimação da identidade e da memória (VELHO, 2007; CHAGAS, 2007; ABREU, 2007).
Como assinala Gonçalves (2007), os patrimônios são classificados como partes de totalidades
cósmicas e sociais e como afirmações de extensões morais e simbólicas de indivíduos ou coletividades,
“estabelecendo mediações cruciais entre eles e o universo cósmico, natural e social” (GONÇALVES,
2005, p.18). Eles não existem apenas para representar ideias e valores abstratos e serem contemplados,
pois, de certo modo, constroem e formam as pessoas (GONÇALVES, 2007). Neste sentido, podemos
dizer que a pajelança, a despeito das pressões que vem sofrendo ao longo do tempo, ainda hoje produz
ressonância18 na comunidade estudada, ainda que essa ressonância seja inconsciente. Por ressonância,
aplicada ao patrimônio, entendemos o poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo,
para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e
dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante (GONÇALVES,
2005, p. 3).
Vista em sua dimensão política, cultural e identitária, e enquanto espaço de significação e de
memória, a pajelança está “para além das fronteiras formais” da comunidade. Contudo, dado que se
trata de um espaço do imaginário atravessado por contradições e tensões (especialmente quanto aos
discursos de identificação e de contra-identificação), percebemos que, no que tange à patrimonialização
da pajelança, é preciso, ao conceito de ressonância, associar o de aderência (BORGES; CAMPOS,
s.d.). Por referência entendemos o maior ou menor grau de afastamento ou proximidade de um grupo
de indivíduos em relação a um objeto ou traço cultural.
E como se dá a relação entre a pajelança e o MdM? Ao considerarmos que um espaço museal,
como o MdM, possui uma coleção de objetos relacionados à pajelança, voltamo-nos à afirmativa de
Mário Chagas, segundo a qual aos museus “freqüentemente é atribuída a função de casas de guarda
do tesouro. Mas, se o tesouro foi perdido, o que elas guardam? E se guardam de fato um tesouro, que
tesouro é esse?” (CHAGAS, 2002, p. 1). Dadas as pressões da modernidade que institucionalizaram
o saber médico em detrimento das práticas tradicionais de cura (FIGUEIREDO; RODRIGUES,
2009), desqualificando-as e esterotipando-as como prática exótica e selvagem, a pajelança cabocla
17 Seja do ponto de vista filosófico, seja do lingüístico-cultural, o par material/imaterial e o par tangível/intangível não pertencem à
mesma categoria e a sinonímia, portanto, é imperfeita. Em uma perspectiva discursiva, centrada na materialidade histórica do discurso,
não faz sentido dicotomizar material e imaterial. No campo museológico também há consenso quanto à inseparabilidade (a não ser para
fins didáticos, ou como no caso das categorias patrimoniais preconizadas pela IPHAN) entre material e imaterial.
18 Neste trabalho, utilizamos o termo ressonância, tal qual conceituado por Stephen Greenblatt (1991) e utilizado por Gonçalves
(2005).
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de Cachoeira do Arari pode ser pensada como uma espécie de tesouro a ser resguardado no espaço
museológico? A coleção de pajelança do MdM seria reconhecida pelo habitantes locais como um
“tesouro”?
Em relação ao tesouro museológico de que fala Chagas, podemos considerar que o que está
em jogo, tanto no MdM quanto em Cachoeira do Arari, é a tentativa de estabelecimento de um vínculo
que ligue o presente marajoara ao seu passado e, quem sabe, esse passado memorial e musealizado
ao cotidiano cachoeirense. Se o museu pode significar que o tesouro foi perdido, também pode
rememorar que o tesouro existiu e que pode reaparecer, podendo ser reapropriado (CHAGAS, 2002).
Desse ponto de vista, não há como separar a pajelança do universo simbólico no qual ela se inscreve
e do qual a pajelança é a materialidade.
Podemos adiantar que, para que a ligação acima mencionada se efetive, é necessário formular
uma política educativa que vise sensibilizar a população para o patrimônio cultural local, e mais
precisamente no que respeito aos objetos musealizados no MdM. Uma política patrimonial dessa
natureza estaria de acordo com o papel educativo de que as instituições museais estão investidas.
Pois, tal como expresso na Conferência Geral da UNESCO – 25ª Reunião, realizada em Paris, em 15
de novembro de 1989, “[...] a cultura tradicional e popular [...] é um poderoso meio de aproximação
entre povos e grupos sociais existentes e de afirmação de sua identidade cultural” (IPHAN, 2004, p.
293).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando a noção de valor inerente a patrimônio, no que tange à pajelança há dois aspectos
importantes a considerar. De um lado, devemos considerar a pajelança do ponto de vista histórico e
cultural quanto a seu enraizamento e seu entranhamento no imaginário marajoara, bem como seus
procedimentos ritualísticos, seus paramentos e técnicas e saberes. De outro, os condicionantes sóciopolíticos relativos à posição de prestígio, ou de reconhecimento, que, atualmente, a pajelança ocupa
entre a população de Cachoeira do Arari.
Se considerarmos somente o primeiro aspecto, não resta dúvida quanto à importância histórica
e cultural dessa prática mágico-curativa, com suas implicações no conhecimento e manejo do meio
ambiente, especialmente no que respeita às plantas medicinais. Contudo, ao equacionarmos o segundo
aspecto, as complexas relações entre sujeitos, identidade e cultura impõem-se. Nas novas condições
sociais de Cachoeira do Arari, a pajelança não tem mais nem o mesmo prestígio cultural, nem a mesma
credibilidade medicinal e, com isso, evidencia-se um afastamento entre uma parte da população e os
pajés. Disso resulta que já não é tão certo que esse traço cultural mereça, por parte da população, o
significado de patrimônio, com tudo aquilo que, como visto acima, um patrimônio implica.
Essa situação nos leva a concluir que, em relação ao processo de patrimonialização e no que
tange especificamente à pajelança, o recurso ao conceito de ressonância nos afigura insuficiente para
GT92828
dar conta da enorme complexidade que existe entre comunidade, seus bens/valores culturais e aquilo
que pode ser considerado patrimônio. Desse modo, à ressonância, entendida como uma vibração
harmônica entre duas fontes, que atua em sentido horizontal e permite que, nesse intervalo, os eventos
envolvidos demarquem relações de reconhecimento, devemos associar o conceito de aderência,
pelo qual é possível aferir o grau de maior ou menor aproximação/aprovação ou identificação com
determinado traço cultural. Em vista do fato de que toda sociedade é opaca, complexa, desigual e
contraditória, devemos pressupor que as relações entre os seres sociais e o conjunto dos bens culturais
são igualmente desiguais e contraditórias. É justamente por essa razão que a aferição do patrimônio,
enquanto elemento que correlaciona valor, memória e identidade, deve ser realizada por meio de uma
matriz formada por ressonância (na horizontal) e ressonância (na vertical).
As aproximações e distanciamentos (explicitamente assumidos ou dissimulados) entre a
população de Cachoeira do Arari e a pajelança; além de uma outra problematização resultante da
musealização da pajelança pelo/no MdM – e que, por seu turno, leva a outras questões que envolvem
o papel mediador do museu e os efeitos dessa pajelança musealizada sobre o púbico em geral e,
especialmente, sobre pajés e adeptos -, nos levam, por outro lado, a pensar no que Chagas (2002)
discute acerca do tesouro-memória. Até que ponto e em que medida Cachoeira doArari perdeu, ou
não, conserva, ou não, o seu tesouro cultural?
Há, ademais, acerca da pajelança, uma prática discursiva de encobrimento relacionada à
denegação. Trata-se de uma forma encoberta, dissimulada ou estigmatizada de se relacionar com
esse culto e prática curativa, e pela qual o imaginário marajoara é recortado e selecionado. Neste
sentido, a pajelança cabocla, tal qual praticada em Cachoeira do Arari, se constitui em excelente mote
para discutir formas e posições assumidas quanto à identidade, à contra-identidade e ao patrimônio.
Se a pajelança constitui um lugar simbólico-imaginário que evoca uma memória – e através dela os
processos sociais -, ela também nos permite inquirir acerca de que memória é evocada ou reconstruída
pela pajelança, seja por aqueles que a praticam, seja por aqueles que a rejeitam; por aqueles que de
modo dissimulado a negam para afirmá-la (ou vice-versa), seja ainda pelo lugar que ocupa como peça
de museu. Qualquer que seja o modo como a encaramos, a pajelança nos desafia. E considerá-la, ou
não, patrimônio cachoeirense, não é simplesmente uma questão de escolha ou determinação: é mister
desvendá-la.
Abstract: In the realm of the marajoan imaginary cartography, the “pajelança cabocla” – term
that refers to a traditional healing practice that combines magic-religious elements, principles of
popular medicine and the use of medicinal plants – occupies a prominent place. Although it’s traditional
in the Marajo archipelago, the practice of the pajelança became stigmatized, due to the pressure of
the church and to the presence of physicians, and the frequent resource of industrialized medicine.
This new situation leads the population in general to respond rejecting the pajelança, notwithstanding
many among them still keep believing in the paje’s healing power and using their abilities, but in a
covert way. In another quadrant of the marajoan cultural landscape, it’s placed the Museum of Marajo,
GT92829
hosted in the city of Cachoeira do Arari and responsible for the gathering, collecting and exhibition of
the island cultural representatives, and in which a musealization of the pajelança is found. This paper
is about the pajelança (understood as a representative feature of the marajoan culture and imaginary)
and its musealization; trying to comprehend the complex relation between those three social actors:
the paje, the museum and the population of Cachoeira do Arari, based on the notion of heritage,
delimited, as an expression of valour, between resonance and adherence. Our main question was
to know to what extent of that delimitation and in the view of the contradictory behavior towards
pajelança, we may consider that this magic-healing practice integrates a marajoan cultural heritage.
Key words: Imaginary. Heritage. Marajo. Museum. Pajelança
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GT92833
COMUNICAÇÃO ORAL
CULTURA MATERIAL, COLEÇÃO E MUSEU: NOTAS
INTRODUTÓRIAS A BIOGRAFIA CULTURAL DA COLEÇÃO
DE PRANCHAS DE MANOEL PASTANA DO MUSEU DE
ARTE CONTEMPORÂNEA CASA DAS ONZE JANELAS EM
BELÉM DO PARÁ
Rosangela Marques Britto
Resumo:
O trabalho visa interpretar a história de vida da coleção de pranchas de Manoel Pastana, tendo como
base a pesquisa teórica da noção histórica do estudo de cultura material na perspectiva da Antropologia
e a pesquisa de campo no Museu. Ao final, concluímos aproximando os estudos de cultura material ao
da interpretação do campo do patrimônio e do museu.
Palavras-Chaves: Antropologia. Cultura Material. Objetivação das Coisas. Objetivação e biografias.
Coleção Manoel Pastana.
Abstract:
The work aims to interpret the life story of the collection of surfboards Manoel Pastana, based on
the theoretical research of the concept of historical study of material culture from the perspective
of anthropology and field research in the Museum. At the end, we found approaching the material
culture studies to the field of interpretation and Heritage and the Museum.
Keywords: Anthropology. Material Culture. Objectification of things. Objectification and biographies.
Collection Manoel Pastana.
1. INTRODUÇÃO
Apresentaremos no primeiro tópico a noção de cultura material baseado na perspectiva da
Antropologia. No segundo, a importância sobre a problematização da objetivação para os estudos
de cultura material na atualidade, a partir do enfoque do âmbito disciplinar da antropologia, numa
perspectiva relacional entre sujeito e objeto, material e imaterial, natureza e cultura, animado e
inanimado. O terceiro tópico refere-se às notas introdutórias ao estudo da “coleção de pranchas” do
artista Manoel de Oliveira Pastana, que nasceu na Vila de Apeú, próximo ao município de Castanhal,
em 26 de julho de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1984. A “coleção de pranchas” são desenhos
que foram tombados no âmbito estadual, em 1983 e adquiridos pela Secretaria de Cultura do Estado,
em 1988. Ao final, apresentamos as anotações da análise que envolverá a objetivação de um conjunto
GT92834
de imagens na dimensão de uma biografia social das coisas.
2. A RELAÇÃO MEDIADA ENTRE AS COISAS E AS PESSOAS NUM DETERMINADO
CONTEXTO
A noção sobre os estudos de cultura material é polissêmica, possibilitando margens
interpretativas de ambiguidades. A polissemia procede do fato do termo indicar tanto o objeto de
estudos como a forma de conhecimento (REDE, 1996, p.265-282; LIMA, 2011, p.11-23). Ademais,
pontuamos a nossa compreensão da noção do termo na perspectiva relacional entre cultura e cultura
material. Observa-se que nessa relação à interpretação sobre a palavra depende da própria noção de
cultura adotada pelo autor/pesquisador. Neste artigo compreendemos cultura e cultura material como
dois lados de uma mesma moeda, e que cultura material é inseparável da sociedade e culturas humanas
(TILLEY, 2008, p. 60-73)1. A categoria cultura é transversal ao longo da história das ciências Humanas
e Sociais, em especial no campo antropológico, em que a abordagem do conceito de cultura é central
nessa disciplina, e diferencia-se dependendo da perspectiva visada, se estruturalista, funcionalista,
evolucionista, dentre outras no estudo do Outro. Longe do conceito monolítico e homogêneo, conforme
nos apontam as teorias modernas sobre cultura, a mesma possui um caráter dinâmico, em que cada
sistema cultural está sempre em mudança, podendo ser expressa no plural como culturas (LARAIA,
2006; GONÇALVES, 2007). A ideia de cultura exposta no texto é na dimensão da “invenção”, ou
seja, não como um fato dado, e sim na dimensão de criação, como autopoises, como nos propõe Roy
Wagner (2010), em seu livro A Invenção da Cultura.
Dizendo de outro modo, podemos analisar “cultura material” como dois termos em separado:
a noção de cultura e o termo material, que significa do latim materia, ou seja, constituinte físico
de algo, substância sólida, corpórea, oposto a forma, espírito (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006,
p.181). Já, modernamente, em contraposição a materialidade e imaterialidade, a noção de matéria
está na base da palavra latina materies ou matéria, que se trata da substantivação da mãe (mater), ou
seja, algo formado de matéria, em que sua origem esteja vinculado a matéria física constituinte, em
conjunto com a energia, a deter portanto uma conotação concreta e, daí, todo tipo de coisa. Ademais,
a integração deste termo com a cultura- que se refere ao humano- resultou na noção de cultura
material, como “a totalidade do mundo físico apropriado pelas sociedades humanas. Estão incluídos
não apenas o que o ser humano produz, na forma de artefatos, como tudo o que ele transforma no
decorrer do tempo” (PELEGRINI; FUNARI, 2008, p.26).
O nosso intuito não é abordar o tema da cultura em si, mas situar a própria historicidade do termo
cultura material. A partir de 1850, aproximadamente, o termo está relacionado à noção dos estudos
arqueológicos voltados à pré-história, e sua expansão continuou relacionada à Arqueologia. Assim,
apontamos que segundo Pedro Funari (2003, p.15), o campo disciplinar da Arqueologia, dentre um
dos pontos de vista adotado pela disciplina, estuda “diretamente a totalidade de material apropriada
pelas sociedades humanas, como parte de uma cultura total, material e imaterial, sem limitação de
1
Tradução do texto do original em inglês de Doriene Monteiro Trindade.
GT92835
caráter cronológico”. Ademais, no início da formação do campo disciplinar da Antropologia, a noção
de cultura material se expande envolvendo os estudos da Antropologia a partir dos objetos e das
coletas para ordenação de museus, como as etnografias de Boas, dentre outros. Expande, ainda mais,
entrelaçado aos estudos de outras áreas do conhecimento, como os estudos econômicos e sociais de
Marx e Engels. Essa expressão, cultura material específica surge em 1919, na antiga Rússia, via um
decreto que cria o Instituto de História da Cultura Material, em que a “criação deste instituto por parte
dos marxistas, mais intransigentes e, portanto, num contexto político dos mais difíceis, confirma (...)
a ligação que sempre existiu entre ideia de cultura material, o socialismo em geral e o marxismo em
particular” (BUCAILLE; PESEZ, 1989, p.15). Assim, é a partir 1920, que o estudo de cultura material
se relaciona à categoria de entendimento e de representação social, com os estudos de Durkheim e
Mauss em Sociologia e Antropologia. Já nos anos 30 do século XX, os estudos de cultura material
também está relacionado à História, por meio do contato dos historiadores com a Antropologia que
se fazia à época, em especial relativa aos estudos dos fenômenos simbólicos (BUCAILLE; PESEZ,
1989, p.11-47; BUCHLI, 2002, p.1-22).
Baseado na breve noção histórica do termo avançaremos na delimitação teórica da noção,
apontando algumas dimensões da cultura material, pois não se pretende apresentar esse termo como
um conceito, pois, como tentamos demonstrar, o mesmo é bastante vasto e impreciso e abrange
diversas perspectivas2, ora pela Arqueologia ou pela Antropologia – ou mesmo baseada nos povos
á serem etnografados. Teremos como exemplo a perspectiva ameríndia ou mesmo quando partimos
da análise da dimensão sensorial e perceptiva do objeto ou do campo da Arte ou ainda quando se
podem considerar os restos humanos como objetos, em sua apresentação nos museus. Enfim, há
muitos estudos de caso na literatura científica, a maioria na língua inglesa, dentre eles, Sensible
Objects: colonialism, museums and material culture (2006), editado por Chris Gosden, dentre outros,
Handbook of Material Culture (2008), Christopher Tilley, um dos editores, The Occult Life of Things:
Native Amazonian theories of materiality and personhood (2009), de Fernando Santos-Granero, No
Brasil, destacam-se as publicações dos Anais do Museu Paulista da Universidade de São Paulo que
associam História e Cultura Material.
A delimitação teórica da noção dos estudos de cultura material está relacionada a algumas
dimensões de outras categorias relativas ao conceito: espacial e temporal; social e longa duração ou
tempo longo, conforme nos aponta Braudel (BUCAILLE; PESEZ, 1989, p.11-47). Nas palavras de
José Neves Bittencourt, de um ponto de vista estrutural, a disciplina cultura material se apresenta
em três dimensões, “uma espacial (a topologia das transformações naturais e seus resultados
visíveis), uma cronológica (...) e uma terceira, social, que produz diferenças no interior de um mesmo
conjunto humano” (BITTENCOURT, 1998, s.n.). Essas dimensões se manifestam tecnicamente,
economicamente, geograficamente, simbolicamente, dentre outros. Assim, as coleções museológicas
2 Essa abordagem da disciplina Cultura Material foi apresentada pela profa. Dra. Marcia Bezerra, no âmbito do Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará, no 1º semestre de 2011.
GT92836
parecem abarcar as três dimensões propostas à noção de cultura material, e “estas acabam por
transferir-se para as exposições. Neste momento, objetos produzidos por um conjunto que abrange
relações de diversos níveis, transformam-se em um documento” (BITTENCOURT, 1998, s.n.).
Os estudos de cultura material com base na perspectiva do antropólogo Daniel Miller (1987,
p.109-130), são uma subseção da Antropologia3, sendo que a Arqueologia se manteve numa relação
mais próxima com essa noção, no que nos reportamos aos estudos do ciclo completo do objeto, que
abrange a produção, a circulação (ou distribuição) e o consumo das coisas como uma parte do estudo
de cultura material. Em especial, esse autor tem realizado etnografias sobre a prática do consumo em
sociedades contemporâneas, desenvolvendo um trabalho tensionado dialeticamente entre o campo
e a teoria, em que o interesse pelas pesquisas realizadas por Miller está nos relacionamentos do
pesquisador com as pessoas, e não no estudo isolado dos objetos em si, e sim em etnografias do
consumo de determinados produtos do cotidiano em sociedades complexas, tecendo uma imbricada
relação tensional entre as pessoas e as coisas, que podem ser artefatos4, mercadorias5 (VIANNA;
RIBEIRO, 2009, p.415-439; MILLER, 2007, p.33-63; APPADURAI, 2008, p.15-88).
Isso significa dizer que na abordagem de Miller, há uma concentração na mediação tensional
entre sujeitos e bens, em que na atividade do processo de consumo “transforma os objetos da condição
de coisas separadas do homem que os produziu para condições de coisa escolhidas e apropriadas à
vida dos sujeitos que os consomem” (LIMA, 2010). Neste sentido, Miller nos aponta que os estudos de
cultura material trabalham “através da especificidade de objetos materiais para, em última instância,
criar uma compreensão mais profunda da especificidade de uma humanidade inseparável de sua
materialidade” (MILLER, 2007, p.47). A questão da materialidade, ou mesmo da objetivação, será
abordado em outro tópico, mas, no geral, esse é um conceito que visa fornecer uma maneira particular
de compreender a relação entre sujeitos e objetos, pessoas e coisas, animado e inanimado (TILLEY,
2006, p. 60-73).
2.1 Objetivação e biografia cultural das coisas
We touch the things and the things simultaneously touch us. The
relationship is reciprocal.
Christopher Tilley
Christopher Tilley (2008), no texto introdutório da parte I do Handbook of Culture Material,
nos diz que o conceito de objetivação pode ser considerado no centro dos debates e estudos de cultura
3 Antropologia, na perspectiva norte-americana, é considerada em seus quatros campos: Arqueologia, Bioantropologia, Linguística
e Antropologia Social.
4 Artefato se diferencia de um objeto natural porque é o produto do labor humano, em que os mesmos devem ser estudados em seus
contextos e que na sua constituição está implícito a noção de intenção e de criação (MILLER, 1987, p.109-130).
5 Mercadorias são coisas com um tipo particular de potencial social, que se diferem de produtos, objetos, bens, artefatos e outros,
mas sedimentado em alguns aspectos de um determinado ponto de vista (APPADURAI, 2008, grifo do autor). Na análise de Miller
(2007), a partir da categoria de estudos de cultura material do consumo, o tipo de mercadoria “precisa reconhecer sua implicações pelos
efeitos que tem nos consumidores” (MILLER, 2007, p.49).
GT92837
material, ou seja, “o que são as coisas e o que essas coisas fazem no mundo social: a maneira nas quais
objetos ou formas materiais são inseridas no mundo da vida de indivíduos, grupos, instituições, ou,
mais amplamente, na cultura e na sociedade” (TILLEY, 2008, p. 60)6.
Uma das abordagens sobre objetivação se dá nas categorias de entendimento sistematizadas
por Emile Durkheim e aprofundada por Marcel Mauss, o que é nomeado respectivamente como “fato
social” ou representações sociais e os “fatos sociais totais”. Durkheim (1978, p.167-182) no texto
Sociedade como fonte do pensamento lógico nos apresenta que a categoria é sinônimo de noção ou
conceito, em que o “conceito é uma representação essencialmente impessoal: é por seu intermédio
que as inteligências humanas se comunicam” (DURKHEIM, 1978, p.174), ao passo que os conceitos
são representações coletivas. Se de fato eles forem comuns a todo um grupo social, adentrando-se
com a composição do termo representação coletiva, em que é destacado que o centro dos primeiros
sistemas de natureza não é o indivíduo e sim a sociedade, concebida além de uma massa de indivíduos
que a compõe, pelo território que ocupam e as coisas que interpretam, e também, pela ideia que a
sociedade faz de si mesma (DURKHEIM, 1978, p.167-182).
Mauss publica, em 1925, o Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas. Sua reflexão sobre os princípios das trocas-doações ou dádivas, ou mesmo sobre as três
obrigações, do dar, do receber e do retribuir, aborda a “forma arcaica da troca: o das dádivas oferecidas
e retribuídas” (MAUSS, 2003, p.264). Assim como nesta extensão, o pensamento maussiano identifica
a circulação das coisas nos grupos estudados com a dos direitos e das pessoas. Este é um de seus
escritos de maturidade, mais conhecido como “fatos sociais totais”, que ao tratar os já explicitados
fatos sociais numa dimensão geral, vislumbra-se estudar os fenômenos sociais no mesmo lance em
sua totalidade, como o jurídico, econômico, religioso, e mesmo estético, morfológico, dentre outros.
Mauss (2003, p.309) nos diz que os fatos sociais totais “põem em ação, em certos casos, a totalidade
da sociedade e de suas instituições”, em que a sociedade não foi estudada como uma instituição
imóvel, mas em seu estado dinâmico ou fisiológico. E considera que esta abordagem apresenta duas
vantagens: a primeira, a de generalidade, pois os fatos observados tendem a ser mais universais se
arrolados aos vários temas das instituições observadas, que no geral tenderiam a ter certa cor local.
Assim, a ideia se dá na observação das coisas sociais na sua dimensão concreta. A segunda vantagem
é que nas sociedades analisadas, a abordagem maussiana não se voltou às ideias ou regras, mas aos
comportamentos dos homens, seus grupos (MAUSS, 2003, p.185-314).
Miller, além de manter sua análise antropológica dos estudos de cultura material a partir da
tradição etnográfica, relata que esses estudos se expandiram a partir de Marshall Sahlins, Lévi-Strauss,
e especificamente em Pierre Bourdieu, neste caso, o autor tratou a cultura material como elemento
“fundamental para a socialização das pessoas e suas constituições como tais, fato central para a
nossa compreensão acerca da sociedade e da reprodução social” (MILLER, 2009 apud VIANNA;
RIBEIRO, 2009, p.415-439). Todavia, o estudo de cultura material realizado por Miller, segundo
6
Original na língua inglesa, com tradução para o português realizada por Doriene Monteiro Trindade.
GT92838
Lima (2010), está sedimentado em Hegel, Marx e em Simmel, nas palavras da autora:
Hegel interessa que o espírito subjetivo esteja em contato com os conteúdos do
mundo, Miller defende que entre formas mundanas e as humanidades particulares
que permanentemente criam essas formas existe, por definição uma relação
de pertinência recíproca (...). Para ambos [Simmel e Miller], está claro que a
especificidade estrutural da Modernidade reside no alto nível de monetarização
das relações e na forte presença de formas materiais autônomas propiciadas pelo
surgimento da industrialização. Essa é também a realidade verificada por Marx
(LIMA, 2010, p.47).
Observa-se que a objetivação na dimensão dialética de Hegel e Marx é ressignificada nos
estudos de Miller, conforme nos apresenta Tilley (2008) ao argumentar sobre a teoria das formas
materiais em relação à problematização dos processos de objetivação, em que as coisas não são
somente objetivação no momento de sua produção, entretanto ao longo de seu ciclo de vida, as
coisas envolvem processos de troca, apropriação e consumo, ou seja, “[o]s objetos circulam através
das atividades das pessoas e podem produzir contextualmente novos tipos de atividades, objetos e
eventos” (TILLEY, 2008, p.61).
Em relação à biografia cultural das coisas, cito Arjun Appadurai (2008) em seu livro a Vida
Social das Coisas: As mercadorias sob uma perspectiva cultural, o autor apresenta na introdução
intitulada Mercadorias e a política de valor, a tese de que “as mercadorias, como as pessoas, têm
uma vida social” (APPUDARAI, 2008, p.15), ou seja, no ensaio o autor propõe uma análise que vai
além da polarização entre produção e consumo, pois o que sistematiza o vínculo entre os regimes de
valor e fluxos de mercadorias específicas é a dimensão política, absorvida na sua acepção ampla de
relações, suposições e disputas relativas ao poder. O livro, em suma, é composto por uma coletânea
de artigos de diversos autores agrupados em: o Espírito de mercadoria; Desejo e demanda e Rotas e
desvios. É neste último agrupamento, que Appadurai comenta o artigo de Igor Kopytoff (2008, p.89121) intitulado A Biografia Cultural das Coisas: A Mercantilização como processo, em que o autor
expõe “que as mercadoria têm história de vida” (APPADURAI, 2008, p.31) em que ser mercadoria,
pode ser uma fase na vida de uma alguma coisa. Kopytoff no artigo, nos apresenta a sua maneira de fazer e de refletir sobre os tipos de
biografias, de pessoas e coisas em sociedades simples e complexas, ao analisar o circuito de trocas
e/ou econômico e ao observar tipos polares de economias, assim como sugere a necessidade do
estudo de tipos intermediários. Nestes contextos societários diferenciados, o autor compreende
a mercantilização “como um processo de transformação do que um estado de ser-ou-não ser”
(KOPYTOFF, 2008, p.100, grifo do autor). Em suas análises contextuais o autor apresenta como se
pode traçar uma analogia na maneira pela qual as sociedades constituem os indivíduos e a maneira
pela qual constroem coisas. Em que as sociedades (simples ou complexas) ordenam o mundo das
coisas e das pessoas, simultaneamente e da mesma forma, constituindo objetos e pessoas na mesma
estrutura. Nesta direção, observa-se que todas as pessoas tem muitas biografias, como a psicológica,
econômica, familiar, profissional. Elege-se alguns desses aspectos, dentre outros, ou mesmo os
GT92839
agrupamos em camadas e, assim, poderemos verificar o entrelaçamento entre esses aspectos. O que é
importante destacar desse processo de análise é o que faz com que uma biografia seja cultural ou não.
No caso da atribuição à biografia do termo “cultural das coisas”, essa noção não se refere ao assunto
a ser analisado, mas a perspectiva de análise do assunto, que o mesmo seja culturalmente informado.
Nos termos de Kopytoff, a abordagem biográfica das coisas nas sociedades complexas nos
apresenta um padrão semelhante, mas que em um contexto de homogeneizado das mercadorias,
a biografia de uma coisa implica na perspectiva histórica de suas várias “singularizações, das
classificações e reclassificações num mundo incerto de categorias cuja importância se desloca com
qualquer mudança do contexto. Tal como ocorre com as pessoas, o drama aqui reside nas incertezas
da valoração e da identidade” (KOPYTOFF, 2008, p.121).
No estudo de caso proposto neste artigo, à coleção de pranchas de Manoel Pastana, a análise
da biografia estética culturalmente informada de um objeto, representada por imagens plasticamente
constituídas por uma artista no formato de pranchas ou desenhos, dar-se-á pela análise da coleção,
com base nos significados culturalmente específicos e classificados e reclassificados em categorias
culturalmente construídas. A análise será processual e mediada numa relação dinâmica e tensional
entre as biografias de seu autor e da sua produção artística e estética numa conjuntura sociohistórica,
atentando ao processo de produção, circulação e consumo ou recepção da coleção, em que nesses
processos serão observados os regimes de valor (MILLER, 1987; KOPYTOFF, 2008, p. 89-121;
APPADURAI, 2008, p.15-87).
Afinal, pretende-se experiencialmente interpretar a biografia das coisas com base na ideia
de uma coleção que tem como lugar de guarda, o museu. Sabemos que a trajetória de vida de um
objeto se altera ao integrar uma coleção de um museu7. O antropólogo José Reginaldo Gonçalves
(2007) nos lembra que também os artefatos estéticos produzidos pelo homem a partir da contribuição
das modernas concepções antropológicas de cultura nos apoiam na concepção de que as coleções,
os museus e os patrimônios são considerados como categorias de pensamento e como gêneros de
discurso.
Neste sentido, compreendemos a Museologia como um campo teórico e conceitual e a
museografia como o equivalente ao campo prático e processual, ou mesmo, as nomeadas: Museologia
aplicada à conservação, Museologia aplicada à documentação e a Museologia aplicada à comunicação
(educação e exposição). Assim, reiteramos que a Museologia é uma disciplina na área das ciências
Humanas e Sociais, com suas especificidades teórico-e-prática, escritas graficamente juntas, no intuito
de pontuar a correlação entre os campos conceitual e prático ou processual. Esta proposição do uso
do termo nos modos apresentados advém da nossa observação dos estudos antropológicos, conforme
7 As coisas como categoria de Arte são forjadas, como tal, baseada em uma atribuição de valor cultural, ou mesmo em “princípios
de mercantilização e de singularização”, segundo Kopytoff (2008, p.89-121). No entanto, ao entrarem no museu e constituírem uma
coleção continuam a ter um valor de troca, mesmo que o objeto seja subtraído de sua esfera de troca, no caso de sua condição mercantil,
mas tais coisas continuam a ser mercadorias potenciais. Por exemplo, caso o museu precise colocar o ser acervo no seguro, o bem é
reinserido no mercado. Enfim, há uma tensão constituinte entre esses dois mundos, os dos bens e dos museus (KOPYTOFF, 2008, p.
89-121).
GT92840
apontado por Mariza Peirano (1990, p. 2-12), que nos fala do processo de transmissão disciplinar,
no qual se combinam “teoria-e-história”, da mesma forma que é “teoria-e-etnografia” e é “sobre a
tensão entre presente teórico e a história da disciplina que a tradição da antropologia se transmite”
(PEIRANO, 1990, p.5). A mesma correlação propomos entre Museologia e Museografia, respeitando
as diferenças disciplinares.
A Museologia é apresentada como um campo disciplinar autônomo e o museu é visto como
instrumento, como objeto de experimentação do campo museológico. Na sociedade contemporânea,
o museu se faz representar por instituições de vários tipos, que se diferenciaram pela forma como
se desenvolveram as relações entre as sociedades e os patrimônios culturais. Este seria também o
caso do nosso país, segundo Chagas e Nascimento Junior (2007, p.2001, p.198-207), para quem
“a trajetória dos museus no Brasil indica que as ações de comunicação, pesquisa e preservação do
patrimônio cultural madrugaram nestas instituições”.
A conceituação de patrimônio em um único termo, numa dimensão integradora, na ideia de
conjunto é apontada por Scheiner (2004), enfatizada como multiplicidade, múltiplos de múltiplos, como
uma percepção integrada de fatos e acontecimentos, na dimensão interna e externa ao homem, instituindo
um imaginário criador, consciência que define em cada um de nós: o ser do mundo, de estar no mundo
e de perceber o mundo, como uma realidade mutável que nos atravessa e significa. O patrimônio como
uma instância de autorreconhecimento e de (re) conhecimento do Outro; o patrimônio como uma
instância vivencial, (re) avaliando a importância da imaginação simbólica na construção de uma ideia
de patrimônio e aceitando o fundamento intangível do patrimônio, nas palavras da autora:
[...] pois é do conjunto de artefatos simbólicos (tangíveis e intangíveis), criados
pelo humano para relacionar-se com a natureza, que se constitui a cultura – maior
instância de mediação entre o homem e o mundo. E é do universo simbólico, dos
traços e padrões não materiais da cultura, que se institui o que entendemos como
patrimônio intangível – a herança espiritual constituída pelo conjunto de ideias,
valores e memórias comuns a um determinado grupo social, e cuja transmissão de
geração a geração a assegura a ‘perenidade do humano’8. [...] (SCHEINER, 2004,
p.106, grifo do autor).
Segundo Deloche (1998, p.143), a ideia de Museu9 é compreendida “como processo – a
partir de representações do imaginário intelectual de diferentes momentos no percurso do Ocidente
(DELOCHE apud SCHEINER, 1998, p.107). O museu não é concebido apenas como uma entidade
estática, mas como forma de expressão social; a forma institucional é o invólucro de uma determinada
necessidade social. A Museologia permite a compreensão das inter-relações entre Museu, Homem
e Realidade. Diferentes configurações da mesma realidade apresentam-se inseridas na ideia de
Museologia: “a realidade do homem como ser social; a realidade do objeto enquanto produto da
ação cultural do homem; a realidade do museu; e a realidade do próprio universo museológico”
8 A autora comenta sobre o sentimento de imortalidade que o patrimônio nos oferece, onde o corpo-mente e espírito estão juntos e
em vibração, em potência, uma ligação com todas as coisas que atravessa todos os tempos, todos os espaços (SCHEINER, 2004, p.106).
9 O termo com “M” no maiúsculo, equivale a dimensão conceitual da instituição museu.
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(SCHEINER,1998, p.60, grifo do autor).
É neste contexto museológico, em especial no Museu de Arte Contemporânea Casa das
Onze Janelas, em Belém do Pará, que apresentaremos a nossa anotação de pesquisa de parte de
uma coleção, como uma das possíveis etapas do processo de documentação realizado pelo campo
disciplinar da Museologia, vivenciado na mediação com um artefato estético e artístico, que constitui
e é constituído na relação do pesquisador em mediação com a coleção, que se afeta em múltiplos
significados e sentidos, em uma conversação silenciosa da forma material, em que, segundo Tilley
(2008, p.63), na interpretação problemática da objetivação que envolva coisas e palavras, “as formas
materiais complementam o que pode ser comunicado na linguagem em vez de duplicar e refletir o que
pode ser dito em palavras em uma forma material”.
3 MANOEL PASTANA: BIOGRAFIA CULTURAL DE UMA COLEÇÃO10
A coleção Manoel Pastana é composta de pinturas, na maioria retratos e paisagens na técnica
de óleo sobre tela, e os 115 desenhos que foram escolhidos para o presente estudo. As datações
dos desenhos estão inseridas em um intervalo de tempo de 1928 até aproximadamente 1955. As
técnicas de feitura dos mesmos são o grafite, nanquim, aquarela, e guache, que em sua mistura são
denominadas de técnicas mistas. O conjunto de desenhos para análise e interpretação está agrupado
em três séries mostradas em três quadros. Observe no Quadro 1 duas dessas pranchas elaboradas por
Pastana, selecionadas neste conjunto por sua função de uso urbano, representado por artefatos como
moveis, tigelas, jogos de louças, dentre outros.
No total, os 115 desenhos foram nomeados pelo artista de “pranchas”11, algumas numeradas
ou não, podendo ser interpretadas em seu conjunto, como um “caderno de artista”12 ou um álbum de
consulta de designs13, com modelos e motivos para execução de artefatos diversos para uso doméstico,
10 Agradecemos ao atual gestor da Secretaria de Cultura do Estado, Dr. Paulo Roberto Chaves Fernandes, que autorizou o nosso
acesso à coleção e ao uso da imagem da mesma, assim como à equipe de documentação e de conservação do Sistema Integrado de
Museus, que nos acolheu em seus setores técnicos para realização da pesquisa de campo em junho de 2011.
11 Observamos que os desenhos foram afixados por Pastana em um suporte de papel cinza-escuro, e utilizados individualmente e não
na forma de um álbum. Atualmente, os desenhos estão sendo higienizados pelos conservadores do SIM/SECULT e removidos destes
suportes.
12 Caderno de artista é uma metodologia que integra o processo do fazer, conhecer e exprimir arte. São anotações, gráficas, pictóricas,
ou mesmo rascunhos ou imagens fotográficas, dentre outros, utilizado como meio de sedimentação de uma ideia que gerará uma obra
de arte final.
13 A classificação entre Artes Plásticas, propriamente ditas, e as Artes Aplicadas era uma diferenciação utilizada para que no primeiro
termo estivessem agrupadas as linguagens tradicionais: Pintura, Desenho, Escultura, Gravura e artes afins, com fins de deleite e prazer
estético; já no segundo termo, as artes utilitárias, técnicas ou domínios utilizados na fabricação de objetos para uso (tecelagem,
ourivesaria, dentre outros). Em 1919, na Alemanha surge uma corrente de estudos e de ensino da arte, formada na maioria por arquitetos
e artistas que fundaram a BAUHAUS, que em seus princípios pedagógicos agregou a arte e a ciência, a arte e a tecnologia e as
questões estéticas, compreendidas também na dimensão ética. Atualmente, diferenciam-se os artistas plásticos dos artistas visuais e
dos designers. Respectivamente a diferença se processa em que no primeiro temos os artistas que se expressam com as linguagens
tradicionais, no segundo com linguagens tecnológicas ou multimidiáticas e no terceiro temos os projetistas, compreendido na amplitude
do termo de origem inglesa, podendo ser: visual designer, graphic design, industrial design, dentre outros agrupados pelo uso final do
projeto.
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industrial e familiar, dentre outros. Pastana elaborou anotações em torno das imagens principais,
sempre se referindo à função de uso do artefato criado (terrina, vaso, móveis, azulejos, bandeja,
aparelho para café, leite e chá, dentre outros) que estão baseadas em inspirações da fauna (jabuti do
mato, arara, caranguejo, siri e outros) e flora (açaí e outras frutas) da paisagem regional. Estes adornos
ou elementos decorativos inspiravam-se nesse universo visual e imaginário amazônico, designado
pelo artista em suas inscrições como “motivo”.
No Quadro 2 outros exemplares gráficos são mostrados e agrupados como cerâmicas, plumárias
e ídolos de povos tradicionais. Elas foram realizadas por Pastana a partir de desenhos de observação
de coleções públicas, como do Museu Paraense Emílio Goeldi de Belém, do Museu Nacional do Rio
de Janeiro, Museu do Ouro de Sabará, assim como de colecionadores particulares, como Frederico
Barata, dentre outros e de propriedade do artista. Já o terceiro agrupamento apresentado no Quadro
3, associamos alguns desenhos para criar um tipo intermediário, que na utilização dos elementos
visuais, como linhas, cores, formas e texturas estão em correlação com os elementos do primeiro
grupo denominado por “função de uso urbano e as características estéticas” e o segundo grupo por seu
uso como “cerâmicas, plumárias e ídolos realizadas por povos tradicionais”. Assim, no conjunto dos
três tipos de grupos apresentamos o repertório plástico e estético proposto por Pastana. Ordenamos
esta esquematização por tipos formais e de aplicação de usos dos artefatos utilitários e decorativos,
no intuito de mostrar sucintamente o repertório visual de criação de Pastana, que nos vislumbra
possíveis construções de artefatos, coisas ou objetos que delineiam formas materiais de um cotidiano
imerso em um imaginário amazônico, banhado pela visualidade local, expressa por formas, cores,
luzes e texturas imbricadas pelas vivências do artista em parte da região amazônica. Pastana morou
no estado do Pará, na Vila de Apeú, e depois em Belém até aproximadamente o ano de 1912, quando
transferiu sua residência para o Rio de Janeiro. Este foi o ano que Pastana ingressou como desenhista
de maquinária no Ministério da Marinha, e, por intermédio deste, trabalhou na Casa da Moeda do
Brasil, entre 1935 e 1941. Lá pode colaborar com os novos designs de selos, moedas e papel moeda,
dentre outros inspirados nos motivos decorativos de suas pesquisas artísticas (Ilustração 1). Esta
marca de sua trajetória artística deve-se a sua formação em arte como aluno de Theodoro José da
Silva Braga (1872-1953), ilustre artista-historiador paraense, autor da pintura histórica de “Fundação
da Cidade de Belém” (óleo sobre tela, 226x510 cm, 1908), obra do acervo do Museu de Arte de
Belém. Esse artista marcou profundamente com a sua escolha e intenção artística e estética voltada
a uma discursividade plástica com um forte acento regional (PASTANA, 1912; PALMEIRA, 1988).
QUADRO 1: Desenhos de artefatos agrupados por sua função de uso urbano e as características
estéticas
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Figura 1: Manoel Pastana, Bandeja, técnica mista, 22,7x32,3 cm, sem data
.
Figura 2: Manoel Pastana, Moveis, técnica mista, 22x23 cm, 1930.
Fonte: Coleção MANOEL PASTANA, CASA DAS ONZE JANELAS. Foto: Arquivo SIM/SECULT.
Quadro 2: Desenhos de artefatos agrupados como cerâmicas indígenas e ídolos de povos
tradicionais
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Figura 3: Manoel Pastana, Cerâmica dos
índios extintos de Santarém, técnica mista, Figura 4: Manoel Pastana, Cerâmica do
Marajó, técnica mista, 25,5 x33, 6 cm, 1938
25,5 cm x34 cm, 1930.
(peça de propriedade do artista)
Fonte: Coleção MANOEL PASTANA, CASA DAS ONZE JANELAS. Foto: Arquivo SIM/SECULT.
Quadro 3: Desenhos de artefatos com repertórios da fauna, flora e cerâmicas amazônicas.
Fonte: Coleção MANOEL PASTANA, CASA DAS ONZE JANELAS. Foto: Arquivo SIM/SECULT.
Ilustração 1: Selo
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Fonte: Álbum do Artista/livro de exposições; Arquivo: SIM/SECULT.
A coleção de lâminas, no total de 79 peças, foi adquirida de Amassi Palmeira pela Secretaria
de Cultura do Estado, em 1988, na gestão de João de Jesus Paes Loureiro, com apoio do SPHAN,
atual IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural), sob a gestão de Jorge Derenji
(SECULT, 1988). No mesmo ano, foi realizada a mostra Manoel Pastana: Grande Artista Plástico da
Amazônia no Museu do Estado do Pará (MEP), situado à época no Palacete Bolonha (DIÁRIO DO
PARÁ, 1988) e que em outro momento foi instalado no Palácio Lauro Sodré, atual Museu Histórico do
Estado. As peças adquiridas para compor uma das coleções do MEP foram transferidas internamente,
após estudos internos da equipe de Documentação Museológica do Sistema Integrado de Museus
e Memoriais da Secretaria de Cultura do Estado (SIM/SECULT) em 2002, para um novo espaço
museológico da SECULT inaugurado no Complexo Cultural Feliz Lusitânia – o Espaço Cultural Casa
das Onze Janelas, hoje nomeado de Museu de Arte Contemporânea Casa das Onze Janelas.
Atualmente, em sua exposição permanente na Sala Ruy Meira, há seis desenhos expostos (dois
emoldurados, que abrem a mostra e quatros no gabinete de papeis). Também, vale destacar que a sala
de exposição temporária, situada no térreo do museu histórico do estado recebe o nome de Manoel
Pastana. A circulação da coleção, no seu conjunto ou em partes, conforme relatado parcialmente,
pois há outras mostras, possibilitou verificar que ao “seguir as coisas em si mesmas, [refletimos
que] (...) seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias. Somente pela
análise dessas trajetórias podemos interpretar as transações e os cálculos humanos que dão vida às
coisas” (APPADURAI, 2008, p.17). Este momento é o que Tilley (2008) nomeou de objetivação, que
envolve a relação discursiva entre linguagem e formas materiais, mas que se refletirmos atentamente
há um movimento inverso, em que “são as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano
e social” (APPADURAI, 2008, p.17).
Então, ao utilizar a imagem como testemunha histórica, devemos nos questionar em relação
aos diferentes propósitos do criador dessas imagens. No caso das pranchas de Pastana, as questões
postas são: Quais as intenções do artista ao fazê-las? Qual o significado dessa série do artista no âmbito
GT92846
de sua carreira artística, considerando as suas outras produções plásticas de retratos e paisagens?
Pastana, em entrevista ao jornal, Correio da Noite, em 10 de outubro de 1939, ano que recebeu
o prêmio de medalha de ouro do 45º Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, fala-nos sobre
sua formação, sua preferência no momento pela arte decorativa e suas considerações sobre a “arte
marajoara”:
Com quem estudou?
[Pastana] Com Theodoro Braga e outros artistas residentes no Pará, onde, nas
exposições officiaes, obtive vários prêmios- medalha de prata, medalha de bronze e
mensão honrosa. Em Belém tenho vários trabalhos de pintura-paisagem e retratos,
estes, na galeria dos presidentes, no Palacio do Governo, na Prefeitura e nas
galerias das Faculdades de medicina e Direito.
Que pensa da arte marajoara?
[Pastana] Que é o maior e único monumento archeologico que possuímos e,
portanto, é também o único cunho de brasilidade que se pode na arte decorativa
nacional, adaptando-o como ponto de partida, mas nunca decalcando o que o índio
fez. Para isso é necessário vencer a influencia dos archeologos- fazer arte e não
documentação scientífica. (CORREIO DA NOITE, 1939, grifo nosso) [grafia do
original].
Esta marca de sua trajetória artística deve-se a sua formação em arte como aluno de Theodoro
Braga (1872-1953); o artista teve uma significativa produção artística no final do século XIX e o
início do XX, quando há, neste momento, um predomínio da pintura alegórica; depois o artista
avança para uma fase pré-moderna. É importante lembrarmos que a partir 1889 iniciamos o período
da República, provocando outras relações diferenciadas ao período monárquico, em que a corte
dispensava protecionismo aos artistas. Em relação às artes plásticas, ensejam-se modificações em seu
ensino, assim como se percebe o incremento no campo das artes e o surgimento de outros centros,
além do Rio de Janeiro. O pintor, em seu repertório artístico, integrou em sua obra o design com a
temática regionalista; esta habilidade é observada na moldura da tela. Vale destacar que Braga foi um
dos precursores do ensino da arte/desenho no Brasil.
Pastana, em seu trecho da entrevista de 1939, destaca a influência de seu mestre Theodoro
Braga, as imbricadas relações entre arte e ciência, no caso, os estudos e funções do arqueólogo e do
artista, e mesmo o sentimento de sua missão educativa e civilizadora, a ideia de nação e identidade
nacional. Seguindo os passos de seu mestre, Manoel Pastana, que, como Theodoro Braga, é oriundo da
região amazônica, foram os artistas que desenvolveram a ideia de artes decorativas nativistas durante
o modernismo brasileiro. Neste sentido, estamos autorizados a falar de uma identidade nacional com
um toque de um “Brasil Marajoara” (HERKENHOFF, 1993). Como nos diz Paulo Herkenhoff (1993,
s.n), “[s]e o modernismo no Brasil inclui o desenvolvimento de um projeto nacionalista no plano da
cultura, também as artes decorativas se engajaram nesta formulação de uma identidade do país”.
Esmiuçando as bases das intenções criadoras de Pastana exposta na entrevista de 1939, sobre
a “Arte Marajora” e as referências em relação ao conhecimento e o fazer arqueológico, nos baseamos
GT92847
nas reflexões da antropóloga e arqueóloga Denise Schaan (2006, p.19-30), que nos fala sobre os
significados e sentidos atribuídos ao termo “cultura marajoara”, que se o percebemos em um sentido
amplo, refere-se ao que é oriundo da Ilha do Marajó e aos seus moradores ou pode-se abordá-lo em
três níveis de compreensão, que se sobrepõem e se confundem de diversas maneiras: 1) a referência
pré-colonial estudada por arqueólogos; 2) mesmo um estilo estético de inspiração arqueológica, visto
em produtos artesanais, em especial na cerâmica e na arquitetura paraense; 3) a cultura do caboclo e
vaqueiro morador da Ilha de Marajó.
Esses significados e sentidos se misturam na fala de Pastana (CORREIO DA NOITE, 1939),
mas por sua advertência ao diferenciar o ofício do artista e do arqueólogo, ele diz ser “necessário
vencer a influencia dos archeologos – fazer arte e não documentação scientífica”, aproximamo-nos da
segunda atribuição ao termo, como estilo estético de atribuição arqueológica, no intuito de reivindicar
um “cunho de brasilidade que se pode na arte decorativa nacional”, em que a Arte Marajoara “é o
maior e único monumento archeologico que possuímos” (CORREIO DA NOITE, 1939).
Neste sentido, estamos autorizados a falar de uma identidade nacional com um toque de
um “Brasil Marajoara”, que continuamente é reapropriado por meio do estudo da cultura material
produzida neste período sociohistórico. Esse “Brasil Marajoara” tem sido ressignificado na relação
dialética das coisas com as pessoas no cotidiano dos paraenses.
4 POR CONCLUSÃO: CULTURA MATERIAL, MUSEU E DOCUMENTAÇÃO COMO
BIOGRAFIA CULTURAL DAS COISAS
Na primeira parte do texto apresentamos a noção histórica de cultura material, mas como nos
diz Tania Lima (2011, p.11-23), o estudo de cultura material na atualidade é apresentado no intuito
de desempenhar um papel ativo, e não como um reflexo passivo de sistemas culturais. Nas palavras
Miller (2009 apud VIANNA; RIBEIRO, 2009, p.415-439), a cultura material se apresenta como
parte fundamental da Antropologia, o que permite que a teoria da cultura material seja mais profunda,
que de certa maneira vai além da já nomeada Antropologia das Coisas ou mesmo a Antropologia do
Consumo. Assim reiteramos a polissemia dos enfoques.
Concluímos sintetizando que ao longo do texto pretendemos expressar a complexidade do
assunto que envolve o estudo de culturas materiais, mas verificamos que há autores que dispensaram
uma primazia às relações sociais, em detrimento da cultura material em si, neste tipo de análise
destacamos as duas faces de uma mesma moeda, a cultura e a cultura material e a ela temos a
contraface da imaterialidade, que também constitui o artefato. Em que o artefato foi apresentado
além do mero reflexo das relações sociais, mas também, como a vida social das coisas na perspectiva
de Appadurai (2008). Já, na abordagem de Tilley (2008), destacamos a importância para o uso ativo
da noção de cultura material, o conceito significativo de objetivação em uma dimensão relacional.
Em Miller (1987; 2007), apresentamos a aplicação ou problematização da objetivação das coisas, no
intuito de realizar uma dialética tensional entre sujeitos e objetos, animados e inanimados, e, nesses
GT92848
modos, reiterar que ao estudarmos o consumo na sociedade moderna, as identidades dos sujeitos são
construídas no âmbito discursivo pelas narrativas do eu e elaborada a um só tempo, “entre sujeitos
sociais, na relação entre sujeitos, lugares e ideias socialmente significativos e entre sujeitos e objetos”
(LIMA, 2010, p.45).
Seguimos a noção ativa de estudar uma determinada cultura material, na objetivação da coisa,
no caso, um conjunto de desenhos e a narrativa sobre eles, ou mesmo perceber o agenciamento
entre as imagens. Apresentamos o resultado da análise como anotação, por compreendermos que o
mesmo foi breve, porque intencionávamos aprofundar a aproximação dessa interpretação ao campo
do patrimônio e do museu pela interpretação da história de vida dessa coleção, desde a sua aquisição
pela SECULT, de um colecionador particular, em que o artefato estético e artístico é subsumido
à classe de “objeto singular culturalmente estimado” (APPADURAI, 2008), por seu deslocamento
temporário da dimensão de mercadoria ao passar a compor uma coleção museológica. Por fim, neste
artigo baseado na perspectiva da teoria-e-prática antropológica, visamos contribuir com os estudos de
pesquisa das coleções museológicas, associada ao exercício da Museologia aplicada à documentação.
Para tal, problematizamos a objetivação e a biografia social de um conjunto de imagens e a longa
trajetória do artista Manoel Pastana, que viveu até seus 96 anos, e ao ser perguntado o motivo de tanta
longevidade, o artista respondeu que todas as pessoas que conseguiram tomar açaí na beira do rio
Apeú na passagem do século XIX ao XX, viveriam por muitos anos (PALMEIRA, 1988).
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WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
GT92851
COMUNICAÇÃO ORAL
A HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA SOCIAL E A POLÍTICA
DE PATRIMÔNIO CIENTÍFICO NO BRASIL EM MEADOS
DO SÉCULO XX
Priscila Faulhaber
No acervo do Conselho de Fiscalização das expedições Artísticas e Científicas no Brasil
estão compulsadas informações sobre como a política de patrimônio no Brasil regulamentou viagens
de antropólogos estrangeiros como Nimuendaju, Charles Wagley, Claude Lévi-Strauss e David
Maybury-Lewis. Consideram-se personagens singulares e suas práticas em um campo específico de
relações no qual se definiam estratégias do ponto de vista da salvaguarda do patrimônio científico.
Cabe distinguir as viagens dentro de marcos caracterizados por Roberto Cardoso como “heróico”
(Nimuendaju) e “carismático”(Wagley) A atuação de Maybury-Lewis é considerada um marco para
a busca de simetria na cooperação internacional (Seeger, 2009). Podem ser caracterizadas como
“institucionais” pesquisas posteriores desenvolvidas posteriormente à formação dos cursos de pós
graduação no Brasil, com o apoio dentro de programas específicos de fomento à pesquisa e à pós
graduação no Brasil por agências governamentais como CNPq e CAPES, criadas em 1951.
Palavras-chave
Patrimônio Científico. Arquivo Histórico. Expedições Científicas. Cooperação internacional,
informação e documentação científica
The history of Social Anthropology and the scientific heritage policy in Brazil (half twentieth
century)
In the archival fund of the Brazilian Council of Inspection of Artistic and Scientific expeditions in the
country are gathered information about heritage policy in Brazil and the regulation of explorations of
foreign anthropologists such as Curt Nimuendaju, Charles Wagley, Claude Lévi-Strauss and David
Maybury-Lewis. I focus in this communication on singular personages and its practices in a specific
field of interactions in which were defined strategies of safeguard of scientific heritage. We distinguish
explorations between parameters defined by Oliveira as “heroic”(Nimuendaju) and “charismatic”
(Wagley). Maybury Lewis role is understood as a landmark for the symmetry in international
cooperation (Seeger, 2009). We may characterize as “institutional” later researches developed after
the formation of graduate studies in Brazil, with the support of specific programs of research and
academic training with the creation of governmental agencies such as CNPq and CAPES in 1951.
Key words
Scientific Heritage. Historical Archive. Scientific Explorations. International Cooperation, Information
and Scientific Documentation
GT92852
1 Introdução
O presente trabalho visa a apresentar uma contribuição às ciências da informação a partir do
exame de aspectos da história do Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas e Artísticas
no Brasil (CFE), cujo acervo está depositado no Museu de Astronomia e Ciências Afins. Procura
equacionar a questão informacional em termos da análise dos primeiros passos da política de patrimônio
científico no Brasil. Neste caso, tratava-se de procurar alternativas ao processo de apropriação de
coleções científicas para museus de países europeus e da América do Norte. Ainda que se soubesse
das dificuldades de se impor freios arbitrários ao processo colonialista em curso, almejava-se criar
bases para a cooperação científica e a formação e consolidação de instituições científicas no Brasil.
O CFE foi criado como um mecanismo burocrático que servisse como um dispositivo de
controle informacional de conhecimentos estratégicos sobre os recursos naturais e culturais nacionais
face aos expedicionários que representavam instituições de centros hegemônicos internacionais.
Tal dispositivo foi constituído em consonância com os primeiros passos da gestação, das teorias
da informação tal como concebidas contemporaneamente. O campo dessas teorias engendrou-se no
terreno institucional após a segunda grande guerra, com a criação da UNESCO, possibilitando que as
ciências da informação aviessem a se consolidar enquanto um campo diferenciado a partir dos anos
1960 (Pinheiro, 2005:17).
Considerando aqui a construção da noção de patrimônio no contexto da história das
apropriações culturais, cabe indagar como o exame da definição de patrimônio científico nacional
envolve a intervenção do Estado em termos do controle não somente das expedições internacionais,
mas no sentido de que as de caráter privado tivessem seus produtos revertidos para o interesse público,
sendo apropriado por museus nacionais como o próprio Museu Nacional ou o Museu Goeldi, criados
como museus de história natural e etnografia e que passaram a desempenhar o papel de veículos de
suporte a processos identitários
Entre os fatores que implicaram a consolidação como institutos de pesquisa científica no qual
se engajavam estudiosos envolvidos com a construção nacional no Brasil podemos citar a constituição
de um lugar institucional para as ciências humanas e sociais, com a autonomização da antropologia
como um campo de conhecimento específico face à história natural. De modo semelhante, a museologia
fundamentou-se no âmbito das ciências humanas e sociais em termo da sistematização teórica de um
campo conceitual referente aos museus e ao patrimônio (Scheiner 2007:148).
O presente trabalho visa a levar em conta, em uma perspectiva histórica, como a definição de
patrimônio científico nacional implica uma intervenção sobre práticas de apropriação e uso dos bens
culturais por instituições estrangeiras, criando-se mecanismos de controle das expedições para que
os museus nacionais pudessem receber uma amostra significativa dos artefatos e materiais coletados.
Sendo assim, a apropriação do patrimônio cultural pelo Estado se constitui no terreno das práticas
comunicativas e, sendo assim, envolve as políticas públicas no sentido da possibilidade de viabilizar
o âmbito social e o interesse de coletividades.
GT92853
2 Histórico da política de patrimônio no Brasil
Correlaciona-se aqui a pesquisa etnográfica de campo, arquivos e coleções, em uma crítica
dos documentos históricos relacionados ao Conselho de Fiscalização, considerando- os como
“monumentos”(Le Goff, 1996:548) que podem revelar as condições sociais da produção do campo
do patrimônio. Considera-se a constituição do arquivo do CFE como um dispositivo informacional
construído deliberadamente tendo em vista o controle das expedições estrangeiras no Brasil, bem
como o mapeamento do conhecimento sobre o patrimônio ambiental e cultural brasileiro. Trata-se de
buscar nos documentos ali arquivados indícios que possam fundamentar a construção do objeto de
pesquisa em termos de contribuir para a análise dos primeiros passos da política científica no Brasil.
Os órgãos governamentais envolvendo a política de patrimônio no Brasil datam da década de
30. Entre os antecedentes de tais ações governamentais, temos a crise do internacionalismo ao fim da
Primeira Grande Guerra. Com o declínio da crença no Velho Mundo, a germinação da ideia de “criar
a nação ” na América Tropical levou grupos de intelectuais a cultivarem a “busca das raízes” que
pudessem sustentar a identidade nacional brasileira. Na esteira de debates sobre o papel da ciência
na promoção da soberania nacional brasileira, entre os quais os mais expressivos foram promovidos
pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Olavo Bilac, em 1916, alerta para a “urgência da
mobilização intelectual em torno do ideal nacionalista”. (Velloso, 1993:90). O ideário nacionalista foi
o pano de fundo do projeto político capitaneado por Alberto Torres, cujo ideário influenciou a criação
de estratégias de salvaguarda do patrimônio científico.
Entre tais antecedentes destaca-se a grande efervescência no meio intelectual e artístico
brasileiro em torno do movimento modernista, que teve como marco fundador a Semana de Arte
Moderna de 1922. Este movimento reuniu diferentes tendências do cenário cultural brasileiro, que
vieram posteriormente a ocupar diferentes posições no cenário político (Morais, 1983). Após o golpe
de 1930, é organizada em São Paulo, a Revolução Constitucionalista, a qual, ainda que derrotada,
força a convocação da Assembleia Constituinte em 1933, sendo a nova Constituição, que visava a
implementar medidas nacionalistas, promulgada em 1934.
A legislação e as medidas que criaram o Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas
e Artísticas Nacionais em 19331, vinculado ao Ministério da Agricultura, estabeleceram estratégias
1
O arquivo de História da Ciência do MAST abriga fundos institucionais fundamentais para a análise da história social das ciências brasileiras e da
história da política científica no que diz respeito a projetos e ações sobre a formação e salvaguarda do patrimônio científico nacional. Entre eles podem
ser citados o arquivo do CNPq, cujo conjunto documental e iconográfico abrange os primeiros anos de sua O arquivo de História da Ciência do MAST
abriga fundos institucionais fundamentais para a análise da história social das ciências brasileiras e da história da política científica no que diz respeito
a projetos e ações sobre a formação e salvaguarda do patrimônio científico nacional. Entre eles podem ser citados o arquivo do CNPq, cujo conjunto
documental e iconográfico abrange os primeiros anos de sua criação (1951-1972), e o arquivo do CFE. O arquivo do CNPq abriga ainda documentos
relacionados com a história dos atuais institutos de Pesquisa do MCT, entre os quais queremos destacar, além do próprio MAST, o Museu Paraense
Emílio Goeldi, ambos, que além de também serem museus, caracterizam-se como unidades de pesquisa que comportam as ciências humanas.
O Inventário Analítico Arquivo do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil (CFE) contém cerca de 11.000
documentos históricos que retratam o controle das expedições estrangeiras nas diversas regiões. Este arquivo foi tombado pela Unesco, em 2008, e se
constitui num dos campos para a pesquisa, pois, apenas para a região amazônica, reúne um número de quase quinhentos processos, com relatórios e
fotografias.
criação (1951-1972), e o arquivo do CFE. O arquivo do CNPq abriga ainda documentos relacionados com a história dos atuais institutos
GT92854
de controle de tais expedições, como um braço do Estado Nacional. Como justificativa da criação do
CFE era apresentada a necessidade de impor limites à expropriação do conhecimento científico sobre
as riquezas naturais do território brasileiro e assim fortalecer as políticas patrimoniais de Estado.
Tais medidas foram efetivadas pouco após o golpe de Estado que levou ao poder Getúlio Vargas.
Estava em jogo uma estratégia de legalização, institucionalização e sistematização da presença do
Estado(Lisboa, 2004:63), com base em uma intervenção sobre ações privadas e estrangeiras que
pudessem ameaçar a soberania sobre o conhecimento sobre os recursos naturais e culturais. Tais
medidas, vinculadas ao projeto de uma política patrimonial de Estado, se instituíram com base na
crença em que a soberania científica seria um fundamento do fortalecimento do Estado que consagraria
o seu reconhecimento. Assim constituído, o CFE tinha poderes de polícia para legitimar as ações de
fiscalização. O objetivo era dispor de poder de negociação na relação com instituições internacionais
interessadas no conhecimento sobre regiões tropicais, bem como realizar um mapeamento do que se
pesquisava no país.
Nos discursos políticos sobre a proposta da criação do Conselho, evocava-se a ideia da
equivalência dos monumentos culturais e científicos apropriados indevidamente e das riquezas
naturais depredadas pelos agentes do colonialismo, dos quais os expedicionários estrangeiros eram
vistos como representantes. Segundo tais discursos, urgia regular o processo em curso de apropriação
do patrimônio agrícola (ambiental, em termos dos dias de hoje) e científico brasileiro por expedições
estrangeiras. O anteprojeto do organismo encarregado do patrimônio edificado é formulado em 1936
por Mário de Andrade, a pedido do ministro Capanema, começando a funcionar em caráter provisório
sob a direção de Rodrigo Melo Franco de Andrade. O SPHAN é criado pelo decreto-lei n⁰ 35, de 30
de novembro 1937, em pleno Estado Novo (Fonseca, 2009:239).
Consta entre documentos preliminares da criação do conselho, um arrazoado sobre a comissão
designada pelos Ministérios da Agricultura, em cooperação com o da Educação e Saúde Pública,
para elaborar um projeto de lei regulando as Missões Científicas Estrangeiras no Brasil2, bem como
de Pesquisa do MCT, entre os quais queremos destacar, além do próprio MAST, o Museu Paraense Emílio Goeldi, ambos, que além de
também serem museus, caracterizam-se como unidades de pesquisa que comportam as ciências humanas.
O Inventário Analítico Arquivo do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil (CFE) contém cerca
de 11.000 documentos históricos que retratam o controle das expedições estrangeiras nas diversas regiões. Este arquivo foi tombado
pela Unesco, em 2008, e se constitui num dos campos para a pesquisa, pois, apenas para a região amazônica, reúne um número de quase
quinhentos processos, com relatórios e fotografias.
2
O documenta menciona a ação de Rondon para criação do conselho, intermediando com os ministérios da Guerra e das Relações Exteriores, aos
quais competia a elaboração da lei visada. A ação se inspirava diretamente em manifestação de Magalhães Barata, interventor do Pará (pág 1).Barata
havia criado legislação especial em seu estado visando impor limites ao “comércio clandestino, impatriótico e prejudicial ao estudo da etnologia
brasileira a exportação da louça e da indústria aborígenes; considerando que a “aquisição de artigos da indústria nativa dos povos selvagens para os
museus estrangeiros deveria ser controlada pelo Governo do Estado” e que as escavações arqueológicas, visando a colheita de cerâmica primitiva da
indústria da era da pedra polida, para estudos científicos, dependem de autorização legal do governo. Sendo assim, Barata aplicou um decreto proibindo
a exportação de artigos da indústria aborígene do Estado, de tribus extintas. O decreto estipulava ainda que as duplicatas de artigos de arqueologia e
etnologia, de indústria recente, adquiridos legalmente, destinadas “à exportação para o estrangeiro, devem ser revistados e controlados pelo Diretor
do Museu Paraense Emilio Goeldi, o qual opinará a respeito ao diretor da Recebedoria de Rendas do Estado, sobre a conveniência, ou não, de tal
exportação, pagos os os impostos ´ad valorem’”.O Art 3 determinava que os artefatos aborígenes, adquiridos clandestinamente, seriam apreendidos pelo
fisco do Estado e entregues ao diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi a cujo patrimônio ficariam incorporados(:2).
GT92855
estabelecer a lei reguladora das Missões Científicas Estrangeiras visavando tornar obrigatória a ética
ou norma já estabelecida. Tratava-se de lei de caráter internacional, embora interna, determinando os
princípios do monopólio de Estado sobre a fiscalização de expedições científicas nas quais se coletam
bens patrimoniais. O decreto não se refere a missões de instituições subordinadas ao Ministério da
Educação e Saúde Pública, mas sobre expedições nacionais de iniciativa particular e estrangeiras de
qualquer natureza. Desde estes preliminares o projeto visava a colocar na “justa medida” a cooperação
científica internacional, na parte relativa a missões, individuais ou coletivas, quanto à facilidade de
trabalho, garantia de defesa dos visitantes e defesa dos bens nacionais (:4). O projeto se pauta ainda
em outras legislações, como a francesa, formulada no ano anterior. Tinha-se em mente, porém, as
contingências particulares do Brasil quanto a índios e seus artefatos, peças arqueológicas, minérios,
animais e plantas raras estações biológicas. Para a implementação do projeto é criada a Diretoria
Geral de Pesquisas Científicas do Ministério da Agricultura3.
O Regimento Interno do CFE institui um Conselho Técnico, tendo por fim estudar as condições
de idoneidade das expedições artísticas e científicas no Brasil e decidir da sua exeqüibilidade.
Este conselho é composto por sete técnicos especializados em antropologia e etnografia, zoologia,
botânica, geologia e paleontologia, monumentos e objetos históricos, arte e questões militares,
nomeados por decreto presidencial mediante indicação das respectivas repartições enumeradas
no art. 2 do Regulamento. A estes conselheiros é delegado o poder de “embaixadores científicos”,
sendo incumbidos de determinar as mediações entre os órgãos governamentais brasileiros e as
instituições dos expedicionários. Foram convidados eminentes representantes da intelectualidade dos
estados da federação das regiões para onde se dirigiam expedicionários para atuar como “delegados
estaduais”(Lisboa, 2004:110), destacando-se nomes como Agnelo Bittencourt, no Amazonas, Carlos
Estevão, no Pará e Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte4.
A versão oficial do regulamento é publicada no decreto 22.698, de 11 de maio de 1933 (pág
100 a 104). O Art 16 reza que deverão ser entregues obrigatoriamente às instituições Científicas
Nacionais as duplicatas dos especimens colhidos no interior do país e que, a juízo do Conselho,
3
Em 1936, Paulo Campos Porto modificou o regulamento que fora escrito por seu próprio punho, de modo a que passem a atuar junto ao Conselho,
como elementos consultivos, um representante do Ministério das Relações Exteriores, um da Fazenda, e, em questões de defesa nacional, o representante
do Ministério da Guerra. O regulamento determinou a apreensão de todo o material encontrado em poder dos expedicionários ou expedições, coletores
ou pesquisadores não licenciados. O material assim apreendido deve ser incorporado ao patrimônio de Instituto federal científico a juizo do Conselho
Técnico. Quando se tratar de exemplar único ou considerado raro, cabendo ao Conselho resolver, em cada caso, sobre a conveniência ou não de sua
exportação, segundo as normas da ética científica. Com relação ao material zoológico ou botânico, era determinado que fossem obrigatoriamente
depositados no Museu Nacional e no Jardim Botânico os cotipos e fototipos das espécies novas acompanhadas das publicações a elas referentes,
cabendo ao Museu Nacional a guarda do material antropológico e etnográfico, cópias, moldagens, fotografias, desenhos e outros artefatos (pag 5 do
regulamento, 042 do CFE).
4
Incluem-se entre as atribuições do CFE o controle da coleta de exemplares artísticos e histórico, determinando-se que. “nenhuma obra de arte
de reputado valor que por suas qualidades artísticas enriqueça o patrimônio da nação poderá sair do país, sem que ao Governo brasileiro seja dada
opção para aquisição (pág 64)”, cabendo ao Conselho dizer do valor específico de cada obra de arte que se destine a exportação. Os espécimens
artístico-históricos que, por infração do artigo 19 do Regulamento, quando apreendidos, deveriam passar a fazer parte do patrimônio nacional, sendo
encaminhados à Escola Nacional de Belas Artes os de caráter artístico e ao Museu Histórico Nacional aqueles que se relacionarem com a vida tradicional
do país.
GT92856
deviam ser incorporadas às coleções do Governo brasileiro. Em se tratando de exemplar único ou
considerado raro não deveria ser permitida a sua exportação, devendo, porém, o Governo Brasileiro
fornecer aos interessados cópias, modelos, fotografias, etc Aos cientistas de reconhecida notoriedade
foi reservado um tratamento especial eximindo-os de serem submetidos ao rigor da lei.
Vargas assina o Decreto n.22.698 de 11 de maio de 1933, justificado pelo fato que ocorriam
frequentes incursões em território nacional sem prévio conhecimento do governo brasileiro. O Decreto
incumbiu o ministério da Agricultura da fiscalização de expedições nacionais de iniciativa particular e
estrangeiras de qualquer natureza, sendo prescrito o apelo a outros ministérios se necessário. Segundo
o Decreto, as expedições estrangeiras, devendo encaminhar solicitação de autorização via MRE
deveriam ser sempre acompanhadas por expedicionários brasileiros, designados pelo governo(pág
355)5.
Em 1938, após um episódio envolvendo a restrição à coleta de material para a Fundação
Rockefeller, foi estabelecida uma mudança do espírito do Conselho no sentido de sua burocratização,
acompanhada de uma substituição dos Conselheiros (Lisboa, 2004:90). A alteração implicou uma
mudança no perfil de tais conselheiros: o grupo dos “fundadores” parecia mais afinados com os
princípios totalitários do Estado Novo, e o dos “executores” que sucedeu o primeiro, (Lisboa, 2004:149)
passou a partir de então a se coadunar com o espírito “democratizante”, em uma aproximação com
os valores americanos e com a “política de boa vizinhança” com os EUA. O Conselho passou a ter
um perfil mais especializado e técnico, em substituição à “notabilidade” característica dos membros
fundadores. Após a segunda grande guerra, o despertar da necessidade de defesa e de produção
científica nacional pautou uma busca de valorizar os interesses nacionais brasileiros, o que tembém
se refletiu no campo da cooperação científica internacional, na criação de universidades e centros de
pesquisa.
As atribuições do Conselho progressivamente foram esvaziadas com a criação do CNPq e
da CAPES em 1951. O chamado desenvolvimentismo implicou a expansão do ensino superior e
a criação de institutos de pesquisa científica e tecnológica, bem como de ciências humanas, entre
os quais se destaca a divisão de pesquisas do Museu do Índio, em 1954, no qual atuaram Darcy
Ribeiro, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira. Estes antropólogos formaram um curso
de especialização financiados pela CAPES, o CBPE(Centro Brasileiro de Pesquisas em Educação)
5
O Art.5- restringe o transporte de espécimens botânicos, zoológicos, mineralógicos e paleontológicos para fora do país que não existissem
previamente em algum dos Institutos Científicos do Ministério da Agricultura O Art 6 prescreve a divisão em partes iguais de todo o material científico
colhido O Art. 7 proíbe transporte de qualquer monumento natural, histórico, legendário ou artístico do país sem autorização expressa do Governo
Brasileiro, que impõe como condição de que sejam fornecidas cópias autenticadas dos relatórios, plantas ou filmes realizados por qualquer expedição
ao Governo Brasileiro, que a arquivaria, assegurando aos expedicionários todos os direitos autorais. A partir daí, nenhum material botânico, zoológico,
mineralógico, paleontológico, arqueológico, histórico, legendário ou artístico, poderia ser exportado para fora do país sem que o interessado apresente
na alfândega ou estação de embarque o certificado respectivo. O Art 4 determina como competência do conselho julgar a idoneidade das expedições e
examinar o interesse especial do país nos objetivos ligados ao empreendimento e as vantagens que do mesmo poderão advir para os serviços científicos e
artísticos do Governo ou instituições de utilidade pública. O mesmo artigo determinou ainda que suas despesas em expedições consideradas de interesse
nacional fossem custeadas pelo governo brasileiro (art4). O decreto de 5 de junho de 1934 subordinou o CFE ao gabinete do Ministro da Agricultura e
estipulou que o regulamento seja sujeito a revisões bienais.
GT92857
e o INEP (Instituto Nacional de Pesquisa Educacionais, destinados a formar etnólogos a par dos
debates internacionais da disciplina e dispostos a submeter as hipóteses teóricas à prova do campo
etnográfico(Garcia, 2009).
A estas transformações se soma a ampliação do campo editorial, que se refletiu também na
formação e consolidação das ciências sociais (Villas Boas, 2007:187). A partir de 1956, evidenciandose a subordinação das políticas de Estado no Brasil aos ditames do capitalismo internacionalizado,
enfraquecendo ainda mais as atribuições do Conselho. Com o Decreto 62.203, de 31 de janeiro
de 1968, as atribuições do CFE passam à competência do Conselho Nacional de Pesquisas e da
Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendo afinal o CFE extinto sem 1969. Este
momento representou a substituição do modelo da fiscalização do colecionamento etnográfico pelo
padrão acadêmico de produção antropológica, viabilizando a institucionalização de pós-graduação e
a demanda por uma cooperação científica internacional com bases mais simétricas.
3 A antropologia no Conselho de Fiscalização
Tratarei a seguir especificamente de aspectos das trajetórias de Nimuendaju, Charles
Wagley, Claude Levi-Strauss e David Maybury-Lewis. Cabe distinguir as viagens dentro de marcos
caracterizados por Oliveira(1986) como “heróico” (Nimuendaju) e “carismático”(Wagley, Galvão)6.
O processo de institucionalização das ciências sociais decorreu da consolidação do campo disciplinar,
que leva a uma horizontalização das relações. Um marco na cooperação internacional em antropologia
foi a iniciativa de um pesquisador de formação britânica como Maybury-Lewis ao propor um projeto
integrado com colegas de uma instituição considerada ainda não consolidada (Seeger, 2009) - o
Museu Nacional. Mas antes de focalizar as relações implicadas no episódio, cabe discorrer sobre a
atuação da representante do Museu Nacional no Conselho.
Heloisa Alberto Torres, representando o Museu Nacional, que atuou no marco fundador do
CFE, procurou interferir no rumo a ser tomado pelo desenvolvimento científico brasileiro, no caso
específico da antropologia, no sentido de buscar fundar bases para a cooperação científica internacional
entre as instituições brasileiras e os pesquisadores licenciados pelo Conselho de Fiscalização7.
Heloisa manteve correspondência com Boas e Ruth Benedict, mantendo um acordo informal de
cooperação com a universidade de Colúmbia. Heloisa tinha uma atuação muito enérgica de defesa
6 Considera-se aqui a significação da antropologia brasileira para o campo das ciências humanas no país, uma vez que esta disciplina
é considerada como no cerne da constituição da identidade brasileira dada a sua especificidade, que envolve práticas características
e personagens singulares em um campo específico de relações no qual se definia estratégias do ponto de vista da salvaguarda do
patrimônio científico enquanto instância do campo cultural nacional.
7 Heloisa promoveu diligente colaboração com instituições como o Museu Paraense Emílio Goeldi, a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, o Serviço de Proteção ao Índio, o Departamento de Zoologia do Estado de São Paulo,
a divisão de Caça e Pesca, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o Serviço Geológico do Ministério da Agricultura, o Ministério da Vualçai e o Serviço
de Proteção de Peixes e Animais Silvestres do Estado de São Paulo. Além disso, manteve intercâmbios com instituições estrangeiras como Rockefeller
Foundation, Carnegie Foundation, Committee for Artistic and Intellectual Relations with Latin America, Columbia University, University of Michigan,
The United States National Museum, Chicago Museum, Buffalo Museum of Science, Stanford University, conforme seu memorial de 1945 (citado por
Lisboa, 2004:121).
GT92858
da sua instituição8. Mesmo após a Segunda Guerra, pairava sobre ela uma suspeita de conluio com
as elites e com representantes do totalitarismo. Com base em favores e usando sua influência pessoal
para ajudar os expedicionários a conseguir as autorizações necessárias para excursionar no país, agia
com claros interesses nas coleções e estudos feitos por eles.
Heloísa Alberto Torres intervinha deliberadamente para que jovens antropólogos brasileiros
integrassem as expedições de antropólogos estrangeiros para que os primeiros pudessem receber
treinamento científico e metodológico em trabalhos de campo. Através do controle das expedições, o
Conselho contribuía para o desenvolvimento das pesquisas realizadas pelas instituições brasileiras e
constituía uma importante fonte de conhecimento sobre o patrimônio ambiental brasileiro (Sobrinho,
Lopes e Velho, 2008:322). Com a saída de Heloisa Torres, a representante do Museu Nacional no
Conselho passou a ser Bertha Lutz, cuja atuação foi marcada pela interação com outras instituições
científicas, sem pensar unicamente nos objetivos de conseguir coleções e contatos científicos para o
Museu Nacional.
Ainda que proclamando em seus discursos que visavam promover o ideal da “ciência pura”, o
Conselho de Fiscalização estava permeado por redes de relações de interesse determinada tanto pelos
próprios anseios de autoridade institucional de seus membros, quanto por determinações políticas
ministeriais. O desenvolvimento das ciências estava fortemente ligado ao contexto nacionalista da
época, o que levou o governo a criar medidas de proteção aos recursos, territórios,informações e
instituições científicas nacionais, ao mesmo tempo que se pautava ideais de ciência europeus e
norteamericanos e esforçava-se para alcançar uma internacionalização capaz de impulsionar o
crescimento da produção científica no país.
O exame da produção da etnografia de Curt Nimuendaju leva a uma correlação entre ele
e os outros autores do campo antropológico da sua época9. Sua interação com Carlos Estevão
(Nimuendaju, 2002), então diretor do Museu Goeldi, expõe a complexidade de sua situação de alemão
naturalizado fazendo pesquisas em áreas indígenas durante tempos de intervenção no Estado do Pará.
8
Um exemplo de sua postura é a recusa em 1942, da proposta de Julian Steward, da Smithsonian Institution para integrar um “projeto colaborativo”
envolvendo a criação do escritório Brasileiro do Institute of Social Anthropology no Museu Nacional. Para justificar sua recusa, Heloisa afirmou que
seria o mesmo que aceitar “a intervenção de um exército estrangeiro em uma aldeia indígena” Heloisa usava sua influência pessoal para ajudar os
pesquisadores que considerava de sua confiança, sendo caracterizada como a “madrinha” de jovens etnólogos(Corrêa, 2000:241). Charles Wagley e Buel
Quain constavam entre os seus preferidos, ao passo que muitos outros como William Lipkind, Ruth Landes, Alfred Metraux e mesmo Curt Nimuendaju
registraram queixas sobre sua forma de agir.
9 Nimuendaju correspondeu-se entre outros, com Boas, Lowie, Metraux, Heloisa Alberto Torres, Carlos Estevão, Herbert Baldus.
Ainda um assunto a explorar, a sua interação com CFE já foi objeto de estudo em Grupioni, 1998 e Faria, 2000. Na caixa CFE.T. 2.027
está reunida copiosa documentação sobre as expedições etnográficas de Curt Nimuendaju (Brasil) entre 1935 e 1945, patrocinadas pela
Universidade da Califórnia e pelo Museu Nacional[e pelo Museu Goeldi], incluindo relatórios e mapa (Rio de Janeiro, Salvador, 09 fev.
1935 a 29 ago. 1946. 114 d., 182f. Para aprofundar a presente análise, trabalho com documentos que reuni em arquivos no Brasil e nos
EUA, sobretudo no que se refere às correspondências e relatórios depositados no Arquivo Lowie da Biblioteca Bancroft da Universidade
da California em Berkeley e da documentação encontrada sobre a produção do Handbook of South American Indians e a criação do
Instituto de Antropologia Social nos National Antropological Archives da Smithsonian Institution (anos 1936-1952), além do fundo
Nimuendaju dos Arquivos da Rockefeller Foundation em Nova York e da correspondência de Franz Boas com Nimuendaju e Heloisa
Alberto Torres que consultei nos microfilme do arquivo de Boas depositado no Getty Museum de Los Angeles, bem como arquivos
privados nos EUA e no Brasil. Tais documentos permitem analisar a contribuição de Nimuendaju para a história da antropologia e
contextualizar historicamente suas práticas, como coletor e investigador.
GT92859
Para conseguir empréstimos para financiar suas viagens ele tinha como mediador o gerente da firma
Berringer & CIA, firma alemã que foi liquidada em 1942. Como o gerente participava das operações
de liquidação da firma, não foi preso. Mas Nimuendaju, que estava em plena viagem aos Ticuna
(financiado pela Rockefeller Foundation), despertando animosidades da parte dos comerciantes que
exploravam os índios e se sentiam ameaçados com a presença de um pesquisador que valorizava a
cultura indígena, foi preso em Manaus. Os artefatos coletados em sua viagem, apreendidos durante
sua prisão em Manaus, foram enviados ao Museu Goeldi pelo delegado do CFE, Agnello Bittencourt,
em 11 de outubro de 1942. Estes objetos, após exame por Carlos Estevão, diretor do Museu Goeldi,
foram divididos entre o Museu Goeldi e o Museu Nacional. Durante os 10 anos que Nimuendaju
correspondeu-se com Lowie, tendo sido financiado pelo Instituto de Ciência Social da Universidade
da California, não forneceu nenhum artefato indígena para esta instituição. Pela correspondência de
Boas, Lowie e Nimuendaju, depreendo que os dois primeiros antropólogos, de origem alemã que
atuavam em instituições universitárias não queriam caracterizar sua relação com Nimuendaju pelo
colecionismo, mas pela “troca de ideias” acadêmicas em termos da sistematização do conhecimento
indígena.
Lévi-Strauss ministrou aulas na USP entre 1935 e 1939 estava no início de sua carreira como
etnólogo e a famosa expedição à Serra do Norte (Domingues, 2001), documentada no CFE, foi o seu
“batismo de fogo” extra acadêmico. Embora a legislação determinasse que as expedições estrangeiras
fossem acompanhadas de brasileiros, ao que consta a inclusão de Luiz de Castro Faria foi uma
exceção. A suspeita que pairava nos gabinetes do Estado Novo sobre a viagem de um judeu francês
Paul Rivet, um conhecido socialista que liderava no Museu do Homem um núcleo da Resistência
Francesa, certamente pesou para dificultar a autorização. Além disso, Lévi-Strauss estava associado
à USP, instituição rival do Museu Nacional. Mas insistência de Heloisa Alberto Torres em enviar um
brasileiro para acompanhar o jovem expedicionário francês, antes que cumprir a função de fiscal, era
para favorecer o treinamento antropológico a um etnógrafo brasileiro. Inicialmente Heloisa convidou
Curt Nimuendaju, mas este recusou participar, alegando que considerava sua presença incompatível
com práticas do médico J. Vellard em expedições anteriores do Serviço de Proteção ao Índio, com as
quais o etnógrafo alemão discordava (Nimuendaju, 2000). A intenção manifesta de Heloisa ao enviar
Castro Faria era o seu estagiário pudesse receber um treinamento antropológico que o capacitasse em
suas funções no Museu Nacional. As pressões às quais Lévi-Strauss foi submetido quanto ao fato de
que levava artefatos indígenas para a França (Grupioni,1998) assumiu ares de uma grande teatralização
em tempos de guerra. Por um lado, tais pressões expressavam a desconfiança política face à sombra
socialista que pairava sobre a expedição. A grande exigência do regulamento do Conselho era que
não fossem levados originais dos quais não houvesse similares em instituições brasileiras e as coletas
anteriores de Roquette Pinto e de Rondon provavelmente já teriam trazido exemplares comparáveis.
A não se que o que se suspeitasse era que Lévi-Strauss levava na bagagem artefatos de ordem teórica,
que tanto vieram a influenciar posteriormente a antropologia brasileira - e que o faziam um cientista
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excepcional e, portanto, conforme a legislação, acima de qualquer suspeita. O fato é que o jovem
erudito francês ficou profundamente desgostoso do tratamento que recebeu e achava que seria mais
fácil estudar os índios do Brasil vivendo em Paris que no Rio de Janeiro, como relata Alfred Métraux
a Robert Lowie em carta de 12 fev 1939. Métraux e Lévi-Strauss estranhavam a vida social da cidade
sede do governo totalitário de Vargas. Menos de um ano depois Lévi-Strauss, graças à mobilização de
Métraux e Lowie nos meios intelectuais dos EUA, recebe um honroso exílio, sendo nomeado adido
cultural francês em Nova York e passando a lecionar na New School for Social Research, quando teria
tempo para refletir sobre os fundamentos teóricos da escola de pensamento que iria fundar.
Charles Wagley (com 26 anos de idade, doutor em etnologia pela Universidade de Colúmbia,
NY), solicitou em 16/02/1939 licensa para proceder estudos entre tribos indígenas localizadas no
Estado de Goiás (Rio Araguaia e Tocantins). O objetivo da expedição, com duração prevista de um ano,
era a realização de estudos sobre lingüística. Consta no documento que se dispõe a entregar ao governo
brasileiro todas as peças colecionadas que forem de interesse das instituições nacionais. Comprometese a respeitar os dispositivos da legislação brasileira que regulam as expedições científicas. Wagley
solicita a liberação de material científico (cilindros para gravação sonora) que se encontra retido na
alfândega (17/2/39). A autorização é expedida no dia 23 de fevereiro de 1939. Nove anos depois, em 21
de junho de 1948: Heloisa Alberto Torres apresenta para presidente do C.F.E. solicitação para Wagley,
da Universidade de Colúmbia (U.S.A) prosseguir, no mês de julho, em Gurupá, Estado do Pará, suas
pesquisas antropológicas e sociológicas, iniciadas em 1944, em colaboração com o Museu Nacional.
Os trabalhos são custeados pela UNESCO e não terão, diferentemente da primeira expedição, qualquer
objetivo de colecionamento científico. O estudo de Wagley, intitulado “A Social Survey of an Amazon
Community with recommendation for future research”foi publicado pela UNESCO como produto do
projeto da International Institute of the Hilean Amazon (IIHA). O estudo finaliza com a observação
de que está trabalhando em consonância com os estudos de mudança cultural10.
A partir da leitura da correspondência entre antropólogos nos anos 194011, vemos que o conceito
10 Stocking (1976) analisa modificações no contexto institucional nos Estados Unidos, indicando o fortalecimento do sistema universitário que
inicialmente estava condicionado aos Museus e a contribuição das agências filantrópicas para este processo. O Social Research Council (SRC),
financiado pela Rockefeller Foundation (RF), contribuiu para o despertar das ciências sociais. Stocking caracteriza a antropologia no seu país como
predominantemente americanista, entendendo enquanto tal os estudos sobre índios dentro do próprio território nacional, sem significativas incursões
comparativas sobre índios do continente até que a grande depressão levou os EUA a expandir os seus interesses para fora de suas fronteiras, em termos
de outros países americanos ou em para outros continentes. A abertura de possibilidades de recursos para a pesquisa com apoio do congresso dos EUA
na época da segunda guerra ampliou as perspectivas da antropologia aplicada e promoveu o deslocamento dos estudos de áreas culturais definidas em
termos de exposições em museus para os estudos de áreas estratégicas(em um sentido geopolítico) localizadas em outros países ou outros continentes.
O Ethnogeographic Board, que funcionava na Smithsonian Institution, foi criado durante a guerra como uma ‘casa de compensação’ (‘clearing house’)
entre a academia e interesses militares, tal como brevemente apontado por Stocking(1976). Interessa aos propósitos do presente trabalho considerar
o que estava por trás dos envolvimentos entre antropólogos e instituições em termos do controle da entrada de pesquisadores estrangeiros no país, dos
materiais e conhecimentos que eles pretendiam coletar.
11 Verificou-se uma situação especial de assimetria de poder entre estabelecimentos científicos do Sul e do Norte, quando, em meados do século
XX, os Estados Unidos passaram a ocupar uma posição privilegiada na disputa pela hegemonia no campo cientifico, procurando deter controle
sobre os processos de apropriação e disseminação do conhecimento, quando se criou uma cadeia de interdependências baseada em uma disputa por
apropriações culturais. Tal aspiração envolveu a criação de grupos de especialistas que manejavam um “fundo específico de representações simbólicas”
(Elias, 1982:43), criando e estruturando domínios de conhecimento que poderiam ser enquadrados como “subcontinentes” como “América do Sul”
ou regiões como a Amazônia, que despertava interesse por abrigar vasta floresta tropical. Tal compartimentalização do conhecimento se produzia em
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de área cultural, previamente estabelecido em termos de áreas culturais para museus constituídos
por práticas coloniais de colecionamento nos primeiros tempos da disciplina era determinado pelas
coleções de história natural (Jacknis 1996). Nos anos 1940, passava a ser definido em termos de áreas
estratégicas “etnogeográficas” para os propósitos da guerra (Stocking, 1976), o que irá reiterar um
processo em curso de afastamento dos antropólogos e dos museus. Ao fim da guerra, passou a ser
delimitado em termos de políticas de desenvolvimento articuladas às problemáticas da antropologia
aplicada em tempos de guerra fria. Interessa aos propósitos do presente trabalho circunscrever o
exame da problemática de como os estudos de área em termos de critérios político- administrativos
articulados ao campo indigenista e antropológico passaram a circunscrever os povos indígenas da
Amazônia e suas culturas, como no exame dos trabalhos de Eduardo Galvão (1967), que inicialmente
acompanhou Wagley em sua pesquisa de campo como uma pré-condição para que sua viagem fosse
autorizada. No entanto, o interesse que estava sendo defendido então era que o estudante brasileiro
recebesse treinamento do antropólogo de Colúmbia, como de fato ocorreu, o que possibilitou que
posteriormente Galvão pudesse concluir seu doutorado nesta Universidade, em 1948. O trabalho de
Galvão foi um reconhecido desdobramento das etnografias sobre indígenas na Amazônia estabelecidas
partir do esforço fundador de Nimuendaju. O estudo do “encontro de sociedades” (Galvão 1979) foi
um primeiro passo para viabilizar análises alternativas ao modelo estadunidense dos estudos sobre
comunidades e aculturação. Neste caso, interessava mais o estudo do homem nas “comunidades” e
no “encontro de sociedades” que propriamente no âmbito dos museus.
Quando Maybury-Lewis solicitou autorização para estudo sociológico sobre os Xavantes em
18/09/57, já era membro do Museu Social da Universidade de Oxford e do Real Instituto Antropológico
de Londres, a autorização não é concedida imediatamente por causa da gripe asiática. Em 22/10
apresenta uma segunda solicitação. Estão entre seus planos e objetivos ficar um ano entre os índios
Xavante (baseado no P.I. Pimentel Barbosa) para fazer pesquisas sociológicas, em continuação
dos estudos feitos no ano 1955-6 entre os Xavante do Norte de Goiás. Afirma que irá distribuir o
material coletado entre Museu Paulista e British Museum (Londres). Segundo o Jornal Diário da noite
15/1/1958, o referido expedicionário é bem conhecido dos meios científicos brasileiros, sobretudo em
São Paulo, em cujo principal museu trabalhou durante três anos, sendo especialmente recomendado
ao Itamarati pela Embaixada do Brasil em Londres12. Afinal Maybury Lewis viaja com a esposa
circunstâncias específicas nas quais se evidenciam as hierarquias implicadas na objetivação de conteúdos culturais. Tal hierarquização constituiu, em
tais circunstâncias, definições específicas de “estudos de área” como lugares da antropologia subjacentes a uma ideia homogeneizadora de “área” ou
“região”. Tal hierarquização foi reiterada por antropólogos que elaboravam sínteses teóricas com bases em descrições produzidas etnograficamente por
aqueles que produziam seus trabalhos em um campo considerado como não completamente estruturado do ponto de vista dos padrões de ciência da
época. Em uma concepção dinâmica de campo científico, ainda que condicionados por relação entre dominantes e dominados, tais lugares considerados
como desestruturados, periféricos podem ser locais de crítica sobre crítica das teorias exógenas, invertendo termos que possam parecer deslocados
porque concebidos alhures, recolocando-os a partir da fronteira.
12
Um relato do Conselheiro Alberto Ruiz trata da periculosidade dos índios Xavante, considerados hostis e arredios, sendo que dos quatro
agrupamentos, apenas um e talvez dois tiveram contato com o homem branco, seja pelos funcionários do SPI ou por outra forma qualquer. O conselheiro
afirma que o “homem civilizado” por vezes, em lugar de oferecer aos selvícolas(sic) brasileiros uma civilização aceitável no moldes de uma vida
simples, tem levado às agrestes aldeias indígenas o repelente contato das doenças, o hábito da embriaguês e o regime das invasões de terras, o das
GT92862
e o filho de dois anos de idade. Descendente de colonizadores holandeses e britânicos, MayburyLewis nasceu na região do atual Paquistão. Formado na antropologia social britânica e iniciando
suas atividades de pesquisa como um americanista, consolidou sua carreira como antropólgo na
Universidade de Harvard (Maybury Lewis, 2010). Um ano após seu ingresso nesta universidade, em
1962, ele formulou o projeto Harvard-Brasil Central para estudos sistemáticos dos grupos Gê. Foi
nessa ocasião que estabeleceu vínculos sistemáticos com Roberto Cardoso de Oliveira, que vinha
dirigindo o curso de especialização em etnologia no Museu Nacional. Estes vínculos viabilizaram
acordo Museu Nacional/ Universidade de Harvard, assinado em 10 de maio de 1963. Ainda que
houvesse uma intenção de ruptura com as relações assimétricas entre estrangeiros e brasileiros,
persistiam hierarquias dadas pela divisão do trabalho, uma vez que cabia ao professor inglês as
atividades de pesquisa e ao brasileiro as administrativas(Garcia, 2009). A carreira de Maybury-Lewis
foi marcada pelo engajamento profissional em polêmicas com o estruturalismo, a sociobiologia e os
críticos do relativismo antropológico. Paralelamente à busca de alternativas teóricas, o antropólogo se
engajou na construção na agência Cultural Survival, envolvendo-se em debates sobre as consequências
do desenvolvimentismo e a globalização para os povos indígenas. Estes envolvimentos levaram a
abandonar práticas colecionistas, sendo que sua segunda visita a campo não relata coleta de cultura
material.
É interessante notar que a crescente consolidação da pesquisa e da pós graduação em
ciências humanas no Brasil, tem se fortalecido o campo da museologia, bem como da colaboração
transdisciplinar em projetos voltados ao estudo dos museus e do patrimônio, de modo que a questão
da (re) apropriação de objetos coletados em expedições científicas, bem como em pesquisa de campo
de modo geral, está na ordem do dia. O problema da ressonância está articulado à análise simbólica do
patrimônio como categoria social, que também envolve dimensões subjetivas (Gonçalves, 2005). O
Museu se afigura como um lugar de ressonância de projetos sociais, uma “zona de fronteira”(Clifford
´tanto para para “viagens” subjetivas quanto para explorações teóricas no campo da antropologia e
da museologia.
4 Conclusão
Destaquei, ao longo deste trabalho, problemas referentes à relação da formação do CFE com
as políticas de informação e de patrimônio, vistas como base de sustentação do Estado a partir dos
anos 1930. Tornou-se relevante considerar a questão da transformação do público em privado como
base da conceituação de patrimônio cultural científico no exame da legislação formulada na época.
A criação e consolidação do Conselho foram motivadas pela demanda por parte de setores do Estado
e da sociedade civil de regulamentar e controlar as ações de expedicionários cujas viagens eram
constituídas com o objetivo de apropriação de coleções (de artefatos) para museus. Tratei de eventos
rapinagens, agressões e mesmo dos fuzilamentos, o que motiva o (717) permanente repúdio destes índios amontados. Sua recomendação tem o objetivo
de resguardar e proteger a vida e a integridadade de qualquer cientista que visite determinada região do planalto central ou da Amazônia
GT92863
relacionados especificamente à questão da especificidade da antropologia e da museologia no que se
refere ao lugar do humano e seus artefatos em museus.
Criado como um organismo do Ministério da Agricultura durante os primeiros anos da era
Vargas, o CFE expressava ideias ambivalentes: a mesmo tempo que visava implementar medidas
controle governamental sobre expedições privadas e estrangeiras expressava anseios identitários
oriundos de um projeto intelectual de domínio sobre o conhecimento sobre a natureza e as culturas
existentes em regiões remotas do Brasil. Visando nacionalizar tal conhecimento, almejava consolidar
raízes para o patrimônio científico nacional.
Consta desde o projeto inicial que estavam em jogo os princípios para uma cooperação
científica simétrica. No entanto a sua atuação nos primeiros tempos mobilizava um aparato policial
para garantir a apropriação pelo estado de conhecimentos sobre os recursos naturais e culturais que
não estavam de fato sob seu controle, seja por pertencerem aos povos indígenas que preexistiram à
ocupação luso-brasileira, seja porque não se julgasse que no Brasil havia massa crítica nem formação
universitária estruturada para reconhecer em que os conhecimentos autóctones poderiam ser
transformados em conhecimento científico legitimado pelos centros de ciência e poder do chamado
mundo civilizado. De modo que inicialmente tanto o fim dos expedicionários era reunir coleções para
os museus europeus e norte americanos quanto o objetivo dos conselheiros era apropriar-se de tais
coleções como patrimônio científico brasileiro sob a guarda de museus nacionais no Brasil.
Com o desenrolar dos processos na história do CFE, foi-se perdendo o interesse nas coleções,
que deixaram de ser a única base de valor para o conhecimento acumulado em instituições de
pesquisa. À medida que as instituições de pesquisa e ensino e fomento científico tecnológico e
educacional no Brasil foram se consolidando, puderam aprimorar-se os mecanismos de negociação
e cooperação com aqueles que vinham ao Brasil registrar conhecimentos úteis para suas carreiras no
campo científico internacional. No caso da antropologia, evitava-se copiar teorias produzidas nas
metrópoles, procurando-se, ao contrário, testar paradigmas e verificar sua potencialidade à luz da
dinâmica da pesquisa de campo. O conhecimento situado formulado em pesquisas etnográficas foi
uma das bases do prestígio da antropologia brasileira. Não se tratava de contatar povos isolados, mas de
reformular teorias à luz da historicidade da investigação. As teorias museológicas vieram a aprofundar
os problemas do deslocamento e recontextualização das coleções em museus, o que implica buscar
novas formas de colaboração entre antropólogos e museólogos. Os artefatos etnográficos depositados
em museus, considerados como fatores da construção da identidade nacional, puderam, com a
sistematização do campo da conceitual da antropologia e da museologia, vir a ser correlacionados
com diferentes contextos identitários. Hoje se argumenta que o patrimônio cultural científico não é
propriedade de um Estado monolítico, mas dos povos que o constituem diferentes Estados nacionais
como totalidades diferenciadas.
GT92864
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COMUNICAÇÃO ORAL
O JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO: INSTITUIÇÃO
EMBLEMÁTICA NO PANORAMA DA CIÊNCIA E DA
MUSEOLOGIA BRASILEIRAS
Lilian Mariela Suescun, Tereza Cristina Scheiner
RESUMO:
Este artigo refere-se a questões desenvolvidas em Dissertação defendida, em fevereiro de 2011,
junto ao Mestrado em Museologia e Patrimônio, do PPG-PMUS. Aborda o potencial de uso da
Museologia sobre os museus de natureza em geral, mais especificamente os jardins botânicos - para
melhor compreender a influência da Museologia na valorização e interpretação do patrimônio destes
espaços. Para tanto estuda-se o caso do Jardim Botânico do Rio de Janeiro - JBRJ como exemplo
de Museu de Natureza, essencialmente vinculado ao conceito de patrimônio. O trabalho se inicia
com uma aproximação dos termos Museu e Jardim Botânico, com o intuito de apresentar os jardins
como espaços possíveis de ser percebidos e analisados como museus. Utilizamos como principal
base teórica os textos publicados nos Cadernos de Estudos do ICOFOM – o Comitê Internacional de
Museologia do ICOM, especialmente o ICOFOM STUDY SERIES (ISS) No. 18 - Museology and the
Environment. Muséologie et l´environnement - baseando-nos nas discussões de Absolom Mulongo,
Tereza Scheiner e Vinos Sofka; o livro L´Environnement entre au musée, de Jean Davallon - utilizado
como fonte primordial para nossa discussão sobre o patrimônio natural; e ainda as pesquisas de
Néstor Garcia Canclini e Tereza Scheiner. O estudo de caso do Jardim Botânico do Rio de Janeiro
inclui uma breve descrição das mudanças na paisagem local ao longo dos 200 anos de sua existência,
desde a sua criação como Horto Real, bem como uma análise da importância do Jardim, tanto para
os cientistas e museólogos quanto para o cidadão - fundamentada no livro Tous les jardins du monde,
de Gabrielle Van Zuylen e em publicações da Rede de Jardins Botânicos do Brasil. O documento
se conclui enfatizando a necessidade de que estes espaços sejam apresentados nitidamente como
museus.
Palavras-chave: Museu. Museologia. Patrimônio. Jardins Botânicos. Jardim Botânico do Rio de
Janeiro.
ABSTRACT
This paper deals with issues developed in the Dissertation presented in February 2011, to the Master
in Museology and Heritage of PPG-PMUS. It addresses the potential use of Museology on Nature
museums and more specifically botanical gardens, to better understand the influence of the field in
the valorization and interpretation of the heritage of these areas. The Botanical Garden of Rio de
Janeiro is taken as case-study, as an example of Museum of Nature, essentially linked to the heritage
concept. The work begins with an approximation of the terms Museum and botanical garden with
the aim of presenting the gardens as possible areas to be addressed and analyzed as museums. Texts
published by ICOFOM - the International Committee for Museology of ICOM, especially ICOFOM
Study Series (ISS) No. 18 - Museology and the Environment, were used as the main theoretical base,
specially the discussions brought out by Absolom Mulongo, Tereza Scheiner and Vinos Sofka. The
GT92867
book L’Environnement entre au musée by Jean Davallon was used as main source for our discussion
on natural heritage, as well as studies by Néstor Garcia Canclini and Tereza Scheiner. Through the
case-study of the Botanical Garden of Rio de Janeiro, a brief description of the landscape changes
over 200 years of its existence is presented - from its creation as Royal gardens and including an
analysis of the importance of the institution for scientists, museum curators and the public. The book
Tous les jardins du monde, by Gabrielle Van Zuylen, as well as publications by the Network of
Botanical Gardens in Brazil were used as bibliographic source. The paper concludes emphasizing the
need to present botanical gardens as museums in a clear way.
Key words: Museum, Museology, Heritage, Botanical Gardens, Rio de Janeiro Botanical Garden.
1. INTRODUÇÃO
Desde os anos 1970 enfatizou-se o propósito da Museologia de contribuir para o desenvolvimento
sustentável1, democratizando o conhecimento e fazendo com que o público participasse das pesquisas
e atividades dos museus. É uma necessidade que os museus de ciências e jardins botânicos, como
instituições partícipes da educação, sejam atores essenciais no desenvolvimento da sociedade. Os
museus na contemporaneidade buscam ser dinâmicos, inovadores, capazes de responder às exigências
de públicos que entendam o museu segundo a sua visão, segundo a sua realidade. Assim, a Museologia,
com o passar do tempo, tem adquirido novas responsabilidades, participando dos movimentos de
descentralização da cultura e promovendo a participação social através de programas educativos, para
criar uma consciência crítica e analítica da realidade (DECAROLIS, 1995, p.41).
Os jardins botânicos têm a delicada tarefa de ser intermediários entre o passado, o presente e o
futuro das sociedades. Apresentam no seu discurso um singular recorte, uma interpretação da realidade
1 Apesar da enorme influencia causada, no pensamento ocidental, pelo advento das teorias de Gaia e dos paradigmas holista e
ecológico - entre os anos 1950 e fins da década de 1960 -, apenas nos anos 1970 esta influencia viria a fazer-se sentir sobre a Museologia.
A partir da I Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo, Suécia, 1972) e do relatório ‘Nosso Futuro
Comum’ (Our Common Future), do mesmo ano, preparado pela Comissão Bruntland para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
pregando a necessidade de coordenar ação política e responsabilidade social para a sobrevivência da espécie humana e do planeta,
os profissionais de museus começam a incorporar conceitos e propostas advindos dos campos da filosofia (especialmente a ética),
das ciências humanas e sociais (especialmente a economia) e das ciências biológicas (especialmente a ecologia) para estabelecer
interfaces com esses campos, atualizando as perspectivas do trabalho com o patrimônio e alinhando o trabalho dos museus às políticas
e diretrizes para o meio ambiente e o desenvolvimento. Entre os conceitos incorporados incluem-se o de ‘meio ambiente integral’ e o
de ‘desenvolvimento sustentável’, definitivamente incorporados ao campo da Museologia em 1972, com a Mesa Redonda de Santiago
- primeiro fórum de museus a cooptar as idéias holistas e a advogar o conceito de museu integral (SCHEINER, 2009 - não publicado).
Tão grande é a influencia que, em 1974, o ICOM já reitera oficialmente o seu reconhecimento da missão social do Museu, adotando
a seguinte definição oficial: “Um museu é uma instituição não lucrativa, de caráter permanente, a serviço da sociedade e do seu
desenvolvimento, que coleta, conserva, pesquisa e interpreta, para fins de estudo, educação e lazer, evidencias materiais dos povos e
seu meio ambiente” [grifo nosso]. Este é também o momento em que jardins botânicos, zoológicos, aquários, planetários, parques e
áreas naturais preservadas são incluídos na definição de Museu. Esta interface torna-se mais intensa nos anos 1980, sob a influencia
do Relatório Bruntland (Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Genève, Suíça, 1987), que oferece
ao mundo as seguintes percepções: Meio ambiente é onde todos vivemos (não existe uma esfera separada das ações humanas ou das
ambições e necessidades do homem); Desenvolvimento é o que todos fazemos, na tentativa de melhorar o que temos, em meio ao que
existe; Desenvolvimento Sustentável é o que todos fazemos, na tentativa de melhorar o que temos, em meio ao que existe. Enfatizada
a partir da II Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Rio de Janeiro, 1992 - mais conhecida como Rio92),
a relação entre Museologia e desenvolvimento sustentável torna-se cada vez mais intensa. Hoje já não é possível pensar o Museu sem
pensar desenvolvimento e sustentabilidade social, econômica e emocional das populações (SCHEINER, 2011, não publicado). “A
responsabilidade do museu no mundo de hoje é ser um agente ativo de transformação social, oferecendo um suporte indispensável aos
programas de desenvolvimento”, educação ambiental e patrimonial. (DA CRUZ Apud SCHEINER, 1994)
GT92868
que os torna fascinantes como instrumentos culturais. São considerados como museus pelo ICOM
(International Council of Museums) desde 1946, ao encontrar similitudes nas funções, objetivos,
compromissos e responsabilidades com a sociedade em geral2. Para apresentar as similitudes,
utilizamos a seguinte definição de museu:
[...] uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do
seu desenvolvimento, aberta ao público, e que adquire, conserva, estuda, comunica
e expõe testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente, tendo em vista o
estudo, a educação e a fruição (ICOM, 2001)3.
Esclarece-se que esta definição abrange outras categorias como monumentos naturais,
arqueológicos e etnográficos4, além das instituições que pesquisam, conservam e expõem espécimes
vivos de vegetais e animais, tais como jardins botânicos e zoológicos, aquários e viveiros5, além de
espaços culturais com objetivos e funções similares.
Por seu lado, o CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente (Resolução Nº 266, art. 1,
2000, p. 15) define o jardim botânico como:
Área protegida, constituída no seu todo ou em parte, por coleções de plantas vivas
cientificamente reconhecidas, organizadas, documentadas e identificadas, com a
finalidade de estudo, pesquisa e documentação do patrimônio florístico do País,
acessível ao público, no todo ou em parte, servindo à educação, à cultura, ao lazer e
à conservação do meio ambiente.
A IUCN (International Union for Conservation of Nature), a BGCI (Botanic Gardens
Conservation International) e o WWF (World Wildlife Fund for Nature) também especificaram as
funções dos jardins :
[...] classificação, comunicação e informação para com as outras instituições e com
o público, troca de sementes, manutenção das coleções de plantas, monitoramento das
plantas nas coleções abertas ao público; promover a conservação através de atividades
de educação ambiental; documentação adequada das coleções e pesquisa cientifica
sobre a coleção (MINISTERIO DO MEIO AMBIENTE, et al., 2001 p.33)
Estas definições nos permitem encontrar similaridades entre os jardins e as demais formas de
museus. Os jardins botânicos são espaços de enorme potencial comunicativo e a Museologia, com sua
experiência no estudo dos museus e, portanto, das exposições, pode e deve oferecer um olhar mais
amplo, um espectro de possibilidades para inserir-se na comunicação realizada pelos jardins, tal como
é feita nos dias de hoje.
2 “A palavra “museu” inclui todas as coleções abertas ao público, de interesse artístico, técnico, material científico, histórico ou
arqueológico, incluindo os parques zoológicos e jardins botânicos, mas excluindo as bibliotecas, exceto se são mantidas em salas de
exposição” Resolução do ICOM, 16- 20 de nov. de 1946 (tradução nossa)
3 http://icom.museum/definition_spa.html
4 “(i) os sítios e monumentos naturais, arqueológicos e etnográficos e os sítios e monumentos históricos com características
de museu pelas suas atividades de aquisição, conservação e comunicação dos testemunhos materiais dos povos e do seu meio
ambiente”. ICOM. The International Council of Museums. Extraído do Artigo 2º dos Estatutos do ICOM, adotado na 16ª Assembléia
Geral do ICOM (Haia, Holanda, 5 de Setembro de 1989) e alterados pela 18ª Assembléia Geral do ICOM (Stavanger, Noruega, 7 de
Julho de 1995) e pela 20ª Assembleia Geral do ICOM (Barcelona, Espanha, 6 de Julho de 2001).
5 “ (ii) as instituições que conservam coleções e expõem espécimes vivos de vegetais e animais, tais como jardins botânicos e
zoológicos, aquários e viveiros”. Ibid
GT92869
Uma das múltiplas tarefas dos jardins botânicos será provocar, por meio das exposições,
emoções e afetos no público, incluindo na sua linguagem expositiva ferramentas que aproximem
o cidadão para analisar, perguntar e questionar o que está sendo apresentado. É objetivo ético dos
museus articular as diferentes identidades e apresentar ao público não um discurso feito por interesses
de grupos de elite, mas um discurso criado entre as diferenças e as similitudes da população. Neste
sentido, é muito importante entender que o papel da Museologia não é só apresentar conhecimentos e
discursos que beneficiem pequenos grupos. Seu papel é mais do que isso: ela tem o compromisso de
gerar uma prática que possa ser reflexo da sociedade, do cidadão - e para isso deve se aproximar do
público utilizando a memória e a afetividade como elementos de interconexão.
Para abordar o tema dos jardins botânicos, tomamos como estudo de caso o Jardim Botânico
do Rio de Janeiro - JBRJ, instituição emblemática no panorama da ciência e da museologia brasileiras,
aqui analisado sob a idéia de Museu de Natureza, essencialmente vinculado ao conceito de patrimônio.
Segundo Scheiner (1998), os jardins botânicos são museus tradicionais6 com coleções vivas7.
A história do Jardim comprova que, ao longo dos seus 200 anos de existência, este tem sido
um lugar de encontro dos cidadãos e um espaço de lazer. São muitas as características especiais
que levam os diferentes públicos a considerá-lo um dos lugares preferidos no Rio de Janeiro. Estas
características atraentes são: a coleção de plantas (arboreto), os monumentos históricos (de mãos
dadas com a história da cidade), a aproximação com a natureza dentro de uma cidade tão complexa e
tão urbanizada e ainda o fato de ser um Metamuseu - que possui, dentro de seus limites, outros museus,
como o Museu-Sítio Arqueológico Casa dos Pilões e o Museu do Meio Ambiente, os quais funcionam
como prolongamento do Jardim. Neste ponto é importante ressaltar que os jardins botânicos são
mediadores entre público e meio ambiente, são lugares de afetividade, de força incrível da memória,
espaços de guarda do patrimônio. A natureza tem esse magnífico poder de transportar o ser humano a
diferentes instâncias da sua memória. Scheiner (2004, p. 108) diz a respeito:
Lembremos ainda a força emocional do componente evocativo do patrimônio, a sua
profunda ligação com a memória afetiva, especialmente naquilo que nos afasta da
cotidianidade e nos remete ao sonho, à fantasia, ao extraordinário, ao mundo dos
sentidos.
Desde a perspectiva da Museologia, este tipo de trabalho que envolve Design e Natureza é um
desafio interessante, já que permite experimentar materiais, formas, cores, texturas, cheiros, sensações,
visões, percepções e conceitos criativos.
2. MUSEOLOGIA E MEIO AMBIENTE: HOMEM E NATUREZA COMO UM TODO
6 Scheiner define Museu Tradicional como um “Espaço, edifício ou conjunto arquitetônico ou espacial arbitrariamente selecionado,
delimitado e preparado para receber coleções de testemunhos materiais recolhidas do mundo. No espaço do museu tradicional, as
coleções são pesquisadas, documentadas, conservadas, interpretadas e exibidas por especialistas - tendo como público-alvo a sociedade.
A base conceitual do museu tradicional é o objeto, aqui visto como documento”.
7 Modalidade de museu tradicional cujo acervo se constitui de coleções vivas (jardins botânicos, zoológicos, aquários, vivários,
biodomos).
GT92870
Segundo Scheiner, a discussão sobre Museologia e Meio Ambiente data da década de 1950,
se fortalece na década de 60 e se naturaliza no âmbito da Museologia a partir da década de 70, com a
incorporação das discussões sobre meio ambiente e desenvolvimento. Um exemplo desta tendência
foi a Mesa Redonda de Santiago em 19728.
Na década de 1990 - e para complementar a discussão sobre Museu, Sociedade, Meio Ambiente
e Desenvolvimento, os membros do Comitê Internacional de Museologia do ICOM - ICOFOM se
reuniram para analisar os compromissos da Museologia em relação ao Meio Ambiente, os limites
e as oportunidades do Museu como possível motor educativo e construtor de idéias na procura de
soluções aos problemas ambientais que afetam o planeta, reiterando as recomendações da UNESCO,
do ICOM e de outros organismos internacionais. O ICOFOM enfatizou que a Museologia tem a
tarefa de estudar a relação entre o homem, o próprio museu e a realidade, reiterando que as questões
ambientais são tema de profundo interesse da área museológica.
Scheiner (1990, p.17) lembra que a Museologia permite explicar a relação entre homem, museu
e natureza. Para a autora, os museus são a ponte que liga o homem com a natureza; esclarece que esta
perspectiva antropocêntrica está ligada ao entendimento do museu como um organismo cultural, mas
que é dessa maneira que o homem pensa a sua própria essência e seu vínculo com a natureza. Portanto,
é no território que o homem constrói a sua identidade e onde desenvolve sua cultura, apropriando-se
do entorno. É na dimensão do espaço que interage, cria seu patrimônio, cultiva sua cultura e herda os
seus costumes, atravessando a dimensão temporal. Entendemos que o patrimônio está intimamente
ligado à relação humana com a natureza.
Davallon et al (1992, p.56) comentam que, “além da dimensão científica, o meio ambiente
também possui uma dimensão social e humana, que permite entender as relações das sociedades com
a natureza que as rodeia”.
Vemos assim que o meio ambiente é um tema concernente à Museologia, área que se interessa
pela preservação do patrimônio e pela preservação da sociedade. Tal como explica Scheiner (1990,
p.78) - “Se a existência do patrimônio cultural depende tanto da correspondência entre o homem e
o meio ambiente, a proteção deste patrimônio, sem dúvida, dependerá da preservação da natureza”.
Não existem homem e natureza como duas unidades separadas, pelo contrário, as duas instâncias
pertencem a uma unidade, a uma totalidade integrada. Esta mudança conceitual implica entender que
o “homem cultural” não é diferente do homem biológico, o último abarca o primeiro (SCHEINER,
1990, p.81). Este pensamento holístico nos permite enxergar o patrimônio já não mais fragmentado,
mas integral, oferecendo outras possibilidades de análise mais próximas da essência humana que, em
8 Na mesa redonda de Santiago foram discutidos os princípios do museu integral, dando ênfase à responsabilidade social do museu
como instrumento alavanca da educação ambiental e patrimonial. Da Cruz e Scheiner, comentam que nesse momento se considera
o museu como: “uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante, e que possui em si mesmo os elementos que lhe
permitem contribuir para o engajamento das comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita
esclarecer os problemas atuais, ou seja, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando
outras mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais”
GT92871
definitivo é a essência natural.
Os museus estão assumindo na sua prática a visão de patrimônio como um todo que liga
homem e natureza, entendendo que o homem não teria cultura se não existisse um território onde
cultivar e transmitir seus costumes. Para Davallon et al (1992, p.21) o museu oferece uma forma
original de abordar o meio ambiente, diferente da proposta dos meios de comunicação: as questões
ambientais dentro dos museus propõem uma forma singular dos visitantes se relacionarem com o
meio ambiente – “aqui as ‘coisas’ da natureza são patrimônio”.
Davallon et al (1992, p.55) percebem o museu como um mediador entre o meio ambiente e o
público - e consideram duas características da mediação:
[...]a primeira , que os museus existem para o público, e assim sendo, são eles o
centro das atenções; a segunda está relacionada com o paradoxo entre a visibilidade
de alguns objetos, “coisas” da natureza, e a invisibilidade dos processos cujo
entendimento e compreensão exigem conhecimento científico prévio.
Com estas duas características os profissionais de museus se defrontam no momento de exibir
o meio ambiente. Características que são realmente os desafios para melhor comunicar com o público.
Mulongo (1990, p.3), aponta alguns exemplos sobre museus na Zâmbia, enfatizando a importância de
dar-se um enfoque diferente para os objetos na procura de uma informação mais próxima à realidade.
O autor acredita que para apresentar os objetos, contextualizando-os no tempo e espaço do qual foram
extraídos, poder-se-ia aproveitar o momento de conceber as exposições. Frente à questão: como pode
o museu trabalhar com a realidade, especificando para os visitantes que esse é um recorte do real? precisa-se de um discurso que evidencie ao público que o museu apresenta um recorte da realidade,
sempre um fragmento. Desta maneira, para construir um discurso próximo da realidade, deve-se
“levar em conta que os melhores intérpretes da cultura são as pessoas que fazem parte integrante
dela” .
Importa aqui dizer que os museus devem aproveitar o poder evocativo das suas coleções, vêlas como instrumentos para transmitir a visão de patrimônio integral. Achamos que os profissionais
de museus devem se debruçar sobre uma práxis que possa dar conta de outras características inerentes
aos objetos, que permitam observar a cultura e natureza como um todo. Para Davallon et al (1992,
p.56):
O museu contribui doravante para aparição deste “ser” que é o meio ambiente –
feito de coisas, de processos e de representações - como um “bem público” que
deve ser conservado; em suma, como um patrimônio. Esta “patrimonialização” do
ambiente ocorre segundo os modos que, por sua vez, respondem às especificidades
da instituição museal e à sua atual evolução como mídia. Na suma, face à tempestade
verde, vemos esboçar-se hoje um novo papel do museu: o de ser um “espaço público”
que oferece ao público a oportunidade de se formar uma opinião sobre o que está
prestes a se tornar o “patrimônio verde”9 (grifo dos autores).
9 « Le musée contribue à faire apparaître désormais cet «être» qu’est l’environnement - fait de choses, de processus et de représentations
- comme un «bien public» qui doit être conservé; bref, comme un patrimoine. Cette «patrimonialisation» de l’environnement s’opère selon
des modalités qui répondent à la fois à la spécificité de l’institution muséale et à son évolution actuelle comme media. En définitive, face à la
tourmente verte, on voit s’esquisser aujourd’hui un nouveau rôle du musée: celui d’être un «espace public» offrant au public la possibilité de
GT92872
Qual o papel dos museus com relação à preservação do meio ambiente? Como pode o Museu,
através das suas funções, contribuir para a reflexão sobre patrimônio integral? Para Scheiner (1990,
p.81), os museus, no seu papel de educadores, podem executar planos de educação ambiental na
procura de uma interação do indivíduo com a natureza, projetos voltados para incentivar a reflexão
sobre a preservação e cuidado do entorno. A autora propõe a implementação de planos de educação
ambiental para os museus, integrando-os com os planos de educação patrimonial; finalmente, estas
duas abordagens buscam o mesmo objetivo: motivar a reflexão e tentar conscientizar a sociedade
sobre problemas que padece.
Sofka (1990, p.85), por seu lado, acredita que é o momento para a construção de uma teoria
integrada, que reúna as diversas disciplinas em prol de estratégias e táticas. A ideia é trabalhar
em parceria pela salvaguarda do nosso patrimônio; assim, órgãos internacionais como o ICOM e
ICOMOS, entre outros, teriam por prioridade a integração das atividades de patrimônio com outras
ciências, na luta conjunta pela preservação não só da natureza, mas também da sociedade.
3. O JARDIM PARAISO TERRESTRE
Os jardins botânicos são uma clara representação da ligação homem - natureza e do forte
desejo do homem de retornar a sua origem, reconciliar-se com a sua base existencial e participar
intensamente da paisagem, já não como quem decide a sorte do mundo, mas como parte integral da
mesma. Os jardins, desde tempos imemoriais, foram relacionados a beleza, prazer e fecundidade. Na
busca incessante pela perfeição e pelo equilíbrio harmonioso entre homem e natureza, as diferentes
culturas ao longo do tempo idealizaram o mito do paraíso e tentaram imitar o jardim do Éden (VAN
ZUYLEN, 1994, p.11). Já as antigas civilizações deram uma conotação mágica aos jardins, e a
mitologia em diversas culturas utilizou o jardim como símbolo do paraíso (FARIELLO, 2004, p.9).
Com o transcurso dos séculos algumas características dos jardins continuam intactas. A
dicotomia natureza x artifício foi recorrente na sua configuração, sendo os opostos atraídos a cada
momento e articulados em um jogo harmônico, onde a produção de sensações relacionadas com prazer
e misticismo aparece no percurso destes espaços. O homem, através da composição rítmica entre
natureza e arquitetura, tenta se apropriar da natureza e controlar os seus caprichos, modificando-a e
fazendo uso de elementos vegetais na procura de valorização da arquitetura (FARIELLO, 2004).
Os prédios, monumentos e formas arquitetônicas pouco mutáveis com o tempo, estáticas apesar
das inclemências do tempo e do clima, refletem a ilusão humana de congelar o tempo, subverter o
finito e transformá-lo em eterno. Paisagem e território construído podem assim ser apreendidos como
vestígios da sociedade na procura da eternidade, enquanto a natureza, por seu lado, cresce aleatória,
casual, na direção que o espaço lhe permite, até mesmo lutando pelo espaço que lhe corresponde. A
dicotomia entre natureza e artifício indica ao mesmo tempo uma relação de complementaridade que
revela uma composição harmônica, especialmente nos jardins. A arquitetura seria, assim, o estável,
se faire une opinion sur ce qui est en train de devenir le ‘patrimoine vert’ ».
GT92873
enquanto a natureza seria o instável. Os ciclos naturais, os fenômenos climáticos fazem com que
não possamos predizer nem controlar a natureza, mesmo subjugando-a ou sugerindo o seu destino.
Aí apareceria de modo inequívoco o paradoxo entre instabilidade e estabilidade, natureza x artifício,
uma relação de tensão que o homem consegue articular nos jardins botânicos (FARIELLO, 2004).
O grande medo do ser humano é a morte - mas o homem teme também o esquecimento, que
pode ser uma forma de “morte” dos sentidos. O esquecimento do que cada indivíduo foi e do que
fez, da sua cultura, da sua língua, dos seus costumes e tradições. É uma angústia da qual padece o
ser humano: a negação ao inevitável. Como diz Scheiner (2004, p.33): “[...] em que se fundamenta a
idéia de Patrimônio? Na incessante busca humana da permanência – senão no Ser, pelo menos através
das coisas do mundo”. A vontade de eternidade faz com que, de uma forma ou de outra, o homem
procure diferentes alternativas para perdurar pelos séculos: a auto-preservação, para conservar-se
intacto no tempo; e a auto-perpetuação. Como o ser humano consegue se perpetuar? Por meio do
material, da transformação da matéria para sua produção cultural, na construção de seu entorno,
modificando seu “lugar” e, evidentemente, através da linguagem, ferramenta essencial para transmitir
a memória dos povos.
A construção simbólica do homem sobre o território é o que faz a diferença, é o que o identifica:
não é por acaso que o jeito dos povos tem a ver com o território. O homem toma do seu território
características visíveis e perceptíveis, se apropria dessas características para fazer analogias
com as características físicas e psicológicas de cada grupo social. Canclíni (2003, p.190) refere-se
assim ao fato: “Quando se ocupa um território, o primeiro ato é apropriar-se de suas terras, frutos,
minerais e, é claro, dos corpos de sua gente, ou ao menos do produto de sua força de trabalho”.
Além da dimensão simbólica relacionada com misticismo e religiosidade, os jardins apresentam
na atualidade múltiplas faces em diversos níveis, que vão desde a simplicidade do desfrute sensorial,
relacionada com a afetividade, até a procura de conhecimento científico e de experiências cognitivas.
Rocha (2009, p.113) comenta que o jardim, como lugar de prazer, “[...] Remete não somente à
contemplação das diferentes paisagens como atividade de produção de sentido, mas também a outras
ações individuais e coletivas que têm a função de produzir um estado de prazer estético, sensorial e
cognitivo”.
Desde a perspectiva da Museologia identificamos, além da coleção de espécimes vivos, uma
dimensão comunicacional que seria a do arboreto entendido como exposição, tal como comentou
Rocha (2009, p. 113):
A dimensão museológica do acervo vivo do Jardim pode ser identificada
não somente sob o prisma de uma coleção, mas também como um espaço
comunicacional de exposição (arboreto), no qual se apresentam objetos (plantas),
recursos informacionais (placas de identificação e interpretação), sinalização e áreas
de circulação (aléias), de acordo com critérios de organização e classificação do
conhecimento histórico-científico.
Chamamos a atenção para o fato de se conceber os jardins desde diferentes olhares e não só
GT92874
desde uma perspectiva simplista ou extremamente cientificista: se pararmos para pensar, a natureza
convida a ser explorada como um mundo de sonhos, lembranças, ou como obra pictórica - dependendo
das experiências de cada indivíduo. Nos jardins, a beleza da natureza, sua magnificência e poderio
são articulados para provocar uma sedução que se desdobra ante nós e invade nossos sentidos,
vantagem esta que permite uma compreensão imediata daquilo que se apresenta e que não precisa
de intermediários para que nos sintamos identificados. A diferença dos jardins botânicos em relação
a outros museus tradicionais, sejam estes de ciências, história, tecnologia ou arte, é a facilidade de
apropriação que do espaço público se faz. Embora a natureza guarde mistérios que o homem não
consegue descobrir, ele sempre vai se maravilhar com a imponência das diversas paisagens e infinitas
variedades de espécimes vegetais e animais que reinam sobre o planeta (FARIELLO, 2004).
Dispomo-nos, assim, a percorrer as distintas mudanças na configuração espacial do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, tendo em conta que a paisagem mudou ao longo de 200 anos e apresenta
características de diferentes estilos, todos reunidos num mesmo espaço, composto de forma particular
e contendo fragmentos das diferentes mudanças sofridas não só no horto de Dom João VI, mas também
das mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro.
3.1 AS TRANSFORMAÇÕES DA PAISAGEM
Com a invasão francesa a Portugal em 1808, a família imperial teve que trasladar seu governo
para o Brasil e se instalar na cidade do Rio de Janeiro, frente à guerra que se avizinhava contra as
tropas de Napoleão. D. João, para proteger-se de um possível ataque, ordena a criação de uma fábrica
de pólvora e em decreto manda tomar posse das terras pertencentes a Rodrigo Freitas, conhecidas
como a área do Engenho del Rey. Mas também era importante a adaptação da nova moradia da Corte,
que tornou necessária a criação de um ambiente que estivesse de acordo com as atividades culturais
às que a Corte estava acostumada em Portugal. Para tanto, foram construídas a Real Academia de
Belas Artes, a Imprensa Real, a Biblioteca Real, a Escola Médico-cirúrgica e o Banco do Brasil, entre
outros espaços.
Nas mesmas terras da Fábrica de Pólvora também foi ordenada, em 1808, a criação do Horto
Real. O intuito inicial era, promover a aclimatação de espécies exóticas (RODRIGUES, 1908, p.III).
Lembremos ainda que a descoberta do Novo Mundo e da Ásia incentivou a troca de sementes
e de especiarias, de modo que no século XVI a classificação sistemática colocaria em questão a
criação de jardins botânicos que pudessem abrigar e aclimatar todo tipo de espécimes com o intuito de
comercializá-las. Assim, o interesse do Imperador ia além da esfera afetiva, existia por parte dele um
interesse econômico que a comercialização de espécies vegetais implicava para os países europeus
(D´ELBOUX, 2006, p.199).
No ano de 1808 o JBRJ recebia espécies de Belém e Caiena, tornando-se um centro de
aclimatação (PEREIRA e DA COSTA, 2010, p.23).
Esta transformação espacial através da plantação de especiarias provenientes de países do
GT92875
Oriente, adaptação do modelo europeu no Rio de Janeiro, trouxe críticas por parte dos cientistas
estrangeiros que, em busca dos abundantes recursos do território, encontraram no seu lugar uma
paisagem constituída por espécimes de outros lugares do mundo. Os projetos do Jardim, neste
momento, segundo Nepomuceno (2008, p. 28) estavam voltados “para o cultivo de alimentos de
vários tipos de cana e de chá chinês, de amoreiras para a criação do bicho-da-seda e de uma cultura
de palmeiras próprias para o fabrico de chapéus”. Comercializou-se ainda “a pólvora estocada
no armazém, mudas de plantas econômicas, frutíferas e ornamentais, legumes frescos e folhas do
excelente chá” (PEREIRA e DA COSTA, 2010, p.23).
A paixão de D. João VI pelas espécies exóticas advindas do Oriente fez com que a aclimatação,
importação e plantio de chá fosse premiada com recompensas e privilégios, ainda trazendo colônia
chinesa para explicar o processo de preparação do produto (BARBOSA, 1908). Eis como chegam
as primeiras mudas de chá - Camellia sinensis, denominada anteriormente Tea viridis, mudas estas
enviadas pelo senador Raphael Bottado de Almeida (INSTITUTO DE PESQUISAS JARDIM
BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO, 2010).
Sendo D. João VI coroado Rei do reino de Portugal e Brasil, decide aumentar o número de
espécies raras, aumentando do mesmo modo o Real Horto, que no ano de 1819 mudou seu nome
para Real Jardim Botânico, tornando-se espaço aberto à visitação pública - ainda que sem normas
específicas de cuidado e manuseio de plantas e uso dos espaços.
As mudanças da paisagem, as reformas e a revitalização do Jardim como um espaço de ciência aberto
para a produção de conhecimento e para a contemplação da natureza estão diretamente relacionadas
com os objetivos que cada administração no decorrer de 200 anos plasmou no espaço do Jardim
(BEDIAGA e BRUNI, 2008, p.22) .
Muitas dessas intervenções na paisagem não foram apagadas, pelo contrário, são um traço
indelével que permite analisar através dos fragmentos a configuração espacial atual. Concordamos
com Oliveira (2008, p.79):
A paisagem do Jardim Botânico pode ser comparada a um palimpsesto, ou seja,
foi conformada pela sobreposição de diferentes ‘escritas’, ‘projetos’ ou, mais
especificamente, de leituras de jardim botânico adotadas por suas administrações ao
longo de seus 200 anos.
Eis como temos atualmente o Arboreto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro como uma
exposição que ocupa uma área de 54 hectares, divididos em 40 seções, 194 canteiros e 122 aléias,
que foram identificadas com os nomes dos antigos diretores e personagens importantes que passaram
pela Instituição.
Graças ao trabalho de Frei Leandro (o primeiro botânico a exercer o cargo de Diretor, em
1824) o Jardim tornou-se um espaço de produção científica. Através da reorganização das áreas,
da introdução de novas espécies e da criação do Lago Frei Leandro a paisagem foi tomando uma
aparência além de estética, de caráter científico. Foi na sua gestão que se traçaram as primeiras aléias
e se identificaram os espécimes existentes, que posteriormente foram organizados de acordo com a
GT92876
sistemática científica (COELHO, 2008, p.25).
Muitos vestígios da obra de Frei Leandro estão marcados na paisagem do Jardim. Ainda hoje
lá estão os mais representativos - o Lago que recebeu seu nome - e o cômoro, em homenagem a sua
gestão frutífera e que beneficiou a coleção, iniciando as primeiras permutas de plantas e a forma mais
apropriada para expô-las, de modo que não se perdesse seu sentido científico. Nepomuceno (2008,
p.47) comenta: “As interferências físicas no jardim, incluindo aterros de partes baixas e pantanosas e
o tratamento paisagístico, marcaram a administração de Leandro do Sacramento”.
Também por volta de 1859, a Casa dos Pilões foi incorporada ao Jardim e desde então sofreu
várias reformas. Foi depósito de máquinas agrícolas, moradia dos funcionários da instituição, depósito
de sementes, residência e laboratório do Dr. João Geraldo Kuhlmann. Tempos depois, em 1951, foi
sede do Museu Botânico Kuhlmann. Scheiner (1979, p.141) comentou:
O Museu Botânico Kuhlmann, criado em 1960 e localizado dentro do Jardim, foi um
dos poucos da cidade dedicados exclusivamente às Ciências Naturais, e o único do
gênero na Zona Sul... foi instalado em 27 de janeiro de 1967, aberto a estudantes em
fevereiro de 1969 e aberto ao público em março de 1972.
Em 1982 o prédio então ocupado pelo Museu Kuhlmann passa por uma restauração devido a
seu mau estado de conservação e atualmente é conhecido como Museu-Sítio Arqueológico Casa dos
Pilões.
No ano de 1860, com a administração do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura deu-se
prioridade às experimentações e pesquisas agrícolas, permitindo-se a entrada gratuita à população sem
restringir atividades que pudessem prejudicar o acervo e em 1863 o Professor Karl Glasl administrou
o Jardim, embelezando os canteiros, colocando bancos e mesas e mandando construir a Gruta.
Com a proclamação da República em 1889, realizaram-se mudanças relevantes no Jardim,
especialmente no que se refere à sua administração. Tais mudanças refletiram-se na aparência da
paisagem. As transformações começaram na direção de João Barbosa Rodrigues, que por cerca de 20
anos, insistiu no retorno da cientificidade (PEIXOTO e BRUNI, 2010, p.33) . Foi também Rodrigues
quem recebeu o Jardim e o descreveu mais como um lugar de passeio do que um espaço de ciência,
um horto botânico (RODRIGUES, 1908, p II).
Frente a semelhantes acontecimentos, o Diretor decide elaborar um regulamento para ser
desenvolvido dentro das áreas do Jardim Botânico, com o intuito de torná-lo um espaço científico
e também para assegurar a conservação da coleção, que sobreviveu apesar das atividades de lazer
da população. Medidas de segurança foram acompanhadas de projetos de melhoramento, como as
reformas para o escoamento das águas da chuva; a reorganização de grupos de espécimes seguindo
uma classificação sistemática; a restauração e aumento dos canais de água; a disposição de fontes
Wallace10 colocadas no decorrer do arboreto; a abertura de novos terrenos e o aumento do número de
espécies.
É também obra de Barbosa Rodrigues a denominação das alamedas com os nomes dos antigos
10 Bebedouros em ferro fundido
GT92877
diretores e a construção da biblioteca. Porém o trabalho mais valioso e representativo de Barbosa
Rodrigues foi o levantamento das plantas existentes, com a classificação de cada espécime e a
colocação das devidas etiquetas nas respectivas plantas. O catálogo da coleção do JBRJ aparece
publicado na obra “Hortus Fluminensis”, que até o dia de hoje é usada como instrumento de pesquisa
e como base para a identificação das espécies no arboreto.
As muitas reformas e mudanças ainda hoje se constituem em símbolos do JBRJ e da cidade
do Rio de Janeiro. Este é o caso do orquidário, do Chafariz das Marrecas e do maravilhoso Chafariz
das Musas, que sem lugar a dúvidas carrega um valor simbólico tão arraigado e tão presente para o
cidadão carioca. O Chafariz não foi um monumento construído para exaltar a importância do Jardim
Botânico: de fato, este grande chafariz estava localizado no largo da Lapa e tinha a função de abastecer
água para a cidade, mas o governo decidiu demoli-lo. Naquele momento Barbosa Rodrigues pediu
para levá-lo para dentro do Jardim, dispondo-o numa interseção de aléias com o intuito de que fosse
o ponto central da aléia das palmeiras. São as musas o genius loci do ponto “central” do Jardim. Podemos identificar quatro
figuras que representam a música, a poesia, a ciência e a arte. Nada mais próprio de um museu que
uma alegoria às suas inspiradoras, que estão dispostas em lugar privilegiado, gozando dos olhares
e admiração daqueles que sentam para admirar a sua beleza e para contemplar o movimento da água,
enquanto as musas enchem o espaço de sentimentos, recordações, nostalgias e os levam a um estado
de prazer que a razão não consegue explicar. É o despertar dos sentidos, é o poder sensitivo que
nos permite envolver em experiências de diversas dimensões, é o bem estar que permite ao homem
integrar-se com a natureza e sentir-se parte dela.
Em homenagem ao primeiro Diretor botânico, Frei Leandro, foi erguido um busto no cômoro,
de onde é possível enxergar todas e quantas obras recordam seu legado. Desde seu nicho ele tem uma
vista privilegiada do lago, da aléia das palmeiras e do Chafariz das musas.
Em 1908, para comemorar o centenário do JBRJ, foi erigido um busto de D. João VI, e este
ainda hoje olha as palmeiras imperiais, que representam a Coroa Portuguesa. Lembremos que foi D.
João quem plantou a primeira palmeira (Palma Mater) para inaugurar a instituição. Durante anos esta
planta tornou-se objeto de cuidado e de extrema dedicação, tanto assim que Serpa Brandão quis, na
sua Direção, conservar a exclusividade do espécime; e para evitar a sua reprodução mandava recolher
as sementes. Como espécime vegetal mítico, passou a ser desejo de quem via lucro e aos poucos foi
se propagando pelo Brasil todo, tornando-se símbolo do Jardim (RODRIGUES, 1908, p. XXVI).
Por volta de 1934, na gestão de Paulo Campos Porto, se distribuíram os espécimes de acordo
com critérios de agrupamento por famílias e grupos regionais. Foi neste período que se iniciaram
as coleções das regiões Amazônica, Nordestina e Cerrado (COELHO, 2008, p.26). Também foi
construído o atual cactário, que nos anos 90 foi reorganizado e reformado, acrescentando-se à coleção
diversos exemplares do México e de outros países do continente americano. Em 1935 foi construído
o Jardim Japonês com mudas de plantas típicas do Japão.
GT92878
Anos depois, em 1940 o portal frontal da Real Academia de Belas Artes foi inserido no espaço,
fazendo às vezes de moldura que enquadra a linha de palmeiras imperiais e dirige o olhar para os
fundos do jardim - que, mais que realidade, parece uma pintura romântica.
Em 1943, na gestão de Alpheu Domingues, iniciaram-se as obras de canalização do rio dos
Macacos a fim de evitar enchentes no Jardim. Na década de 1970, foram realizados trabalhos de
restauração e conservação da paisagem, entre os quais a substituição da palma mater pela palma
filia, atingida por um raio em197211; e a inauguração de um Bromeliário em 1975, na Direção do Dr.
Raulino Reitz. Um Plano de Uso Público do Jardim foi desenvolvido em 1985, tendo-se decidido que
a sede do Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa12 seria o melhor local para sediar o Centro
de Visitantes. Depois de restaurado em 1989, o imóvel foi aberto à visitação em 1992, incluindo uma
cafeteria e uma loja (DE SOUZA e FARACO, 2008, p.175). Em 1995, a preocupação com a inclusão
social leva a administração, na gestão de Sergio de Almeida Bruni, a inaugurar o Jardim Sensorial,
posteriormente reformado em 2007.
Na gestão de Liszt Vieira, de 2003 a 2010, uma das principais iniciativas foi a ampliação do
arboreto, com a abertura do Caminho da Mata Atlântica e a recuperação do Aqueduto da Levada13.
Em 2007, o Cactário foi revitalizado e aberto ao público depois de ficar fechado por dez anos. Obras
de restauração foram também realizadas no Orquidário, no Jardim sensorial, na estufa de insetívoras,
a coleção temática de Plantas Medicinais, que ganhou com uma área maior de exposição. Também
foram criados o Jardim Bíblico, o Jardim Beija-flores ( INSTITUTO DE PESQUISAS JARDIM
BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO, 2010). O Jardim, além de ser museu a céu aberto, possui
seu próprio museu de espaço fechado: o Museu do Meio ambiente. Inaugurado em julho de 2008 e
atualmente em fase de implantação.
4. CONSIDERAÇÕES
Os jardins botânicos, como museus, são ferramentas eficazes para desenvolver diferentes
ideologias, para expressar e para comunicar. São lugares onde se entrecruzam diversas disciplinas, e
o mais importante: são lugares para criar, para transformar e ao mesmo tempo para pensar e refletir
sobre o patrimônio. Mas estes espaços precisam ser apresentados nitidamente como museus, já que
as narrativas relacionadas com a paisagem não permitem à sociedade em geral perceber, ainda na
atualidade, que espaços com coleções vivas a céu aberto são também museus.
Continuamos acreditando que os museus podem e devem aproveitar a inserção de novas mídias
e da tecnologia para atrair o público e estimulá-lo a vivenciar experiências sensoriais; mas pensamos
também que nem todos os museus precisam de ambiências que simulem realidades sensoriais já que,
por si mesmos, são espaços imersivos. Este é o caso dos jardins botânicos, onde se estimulam os
sentidos através da coleção viva de espécimes vegetais, convidando os visitantes a percorrer o espaço
11 No ano de 1972, a palmeira contava com 38,7m de altura.
12 Prédio arquitetônico datado de 1576, um dos primeiros prédios construídos na zona sul da cidade.
13 Construído em 1853.
GT92879
não só como observadores, mas como componentes da paisagem envolvidos na magia da natureza.
Nessa confrontação o público se reconhece como parte integral da paisagem. É precisamente nesse
encontro sensorial que entendemos que somos partícipes de um fragmento pertencente a uma unidade:
a natureza.
Como sabemos, os jardins botânicos são uma ponte que liga o homem com a natureza.
Mas, na maioria dos casos, estes espaços são paisagens artificiais, ou seja, são espaços construídos
seguindo uma ordem sistemática - e muitas vezes, como no caso dos jardins históricos, seguindo
regras estilísticas. Essa é a característica principal dos jardins: permitir o encontro harmônico entre o
artifício humano e a espontaneidade da natureza.
A intervenção humana na configuração espacial dos jardins nos permite compará-los com as
características dos espaços museográficos fechados. Rico (2004, p.33) comenta que nos jardins “a
circulação itinerante, a disposição linear e a visão seqüencial são propriedades expositivas que se
mantêm quando colocamos esculturas, monumentos e edifícios no trajeto de uma rua ou passeio”
- ou aléia, no caso dos jardins. Identificamos no JBRJ a existência de parâmetros de hierarquização
e composição da paisagem através da disposição dos monumentos e espécimes vegetais. O uso de
relevos, suportes e elementos vegetais que impedem o acesso das pessoas em determinadas áreas
são conceitos expositivos também usados nos espaços museográficos fechados, como comenta Rico
(2004, p.33): “Os conceitos expositivos de prioridades, potencialização de uma determinada obra, de
marco urbano e paisagístico podem ser deduzidos ou interpretados a partir das experiências em salas
fechadas”.
Acreditamos que todas as transformações do JBRJ foram feitas para beneficiar a cientificidade
do acervo, mas sem esquecer a relevância da dimensão estética como estratégia para acolher os
visitantes. As primeiras e importantes intervenções na paisagem se deram com o traçado racional
e através da inserção de fragmentos da cidade: como as esculturas de Narciso e Eco, pertencentes
ao Chafariz das Marrecas, o Chafariz das Musas, o Portal da Antiga Academia de Belas Artes e a
disposição linear simétrica das palmeiras são pontos de atração localizados de maneira privilegiada
no arboreto. A escolha e introdução destes elementos, aparentemente indiscriminada e casual, guarda
uma forte relação metafórica com o estilo arquitetônico Neoclássico francês. Estes fragmentos
funcionam como vestígios da transformação da cidade do Rio de Janeiro. A disposição de esculturas
que representam personagens da mitologia grega, relacionadas com elementos e fenômenos naturais,
é recorrente na paisagem do Jardim. São usadas como elementos articuladores da temática de cada
núcleo e funcionam como alegorias à fantasia e mistério das forças da natureza.
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GT92882
COMUNICAÇÃO ORAL
NAVIO-MUSEU BAURU E INFORMAÇÃO: TRAJETÓRIA
HISTÓRICA E MUSEALIZAÇÃO SOB O FOCO DA
DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA 1
Roseane Silva Novaes, Diana Farjalla Correia Lima
RESUMO
O tema enfoca o Contratorpedeiro de Escolta (CTE) Bauru e sua qualificação pela Marinha
do Brasil como Navio-Museu. A fundamentação teórica tratou-o à luz dos conceitos de: Patrimônio,
Monumento Histórico da Marinha; Musealização/Museu, Patrimônio Musealizado/Navio-Museu;
Objeto Musealizado/Documento de Museu (Documentação Museológica), Objeto Museológico
em exibição/Exposição. O Bauru integra o conjunto musealizado do Espaço Cultural da Marinha
em contexto de Exposição (visitação) e de Informação e Comunicação em Museus. Objetivos da
pesquisa: analisar no panorama da Musealização a transformação do navio Aviso Oceânico em
Museu Flutuante (1976-1982), motivos e ações relacionadas aos atores sociais responsáveis pelo
processo; analisar a exposição implantada desde a inauguração do Navio-Museu comparando aspectos
informacionais/comunicacionais disseminados ao motivo pelo qual a Marinha do Brasil preservou o
equipamento da 2ª Guerra Mundial e desenhar proposta expositiva conforme parâmetros ditados
pela Musealização. As fontes e a metodologia conjugaram documentos de natureza militar e civil
(textuais, imagéticos), depoimentos, inclusive, de oficiais veteranos de guerra, e a ‘leitura’ do Bauru
teve base interpretativa em modelo para Documentação Museológica. Os resultados apontaram que
a mensagem expositiva do Museu não representava para o visitante nem a condição tecnológica da
construção naval nem a atuação militar deste navio e único modelo remanescente da 2ª Guerra. A
nova proposta para exposição narra a história do Bauru segundo a unidade informacional consolidada
em dados intrínsecos (físicos) e extrínsecos (documentais e contextuais), fundamentada em elenco
de atributos, significações culturais que o navio-documento expressa, desdobrados em Institucionais
– sentido de nação/identidade/pertencimento; tradições e práticas navais; táticas de guerra; Sociais
– representando grupo profissional/social; comportamentos e condutas, efeitos da guerra; bravura.
Embora a materialidade do navio Bauru possa ‘corporificar’ o episódio que se desejou preservar,
a Documentação Museológica e a Informação em Museus têm por efeito registrar e disseminar a
estratégica atuação da Marinha do Brasil no conflito mundial.
Palavras-chave: Navio-Museu; Patrimônio Histórico; Musealização; Documentação Museológica;
Informação em Museus.
SHIP MUSEUM BAURU AND INFORMATION: HISTORICAL CAREER AND
1 O artigo baseado em dissertação defendida -- fevereiro de 2011 -- no auditório do Museu Naval, Rio de Janeiro.
NOVAES, Roseane Silva. Patrimônio Histórico da Marinha sob o olhar museológico: o Navio-Museu Bauru. 2011. 200 f.
Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio. UNIRIO/MAST. Rio de Janeiro: 2011. Orientadora:
Diana Farjalla Correia Lima.
GT92883
MUSEALIZATION UNDER THE FOCUS OF MUSEUM DOCUMENTATION
ABSTRACT
The theme focuses on the Destroyer Escort (CTE) Bauru and its qualification by the Brazilian
Navy as Ship Museum. The theoretical basis treated him in the light of the concepts of Cultural
Heritage, Navy Historical Monument; Musealization/Museum; Museum Document/Museum Object
on display/Exhibition. The Bauru is part of the exhibition area of Navy Cultural Site in the context
of Museum Information and Communication. Research objectives: to analyze the musealization -transformation of the ship into Floating Museum (1976-1982); motives and actions related to the
social actors responsible for the process; to analyze the exhibition existed since the inauguration of
the Ship Museum and compare the informational and communication aspects disseminated with the
motive that led the Brazilian Navy to preserve the equipment of the 2nd World War; and propose an
exhibition according to the musealization parameters. Reference sources and methodology: documents
(military and civilian; textual, pictorial, testimonials, including senior officials war; and the ‘reading’
of Bauru was based on interpretive model for Museum Documentation. The results showed that the
exhibition’s message of the museum did not represent to the visitor the condition of shipbuilding
technology nor military actions that had been the only model of this ship remaining from the Second
World War. The proposal for the exhibition tells the Bauru story considering the informational unit
based on intrinsic (physical) and extrinsic data (contextual and documentary), based on a list of
attributes, cultural meanings that the ‘document’ ship expresses, deployed in Institutional - sense
of nationhood/identity/belonging; naval traditions and practices, war tactics; Social - representing
professional group/social attitudes and behavior, effects of war; bravery. Although the materiality
of the ship Bauru can ‘embody’ the episode that wished to preserve, Museum Documentation and
Museum Information have the effect of record and disseminate the strategic role of the Brazilian
Navy in world conflict.
Keywords: Ship Museum; Historical Heritage; Musealization; Museum Documentation; Museum
Information.
1. PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA MARINHA DO BRASIL E MUSEALIZAÇÃO: O NAVIOMUSEU BAURU.
O Contratorpedeiro de Escolta (CTE) surgiu no panorama da história do ocidente em pleno
conflito da 2ª Guerra Mundial. Uma solução norte-americana, barata e rápida, produzida para a
demanda de proteção ao número crescente de navios mercantes que se deslocavam em formação de
comboio. Uma estratégia dos países aliados para protegerem-se dos ataques em massa de submarinos
do Eixo.
O CTE Bauru foi um navio de guerra de tecnologia inovadora utilizando “novas técnicas de
soldas e costuras de costados” 2, equipamentos para detectar e caçar submarinos, a tecnologia do
sonar.
Construído nos EUA e incorporado à Marinha americana, no período da 2ª Guerra Mundial,
foi transferido para a Marinha brasileira (1944. Fez parte de um grupo de navios desse tipo que
2
DIRETORIA DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E DOCUMENTAÇÃO DA MARINHA. Departamento de História Naval. 2006.
GT92884
revolucionou os conceitos de guerra naval brasileira, porquanto com uma esquadra que ainda atuava
com navios da 1ª Guerra Mundial a Marinha nacional, grosso modo, desconhecia a tecnologia do
sonar e a operação dos equipamentos bélicos de ataque aos submarinos.
Durante o conflito integrou a esquadrilha Força Naval do Nordeste operante nos comboios
aos navios mercantes que faziam as rotas no Atlântico. E este recorte da história do navio motivou
a sua qualificação pela Marinha como Monumento Histórico/Bem Cultural/Patrimônio Musealizado
e, posteriormente, sua transformação em Navio-Museu (1981-82). Nesta ocasião, recebeu exposição
permanente dedicada e simbolizando sua participação da Marinha brasileira na 2ª Guerra Mundial.
O navio como signo de uma batalha vitoriosa e alçado a Bem Cultural passou a representante
de conteúdos simbólicos expressos em designações referidas ao Patrimônio. E considerando que os
“termos usados para nomear cada tipo de Bem” 3 refletem “apropriações” do poder simbólico que são
exercidas pelos campos do conhecimento, tais ações se exprimem indicando um “Atributo Simbólico
do Patrimônio”. Esta ação, conforme o mesmo autor, se realiza sob a forma de
[...] 3 categorias técnicas e conceituais (A, B, C) [...]: A - Atributo de Origem (criação
da natureza ou cultura); B - Atributo de Apropriação por Área do Conhecimento;
C - Atributo Mesmo Exemplar com Diferentes Designações Segundo Áreas do
Conhecimento.
Nesse quadro o Navio-Museu Bauru permite ser caracterizado como exemplar categoria A
-- Patrimônio Cultural; exemplar categoria B -- Patrimônio Histórico (âmbito da Historia Militar e
Naval); exemplar categoria C – Patrimônio da Engenharia Naval e, ainda, Patrimônio Militar, sendo
o contexto militar um setor do conhecimento estratégico.
No campo da Museologia o conceito Patrimônio 4 é compreendido no significado que
correlaciona os termos Monumento e Bem em todas as suas faces de atributos.
No que tange à apropriação do conceito de Patrimônio pela Museologia “O termo Patrimônio,
ampliado conceitualmente, supera a noção de Monumento, forma mais evidente pela qual Patrimônio
se apresentou pela primeira vez com caráter museológico” 5, ou seja, sob a forma de coleções por
ocasião da Revolução Francesa.
Aplicando esses entendimentos ao Bauru, pode-se afirmar que ao receber a atribuição de
Bem Cultural/Monumento Histórico/Patrimônio Musealizado o navio, “produto do Homo faber e,
3 LIMA, Diana Farjalla Correia. Atributos Simbólicos do Patrimônio: Museologia/ “Patrimoniologia” e Informação em Contexto da
Linguagem de Especialidade. In: ENANCIB, (11)-Inovação e inclusão social: questões contemporâneas da informação; GT 9 – Museu,
Patrimônio e Informação, 2010. Rio de Janeiro. Trabalhos apresentados... 2010. Rio de Janeiro: ANCIB: PPGCI-IBICT, UFRJ. 1CD
ROM. (não paginado) Disponível em: <http://congresso.ibict.br/index.php/enancib/xienancib/paper/view/273/311> Acesso em: 12 jul.
2011.
4 DÉSVALLEÉS, André. Terminologia Museológica: Proyeto Permanente de Investigación. ICOM/ICOFOM. ICOFOM LAM.
Rio de Janeiro: Tacnet Cultural. 2000. p. 5. 1 CD - ROM.
5 LIMA, Diana Farjalla Correia; COSTA, Igor Fernando Rodrigues. Patrimônio, herança, bem e monumento: Termos, usos e
significados no campo museológico. In: ICOFOM/ICOFOM LAM – INTERNATIONAL SYMPOSIUM MUSEOLOGY A FIELD OF
KNOWLEDGE: Museology and History. Córdoba, Argentina, 2006. Trabalhos apresentados... p. 245. Disponível em: <http://www.
lrz. de/~iims/ icofom/iss_35.pdf >. Acesso em: 08 jul. 2011.
GT92885
mais perfeitamente ainda de uma civilização industrial” (grifo do autor), 6 passou a simbolizar a
participação da Marinha do Brasil na 2ª Guerra Mundial, elemento motivador de sua Musealização.
E por Musealização se entende a “operação destinada a extrair, fisicamente e conceitualmente,
uma coisa de seu meio natural ou cultural de origem e dar-lhe status museológico” 7. Ainda, o
estudo (leitura, interpretação) dos elementos físicos e documentais/contextuais do objeto com status
museológico, identificado como Patrimônio, deve contemplar o episódio da sua transformação em
Patrimônio Musealizado para não correr o risco de se perder informações que lhe são pertinentes.
Sob o prisma da Musealização aplica-se ao Bem Cultural tanto o aspecto de “significação na qual o
objeto é distinguido com potência de comprovação de determinada situação cultural -- o poder de prova”
.
No segundo sentido correlaciona-se a Abraham Moles que qualifica os objetos materiais,
produtos do Homem, como “vetor de comunicação”. Nas palavras do autor:
quanto a faceta na qual o objeto exerce “poder de comunicação” (grifo do autor)
8
9
[...] o objeto é a concretização de um grande número de ações do homem
da sociedade e se inscreve no plano das mensagens que o meio social envia
ao indivíduo ou, reciprocamente, que o Homo faber subministra à sociedade
global (grifo do autor).
Portanto, na conformação de um Patrimônio musealizado, o navio Bauru pode ser compreendido,
sob três aspectos integrados: a) Testemunho - representa “poder da prova”, “com potência de comprovação”
, um documento da história da Marinha do Brasil na 2ª Guerra Mundial; b) Lugar - “um espaço
fortemente simbolizado” 11 - espaço no qual “podemos ler, em parte ou em sua totalidade, a identidade
dos que a ocupam, as relações que mantêm e a história que compartilham” 12; c) Espaço informacional
e comunicacional - pela visitação pública a um equipamento histórico e, sobretudo, sob o foco de uma
exposição museológica.
10
1.1 Exposição de 1982 e uma lacuna informacional
A exposição elaborada para a abertura do Navio-Museu data de 1982 e usou como espaço de
exibição os compartimentos visitáveis do equipamento militar. Foi mantida até 2007 quando o navio
sofreu reparo estrutural que durou até 2010.
6 MOLES, Abraham. Objeto e comunicação. In: MOLES. A. et al. Semiologia dos Objetos. Petrópolis: Vozes. 1972. p. 15. (Coleção
Novas Perspectivas em Comunicação, 4. Seleção de ensaios da Revista Communications. n 13, 1969).
7 Opération tendant à extraire, physiquement et conceptuellement, une chose de son milieu naturel ou culturel d’origine et à lui
donner un statut muséal [...].
DESVALLÉES, A. 2000. Op. cit., p. 11.
8 LIMA, Diana Farjalla Correia. Herança cultural (re)interpretada ou a memória social e a instituição museu: releitura e reflexões.
Museologia e Patrimônio, Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, PPG-PMUS
UNIRIO/MAST. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 2008a. p. 36 Disponível em: <http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/
ppgpmus/article/view/4/2> (artigo completo) <http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewArticle/4>
(resumo). Acesso em: 12 de julho de 2011.
9 MOLES, A. Op. cit., p.11.
10 LIMA, D. F. C. 2008a. Op. cit. p. 36.
11 AUGÉ, Marc. Sobremodernidade:do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã.In: MORAES, Dênis de (org.).
Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. p. 102.
12 AUGÉ, M. Ibidem, p.102.
GT92886
No período em que esteve aberta ao público houve oportunidade profissional de realizar ‘in
loco’ uma avaliação conceitual e técnica da sua proposta e apresentação. Como resultado foi possível
analisar sua abordagem comunicacional e verificar que não retratava o papel exercido pelo navio por
ocasião do conflito mundial.
A narrativa tratava de uma parcela da história da ação da Marinha brasileira na 2ª Guerra “pela
exibição de objetos, documentos, cartas e gráficos” 13. Nos compartimentos do Bauru a exposição
abordava: 1) o conflito - posição político-diplomática do Brasil decorrente de afundamento de navios
brasileiros e a participação da Marinha; 2) o navio como equipamento naval, navio de guerra (meio
flutuante bélico): armamentos, indicativo de casco, compartimentos visitáveis, mastro e bandeira,
petrechos navais – cabos, defensas, botes salva-vidas, etc., – alguns com legendas; 3) ambientações:
manequins estáticos retratando situações corriqueiras e equipamentos contemporâneos substituindo
os originais.
Nos três blocos de informação sentia-se a ausência do homem que impregnou aquele local de
história. Não se representava a bordo a vida dos militares e praças da Marinha, embora tenha sido
mantido fragmentos de registro do cotidiano a exemplo do alojamento de marinheiros e o camarim
do radar. As informações textuais, quando existentes, apresentavam-se exíguas ou redigidas em
linguagem técnica (legendas dos artefatos bélicos) e também não contextualizavam o Bauru.
O tratamento não retratava a vida ativa e histórica do navio em operação durante o conflito da
2ª Guerra Mundial. Apresentava uma lacuna informacional impossibilitando comunicar ao público
visitante a relevância da atuação do navio no contexto da história da Marinha do Brasil, motivo
pelo qual fora transformado em espaço musealizado. Estavam ausentes explicações básicas: -transformação do navio em Museu pela Marinha do Brasil; -- valores da instituição Marinha que
permearam o discurso dos atores ligados ao navio e sua ação; -- e a representação do Navio-Bauru
para o Brasil como objeto testemunho no contexto da 2ª Guerra Mundial em termos de tecnologia
naval e de táticas de guerra.
Sob tal perspectiva o navio Bauru, embora um signo marinheiro do Poder Naval brasileiro pela
participação no segundo conflito mundial e reconhecido como Patrimônio Cultural, carecia de exercer
a função mencionada de vetor de comunicação em razão das suas características de equipamento
militar e do contingente humano que o operou não terem sido representados e disseminados no
ambiente de visitação (nem fora deste espaço).
Lembrando que cada Museu enfoca uma temática reinterpretada sob a forma de mensagem
referida ao tempo/espaço pré-definidos e materializada nos objetos de sua coleção, no caso do
Navio-Museu Bauru é o próprio meio flutuante que merece abordagem como um ‘objeto’ que foi
musealizado por ser peça integrante do conjunto patrimonializado da Marinha do Brasil. E a partir
desta qualificação proceder à sua interpretação como um “data carrier” 14 (mensageiro de dados) em
13 SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO GERAL DA MARINHA (Brasil) Navio-Museu Bauru: Guia do Visitante. Rio de Janeiro:
Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1982. p. 2.
14 MENSCH, Peter van. Museology and the objet as data carrier. In: Object, museum, Museology, an eternal triangle. Leiden:
GT92887
virtude de sua caracterização como testemunho da 2ª Guerra Mundial, a fim de construir a informação
adequada e por meio do canal comunicacional Exposição, ou outras formas de comunicação em
Museus, transmiti-la a vários segmentos do público visitante.
E um navio simbolizando testemunho, documento de época, tratado como Objeto Musealizado,
segundo Lima 15, representa e aglutina o processo da “expansão das fronteiras do conceito operatório
de objeto museológico”. Deste modo,
comporta ao museu lidar com qualquer tipo de testemunho cultural (de qualquer
natureza). Compreendido, ainda, na qualidade de documento dos processos sociais
(aval dado pelas transformações da dimensão social) com peculiaridades de caráter
expressivo, isto é, caráter simbólico ou de representação. Portanto, atuando com
função de comunicação, consignando, ao mesmo tempo, a matéria e a fonte para
leituras e interpretações das mensagens dos espaços tanto do modelo quanto da
ação social ou, em outras palavras, das significações expressas pelos aspectos da
representação e da prática cultural (grifo do autor, versão em português do autor feita
para o presente artigo).
E ao objeto Bauru ao qual se reconhece atuar ao modo de um veículo de informação, conforme
Ferrez, 16 é fonte de consulta “para a pesquisa científica e para a comunicação que, por sua vez, geram
e disseminam novas informações”, em vista disto, cabe tratamento sob o foco da análise que possa
interpretá-lo tanto quanto à forma física que ostenta como o contexto histórico e social que representa.
Portanto, sua leitura se respaldou na aplicação da Documentação Museológica que, segundo a mesma
autora,
[...] é o conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por conseguinte,
a representação destes por meio da palavra e da imagem (fotografia). Ao mesmo
tempo, é um sistema de recuperação de informação capaz de transformar [...] as
coleções dos museus de fontes de informações em fontes de pesquisa científica ou
em instrumentos de transmissão de conhecimento.
Sob a visão conceitual, o objeto da Marinha Navio-Museu Bauru ‘apropriado’ pelo campo da
Museologia foi tratado como objeto de pesquisa e conforme se apresenta na parte 4 do presente artigo
(Suprindo Lacunas Informacionais...).
Reinwardt Academy. Reinwardt Cahiers.1987.
15 [...] issues are added, such as the expansion of the operating concept of the purposes of museums.
[…] that museums must handle any type of cultural testimony, which also includes documenting social processes (endorsements by
transformations in aspects of society) with significant peculiarities, in terms of their representative or symbolic character. Thus, they
function as means of communication, providing at one and the same time contents and sources for reading and construing the messages
from the areas, for both the model and the social action, in other words meanings are expressed through aspects of cultural practices
and representations.
LIMA, Diana Farjalla Correia. Museology, information, intercommunication: intangible cultural heritage, diversity and professional
terminology in latin america and the caribbean. In: ICOFOM, ANNUAL INTERNATIONAL SYMPOSIUM (31). Museums, museology
and global communication, 2008b, Hangsha. Trabalhos apresentados... 2008b. Hangsha (China). ICOFOM-ICOM. p. 32. (ICOFOM
Study Series-ISS 37). Disponível em: <http://www.icofom2.com.ar/ archivos/ archivos/ISS%2033-35/ISS37-2008. pdf>. Acesso em:
24 jul. 2011.
16 FERREZ, Helena D. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In: IPHAN. Estudos Museológicos. Rio de
Janeiro. 1994. (Cadernos de Ensaios 2). p. 65.
GT92888
2. OBJETIVOS E METODOLOGIA
Objetivos: Analisar no panorama da Musealização a transformação do navio Aviso Oceânico17
(vida ativa do navio) em Museu Flutuante (1976-1982) -- os motivos e as ações relacionadas aos atores
sociais responsáveis pelo processo; analisar a exposição implantada desde a inauguração do NavioMuseu e comparar aspectos informacionais/comunicacionais disseminados ao motivo pelo qual a
Marinha do Brasil preservou o equipamento da 2ª Guerra Mundial; e desenhar proposta expositiva
conforme parâmetros ditados pela Musealização e sob modelo de Documentação Museológica tendo
por base modelo do museológo Peter van Mensch.
Metodologia: período compreendido da 2ª Guerra até atualidade – atividades/realização de:
a) depoimentos/entrevistas com atores da história do Bauru compreendendo a denominada vida ativa
de uma embarcação e depois de sua qualificação como Navio-Museu; b) levantamento bibliográfico:
documentos oficiais, fotografias, legislação; c) consulta a coleções de objetos de época.
3. MUSEALIZAÇÃO DE UM PATRIMÔNIO: PRESERVANDO O ÚNICO REMANESCENTE
DA 2ª GUERRA
A Musealização do Bauru se iniciou (1976) ao ser titulado Monumento Histórico -- ofício
(abaixo transcrito) do Vice-Almirante Façanha Sobrinho 18ao Ministro da Marinha. O veterano da
2ª Guerra, no texto do documento administrativo, solicitou a preservação do Navio Aviso Oceânico
Bauru apontando-o como último navio remanescente da 2ª Guerra Mundial em atividade, com
valor histórico e de rememoração (referência aos companheiros mortos nos mares) justificando sua
preservação:
Ao longo de sua história a Marinha do Brasil tem deixado desaparecer navios de alto
valor histórico [...] ainda temos em serviço um dos navios integrantes da gloriosa e
inesquecível Força Naval do Nordeste o AvOc “Bauru” [...] A vista do exposto peço
vênia a V. Exa. para sugerir seja o AvOc Bauru, ao ser dado baixa conservado como
monumento histórico flutuante em honra daqueles companheiros que mergulharam
para sempre nas águas do Atlântico, no cumprimento do dever.
O documento pode ser considerado o primeiro olhar que, lançado sobre o Bauru, o encaminharia
para a condição museológica em lugar da comercialização como sucata ou transformação em alvo de
treinamento de tiro em alto mar. Rotina quando o navio é considerado obsoleto para “contribuir para
a salvaguarda dos interesses nacionais” 19. Ou seja, quando deixa de ter o que se nomeia de vida ativa,
não cumprindo atividade-fim relativa à Força Naval.
A trajetória do Bauru fugiu a regra geral da trajetória dos navios de guerra.
17 NAVIO AVISO OCEÂNICO - última designação do navio Bauru antes de transformar-se em Navio-Museu.
18 DIRETORIA DE INTENDÊNCIA DA MARINHA (Brasil). Ofício nº 2139, de 23 de junho de 1976. Conservação de navio
como monumento histórico – AvOc Bauru, Rio de Janeiro,1976. 2 f. Estanislau Façanha Sobrinho, Vice-Almirante. (Coleção ViceAlmirante Façanha Sobrinho).
19 MARINHA DO BRASIL. Missão da Marinha do Brasil. Disponível em: <http://www.mar.mil.br/menu_ v/instituicao/missao_
visao_mb.htm >. Acesso em: 11 mai. 2011.
GT92889
A intenção do Vice-Almirante Façanha Sobrinho 20 foi criar uma referência ligada à atuação
das Marinhas (Guerra e Mercante) no conflito mundial e de teor mais eloqüente do que a menção
veiculada pelo Monumento Nacional aos Mortos da 2ª Guerra Mundial. Assim era necessário
determinar um “lugar”, “um espaço fortemente simbolizado” 21 que suprisse, no seu entender, a
ausência de representatividade da Marinha no citado monumento. O argumento incitou segmentos
importantes dentro da instituição e mudou o destino do navio Bauru.
A solução foi tratar o então Aviso Oceânico como Monumento Histórico, “fundeado na
enseada em frente [do ponto de vista do mar] do monumento aos mortos” para com “a silhueta esguia
[mostrar] ao povo do Brasil um dos navios que ajudou a manter livres as rotas de navegação por onde
fluíram num e noutro sentido as riquezas e as necessidades do país” 22.
Ao usar o termo Monumento Histórico fazendo analogia ao Monumento Nacional aos Mortos
da 2ª Guerra Mundial, Façanha Sobrinho exerceu a ação que, segundo Françoise Choay 23, exemplifica
como se determina a qualificação de um Bem no contexto social:
[O monumento histórico] é uma invenção [...] é constituído, a posteriori, pelos
olhares convergentes dos [especialistas]. [...] Ou ele é simplesmente constituído em
objeto de saber e integrado numa concepção linear do tempo – nesse caso, seu valor
cognitivo relega-o inexoravelmente ao passado [...].
O marco inicial do processo de Musealização, ofício nº 2139, foi encaminhado ao Almirantede-Esquadra Geraldo Henning, Ministro da Marinha, com cópias para o 1º Distrito Naval (1º DN),
responsável pelo navio em operação e para o Serviço de Documentação Geral da Marinha (SDGM),
organização militar responsável pelo arquivo, biblioteca e museus da Marinha. Os dois pareceres 24
foram favoráveis à conservação do Bauru como Monumento Histórico, símbolo da participação da
Marinha na 2ª Guerra Mundial.
E transformar o navio em Museu foi proposto ao Ministro da Marinha (1977) pelo Diretor do
Serviço de Documentação Geral da Marinha, Paulo Guilherme Brandão Padilha 25:
[...] julgo, salvo melhor juízo de V. Exa., que a sugestão formulada pelo Exmº Sr.
Vice-Almirante [...] é da maior importância, vindo ao encontro de velha inspiração do
SDGM, qual seja a conservação dos elementos históricos ainda disponíveis, relativos
à gloriosa participação da MB na Segunda Guerra Mundial. [...] Se aceita a sugestão
[...] uma das cobertas do AvOc “Bauru” poderá ser especialmente adaptada para nela
ser mostrada, pela exibição de objetos, documentos, cartas e gráficos, a relevante
participação da MB no sangrento conflito, divulgando-a entre o grande público.
20 FAÇANHA SOBRINHO, Estanislau. Depoimento sobre as razões que justificaram a atribuição de Monumento Histórico ao
navio Bauru. Rio de Janeiro, 2010. Entrevista do Vice-Almirante Estanislau Façanha Sobrinho. Rio de Janeiro. 29 de junho de 2010.
21 AUGÉ, M. 2006. Op.cit., p. 102.
22 DIRETORIA DE INTENDÊNCIA DA MARINHA (Brasil). Ofício nº 2139.1976. Op.cit.
23 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade. UNESP. 2001. p. 26.
24 SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO GERAL DA MARINHA. (Brasil) Despacho nº. 33 de 2 de julho de 1976.Sobre a conservação
do navio como monumento histórico – AvOc “Bauru”.Transunto. Rio de Janeiro; 1976.1f. Paulo Guilherme Brandão Padilha, ContraAlmirante. (Coleção Vice-Almirante Façanha Sobrinho) e PRIMEIRO DISTRITO NAVAL. (Brasil) Despacho. nº. 811 de 21 de julho
de 1976. Sobre a conservação do navio como monumento histórico – AvOc “Bauru”.Transunto. Rio de Janeiro, 1976. 1f. Maximiano
Eduardo da Silva Fonseca, Vice-Almirante. (Coleção Vice-Almirante Façanha Sobrinho).
25 SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO GERAL DA MARINHA. Despacho nº 33. 1976. Op.cit.
GT92890
Na sequência do processo de Musealização, o Ministro declarou “aproveitamento do AvOc
“Bauru” como museu flutuante” 26 no ato de criação de uma comissão voltada para procedimentos
de restauração, adaptação, planejamento e execução de exposição e inauguração do Navio-Museu
Bauru.
E em 21 de julho de 1982, data escolhida para coincidir com data de homenagem aos mortos
da Marinha do Brasil na guerra, o Navio-Museu Bauru abriu suas ‘portas’ para receber o público em
seus compartimentos e na área destinada à exposição temática sobre a 2ª Guerra Mundial.
A condição de museu flutuante na ativa foi posta em ação porquanto, no início de sua vida
como Navio-Museu, o Bauru se transformou no que a Museologia denomina exposição itinerante.
Rebocado viajava para outros 27 portos brasileiros. E Angra dos Reis (1988) foi o último ponto de
itinerância 28.
3.1 Identificação, Rememoração, Celebração: o símbolo Bauru
O ‘esquecimento’ nacional sobre a participação da Marinha do Brasil no conflito justificou,
para Façanha Sobrinho, autor do movimento em prol do navio como Monumento Histórico, o
restabelecimento das condições originais e justificou, inclusive, a escolha do local onde inicialmente
o Navio-Museu Bauru fora atracado e aberto ao público: um píer, exclusivamente construído pela
Marinha, localizado na Baía de Guanabara, por trás (visto do continente) do Monumento Nacional
aos Mortos da 2ª Guerra Mundial/Monumento aos Pracinhas, na Marina da Glória, cidade do Rio de
Janeiro.
Todavia a interpretação apaixonada do veterano marinheiro: “a minha intenção era ofuscar
o monumento” 29, aparentemente não se justifica já que o Monumento Nacional aos Mortos da 2ª
Guerra Mundial apresenta na sua parte externa como interna vários elementos representando as
Marinhas de Guerra e Mercante, o Exército e a Aeronáutica. E não se deve esquecer que embora
tenha um nome oficial, o monumento é popularmente identificado como ‘monumento aos pracinhas’
realçando a alcunha de soldados. E soldados são os praças do Exército, não são os praças da Marinha
(marinheiros).
Os homens do mar (pelo que se depreende) não se identificavam com um monumento localizado
em terra e que não representava o seu lugar 30. E nem reconheciam a Marinha que compreendem como
‘gloriosa’ e que, deste modo, não figura no Monumento.
Seus símbolos mais eloquentes repousam no complexo e específico conjunto de tradições,
26 MARINHA DO BRASIL. Memorando nº 87 de 17 de setembro de 1981. Determina o aproveitamento do AvOc “Bauru” como
museu flutuante. Brasília. DF, 1981. (Coleção Vice-Almirante Façanha Sobrinho).
27 O atracadouro-sede do Navio-Museu Bauru está desde sempre localizado na cidade do Rio de Janeiro.
28 DIRETORIA DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E DOCUMENTAÇÃO DA MARINHA. (Brasil) Departamento de História
Marítima e Naval. Histórico de Navios. Disponível em: <http:// biblioteca.sdm.mar.mil.br/internet/navios/documentos/bauru.doc >.
Acesso em: 13 jul.2011.
29 FAÇANHA SOBRINHO, Estanislau. Depoimento sobre as razões que justificaram a atribuição de Monumento Histórico ao
navio Bauru. Rio de Janeiro, 2010. Entrevista do Vice-Almirante Estanislau Façanha Sobrinho. Rio de Janeiro. 29 de junho de 2010.
30 AUGÉ, M. 2006. Op. cit. p.102.
GT92891
rotinas e práticas das lides marinheiras: nos toques, nos uniformes, nas gírias marinheiras, seus
sinais de distinção. E, principalmente, no navio de guerra, uma poderosa máquina de combate,
quase autônoma, ostentando a bandeira do país (marco simbólico) mares afora. Um Poder Naval
representando e defendendo o país. Uma “verdadeira embaixada flutuante” como afirmou o Almirante
Leôncio Martins 31.
Nestas circunstâncias eleger o navio remanescente da 2ª Guerra Mundial como Monumento
Histórico pode ser considerado um ato para ‘retirar do esquecimento’ o Poder Naval brasileiro. Por
isto, o mentor do processo de Musealização do navio, Vice-Almirante Façanha Sobrinho, denominou
“monumento flutuante” no ofício ao Ministro da Marinha. A arquitetura naval e símbolo naval
contrapondo-se ao monumento aos pracinhas - elementos de e em terra que simbolicamente não
representam plenamente o caráter da ‘Mar-inha’.
4. SUPRINDO LACUNAS INFORMACIONAIS: PROPOSTA DE EXPOSIÇÃO APOIADA
EM DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA
A proposta que predominou para a abordagem expositiva de 1982 foi sugerida em 1976 por
Paulo Guilherme Brandão Padilha 32 e Max Guedes 33, respectivamente, Diretor e Vice-Diretor do
Serviço de Documentação Geral da Marinha:
[...] conservação de elementos históricos relativos à gloriosa participação de Marinha
do Brasil [...] uma das cobertas do AvOc Bauru poderá ser especialmente adaptada
para nela ser mostrada, pela exibição de objetos, documentos, cartas e gráficos, a
relevante participação da Marinha do Brasil no sangrento conflito, divulgando-a
entre o grande público.
A organização militar que respondia pelo patrimônio histórico e cultural da Marinha do Brasil,
definiu o Bauru como “monumento histórico”, porém cumprindo parcialmente a função de Museu,
isto é, com dois de seus compartimentos perdendo suas utilizações originais para funcionar como
espaço expositivo.
Interessante destacar, conforme os documentos (já referenciados), que para os veteranos da
2ª Guerra Mundial: Alfredo Karan34, Leôncio e Façanha, o Bauru permaneceu como Monumento
Histórico representativo da Marinha no conflito. Enquanto para os oficiais responsáveis pela gestão
da área cultural da Marinha: - Padilha, Guedes e Bittencourt - o navio embora tenha sido e seja ainda
entendido como Monumento Histórico, porém tem o foco de qualificação como um espaço expositivo.
31 MARTINS, Hélio Leôncio. Vivência como oficial da Marinha do Brasil durante a 2ª Guerra Mundial e o Navio-Museu
Bauru. Rio de Janeiro, 2005. Entrevista do Vice-Almirante Hélio Leôncio Martins. Revisada com o autor em 07 de dezembro de 2009.
32 SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO GERAL DA MARINHA (Brasil).Despacho nº 33 de 2 de julho de 1976. Conservação de
navio como monumento histórico – AvOc Bauru. Transunto. Rio de Janeiro, 1976.1 fl. Paulo Guilherme Brandão Padilha, ContraAlmirante. (Coleção Vice-Alte.Façanha Sobrinho).
33 GUEDES, Max Justo. Depoimento sobre a transformação do navio Bauru em museu e sobre a elaboração e montagem da
exposição em 1982. Rio de Janeiro, 2010. Entrevista do Contra-Almirante Max Justo Guedes. Rio de Janeiro em 17 de junho de 2010.
34 BAURU SERÁ MUSEU EM JULHO. O Globo, Rio de Janeiro, 7 fev. 1982. Grande Rio. p. 9.
Alfredo Karam, então ,Almirante-de-Esquadra, veterano de guerra como tripulante do CTE Bauru quando deu a entrevista ao periódico.
GT92892
E tal compreensão associada a essa ingerência administrativa eclipsou as significações
culturais sediadas no Navio-Documento.
Em razão desta condição e como proposta da pesquisa que se relata para a nova exposição,
interpretou-se o Bauru como um objeto musealizado e fonte de informação, em conformidade com
padrões da Documentação Museológica e segundo percepção modeladora de Peter van Mensch
(1987, 1990). As categorias informacionais do museólogo holandês compostas que apontam os dados
intrínsecos (físicos) e extrínsecos (documentais e contextuais) voltam-se para a análise do elemento
musealizado e de outras fontes indicando 3 pontos fundamentais.
Do conjunto de Mensch 35, foram considerados adequados para o trabalho os pontos/indicadores
abaixo transcritos:
1. Propriedades físicas do objeto (descrição física))36
a) Material de construção: aço; b) Dimensões: 93,2 m de comprimento, 11 m de boca e 6,09 m
de calado; c) Propulsão: diesel-elétrica - 4 motores diesel General Motors Modelo 16-278; d)
Deslocamento*: 1.309 toneladas (padrão), 1.623 toneladas (carregado) * peso do navio; e)
Velocidade: máxima de 21 nós = 21 milhas marítimas por hora = 42 .000 jardas x 91,44 cm =
42 m. por hora (aproximadamente); f) Armamentos - 3 canhões de 3 polegadas (76.2 mm/50)
em três reparos singelos Mk 22; 2 canhões Bofors L/60 de 40 mm em um reparo duplo Mk 1; 8
metralhadoras Oerlikon de 20 mm em reparos singelos Mk 4; 1 reparo triplo de tubos de torpedo
de 21 polegadas (533 mm); 1 lançador de bomba granada A/S (LBG) Mk 10; 2 calhas de cargas
de profundidade Mk 3 e 8 projetores laterais do tipo K Mk 6 para cargas de profundidade Mk 6
ou Mk 9 e 2 geradores de fumaça Mk 4; g) Equipamentos de defesa: sistema de sonar; sistema de
comunicação; h) Equipamentos de navegação; i) Texto: Indicativo visual - DE 179 (destroyer escort
na Marinha norte americana); Be 4 (CTE); U 28 (AvOc); legendas em inglês dos equipamentos de
bordo.
2. Função e significado (interpretação)
a) Interpretação Estratégia de guerra: escolta a comboios; vigilância da costa; b) Interpretação Vida a
bordo: fainas; cerimonial; formaturas; c) Interpretação Vida a bordo: uniformes; gírias; gestual; d)
Interpretação simbólica: único remanescente da indústria naval, no Brasil, referente à participação
brasileira na 2ª Guerra Mundial; representa a presença do Poder Naval em águas transatlânticas,
em defesa da soberania do país; e) Interpretação simbólica: Valores: Patriotismo; Heroísmo (arrojo,
bravura, valentia); Dever significando “estar obrigado a consagrar-se à pátria”; Sacrifício como
“renúncia voluntária ou privação voluntária por razões morais ou práticas”; Honra; Dignidade;
35 MENSCH, Peter van. Apud FERREZ, Helena D. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In: IPHAN. Estudos
Museológicos. Rio de Janeiro. 1994. (Cadernos de Ensaios 2). p. 66.
36 Todas as medidas e demais indicadores da descrição física foram retirados da seguinte fonte
DIRETORIA DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E DOCUMENTAÇÃO DA MARINHA. (Brasil) Departamento de História Marítima
e Naval. Histórico de Navios. Disponível em: <http:// biblioteca. sdm.mar. mil.br/ internet/ navios/ documentos/bauru.doc >. Acesso
em: 13 jul.2011.
GT92893
Intenções: Glória da Marinha; Defesa da Soberania Nacional; Poder Naval; Tradição Naval.
3) História
a) Gênese: Indústria naval norte-americana do período que compreende o ano de 1942 até 1979
quando foi reclassificado como Navio Aviso Oceânico e sofreu alterações estruturais; b) Uso: navio
de guerra, contratorpedeiro de escolta - navio de escolta com sistema de detecção de submarino
e aparato bélico de ataque e destruição de submarinos; c) Reutilização: Navio Aviso Oceânico;
Navio-Museu .
O quadro abaixo é apenas um pequeno recorte ilustrativo tendo por base os quadros elaborados
pela pesquisa. Embora com poucos indicadores transcritos nesse artigo (o limite para número de
páginas não permitiu) é possível representar a análise comparativa feita entre o conteúdo temático da
exposição de 1982 e a nova proposta.
NOVA EXPOSIÇÃO
INDICADORES TEMÁTICOS
MENSCH
1 Propriedades Físicas
Equipamentos de Defesa
Propriedades Físicas
Comunicação
Propriedades Físicas Indicativo
Visual
de costado
2. Função e Significado/
/Interpretação
Valores e Correlatos
EXPOSIÇÃO 1982
LACUNAS INFORMACIONAIS
NOVA EXPOSIÇÃO/PROPOSTA
ESPECIFICAÇÕES DO TEMA
Não aborda o tema
-- sonar QCT Submarine Signal Co.;
-- radar SL-A Western Eletric Co. (para detecção de alvos de
superfície;
-- radar AS-2 RCA Manufacturing Co. (para detecção de alvos
aéreos)
Sala ambientada
Transmissores e receptores de rádio
Não aborda o tema
Códigos de fonia; códigos de sinalização
Não aborda o tema
Não aborda o tema
Interpretação
Tempo Histórico
Abordagem parcial (painel mapamúndi)
Interpretação
Estratégia de Guerra
Texto da exposição
Interpretação
Tática de Guerra
Não aborda o tema
Interpretação
Rotina de Guerra
Não aborda o tema
Interpretação
Elemento Humano
Não aborda o tema
GT92894
Significação
Tradições Marinheiras
Cronologia da 2ª Guerra Mundial
Garantia de tráfico marítimo na costa brasileira
“Nossa atitude era chamada de passiva porque tinha prioridade
à defesa do comboio e não a destruição do submarino” (Martins,
2009)
“Silêncio rádio”
“Navegação às escuras”
Comunicação cifrada
Comandante, oficiais e praças
Interpretação
Vida a bordo
3 -História
Gênese
Enfremaria – ambientação sem
informações
Saúde – ocorrências frequentes
Não aborda o tema
Fainas
Não aborda o tema
Cerimonial
Não aborda o tema
Condições de trabalho
Não aborda o tema
Alimentação e profissionais de “rancho”
Não aborda o tema
Adestramento
Não aborda o tema
Indumentária Militar
Tema abordado parcialmente no
prospecto
Contratorpedeiro de escolta, Engenharia Naval americana,
tecnologia do sonar
História
Uso
Tema abordado parcialmente no
prospecto
Navio de guerra, navio de escolta à comboios
História
Reutilização
Não aborda o tema
Navio Aviso Oceânico; Navio-Museu
A nova abordagem proposta para o ‘objeto musealizado’ Navio-Museu Bauru inclui além do
equipamento, o uso do espaço externo (abrigado do vento e chuva, com vista para a Baía de Guanabara)
para liberar compartimentos de exposição cujo tema exceda as informações sobre o próprio navio;
criar área de recepção para visitação; ‘dialogar’ com outros equipamentos navais no local ampliando
o entendimento sobre o Bauru; e diminuir o desconforto de leitura com o balanço do mar.
Cinco núcleos temáticos compõem o circuito expositivo: Acolhimento; Reconhecimento no
pátio; Imersão; Envolvimento; Exploração.
Todos os recursos auxiliares da exposição (painéis, legendas e outros) formam um conjunto
específico de informação com títulos e/ou imagens de fundo acerca dos núcleos, compartimentos,
instalações do equipamento e demais objetos de variadas tipologias. Textos claros e simples para
alcance dos vários segmentos de público.
Na observância do conforto visual para a fruição da leitura, textos programados para campo
visual compatível com um indivíduo de estatura mediana (padrão brasileiro). Textos e imagens fora
desse campo de visão em tamanho aumentado, com apuro na qualidade de reprodução e com fundo
que não prejudique a visualização.
Em síntese, a proposta núcleo a núcleo.
1. Acolhimento -- Informação: Familiarizando o visitante com o Navio-Museu Bauru. a)
Cronologia da 2ª Guerra Mundial (Mensch – Indicador 3. História) e história do conflito relatada
a partir da construção, função do navio e missão da Marinha (Indicador 2. Função e Significado/
Interpretação); b) o papel da Marinha (Indicador 2. Função e Significado/Interpretação - Estratégia
e Tática de Guerra); c) Tecnologia do Sonar (Indicador 3. História/Gênese); d) o Elemento humano
(Indicador 2. Função e Significado/Interpretação - Elemento Humano).
2. Reconhecimento (pátio do píer) -- Informação prestada aos visitantes por monitores GT92895
visita guiada: a) explanação sobre o Monumento Histórico Navio-Bauru, papel desempenhado pelo
navio, Objeto Musealizado, contratorpedeiro de escolta e da Marinha na 2ª Guerra; b) itinerário ao
longo do costado do navio - aspectos da belonave (Indicador 1. Propriedades Físicas), construção,
armamento (visíveis do atracadouro) e engenharia naval (Indicador 3. História/Gênese), o significado
do indicativo visual do casco (Indicador 1. Propriedades Físicas - Texto) e elementos da Tradição
Marinheira (Indicador 2. Função e Significado/Interpretação - Valores e Correlatos) exemplos:
referência ao nome Bauru, comunicação por bandeiras, bandeiras de comando, cerimonial/ritual das
cerimônias navais, demonstrações práticas - toques de apito e o linguajar específico; ainda visualização
da forma de atracação e alguns petrechos náuticos relacionados (Indicador 2. Função e Significado/
Interpretação - Vida a bordo). Também nesse núcleo é transmitida a informação Procedimento de
Visita a Bordo do Navio atendendo às normas de segurança pessoal.
3. Imersão – Informação: a) Convite ao Embarque; b) Fardado ao modo da Tripulação (escolha
de uniformes dispostos no convés de popa para uso do visitante, caso queira); c) Conhecendo um
Navio Remanescente da 2ª Guerra Mundial (Indicador 2. Função e Significado/Interpretação - Vida
abordo e Elemento Humano): peculiaridades de um navio guerra: dificuldade de acesso, o balanço do
mar, o cheiro de óleo combustível, as portas estanques, o calor irradiado da estrutura de aço do navio
(Indicador 1. Propriedades Físicas).
4. Envolvimento -- Informação Ambiente do Navio em Tempo de Guerra: Recriando Alguns
Aspectos. A etapa da visitação é o acesso ao nível do 2º convés (escada) e, a partir daí, em todos os
compartimentos estará ativo o som característico do sonar; também a condição ‘navegação às escuras’
será recriada (Indicador 1. Propriedades Físicas e Indicador 2. Função e Significado/Interpretação
- Rotina de Guerra).
Vídeos (depoimentos) dos militares marinheiros veteranos da guerra estarão disponíveis no
primeiro compartimento (Indicador 2. Função e Significado/Interpretação em todas as subdivisões).
Finalizando a visita ao compartimento o visitante se informa sobre a 2ª Guerra Mundial: painel
eletrônico37 interativo com o mapa-múndi programado para indicar a localização geográfica de
quarenta informações sobre o conflito (Indicador 3. História - Tempo Histórico).
No compartimento contíguo, informação: a) Estratégia de Defesa de Navios Mercantes
comunicada via textos, imagens, maquete com navios de guerra e mercante dispostos em comboios
(Indicador 2. Função e Significado/Interpretação - Estratégia de Guerra); b) Tecnologia do Sonar
(Indicador 1. Propriedades Físicas); c) Vida a Bordo -- apresentação de atores caracterizados
interpretando uma situação de detecção e de ataque a submarinos inimigos (Indicador 2. Função e
Significado/Interpretação - Rotina de Guerra).
Esclarece-se que os compartimentos descaracterizados desde 1982 serão mantidos como
referência ao que ocorreu (Teoria do Restauro - Cesari Brandi).
37 Esse painel é originário da exposição de 1982, atualmente está desativado necessitando de restauração e substituição de
componentes eletrônicos.
GT92896
5. Exploração -- Informação É Permitido Tocar. Nesse núcleo ao final da visita, o CTE Bauru
agrega o valor de objeto penetrável do mundo das Artes ao modo de Instalação 38 e permite, também,
o toque, em contraposição ao objeto intocável que é exibido no Museu. (Indicador 1. Propriedades
Físicas).
O visitante poderá percorrer livremente os compartimentos acessíveis com acompanhamento
de militares treinados para atendimento ao público a fim de manusear os armamentos e outros
equipamentos do navio.
Nesse núcleo da visita do circuito expositivo serão mantidos os compartimentos com as
ambientações originárias da exposição de 1982, mas serão acrescidas informações textuais.
5. NAVIO MUSEU-BAURU: NOVA FACE DOCUMENTADA POR OUTRO OLHAR
O Navio-Museu Bauru por ocasião da sua inauguração -- abertura ao público e exposição de
1982; conforme se relatou ao longo do presente artigo, recebeu um enfoque cuja prevalência foi dada
à concepção de ressaltar um espaço expositivo de coleções de objetos genericamente relacionados à
Marinha, deixando eclipsados objetos, documentos, ‘momentos’ e ‘vivências’ integrantes da trajetória
do navio, da sua criação até sua transformação em Museu.
Deste modo, ficou em segundo plano seu contexto de configurar um Patrimônio, atributo de
simbolização de um Bem Cultural conferido pela sua trajetória de navio de guerra que, dotado de
tecnologia de ponta para a sua época, exerceu atividades de defesa das águas brasileiras durante a 2ª
Guerra Mundial.
E por representar o único remanescente deste tipo de embarcação com tal história na Marinha
brasileira que o país possui, seu valor como Patrimônio Naval do conjunto patrimonial que existe no
Brasil é inegável.
No entanto ficaram esquecidos, no período da vida ativa do navio, aqueles que operavam e
emprestavam vida ao equipamento bélico evitando, no cenário da proteção à navegação comercial e
patrulhamento, que houvesse além de perdas econômicas, perdas humanas.
E também, posteriormente, não foram lembrados os outros atores e os processos que formularam
uma perspectiva para a não destruição do Navio Bauru, obtendo condições para sua preservação e
orientando à sua Musealização, tendo como intuito não apagar os conteúdos de memória coletiva que
podem ser reconhecidos como ‘inscritos’ no equipamento naval, passíveis de adequada ‘reconstrução’
por meio da interpretação de fontes existentes que, até o momento da pesquisa que se realizou, não
estavam publicamente divulgadas (coleção privada), embora outras estivessem disponíveis em
38 INSTALAÇÃO - modalidade de produção artística que lança a obra no espaço, com o auxílio de materiais muito variados, na
tentativa de construir um certo ambiente ou cena, cujo movimento está dado pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista e
o corpo do observador. Para a apreensão da obra é preciso percorrê-la, passar entre suas dobras e aberturas, ou simplesmente caminhar
pelas veredas e trilhas que ela constrói por meio da disposição das peças, cores e objetos.
ITAÚ CULTURAL. Enciclopédias. Artes Visuais. Termos e Conceitos. Disponível em: <http://www. itaucultural.org.br/aplicexternas/
enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3648&lst_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=8 >. Acesso
em: 29 jul. 2011.
GT92897
arquivo institucional.
E nessa condição o Monumento Bauru, na história da nova função que lhe emprestada desde
1982, foi interpretado e avaliado somente sob o prisma de um receptáculo de exposição.
Não teve por foco sua identificação como documento representativo de uma situação e
condição histórica peculiares e como partícipe do fato que compartilhou junto às forças Aliadas no
conflito mundial contra o Eixo.
Por fim, foi a situação apresentada pelo Navio-Museu Bauru e detectada em uma visita
pelo olhar profissional da Museologia levou a propor uma leitura que o analisasse como um objeto
musealizado e integrante do conjunto do patrimônio histórico-cultural da Marinha, reunido no Espaço
Cultural da Marinha, em plena Baia de Guanabara, no Rio de Janeiro.
E, assim, que pudesse comunicar ao visitante as informações que envolvem um objeto
simbólico deste calibre sob a forma de valores que a dimensão cultural empresta: significando um
testemunho ou prova; representando um espaço fortemente simbolizado, o lugar de rememoração; e
ainda em vista disto, permitindo usufruir o Bauru como um espaço informacional e comunicacional
pertinente à caracterização oriunda da Musealização.
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Conservação de navio como monumento histórico – AvOc Bauru.Transunto. Rio de Janeiro,1976.2
fl. Estanislau Façanha Sobrinho, Vice-Almitante (Coleção Vice-Almirante Façanha Sobrinho).
MARINHA DO BRASIL. Memorando nº 87 de 17 de setembro de 1981. Determina o aproveitamento
do AvOc “Bauru” como museu flutuante.[Atos do Ministro] Brasília. DF, 1981. (Coleção ViceAlmirante Façanha Sobrinho).
PRIMEIRO DISTRITO NAVAL. (Brasil) Despacho. nº. 811 de 21 de julho de 1976. Sobre a
conservação do navio como monumento histórico – AvOc “Bauru”.Transunto. Rio de Janeiro,
1976. 1f. Maximiano Eduardo da Silva Fonseca, Vice-Almirante. (Coleção Vice-Almirante Façanha
Sobrinho).
SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO GERAL DA MARINHA (Brasil). Despacho nº 33 de 2 de
julho de 1976. Conservação de navio como monumento histórico – AvOc Bauru. Transunto. Rio
de Janeiro, 1976.1 fl. Paulo Guilherme Brandão Padilha, Contra-Almirante. (Coleção Vice-Alte.
Façanha Sobrinho).
Entrevistas realizadas
MARTINS, Hélio Leôncio. Vivência como oficial da Marinha do Brasil durante a 2ª Guerra
Mundial e o Navio-Museu Bauru. Rio de Janeiro, 2005. Entrevista do Vice-Almirante Hélio Leôncio
Martins. Revisada com o autor em 07 de dezembro de 2009.
FAÇANHA SOBRINHO, Estanislau. Depoimento sobre as razões que justificaram a atribuição
de Monumento Histórico ao navio Bauru. Rio de Janeiro, 2010. Entrevista do Vice-Almirante
Estanislau Façanha Sobrinho. Rio de Janeiro. 29 de junho de 2010.
GUEDES, Max Justo. Depoimento sobre a transformação do navio Bauru em museu e sobre
a elaboração e montagem da exposição em 1982. Rio de Janeiro, 2010. Entrevista do ContraAlmirante Max Justo Guedes. Rio de Janeiro em 17 de junho de 2010.
BITTENCOURT, Armando de Senna. Depoimento sobre a restauração sofrida pelo Navio-Museu
Bauru, entre 2007-2010, e a exposição em suas dependências. Rio de Janeiro, 2010. Entrevista do
Vice-Almirante Armando Senna Rio de Janeiro. 05 de maio de 2010.
GT92900
COMUNICAÇÃO ORAL
MUSEU: NOVOS ASPECTOS INFORMACIONAIS,
COMUNICACIONAIS E GERENCIAIS
Rosane Maria Rocha de Carvalho
Resumo:
O artigo resulta de reflexões acerca da pesquisa Marketing e Relações Públicas em Museus
Norte-Americanos. Na estrutura organizacional daqueles museus a atividade chamada Development
engloba os setores de associação de amigos voltadas para indivíduos e para empresas, eventos especiais,
relações públicas e publicidade, publicações, livrarias, lojas, design de produtos e restaurantes. Esta
atividade tem como objetivo primordial captar recursos para custear as atividades próprias de um museu
– aquisição de obras, preservação do acervo, pesquisa e exposições – e aumentar a sua comunicação
com os diferentes segmentos de público, também do ponto de vista social, tornando-os mais inclusivos.
Aborda também a necessidade dos museus desenvolverem comunicação integrada de marketing e uma
articulação interna para maximizar a comunicação de suas mensagens.
Na metodologia usou-se o Benchmarking para verificar como funcionam estes setores na estrutura
interna de diversos museus. Obteve-se como resultado um modelo de gestão de museus, apoiado
nas ferramentas de Marketing e Comunicação, desenvolvido nos Estados Unidos, deflagrador desta
estratégia promocional voltada para o desenvolvimento de público e o financiamento de suas atividades
principais. Verificou-se que tanto os museus públicos, que recebem aportes financeiros governamentais,
como aqueles totalmente privados buscam sua autonomia financeira através de uma equação gerencial
que otimiza a contribuição e a adesão do público visitante e das empresas.
Palavras-chave: Marketing e Comunicação em Museus; Financiamento e Gestão de Museus;
Comunicação Integrada de Marketing; Museu e Público.
Abstract:
The article is the result of reflections on the research “Marketing and Public Relations in North
American Museums”. In the organizational structure of these museums the Development activity
includes the sectors of membership, corporate membership, special events, public relations and
advertising, publications, bookstores, shops, restaurants and product design. This activity aims to raise
vital funds to finance the operations related to a museum - acquisition of art works, collection preservation,
research and exhibitions - and to increase communication with different audience segments, also on the
social point of view, making it more inclusive. It also addresses the need for museums to develop integrated
marketing communication and internal coordination to maximize the communication of their messages.
The methodology used the Benchmarking in order to verify how these sectors performed
in the internal structure of several museums. It was obtained as a result this model of museum
management, supported by marketing and communication tools, developed in the United States,
triggering this promotional strategy addressed to audience development and to finance its main
activities. It was found that both the public museums, which receive government financial
contributions, such as those fully private are seeking their financial autonomy by a management
equation that optimizes the contribution and public support brought by visitors and enterprises.
Keywords: Museum Marketing and Communication; Museum Management and Financing;
Integrated Marketing Communications; Museum and Visitors.
GT92901
1. INTRODUÇÃO
Este artigo dá sequência aos temas abordados no artigo apresentado no XI ENANCIB,
realizado em 2010, e intitulado Museus: novos aspectos informacionais e comunicacionais. Nele foram
apresentados aspectos da pesquisa Marketing e Relações Públicas em Museus Norte-Americanos1,
desenvolvida a partir de especialização realizada in loco em museus norte-americanos em 19942 e em
2006, numa atividade de Benchmarking onde se procurou identificar e comparar os fatores de sucesso
em diversos museus, além de analisar seu desempenho de forma comparativa e sistemática. Para
Bogan3 “Benchmarking é simplesmente o método sistemático de procurar os melhores processos, as
idéias inovadoras e os procedimentos de operação mais eficazes que conduzam a um desempenho
superior”. Para tanto foram analisadas práticas de diferentes museus em São Francisco, Washington
D.C. e Nova York4, que serão relatadas neste artigo, a fim de que contribuam para desempenho
superior nesta área de museus.
Como fruto desta pesquisa foi identificado um modelo de gestão para museus, voltado para o
desenvolvimento de público e de financiamento de suas atividades principais. Verificou-se que tanto os
museus públicos, que recebem aportes financeiros governamentais, como aqueles totalmente privados
buscam sua autonomia financeira através de uma equação gerencial que otimiza a contribuição e a
adesão do público visitante e das empresas.
O modelo de gestão aqui apresentado foi desenvolvido ao longo do século XX nos Estados
Unidos, devido, entre outras causas, a três principais fatores: as Relações Públicas surgiram naquele
país a partir de 1883 e se consolidaram, sistematizadas por Ivy Lee, em 19065. As sociedades urbanoindustriais daquele período favoreceram não apenas a criação de Relações Públicas como o surgimento
do Marketing, que estabeleceu-se como disciplina entre 1900 e 1910. Segundo Robert Bartels6, foi
nesta fase que o tema passou a fazer parte dos currículos universitários. O autor registra os primeiros
cursos de Marketing sendo ministrados nas universidades de Pensilvânia (como Products Marketing)
(1905), Pittsburgh (1909) e Wisconsin (1910).
1 O presente artigo resulta de reflexões para aulas ministradas no curso de atualização “Marketing Cultural – Teoria e Prática” no
Centro de Produção da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - CEPUERJ sobre atividades de marketing em museus e no curso
“Comunicação em Museus e sua relação com o público” no Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio - PPG-PMUS
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO em 2008. Estas últimas fizeram parte da disciplina Seminários de
Pesquisa em Museu e Museologia.
2
Desta pesquisa resultou uma especialização em Marketing e Relações Públicas certificada pela CAPES e um relatório.
CARVALHO, Rosane M. R. Marketing e Relações Públicas em Museus Norte-Americanos. - Programa de Preservação e Difusão
de Bens Culturais - CAPES/Fulbright. Rio de Janeiro, 1995.
3 BOGAN, Christopher E. e ENGLISH, Michael J. Benchmarking - Aplicações e Práticas. São Paulo, Makron Books, 1996.
4 A análise foi desenvolvida em 1995 nas seguintes instituições: - The Fine Arts Museums of San Francisco - Department of
Audience Development (Marketing e pesquisas de público); - Smithsonian Institution, Washington D.C.- Office of Public Affairs
(Relações Públicas, Publicidade, relações com a imprensa e publicações), Department of Institutional Advancement (Marketing
Institucional, captação de recursos, Associação de Amigos); Office of Institutional Studies (pesquisas de público); The Museum
of Modern Art, MoMA, Nova York - Department of Special Events; - National Museum of The American Indian, Nova York Department of Public Affairs and Special Events (Relações Públicas, Imprensa e eventos especiais).
5 WEY, Hebe. O processo de Relações Públicas. São Paulo, Summus, 1983. 166 p.
6 BARTELS, Robert. The history of Marketing thought. Columbus, Ohio: Publishing Horizons, 1988
GT92902
Tanto a Comunicação Social, da qual Relações Públicas fazem parte, como o Marketing
utilizam veículos de comunicação, que são os meios de veiculação das ferramentas de comunicação
e se subdividem em uma infinidade de canais que podem ser a mídia eletrônica, impressa, extensiva,
alternativa, Internet, entre outras. Estes veículos são instrumentos importantes para a geração,
difusão e divulgação da informação. As principais ferramentas utilizadas pelos comunicadores são:
Marketing, Publicidade e Propaganda, Merchandising, Promoção, Eventos, Pesquisas, Relações
Públicas e Assessoria de Imprensa.7
Para diferenciar estes campos, convém conceituá-los. Em sua essência, como diz Kotler8, “o
Marketing significa a execução das atividades de negócio que gerenciam a circulação das mercadorias
ou serviços do fabricante aos consumidores, enquanto a publicidade é uma ferramenta que utiliza os
meios de comunicação para tornar conhecido, aos compradores, certo produto ou serviço com fins
comerciais”. “O Marketing está preocupado com a idéia de satisfazer as necessidades do cliente por
meio do produto e de todo um conjunto de coisas associadas à sua criação, entrega e consumo final”9.
Margarida Kunsch10, em vez de Comunicação Social prefere o termo Comunicação
Organizacional, que abrange todas as atividades comunicacionais, de maior amplitude, aplicandose a qualquer tipo de organização pública, privada, sem fins lucrativos, ONGs, fundações etc.
não se restringindo ao âmbito do que se denomina empresa. Já as Relações Públicas, segundo a
autora, têm como função essencial administrar e gerenciar, nas organizações, a comunicação com
os diferentes públicos, com vistas à construção de uma identidade corporativa e de um conceito
institucional positivo junto à opinião pública e à sociedade em geral. As relações públicas lidam
com comportamentos, atitudes, conflitos e com a escolha de técnicas e instrumentos adequados de
comunicação para encontrar saídas estratégicas institucionalmente positivas. Ou seja, trabalham com
questões que dizem respeito á visibilidade interna e externa, bem como à construção da identidade
corporativa das organizações.
Para Kunsch, toda a comunicação gerada numa organização deve ser entendida com uma
filosofia de uma comunicação integrada e, esta filosofia, é parte integrante do composto de marketing
de uma organização. O marketing trata da execução de atividades de negócio e para isto engloba desde
o entendimento do consumidor, o produto num sentido amplo de solução (material ou imaterial), o
preço ou medida de troca, a logística de circulação/entrega e a comunicação dessa organização como
um todo.
O terceiro fator a promover este modelo de gestão foi a promulgação em 1910 da lei americana
7 KOTLER, P.; KELLER, K.L. Administração de marketing. 12. Ed.. São Paulo: Pearson-Prentice Hall, 2006.
8 KOTLER, Philip.Princípios de Marketing. 5.ed. Rio de Janeiro: Prentice-Hall do Brasil, 1991. p. 2
9 LEVITT, Theodore. Marketing Myopia. Harvard Business Review, 38, 4: 45-56. 1960. p.8.
10 Margarida M. Krohlng Kunsch, Relações Públicas, mestre, Doutora em Ciências da Comunicação e Livre-docente pela Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo é referência obrigatória em assuntos de Relações Públicas e pioneira nos estudos
de Comunicação Organizacional no Brasil. KUNSCH, Margarida Relações Públicas e Modernidade: Novos paradigmas para a
comunicação organizacional. São Paulo, Summus, 1997. 156 p. p.7.
GT92903
de incentivo à cultura, que permitiu aos cidadãos e às empresas contribuírem financeiramente para as
atividades culturais, tendo como estímulo deduções do imposto de renda.
Estas ferramentas ou técnicas ou estratégias de Marketing começaram a ser aplicadas aos
Museus, inicialmente nos Estados Unidos, nos anos 40 e 50, e com o impulso da lei de incentivo à
cultura, na busca de novos recursos que complementassem seus orçamentos. Nos EUA aumentou
a participação da sociedade no financiamento dos museus, indivíduos e empresas deixando em
testamento recursos patrimoniais, fazendo diversos tipos de doações, inclusive de obras de arte para
as instituições culturais.
Desde então os museus norte-americanos começaram a captar mais verbas para suas operações
como também começaram a incorporar na sua gestão as atividades de Relações Públicas e Marketing,
que se destinavam a informar o público sobre suas obras de arte, suas coleções históricas, científicas,
arqueológicas, assim como sobre as exposições e atividades educativas. Esta entrada de recursos
financeiros permitiu aos museus preservar e restaurar seus acervos, adquirir novas coleções de objetos
museológicos, adquirir documentação relevante para estudo do acervo, permitindo a contextualização
dos objetos, comprar acervo de bibliográfico possibilitando aprofundar as pesquisas relacionadas às
suas coleções, aumentando as relações históricas e estéticas entre as obras de suas coleções. Estes
recursos reverteram para a essência dos museus, se constituindo num processo de retroalimentação
do museu. É importante salientar que o modelo de gestão de museus observado tem como objetivo
primordial custear as atividades próprias de um museu – seu acervo, a preservação, as exposições –
e aumentar a sua comunicação com os diferentes segmentos de público, inclusive do ponto de vista
social, tornando-os mais inclusivos. Estes novos recursos financiaram a ida de grupos provenientes
de extratos sociais que não tinham o hábito da visita a museus, pagando seu transporte, seu lanche,
criando um atendimento voltado para tipos de público anteriormente não atendidos. Os museus deram
uma função social ao uso destes recursos ao investi-los também no desenvolvimento do hábito de
visita destes segmentos de público a museus.
Retomando o artigo de 2010 os aspectos nele desenvolvidos enfocaram 5 ferramentas de
Marketing que contribuem para a comunicação integrada de marketing nos museus: as estratégias
de captação de recursos, as novas fontes de recursos, as pesquisas de público, o desenvolvimento
de público e o novo conceito de marketing, o de desenvolvimento (development). Destacou-se que
a estrutura dos museus norte-americanos se configura de forma a direcionar todas as áreas para o
desenvolvimento de público e a captação de recursos, de forma integrada.11
Na comunicação integrada de marketing, a comunicação é tratada como processo integrado
que inclui todos os canais para transferir uma mensagem de um emissor para um receptor. Numa
campanha de comunicação de marketing para um museu, o profissional assume o ponto de vista do
consumidor, neste caso o visitante, pesquisa quais canais este público alvo está exposto ou prefere,
11 CARVALHO, Rosane Maria Rocha de. Museus: novos aspectos informacionais e comunicacionais. Comunicação oral
apresentada no XI ENANCIB - Tema: Inovação e inclusão social: questões contemporâneas da informação - GT 9: Museu, Patrimônio
e Informação. Rio de Janeiro, ANCIB, 2010. 17 p. Acessível em: http://congresso.ibict.br/index.php/enancib/xienancib/search/
GT92904
e lhe direciona mensagens consistentes, por canais mais personalizados, fazendo com que o receptor
seja mais sensibilizado.12
A comunicação integrada de marketing é o desenvolvimento da comunicação estratégica
organizacional junto ao mercado, promovendo, posicionando e divulgando produtos, serviços,
marcas, benefícios e soluções.13
Tem como base, como estratégia, um sistema gerencial integrado, utilizando como ferramentas
o composto de comunicação - propaganda, publicidade, assessoria de imprensa, promoção de vendas,
patrocínios, venda pessoal, internet, marketing direto, eventos culturais e relações públicas. Busca
atingir, com a utilização holística de todos os elementos deste composto, uma comunicação eficaz por
parte do emissor junto ao seu consumidor-alvo.
Na estrutura organizacional dos museus norte-americanos, que configura um modelo de gestão,
mostrou-se que a importante atividade chamada Development engloba os setores de: associação de
amigos voltada para indivíduos, associação de amigos voltada para empresas, eventos especiais,
relações públicas e publicidade, publicações, livrarias, lojas, design de produtos e restaurantes. No
presente artigo vamos apresentar como funcionam estes setores na estrutura interna destes museus.
Apesar de muitas reflexões e práticas apresentadas a seguir pertencerem a três campos distintos
da Museologia e da Ciência da Informação, como a Comunicação, o Marketing e a Administração, a
interface com estes campos e as contribuições para o desenvolvimento de ações comunicacionais e
informacionais no ambiente dos museus em sua relação com a sociedade parecem evidentes.
Ao desenvolver uma análise das relações entre o Museu (fenômeno cultural), o Patrimônio
(valor simbólico) e a Informação (processo), sob múltiplas perspectivas teóricas e práticas de análise
serão enfatizadas as práticas voltadas para a gestão de museus com novas abordagens de aspectos
informacionais e comunicacionais.
A multiplicidade das abordagens conceituais demonstra a dificuldade de se utilizar um
conceito único para definir museu e sua complexidade, abarcar toda a riqueza de funções e processos
que realiza. Para Kerriou14, o museu é meio de educação e comunicação, enquanto para Lumbreras é
meio de comunicação de massa, que articula a mensagem de forma organizada15.
Embora novos enfoques quanto à atuação e ao papel do museu estejam em discussão, estes
conceitos aqui apresentados são amplamente aceitos, assim como os componentes das “atividades
12 No artigo “Museus e Comunicação: A necessidade de implementar estratégias”, Paal Mork apresenta o conceito de comunicação,
no sentido de Comunicação Social, e de comunicação de marketing integrada, para fazer face aos desafios de demanda de informação
da sociedade de informação atual. Mork, Paal. Relatório da Conferência ICOM-MPR 2008 em Paraty. Oslo, ICOM MPR, 2009. 38 p.
p.23-24.
13 SANTIAGO, Marcelo Piragibe. Comunicação Integrada de Marketing. In: Marketing Empresarial. Coleção Gestão Empresarial.
Acessível em: http://www.fae.edu/publicacoes/pdf/mkt/3.pdf. Consulta em 6/9/2011.
14 KERRIOU, Miriam Arroyo de. Museu, Patrimônio e Cultura: reflexões sobre a experiência mexicana. In: CHAUÍ, Marilena. O
Direito à Memória - Patrimônio, História e Cidadania. São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio
Histórico, 1992. 183 p.
15 LUMBRERAS SALCEDO, Luiz Guillermo. Museu, Cultura e Ideologia. In: CHAUÍ, Marilena. O Direito à Memória Patrimônio, História e Cidadania. São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio Histórico, 1992.
GT92905
museológicas básicas”, citando Peter Van Mensch16, constituídos por: preservação (que inclui
a coleção, conservação, restauração e documentação), comunicação (abrangendo a exposição e a
educação)...e investigação [correspondendo à pesquisa]. “A comunicação compreende todos os
métodos possíveis para transferir a informação a uma audiência: publicações, exposições e atividades
educativas adicionais”.
Outros autores reforçam esta idéia do museu como sistema. Duncan Cameron17, museólogo
canadense, conhecido por trabalhar na luta pela democratização das instituições culturais, e Knez,
nos anos 60 e 70, desenvolveram o conceito de que os museus funcionam como um sistema de
comunicação, no qual o acervo seria a fonte, as exposições seriam o meio e o público o receptor.
Neste sistema - no qual a comunicação flui em uma única direção - não existiria feedback 18. Assim
as pesquisas de público deveriam funcionar como um canal de retorno destinado a “oxigenar” este
processo. Cameron e Knez se inspiraram na teoria da informação de Shannon e Weaver e a adaptaram
para a Museologia.
Shannon e Weaver 19, autores da teoria matemática da comunicação ou teoria da informação,
afirmam que um sistema de comunicação é constituído de fonte de informação, mensagem, transmissor,
sinal, sinal recebido, receptor, destinatário e, entre o sinal emitido e o recebido, pode interferir a fonte
de ruídos. Na teoria da informação são trabalhados os conceitos de “quantidade de informação” e
“redução da incerteza”, além dos conceitos de entropia, ruído e redundância. É importante fazer
uma ressalva: os autores, ao elaborar a sua teoria trabalham com as questões técnicas, e não com as
semânticas, enquanto na Ciência da Informação importa o significado.
Uma questão importante num sistema de comunicação e informação é o conceito de relevância.
Para Tefko Saracevic 20, importante autor da Ciência da Informação, “podemos considerar relevância
como uma medida da efetividade do contato entre um fonte e seu destinatário num processo de
comunicação”. A relevância “é a medida das mudanças no receptor, e traduz ainda a utilidade da
informação, a sua expansão.”
O museu, portanto, pode ser estudado como um sistema de comunicação e informação,
utilizando-se de dois eixos: uma abordagem museológica e outra da Ciência da Informação. Neste
sistema o museu (emissor) apresenta o seu acervo (informação) que é transmitido ao público(receptor)
através da exposição (meio/processo de comunicação) onde articula mensagens (através do acervo,
16 MENSCH, Peter Van. Modelos conceituais de museus e sua relação com o patrimônio natural e cultural. 1a. Reunião Anual do
ICOFOM/LAM. Transcrição. Boletim ICOFOM/LAM. Editado pelo grupo regional do Icofom para a América Latina e o Caribe. Ano
II, n.4/5, Agosto 1992, p.IX e X..
17 CAMERON, Duncan. The museum as a communication system and implication of museum education. Curator. New York,
American Museum of Natural History, 11(1):33-40.1968.p. 35
18 KNEZ, Eugene, WRIGHT, Gilbert. The museum as a communication system: an assessment of Cameron’s viewpoint. Curator.
New York, American Museum of Natural History. 13(3): 204-212. 1970.
19 SHANNON, Claude, WEAVER, Warren. A teoria matemática da comunicação. São Paulo: Difel, 1949. 136p. p.9 e 19..
20 SARACEVIC, Tefko. Relevance: a review of and a framework for the thinking on the notion in Information Science. Journal of
the American Society for Information Science. Nov-dec. 1975. P. 321-342. p. 322
GT92906
painéis, legendas, textos, cores, sons e outros meios).
Neste artigo pretende-se discutir outros aspectos da comunicação, que envolvem as ferramentas
de comunicação e marketing, além de um modelo de gestão de museus, que auxiliam a atrair um
público maior e mais diversificado para adentrar e visitar os museus. Só neste momento torna-se um
visitante que poderá usufruir deste processo de comunicação citado anteriormente, desta experiência
única: a visita ao museu..
A seguir mostra-se como os museus se organizam internamente na sua administração.
2. ESTRUTURADOS MUSEUS VOLTADAPARAO DESENVOLVIMENTO (DEVELOPMENT)
Conforme mencionado anteriormente, para a articulação das receitas os museus norteamericanos, que trazemos como exemplo, se estruturam de forma a direcionar todas as áreas internas
para o desenvolvimento de público e a captação de recursos com os quais vão financiar suas atividades
essenciais – o acervo, a preservação, a pesquisa e a comunicação com o público através das exposições,
atividades educativas adicionais, publicações e outros recursos.
. Em quase todas as estruturas internas de museus, além dos setores de museologia, há:
- o conselho de mantenedores (Board de Trustees), que doa dinheiro e capta recursos
- o Diretor Geral, que é o grande coordenador de todas as atividades de um museu e
também um captador de recursos
- uma grande área de Marketing atualmente denominada Desenvolvimento (Development),
que engloba os setores de: Eventos Especiais, Associação de Amigos para indivíduos (Membership)
e Associação de amigos para empresas (Corporate Membership).
Além destas áreas, Development coordena também os departamentos de Publicações; Livrarias,
Lojas de design e produtos culturais; Restaurantes e cafés; e Quiosques externos.
Estas estruturas contam com três Assessorias diretamente ligadas ao Diretor Geral: a de
Desenvolvimento de Público21, a de Relações Públicas com a Imprensa e a de Eventos Especiais, estas
duas últimas serão abordardadas a seguir. A área de eventos especiais é uma das fontes importantes na
captação de recursos para a formação das receitas orçamentárias de um museu americano.
3. EVENTOS ESPECIAIS
Os eventos especiais são uma tradição nos museus dos Estados Unidos e fazem parte de sua
estrutura interna constituindo um dos mecanismos importantes de captação de recursos. Apesar de sua
aparente externalidade, não tem relação com a frivolidade, mas com os eventos corporativos e com
os eventos de fund raising, usuais na sociedade americana, onde existe o hábito dos indivíduos se
associarem a causas de beneficentes, como veremos nos exemplos a seguir.
3.1 Eventos Especiais nos museus norte-americanos
No Fine Arts Museums de San Francisco - FAMSF a área de Eventos Especiais é encarregada
21 O tema Desenvolvimento de Público foi apresentado no artigo para o ENANCIB de 2010.
GT92907
da organização das festas para as empresas, da abertura prévia das exposições para os associados
dos museus, da pré-estréia de filmes e de demais eventos fora do calendário regular de atividades da
Instituição.
Elabora um material promocional de qualidade gráfica para ser enviado a empresas e
instituições, oferecendo os espaços dos museus do FAMSF para estes eventos. Um material digital
semelhante é disponibilizado no site do FAMSF assim como enviado por e-mail para as corporações.
Além disto, responsabiliza-se pelo levantamento de preços e pelo estabelecimento de
orientações para a realização dos eventos de forma a garantir a segurança das coleções e do patrimônio
dos museus nestas ocasiões.
No National Museum of the American History, NMAH, (Museu de História Americana) do
Smithsonian Institution, em Washington, os responsáveis pelo setor de Eventos Especiais organizam
todos os tipos de festas, sempre captando recursos, inclusive para custear seus próprios salários, já
que não fazem parte da equipe permanente do museu. Recebem de 800 a 900 telefonemas por ano de
pessoas tentando agendar seus eventos neste museu. Quando não é possível atender, sugerem outros
espaços em museus da rede de museus do Smithsonian.
Declaram que há uma grande competição entre os museus em geral, já que os eventos especiais
são um grande negócio. Para debater e elaborar uma política geral para os eventos no Smithsonian e
seus museus foi instituído um comitê, que se reuniu por um ano, e definiu normas, tais como: festas
de casamento não são permitidos assim como as de promoção política ou de captação de recursos para
empresas que não o Smithsonian. No NMAH há diretrizes claras para eventos, inclusive são indicados
os modelos de convites para diversos tipos de eventos, que são confeccionados com cuidado, seguindo
as normas de etiqueta e protocolo e aplicadas pelo museus.
No Museum of Modern Art, MoMA, em Nova York o Departamento de Eventos Especiais
encarrega-se da organização de todos os eventos especiais realizados no museu, da administração das
cafeterias e do restaurante, ali estabelecidos.
O Departamento agenda os espaços e distribui o calendário de operações de eventos para cada
área envolvida no Museu. Organiza os eventos, administra uma da adega, que faz com que o MoMA
poupe recursos significativos com a manutenção de um estoque de bebidas a serem utilizadas nos
eventos realizados no museu. Éé responsável pelo buffet de todos os eventos promovidos no e pelo
MoMA, administra todos os serviços de cozinha, incluindo os da cafeteria e do restaurante.
O Departamento estabeleceu regras bem definidas para o planejamento, organização e
realização dos eventos, expostas no folheto “Guidelines for Corporate Entertaining at The Museum
of Modern Art”. Todos os interessados em realizar eventos no MoMA tomam conhecimento destas
regras e assinam um contrato prévio comprometendo-se a observá-las integralmente.
Para atrair as empresas, o Departamento de Eventos Especiais criou um folheto específico
distribuído duas vezes por ano, intitulado “Facilities for Corporate Entertaining at MoMA”,
além de divulgá-lo no site do museu com a mesma finalidade.
GT92908
O Departamento de Eventos Especiais é um grande captador de recursos para o MoMA. Dados
de 1995 apontam que uma festa beneficente, por exemplo, trouxe ao museu um retorno líquido de
cerca de U$750.000. Um jantar promovido pelo Departamento de Arquitetura e Design proporcionou
um retorno líquido de U$500.000 mais U$56.000 de ingressos vendidos para uma festa jovem após
o jantar, por U$100 por pessoa.
As pré-estréias de filmes promovidos pelo Departamento também constituem eventos que
proporcionam excelente retorno, como por exemplo, o evento “Uma noite com Clint Eastwood”.
Todo o lucro obtido com as festas beneficentes retorna ao departamento responsável por
sua promoção, seja a curadoria de artes pláticas, de preservação, o Departamento de Design ou a
cinemateca. Do total líquido obtido com a realização de eventos patrocinados, 25% é destinado à
administração do Museu.
No Metropolitan Museum of Art o setor de Eventos Especiais, responsável pelo planejamento
e organização dos eventos realizados apenas em espaços do Museu, cobra aluguel mínimo fica em
torno de U$ 100.000 (valores de 2010).
Este setor cuida do bufett (incluindo bebidas), da segurança, do aluguel de equipamentos, da
música e sonorização dos ambientes, planejando cerca de três eventos beneficentes ou com fins lucrativos
por ano, como jantares pagos (U$8.500 por pessoa ou U$50.000 por mesa), que ao final transformam-se
em festas dançantes, organizadas por um comitê de jovens e que já chegaram a reunir 10.000 pessoas
pagando entre U$ 100 e U$125 pelo ingresso. No inverno, este evento é chamado de Costume Institute
Ball e na primavera, geralmente em abril, de Spring Dance.
Este Departamento é responsável, em conjunto com o Departamento de Desenvolvimento,
pela organização de inaugurações e vernissages de exposições sem fins lucrativos, promovidas pelo
Departamento de Curadores, preparando e expedindo convites para associados e doadores. E cuida,
ainda, de toda a organização necessária às coletivas de imprensa, que reúnem jornalistas de todos os
veículos de comunicação nacionais e estrangeiros para anunciar novas exposições e que geram uma
cobertura na mídia, de magnitude global, que se replica em outros veículos, gerando novas matérias na
imprensa.
O Departamento de Desenvolvimento é o responsável pelo marketing dirigido às corporações
e aos associados potenciais, aos quais envia um folheto com fotos dos espaços disponíveis no Museu
para festas e jantares. O Departamento de Eventos fornece um contrato onde são especificadas as
condições para a realização destes eventos.
Os diversos departamentos de eventos especiais tem normas próprias, tabelas de preços e
kits de divulgação de seus espaços bem elaborados dirigidos especialmente às grandes corporações.
Tal investimento reflete a importância dos recursos captados com eventos na formação da receita
financeira dos museus.
Nos sites dos MoMA e do Metropolitan Museum estas normas podem ser vistas em Guidelines
for Special Events.
GT92909
3.2 A conexão com as Associações de Amigos
Os eventos especiais primeiramente constituem forma importante de captação de recursos
financeiros para os museus. Em segundo lugar estão estreitamente ligados às Associações de Amigos:
ser convidado para os eventos especiais, organizados segundo o nível de contribuição financeira ao
museu, é uma forma de benefício, serviço ou envolvimento que o Museu oferece ao seu Associado,
no propósito de fidelizá-lo ao Museu.
Todos os museus americanos contam, em sua estrutura, com associações de amigos pessoa
física (membership) e pessoa jurídica (corporate membership), ambas com diversos níveis de sócios
com benefícios diferenciados e crescentes para aqueles que contribuem com maior quantia de recursos.
No Brasil diversos museus possuem Associação de Amigos e alugam seus espaços para
eventos especiais. No Rio de Janeiro, o Museu Histórico Nacional, o Museu de Arte Modrna, o
Museu Nacional de Belas Artes, o Museu da República e o Museu Chácara do Céu realizam ou
já realizaram eventos especiais. Optou-se por não apresentar exemplos de museus brasileiros, pela
limitação de espaço de um artigo, apesar que pode se demonstrar a aplicação das práticas de eventos
especiais trazidas do modelo americano em alguns museus brasileiros.
3.3 Vantagens de Eventos Especiais para uma instituição cultural:
Os Eventos Especiais geram uma série de benefícios: em primeiro lugar o retorno financeiro,
que gera recursos para as operações, melhorias, obras e até aquisição de obras de arte para o Museu.
Proporcionam também o retorno de imagem junto a um público selecionado, o aumento de propaganda
boca a boca favorável, a inserção da instituição em espaços de colunas sociais e empresariais na mídia,
divulgando o nome da instituição, novos aluguéis de espaço - nos dias subsequentes aos evento.
O espaço da instituição cultural é único, exclusivo, diferenciado, desejado por pessoas que
ocupam cargos executivos em empresas ou espaço social elevado. Estas pessoas e outras, formadoras
de opinião, ajudam a divulgar o museu em seus círculos de atividades.
As equipes dos órgãos culturais que desejem desenvolver eventos especiais com o intuito de
captar recursos devem encontrar a melhor fórmula de conciliar a preservação de seu acervo, o que
constitui a sua missão, e a promoção adequada dos espaços.
4. ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS
Como mencionado anteriormente os Estados Unidos são o deflagrador desta estratégia
promocional voltada para a captação de recursos cuja finalidade é o desenvolvimento de público e o
financiamento de suas atividades essenciais. Como nesta pesquisa utilizou-se o Benchmarking, como
método, são apresentados os setores de museus que apresentam desempenho superior.
Naquele país é comum os museus contarem com duas áreas que também captam recursos;
membership que é uma associação de amigos para pessoas físicas e corporate membership voltada
para pessoas jurícas, empresas, corporações.
GT92910
4.1 MEMBERSHIP - ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS PARA PESSOAS FÍSICAS
Os museus oferecem diversas categorias de sócio com valores que vão de 50 dólares a 3
mil dólares anuais para pessoa física que recebem em troca uma série de benefícios que cresce na
medida em que aumenta a contribuição. Todos os museus utilizam folhetos onde apresentam as
diferentes categorias de sócio, os benefícios e uma ficha de adesão. A maioria dos museus franqueia
o ingresso para o associado, além de lhe oferecer eventos especiais, palestras, concertos musicais,
tours e descontos na aquisição de produtos nas lojas, restaurante e cafeterias. Estes folhetos são
distribuídos nas bilheterias, nas partes internas dos museus, nas lojas e nos quiosques externos,
na tentativa de fidelizar o novo associado, tornando-o um visitante frequente.
Vale destacar o melhor kit de museu para novo sócio. Ao tornar-se sócio do membership
do Metropolitan Museum of Art de Nova York o visitante recebe uma pasta com tickets de
audioguia gratuito, vale para estacionamento grátis, calendário de eventos do mês em curso (que
o sócio receberá mensalmente em sua residência), convite para uma festa beneficente oferecida
a sócios de sua mesma categoria, relatório anual impresso do Met, revista com as excursões
voltadas para exposições de arte e sua carteira de sócio.
Diferentes categorias e estratégias são desenvolvidas pelos museus. Como exemplo:
- De Young Museum e Asian Art Museum, ambos de San Francisco, contam com a mesma
associação de amigos, a Museum Society e distribuem para os seus sócios uma única revista
sobre arte chamada Triptych.
- Discover your Smithsonian Adventure é o título do folheto de membership do
Smithsonian Institution que distribui ao sócio a revista The Smithsonian ASSOCIATE além
de calendário de eventos, concertos, palestras, tours,etc. Foi criado um círculo de sócios
num valor mais elevado, The James Smithson Society , cujas contribuições são acima de US$
2 mil.
- Em Nova York, o MoMA, o Guggenheim, o American Museum of Natural History
adotam memberships voltados para os seus temas de interesse: artes e ciências naturais, com todos
os benefícios voltados para estas esferas de interesse.
- O Metropolitan criou uma categoria de sócios voltada apenas para embaixadas com a
contribuição variando de $ 2500 e $ 5000.
Muitos museus do Rio de Janeiro e São Paulo possuem associação de amigos para a participação
de pessoa física. Nos museus brasileiros podemos citar como exemplo de associação de amigos para
pessoa física o AMIGOS DO MAM, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que disponibiliza
no seu site na Internet22 a sua Associação de Amigos.
4.2 CORPORATE MEMBERSHIP - ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS PARA EMPRESAS
A segunda área de captação de recursos de associação de amigos está voltada para as empresas.
22 Site do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro: www.mamrio.com.br. Acesso em 30/07/11.
GT92911
Os níveis de contribuição vão em média de US$ 5 mil a US$ 50 mil dólares e os benefícios vão
crescendo na medida do aumento do valor de contribuição.
Neste segmento também o Kit do Metropolitan Museum para os sócios corporativos é o melhor
material de apresentação dos serviços e possibilidades de investimentos num Museu. Apresenta
folhetos específicos que explicam como fazer doações significativas para o MET e como elas serão
aplicadas: Giving Through Your Will (testamento), Planning Your Gift (doação de propriedades,
fundos de caridade), como a empresa pode patrocinar uma grande exposição ou a compra de
obras de arte, sempre mostrando as isenções fiscais, deduções federais e estaduais.
Lembramos que a legislação americana desde 1910 garante que considerável parte
do dinheiro relativo ao imposto de renda devido possa ser destinado aos museus. Pessoas
da sociedade doam suas heranças para o MET que as investe e que apenas pode utilisar o
lucro destas operações financeiras para despesas operacionais. Este setor atrai doações de
indivíduos e de empresas. Administra os recursos das doaões sem expectativa de benefícios ou
contrapartida. Fazem palestras visitam e entregam pessoalmente aos presidentes de empresas e
donos de grandes fortunas este kit para persuadirem-nos a se associarem ao Museu.
O MoMA-Services for Corporate Members é um folheto voltado para o mundo empresarial.
Este demonstra como as empresas que contribuem com $25,000 tem mais vantagens, convites,
passes para seus convidados do que aquelas que contribuem com $2,500, porém todas são
muito bem tratadas e atendidas por toda a equipe do museu. Há muitos programas educativos,
visitas guiadas, palestras como “Olhando a Arte Moderna” voltados para o público interno da
empresa, assim como para seus clientes – todas as empresas são encorajadas a tirar proveito
das diversas gallery talks (palestras) sobre arte, do serviço de exibição de filmes ou do aluguel
de espaços para eventos.
Além deste tipo de relacionamento com as empresas, o MoMA trabalha com doações
para o seu Annual Fund, no qual as empresas não querem nada em troca. O MoMa lhes fornece
um certificado dourado, além de relacioná-las no relatório anual na categoria grande doadoras.
São empresas que desejam discrição.
No Brasil são poucos os museus que trabalham de forma semelhante juntamente com empresas.
Marcondes Neto23 destaca a Proposta de Parceria do Museu de Arte Moderna de São Paulo, como
o melhor material visual encaminhado por e-mail para as empresas brasileiras participarem como
Parceiras do MAM-SP. No Rio de Janeiro, temos o exemplo do programa Amigos do MAM que
convida as empresas a participarem em duas categorias: Parceiros e Mantenedores.
5. RELAÇÕES PÚBLICAS, PUBLICIDADE E ASSESSORIA DE IMPRENSA
A comunicação com o público sofreu nos últimos anos profundas transformações estimuladas
pelas complexas necessidades do homem pós-moderno, especialmente ligadas à interpretação do
23 MACHADO NETO, Manoel Marcondes. Marketing cultural: das práticas à teoria. Rio de Janeiro, Ciência Moderna, 2002. p. 247.
GT92912
patrimônio, que acompanha os novos desejos do visitante de não apenas contemplar passivamente a
obra, mas de vivenciar experiências através dela. O uso das novas tecnologias faz com que os museus
as incorporem nos recursos comunicacionais que utilizam.
Uma estratégia de comunicação com o público deve conter três objetivos básicos24: facilitar
ao público um conhecimento amplo da instituição e dos serviços que oferece; motivar a participação
do público nas atividades que promove e fomentar o uso dos serviços; fortalecer e consolidar relações
as relações museu-público.
Os museus usam cada vez mais anúncios e propaganda nos jornais, rádios, TVs, out-doors
e todos os tipos de publicidade em standes dos pontos de ônibus e nas estações de metrô: nas de
Washington e Nova York há displays coloridos, chamativos, anunciando as exposições. A propaganda
não-paga é obtida através de releases e press conferences (coletivas de imprensa) bem preparadas
contando com a presença do curador de cada exposição.
Campanhas interessantes e agressivas publicitariamente destacaram-se como a da abertura do
Museu Nacional do Indio Americano em outubro de 1994 em Nova York e a campanha de abertura
do Museu Postal, do Smithsonian, em Washington. Ambas contrataram uma empresa independente
de Relações Públicas para planejar todos os impressos para o Press Kit, com folhetos coloridos,
jornal mensal, além da campanha publicitária com anúncios na rádios, tvs, e displays chamativos nas
estações de Metrô de Washington, assim com em todos os quiosques para ônibus, além de aeroportos,
hotéis e centros de convenções.
Cada museu tem o seu material informacional básico, planta baixa, folhetos específicos sobre
exposições que são distribuidos à imprensa, visitantes e ao público em geral. Alguns folhetos do
Smithsonian usam letras grandes para idosos e deficientes visuais. Estão sendo bem recebidos pelos
segmentos de público que reclamavam das fontes pequenas e de pouca legibilidade.
6. PUBLICAÇÕES
Os catálogos de exposições inicialmente, seguidos os livros com textos críticos sobre obras
de arte, foram os primeiros produtos a serem comercializados nas lojas de museus. Após analisarem
os resultados das faixas de renda do público, obtidos nas pesquisas de visitantes, os gestores de
museus começaram a segmentar as publicações pelos diferentes tipos de público que afluiam a suas
exposições.
Os museus desenvolvem catálogos de diversos tipos para cada exposição com preços para
diferentes segmentos: catálogos de 500 páginas e capa dura por $350, de 50 páginas e capa grampeada
por $80 e folhetos por $5. Porém todos contam com patrocinador, para que as publicações sejam
accessíveis para o público e gerem lucro para o Museu. Dentro desta estratégia de publicações com
preços acessíveis a diversos segmentos de poder aquisitivo, foi oferecida uma edição especial sobre
Impressionismo no Fine Arts Museums of San Francisco, tema de uma das exposições do momento,
24 HERNANDEZ, Joseph B.; TRESSERAS, Jordi J. Gestión del Patrimônio Cultural. Barcelona, Editorial Ariel, 2001.
GT92913
da revista Connaissance des Arts por 20 dólares.
As publicações do MoMA possuem muita credibilidade, pois em sua maioria são escritas por
seus curadores, reconhecidos internacionalmente como experts em Arte Moderna: vendem muito e
são uma fonte expressiva de receita para o Museu, pois geram muito lucro.
7. LOJAS E LIVRARIAS
Os museus mantém diversas lojas dentro e fora de seus edifícios, que ajudam nas vendas, na
captação de novos sócios e na divulgação da marca do museu.
O Smithsonian tem 11 lojas dentro de seus museus da área central de Washington. Tem alguns
departamentos só para desenvolver seus produtos e tomar conta de sua administração. Perto do Natal
fazem semana de descontos para funcionários e para o público. É um sucesso de público e de vendas.
O MoMA tem uma importante livraria, considerada uma das melhores da cidade de Nova York
no que se refere à Arte Moderna que oferece catálogos, livros, posters, cartões-postais e produtos de
papaelaria. Dispoe também de um Loja de Design que oferece produtos selecionados de designers de
diversos países. Ambas refletem com seus produtos a excelência do MoMa tanto em Arte Moderna
como em design, cinema, fotografia, áreas nas quais o museu é um expoente. Obtem uma receita tão
alta que cada uma delas é administrada por um departamento diferente.
O Fine Arts Museums de San Francisco tem 3 lojas dentro de suas instalações e uma loja
externa, dentro da Macy’s, uma das mais conhecidas lojas de departamento dos Estados Unidos.
O Metropolitan de Nova York tem 11 lojas pelos Estados, sendo 2 lojas no Rockfeller Center,
um dos pontos turísticos mais visitados na cidade, e outra no Macy’s, além de 4 lojas dentro do
Museu. Em cada uma destas lojas aceita-se a inscrição para novos sócios da Associação de Amigos.
Estas lojas externas são uma ponta avançada de divulgação das exposições e serviços
educacionais, e de venda da imagem, dos produtos e da Associação de Amigos de cada um destes
museus.
8. A INTERNET COMO INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO E MARKETING:
Os museus estão utilizando seus websites não apenas para sua divulgação institucional, de sua
programação de exposições e eventos, como também, para dar acesso às suas coleções (consultas,
visualização das obras, montagem de sua galeria virtual), vendas de publicações e produtos afins
(postais, cartazes, agendas, reproduções etc.), fidelização de associados tanto pessoa física quanto
jurídica, desenvolvimento de audiência, criando sites específicos para crianças e adolescentes,
atraindo-os com jogos interativos com temas relacionados aos assuntos tratados em todos os aspectos
do museu25.
Destacam-se os sites dos seguintes museus com suas funções: o do MoMa – www.moma.org:
25 CARVALHO, Rosane Maria Rocha de. As transformações da relação museu e público: a influência das tecnologias da
informação e comunicação no desenvolvimento de um público virtual. Orientador: Prof. Lena Vania Ribeiro Pinheiro. Rio de
Janeiro, ECO/UFRJ-IBICT, 2005 (Tese de Doutorado).215 p.
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a) support moma – membership, annual fund, corporate support (corporate membership, sponsorship,
corporate entertaining) planned giving, exhibition support, affiliates, capital campaign; e b) Moma
Store locations: Na rua 53 – design e books; Livraria no 2o. andar; Design store (em frente), design
store no Soho, uma Online Store, Catálogo on line, vendas por atacado e brindes corporativos; o
do Metropolitan Museum of Art – www.metmuseum.org: membership e room rentals for private
celebrations; do American Museum of Natural History - www.amnh.org : corporate patron program;
support amnh (membership); e o do Gugggenheim Museum– www.guggenheim.org – membership/
sponsorship.
Além dos websites os museus estão utilizando intensivamente as mídias sociais para ativarem
seus associados convidando-os a participar de suas atividades especiais.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Museu hoje é uma empreendimento que objetiva atrair o público com suas exposições
e eventos complementares, tentando obter a sua autonomia financeira através da contribuição e
adesão deste público, das empresas, das doações, patrocínios e Associações de Amigos. Os museus
continuam preservando seus acervos, porém trabalham muito os diferentes grupos de público com
educação, visitas guiadas, palestras nas galerias, aulas sobre o acervo, porque o público sempre está
interessado em aprender e pode ser envolvido nestas atividades pela Associação de Amigos, que lhe
prestará um serviço mais personalizado.
O Museu é local de sedução: é importante ter exposições atraentes, ser um lugar agradável,
accessível e emocionante.
Devemos fazer um esforço para sensibilizar as elites econômicas brasileiras, a compreender
a importância da modernização dos museus e que o investimento cultural no país traz expressivo
retorno turístico, financeiro e, cultural, devolvendo a auto-estima do cidadão.
REFERÊNCIAS:
BARTELS, Robert. The history of Marketing thought. Columbus, Ohio: Publishing Horizons, 1988
BOGAN, Christopher E. ENGLISH, Michael J. Benchmarking - Aplicações e Práticas. São Paulo,
Makron Books, 1996.
CAMERON, Duncan. The museum as a communication system and implication of museum education.
Curator. New York, American Museum of Natural History, 11(1):33-40.1968.
CARVALHO, Rosane M. R. Marketing e Relações Públicas em Museus Norte-Americanos. Programa de Preservação e Difusão de Bens Culturais - CAPES/Fulbright. Rio de Janeiro, 1995.
Xerog. (Especialização em Marketing e Relações Públicas)
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influência das tecnologias da informação e comunicação no desenvolvimento de um público
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GT92916
COMUNICAÇÃO ORAL
INFORMAÇÃO ESPECIAL NO MUSEU – ACESSIBILIDADE:
A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
VISUAL 1
Ana Fátima Berquó Berquó, Diana Farjalla Correia Lima
RESUMO
O artigo aborda o tema da inclusão social da pessoa com deficiência visual no espaço museológico,
a Acessibilidade, tendo como apoio teórico os estudos relativos à Informação Especial e ao uso da
Tecnologia Assistiva. Os objetivos focalizaram identificar e analisar o atendimento a este segmento
de público visitante do Museu nas áreas físicas de circulação (visitação presencial) e nos espaços web
(visitação virtual). O estudo de caso desenvolvido selecionou três Museus de significativa expressão no
cenário brasileiro, localizados na cidade do Rio de Janeiro e com enfoques diferenciados de especialidade
temática: Museu Histórico Nacional, MHN (História); Museu Nacional de Belas Artes, MNBA (Artes);
Museu de Astronomia e Ciências Afins, MAST, (Ciências). Ao lado da análise de fontes nacionais e
internacionais dedicadas ao tema da acessibilidade a pesquisa também incluiu: dados de levantamento
realizado pelo Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM (fonte oficial do campo museológico); visitação
aos espaços físicos dos três Museus aplicando-se formulário elaborado pela pesquisa para diagnóstico
das condições oferecidas para atendimento nos locais e, ainda, visitação aos museus virtuais (sites
na internet) com aplicação de modelo de uso internacional para testar o padrão de acessibilidade. A
interpretação dos resultados obtidos nos dois espaços dos Museus apontou carências nas condições
de atendimento para a visitação museológica do segmento de público com deficiência visual. Tal fato
vem indicar que, embora já esteja em foco no campo da Museologia o debate sobre o denominado
Museu Inclusivo, no momento e nos Museus pesquisados, existe um hiato entre o discurso e a prática
da inclusão. Inclusive, verificado pela dificuldade de encontrar fontes de consulta tratando do uso das
modernas propostas a cargo da Informação Especial e da Tecnologia Assistiva, modelos conceituais e
práticos que definem o desenho da acessibilidade que conduz à inclusão social.
Palavras-chave: Informação Especial e Museu; Acessibilidade em Museu; Museu e inclusão social;
Museu Inclusivo e pessoa com deficiência visual; Tecnologia Assistiva e Museu.
SPECIAL INFORMATION AT THE MUSEUM - ACCESSIBILITY:
SOCIAL INCLUSION OF PEOPLE WITH VISUAL IMPAIRMENT
ABSTRACT
The article focuses the social inclusion of people with visual disabilities in the museum space,
1 O artigo baseado em dissertação defendida -- fevereiro de 2011 -- no auditório do Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro.
BERQUÓ, Ana Fátima. Dedos de ver: informação especial no museu e a inclusão social da pessoa com deficiência visual. 2011.
143 f. Dissertação (Mestrado)-Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio. UNIRIO/MAST. Rio de Janeiro: UNIRIO/
MAST, 2011. Orientadora: Diana Farjalla Correia Lima.
GT92917
accessibility, with the support of theoretical studies on the Special Information and use of Assistive
Technology. The objectives focused on identifying and analyzing the service to this segment of
audience at the museum in the visitation area and the web spaces (virtual visits). The case study
selected three Museums of meaningful expression in the Brazilian scene, located in the city of Rio de
Janeiro and with different approaches specialty theme: National History Museum, (History) Museum
of Fine Arts, (Arts); Museum of Astronomy and Related Sciences, (Science). Beside the analysis of
national and international sources on the theme of accessibility the research also included: data from
a survey conducted by the Brazilian Institute of Museums, IBRAM (official source of the museum
field); visits to the physical location of the three museums through a questionnaire that was created for
the diagnosis of conditions offered for local attendance, and also virtual visits to museums (websites)
with the use of an international model for testing the standard of accessibility. The results of research
in the two areas of museums indicated deficiencies in the conditions of service for the visiting public
with a visual impairment. This fact has been pointed out that, although it is in focus in the field of
Museology the debate on nominated Inclusive Museum, at this moment and at Museums which are
surveyed, there is a gap between rhetoric and practice of inclusion. In fact, verified by the difficulty
of finding sources of information dealing with the use of modern proposals in charge of the Special
Information and Assistive Technology, conceptual and practical models that define the design of the
accessibility that leads to social inclusion.
Keywords: Special Information and Museum; Accessibility in Museum; Museum and social inclusion;
Inclusive Museum and visually impaired person; Assistive Technology and Museum.
1. INCLUSÃO SOCIAL: A ACESSIBILIDADE MODELADA PELA INFORMAÇÃO
ESPECIAL -- TECNOLOGIA ASSISTIVA.
O acesso à informação, no mais amplo sentido, é acesso ao conhecimento, e este é vitalmente
importante para nós não continuarmos sendo menosprezados e dependentes das pessoas que
enxergam. Nós não precisamos de piedade nem de ser lembrados que somos vulneráveis.
Precisamos ser tratados com igualdade – e comunicação é a forma de realizar isto.
Louis Braille
Inclusão Social é um tema recorrente em diferentes estâncias da sociedade contemporânea
com vasto amparo legal em nível local e recomendações em nível supranacional a exemplo da
Organização das Nações Unidas, United Nations Organization, ONU; e da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, United Nations Educational, Scientific and Cultural
Organization, UNESCO.
No campo da Museologia, de maneira que se pode dizer tímida, começa a surgir este assunto que se baseia na
natureza da acessibilidade e engloba diferentes categorias de segmentos de público que visitam ou fazem uso de serviços
de informação dos Museus.
Trata-se de incluir a pessoa com deficiência visual no Museu de maneira que possa ser acolhida, possa desfrutar
do Museu na qualidade de objeto de cultura, de deleite espiritual, de prazer estético, de informação para o conhecimento
(científico – pesquisa), de puro entretenimento. E isto é possível aplicando-se o conceito formulado pela Informação
Especial oferecida com a Tecnologia Assistiva, tanto nos espaços do Museu que existem no mundo físico quanto no
Museu Virtual, tendo em vista a era tecnológica em que se vive.
GT92918
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos 2, assinada em 1948 e um dos documentos
básicos das Nações Unidas, são enumerados direitos que todos os seres humanos possuem. O Artigo
XXVII da referida Declaração merece destaque:
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios (grifo nosso).
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais
decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.
Embora a palavra Museu não apareça explicitamente na referida Declaração, o artigo citado
no seu inciso 1 permite considerar, quando menciona “vida cultural”, “fruir das artes” e “progresso
científico”, que tais pontos refletem condições existentes nos espaços museológicos.
A inclusão social, conforme Romeu Sassaki 3 é “o processo pelo qual a sociedade e a pessoa
com deficiência procuram adaptar-se mutuamente tendo em vista a equiparação de oportunidades e,
consequentemente, uma sociedade para todos”. Constitui, então, “um processo bilateral no qual as
pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre
soluções e efetivar a equiparação de oportunidade para todos” 4. Atualmente o paradigma da inclusão
social consiste em “tornarmos toda a sociedade um lugar viável para a convivência entre pessoas de
todos os tipos e condições na realização de seus direitos, necessidades e potencialidades” 5.
E a inclusão social tem se caracterizado por uma história de lutas sociais empreendidas pelas minorias e seus
representantes, na conquista dos seus direitos ao acesso imediato, contínuo e constante ao espaço comum da vida em
sociedade (recursos e serviços).
A concepção da inclusão se fundamenta numa filosofia que reconhece e aceita a diversidade na vida em sociedade,
a fim de garantir o acesso de todos a quaisquer oportunidades, independente das peculiaridades de cada indivíduo e/ou
grupo social.
Não se pode deixar de lembrar que a carta Magna, a Constituição da República Federativa do Brasil � expressa
no TÍTULO II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I, DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E
COLETIVOS, o princípio da igualdade no caput do artigo 5º,
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
O alcance do que se compreende como efetiva a igualdade configura que seja relativa, ou seja, dar tratamento
igual aos iguais e desigual aos desiguais. Considerando-se o princípio que as pessoas são diferentes, têm necessidades
diversas e o cumprimento da lei exige que a elas sejam garantidas as condições apropriadas de atendimento às suas
peculiaridades, de forma que todos possam usufruir das oportunidades existentes.
A percepção de conferir tratamento diferente não se refere a privilégios, mas a oferecer condições exigidas pelas
peculiaridades de cada indivíduo visando à garantia da igualdade. Portanto, a igualdade de tratamento deve ser quebrada
2 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris. 1948. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_
bib_inter_universal.htm Acesso em: 10 julho 2011.
3 SASSAKI, Romeu K. Inclusão: Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 2006.p.171.
4 SASSAKI, Romeu K. Inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. São Paulo: Prodef, 1997 p. 3.
5 SASSAKI, Romeu K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 4.ed. Rio de Janeiro: WVA, 2002. p. 24.
GT92919
diante de situações lógicas que autorizem tal ruptura. Em vista disto, a pessoa com deficiência pela sua própria condição
tem direito à quebra da igualdade em situações nas quais participe com pessoas sem deficiência.
Tal percepção que exprime o movimento social pela inclusão traz um novo entendimento para
o relacionamento dos indivíduos.
E indica, em se tratando dos profissionais da Museologia, a necessidade de nova reflexão
voltada às ações em Museus com relação à visitação e a comunicação que deste processo decorre
ao recepcionar o segmento de público com deficiência, e neste particular, a de natureza visual.
Lembrando que na terminologia do campo a denominada Comunicação em Museu(s) equivale, no
âmbito da Ciência da Informação, à Transferência da Informação.
Entendendo-se as coleções dos Museus como fontes de informação, de pesquisa científica
ou, ainda, instrumento de transmissão de conhecimento, para que uma pessoa com deficiência
visual se beneficie de suas coleções a Informação Especial surge como resposta para a necessidade
informacional desta demanda.
Ao se pretender abrir o espaço museológico a todos os públicos, há de se levar em
consideração novos fatores que impõem aos processos de comunicação múltiplas
formas de diálogo, pois a igualdade de direitos está intrinsecamente relacionada ao
respeito pela diversidade coletiva ou individual (grifo do autor) 6.
Ao se enfocar a pessoa com deficiência visual deve-se compreender o que expressa o termo a
fim de identificar as especificidades de cada situação e capacitar-se ao atendimento.
Os estudos desenvolvidos por Barraga (1976) 7 distinguem três tipos de deficiência visual: -- Cegos - têm somente a percepção da luz ou não têm nenhuma visão. O processo de aprendizagem
é feito através dos sentidos remanescentes (tato, audição, olfato, paladar), utilizam o Sistema Braille
como principal meio de comunicação escrita.
-- Pessoas com Visão Parcial - têm limitações da visão a distância, mas são capazes de ver objetos e
materiais quando estão a poucos centímetros ou no máximo a meio metro de distância.
-- Pessoas com Visão Reduzida - são considerados com visão reduzida indivíduos que podem ter seu
problema corrigido por cirurgia ou pela utilização de lentes.
E os Museus para receber o público com deficiência visual terão que se valer no mínimo, em
princípio, da utilização do Sistema Braille como também de outras modalidades para acessibilidade
que, hoje em dia, no contexto da Informação Especial compõem a denominada Tecnologia Assistiva
(T. A.) e está disponível para atender a diferentes tipos de deficiência, não apenas a visual.
Deve-se mencionar com relação ao uso do recurso da T. A. pelas pessoas com deficiência
visual que estas precisam ter os sentidos remanescentes trabalhados, porque não ocorre emergir de
6 TOJAL, Amanda Pinto da Fonseca. Políticas Públicas Culturais de Inclusão de Públicos Especiais em Museus. São Paulo.
2007. Tese (Ciência da Informação) – Escola de Comunicações e Artes - USP. São Paulo: ECA/USP. Orientadora: Maria Helena Pires
Martins. p. 107.
7 BARRAGA, Natalie. Visual handicaps and learning: A developmental approach. Wadsworth Pub. Co. 1973.
GT92920
modo natural um sentido pelo outro. O processo de compensação por uma carência existente decorre
de treinar habilidades para obter a competência.
Esclarecendo: ao contrário do que corriqueiramente se imagina, não é pelo fato de uma pessoa
ser deficiente visual que ela tem, por natureza, uma ‘audição excepcional’. Precisa haver estímulo
para que os demais sentidos sejam aflorados. Sendo assim, para se valer de um recurso de T. A., em
que seja usado o sentido da audição, é necessário igualmente um ouvido ‘esperto’, como se fala no
jargão daqueles que lidam com pessoas com deficiência visual.
Incluir a pessoa com deficiência visual no Museu, deste modo, é atender a sua necessidade informacional. E
reportando-se ao usuário da informação, isto poderá ser alcançado a partir da disseminação da Informação Especial
transferida/comunicada pelo uso de modalidades de aplicação do que hoje se nomeia Tecnologia Assistiva (T. A.) 8, “ramo
de pesquisa científica dirigida para o desenvolvimento e aplicação de instrumentos que aumentem ou restaurem a função
humana na sua plenitude”, ou seja, destinada a autonomia e a melhoria da qualidade de vida de idosos, de pessoas com
deficiência ou de outras com mobilidade reduzida. Desta forma, colaborando para a pessoa com deficiência ultrapassar a
barreira da sua limitação.
Vale lembrar que a T. A. é entendida como o recurso do usuário, neste caso, da pessoa com deficiência visual,
servindo como elemento para fazê-la desempenhar funções do cotidiano de forma independente, contribuindo para que
aconteçam sinapses com os sentidos remanescentes de forma a buscar a promoção da qualidade de vida e sua inclusão
social.
O Conselho Internacional de Museus, International Council of Museums, ICOM 9, que reúne instituições e
profissionais do campo, criado em 1946, já enunciava a função social do Museu e, na atualidade, reafirma os valores
representados na definição inscrita no Código de Ética para Museus (ICOM, 2006)
Instituição permanente, sem fins lucrativos, aberta ao público, a serviço de uma
sociedade e de sua evolução, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e expõe
para fins de estudo, educação e lazer os testemunhos do homem e do seu meioambiente (grifo nosso).
Logo, em razão do princípio acima apresentado, o Museu não pode se furtar a cumprir o que lhe cabe.
Especialmente em tempo das Tecnologias de Informação e Comunicação, TIC’s, disponíveis ao público em todos os
segmentos diversificados que estão incluídos na sua composição, quer sob a forma do visitante da exposição ou do usuário
dos serviços que atendem a consultas ou o participante de qualquer outra ação a cargo do Museu.
2. OBJETIVOS
Geral:
Identificar e analisar, no tema da inclusão social, a acessibilidade para pessoa com deficiência visual expressa pela
aplicação da Informação Especial em ambiente museológico, representada pelo alfabeto Braille e pelos recursos da
Tecnologia Assistiva (T. A.) em três modalidades de enfoques de Museus: História, Artes e Ciências, localizados na
cidade do Rio de Janeiro.
Específicos:
-- Identificar e analisar no espaço físico, salas de exposição e demais áreas de visitação, do Museu Histórico Nacional,
MHN (História); do Museu Nacional de Belas Artes, MNBA, (Artes); e do Museu de Astronomia e Ciências Afins,
MAST, (Ciências) os recursos de acessibilidade disponíveis para o público com deficiência visual;
8 BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) /Indicadores/Temas/Inclusão Social/Sub Temas/ Tecnologia Assistiva.
Disponível em: <http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/307898.html#> Acesso em: 03 julho 2011.
9 ICOM. International Council of Musems. Código de Ética do ICOM. Disponível em: <http://icom.museum>. Acesso em: 01 julho
2011.
GT92921
-- Identificar e analisar no espaço virtual, sites dos Museus citados (formato Museu Virtual) 10, a existência de recursos
de acessibilidade destinados ao público com deficiência visual.
3. METODOLOGIA
A pesquisa no seu modelo conceitual e operatório se configurou como um Estudo de Caso.
Abordou o tema da Inclusão Social da Pessoa com Deficiência Visual no contexto do Museu e
englobou os três Museus mencionados.
Os procedimentos adotados foram os seguintes:
1 - Levantamento bibliográfico: a) literatura brasileira e estrangeira produzida por instituições
especializadas (âmbito nacional e internacional) como: Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM;
Conselho Internacional de Museus, ICOM; Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura, UNESCO; Organização Nacional de Cegos da Espanha, ONCE; Organização
das Nações Unidas, ONU, entre outros. b) teses e dissertações, artigos de periódicos científicos, de
anais de eventos, monografias (livros e capítulos), legislação em suportes tradicionais bem como
em ambiente Internet.
2 - Visita espontânea aos três Museus, como faz o visitante comum, consignando ação preliminar para
reconhecimento dos espaços museológicos abertos ao público, providência que antecedeu a ida
relatada no item seguinte.
3 – Visita técnica para avaliação dos recursos da Informação Especial disponíveis nos espaços físicos
dos três Museus para atendimento/visitação do público com deficiência visual, aplicando-se, in loco,
o instrumento metodológico (formulário) denominado Espaço físico do Museu e Acessibilidade da
Pessoa com Deficiência Visual: diagnóstico; (elaborado pela pesquisa) que foi preenchido por um
funcionário de cada Instituição.
4 - Visita virtual (Museu Virtual): avaliação dos recursos da Informação Especial (público com
deficiência visual), modalidade acessibilidade, disponíveis nos sites dos três Museus usando 2
instrumentos para análise (a) e (b).
a) teste de identificação – buscou-se a presença de Símbolo (s) de Acessibilidade na Web (padrões
internacional ou nacional), expressando a Informação Especial;
b) aplicação de ferramenta/serviço de validação da acessibilidade/compatibilidade, usando-se o
W3C HTML Validation Service;
5 – Avaliação qualitativa: elaboração de quadro comparativo para interpretação dos resultados
alcançados a partir do formulário aplicado e do teste realizado, respectivamente nos espaço físico
e virtual dos Museus.
10 Usa-se neste artigo para qualificar Museu Virtual o modelo conceitual (categorias: Museu Virtual Original Digital; Museu Virtual
Conversão Digital; e Museu Virtual Composição Mista) definido e expresso em:
LIMA, Diana Farjalla Correia. O que se pode designar como Museu Virtual segundo os museus que assim se apresentam. In ENANCIB
(10)-Responsabilidade Social da Ciência da Informação; GT 9 – Museu, Patrimônio e Informação, 2009. João Pessoa. Trabalhos
apresentados... 2009. João Pessoa: ANCIB; PPGCI-UFPB. 1 CD ROM. Disponível em: <http://dci2.ccsa.ufpb.br:8080/jspui/
bitstream/123456789/531/1/GT%209%20Txt%2011-%20LIMA%2c%20Diana%20Farjalla%20Correia.%20O%20que%20se%20
pode%20designa....pdf> Acesso em: 02 julho 2011.
GT92922
4. MUSEUS BRASILEIROS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL: PARA ONDE
CAMINHA A INCLUSÃO?
A pesquisa para o tema da Acessibilidade via Informação Especial com recursos da Tecnologia
Assistiva, inicialmente, usou como fonte os dados de levantamento feito em âmbito nacional pelo
Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM. Consultou-se o site da Instituição e complementou-se com
contatos diretos e acesso à documentação (planilha - perfil dos museus no país).
Posteriormente, foram realizadas visitações presenciais e virtuais aos Museus: MHN; MNBA;
e MAST; aplicação de formulário de avaliação ‘in loco’ e teste dos sites pelos parâmetros eletrônicos
e uso dos chamados validadores.
A seguir relatam-se alguns pontos do processo do trabalho realizado e os resultados a que se
chegou.
4.1 “Conheça os Museus Brasileiros” 11.– IBRAM
O IBRAM 12, instituição federal do Ministério da Cultura sucessora do “Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nos direitos, deveres e obrigações relacionados aos museus
federais”, e “responsável pela Política Nacional de Museus e pela melhoria dos serviços do setor
[...]”; disponibiliza no seu site o “Cadastro Nacional de Museus” (CNM), base de dados “Conheça os
Museus Brasileiros”.
Em vista disto, buscou-se informação para identificar os Museus do Brasil com recursos
disponíveis para o público com deficiência visual. E com referência a exposições, a pesquisa de que
trata este artigo aborda recursos que devem estar disponíveis no contexto das exibições permanentes,
seja no museu situado no mundo dito real (físico) ou no museu virtual.
O levantamento “Mapeando a diversidade museal brasileira: Museus cadastrados que
possuem instalações para portadores de necessidades especiais” 13 apresenta nos resultados um tópico
relacionado ao tema da pesquisa tratada pelo presente artigo.
Em “Dados obtidos a partir do CNM” há a pergunta: “O Museu possui instalações destinadas
aos portadores de necessidades especiais?” (grifo nosso) e o documento transcreve a informação
prestada pelo Museu inventariado.
Os indicadores reproduzem quantitativamente recursos existentes para pessoa com deficiência
física e/ou mobilidade reduzida:
11 SISTEMA BRASILEIRO DE MUSEUS - CADASTRO NACIONAL DE MUSEUS. Disponível em: < http://www.museus.gov.
br/cnm_apresentacao.htm >. Acesso em: 20 julho 2011.
12 INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Disponível em: < http://www.ibram.gov.br/ >. Acesso em: 20 julho 2011.
13 SISTEMA BRASILEIRO DE MUSEUS - CADASTRO NACIONAL DE MUSEUS. Disponível em: <http://www.museus.gov.
br/SBM/cnm_conhecaosmuseus.htm >. Acesso em: 10 agosto 2011.
GT92923
-- “vagas exclusivas no estacionamento”;
-- “elevadores com cabine e portas de entrada acessíveis para pessoa portadora de deficiência ou com
mobilidade reduzida”;
-- “rampa de acesso”;
-- “sanitários adaptados com equipamentos e acessórios próprios”.
No caso da pessoa com deficiência visual menciona-se o Braille:
-- “sinalização em braile”;
--“textos/etiquetas em braile com informações sobre os objetos em exposição”;
Porém, não é esclarecido o alcance da cobertura, isto é, se está disponível em todo o circuito
de visitação, em parte dele, ou relacionada aos objetos exibidos.
Todas as deficiências aparecem agrupadas na mesma categoria, “instalações ...”, no entanto, a
questão da informação sobre recursos disponíveis, na prática é um item que se faz relacionado a cada
tipo de deficiência e, por esta razão, exigindo recursos específicos de acessibilidade para cada pessoa
obter informação necessária e adequada.
Ainda, pode-se apontar que, em se tratando do CNM, o trabalho apresenta entendimento
equivocado em relação ao termo e ao conceito de acessibilidade. A interpretação é basicamente
limitada ao aspecto do acesso físico, portanto, subordinando-a aos aspectos da deficiência motora,
tendo se atido e incluído para a coleta realizada, apenas os itens relacionados a elevadores ou rampas,
banheiros adaptados que permitam a circulação de visitantes com tal necessidade. Entretanto, no
levantamento do IBRAM não constaram os aspectos que possibilitam o acesso físico de pessoas com
outras deficiências, deixando estes segmentos da sociedade de fora do contexto de um cadastro que
pretende traçar um perfil nacional que inclui a visitação aos Museus.
No caso da deficiência visual há referência apenas ao Braille como indicador de atendimento
e não está previsto no circuito expositivo, por exemplo, o uso da linha guia que é um dos inúmeros
elementos componentes da Informação Especial. Inclusive, o exemplo citado integra o conjunto dos
indicadores do formulário (diagnóstico) elaborado e aplicado pela pesquisa para identificar e avaliar
os recursos de acessibilidade disponíveis nos espaços dos três Museus sediados na cidade do Rio
de Janeiro. Foram tais modalidades de indicadores especializados que permitiram estabelecer os
resultados da pesquisa.
Pode-se refletir, conforme o documento em pauta, que o entendimento existente nos Museus
para as pessoas com deficiência visual só é compreendido e, no momento, só se realiza através do
Braille (em alguns pontos do espaço físico, conforme relatado em 4.2).
GT92924
4.2. Museus, visitação presencial e formulário, visitação virtual e validação de sites.
Visitação presencial -- O Formulário Espaço físico do Museu e Acessibilidade da Pessoa com
Deficiência Visual: diagnóstico foi respondido por um funcionário do Museu indicado pela Instituição
que estava sendo avaliada 14.
O modelo apresenta três extratos temáticos que delineiam categorias informacionais
relacionadas a situações específicas para a pessoa com deficiência visual no espaço físico do Museu.
Cada categoria representa um conjunto de elementos necessários e adequados para o atendimento
deste público.
As condições de acessibilidade respondidas pelos informantes e analisadas nos três Museus
foram agrupadas em quadros com características informacionais denominadas: Informação Espacial,
Informação Multissensorial, Informação em Recursos Humanos.
A seguir apresenta-se o Quadro 1 - INFORMAÇÃO ESPACIAL – DOMÍNIO DO ESPAÇO
MUSEOLÓGICO. - Existência de:
.1 - INFORMAÇÃO ESPACIAL – DOMÍNIO DO ESPAÇO
MUSEOLÓGICO.
Existência de:
MNH
MNBA
MAST
SIM NÃO SIM NÃO SIM NÃO
1.1 Linha Guia - - percurso no chão com contraste tátil e
cromático para orientação.
X
X
X
1.2 Corrimão em todo percurso da exposição -- indicação
dos locais nos quais a pessoa com deficiência visual deve
parar.
X
X
X
1.3 Mapa tátil do circuito expositivo com legenda de todo ou
de parte do espaço da exposição.
X
X
X
1.4 Espaços da exposição -- indicação de
1.4.1 Sala(s)
X
X
X
1.4.2 Jardim
X
X
X
1.4.3 Corredor
X
X
X
1.4.4 Outro/citar
X
X
X
1.5 Texto audiodescrito de todo ou de parte do circuito
expositivo
X
X
X
14 Uma das autoras do artigo esteve presente durante a aplicação dos formulários nos 3 Museus. Ana Fátima Berquó, à época
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio UNIRIO/MAST, apresentou-se aos Museus munida de
uma carta da Coordenação do Programa e cujo conteúdo explicava a finalidade do trabalho, uma etapa integrante da pesquisa para
dissertação.
GT92925
Indicação de outros espaços para o visitante
1.6 Biblioteca
X
X
X
1.7 Banheiros
X
X
X
1.8 Lanchonete/café
X
X
X
1.9 Loja/quiosque de suvenir
X
X
X
-- MHN e MNBA –
Embora informados da diferença entre texto audiodescrito, ou recurso específico da Informação
Especial (audiodescrição), e o serviço de audioguia que é oferecido (relato comum destinado ao
público vidente), assinalaram equivocadamente “sim”, item 1.5 (circuito expositivo).
Ainda, foi explicado aos informantes ser aconselhável a possibilidade do toque (manuseio)
nas obras descritas pelo audioguia, fato que também não ocorre nas duas instituições.
-- MHN –
Marcado erroneamente “sim”, item 1.4 - indicação dos espaços.
Alegou constar no audioguia informação de salas e demais espaços do Museu.
A resposta não considerou ser impossível para a pessoa com deficiência visual ser orientada
por informação destinada ao público vidente, portanto, circular pelos diferentes locais sem valer-se
do auxílio de uma linha guia, recurso inexistente.
Informação Espacial: em síntese a interpretação das necessidades da demanda está inadequada,
bem como faltam recursos para a pessoa com deficiência visual obter de forma autônoma a Informação
Espacial e movimentar-se livremente pelas áreas do Museu.
Em seqüência, o Quadro 2 - INFORMAÇÃO MULTISSENSORIAL: RECURSOS DE
DIFERENTES MODALIDADES (TÁTEIS, DE LEITURA, SONOROS) -- Existência de:
2 - INFORMAÇÃO MULTISSENSORIAL: RECURSOS
DE DIFERENTES MODALIDADES (TÁTEIS, DE
LEITURA, SONOROS)
Existência de:
MNH
SIM
NÃO
MNBA
SIM
NÃO
MAST
SIM
NÃO
2.1Obra original (coleção) suscetível de ser tocada.
Indicar a quantidade .....................
X
X
X
2.2 Obra original para ser tocada ao alcance da pessoa
com deficiência visual
(alcance = Limite dentro do qual se consegue tocar
ou atingir alguma coisa)
X
X
X
GT92926
2.3 Reprodução para tocar quando o contato com a
obra original não for possível
X
2.4 Maquetes táteis das obras
Indicar a quantidade ....................
X
2.5 Reprodução tridimensional de obra bidimensional
X
2.6 Objetos e jogos tridimensionais baseados nas
obras originais
X
X
X
X
2.7 Ampliações de obras pequenas
X
X
X
X
X
X
X
X
Indicação do tamanho real
X
2.8 Miniaturas de obras grandes
X
X
X
X
X
Indicação do tamanho real
2.9 Extratos sonoros relativos às obras
X
2.10.1 Em todo o circuito
2.10 Braille - Legendas da obra
X
2.10.2 Parte
2.11 Braille - Impressos.
Citar qual
X
X
X
X
2.12 Legendas / Etiquetas (obras)
- tamanho da fonte usado.
2.13 Folheto promocional sonoro (folder gravado)
Conteúdo (acerca de)
X
X
X
-- MHN –
Item 2.1, cerca de 50 obras (estimativa) podem ser tocadas (Pátio dos Canhões, área externa entre
os muitos andares de exposição). Item 2.9 (extratos sonoros), de modo inadequado foi marcado “sim”.
A informante considerou que uma leitura da carta de Pero Vaz de Caminha feita em determinada
exposição é um recurso para os padrões do atendimento em questão.
No entanto, a leitura esporádica de uma só obra/documento da exposição permanente não configura
recurso explicativo das diversas seções temáticas da exibição.
Uso do Braille: legendas só no Pátio dos Canhões (2.10); impresso em Braille (2.11) “Conhecendo
o Museu”, parceria MHN e Instituto Benjamin Constant: informa sobre a arquitetura e exposição do Pátio
dos Canhões. Texto adaptado e resumido do exemplar em tinta distribuído aos visitantes (em Braille
resultaria em grande número de volumes).
GT92927
-- MNBA –
Há reprodução disponível para tocar quando o contato com a obra original não for possível (item
2.3) e reprodução tridimensional de obra bidimensional (2.5).
O procedimento, porém, necessita de agendamento.
As reproduções não estão disponíveis no circuito do sistema da visitação espontânea (diária,
comum).
-- MAST –
Há reprodução para tocar quando o contato com a obra original não for possível (item 2.3) e
maquetes táteis das obras (item 2.4) referentes à exposição do Sistema Solar (circuito expositivo).
Entretanto, a informante não soube precisar o número exato de maquetes, estimando a quantidade
em 5 ou 6.
Por se tratar de um Museu de caráter interativo, o material disponível não é pensado apenas para
pessoas com deficiência visual, mas para o público em geral. E ainda assim, para o público com deficiência
visual interagir de maneira satisfatória com maquetes e reproduções existentes faz-se necessário adequar
as obras, isto é, dotá-las de texturas diversificadas.
Isto também se aplica ao item 2.6, objetos e jogos tridimensionais baseados nas obras originais.
-- MHN, MNBA, MAST –
Item 2.12, legendas da exposição para videntes (tamanho da fonte). Informantes não souberam
dizer.
Mas há um tamanho mínimo sugerido pela ABNT que não é condizente com o que se observou na
visitação presencial.
Informação Multissensorial: MNH e MAST apresentam dois espaços ao ar livre com legendas
em Braille em parte do contexto expositivo que é amplo e diversificado. Mas os acessos para os dois
lugares não estão adequados pois não usam linhas guias ou similares. Recursos sonoros que são de simples
aplicação para a inclusão não são explorados conforme o poder que possuem, bem como a manipulação,
especialmente, em obras de arte.
A seguir apresenta-se o Quadro 3 - INFORMAÇÂO EM RECURSOS HUMANOS - Existência de:
3 - INFORMAÇÂO EM RECURSOS HUMANOS
Existência de:
MNH
SIM
3.1 Profissional(is) capacitado(s) para receber
a pessoa com deficiência visual?
Em caso positivo, com formação em...
GT92928
NÃO
X
MNBA
SIM
MAST
NÃO
SIM
X
X
NÃO
3.2 Profissional com deficiência visual em seu
quadro de funcionários
Em caso positivo indicar a quantidade?....
X
3.3 Profissional/funcionário com alguma
deficiência em seu quadro
X
X
X
física
X
-----
X
auditiva
X
-----
X
intelectual
X
-----
X
-- MAST –
Marcou “sim” para presença de profissional capacitado para receber pessoa com deficiência
visual (3.1), no entanto, a informante considerou nesta qualificação uma pessoa que não atua de modo
permanente na atividade e pode ser um estagiário de qualquer área.
Quando o Instituto Benjamin Constant telefona agendando uma visita para grupo, há um
contato precedente estabelecendo o planejamento da visita. A orientação é dada pelo Instituto.
Portanto, numa visita espontânea não há profissional capacitado para o público com deficiência
visual.
No MAST há um funcionário com deficiência física que, segundo a informante, não necessita
de recurso para se locomover.
-- MNBA, MAST–
No espaço do formulário Observação foi registrado:
a) MNBA -- “Há um projeto em andamento para receber o público com deficiência visual e baixa
visão”;
b) MAST -- “O recurso do mapa tátil para exposição permanente foi pensado para ser utilizado.” -“O MAST nas discussões sobre as exposições temporárias e permanente tem se preocupado com a
questão da acessibilidade. No entanto ainda não foi possível um trabalho mais focado neste tema”.
No que se refere aos Recursos Humanos especializados para o atendimento já se pode
identificar que reconhecem a necessidade de se adequarem aos novos tempos da inclusão.
Visitação virtual / validação de sites -- No outro modelo de avaliação aplicado, análise do
espaço virtual, ou seja, nos sites dos Museus citados, formato Museu Virtual, verificou-se que não
apresentam qualquer um dos símbolos (abaixo reproduzidos) situados na Web (World Wide Web,
WWW, rede de alcance mundial) e cuja finalidade é indicar no site a função de acessibilidade para
pessoas com deficiência, em diferentes ambientes, situações, para equipamentos e para navegadores.
GT92929
/
E um site para fazer jus ao selo de acessibilidade precisa contar com alguns critérios.
Os considerados básicos são três: Apresentação da Informação, Navegabilidade e
Conformidade.
1) Apresentação da Informação: caso haja imagem na página é necessário fornecer textualmente
a informação (modalidade audiodescrição) que está representada no denominado formato imagético.
Se houver animações ou vídeos, igualmente estes deverão estar acompanhados de descrição em áudio.
No recurso do áudio nas páginas virtuais, cabe lembrar que as indicações para o usuário
deficiente visual devem seguir os padrões da descrição segundo a linguagem específica calcada na
Informação Especial ao usar o recurso da Tecnologia Assistiva.
Um item relacionado e que merece ser observado é o quesito Uso das Cores, cuja finalidade é
facultar para pessoas com baixa visão visualizarem a informação contida na página. Portanto, tornase necessário garantir um bom contraste entre a cor do texto e o fundo da tela e de preferência permitir
que a cor do texto, ligações e fundo possam ser alteradas.
2) Navegabilidade: é imprescindível que a ativação dos elementos da página possa se dar
através do teclado, visto que as pessoas com deficiência visual não utilizam o mouse.
3) Conformidade : realizada após a verificação da acessibilidade do site pelo avaliador que
fará a codificação através de ferramentas de análise ou diagnóstico.
Não obstante a ausência do Selo de Acessibilidade nos três Museus Virtuais deu-se
continuidade para interpretação dos sites utilizando o serviço de um avaliador internacional, o W3C
HTML Validation Service.
No site do Museu Histórico Nacional o avaliador W3C HTML Validation Service informou
ter encontrado 22 erros e, ainda, emitindo 4 avisos.
Esclarecendo: erros constituem obstáculos que impedem o prosseguimento nas telas do
computador, enquanto os avisos, embora permitam o prosseguimento, alertam que a informação está
incompleta.
No site do Museu Nacional de Belas Artes o resultado obtido sinalizou 17 erros e 2 avisos.
E o site do Museu de Astronomia e Ciências Afins apresentou um total de 25 erros e 3 avisos.
Os resultados indicam que os Museus Virtuais do MHN, MNBA e MAST não estão capacitados
a atender as necessidades informacionais da demanda de pessoas com deficiência visual.
GT92930
5. ACESSIBILIDADE -- UMA DISTÂNCIA ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA.
A acessibilidade, elemento essencial para a Inclusão Social, não pode deixar de estar presente
em todos os ambientes internos e externos por onde transitar física ou virtualmente qualquer pessoa,
inclusive aquelas com algum tipo de deficiência.
O conflito entre a qualificação de um caráter acessível ou não acessível surgiu na dimensão
social em decorrência do conceito de padronização de ambientes como resultado da utilização de
modelos considerados típicos e relacionados à ‘maioria’ das pessoas.
Os modelos em questão derivam da concepção baseada na imagem de pessoas jovens, atléticas,
escolarizadas, independentes e sem limitações. No entanto, cabe considerar que pelo menos 10% da
população mundial apresentam algum tipo de deficiência ou mobilidade reduzida.
Portanto, o fato precisa ser levado em conta por todos porque já se tornou perceptível no
convívio social que, conviver com os ditos ‘iguais’ é fácil, sem dúvida, porém mais enriquecedor e
desafiador é conviver com os desiguais e aprender com suas diferenças.
Nos Museus Brasileiros, em especial os localizados na cidade do Rio de Janeiro e que foram
objeto de pesquisa sobre inclusão social de pessoas com deficiência visual, o que se tem percebido ao
longo dos anos e ainda persiste na década inicial do século XXI é a existência de uma distância entre
o discurso e a prática da inclusão, embora o campo da Museologia já tenha incorporado a designação
Museu Inclusivo.
E esta distância pode ser verificada pela pesquisa desenvolvida e relatada neste artigo tanto com
relação aos indicadores utilizados para o perfil dos Museus brasileiros no levantamento do Instituto
Brasileiro de Museus, quanto as instalações físicas e os modelos virtuais dos Museus: Histórico
Nacional; de Belas Artes; de Astronomia e Ciências Afins.
O problema das barreiras impostas à acessibilidade, o processo para remover ou adequar
usando-se de práticas e recursos orientados por conceitos oriundos da Informação Especial e
Tecnologia Assistiva está minimamente representado nos Museus, ou por ser um tema que, ainda,
não se domina ou por não ser avaliada corretamente a relevância da sua aplicação para o atendimento
do público/usuário.
Tornar um Museu ‘inclusivo’ implica a criação de programas e atividades que ofereçam a
possibilidade das pessoas com deficiência e, neste caso, o deficiente visual participar ativamente.
Pressupõe mudanças nas práticas habituais, nas políticas e nos procedimentos adotados. E,
então, será esclarecedor e não haverá mais o entendimento que o Museu é acessível somente porque
oferece um item de uso para o público especial, a exemplo de um catálogo impresso em Braille ou de
um audioguia (aparelho que não formaliza a oferta especializada da audiodescrição).
Embora se reconheça que a sociedade inclusiva não se constrói de um momento para o outro,
assim também não se espera que um Museu para todos surja de uma hora para outra, mas o que se
deseja por ser oportuno e necessário é começar o processo de modo a reunir o maior número de
instituições aptas a desempenhar o papel da inclusão social.
GT92931
REFERÊNCIAS.
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pessoa com deficiência visual. 2011. 143 f. Dissertação (Mestrado)-Programa de Pós-Graduação
em Museologia e Patrimônio. UNIRIO/MAST. Rio de Janeiro: UNIRIO/MAST, 2011. Orientadora:
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24 de outubro de 1989, Dispõe sobre a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de
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GT92934
COMUNICAÇÃO ORAL
MUSEUS E MUSEOLOGIA: NOVAS SOCIEDADES,
NOVAS TECNOLOGIAS
Monique;Tereza Magaldi;Scheiner
RESUMO:
O artigo aborda as novas formas de comunicação estabelecidas através das novas tecnologias,
na sociedade da informação. Os museus são compreendidos como instituições em constante
transformação. As relações estabelecidas através da grande rede de computadores vislumbram ricas
possibilidades de interação entre os museus e as sociedades
PALAVRAS-CHAVE: Museu. Museologia. Tecnologia. Virtual.
ABSTRACT
The article discusses the new forms of communication established with the development of new
technologies in the information society. Museums are understood as constantly changing institutions.
The relationships established in the huge network of computers envision rich possibilities of interaction
between museums and societies.
KEYWORDS
Museum. Museology. Technology. Virtual.
Museus e Museologia: novas sociedades, novas tecnologias
Como qualquer outra instancia de representação, os museus acompanham as transformações
sociais - e mais ainda nos dias atuais, em que as transformações se dão em ritmo crescente. E se
vivemos hoje numa sociedade ‘informacional’, “francamente fundamentada na capacidade de gerar,
processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimentos”1, tudo indicaria que
os museus - pelo menos em tese - seguem estas mesmas tendências. Entretanto, sabemos que nem os
fatos se dão de maneira tão óbvia e nem o conhecimento se gera e propaga de modo linear.
Uma das questões da Museologia contemporânea é buscar compreender melhor tais relações,
buscando analisar as formas e graus de impacto das novas tecnologias sobre a teoria museológica
e sobre a prática em museus (e para museus). Alguns estudos vêm-se desenvolvendo nesta via2,
com interessantes resultados - que afastam o perigo de interpretações maniqueístas segundo as quais
museus, para modernizar-se, devem necessariamente incorporar as novas tecnologias. Com o objetivo
de contribuir para esses estudos desenvolveu-se a dissertação ‘Navegando no Museu Virtual’ 3, que
1 MONTEIRO, Luiz. A internet como meio de comunicação: possibilidades e limitações.
Disponível em:
<http://www.portal-rp.com.br/bibliotecavirtual/comunicacaovirtual/0158.pdf>. Acessado em 02 dez. 2009.
2 LIMA, 2007, 2008, 2009; PINHEIRO, 1998, 2000, 2003, 2006, 2008; SOARES, 2007, 2010; SCHEINER, 2002, 2004, 2007,
2010 - entre outros.
3 MAGALDI, Monique B.. Navegando no Museu Virtual: Um olhar sobre formas criativas de manifestação do fenômeno Museu.
GT92935
abordou algumas relações entre a Museologia e as tecnologias da informação as quais resultam no
desenvolvimento de novas linguagens comunicacionais utilizadas pelos museus; e analisou alguns
parâmetros que pudessem ser verdadeiramente identificadores do ‘museu virtual’, estabelecendo
algumas diferenças entre o virtual e o digital.
Entre as questões em análise sobre as relações museus vs. novas tecnologias, está a do acesso
à informação. Na sociedade ‘informacional’ em que vivemos, estaria a informação acessível a todos?
Em 1999, o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU acusava que “menos de 7% da
população mundial estava conectada à internet, sendo que a maior parte desta parcela (90%) residia
nos Estados Unidos e em outros países industrializados”4 . Em pouco mais de cinco anos a situação
alterou-se significativamente: conforme dados do Comitê Gestor da internet no Brasil - CGI.BR, a
difusão da internet e de computadores no país já havia atingido, em 2005, 54 milhões de usuários.
Quanto ao computador, o equipamento já estaria presente em 25% dos domicílios brasileiros. Deste
percentual,
28% estão nas cidades e 8% na área rural. Com relação ao acesso à internet, enquanto
20% dos domicílios urbanos estão conectados à rede, a posse de uma conexão está
presente em apenas 4% dos lares da área rural .5
A última pesquisa publicada pelo Comitê Gestor da internet no Brasil, no ano de 2008 (TIC
Domicílios 2008), com um universo de 20.020 domicílios entrevistados em área urbana, revelou que
28% possuíam computadores, enquanto 18% tinham conexão à internet. Já em áreas rurais, 8% tinham
computadores, sendo que 4% com acesso à internet. Entre os fatores que influíram em tal resultado
estariam “o custo elevado para a posse do computador e da conexão à internet nos domicílios e a falta
de habilidade com a tecnologia”� . O elevado custo estava presente em 74% dos entrevistados em
área urbana e 79 % em área rural. A falta de disponibilidade atingia 27% de residentes em área urbana
e 35% em área rural. Quanto à falta de habilidade para uso do computador, estava presente em 27%
dos entrevistados residentes em área urbana e 35% residentes domiciliados em área rural – conforme
explicitado nas Tabelas 1 e 2, a seguir.
2010. Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) – PPG-PMUS, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
4 Apud MONTEIRO, L., 2009
5 SANTOS, Rogério Santanna dos. Cresce o acesso às TICs, mas ainda é grande o desafio de democratizá-las a todos os brasileiros.
In: CGI.br (Comitê Gestor da internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2008. São
Paulo, 2009, pp. 45-48. Disponível em:< http://www.cgi.br/publicacoes/artigos/artigo58.htm>. Acessado em 02 de jan. 2010.
GT92936
Categorias e Percentuais
Percentual (%)
Regiões do País
Classe Social
A1 - PROPORÇÃO DE
DOMICÍLIOS COM
COMPUTADOR
No Brasil, entre set. e Nov. 2008
Percentual sobre o total de domicílios
A4 - PROPORÇÃO DE
DOMICÍLIOS COM ACESSO À
INTERNET3
no Brasil, entre set. e Nov. 2008
Percentual sobre o total de domicílios2
Não
Sim
Não
25
75
18
82
28
20
80
20
8
4
96
4
SUDESTE
33
25
75
25
NORDESTE
11
7
93
7
SUL
30
20
80
20
NORTE
15
7
93
7
CENTRO-OESTE
30
21
79
21
2
1
99
1
R$ 416 - R$ 830
10
4
96
4
R$ 831 - R$ 1245
25
16
84
16
R$ 1246 - R$ 2075
45
33
67
33
R$ 2076 - R$ 4150
69
58
42
58
R$ 4151 ou mais
84
81
19
81
A
95
91
9
91
B
70
58
42
58
C
25
16
84
16
3
1
99
1
URBANA
RURAL
Até R$415
Renda Familiar
Tabela 22
Sim
TOTAL BRASIL
Área
Tabela 11
DE
Fonte: COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (2008)
Na Tabela 3, a seguir, apresentamos alguns dados sobre a motivação da falta de computadores
no domicílio:
GT92937
Tabela 3
A9 - MOTIVOS PARA A FALTA DE COMPUTADOR NO DOMICÍLIO
Percentual sobre o total de domicílios sem computador 6
Custo
elevado /
Não tem
como
pagar
Não tem
necessidade /
interesse
Falta de
habilidade
Não sabe
usar com
putador
Tem
acesso ao
computa
dor em
outro
lugar
Custo
benefício
não vale
a pena
Outros
motivos
NS / NR2
75
34
29
11
9
1
1
URBANA
74
34
27
13
9
1
1
RURAL
79
33
35
7
9
1
1
SUDESTE
71
38
31
15
9
1
1
NORDESTE
80
29
28
10
6
-
1
SUL
71
46
26
8
18
1
1
NORTE
83
20
28
8
6
1
-
CENTRO-OESTE
75
33
27
9
12
2
1
Até R$415
79
35
35
5
7
-
1
R$ 416 - R$ 830
79
34
30
9
10
1
1
R$ 831 - R$ 1245
75
34
25
15
9
1
-
R$ 1246 - R$ 2075
64
33
21
21
9
2
1
R$ 2076 - R$ 4150
44
38
21
24
12
8
3
R$ 4151 ou mais
49
42
18
27
10
5
-
A
75
32
24
15
10
1
1
B
79
35
35
6
8
-
1
C
74
34
27
13
9
1
1
DE
79
33
35
7
9
1
1
Percentual (%)
TOTAL BRASIL
ÁREA
REGIÕES DO
PAÍS
RENDA
FAMILIAR
CLASSE
SOCIAL3
Fonte: COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (2008)
Os dados revelam que o motivo que mais influenciou em não adquirir o computador foi o
custo elevado do aparelho. Nesta perspectiva, a redução dos custos de tal equipamento é uma questão
que merece atenção do governo.
Com base no estudo realizado entre os anos de 2000 e 2009 pelo Núcleo de Informação e
Coordenação do Ponto BR - NIC.br, o Comitê Gestor da Internet no Brasil divulgou, em sua página
eletrônica, o crescente quantitativo de usuários da internet. Contudo, os dados mostram que o número
de usuários brasileiros da grande rede de computadores não ultrapassou os 32% da população nacional.
TABELA 4 - Número de usuários de Internet no Brasil, entre 2000 e 2009
Ano
População total do Brasil
(em milhões)
População com acesso à Internet
(em %)
População com acesso à
Internet
(em milhões)*
2000
169,8
5,7
9,8
6 Base: 15.084 domicílios entrevistados com acesso à internet, cujos respondentes sabem o tipo de conexão que possuem. Respostas
múltiplas, estimuladas e rodiziadas.
GT92938
2001
173,8
6,9
12
2002
176,3
7,8
13,9
2003
178,9
7,9
14,3
2004
181,5
10
19,3
2005
184,1
17
32,1
2006
186,7
18
35,3
2007
188
23
44,9
2008
189,9
28
53,9
2009
191,5
32
63
Fonte: 200 a 2004 - Dados do IBGE (Censo e PNAD) e do MídiaDados;
a partir de 2006 - Pesquisa TIC domicílios (NIC.br.)
Santos (2009), Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do
Planejamento e membro do Conselho do Comitê Gestor da internet no Brasil, lembra que
Promover a inclusão digital é essencial para uma nação que almeja o desenvolvimento
com justiça e igualdade social. Este é o esforço que o Governo brasileiro tem feito
nos últimos anos para levar as Tecnologias da Informação e da Comunicação a todas
as classes sociais, em todos os recantos do país. Este é também o objetivo do Comitê
Gestor da internet no Brasil.
Para Scheiner7, hoje “já não parece ser possível fazer ciência sem tecnologia, ou desenvolver
a tecnologia sem o uso de critérios científicos”. Lembremos ainda (apud Scheiner, loc. cit.) que
a tecnologia é “uma instância de aplicação da ciência, fundamentada em aspectos cognitivos e
resultando em soluções práticas para resolver problemas com o uso da Técnica”, esta última um
“conjunto de procedimentos que têm como objetivo obter um determinado resultado, seja no
campo da ciência, da tecnologia, das artes ou em qualquer outra atividade”. O deslocamento de
interesses e percepções, do mundo material (objetos) para os ambientes cognitivos (interfaces,
fluxos), fenômeno provocado pela popularização dos computadores como equipamentos coletivos
de inteligência, “abre caminho para que o mundo seja pensado a partir de processos – e não mais de
produtos”. Neste contexto, em que
o espaço físico é substituído pelo espaço das funções cognitivas: coleta de informações,
armazenamento de memória, avaliação, decisão, concepção (...),os computadores
tornam-se poderosos instrumentos de sedução, gerando a mais poderosa rede de
significações já criada pelo humano: o universo virtual (IBID, passim).
Novas tecnologias, novas formas de comunicação:
Em 2004, Scheiner8 já comentava as transformações provocadas por esses processos: “novos
desafiantes eletrônicos, que tornam possível a produção e a distribuição descentralizadas de sinais
7 Políticas e Diretrizes dos Museus e da Museologia na Atualidade. In: BITTENCOURT, José Neves; GRANATO, Marcus;
BENCHETRIT, Sarah Fassa. (Org.). Museus, Ciência e Tecnologia. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2007, v. , p. 89-97
8 Ibidem.
GT92939
e produtos mediáticos” permitem inúmeras articulações entre o meio cibernético e as mídias ditas
‘tradicionais’ (rádio, cinema, imprensa, TV); e o que antes era apresentado ao público através de
canais específicos para cada mídia de massa, respeitando padrões, agora se transforma com a oferta
pluralizada instaurada pelo padrão digital - baseado em “redes onde a informação impressa, sonora ou
em vídeo transita de forma simultânea, integrada ou complementar”. Pois, se antes o padrão mediático
era a comunicação um-todos, agora muitos interagem com muitos, simultaneamente. Esta diversidade
de recursos nos proporciona “um constante e crescente fluxo de informação” – que faz com que a
internet disponha de mais informações do que qualquer outro meio de comunicação de massa.
O mundo cibernético engloba dispositivos, recursos e mídias articulados sob as mais diversas
formas. Podemos citar a combinação entre a televisão aberta e os computadores, combinação esta
que dá origem à ‘internet móvel’, via telefone celular. Entre os dispositivos agregados ao universo
cotidiano das comunicações incluem-se os smartphones, que incorporam tecnologias, sistemas e
processos como Bluetooth, wi-fi, acesso a sites da internet de busca, contas de e-mail, câmera digital,
MP3 , rádio, Windows Mobile 6 Professional (criado para dispositivos móveis, com funções como
Word, Excel, PowerPoint, Windows Media Player Pocket). Scheiner9 lembra que,
Sob a influencia (...) das novas tecnologias, a sociedade humana vivencia hoje uma
nova experiência de mundo: uma nova estrutura de conhecimento se desenvolve para
além do caminho aberto pela escrita, para além da linguagem – rumo a novas formas
de enunciação coletiva, que visam permitir que a informação e o conhecimento sejam
universalmente distribuídos. Esta é a verdadeira essência do meio virtual: o potencial
praticamente inesgotável de criação e de compartilhamento da informação. Isto é
o que vai, de certa forma, possibilitar a recuperação do contato com a oralidade,
deixada em segundo plano desde o advento da escrita e dos suportes estáticos de
informação. Só que esta aproximação faz-se, agora, de maneira infinitamente mais
ampla e complexa.
Mas como a presença da técnica não é garantia absoluta de mudança, há que admitir as dificuldades que ainda
temos de elaborar as novas realidades, aprendendo a conviver com o paradoxo - pois, “para existir, o mundo [dito]
virtual deve replicar o ‘mundo real’ – sua existência se legitima, portanto, pela existência do mundo já conhecido”
. Isto explica a importância que se atribui, hoje, ao patrimônio - já não mais percebido como “o
conjunto de valores atribuídos ao espaço geográfico e aos produtos do fazer humano, mas como
um valor plural, ao qual estão sendo atribuídas novas significações”11. Explica, ainda, as novas
relações que a sociedade humana vem estabelecendo com os museus - não só no que tange aos
museus ditos ‘tradicionais’, mas também instaurando, a partir da relação com as novas tecnologias,
um novo modelo conceitual de Museu - o museu virtual.
Ao analisar as páginas web dos museus nacionais portugueses, Pinho12 afirma:
10
A internet evidencia um incontornável potencial informativo e comunicativo tanto em
9 Ibidem.
10 Ibid., loc. Cit.
11 Ibidem.
12 PINHO, Joana Maria Balsa Carvalho de. Museus e internet. Recursos online nos sitios web dos museus nacionais portugueses.
Revista TEXTOS de la CiberSociedad, Temática Variada. Disponível em <http://www.cibersociedad.net/textos/articulo.
php?art=143>. Acessado em: 02 dez. 2009.
GT92940
questões de rapidez de circulação, número de pessoas que atinge e áreas geográficas que
abarca; e devido às suas características de imaterialidade, instantaneidade e multimídia,
democratiza o acesso à informação e a determinados tipos de bens, facilita a comunicação
entre pessoas e instituições e universaliza as oportunidades, eliminando as barreiras espaciais,
geográficas e temporais.
Com a internet, os museus não só ampliam “numericamente a demanda informacional, como
a disseminação se capilarizou, ainda mais, pelas variadas categorias que representam os segmentos
formadores do que se nomeia público de museus”13.A internet, enquanto novo ambiente a ser utilizado,
tornou disponíveis “ações de visitação, consultas, pesquisas e recreação nos sites dos museus”14. A
rede permite “fazer a crítica a tudo o que é ponto fixo, suscetível de fazer referência, abalando a
crença moderna na identidade como estabilidade” (Ibidem). Pinho15 comenta que
A generalização de sítios Web de museus possibilitou que estes passassem a ser um
dos mais importantes meios para difundir e promover as instituições museológicas,
a sua história, acção e iniciativas, através da disponibilização de um conjunto de
informações e recursos.
Com o advento das Redes de computadores, o Museu Virtual surge e se consolida enquanto
categoria de Museu.
O mundo interconectado
Ponto de partida deste trabalho, a década de 1970 é marcada pelo advento da lógica de
desterritorialização. Citemos as “grandes redes de informação e comunicação, com seus fluxos
invisíveis, imateriais, os quais formam territórios abstratos que escapam às antigas territorialidades”16.
Um exemplo é a rede de telefonia celular criada pelo Japão, em 1979, que fez com que pessoas
localizadas em lugares diferentes pudessem se locomover e, simultaneamente, falar ao telefone. Castells17 acredita que é na década de 1970, através da disponibilidade de novas tecnologias,
que se desenvolve o “processo de reestruturação socioeconômica dos anos 80” - quando o uso destas
tecnologias condicionou, em grande parte, os usos tecnológicos na década seguinte. De certo modo,
é na década de 1970 que “a Revolução Tecnológica da Informação propriamente dita nasceu [...]
principalmente se nela incluirmos o surgimento e a difusão paralela da engenharia genética”18.
Lembremos que, em 1975, inventa-se o microcomputador - e que em 1977 ocorre a clonagem do
primeiro gene humano. Neste período inicia-se ainda a produção da fibra ótica em escala industrial,
a qual, servindo como meio de transmissão de ondas eletromagnéticas em alta velocidade para
longas distâncias, permite conectar continentes utilizando tecnologia digital (perspectiva esta que
13 LIMA, Diana Farjalla e COSTA, Igor R.F. Ciência da Informação e a Museologia: estudo teórico de termos e conceitos em
diferentes contextos – subsídios à linguagem documentária. VII Cinform. Disponível em: http://dici.ibict.br/archive/00001116/01/
DianaLima.pdf. Acessado em 02 dez. 2009.
14 Ibid, loc.cit..
15 Ibid.
16 MATTELART, Armand. História da sociedade da informação. São Paulo: Loyola. 2001.P. 166.
17 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede: a era da informação – economia, sociedade e cultura.vol.1.São Paulo: Paz e Terra.
2000. 617p.
18 Ibid. p.64.
GT92941
seria realizada na década de 1980). Com a possibilidade de conexões entre pessoas em proporções
mundiais, torna-se possível articular o que chamamos hoje de rede mundial, a ‘rede das redes’: a
internet. Novas relações sociais são estabelecidas, formando “um novo tecido-social, decorrente
dessa multiplicidade de canais e das múltiplas possibilidades de interação social”19: a rede como
conectividade.
Ilustração 14 - Visualização gráfica de várias rotas em uma porção da internet
Nas décadas de 80 e 90, assiste-se ao surgimento de uma “era da digitalização”. Os
acontecimentos do período são analisados por autores como Lévy, que acredita em uma “inteligência
coletiva” e uma “democracia em tempo real”. Para Lévy20, a inteligência coletiva seria “um processo
de crescimento, de diferenciação e de retomada recíproca das singularidades” - “uma inteligência
distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta
em uma mobilização efetiva de competências” e cuja base e objetivo “são o reconhecimento e o
enriquecimento mútuo das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas” 21.
Para alguns teóricos, surge neste período uma nova economia política da inteligência,
com o “fortalecimento do vínculo entre as novas tecnologias da informação e da comunicação e as
novas tecnologias intelectuais”22. Inicia-se um movimento de transformação das diferentes redes de
computadores formadas desde o final dos anos 70 - unindo-se umas às outras. Ao mesmo tempo, o
número de pessoas e de computadores conectados à inter-rede começa a crescer de forma exponencial23.
Na década de 1980, a internet é difundida mundialmente.
Em 1995, devido ao grande aumento de usuários no início da década de 1990 (por motivos
que veremos adiante) a internet foi transferida para a administração de instituições
não-governamentais, que se encarregam, entre outras coisas, de estabelecer padrões
19 FERNANDES, Ângela Silva; BERVIN, Evandro; ANTONACIO, Gabriel M.; MARINHO, Iracema; SANTANA, Maria Gorette
H.; JÚNIRO, Pedro Carlos R. Tecnologia e Comunicação. In: MIRANDA, Antonio; Simeão, Elmira (Org.). Informação e tecnologia:
conceitos e recortes. Brasília: UNB, Departamento da Ciência da Informação, 2005. p.28.
20 Levy, Pierre. Conexões planetárias: o mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo: ed.34. 2001.p.32.
21 Ibid., passim.
22 MATTELART, Armand. História da sociedade da informação. São Paulo: Loyola. 2001.p.178.
23 LÉVY, 2001. P.32
GT92942
de infra-estrutura, registrar domínios, etc. Exemplos dessas instituições são a internet
Society (baseada nos EUA, mas atuando em todo o mundo) e o Comitê Gestor da
internet (com atuação restrita ao nosso País). 24.
Vale comentar que em 2000 se implanta, no Brasil, o backbone RNP225, como forma de
integração a uma rede de alta tecnologia. Hoje, vinte e sete estados brasileiros estão interligados com
cerca de trezentas instituições de ensino superior e de pesquisa no país. Quatro anos mais tarde, a
internet se articularia numa ampla rede sem fio (wireless), empregada em aeroportos, universidades e
outras instalações; utilizando tecnologias de infravermelho ou de rádio.
Com as novas tecnologias, torna-se possível a constituição de um espaço múltiplo de interconexão
entre diversas pessoas, em diferentes lugares do mundo, fazendo uso não apenas do som26 mas de imagens,
textos, vídeos, entre outros recursos que privilegiam a interatividade. Estas tecnologias permitiriam
compreender e incluir, em nosso dia-a-dia, dinâmicas de comunicação, através de equipamentos conectados
à internet, ou Grande Rede de Computadores27. A comunicação entre duas pessoas que utilizassem
aparelhos telefônicos conectados a uma rede telefônica (com fio ou sem fio); é hoje ampliada para um
sistema comunicacional que permite a diversas pessoas estarem interconectadas em tempo real.
A internet, “por suas características de sistema hipertextual”, no qual “o usuário não tem o
compromisso de seguir a ordem ‘começo, meio e fim’, permite ao usuário traçar a sua ordem particular,
‘navegando’ através dos documentos interligados”; permitindo ainda que a audiência desenvolva seu
próprio caminho de acesso aos conteúdos, determinando “determinando quando e quais informações
quer receber. A sua postura deixa de ser a do receptor passivo. Em outras palavras, sai o espectador e
entra em cena o usuário”28.
Para Monteiro29 a
internet é uma espécie de meio ‘híbrido’: embora criado como meio de comunicação
interpessoal, tem características de meio de comunicação de massa. No entanto,
também pode negar essas mesmas características. Na realidade, tudo depende do uso
que estará sendo feito da Rede.
Lévy 30 comenta que as novas tecnologias procuram, cada vez mais, reduzir o tempo e o
espaço de comunicação entre dois ou mais pontos no planeta. O autor acredita na redução crescente
das fronteiras. Os olhos se voltam para uma perspectiva planetária, sem fronteiras. Esses ‘olhos
planetários’ escapariam das ditaduras, rompendo os limites delimitados pelos Estados, abrindo a
imaginação. Como exemplo, cita a liberdade de circulação entre as finanças e a Informação, “por
que o dinheiro é livre em seus movimentos e não aqueles que os conduzem, ganham-no, gastamno, dedicam-lhe a vida”. As fronteiras erguidas em alguns Estados para que os humanos sejam
24 MONTEIRO, 2009.p.
25 Rede Nacional de Ensino e Pesquisa.
26 Como até então era permitido pelas linhas telefônicas
27 Hoje a Rede não mais se restringe aos computadores, uma vez que recursos nos permitem conectar outros aparelhos como
celulares e televisão.
28 MONTEIRO, 2009.p.32.
29 In loc.cit..
30 LEVY, 2001. P.33
GT92943
impedidos de circular demonstrariam ser o pensamento de Lévy idealista e irreal; mas lembremos
que movimentos como a criação do Euro - que permitiu o rompimento das fronteiras financeiras e
alfandegárias - tornaram possível o término das fronteiras para pessoas, como já acontecia com as
mercadorias, com o capital e a informação.
Segundo Lévy31, acreditamos, cada vez mais, em uma “terra sem fronteira”. Espera-se
a libertação não somente nacional, mas para humanos planetários. Com o fim das fronteiras,
das divisões nacionais e com a liberdade de imigrações, acontecerá a proclamação
da ‘Confederação Planetária’. No processo de planetarização, a interconexão geral
implicará em “uma aproximação dos humanos e um alargamento de suas perspectivas”,
através do “adensamento das redes de transporte e de comunicação”. Neste caso,
as diferenças culturais aflorariam, podendo causar novas fronteiras. O processo de
planetarização permitirá formar-se uma única consciência – a consciência coletiva,
cuja “essência é a exploração infinitamente das formas atualizando o virtual”32.
Contudo, as idéias de Lévy são hoje consideradas, de certo modo, utópicas, no sentido de
que existe um crescente controle político dos processos comunicacionais. Governos de alguns países
têm interferido diretamente na estrutura e funcionamento das redes, como, por exemplo, a China e a
Venezuela. Além disso, o controle econômico das redes e dos sistemas de rastreamento de informações
torna-se uma realidade cotidiana. A liberdade de pensamento e de ação parecem ainda distantes.
As novas tecnologias e os museus: a relação que se estabelece na Rede
Scheiner33 comenta que “o uso da tecnologia transforma o modo de estar no mundo, produzindo
novos sujeitos, com novas e diferentes capacidades e habilidades”. Podemos estar de duas formas no mundo:
a presencial e o mundo criado artificialmente, “totalmente criado pelo engenho humano e independente da
natureza”. Esse mundo simulado pelo computador e acessível através da Grande Rede, a internet, é uma
segunda forma de se apresentar a realidade.
Juntamente com estas transformações, o Museu se diversifica, se transforma, passa a ocupar
novos espaços, se constitui totalmente em meio virtual. Agora, o visitante é o usuário da rede eletrônica
e o endereço do museu passa a conter as iniciais www ( World Wide Web) e a expressar-se através de
diferentes domínios, como: COM.BR; GOV.BR; MIL.BR; NET.BR. O visitante acessa, em tempo real,
as salas virtuais das exposições, limitando-se às imagens que aparecem na tela do computador, aos
sons e ao click no mouse, em um ritmo definido por ele mesmo, bem diferente do que se convencionava
num museu. Antes, as visitas eram presenciais; agora é necessário somente saber o endereço eletrônico
e acessar, em um computador conectado à internet, o museu desejado.
Com o hiperlink, vivencia-se uma nova relação espaço / tempo. Um clique permite ao visitante
encontrar e visitar museus localizados em diferentes países. Não há uma relação icônica do hiperlink
31 In loc.cit.
32 Ibid., passim.
33 SCHEINER. 2007.P. 91
GT92944
com algo real. Através deste, há um deslocamento espacial considerável: em um curto espaço de
tempo podemos acessar páginas eletrônicas em diferentes localidades no mundo. Não há relação
ou semelhança com algo parecido que possa representar deslocamento espacial, causando certa
abstração quanto ao seu significado - apesar de ser este associado à idéia de passagem, mudança ou
direcionado para outro site. Ao acessar a página eletrônica de um museu, a relação do visitante com a
experiência virtual é mediada pelo computador, tendo como canal a internet, em meio a um turbilhão
de cliques, interações com sons e imagens. Este é um exemplo de acesso à informação dentro da
lógica do que foi chamado conceitualmente hipertexto34: a mente humana, explica Lévy35, “pula de
uma representação para outra ao longo de uma rede intrincada, desenha trilhas que se bifurcam, tece
uma trama infinitamente mais complicada do que os bancos de dados”.
Alguns autores já questionam como ficaria o Museu, diante das novas tecnologias “que
permitem e exigem a mudança dos conceitos de memória, documento e acervo”. Segundo Santaella36,
o museu “costuma ser localizado, antes de tudo, na fase ou setor de conservação e armazenamento
de produtos sobrecarregados de aura, ou seja, os produtos artísticos como objetos únicos”. A esse
respeito, Soares37 lembra que vale ressaltar que os museus têm, entre outros, o papel de mediar a
relação entre homens e patrimônio, sendo responsáveis pela dinâmica que irá resultar desta relação.
Quanto à tecnologia, cabe aos museólogos descobrir em que medida pode ser este um poderoso
instrumento de sedução. Cabe ainda lembrar que a tecnologia chega aos museus bem antes da
difusão do virtual via internet. As exposições, por exemplo, seus sistemas eletrônicos de iluminação,
audiovisual, áudio-guia, bases de dados e outros sistemas informativos e comunicacionais, mostram
já existir uma profícua relação entre museus e tecnologia, bem antes da sua inserção no mundo dito
virtual, via internet.
E na prática, os museus estão acompanhando tais tendências? Como? Os museus utilizam as
novas tecnologias ou são usados por elas?
As novas tecnologias abrem novas perspectivas e possibilidades para os museus. É sob a lógica
do hipertexto que deveriam, hoje, comunicar-se - mas muito poucos ainda o fazem, pois uma coisa
é agregar aos museus existentes (tradicionais ou de território, de todas as modalidades) implementos
das novas tecnologias; e outra, muitas vezes mais complexa, é transformar os códigos narrativos
dentro desta nova lógica. Museus Tradicionais e de Território têm buscado utilizar a internet como
meio de se comunicar e difundir os seus espaços. Mas, neste sentido, ainda há um longo caminho a
seguir.
Menos problemática tem sido a absorção de novas tecnologias na museografia documental:
os acervos passam a ser impreterivelmente copiados, digitalizados, sendo as cópias gradativamente
34 A noção de hipertexto provém da idéia de que a maior parte dos sistemas de indexação e organização de informações que não
correspondem – ou correspondiam quando o termo foi cunhado (no início dos anos 1960) – ao funcionamento da mente humana, que
se daria através de associações.
35 LEVY. 2004. P.28
36 SCHEINER. 2003.P. 152-153
37 SOARES. 2007.P. 25-31
GT92945
armazenadas em discos digitais, ou na memória de um computador. Com o advento da internet, estas
imagens puderam ser acessadas/visualizadas em qualquer computador que tenha conexão com a rede
mundial de computadores, tornando os museus virtuais globais, dinâmicos, multidisciplinares - como
já havia proposto McKenzie em 2006.
Quanto aos museus virtuais eletrônicos, estes também têm buscado usar o máximo de
ferramentas, em prol de fluxos dinâmicos e que atraiam, cada vez mais, visitantes/ internautas. Como
Lévy (1999:146), entendemos o ciberespaço como “um gigantesco metamundo virtual”, que não mais
se restringe a transações econômicas, mas abre-se à perspectiva do aprendizado e do lazer. As novas
formas existentes no ciberespaço não substituem as originais, mas somam-se a elas, estabelecem
novas relações.
No âmbito da teoria museológica, organizam-se grupos de pesquisa e discussão sobre o tema –
como o Archives & Museum Informatics, cujos encontros internacionais, realizados anualmente nos
Estados Unidos, são dedicados ao estudo das relações entre arte, ciência, patrimônio natural e cultural
na internet – tendo sido o primeiro tema estudado Museus e Web38.
Como já apontava Miranda39, ao contrário do Brasil, existe uma grande quantidade de estudos
quanto à utilização das novas tecnologias em museus da Europa e dos Estados Unidos. Em 2001,
ela chamava a atenção para a pequena quantidade de estudos referentes a sites de museus no Brasil:
quantitativo, histórico de usos de suas ferramentas, conteúdos veiculados e utilização pelos usuários.
Este é um caminho que ainda precisa ser trilhado com mais assiduidade e constância: pois, quanto
melhor se conhecer os sites de museus e sobre museus, melhor se poderá compreender e analisar as
relações entre esses sites e o que a Museologia denomina ‘museu virtual’.
No que tange à visitação em museus via internet, citamos Carvalho, que nos apresenta um
estudo de público de visitantes virtuais na página eletrônica do Museu Histórico Nacional. Para a
autora, o MHN é um pioneiro, no Brasil, em se estabelecer em um “território virtual”, cativando
clientela ou usuários da instituição em meio físico, uma vez que “a virtualidade não substitui a visita
presencial, ao contrário, pode estimulá-la como forma de planejamento prévio numa viagem ou numa
visita in loco à instituição” 40.
Faz-se necessário, também, identificar as experiências relacionadas a museus em meio digital.
Entre outros exemplos existentes na internet, podemos citar o projeto desenvolvido pelo Museu
do Prado, um dos mais importantes museus da Espanha, que, em um movimento de incorporarse à internet, associou seu acervo ao site do ‘Google Earth’. O projeto desenvolvido pelo Museu
consiste em fotografar, em alta resolução, 14 obras de arte, utilizando equipamentos de alta-definição,
com o intuito de disponibilizá-las na internet. Internautas do mundo inteiro podem assim visitar,
virtualmente, o acervo e o espaço do Museu.
38 Archives & Museum Informatics. Disponível em: <http://www.archimuse.com/conferences/mw.html>. Acessado em: 01 jul. 2009.
39 MIRANDA, Rose Moreira de. Informação e sites de museus de arte brasileiros: Representação no ciberespaço. 2001.
Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – IBICT, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação; Escola de
Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001
40 CARVALHO, Rosane Maria Rocha. As transformações da relação museu e público: a influência das tecnologias da informação
e comunicação no desenvolvimento de um público virtual. 2005. 288 f. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e tecnologia, Universidade federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2005. Disponível em: http://teses.ufrj.br/ECO_D/RosaneMariaRochaDeCarvalho.pdf .p.201.
GT92946
Ilustração 1041 – Exposição do Museu do Prado no ‘Google Earth’
A empresa que realizou o projeto disponibilizou um vídeo na internet, onde está detalhado todo
o processo, mostrando como a experiência foi desenvolvida42.
Ilustração 115 – Técnicos fotografando e
reproduzindo imagens no computador, numa das salas
de exposição do Museu do Prado
Ilustração 137 – Equipamento utilizado.
Ilustração 126 – Uma das fotos do acervo de arte do
Museu do Prado, registrada em alta-definição.
Ilustração 148 – Máquina fotográfica com altaresolução, em frente a um dos quadros do Museu.
41 MUSEU DO PRADO. Disponível em: <http://googlediscovery.com/2009/01/14/museu-do-prado-no-google-earth/>. Acessado
em: 24 jun. 2009.
42 Ibidem.
GT92947
Também no site do Google Earth é possível realizar visitas a espaços de museus, reproduzidos
e criados via tecnologia digital. Para acessar a exposição, é fundamental instalar o programa no
computador a ser utilizado. Programa instalado, o visitante do site deve procurar, no mapa mundi
- disponibilizado no próprio site do Google Earth - a localidade onde se encontra o museu. Em
sucessões de cliques, o programa ampliará, cada vez mais, a região escolhida pelo visitante.
Ilustração 1543 - Lista de imagens da Exposição do Museu do Prado no ‘Google.
De início, visualiza-se o continente desejado; ao ampliar o mapa mais um pouco, visualiza-se o
país escolhido, depois a cidade, o bairro, o quarteirão, a rua e, finalmente, o museu. O visitante pode,
então, fazer uma visita virtual ao museu, percorrendo o interior da Instituição, visualizando as 14
obras disponibilizadas, em todos os seus detalhes.
Entendendo que a função dos museus não é somente conservar acervos, mas também viabilizar
o acesso dos usuários, o Museu do Prado é um exemplo de museu existente em meio físico, mas que
mostra estar articulado com tal perspectiva, utilizando também a internet como aliada na divulgação de
seus acervos e atividades. Vale ressaltar que a exposição acima relatada não faz com que a experiência
desenvolvida, que se constitui na internet, seja entendida como museu virtual. Na realidade, a empresa
contratada desenvolveu uma exposição na internet para que as pessoas que não conhecem o museu
tenham a oportunidade de conhecer o seu acervo, ou parte dele, mesmo que a sua visita seja realizada
via internet.
Para além da planaridade das telas dos computadores
O desenvolvimento tecnológico opera em constante transformação, de modo cada vez mais
acelerado. Muitas vezes não conseguimos acompanhar ou conhecer todas as novidades tecnológicas,
entender como estas se estruturam e quais são as suas possibilidades de uso. Quem seria capaz de dizer
que conhece todas as funções e formas de uso daquele aparelho celular comprado há apenas quinze
dias? Não é incomum podermos identificar jovens que desbravam configurações, possibilidades de
acesso à internet e as diversas funções extras do aparelho em questão, tecnologia de última geração.
43 Ibidem.
GT92948
Ilustração 744 - DataGlove ou luvas de dados
Façamos um exercício: tentemos imaginar, ao invés de estar em frente a um monitor
do computador, estar usando um Head-Mounted-screen ou capacete de visão. Com este
capacete, imagens artificiais podem ser misturadas com a visão do ‘real circundante’45.
Além de imaginar este capacete, imaginemos estar também usando o DataGlove ou luvas de dados,
com o qual se pode interagir com o meio artificial de tal forma que é possível acreditar estar tocando
imagens ou objetos. Some-se a estes dois equipamentos o DataSuit ou macacão de dados, que dará
uma real sensação de estar em um ambiente quente, frio, ventilado, apertado, etc.
Ilustração 846 - Head-Mounted-screen ou capacete de visão
Este somatório de equipamentos replicadores dos sentidos da visão, audição e tato permite
entrar em contato e/ou interagir totalmente com um mundo artificial tridimensional, num processo de
imersão que extrapola a bidimensionalidade da tela do computador. Deste modo, ‘imerso neste espaço
tridimensional de síntese, o indivíduo pode navegar em todas as direções e de todas as formas’47. Neste
espaço, encontram-se objetos diversos e cruza-se com criaturas estranhas, elementos que podem ser
tocados, tirados do lugar e manipulados.
É nesta atmosfera de descobertas artificiais tecnológicas que se encontra, hoje mais do que nunca,
a nossa sociedade. A artificialidade, a simulação, a representação estão cada vez mais presentes. E,
44 DATAGLOVER. Disponível em: < http://www.niee.ufrgs.br/eventos/RIBIE/2000/papers/028.htm>. Acessado em: 02 fev. 2009.
45 CADOZ, 1997.P.7
46 Head-Mounted-screen . Disponível em: <http://www.niee.ufrgs.br/eventos/RIBIE/2000/papers/028.htm>. Acessado em: 02 fev. 2009.
47 CADOZ, 1997.p.7-8
GT92949
naturalmente, surgem novos termos, como ‘vida artificial’ ou ALife (Artificial Life) - termo criado por
Cristopher Langton, na década de 1980, para designar um campo emergente, resultado da confluência
de disciplinas como Teoria Biológica, Sistemas Lineares e outros. Atualmente, utiliza-se o termo
‘Vida in Silício’ para formas de vida baseadas no Silício e não no Carbono48.
Ilustração 99 - Exposição sobre realidade virtual mostra novidades em Tóquio.
Muitas pessoas podem desconhecer as inovações tecnológicas citadas, porém conhecem outras
como o mouse óptico, sem fio; ou celulares com teclado virtual - que nada mais são do que projeções
imagéticas, com a mesma função das conhecidas teclas físicas. Tudo isso reforça a certeza de que
outros equipamentos surgirão e serão aceitos com maior naturalidade.
Considerações finais
Estes eventos, entre tantos outros, mostram mudanças que comprovam transformações na forma
de pensamento da sociedade. E os museus não poderiam ficar à margem. Os museus acompanham
as transformações sociais, somam-se às novas tecnologias. Seus acervos são automatizados, criamse bases em Intranet (rede de computadores restrita) e na internet (Grande rede de Computadores);
pluralizam-se as experiências por intermédio da grande rede de computadores, com a possibilidade de
divulgar ações via internet ou, até mesmo, criar museus que se constituem exclusivamente na Rede.
Tais mudanças são percebidas não só no âmbito dos museus, mas também em bibliotecas e
arquivos, instituições de memória que acompanham as transformações sociais e fazem uso das novas
tecnologias. Pinheiro49 afirma ser a “emergência dos computadores e da automação em organismos de
informação” um “fator de aproximação, integração e articulação, notadamente de bibliotecas, museus
e arquivos”. Este processo exige “sistemas integrados ou redes e a necessidade de metodologias,
formatos, técnicas e tecnologias de processamento com essa finalidade, visando a proporcionar um
amplo intercâmbio de dados”. Para a autora, é da automação que emerge a “visão de sistema de
informação” e “dela decorre todo o instrumental para recuperação e disseminação da informação”50.
Para acompanhar tais tendências, chamamos a atenção para a relação interdisciplinar entre
museólogos, cientistas da Informação e programadores de sistemas. Desta relação, poderão surgir
48 Ibid, passim.
49 PINHEIRO, Lena Vania R., GONZÁLEZ DE GOMÉZ, Maria Nélida (orgs). Interdiscursos da Ciência da Informação: Arte,
Museu, Imagem. Rio de Janeiro; Brasília: IBICT / DEP / DDI, 2000.
50 Ibid, in loc. cit..
GT92950
novas e interessantes formas de pensar projetos: bases de dados, exposições, visitas interativas,
materiais educativos eletrônicos, digitalização de acervos, acondicionamento de acervos, entre outros.
Poderão, ainda, desenvolver-se novas estratégias discursivas, que incorporem as NTICs à episteme da
contemporaneidade, articulando formas narrativas mais complexas e menos lineares - mais reveladoras,
enfim, dos modos e formas como se dá, hoje, a comunicação. Novas idéias e possibilidades, novas
soluções, que articulem ciência, técnica e as novas tecnologias - com criatividade e arte, contribuindo
para tornar cada vez mais atuais e participativos os nossos museus.
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GT92953
COMUNICAÇÃO ORAL
MUSEUS E PESSOAS NO MUSEU DA PESSOA: PENSANDO
O VIRTUAL COMO SOCIAL.
Monique;Tereza;Bruno Magaldi:Scheiner:Soares
RESUMO:
De acordo com a análise da experiência do Museu da Pessoa, museu virtual que preserva suas coleções
em base digital, é possível pensar o virtual como uma parte do social, e perceber as relações entre pessoas,
memórias e identidades na rede eletrônica como ressignificações que têm como referência as relações que
se dão em outras esferas do social. No ciberespaço, novos usos aos lugares de memória são instaurados, e
identidades e sentidos são fixados de modo que se constituem ‘comunidades imaginadas’. No Museu da
Pessoa, a partir de uma coleção de memórias individuais, buscou-se, desde o início, a construção de uma
memória coletiva. Neste museu que não expõe as pessoas em si, mas as representações que elas fazem de si
mesmas, a preocupação central não é com a ‘verdade’ dos fatos narrados, mas com a autenticidade da própria
narrativa e de seus efeitos. Palavras-chave: Museu. Museologia. Memória social. Virtual. Social.
ABSTRACT:
According to the analysis of the Museum of the Person experience, a virtual museum that
preserves its collections on a digital base, it is possible to think the virtual as a part of the social, and
to perceive the relationships between people, memories and identities on the web as re-significations
referring to the relations that take place in other social spheres. In the cyberspace, new uses of the
sites of memory are established, and identities and meanings are crystallized so that ‘imagined
communities’ are born. In the Museum of the Person, a collective memory is built from a collection of
individual memories. This museum does not display persons themselves, but the representations that
they make of them. The central concern is not with the ‘truth’ of the events, but with the authenticity
of the narrative itself and of its effects.
Keywords:
Museum. Museology. Social memory. Virtual. Social.
“Life’s but a walking shadow; a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.”1
(William Shakespeare - ‘Macbeth’)
1 A vida não passa de uma sombra em movimento; um pobre ator, / Que se pavoneia e se consome em sua hora sobre o palco, / E,
depois, não se ouve mais falar dele: é um conto / Contado por um idiota, cheio de som e fúria, / Significando nada. (Tradução nossa)
GT92954
1. Introdução
Na reunião do World Summit on the Information Society (WSIS)2, em 2003, organizada pelas
Nações Unidas, em Genebra, em 2003, foi adotada uma Declaração de Princípios fornecendo algumas
considerações para a sociedade da Informação, voltada para o bem-estar de todos. Nela, chama-se a
atenção para o papel da conectividade e da infra-estrutura de rede como forma de acesso à tecnologia
de comunicação e informação3. Mas estaria o virtual restrito às tecnologias da comunicação e da
informação?
Partindo deste questionamento, o presente artigo tem por objetivo demonstrar que, apesar
da existência da exclusão digital em grande parte do mundo – já que nem todas as pessoas têm uma
parcela de suas relações mediada pelas máquinas –, é seguro afirmar que o social existe no virtual.
A ideia de virtual trazida para este artigo é ampla. O virtual coexistiria tanto no ciberespaço4,
meio eletrônico, quanto no mundo das coisas ‘palpáveis’, materiais ou imateriais. Para Levy, virtual é
algo em potência, algo em transformação, é o vir-a-ser, é um ‘complexo problemático’. Para ele, por uma
perspectiva filosófica, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. E o autor vai além:
O virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito, quando em um mesmo movimento
surgem a definição do sentido e a propensão do texto a significar, tensão que uma atualização, ou seja,
uma interpretação, resolverá na leitura.5
O virtual não se restringe ao conjunto de máquinas, tecnologias eletrônicas. O virtual também
pode ser nômade, desterritorializado. O meio eletrônico, a Grande rede de computadores são meios de
manifestação do virtual. Neste sentido, somos rodeados de virtualidade.
No que tange ao ciberespaço, as relações são alteradas. Nossos signos são transformados em
bytes digitais. Para Monteiro, a “página em branco é o campo do monitor; a caneta é o teclado”6.
O ciberespaço seria “como um mundo virtual porque está presente em potência, é um espaço
desterritorializante”. Nele, o mundo não é palpável, ainda que alcance os sentidos, mas “existe
de outra forma, [em] outra realidade”, em um “local indefinido, desconhecido, cheio de devires e
possibilidades”. Como relata a autora, “não podemos sequer afirmar que o ciberespaço está presente
nos computadores”, ou mesmo nas redes. Sendo assim, “onde fica o ciberespaço?” Para onde é
deslocado todo esse “mundo”, essa parte imprescindível de nossas vidas diárias, quando desligamos
os nossos computadores?7 Respondendo a essas questões, poderíamos afirmar que o ciberespaço, em
2 GENEVA DECLARATION OF PRINCIPLES. Disponível em: <http://www.itu.int/wsis/docs/geneva/ official/dop-es.html>.
Acessado em: 02 fev. 2009.
3 NOVAES, Sérgio F.; GREGORES, Eduardo. Da Internet ao grid: a globalização do processo. São Paulo: UNESP. 2004.
4
Inicialmente o Ciberespaço seria “uma representação física e multidimensional do universo abstrato da ‘informação’ [...] Um
lugar pra onde se vai com a mente, catapultada pela tecnologia, enquanto o corpo fica pra trás” (GIBSON,William. Neuromance.
Disponívelem:<http://project.cyberpunk.ru/lib/neuromancer>. Acessado em: 20 dez. 2008.s/n).
5 Ibidem, p.40.
6 MONTEIRO, Silvana. O Ciberespaço: o termo, a definição e o conceito. Disponível em: <http://dgz.org.br/jun07/Art_03.htm>.
Acessando em: 25 nov. 2009.
7 Ibidem.
GT92955
certa medida, está em nós; ele nos permeia e não é desligado ou isolado de nossos corpos, de nossas
memórias e nossas consciências quando desligamos o computador. Com efeito, nós o carregamos
conosco por toda a parte, independentemente da tecnologia. Ele é um novo palco onde apresentamos
e representamos as nossas identidades, e compõe o social como uma de suas representações. É esse
caráter fluido do ciberespaço que o torna virtual.
Existir socialmente na internet é, portanto, apenas mais uma forma de se exercitar o ‘eu’ por
um meio específico, sem que este ‘eu’ esteja desconectado de um contexto social que pode existir na
rede ou apenas fora dela. Logo, a tecnologia não isola, ao contrário, ela gera relações muitas vezes
até mais profundas do que as que se dão sem a sua mediação, porque ela tem a função de promover
encontros impensáveis e suprimir distâncias intransponíveis sem o seu suporte.
O ciberespaço, assim, constitui apenas uma forma (entre várias outras) de nos projetarmos
para além de nós mesmos. Alcançamos o virtual ao nos projetarmos em direção ao ciberespaço,
mentalmente, perceptualmente – como se fosse possível habitar uma dimensão que está para além
do nosso corpo, e que nos alimenta a fantasia de potência, de imortalidade, pois existir para além do
corpo é a fantasia essencial do humano. Esta é uma dimensão altamente ilusória, tendo em vista que o
ciberespaço, tecnicamente, só existe enquanto existirem computadores ligados. E existir socialmente
no mundo virtual seria a realização alegórica desta ilusão: nesta alegoria, vivemos para além do
corpo, e vivemos socialmente8. No ciberespaço, nós estamos cativos de uma alegoria, de uma fantasia
de nos manifestar em um tipo de não-lugar9, projetamos nossos desejos e nossos sonhos em um
espaço inexistente materialmente. Na verdade, continuamos habitando o espaço imaginário, apenas
deslocamos a imaginação para uma instancia que está para além do corpo, está na máquina.
Concordando com Lévy, virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão
geral à qual ela se relaciona, “em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em definir a
atualidade de partida como resposta a uma questão de partida”. Para o autor, a virtualização, processo
que aqui consideramos como eminentemente social e agregador de trajetórias e memórias, “fluidifica as
distinções instituídas, aumenta os graus de liberdade”10, criando assim um outro social, que replica mas
também reinventa a realidade social que o criou. Assim, diríamos que virtualizar é caminhar em direção
à interrogação. E afirmar a existência de um museu virtual é compreender esta nova possibilidade.
Assim, restringir o museu virtual à internet é não compreender tal complexidade. O virtual está
presente em todos os meios, pois, como afirmam Deleuze e Lévy: “somos rodeados de virtualidade”.
Nesta perspectiva, o que interessa não é o rótulo ou a categoria em que se insere cada museu,
mas a sua relação com o movimento, o processo, a criatividade, a mudança. Mais que classificar,
é importante compreender esses novos museus, chamados ‘virtuais’, como ambientes de plena
transformação: exemplos da potência que tem o Museu de apresentar-se como “um evento, um
8 Eis a importância das redes sociais como uma forma contemporânea de contato social mediada pela máquina, como já o foram o
telégrafo, o telefone e o fax.
9 O não-lugar aqui segundo o sentido do termo utilizado por Scheiner (2004).
10 LÉVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Ed.34. 1995.p. 43.
GT92956
acontecimento, uma eclosão da mente ou dos sentidos, (...) instancia de presentificação dos novos
modos pelos quais o homem vê o mundo”11. Lugar de memória, lugar de virtualidades infinitas...
Para Lévy, o grande passo para a sociedade humana foi o uso da memória. A memória
permitiu que a sociedade humana pudesse inventar “a si mesma como coletivo capaz de aprender, em
longo prazo, continuamente, independentemente da morte dos indivíduos, dos grupos ou das culturas
particulares”. Com isso, crescem as interconexões socioculturais, de modo cada vez mais intenso.
Singularidades individuais são preservadas coletivamente como acontece com: invenções técnicas,
línguas, sistemas de signos, instituições, obras e idéias12. Este é o caso da internet.
2. Os ‘novos’ lugares de memória
Podemos considerar pouco útil empiricamente pensar o ciberespaço como um não-lugar no
sentido estabelecido por Marc Augé�, isto porque, apesar de desterritorializado, o espaço virtual
na rede eletrônica é vasta e constantemente localizado. Ele é composto por nódulos semióticos
representando relações sociais provenientes dos contextos territoriais que o permeiam, e estes
funcionam como marcos, ou pontos fixos para as identidades (individuais e coletivas) que são por ele
criadas e/ou mantidas. Por exemplo, no momento em que este artigo está sendo escrito, a página do
buscador Google na rede comemora, com uma imagem do Rio de Janeiro, o aniversário do paisagista
brasileiro Burle Marx, enquanto em outras partes do mundo, na mesma data, esta mesma página faz
referência a outros acontecimentos da história de cada região. Consideramos, assim, que somente por
meio de pontos relacionais sempre localizados e particulares, que fixam identidades e sentidos, que
se estabelecem os chamados “lugares de memória”, em qualquer nível do real.
Lembramos que, para Nora,
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento [de] que não há memória espontânea,
que é preciso criar arquivos, que é precisos manter aniversários, organizar celebrações,
pronunciar elogios fúnebres, notarias atas, porque essas operações não são naturais. É por
isso que a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e
enciumadamente guardados[...] São bastiões sobre os quais se escora.13
Como discute Augé, considerando que a memória é sempre um fenômeno atual, como algo
vivido no presente, e a história é vista como uma representação do passado, a memória, assim, pode
transparecer um estado de espírito paradoxal. Para o autor, é no espetáculo da diferença, no espetáculo
de uma memória tradicional por meio do qual não percebemos mais do que vestígios – os memoriais
– que buscamos descobrir o segredo de nossa reclusa identidade. Segundo Nora, este projeto não trata
de uma gênese, mas da “decifração daquilo que somos à luz do que não somos mais”14.
11 SCHEINER, Tereza. Apolo e Dioniso no templo das musas: Museu – Gênese, idéia e representações na cultura ocidental. 152
F. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Universidade Federal do Estado do Rio e Janeiro
– UFRJ. Rio de Janeiro, Brasil, 1998, p. 144
12 LEVY, Pierre. Conexões planetárias: O mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo: editora 34.p. 45.
13 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, V.10, p.9. 1993.
14 NORA (1984, p.XXXIII apud AUGÉ, 1989, p.4).
GT92957
Os lugares de memória, assim, adquirem tal atribuição na medida em que se inscrevem em
uma vontade de memória – que, segundo Augé, diria respeito a um fenômeno moderno15. Esta vontade
de memória, em vez de se referir à nostalgia inspirada pelos monumentos do passado, já que esta se
caracteriza mais como um traço de época, tem relação com um estranho sentimento de luto. Por uma
espécie de tropismo irresistível, seu olhar se dirige do sentido passado do passado ao sentido presente
desse passado16. Somos levados, assim, a pensar os lugares de memória não a partir de sua existência
física e espacial, mas sob o ponto de vista da crença das pessoas que esses espaços congregam. Ao
promover uma “sacralização laica”17 do lugar, como uma comemoração em comum e do comum, os
lugares de memória através da virtualidade que lhes é inerente, atualizam a sociedade e seus grupos,
muitas vezes levando-os a crer na existência de ‘comunidades’, ou de um sentido de continuidade
com o grupo, engendrado através do compartilhamento de experiências que se autorreferenciam.
Os museus virtuais, ao manipularem esses símbolos e produzirem outros novos, potencializam
no espaço as possibilidades dos cruzamentos, e logo fazem surgir novos microssentidos para a noção
de comunidade e a experiência de continuidade – que agora é amplificada e multiplicada. O Museu
do presente faz lembrar que todas as transformações responsáveis por compor as identidades dos
grupos e gerar pertencimento acontecem no tempo do agora e estão constantemente levando a novas
negociações e rearranjos das pessoas, das coisas e das crenças na ordem social, refazendo-a. E como
enunciado por Marc Augé, “nada exclui que o desencantamento e o reencantamento do mundo sejam
concomitantes, ainda que não necessariamente pelos mesmos, nem nos mesmos termos, nem nos
mesmos lugares”18. A partir desta proposição, o autor nos faz atentos para a constituição ilusória dos
mais diversos sujeitos coletivos, lembrando que até mesmo o ‘nós’ construído agora não é o mesmo
do que fora composto há muito pouco tempo atrás. Somos todos virtuais e, portanto, cambiantes, de
acordo com os laços de significados que estabelecemos no momento presente.
Hoje é possível perceber a relação entre os processos de memória e a constituição do que
Benedict Anderson chamou de “comunidades imaginadas”19, ao se referir ao modo pelo qual pessoas
que são membros de grupos muito amplos, como as nações, fundados na ideia da simultaneidade de
consciências e de mentalidades, podem compartilhar traços culturais e sociais. Uma comunidade é
imaginada quando os membros de um grupo não se conhecem entre si e passam a acreditar nos laços
que os ligariam virtualmente constituindo um conjunto interligado e homogêneo. Este conceito tem
importância central quando se trata de compreender como e por quê o Museu da Pessoa é virtual e é
museu.
15 AUGÉ, Marc. Les Lieux de mémoire du point de vue de l’ethnologue. Gradhiva, n. 6, 1989, pp.3-12. p.5.
16 AUGÉ, Marc. Les Lieux de mémoire du point de vue de l’ethnologue. Gradhiva, n. 6, 1989, pp.3-12. p.6.
17 Ibidem, p.10.
18 Ibidem, p.11.
19 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, passim.
GT92958
3. O Museu da Pessoa
O Museu da Pessoa foi criado em 1991, com o objetivo de “construir uma rede internacional
de histórias de vida capaz de contribuir para a mudança social”20. Desde então, o museu coleta
depoimentos e imagens digitalizadas de documentos com histórias de vida de diferentes indivíduos.
Como na época de sua criação não existia a rede eletrônica como ela é hoje, o museu preservava
as suas coleções, ou seja, esses registros de histórias de vida, em “base digital (banco de museus,
CD-ROMS e outros)”. O objetivo era, então, “criar um novo espaço onde cada pessoa pudesse ter
a oportunidade de preservar a sua história de vida e de tornar-se uma das múltiplas vozes da nossa
memória social”21. A partir de uma coleção de memórias individuais, buscou-se, desde o início, a
construção de uma memória coletiva.
Esta percepção se dá por um mecanismo, já previsto por Halbwachs, de se apreender memória
coletiva e memória individual em um mesmo processo, acessado pela história oral. Como fica
claro no trabalho realizado no Museu da Pessoa, o passado é reconstruído por meios baseados na
consciência presente, e nunca como um estado exato do que fora ele anteriormente. A lembrança é,
em grande parte, uma reconstrução do passado que se dá através do auxílio de dados plantados no
presente22, e, consequentemente, as imagens de outrora evocadas serão sempre bastante alteradas.
Entretanto, todo este processo de reconstrução não se dá com referência a memórias individuais.
Trata-se de um fenômeno da coletividade, já que significados compartilhados só seriam alcançados
pelo uso de memórias coletivas. Estas, ainda que constituídas de maneira diferente das memórias
ditas individuais, também formam parte do contexto mental de cada indivíduo23.
Lembremos aqui o caráter agregador dos processos de memória, que é exatamente o que
fundamenta a existência do Museu: pois é do conjunto das memórias individuais, repetidas (ou
replicadas) no âmbito coletivo – porque valoradas como relevantes – que se identifica, em cada
coletividade, o que é patrimônio e o que deve ser musealizado. Eis porque reconhecemos o Museu
como uma instância agregadora de memórias: não porque remeta ao passado ou o represente, mas
porque congrega, resume e representa o que é valorado e valorável na memória coletiva. O Museu se
constitui, pois, no compartilhamento, nos valores coletivos e nos movimentos de legitimação do que
tem e/ou dá significado a conjuntos de indivíduos, ou seja, do que as pessoas valorizam em comum24.
Ele é, pois, comunitário e social em sua essência, qualquer que seja o modelo através do qual se
20 MUSEU DA PESSOA. Nossa História. Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/oquee/oque _nossahistoria.shtml>.
Acessado em: 02 dez. 2009.
21 Ibidem.
22 HALBWACHS, Maurice. La memoire collective (1950). Édition électronique. Les classiques des sciences sociales. Québec:
Université du Québec, 2001. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca /zone30/Classiques _des_sciences_sociales/index.html>.
Acesso em: 03 de novembro de 2009. p.38.
23 Ele lembra, que separar uma e outra radicalmente pode ser um erro já que o funcionamento da memória individual não é possível
sem instrumentos, entre os quais as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou por si só mas que são formadas por meio da
coletividade. Contudo, a nossa memória individual não se confunde com as outras: a diferença está na limitação no espaço e no tempo.
Ibidem, p.26.
24 Ver SCHEINER, Tereza - 1998 e 2004.
GT92959
materialize para a sociedade.
Em entrevista cedida para o Almanaque Brasil, uma das fundadoras e idealizadoras do Museu
da Pessoa, a historiadora Karen Worcman, diz que ao desenvolver pesquisas de história oral, quando
ainda estudava História no Rio de Janeiro, antes de 1991, se questionava muito sobre a função social
da História. Entre as pesquisas realizadas, estudava a imigração de judeus para o Rio de Janeiro. Um
dia ela começa a pensar que “deveria haver um lugar onde a alma das pessoas pudesse ser preservada,
um museu da pessoa”. Este museu seria “não de coisas ou fatos, mas de história de gente”. O Museu
da Pessoa começou a ser pensado a partir da “idéia de que uma história pode mudar seu jeito de ver o
mundo”. Esta questão seria transformadora “no sentido social, cultural, emocional”. Para Worcman,
“aprender a ouvir os outros talvez seja o maior desafio que a gente – como cultura ou como indivíduo
– tem a enfrentar” 25.
No contexto desse museu, cada pessoa é pensada como um nódulo de relações, como um
conjunto de encontros no tempo, ou como trajetória. Para Bourdieu, a noção de trajetória remete
a uma série de posições sucessivamente ocupadas “por um mesmo agente (ou um mesmo grupo)
num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”26. O que o
autor pretende é disseminar a noção de que uma vida nunca é uma série única de acontecimentos
sucessivos, pois ela está ligada a outras vidas e apresenta múltiplos vínculos. Um único indivíduo
é, portanto, virtualmente todas as relações de que já participou. Produzir uma história de vida, tratar
a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com
significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica27, uma representação comum
da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar.
Ao mudar-se para São Paulo, no final de 1991, Worcman organizou, com um grupo
de pesquisadores, uma exposição sobre imigrantes judeus. Para tanto, disponibilizou nas ruas de São
Paulo cabines de coleta de depoimentos, “para que visitantes registrassem suas histórias”. Muitos
jornalistas que a entrevistaram, na época, questionavam como “a vida de anônimos poderia atrair
alguém”28. A exposição acabou sendo um grande sucesso, despertando nas pessoas o interesse em
deixar registrados seus depoimentos de vida. Esta foi a matriz inicial do Museu da Pessoa.
3.1 O museu em rede
O museu foi implantado, efetivamente, em 199729, e com a inserção na internet, o projeto
tornou-se popular. Segundo Karen Worcman, não existiam, na época, modelos a serem seguidos
25 RODRIGUES, op.cit.
26 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p.183-191. p.189.
27 Ibidem, p.185.
28 RODRIGUES, op.cit.
29 WORCMAN, Karen. The Museum of the Person. ICOM News, Vol. 57, N. 3, s/p, 2004. Disponível em: < http://icom.
museum/pdf/E_news2004/p4b_2004-3.pdf>. Acessado em: 10 dez. 2009.
GT92960
para a constituição desta nova experiência. O que havia eram “arquivos de história oral”30, que
normalmente remetiam a histórias dos negros, imigrantes e sobreviventes do Holocausto. Estes
museus de comunidades ameaçadas a desaparecer, silenciadas, muitas vezes, pela história oficial,
encontravam na história oral uma nova seara para o reconhecimento – ou a mera visibilidade. É
baseado nestas experiências, ainda que sem se limitar a elas, que o Museu da Pessoa passa a ocupar
um lugar de destaque tanto no campo da Museologia quanto na História.
Em 1999, o museu participa da conferência ‘Museums and the Web’31, em Nova Orleans, nos
Estados Unidos. Neste momento esta experiência tem contato com o professor Jorge Gustavo Rocha,
do Departamento de Informática da Universidade do Minho, o que resulta na criação de um Núcleo
do Museu da Pessoa em Portugal. As primeiras gravações de depoimentos são realizadas em 2001. No
mesmo ano, em Seattle, o museu participa do workshop “The Museum-Of-The-Person ‘dot’ World”32,
que tinha como objetivo desenvolver etapas para a expansão do trabalho realizado, incentivando a
criação de novos núcleos. Neste encontro, surge a ideia da criação de um núcleo nos Estados Unidos,
ligado à Universidade de Indiana33. Já em 2002, iniciam-se os contatos com o Centre d´Histoires de
Montreal, discutindo experiências desenvolvidas no Canadá e no Brasil. Coroando esta trajetória de
expansão, em 2003 é implantado o portal do museu, que já se constituía como uma rede virtual de
histórias de vida.
Hoje, o Museu da Pessoa é “formado por quatro núcleos (Brasil, Canadá34, Estados Unidos35 e
Portugal36)” “núcleos estes que são pensados como “autônomos, auto-sustentáveis e ligados por uma
metodologia e objetivos comuns”�.
3.2 Um museu auto-sustentável
Segundo Karen Worcman, o Museu da Pessoa surge como uma ideia inovadora, tanto no que
tange a ser um espaço que “reúne histórias de todas as pessoas”37 quanto ao próprio uso da internet nos
processos de musealização das histórias de vida. A sua idealizadora afirma que o museu “já nasceu
virtual”, por não se constituir fisicamente. E lembra que os “arquivos de história oral costumam ser
acadêmicos, ou então [sediar-se] em espaços como bibliotecas públicas”, o que difere do Museu da
Pessoa, que está aberto a “qualquer pessoa que pode visitar esse espaço e registrar sua história pela
internet”.
Para Worcman, a escolha pelo formato ‘museu’ e não por um arquivo (nos moldes
tradicionais da arquivística) se deve a serem os museus instituídos espaços educativos e de
30 RODRIGUES, op.cit.
31 ‘Museus na rede’ (Tradução nossa).
32 “O museu-da-pessoa ‘ponto’ mundo” (Tradução nossa).
33 Museu da Pessoa. Nossa História. Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/oquee/oque _nossahistoria.shtml>. Acessado
em: 02 dez. 2009. Passim.
34 MUSEU DE LA PERSONE. Disponível em: <http://www.museedelapersonne.ca/> . Acessado em: 02 dez. 2009.
35 MUSEUM OF DE PERSON – INDIANA. Disponível em: <http://www.bloomington.in.us/~mop-i/>. Acessado em 2 fev. 2009.
36 MUSEU DA PESSOA – PORTUGAL. Disponível em: <http://www.museu-da-pessoa.net/>. Acessado em: 02 dez. 2009.
37 RODRIGUES, op.cit.
GT92961
promoção do conhecimento, não se restringindo à aquisição e preservação de preciosos segmentos
do patrimônio da humanidade.
De início, antes de sua constituição na Internet, sob a forma de museu virtual eletrônico, o
Museu da Pessoa se desenvolvia baseado em ações que os profissionais da Museologia consideram
como funções essenciais dos museus: pesquisa, realizada pelos idealizadores do projeto;
organização; documentação e preservação de acervo, baseadas em registros obtidos em ações do
museu; e exposições, realizadas, por exemplo, na cidade de São Paulo.
Desde a sua criação, o Museu da Pessoa teve como objetivo central estabelecer uma rede
virtual de histórias de vida. A ideia de construir um museu de relatos levou a equipe a reconsiderar,
no desenvolvimento da experiência, a noção de ‘espaço’, já que as pessoas são inúmeras e as
histórias são intangíveis:
No início, pensamos que poderíamos estabelecer um banco de dados multimídia e divulgar
informações em CD-ROM. Com a Internet, o projeto do Museu da Pessoa tomou-se cada vez
mais popular, o projeto foi ampliado. Além de garantir o acesso à coleção, foi possível fazer
das pessoas não só receptores, mas agentes de sua própria história. Os indivíduos e grupos
se tornam agentes de sua própria história, tornam-se grupos de uma comunidade maior.
As histórias pessoais já não são, exclusivamente, pessoais e tornam-se parte da memória
coletiva, sendo esta memória permeada por múltiplas vozes, inclusive histórias de pessoas de
todos os setores da sociedade.38
Aqui a ‘comunidade’ é aquela que dá sentido ao ‘eu’ e que permite ao sujeito de uma
narração se perceber como sujeito e falar sobre si mesmo de acordo com uma lógica que não
lhe é própria, mas que está no coletivo. O que se pode extrair da análise dos depoimentos é a
constituição, por sua vez, de um ‘sentido de comunidade’ que se vê presente na vida das pessoas e
que é, por elas, com frequência, instrumentalizado e reafirmado. Este, que pode ser entendido como
um sentido reflexivo e subjetivo do pertencimento a um grupo ou vizinhança, funciona como um
artifício não apenas para que o falante (sujeito da narração) vislumbre uma continuidade no tempo,
com as suas ‘origens’, mas de modo a que se construa uma continuidade na sociedade, com os
grupos aos quais se relaciona a sua identidade.
Assim, é o sentido de comunidade que leva as pessoas a desejarem fazer parte da experiência
de compartilhar lembranças e trajetórias em um museu que propõe uma participação inortodoxa e
atraente para a constituição do próprio ‘eu’. O trabalho do museu é o de dar voz àqueles que desejam
contar sua história, e o critério de seleção das histórias é exatamente este – o da narração.
Neste sentido, percebe-se que a Museologia se apropria dos modos relacionais já utilizados
por outras mídias, especialmente a imprensa e a televisão aberta – onde são hoje comuns os programas
que oferecem espaço para que indivíduos narrem suas histórias de vida, de forma episódica. Mas a
diferença é que, se na imprensa ou na tevê ‘todos podem ser famosos por cinco minutos’, no Museu
38 WORCMAN, Karen. The Museum of the Person. ICOM News, Vol. 57, N. 3, s/p, 2004. Disponível em: < http://icom.
museum/pdf/E_news2004/p4b_2004-3.pdf>. Acessado em: 10 dez. 2009.
GT92962
da Pessoa cada narrativa passa a constituir um objeto musealizável, no instante mesmo em que é
registrada. Reproduz-se, aí, o conjunto de processos que transforma o espontâneo em registro, o fluxo
em objeto, enfim, o conjunto de processos que dá corpo e forma ao que denominamos ‘musealização’.
4. As ‘comunidades’ virtuais e um novo paradigma para a participação
A narração é a matéria prima do Museu da Pessoa, e é através do ‘contar a sua história’
que cada um dos sujeitos deste museu se auto-representa como sujeito na sociedade do presente. A
virtualidade aqui é colocada em uso no ciberespaço em prol da socialidade. Ela convida os atores a
pensarem sobre suas próprias trajetórias sociais, e a compartilhá-las. E, mais ainda, cada uma destas
trajetórias é valorizada e documentada através de um processo único de musealização, que parte do
princípio de que toda história de vida merece ser contada.
O museu instaura, assim, uma forma peculiar de participação, que permite que os seus
usuários desempenhem tanto o papel de atores como o de espectadores no palco onde são encenadas
as memórias individuais e coletivas. Nina Simon define uma instituição participativa como um lugar
em que os visitantes podem criar, compartilhar, e se conectar uns com os outros e com o conteúdo que
os cerca. Criar significa que os visitantes contribuem com suas próprias ideias, objetos e expressões
criativas39. Em vez de ser “sobre” alguma coisa ou “para” alguém, instituições participativas são
criadas e geridas “com” seus usuários. A participação, assim, envolve a própria relativização do papel
e da função social da instituição. Em casos como o do Museu da Pessoa, a instituição serve de
“plataforma” que conecta diferentes usuários que atuam como criadores de conteúdo, distribuidores,
consumidores, críticos, e colaboradores. Isso significa que o museu não pode garantir a consistência da
experiência do indivíduo. Ao contrário, a instituição gera oportunidades diversas para as experiências
coproduzidas dos visitantes.
Para Worcman, o Museu da Pessoa se desenvolveu rapidamente devido à
[...] idéia de ampliar a participação das pessoas como construtoras do acervo, de fazer uma
coisa muito colaborativa bem antes da web 2.0 e de tentar não concentrar os produtos, mas
disseminá-los. Já fizemos exposições ambulantes, cabines no metrô, exposições virtuais.40
Foi a valorização da sociedade diante do projeto do museu que possibilitou que este se
constituísse efetivamente. As “pessoas compram revistas sobre pessoas, lêem sobre pessoas... as
pessoas gostam de pessoas”. Worcman lembra que o museu sempre foi auto-sustentável, e que só entre
2006 e 2007 começou a receber patrocínios. Antes, “vendíamos projetos, e essas vendas garantiam o
desenvolvimento do Museu” 41.
Quanto à preparação das entrevistas, estas obedecem a uma metodologia quase ritualizada.
Todos os que prestam depoimento se apresentam de forma organizada, um ao lado do outro (em caso
39 SIMON, Nina. The Participatory Museum. Santa Cruz, California: Museum 2.0, 2010. p.ii.
40 RODRIGUES, op.cit.
41 Ibidem.
GT92963
de grupos). No caso das fotografias, “a pessoa vai lá para tirar a sua foto de marinheiro, ou a sua foto
de casamento, ou a foto de quando o filho nasceu – que era quando os antigos eram fotografados”42.
Worcman lembra também que algumas pessoas questionam a veracidade das histórias contadas. Mas
o que interessa ao museu é “como ela quer se deixar ‘fotografar’[...] é como ela vê o mundo, ou
como ela quer que o mundo seja visto”43. Este não é um museu preocupado com a ‘verdade’ dos fatos
narrados, mas comprometido com a autenticidade da própria narrativa e de seus efeitos.
Figura 144 – Página eletrônica do Museu da Pessoa
Percebemos a intenção de registrar não apenas, ou exclusivamente, fatos verídicos, mas de
captar a essência das pessoas, ou melhor, de como elas se apresentam, e de como se vêem, indicando,
de forma aberta ou sutil, como elas se manifestam, como se expressam. O museu tem por objetivo
registrar, preservar e transformar histórias de vida de toda e qualquer pessoa da sociedade,
estabelecendo uma rede virtual irrestrita de histórias de vida. Acredita-se que deste modo será
possível realizar uma mudança social através da valorização dos indivíduos e comunidades. A
intenção de reconsiderar a noção de ‘espaço’, devido às inúmeras histórias de pessoas, tornou o
museu cada vez mais popular. Em 2004, já existiam em seu acervo cerca de 4.000 textos e mais de
10.000 fotografias em formato digital, a partir de coleções pessoais – coletadas durante os projetos,
eventos, sessões de abertura de declarações de registro, bem como as histórias recebidas através
da internet45.
42 Ibidem.
43 Ibidem.
44 MUSEU DA PESSOA. Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/facaparte/facaparte_memoria_na_escola.shtml>. Acessado em: 02
fev. 2009.
45 WORCMAN, Karen. The Museum of the Person.Op.cit.
GT92964
Figura 246 – Página eletrônica do Museu da Pessoa
Aos que acessam a página do museu na rede e desejam contar suas histórias de vida, lhes é
prontamente informado da facilidade do processo de ‘contar a sua história’, sendo possível dividila com outros participantes, “compartilhar momentos inesquecíveis com sua família, amigos e
muitos internautas”47. O visitante é chamado a participar, através de textos, fotos, vídeos, áudios,
desenhos ou documentos.
O museu desenvolve ações educativas, com o objetivo de fazer com que os projetos de
memória propiciem ao público jovem “a oportunidade de construir uma percepção sobre o passado
e o presente a partir das narrativas de pessoas que viveram esses tempos”�. Entre os recursos
disponíveis no museu, chama a atenção a apresentação de podcasts, recurso que permite acessar em
MP3 os arquivos desenvolvidos pelo museu, sendo possível baixá-los gratuitamente48.
Em entrevista realizada em 2009 com Rosali Henriques, coordenadora de acervo do museu49,
foi possível constatar que atualmente o Museu da Pessoa “é composto por fitas de áudio e vídeo,
46 MUSEU DA PESSOA. Fonte: <http://www.museudapessoa.net/facaparte/facaparte_memoria_na_escola.shtml>. Acessado em 02 fev.
2009.
47 Ibidem.
48 Ibidem.
49 HENRIQUES, Rosali. Interviewed. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> . Acesso
em: 01 dez. 2009.
GT92965
além de fotografias em formato digital. O acervo é mantido numa reserva técnica climatizada”50.
Quanto ao público, “as pessoas podem gravar sua história no espaço aberto na Vila Madalena ou
enviar a história pela internet” – portanto, o museu está sempre “aberto” ao público em geral.
Quando questionada sobre o que seria ‘museu’, Rosali respondeu que “museu é uma instituição
de memória, onde o patrimônio é preservado e comunicado ao público”. Quanto ao que eles definiam
como ‘museu virtual’, ela afirma que “museu virtual é aquele que faz da internet espaço de interação
através de ações museológicas com o seu público”51. Ao fazer uso do ciberespaço para gerar relações
significativas entre pessoas e grupos, o Museu da Pessoa se constitui como um ponto de referência
das diversas trajetórias que nele se congregam, se fixam em função de uma vontade de memória que
faz com que os seus participantes sejam o seu principal objeto.
5. Considerações: os museus virtuais e as comunidades virtualizadas
O Museu da Pessoa não musealiza vidas, pois como é explicitado por William Shakespeare na
epígrafe utilizada, a vida, como ela é vivida, não passa de uma anti-história – é a sua representação
(como a virtualidade da vida) que nos interessa. São as narrações o objeto da musealização. Através
delas o objeto narrado adquire sentido. A vida narrada se torna história contada, e deixa de ser a
experiência pura.
Como aqui se buscou mostrar, a virtualidade é um tipo particular de socialidade, e o que se cria
como comunidade virtual, como entidade múltipla e fugaz, é o sintoma de uma vontade de memória
e uma vontade de identidade que marca, notadamente, os espaços ocupados pelos mais diversos
tipos de redes. Os nódulos são frágeis e poucos são os laços duradouros. Seria esta fragilidade da
memória, que é transplantada dos indivíduos para a rede eletrônica, uma ameaça à duração? Decorre
desta dúvida a busca por novos pertencimentos, por novas crenças em comunidades que passam por
processos de virtualização para se manterem vivas. Podemos até mesmo dizer que toda comunidade
que se pense é, em si, virtual, já que a memória é um mecanismo virtual por meio do qual nos
relacionamos com o nosso passado. O sucesso da musealização na rede e dos museus virtuais provém
deste fato, e das novas tentativas de se gerar a permanência.
Museus instituídos partem do pressuposto de que os objetos possuem histórias e crêem que,
através de sua posse, podem contá-las. Estas em alguns casos são contadas de forma linear e, até
mesmo, edificante. Trata-se, nos casos em que isso acontece, de uma abordagem dos fatos que percebe
a história tacitamente, como uma sucessão de acontecimentos, e que perde de vista o próprio sentido
50 Esta afirmação explicita o fato de que um museu virtual pode ter uma base material e fixa (atual) e ainda assim se constituir no
plano da virtualidade. O virtual diz respeito às múltiplas trajetórias e aos encontros que o museu pode promover, e não ao meio através
do qual ele opera.
51 Quanto ao entendimento sobre o que seria “museu digital”, a resposta foi de que o Museu da Pessoa não trabalha com o
conceito de Museu Digital. Para eles, museu digital não existe. O museu digital, por definição, seria “uma digitalização de um acervo
de um museu. Nesse caso, o conceito de museu virtual é melhor porque ele abrange não somente a digitalização e disponibilização
online de um acervo de um determinado museu, mas também um acervo concebido digitalmente (arte eletrônica, por exemplo)”. O
Museu da Pessoa seria entendido como um museu virtual tanto pelo seu caráter desterritorializado, quanto por estar no âmbito da
transformação, no ciberespaço. HENRIQUES,op.cit.
GT92966
do relato histórico – que revela o historiador como romancista, expondo a sua prática.
Aqui os museus colocam em um mesmo plano e na mesma mensagem o objeto narrado e o seu
narrador. Neste discurso organizado em sequências ordenadas de acordo com relações inteligíveis,
investigador e investigado funcionam de maneira tal que lhes permita alcançar um mesmo fim – o
de aceitar o postulado do sentido da existência do que é narrado52. Para Bourdieu, o relato, a história
contada, e, especialmente, a autobiografia, se baseiam na preocupação de dar sentido, de tornar
razoável, “de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e
uma constância”, estabelecendo relações inteligíveis entre os estados sucessivos constituídos em
etapas de um desenvolvimento53. A história de vida contada é uma seleção, operada em função de
uma intenção global, de certos acontecimentos significativos estabelecendo entre eles conexões para
lhes conferir uma coerência desejável. Trata-se de uma criação artificial de sentido que está inscrita na
história das coisas, dos grupos de coisas, das instituições, que são normatizações das coisas, e também
das pessoas.
A ideia de criar o ‘museu da pessoa’ nos faz pensar no museu que carregamos conosco, composto
pelas nossas próprias lembranças, sensações, o nosso ‘museu interior’. O ato de disponibilizar este
tipo de acervo não está associado à noção de extração, retirada do contexto original. Muito pelo
contrário. O acervo do museu da pessoa mantém vivo os patrimônios pessoais, agora colocados em
meio público. Se um participante idoso de uma família deixa o seu depoimento na página eletrônica
do Museu da Pessoa, ele divulga as suas lembranças e as mantém vivas para os seus familiares, o seu
grupo social e as gerações do futuro. Estas lembranças farão parte da memória dos seus predecessores
e legatários, estando disponíveis na base de dados do Museu da Pessoa. As memórias, trajetórias e
lembranças são potencializadas, não ficando restritas à internet. Unir as memórias e lembranças de
diferentes pessoas e grupos, na internet, é uma forma de compor a memória coletiva de pessoas em
um meio comum.
Aquilo que propõe o Museu da Pessoa nada mais é do que tornar perceptível a noção de que
todas as pessoas constituem os seus próprios museus interiores e imaginários; e de que podem tirar
partido desse universo bastante específico, na medida em que são convidadas (ou se habilitam) a
dar depoimentos para o museu. Tal experiência pode agregar sentido a suas próprias vidas e a suas
lembranças, na medida em que cada narração é também um ato criativo – e que, ao contar sua(s)
história(s), o narrador vai inventando no discurso aquilo que seria a sua memória individual. O eixo
destas narrativas seria a memória coletiva, isto é, os signos que compõem o discurso de indivíduos em
um mesmo grupo, aquilo que insere a experiência individual no contexto do social, o que permite que
as vozes gravadas e reproduzidas não falem sozinhas, mas criem um sentido único de continuidade,
o sentido de ‘comum-nidade’ – sempre virtual, em todos os meios.
Assim sendo, a internet é somente o meio de difusão do acervo do Museu da Pessoa, ela não
52 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p.183-191. p.184.
53 BOURDIEU, loc. cit.
GT92967
constitui a sua essência. E o Museu da Pessoa é um exemplo de que somos, com efeito, rodeados de
virtualidade.
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GT92969
COMUNICAÇÃO ORAL
O PAPEL ESTRATÉGICO DAS COLEÇÕES CIENTÍFICAS NA
CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NACIONAL1
Marcio Ferreira Rangel
Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar o papel estratégico das coleções científicas na construção
da memória nacional, tendo como referência a Coleção Entomológica Costa Lima. No processo
de formação do acervo podemos encontrar diferentes momentos da carreira deste cientista.
Compreendemos esta coleção como uma biografia, como um livro que contivesse o resumo de suas
pesquisas, sua metodologia de trabalho e sua rede de relações. Além de patrimônio científico, as
coleções são suportes de memória, pois nos remetem a procedimentos, práticas científicas e conceitos
de nosso passado remoto e recente. Apesar de possuir este forte laço com o nosso passado, as coleções
científicas possuem um laço de igual intensidade com o futuro, quando consideramos o seu potencial
genético e as possíveis reestruturações conceituais que podem ocasionar.
Palavras chave: Costa Lima, Coleção científica, Patrimônio científico, Memória científica.
Abstract
The aim of this work is to analyze the strategic role of scientific collections in the construction
of national memory, having as reference the Entomological Collection Costa Lima. In the formation
process of the collection we can identify different moments of this scientist’s career. We understand
this collection as a biography, as a book that contained a summary of his research, his methodology
of work and his network of relationships. In addition to scientific heritage, the collections are memory
support, as we refer to procedures, practices and scientific concepts of our remote and recent past.
Despite having this strong link with our past, scientific collections have a bond of equal intensity to
the future, when we consider their genetic potential and the conceptual restructuring that may entail.
Keywords: Costa Lima, Scientific collection, Scientific heritage, Scientific memory.
1. Introdução
À medida que me aprofundei no tema de coleções científicas do Instituto Oswaldo Cruz,
o interesse pela coleção entomológica, por Costa Lima e por sua importância para a entomologia
1 Trabalho elaborado a partir da tese de doutorado, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Historia da Ciência - PPGHC
(COC/FIOCRUZ). Este trabalho também esta vinculado ao Projeto de Pesquisa “A Construção e Formação de Coleções Museológicas”
do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS (UNIRIO).
GT92970
brasileira, principalmente a agrícola, passaram a desperta um interesse cada vez maior. Por ser ainda
um tema pouco estudado no Brasil, e considerado de fundamental importância para os estudos
agrícolas e para a ciência brasileira, a Coleção Costa Lima transformou-se um importante objeto de
pesquisa.
Poucos foram os autores que discutiram o desenvolvimento da agricultura no país e
principalmente o papel dos insetos nesses estudos. Entre os autores brasileiros, podemos citar o
trabalho de tese de doutorado de Heloisa Maria Bertol Domingues (1995), que discute as relações
entre as ciências naturais e a agricultura num momento em que a importância da entomologia para o
desenvolvimento da lavoura é relativizado pelo meio científico brasileiro. A autora recua a sua análise
ao período do governo imperial no Brasil do século XIX, momento em que o empobrecimento do solo
é a principal questão da crise agrícola.
Com recortes mais específicos, encontramos os trabalhos de
André Felipe Cândido da Silva (2006), que discute as decorrências sociais, políticas e institucionais
da broca do café, praga que atacou os cafeeiros paulistas, e o de Graciela de Souza Oliver (2005), que
apresenta o papel desempenhado pelas escolas superiores de agricultura entre 1930 e 1950.
Ainda sobre os autores que contribuíram para o estudo da agricultura no Brasil, destacamos
Sônia Regina Mendonça (1997; 1998), que apresenta uma profunda análise sobre o mundo agrícola
brasileiro no período convencionalmente chamado pela historiografia de República Velha. Em seu livro
O Ruralismo Brasileiro, Mendonça (1997, p. 10) define o ruralismo como “um movimento político de
organização e institucionalização de interesses de determinadas frações da classe dominante agrária
no Brasil – tanto em nível de sociedade civil quanto em nível da sociedade política –, bem como os
conteúdos discursivos produzidos e veiculados pelos agentes e agências que dele participaram”. Da
mesma autora, destacamos, ainda, a obra Agronomia e Poder no Brasil (MEDONÇA, 1998, p. 41), na
qual é enfatizada a implantação e consolidação do ensino de agronomia no país:
“A agricultura não é mais um ofício para ser exercido por homens incultos, sem preparo, sem
as luzes da ciência, deixando o agricultor de ser, nos tempos modernos, um simples operário
rural a trabalhar para a coletividade sem certos preparativos sociais e sem o direito de influir
positivamente na direção dos negócios públicos”.
É neste “mundo rural” que vamos encontrar Costa Lima atuando como cientista e professor.
Considerando a entomologia agrícola como uma especialidade da entomologia que trata os aspectos
da biologia, ecologia e taxonomia dos insetos de importância agrícola, identificamos Costa Lima
como um dos principais atores deste contexto, envolvido no desenvolvimento de técnicas para orientar
medidas de prevenção e controle das principais pragas da lavoura brasileira. Mas, para compreender
seu papel e sua inserção nesse processo, torna-se necessário analisar sua trajetória, sua formação
na instituição que mudou completamente a sua vida, e que foi a base de todo o seu conhecimento
científico no campo da entomologia, ou seja, o Instituto Oswaldo Cruz.
Com a confirmação do papel dos insetos na transmissão de doenças, rapidamente se desenvolveu,
em Manguinhos, uma “escola de entomologistas” que foi responsável pela formação das primeiras
GT92971
coleções científicas do Instituto. As bases desta escola foram, sem dúvida, lançadas por Oswaldo
Cruz, que, mesmo sem ser um especialista em entomologia, adquiriu no Instituto Pasteur de Paris os
conhecimentos fundamentais (BENCHIMOL, 1990; STEPAN, 1976) que lhe permitiram ocupar-se
posteriormente do estudo dos culicídeos. Deste interesse são testemunhos não só os trabalhos em que
estabeleceu os gêneros Chagasia e Manguinhosia, como também a declaração de Rocha Lima, de que
o seu primeiro serviço prestado a Manguinhos, isso em 1900, no início das atividades entomológicas,
foi o de desenhar uma asa de mosquito (FONSECA, 1974, p. 105).
No entanto, logo depois, envolvido com as tarefas administrativas e de rotina, no próprio
Instituto e na Diretoria Geral de Saúde Pública que também passou a administrar, Oswaldo Cruz se
viu forçado a abandonar as pesquisas científicas que pessoalmente vinha realizando. Sendo assim,
passou o estudo dos culicídeos a Carlos Chagas e a Arthur Neiva, por ele inicialmente orientados. Tais
estudos visavam, a princípio, aos anofelinos2, por sua importância na transmissão da malária humana.
Das pesquisas realizadas no campo da entomologia, o Instituto mantém vultosas coleções
entomológicas estimadas em mais de dois milhões de espécimes. Dentre estes, encontram-se espécies
de interesse médico, veterinário e agrícola. Nesse acervo, estão compreendidas as coleções de
Adolpho Lutz, Octavio Mangabeira Filho, Costa Lima e de outros pesquisadores de reconhecimento
internacional.
2. O papel estratégico das coleções entomológicas
As coleções zoológicas destinadas a abrigar insetos preservados são denominadas
entomológicas. Não há como falarmos de coleções entomológicas, mais especificamente brasileiras,
sem antes fazermos menção à grande representatividade e diversidade dos insetos e à megadiversidade
do Brasil. Dentre todos os grupos animais, os insetos apresentam maior número de indivíduos e
espécies. Do total de 1,5 milhão de espécies de animais descritas em todo o Mundo, 865 mil são
insetos. Isso, sem considerarmos aquelas que já foram eliminadas da natureza antes mesmo de serem
conhecidas, além das que ainda estão para ser descobertas. O número de espécies de insetos descritas
num período de 18 anos (1980 a 1998) sofreu um acréscimo de 114 mil, em uma média de 7.700
espécies novas por ano.3 Uma estimativa do número real de espécies de insetos feito pelo Global
Biodiversity Assessment, (HEYWOOD, 1995), chega a um impressionante número, mesmo que
aproximado, de 10 milhões.
O Brasil destaca-se por ser um dos países mais ricos em termos de biodiversidade. Lewinsohn
& Prado (2002) estimam que, no Brasil, sejam conhecidas entre 91 a 126 mil espécies de insetos.
Considerando-se que pelo menos 15% de toda a biodiversidade mundial esteja aqui alocada,
2 Os anofelinos são pequenos mosquitos, medindo em geral menos de um centímetro de comprimento ou de envergadura, corpo
delgado e longas pernas que lhe valeram em algumas regiões o nome de “pernilongo”.
3 Dados estatísticos sobre a diversidade da fauna entomológica. Capturados da internet em 5 de agosto de 2011. On-line. Diponível
na Fonte: http://www.cria.org.br/cgee/documentos/ColecoesEntomologicas.doc
GT92972
remetemo-nos à quantia de 1,5 milhões de espécies de insetos a serem ainda descobertas, número que
se aproxima da estimativa apresentada pelos dados anteriores.
Uma das primeiras e principais medidas a serem tomadas na busca pela formulação de projetos
de conservação adequados para cada espécie de inseto é conhecer, cientificamente, o universo a ser
trabalhado. A esta tarefa dá-se o nome de taxonomia, que significa “classificação dos animais”. Após
classificada a espécie, é preciso inseri-la num grande banco de dados, que consiste na catalogação
e organização de todas as informações geradas. Só assim, uma coleção científica pode servir, de
fato, como fonte de dados e informações valiosas a serem usufruídas pela sociedade, academia e
instituições de pesquisa de todo o mundo.
Considerando o número de espécies ainda não descritas que aguardam nas gavetas de museus
(e) ou (dos) institutos de pesquisas e as enormes lacunas de amostragem na maioria dos biomas
brasileiros, podemos considerar que o número real de insetos que habitam o território nacional
deve ser dez vezes maior. As coleções brasileiras abrigam somente uma pálida representação
desta biodiversidade. Diante dos fatos expostos, podemos vislumbrar a importância das Coleções
Entomológicas Brasileiras e o que as mesmas representam no contexto mundial para a conservação
desse patrimônio. Estas estão entre as melhores da América do Sul e em muitos grupos são as melhores
para a Região Neotropical. Por abrigarem, em sua maioria, indivíduos de pequeno porte, as coleções
entomológicas constituem-se em um conjunto que pode chegar a milhões de exemplares.
2.1. A produção do conhecimento no Instituto Oswaldo Cruz e a crescente importância das
coleções entomológicas
Especulações sobre a transmissão de doenças por artrópodes hematófagos (insetos que se
alimentam de sangue) vinham sendo registradas através dos anos, com a suspeita por médicos e
zoólogos de que esses animais poderiam atuar nos seres humanos como causadores (vetores) de
doenças, ou, simplesmente, veiculadores de doenças, com a transmissão mecânica de organismos
patogênicos. Mas foi a partir da segunda metade do século XIX que os estudos em entomologia
médico-veterinária começaram a despontar, impulsionados principalmente pelo desenvolvimento da
helmintologia e entomologia aplicada.
A presença de vermes parasitando insetos não era desconhecida dos que trabalhavam com
esses grupos de animais, mas foi a comprovação de que os insetos transmitiam doenças para os seres
humanos que deu novo impulso à entomologia. O responsável por esse grande passo no entendimento
das doenças e ciclos parasitários foi o médico inglês Patrick Manson, que, em 1877, desvendou o ciclo
parasitário do verme filária Filaria sanguinis hominis,4 causador da doença conhecida vulgarmente
como elefantíase, no mosquito Culex fatigans. Segundo Benchimol & Sá (2006, p. 16), o trabalho de
Manson abriu as portas para outras importantes descobertas envolvendo artrópodes como hospedeiros
4 O nome científico foi posteriormente mudado para Wuchereria bancrofti por este ter prioridade científica (BENCHIMOL & SÁ,
2006).
GT92973
intermediários e transmissores de várias doenças parasitárias. Benchimol e Sá (2006) descrevem as
sucessivas descobertas que se seguiram à de Manson, como a de Smith e Kilborne, em 1891, ao
desvendarem a transmissão da febre do Texas no gado por carrapatos; David Bruce, em 1896, com a
transmissão de tripanossomas por moscas Glossina pallidipes; Ronald Ross, que, em 1898, fechava
o ciclo parasitário do parasita da malária de aves no mosquito Culex e, em 1899, Grassi, Bignami e
Bastinelli finalizavam essa importante descoberta com o fechamento do ciclo do parasita da malária
humana em mosquitos do gênero Anopheles.
Essas novas descobertas científicas chamaram a atenção de médicos e biólogos para o
estudo de novos grupos de insetos e outros grupos zoológicos. Médicos passaram a ser treinados em
entomologia e zoólogos passaram a dirigir sua atenção para esse novo campo do saber. Novos cursos
foram formados nos institutos médicos e veterinários, e a entomologia passou, então, a fazer parte do
currículo.
Como reflexo das descobertas dos insetos como produtores ou transmissores de doenças do
homem e dos animais de importância econômica, a coleção entomológica do Instituto Oswaldo Cruz
é uma das primeiras a se formar. Estudos sobre os possíveis vetores da malária deram início ao que
é hoje considerada uma das mais importantes coleções entomológicas da América Latina. A Coleção
Entomológica do Instituto Oswaldo Cruz teve sua origem com os dípteros de importância médica. As
bases desta coleção foram lançadas pelo próprio Oswaldo Cruz, que, no início de suas atividades no
Instituto, em 1901, descreveu o mosquito Anopheles lutzi, em homenagem a Adolpho Lutz, coletado
nos arredores do atual Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Oswaldo Cruz estabeleceu, também, os
novos gêneros Chagasia e Manguinhosia (BENCHIMOL & SÁ, 2006, p. 90).
Envolvidos em trabalhos de saneamento de diversas regiões do país, os cientistas de Manguinhos
iniciaram a coleta de exemplares da fauna entomológica dos locais onde estavam atuando. As
campanhas iniciais de combate à malária favoreceram os estudos e a formação de coleções de insetos
transmissores de doenças em Manguinhos.5 Carlos Chagas e Arthur Neiva, junto com Adolpho Lutz
e Oswaldo Cruz, formaram o time pioneiro nos estudos dos insetos vetores do Instituto.
A vinda de Adolpho Lutz para o Instituto, em 1908, contribuiu sobremaneira para a consolidação
dos estudos entomológicos e para o aumento das coleções científicas. Lutz foi pioneiro no estudo
dos dípteros hematófagos no Brasil e tinha contribuído decisivamente para o desenvolvimento da
obra Monograph of the Culicidae of the World, de Theobald. Além do diálogo que mantinha com os
5 Essas campanhas iniciaram-se na região de Santos, em 1905, dirigida por Carlos Chagas. Em 1907, Chagas e Neiva trabalham em
Xerém, no programa de saneamento da Baixada Fluminense, em obras de captação de água para o Rio de Janeiro. Em 1908, Chagas e
Belisário Penna partiram para outra campanha de controle da malária no norte de Minas Gerais nas obras de prolongamento da Estrada
de Ferro Central do Brasil. Foi durante esta campanha que Chagas descobriu uma nova doença: a tripanossomíase americana, o agente
causador – o Trypanosoma cruzi – e o inseto vetor, o hemíptero vulgarmente conhecido como barbeiro. A partir daí uma nova coleção
entomológica passou a ser formada no Instituto. Os hemípteros hematófagos passam a ser coletados e estudados extensivamente por
Arthur Neiva. Ele forneceu informações detalhadas sobre a biologia da nova espécie descoberta por Chagas em Lassance, o Conorhinus
megistus (depois denominado Panstrongylus megistus). Neiva publicou, em 1914, trabalho sobre Revisão do gênero Triatoma, após ter
estudado as coleções desse grupo de insetos nos Estados Unidos e Europa (Benchimol & Sá, ibid., p.147). Para informações detalhadas
sobre a doença de Chagas, ver: Kropf, 2006.
GT92974
grandes estudiosos europeus e americanos, Lutz era referência para todos os pesquisadores brasileiros
interessados nos estudos dos insetos transmissores de doenças. Segundo Benchimol e Sá (2006, p.
200), “no campo da entomologia médica, Adolpho Lutz ombreia com os grandes vultos de seu tempo”.
Já em 1909, a primeira publicação institucional6 listava uma coleção de 98 espécies
de mosquitos e 145 espécies de tabanídeos, incluídas aí muitas espécies da coleção trazida para
Manguinhos por Adolpho Lutz. As coleções da instituição foram constantemente enriquecidas
pelos exemplares trazidos pelas expedições científicas, coletados pelos próprios pesquisadores e por
coletores contratados e pelas doações espontâneas de entomólogos amadores.
Em novembro de 1910, a Gazeta de Notícias publicou em matéria intitulada “Uma visita a
Manguinhos: o que é o Instituto Oswaldo Cruz”, as coleções existentes na instituição:
Viam-se ali coleções de filaria, de todos os insetos sugadores de sangue e as suas larvas,
as culturas dos parasitas produtores de moléstias infecciosas (...) os drs, Aragão, Cardoso
Fontes, José Faria, com uma interessante coleção de filarias, superior a mais de cem espécies;
Godoy, Neiva etc. (ALBUQUERQUE, s/d, p. 6).
A partir de 1912, são empreendidas pelos pesquisadores de Manguinhos expedições médicosanitárias ao Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil para atender a demandas de companhias
ferroviárias e de órgãos do governo federal. Estas campanhas desempenharam papel fundamental no
debate sobre os problemas sanitários nacionais, influenciando as análises e propostas do movimento
em relação ao saneamento dos sertões. Para Benchimol e Sá (2006, p. 89), o desenvolvimento da
entomologia e das coleções científicas em Manguinhos guarda íntima relação com essas expedições
empreendidas pelos pesquisadores da instituição, constituindo, dessa forma, testemunhos materiais
das pesquisas realizadas no instituto e sua relação direta com a realidade nacional e os projetos de
desenvolvimento do país.
Com o decorrer dos anos, ocorreu o aumento da representatividade de diferentes grupos na
coleção entomológica, não necessariamente de insetos diretamente envolvidos com a transmissão
de doenças. Dessa forma, o Instituto Oswaldo Cruz passou a desempenhar papel similar ao de um
museu de história natural, cuja função precípua seria inventariar a fauna e a flora de seu território
(BENCHIMOL & SÁ, 2006, p. 166). As coleções científicas que vão se constituindo, principalmente
como resultado da pesquisa científica, passam a ser responsáveis por grande parte do reconhecimento
da qualidade da pesquisa realizada no Instituto Oswaldo Cruz. A importância dessas coleções no meio
científico internacional fica expressa nas diversas solicitações de permuta de exemplares, prática
muito comum entre os grandes centros de pesquisa, e pelas trocas de informações com instituições
nacionais e estrangeiras.
Outras coleções, além da entomológica, também de igual importância, foram sendo formadas
pelos especialistas das áreas, como por exemplo, a helmintológica, a de fungos, a de carrapatos, a
de anatomia patológica etc. Essas coleções eram também utilizadas como importantíssimo material
6
Em 1909, Lutz publicou no primeiro volume das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz um trabalho sobre a Colleção de tabânidas.
GT92975
didático no Curso de Aplicação do Instituto Oswaldo Cruz - IOC. Os Cursos de Aplicação foram
instituídos em 1908, passando a fazer parte do regulamento da instituição (BENCHIMOL, 1990, p.
37-8).
Em poucos anos, Manguinhos transformou-se no principal centro de medicina experimental
da América Latina. Seus laboratórios, seções e departamentos que constituíram a sua estrutura inicial,
destacaram-se pela continuação e manutenção das coleções reunidas a partir do exercício da função de
investigação científica.7 Nos diferentes decretos que normatizaram suas áreas de ação, sua estrutura e
seu corpo técnico, a medicina tropical se consolidou como área fundamental de atuação e teve papel
primordial na consolidação e expansão do patrimônio científico do IOC.
Neste processo de centralidade que as coleções foram adquirindo, um novo regulamento, de
1926, estabeleceu que os objetivos e atribuições do Instituto Oswaldo Cruz deveriam ser ampliados,
especificando, nas seções científicas, as normas para a organização, conservação e controle das
coleções científicas.8 Além disso, o regulamento previa a organização de diferentes museus, que
foram pensados como instituições estratégicas, que passariam a ter como objetivo expor parte de suas
coleções e divulgar as suas principais atividades de pesquisa.
Em um novo regulamento aprovado pelo Decreto n.º 20.043 de 27 de maio de 1931, fica
sob a responsabilidade da seção de Zoologia Médica a organização e conservação de uma coleção
formada por espécies zoológicas estudadas. Esta coleção ficaria situada no Museu Geral do Instituto
Oswaldo Cruz, e sua guarda estaria sob a responsabilidade dos diversos especialistas dos exemplares.
Pelo fato de as coleções zoológicas se terem tornado, com o decorrer do tempo, estratégicas e de
grande importância para as atividades do Instituto, a proibição da saída dos exemplares também
estava expressamente prevista neste novo regulamento. Este regulamento mantém a determinação
da importância da continuidade da organização da coleção de culturas de bactérias, tradicionalmente
mantida pela seção de Bacteriologia e Imunidade.
De acordo com Marli Albuquerque (manuscrito s.d., p. 3), o regulamento de 1931 traduziria
com clareza o papel relevante das coleções na trajetória científica e institucional do Instituto. Segundo
ela, nessa época, as seções auxiliares apresentavam-se bem definidas em relação às coleções. Entre
estas, encontrava-se o Museu, com suas atribuições organizadas e definidas quanto à guarda e
preservação do patrimônio construído pela pesquisa científica. Assim, caberia ao Museu “a guarda e
a exposição das coleções científicas relativas à Botânica, à Zoologia Médica, à Anatomia Patológica
e de outras que interessem aos trabalhos do Instituto”. Quanto à atribuição dos profissionais ligados
ao Museu, caberia, além das tarefas já citadas, outras, tais como: a organização de catálogos das peças
expostas e a escrituração do movimento de entrada e saída de todo o material.
7 Inventário dos documentos das coleções científicas. Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo
e Documentação. Fundo Instituto Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2001. p. 9.
8 Decreto n.º 17.512 de 5 de novembro de 1926. Estabelece que os trabalhos no Instituto Oswaldo Cruz serão distribuídos pelas
seguintes seções: Seção de Bacteriologia e Imunologia; Seção de Zoologia Médica; Seção de Micologia e Fitopatologia; Seção de
Anatomia Patológica; Hospitais e Química Aplicada.
GT92976
As coleções do Instituto Oswaldo Cruz, além de atenderem às demandas institucionais,
proporcionaram a muitos pesquisadores que não pertenciam a seus quadros técnicos a realização ou
complementação de estudos sobre diversos assuntos, em particular os relativos a grupos de animais
que interessavam à patologia humana. Pesquisadores de diferentes institutos empreenderam o estudo
de grupos zoológicos depositados nas coleções de Manguinhos: Escola Superior de Agricultura e
Medicina Veterinária, Departamento de Zoologia da Secretaria de Agricultura de São Paulo, diversas
inspetorias regionais de defesa sanitária e animal, dentre outros.
Para Albuquerque (s.d., p. 4), este percurso da formação das coleções científicas do Instituto
Oswaldo Cruz, evidenciado nos regulamentos,
“demonstra a busca de qualificação científica das pesquisas através da construção e
institucionalização de seu patrimônio científico como meio eficaz para garantir uma real
autonomia que viabilizou a realização, a consolidação e a expansão das pesquisas que
possibilitaram a efetivação dos vários campos científicos existentes hoje na fundação
Oswaldo Cruz”.
Todo este processo que se desenrolou durante o século XX foi coroado pelo Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, que, em 22 de março de 2005,
credenciou a Coleção Helmintológica, a Coleção de Culturas de Bacillus e Gêneros Correlatos, a
Coleção de Moluscos, a Coleção de Febre Amarela, a Leishmania Type Culture Collection, a Coleção
Micológica, a Coleção de Cultura de Fungos e a Coleção Entomológica do Instituto Oswaldo Cruz,
como fiéis depositárias de amostras de componentes do patrimônio genético. 9
3. A Coleção Costa Lima
As informações geradas a partir de trabalhos de campo, em que são estudados diversos grupos
biológicos, têm como ponto central o conhecimento das espécies e de suas relações, auxiliando na
elucidação de processos naturais. É fundamental para a compreensão destes processos que as espécies
sejam conhecidas tanto nos seus aspectos morfológicos quanto nos comportamentais e ecológicos.
Para a ordenação destas relações e para que se produzam conhecimentos que levem à síntese de um
fenômeno geral é que se reúnem as informações básicas. A base para tal são as coleções científicas
biológicas, resultado de coletas e inventários criteriosos e sistemáticos.
Em muitos casos, o ato da coleta científica se resume em procurar “uma agulha em um
palheiro”, e o sucesso da operação depende necessariamente da experiência do coletor. Os diferentes
habitats e alimentação diversificada de algumas espécies eram levados em consideração no momento
de coleta de material no campo, pois, para os coletores obterem uma coleção bem representativa,
deveriam explorar o maior número possível de ambientes diferentes. Visando à obtenção de uma
grande quantidade de informações sobre a fauna entomológica, os insetos também eram capturados
em outras situações, como por exemplo, em vôo, coletando água, pousados em galhos e nos braços dos
9
Deliberação Nº 97, de 22 de março de 2005 do Ministério do Meio Ambiente.
GT92977
coletores, que, em muitos momentos, funcionaram como iscas vivas. Esta diversidade de situações no
momento da coleta era estratégica para a qualidade da coleção que estava sendo formada.
O mapeamento e caracterização desta fauna levava em consideração o número de espécies,
de gêneros e de famílias de insetos coletados em uma determinada região. Todas estas informações
eram organizadas de acordo como a seguinte ordem: número de exemplar, mês da coleta, período,
família, subfamília, tribo, gênero, espécie e planta hospedeira em que foi coletado. Este procedimento
foi adotado na organização do Catalogo de Insectos que Vivem em Plantas do Brasil (COSTA LIMA,
1936), possibilitando a todos os pesquisadores a análise do habitat do inseto e seu local de ocorrência.
Todos os insetos coletados eram montados em alfinetes entomológicos, etiquetados e
depositados na coleção do Laboratório de Entomologia do Instituto Oswaldo Cruz. A classificação
das espécies capturadas era realizada por comparação do material existente na coleção. Para um
cientista que não tinha como prática científica a ida a campo para coletar material para a sua coleção,
ou seja, um cientista de gabinete10 torna-se fundamental poder contar com uma rede de coletores que
pudessem fornecer material para pesquisa. Alguns coletores viviam exclusivamente deste serviço,
que, dependendo do exemplar capturado, obtinham um bom valor no momento da venda. De acordo
com Rangel (2009, p. 289),
“por ser um cientista de gabinete, sua coleção só podia ser aumentada através do material
remetido por outros pesquisadores ou por coletores contratados. Neste sentido, podemos
afirmar que, em grande parte, a riqueza de sua coleção se deve ao seu amigo e mecenas
Carlos Alberto Campos Seabra, que financiava, com sua fortuna pessoal, diversos coletores
que traziam exemplares para a Coleção Costa Lima e para a sua coleção particular”.
A presença de Costa Lima no IOC, mesmo quando não possuía mais vinculo institucional,
também pode ser compreendida pela estrutura que o Instituto lhe oferecia para a realização de seu
trabalho e organização de sua coleção. Além do espaço físico, das oficinas, do mobiliário adequado
para o acondicionamento da coleção e uma das melhores bibliotecas da América Latina, existiam,
ainda, alguns coletores, pagos pelo Instituto, que coletavam material solicitado pelos pesquisadores.
As coletas eram realizadas nas redondezas do Instituto, em Teresópolis, na Granja Comary (antiga
Fazenda Guinle), no Espírito Santo, na Amazônia e em diversos outros locais do país. De acordo com
o inseto desejado, estabelecia-se o horário e a metodologia de coletar. No depoimento de Orlando
Vicente Ferreira (PROJETO MEMÓRIA DAS COLEÇÕES CIENTÍFICAS DO INSTITUTO
OSWALDO CRUZ, 1994-2001), coletor do IOC, podemos verificar a metodologia utilizada por estes
técnicos:
“Eu ficava coletando mosquitos silvestres (...) realmente a minha parte era de seis a meianoite. Tínhamos que subir em árvores, vinte e tantos metros de altura, a gente botava uma
escadinha assim, (...) até atingir lá em cima, até atingir o topo, vamos dizer assim, mas alto
possível, que era para fazer três tipos de coleta: um coleta lá a vinte e tantos metros de altura,
10 As de fichas de registro da Coleção Costa Lima, depositadas no Departamento de Entomologia do Instituto Oswaldo Cruz nos
permitiram, através da análise dos coletores de todos os insetos do acervo, confirmar a hipótese de seu perfil de cientista de gabinete.
GT92978
uma coleta a média altura e a coleta do chão, eram três tipos de coletas. A pior era a coleta do
chão, porque a coleta do chão a gente tinha que fazer com o nosso próprio sangue mesmo”.
Além das coletas dos insetos adultos, existiam coletores que eram especializados em larvas,
identificando, ainda nesta fase, a espécie procurada. Dependendo da peculiaridade da espécie, elas
proliferavam em água estagnada, em bromélias, água corrente ou nódulos de bambu. Em alguns
casos, esta coleta era de suma importância para compreender a biologia do inseto, sendo necessário
criar estas larvas até a fase adulta.11
Após o ato da coleta, os insetos eram montados rapidamente, para evitar que seus apêndices
e outras partes do corpo endurecessem na posição errada. Nesta etapa, existiam vários cuidados
para a preservação adequada de cada exemplar: o inseto era espetado em posição rigorosamente
perpendicular ao alfinete; os apêndices como as antenas e pernas ficavam em posição simétrica;
as antenas, quando longas, eram voltadas para trás, circundando o inseto. O ideal era que toda esta
montagem fosse feita com alfinetes entomológicos que não enferrujavam e preservavam em melhores
condições os exemplares depositados nas coleções (ALMEIDA et al., 1998). Por não serem fabricados
no Brasil, era necessário importá-los, apresentando, desta forma, um custo elevado à preparação de
toda uma coleção com este material. Sempre preocupado com a qualidade de seu trabalho, Costa Lima
solicitava aos seus amigos que viajavam, com certa freqüência, a compra de alfinetes entomológicos
e outros materiais necessários ao seu trabalho.
4. Conclusão
A aplicação de políticas ambientais bem-sucedidas depende fundamentalmente de uma base
sólida de informação acerca da biodiversidade local e de sua relação com o ambiente. Essa base é
formada essencialmente pelas coleções científicas, que oferecem um panorama geográfico e temporal
abrangente, dificilmente alcançado por qualquer tipo de estudo pontual. Por essa razão, o esforço
de coleta, montagem, etiquetagem e preservação das coleções deve ser contínuo, no intuito de se
preservar nos museus (e) ou (nos) institutos de pesquisa os testemunhos desta biodiversidade, ainda
largamente inexplorada, e preencher a enorme lacuna de informação acerca das espécies existentes
no nosso país.
Desejamos, ainda, ressaltar que, associada às coleções científicas, existe uma ampla
documentação produzida pelos pesquisadores que as montaram e estudaram. São cadernetas de
campo, correspondências, fotografias, mapas, manuscritos, relatórios, separatas e ilustrações que
constituem fontes de inestimável importância para o estudo da história das atividades científicas
relacionadas à formação desses acervos. Tanto as coleções como a documentação a ela associada
encerram informações fundamentais para o entendimento de questões biológicas, históricas e sociais.
11 Como mencionamos no primeiro capitulo, durante o período em que esteve em Santarém e Óbidos, inicio da sua carreira como
entomologista, Costa Lima teve a oportunidade de realizar diversas experiências com larvas: voracidade, mecanismo de locomoção
e respiração, tempo de crescimento e desenvolvimento até a fase adulta. Todos estes estudos o auxiliaram no estabelecimento de
metodologias de combate ao mosquito da febre amarela.
GT92979
As coleções representam também uma herança cultural; um testemunho da rica história
do descobrimento e da expansão da sociedade brasileira em seu território nacional. Nas coleções
científicas, encontramos representantes da fauna já extinta, que habitou um dia os ecossistemas
alterados de forma irreversível pela ação antrópica. Neste sentido, as coleções constituem um suporte
essencial para os estudos de caracterização e impacto ambiental. Entretanto, cabe sublinhar, que essas
coleções passam a ganhar importância científico-cultural, apenas após a condução de estudos que
propiciem às mesmas acesso de valor. Isto significa dizer que por maior valor intrínseco que possuam,
os objetos de uma coleção só passam a adquirir status de expressão de herança natural ou cultural
depois de estudados e tornados acessíveis à coletividade.
Em outras palavras, o enorme potencial da informação contida nas coleções apóia-se num
tripé: manutenção, pesquisa e ergonometria (LANE, 1996). Cada um desses três vetores tem
requisitos próprios. Em linhas gerais, a manutenção adequada das coleções responde pela vida útil
e pela qualidade dos dados que encerram, enquanto a pesquisa revela a expressão do objeto no seu
contexto. Finalmente, a ergonometria ou acessibilidade da coleção pode ser tratada em dois níveis:
acesso físico aos objetos e acesso aos dados.
5. Referências
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GT92981
COMUNICAÇÃO ORAL
A JANGADA DA MEDUSA NAUFRAGA NA COSTA
CHILENA: FRONTEIRAS FÍSICAS E CONCEITUAIS NA
LEITURA DE UMA OBRA DE ARTE CONTEMPORÂNEA
Nilson Alves Moraes
Resumo:
Desenvolvemos uma analise sobre uma obra de arte contemporânea, sua discursividade e a
repercussão do seu processo criativo em meios de informação como mídia impressa. Formula-se a
partir de reflexões sobre Arte, especificamente sobre arte chilena, abrangendo os campos de Cultura
na América Latina e Arte e Informação. A obra analisada alude e problematiza o conceito de fronteira
e sua transgressão em diversos sentidos ou dimensões; transgressão de uma fronteira territorial e
espacial com destaque a elaboração de sua exposição ou exibição para o público dentro e fora do
Museu, das fronteiras de gênero com destaque ao seu caráter tanto pictórico quanto performático e as
fronteiras discursivas, produto do seu caráter intertextual, traduzido como interpictórico. O objetivo
geral deste trabalho é abrir um espaço para debates sobre bens simbólicos, estimulando a interação
entre áreas voltadas ao estudo de produções artísticas, como o Patrimônio, a Museologia e a Ciência
da Informação, procurando incentivar e divulgar novas pesquisas no meio acadêmico. Através da
problematização de questões relativas ao processo criativo da obra. Concluímos que, na sua produção
existe, mesmo que implicitamente, uma seleção, organização, hierarquização e produção de sentidos
da obra como informação. O quadro materializa simbolicamente uma estruturação. O quadro é uma
fonte de significações e informações. Gera uma irrupção crítica na experiência cotidiana -intervindo
na paisagem - problematizando relações entre obra (informação) e exibição (espectador). Possibilita
assim debates a partir da sua visibilidade (mediática). O referencial teórico deste trabalho encontra-se
pautado em estudos sobre História da Arte e Crítica da arte de autores chilenos reconhecidos em essas
áreas; e também sobre certos conceitos de análise do discurso e da Ciência da Informação. A nossa
metodologia foi trabalhar as diversas problemáticas presentes na obra analisada em relação e diálogo
com as teorias e hipóteses preexistentes e consolidadas provenientes das áreas antes mencionadas.
Palavras-chave:
Arte Contemporânea, Crítica da Arte, História da Arte Chilena, Intertextualidade, Mídia
Abstract
The elaboration of a Contemporary piece of art of analytical character, its speech mode and
repercussion of its creative process in the written media. It is formulated upon thoughts about Art,
specifically Chilean Art, covering the fields of Latin-American Culture, Art and Information. The
analyzed piece alludes the concept of frontier and its transgression in diverse senses and dimensions.
Transgression as a territorial frontier, focusing in the elaboration of a public exhibition within the
GT92982
museum’s surroundings; gender frontiers with special emphasis to its pictorial and performing
character and speech frontiers, as a result of the intertextual character (interpictorial). The general
aim of this paper is to open the debate about symbolic goods, stimulating the interaction among the
study of the diverse artistic areas such as Cultural Heritage, Museology and Science of Information,
encouraging the spreading of new studies in the academic sector. By the questioning of the matters
related to the creative process involving a piece of art, we are able to conclude that in its production
there exists a selection, an organization, and hierarchy in the senses of it. The painting symbolically
brings a structuring to fruition and it is a source of meaning and information. It generates a critical
irruption in the daily experience, intervening the landscape, and questioning the relationship between
the piece (information) and the exhibit (spectator). It makes debate possible starting from its media
visibility. The theoretical referential in this paper is based upon studies about History of Art and Art
Criticism from well-known Chilean authors and certain concepts taken from Discourse Analysis and
Science of Information. Our work methodology consisted in working on the current affairs concerning
the analyzed piece in relation to the pre-existing and existing theories and hypotheses coming from
the areas previously mentioned.
Key words:
Contemporary Art, Art Criticism, History of Art in Chile, Intertextuality , Press.
1 Introdução
Um quadro lançado ao mar como performance artística. Um quadro que modifica a paisagem
e é modificado pela “passagem” pelo mar, por uma condição ambiental adversa e que se modifica
diante da população e dos artistas que não controlam as condições destas mudanças físicas, químicas
e estéticas. Um quadro que, a sua presença ou “exposição” no mar, produz uma interferência na
paisagem e obriga a pensar as condições e os efeitos que um acontecimento real produziu. Quantos
saberes estão envolvidos ou explicam os processos e mudanças em curso? Quais os sentidos deste
acontecimento?
As respostas da exibição desta obra neste ambiente, como acontecimento que fez parte do seu
processo criativo, escapa e independe de ações racionais e institucionais, será apresentada e debatida
num “museu de arte tradicional1”. Esse paradoxo não se esgota na “exposição da obra” no Museu de
Arte Contemporânea, ela permite outros percursos como metáfora produzida e debatida em público,
pelo público, por profissionais da comunicação, informação, cultura e artistas.
1 De uma perspectiva da Museologia, Scheiner define Museu Tradicional como um espaço,edifício ou conjunto arquitetônico ou
espacial arbitrariamente selecionado,delimitado e preparado para receber coleções de testemunhos materiais recolhidos do mundo.
Tem como público-alvo a sociedade e como base conceitual o objeto, visto e apreendido como documento.(SCHEINER, 1998). Outra
definição compreende museus de arte “Convencional y tradicionalmente referidos a los que albergan y exponenpintura, escultura,
artes decorativas, artes aplicadas e industriales, y las denominadas en otros tiempos artes menores”. (FERNÁNDEZ, 1999, p.110111). Poderíamos acrescentar também o sentido de Museu de arte tradicional ou convencional relacionado aoconceito de Museu como
estabelecimento (sentido organizacional), na sua dimensão material anterior aos anos ‘60 e às novas concepções do museu sob os
paradigmas da holística ou da ecologia.
GT92983
A região de Valparaíso, no Chile, viveu, em 18 de fevereiro de 2003, uma experiência artística
que ganhou as principais páginas dos jornais. O acontecimento que imprimiu seu registro na história,
o naufrágio de um navio, ficou marcado no imaginário da população local e assinala algumas relações
possíveis entre a identidade regional, o museu, o patrimônio histórico e as reflexões artísticas.
A Região de Valparaíso, formada pelas províncias de Petorca, Los Andes, San Felipe de
Aconcagua, Quillota, San Antonio, Ilha de Páscoa, Marga-Marga e Quillota, localiza-se numa baía
e se caracteriza por ser uma localidade que resvala dos morros em direção ao mar, dando lugar às
belezas naturais. As principais atividades econômicas da região correspondem aos setores portuário
e terciário de serviços e produtos, em que o turismo se posiciona com maior destaque. Em níveis
demográficos, trata-se da terceira região com maior população do Chile, sendo Valparaíso, capital da
região, a sede do Congresso Nacional do Chile; Assembléia de legislativa do Estado.
A localidade também se integrou e foi palco de manifestações de apoio político às mudanças
sociais propostas durante o governo de Salvador Allende e se tornou uma região de experiências
políticas, estéticas e de debates intelectuais acalorados, em que os experimentos econômicos
nacionalistas estimulavam a resistência social e política ao regime militar implantado em 1973. A
produção artística da região acabou sendo - uma década depois - objeto de exposição e debates no
Museu de Arte Contemporânea de Santiago do Chile.
Durante estes últimos anos, mas principalmente nos 1960 e 70, a arte - principalmente a
arte fora do contexto dos espaços institucionais - constituiu uma das estratégias de mobilização da
sociedade para estimular o debate sobre os problemas e as prioridades de governo. Uma obra de arte
fazendo menção a um naufrágio foi o estopim para provocar sentidos e imprimir sensações. Tratavase de algo sendo apresentado à população e exposto a amplo debate, envolvendo artistas e leigos aos
acontecimentos, em que mudanças estéticas, químicas e simbólicas se projetavam à vista de todos.
O papel da imagem, nas artes, é fundamental. Trata-se de uma linguagem que reinventa e
agrega sentidos. A informação, como conhecimento e relação em permanente mudança e reinvenção
da obra, é parte atual do fazer estético e cultural. Desde o século XV tem se sobressaído o papel do
imagético e do visual na sociedade ocidental. O imagético cria novas condições de diálogo entre a
obra e o espectador, extremando-se em suas possibilidades com a passagem ao mundo pós-moderno,
ou seja, com a passagem à chamada sociedade do espetáculo, em que, de acordo com Debord (1967),
o papel da imagem (e sua informação) se propõe a compreender o processo de sedução de um
espectador/receptor quase automatizado a uma linguagem da hiperestimulação dos sentidos, através
das imagens e das informações que estas carregam.
A arte contemporânea, ou Sistema de Arte, como um conglomerado envolvido na produção
e distribuição de sentidos, está sempre dialogando com seu público e com seu tempo na busca pela
sedução do indivíduo ou, de forma mais ampla, do coletivo, que se realiza por meio de estratégias de
espetacularização.
No trabalho de produção teórica sobre arte contemporânea, o sujeito enfrenta dificuldades, até
GT92984
mesmo encontradas na própria terminologia que classifica as produções. A noção de contemporaneidade
apresenta certa contradição temporal. O “aqui e agora” é tratado por Cauquelín (2005, p.11) como
algo problemático:
A arte contemporânea [...] não dispõe de um tempo de constituição, de uma formulação
estabilizada e, portanto, de reconhecimento. Sua simultaneidade – o que ocorre agora –
exige uma junção, uma elaboração: o aqui-agora da certeza sensível não pode ser captado
diretamente. Friedrich Hegel, no primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, fazia essa
constatação: o agora já deixou de sê-lo, quando nomeado, já é passado; quanto ao aqui, ele
exige a constituição de um lugar que o envolva.
Este texto se propõe a fazer uma análise crítica a partir de uma perspectiva analítica sobre
uma obra de arte. Isso implica algum conhecimento prévio e, ao mesmo tempo, constitui novo ponto
de partida para reflexões e produções de sentidos, o que significa a interação com outros campos do
saber, outras disciplinas, como a museologia, os estudos sobre o patrimônio cultural e a ciência da
informação.
Essa experiência permite o trânsito por diferentes campos e a exposição ao olhar de especialistas
de outras disciplinas na consolidação da própria especialidade do campo e novas propostas que
podem surgir a partir de um diálogo transdisciplinar. Trata-se, de um lado, de uma aproximação
ao domínio dos museus, o que provoca o pensamento museológico e refaz uma possibilidade (dita
tradicional) de arranjos entre bens simbólicos, patrimoniais e museológicos, abarcando espaços e
objetos em novos contextos e cenários, processos comunicacionais, e registro de memória coletiva.
De outro lado, consolida o delineamento de novas hipóteses sobre diretrizes e fronteiras do próprio
campo da história da arte, principalmente na América Latina, onde, no decorrer do século XX, junto
com a consolidação da crítica de arte, vai delineando uma consciência de objetos de arte como fatos
artísticos. Essa consciência necessita de instrumentais que mostrem o sentido das transformações
pelas quais os “fatos artísticos” passam.
De acordo com Orlandi (2005, p.10), “diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico,
somos instados a interpretar havendo uma injunção a interpretar”. A natureza da análise necessita da
interpretação para experimentação, assimilação e compreensão do mundo real e, principalmente, da
relação do homem com o meio em que vive. A interpretação é uma necessidade e uma possibilidade
de novas formas para enfrentar os desafios estéticos e culturais. De modo consciente ou inconsciente,
o ser humano está sempre interpretando. Ainda de acordo com Orlandi (2005, p.15), através da
interpretação, do estudo e da análise dessa dimensão humana “pode-se conhecer melhor aquilo que
faz do homem um ser especial com sua capacidade de significar e significar-se”.
A faculdade de interpretação do ser humano é constante e condiciona toda a relação (e
também a concepção) dos diferentes aspectos da existência humana. No terreno das artes, campo de
infinitas e contraditórias possibilidades, os seus mecanismos parecem ainda mais claros, importantes
e evidentes. Nesse ponto, a interpretação não se apresenta como uma finalidade prática, mas como
uma dimensão que deve ser focalizada no trabalho da interpretação, numa realidade em si mesma.
GT92985
Importante ressaltar que esta análise procura se constituir como uma maneira (igual a muitas outras)
de exploração da relação com o simbólico, através da leitura de uma obra de arte visual, em sua
dimensão discursiva. Pode-se afirmar que a natureza latino-americana é o que justifica esta reflexão
pela escolha da obra.
Percebe-se, nesse tipo de manifestação, a partir das suas representações e configurações,
o desenvolvimento da obra como transformação regulada das suas condições de produção e do
imaginário social que a determina. A obra objeto deste estudo, La balsa de la Medusa naufraga
en costas chilenas, exemplifica esse caráter e expressa metaforicamente sua condição através da
exposição do seu contexto. Ela responde a certas características que o crítico e curador argentino
Jorge Glusberg (1978) reconhece como próprias de obras de arte latino-americanas ligadas ao seu
âmbito sociocultural e, por isso, propõe uma abertura a debates identitários e patrimoniais.
No terreno dos objetos, suas significações e sentidos conduzem à análise de questões
fundamentais sobre sociedade, história regional e cultura (na verdade, cultura como realidade plural).
Sua significação pode ser concebida como uma “materialização própria e singular de ideias”. Nas
palavras de Lima (2008, p. 36):
As significações relacionadas aos objetos (vinculação de simbologias/signos), [...] se
tornaram expressões materializadas destas ideias; passaram a ter sentidos específicos (=
códigos culturais) definidos e estabelecidos para fins de reconhecimento (= decodificação)
junto ao seu meio ambiente social.
Para maior entendimento sobre essas significações, é importante que sejam conhecidos os
aspectos relevantes da obra em relação ao contexto, seja espacial e/ou temporal, em que agentes são
categóricos quanto às interpretações e quanto à dimensão comunicativa. De acordo com Lima (1995
apud PINHEIRO, 1996, p. 4):
A representação e, sobretudo, a interpretação de uma obra artística implica a sua inserção
temporal e espacial, conforme foi dito, na sociedade da qual é oriunda. Estão em jogo
conhecimentos, habilidades, técnicas e experiências diferenciadas, e múltiplos agentes que
interferem nesse processo: artistas, críticos, historiadores da arte, pesquisadores, museólogos,
galeristas, marchands, leiloeiros, colecionadores particulares e institucionais, editores de arte
e livreiros.
De acordo com a visão do agente, o artista produz sua obra com técnicas, sentimentos e visões
de época. Ele utiliza recursos materiais e se envolve nos acontecimentos de um tempo. O espectador e/
ou o agente analisam a arte (imagem) como fonte e parte estruturante de um sistema de disseminação
de informação que potencializa o conteúdo como narrativa. Portanto, estes consideram a arte como
técnica e como linguagem. Porém, a arte, segundo Bourdieu (1989), envolve outros interesses e visão
de mundo que se expressam para o público através de exposições e como processo de constituição e
disputas sociais, estéticas e culturais. A obra, como produção e veiculação de informações, constitui
uma prática comunicacional complexa, que pressupõe visões e interesses diferentes.
Considerando as premissas levantadas, a obra analisada apresenta informações implícitas
GT92986
dirigidas ao receptor ou àqueles que conhecem os fatos. Assim, corroborando a análise deste trabalho,
quanto à maneira como a informação é transmitida, Shannon e Weaver (apud ARRUDA, 2000, p.27)
destacam:
A informação tem menos a ver com o que se diz de fato do que com o que se pode dizer. Isto
é, a informação mede a liberdade de escolha de cada um, quando este tem de selecionar uma
mensagem. A informação não se aplica a mensagens individuais, mas à situação como um
todo.
Pinheiro (1996, p.4) reconhece que “representação e interpretação são ações indissociáveis,
uma vez que uma depende da outra”. E nessa linha de raciocínio, informação:
É o que se acrescenta a uma representação. Recebemos informação se “o que conhecemos” é
alterado. Informação é o que logicamente justifica alteração ou reforço de uma representação
ou de um estado de coisas. As representações podem ser explícitas (como num mapa ou numa
proposição) ou podem estar implícitas no estado de atividade dirigida do receptor. (MCKAY
apud ARRUDA, 2000, p.26)
Pode-se afirmar que é nesse estado de atividade dirigida ao espectador que se encontra
a obra de arte. Para ele há um nexo tenso e complexo entre arte e informação. Diferentes vozes
interferem na compreensão e na produção dos sentidos possibilitados pela obra. Essa relação envolve
uma combinação de imagens e sentido estético, numa tentativa direta de veicular conhecimento.
São complexos e em grande escala os agentes que determinam e interferem nesse movimento ou
negociação do conhecimento.
Outra dimensão, quanto à divulgação das obras de arte, é determinada por agentes que
possibilitam, interferem e determinam o processo comunicativo da informação. Além do museu,
através da historiografia da arte, das narrativas, das teorias museológicas, da curadoria de exposições,
dos programas educativos, da comunicação, da área de documentação, da museografia etc., fazem
parte desse processo, ainda, instituições artísticas (escolas de arte, universidades, centros culturais,
galerias de arte etc.) e mídia (impressa, internet, publicidade, espetáculos). Esse conglomerado de
agentes passa a ser portador e transmissor da informação sobre arte.
2 Apresentação da obra La balsa de la Medusa naufraga en costas chilenas (“A jangada da
Medusa naufraga na costa chilena”)
O projeto da artista chilena Judith Jorquera foi desenvolvido em duas fases. Primeiramente,
foi feito um pedido de financiamento ao Fondo de Desarrollo de las Artes y la Cultura (Fondart).2
Essa primeira fase, que contou com a colaboração do artista chileno Gonzalo Orellana para a criação
do projeto, teve duração de seis meses e foi desenvolvida uma pintura3 que reproduz, com dimensões
2
3
Incentivo do governo do Chile para o desenvolvimento da arte e cultura através do Ministério da Educação.
As dimensões dessa pintura são (355x520)cm.
GT92987
quase idênticas, o quadro Le Radeau de la Méduse4, de 1818-19, do pintor francês Théodore Géricault.5
Atualmente, essa obra se encontra no Museu do Louvre, em Paris. O quadro apresenta, desde seu
título e configuração, um diálogo intertextual e interpictórico entre as duas jangadas da Medusa.
Na segunda etapa do projeto, o quadro, depois de concluído, foi lançado ao mar pela artista,
em 18 de fevereiro de 2003, próximo à praia de San Mateo.
Figs. 1 (a e b) - a) Caleta El Membrillo. Valparaíso, Chile. A pintura antes do “naufrágio”. Fonte: (Registro fotográfico
pessoal da artista). 18 de Fevereiro 2003. – b) Registro ação de arte. Fonte: (Registro fotográfico particular da artista).
Depois de dez dias de naufrágio, o quadro foi retirado do mar e, em abril de 2003, ele foi
apresentado em uma exposição coletiva de pintura chilena contemporânea intitulada de “Cambio de
Aceite”6 (Mudança de Óleo), no Museu de Arte Contemporânea de Santiago do Chile, proposta como
uma revisão crítica e temática da pintura que se desenvolveu naquele país durante o período de 1980
a 2003. A pintura mostrava os sinais da sua passagem marinha.
Fig.2 - Exibição da obra na Exposição “Cambio de Aceite” Museu de Arte Contemporânea - MAC Santiago. Março-abril 2003.
Fonte: Registro fotográfico particular da artista.
3 ANÁLISE DE LA BALSA DE LA MEDUSA NAUFRAGA EN COSTAS CHILENAS
4 As medidas de Le Radeau de la Méduse de Géricault são (491x716)cm.
5 Théodore Géricault (Rouen, França, 26 de setembro de 1791 - Paris, França, 26 de Janeiro de 1824).
6 Mostra realizada de 14 de março a 13 de abril de 2003 e composta por obras de 39 artistas chilenos. Categorizada pelos seus
curadores como uma revisão de um período da arte nacional, composta por artistas representativos da pintura da cena experimental de
vinte anos atrás. A curadoria da exposição ficou a cargo dos artistas visuais chilenos Victor Hugo Bravo, Jorge González Lohse e Mario
Z. Informação sobre esta exposição disponível em: http://www.mac.uchile.cl/exposiciones/cambiodeaceite/. Acesso em: Jul. 2011.
GT92988
3.1 O naufrágio como experiência criativa
O trabalho de Jorquera é apresentado como referência a um dos grandes estilos da história da
arte: o romantismo francês. A obra se inscreve de maneira tradicional no suporte bidimensional do
quadro e tem grandes dimensões, como o original, além de se concentrar na citação de Le radeau de
la Méduse, de Théodore Géricault (1791-1824), pintor francês do Romantismo.
Fig. 3 - “Le Radeau de la Méduse”, Théodore Géricault, 1819. Fonte: Site Museu do Louvre7.
Num primeiro momento se reconhece, na produção de sentido da obra chilena, uma dimensão
intertextual radicada nessa citação, o que, neste estudo, denominamos de “interpictoricidade” da
obra. Esse termo será cunhado a partir do conceito de intertextualidade utilizado por Orlandi (2005).
Intertextualidade se propõe como uma mobilização de relações de sentido, como relação de um texto
com outros textos. A interpictoricidade representa a relação de uma pintura com outra pintura, a
mobilização, também, de relações de sentido entre ambas, gerando nesse movimento um diálogo
intercultural. Encontra-se na obra francesa a representação de um fato real acontecido em julho
de 1816, quando a fragata Méduse afundou perto do litoral africano. Treze dias depois, um barco
salvou os sobreviventes do desastre. Géricault conheceu essa história e a representou na tela.8 Para a
realização de sua obra, o artista mandou construir uma jangada de proporções semelhantes à original,
entrevistou alguns náufragos e estudou vários cadáveres.
O trabalho de Jorquera se desdobra em dois pontos: a reprodução com dimensões próximas
às do original, de Géricault, e a experimentação com o próprio tema da citação prevista para a
pintura. O nível que a artista conseguiu, quase em escala, sugere um devir não forçado na criação,
pois a obra foi concebida para ser do mesmo tamanho da original. Isso, porém, não foi possível
7 Disponível
em:
http://www.louvre.fr/llv/oeuvres/detail_notice.jsp?CONTENT%3C%3Ecnt_
id=10134198673236500&CURRENT_LLV_NOTICE%3C%3Ecnt_id=10134198673236500&FOLDER%3C%3Efolder_
id=9852723696500815 Acesso em: Jun. 2011.
8 Conforme Gispert (2000, p.226): “expuesta en el Salón de 1819, la obra fue considerada un ataque al precario e ineficaz gobierno
borbónico, y despertó por su descarnado dramatismo el entusiasmo de algunos jóvenes pintores de la escuela romántica, entre ellos se
encontraba Delacroix”.
GT92989
devido a questões técnicas. Logo, a citação faz com que se reconheça um segundo descompasso: os
náufragos inspiradores da obra de Géricault ficaram treze dias à deriva, diferentemente dos dez dias
de naufrágio da obra de Jorquera. Esse foi o tempo necessário para que pudesse conseguir a corrosão
dos pigmentos sobre a tela sem perder completamente a composição ou desenho original. Esse foi o
deslocamento produzido por Jorquera a partir da interpictoricidade das obras em questão. Sua obra
ficou exposta às forças que produzem a corrosão e a outros agentes agressores provenientes do meio
ambiente marinho, como aves que bicavam o quadro.
Figs.4 (a e b) - Registro ação de arte. Fonte: (Registro fotográfico particular da artista).
Fig. 5 - O quadro e os agentes corrosivos marinhos. (Registro fotográfico particular da artista).
Todas essas condições adversas dentro do mar chileno proporcionaram à obra mudanças
conceitual e formal, o que a reconfigurou por completo. A obra adquiriu marcas do naufrágio, tal
como os personagens representados por Géricault. O quadro, como a jangada no naufrágio, sofreu
uma lesão em sua materialidade. Algo também análogo à representação dos corpos dos personagens
representados por Géricault. O naufrágio do suporte da pintura fez referência ao naufrágio
representado por Géricault, que por sua vez fez referência ao naufrágio original. Em resumo, a obra
de Judith Jorquera, considerando os efeitos sobre seu suporte, padece de seu próprio tema, com sua
configuração formal e material.
3.2 O naufrágio como desterritorialização da obra de arte
GT92990
A dupla citação de Jorquera (a jangada de Jorquera à pintura de Géricault, como a pintura
de Géricault ao fato histórico do naufrágio da Méduse, de 1816) pode ser considerada uma “metacitação” histórico-pictórica e significante. Através da sua dupla natureza - pictórica e performática
- torna-se possível enfatizar a problematização do conceito de influência estrangeira em pintura,
especificamente na história da pintura.
A autora põe em questão a história da pintura no Chile, apresentando-a metaforicamente
(através da sua ação de arte) como uma história “fora de contexto”, em que as informações sobre a arte
estrangeira ingressam em outro território, como informações procrastinadas temporal e fisicamente.
A retomada do quadro e a produção - possível, narrada ou imaginada - dos acontecimentos históricos
prévios, como uma encenação da história, produzem uma nova situação de informação. A informação
é estruturante da arte e estrutura sua relação com o mundo. O título da obra, A Jangada da Medusa
Naufraga na Costa Chilena, a sentencia. A influência do estilo europeu ocidental ingressa diferida,
corroída com relação às latitudes chilenas. Sua apropriação estará descontextualizada do original,
chega mesmo a ser atravessada pela tragédia9 marinha. O resultado: a sobrevivência como traspasso
de sentido (metaforizado no naufrágio) e o vestígio desse acontecimento como trauma físico (as
manchas e corrosão da tela) gerando a reconfiguração da obra.
No momento em que se faz reflexão sobre o desenvolvimento da arte no Chile, desde os tempos
coloniais, é possível reconhecer os diferentes processos de importação, cópia, tradução e interpretação
de influências artísticas estrangeiras. Além disso, pensar na abertura da Academia de Belas Artes do
Chile, em 1849, assim como na criação das primeiras escolas, movimentos ou vanguardas artísticas
do país pode conduzir, inevitavelmente, à problematização da questão das influências internacionais.
O processo de validação de determinadas expressões artísticas nacionais, períodos ou movimentos,
geralmente é definido em relação ao acontecer internacional da arte.
A reflexão do filósofo chileno Sergio Rojas, sobre o desenvolvimento da história da arte no
Chile, apresenta um problema do poder no campo das artes. Rojas (2003), confirma que esse poder
está no eixo do que significa a arte européia ocidental para as atuais histórias nacionais periféricas
(pensadas dessa forma somente a partir dessa centralidade). Por outro lado, mostra não somente uma
possível condição da história da arte chilena, como também história “das influências” ou, ao mesmo
tempo, faz sobressair o “sentido especial” com que deve ser entendida essa história.
A observação dessa peculiaridade no desenvolvimento da arte chilena pode ser interpretada
como o caráter descontínuo e defasado daquela importação de influências estrangeiras. Ali estaria
enraizado seu “sentido especial”. Expressões como “discontinuidad”, “historia hecha a saltos” e
“carácter diferido” têm sido utilizadas e problematizadas por diversos autores ao abordar a questão
das influências. O filósofo chileno Pablo Oyarzún, por exemplo, refere-se à evolução da arte no Chile
- desde o final dos anos 1950 - como uma série de modernizações entendidas como “atualizações” da
9
É possível propor ainda, pelo gesto da autora, certo traspasso de sentido: da tragédia à comédia/farsa.
GT92991
arte chilena no que diz respeito à arte universal.
Assevera Oyarzún (1999, p.292):
Se as apreendemos por separado (ditas modernizações), se lhes concedemos a individualidade
absorta com que geralmente se apresentaram elas mesmas, é possível que desfilem uma
a respeito de outra, como antinomias, hiatos, ou saltos, que dificilmente poderiam ser
contados a título de etapas de um processo orgânico […] desde logo, não pressupomos uma
organicidade forte, isto é, teleológica, que vincule a essas modernizações num curso pleno
de sentido interno, mas não deve ser impossível apreender o ritmo de sua série10 (Tradução
Livre).
Adriana Valdés (1995, p.83), ensaísta e acadêmica chilena, propõe sobre essas questões,
focalizando-se principalmente no debate sobre poder e política dentro do mundo da arte, o seguinte:
...de fato, não se poderia pedir ao mundo da arte que existisse fora dos sistemas de dominação
que funcionam na terra. Também não poderia pensar-se em criar espaços privilegiados ou
inocentes nos quais, por arte de magia, pudéssemos esquecer ou negá-las subordinações
culturais implícitas11 (Tradução livre).
3.3 Repercussão midiática da ação de arte
É possível perceber, sem grande dificuldade, que a experiência contida no processo criativo
da obra de arte apresentada combina nesse mesmo movimento de citações e referências a cenários,
cidades, patrimônios e sociedades diversas. Essa combinação implica uma operação crítica por ser
visível e conscientiza certas subordinações culturais implícitas na esfera da arte universal, ou melhor,
no eixo que significou e significa a cultura, e a arte ocidental para as histórias nacionais, e da arte, das
nações do continente americano, ou seja, da América Latina.
A interpretação da obra inclui tanto os produtores de informação (a parte conhecida da
sociedade que se constitui como novos produtores de sentidos), como negociadores de informações e
sentidos significativos para uma conjuntura e grupos sociais.
Importante resgatar alguns efeitos dessa obra e da ação de arte a que esta foi submetida na
mídia impressa. Importante, ainda, apresentar a dimensão de visibilidade e repercussão dessa obra
no seio da sociedade, já que seu processo constitutivo teve abrangência, também, nesse plano da
exibição em um espaço fora do tradicional.
De modo independente da intencionalidade prévia, o efeito do seu “passo marinho”, ou seja,
ser lançada ao mar e deixada por lá durante um tempo determinado, significou a possibilidade ou
problemática de criar um diálogo sobre os meios expositivos, sobre a relação entre obra e espectador,
10 “Si se las toma por separado (a dichas modernizaciones), si se les concede la individualidad absorta con que ha menudo se han
presentado ellas mismas, es posible que desfilen, unas respecto de otras, como antinomias, hiatos, o saltos, que difícilmente podrían ser
contados a título de etapas de un proceso orgánico […] desde luego no presuponemos una organicidad fuerte, es decir, teleológica, que
vincule a esas modernizaciones en un curso pleno de sentido interno, pero no debe ser imposible aprehender el ritmo de su serie”.
11 “Por cierto, no se podría pedir al mundo del arte que existiera fuera de los sistemas de dominación que funcionan en la tierra.
Tampoco podría pensarse en crear espacios privilegiados o inocentes en los que, por arte de magia, pudiéramos olvidar o negarlas
subordinaciones culturales implícitas”.
GT92992
e sobre mecanismos de mediação entre o objeto artístico e o público. Esses mecanismos se identificam
como o complexo de informações que se articula ao redor da obra como fato artístico, como processo,
e os meios de recepção de tais informações por um espectador.
A mídia impressa se posicionou como fator importante para a visibilidade da obra e para sua
repercussão. Os jornais, em suas chamadas, construíram suas próprias considerações e interpretações
sobre a obra e sobre o processo criativo. Apesar de a linguagem não ser especializada ou de considerações
rasas, alguns títulos de jornais nacionais destacaram diversas perspectivas ou dimensões que a leitura
da obra apresenta. Determinadas notícias e manchetes produzem frases e idéias que versam, enfatizam
e refazem o movimento pretendido pela artista, produzindo e intervindo nas leituras possíveis do
acontecimento, gerando uma intervenção na dimensão informativa e comunicacional da obra através
de um meio alternativo ou à margem do sistema de arte e de suas dinâmicas de validação, inscrição e
valorização. Algumas dessas chamadas jornalísticas observadas com acuidade podem ser analisadas
adiante:

“Acaba performance pictórica” (Jornal El Mercurio de Valparaíso, 27 de Fevereiro
2003, capa do jornal): essa manchete destaca a dupla natureza da obra antes mesmo de apresentála ao público. O suporte do quadro se torna referência à ação que significou sua submersão no mar
como uma performance, mas com destaque também ao caráter pictórico, através de uma espécie
de categorização genérica que enlaça ambas as linguagens artísticas: a performance e a pintura. A
matéria não aprofunda essas nomenclaturas, mas abre o espaço para o debate sobre a natureza da
linguagem da expressão artística analisada.
 “Retiram quadro que se exibia no mar” (Jornal La Estrella, 27 de Fevereiro 2003, p.6):
nessa manchete é possível identificar o conceito de “exibição” em contraposição à “exposição” do
quadro fora do que se poderia entender como as fronteiras do museu: o quadro desterritorializado do
seu contexto institucional. A afirmação da manchete problematiza os limites de legitimação da obra
(fora do seu espaço institucional) e sua dimensão expositiva em relação ao público.

Figs. 6 (a e b) - a) Material imprensa: “Acaba performance pictórica” Jornal El Mercurio de Valparaíso, Fevereiro 2003.
(Registro fotográfico particular da artista); b) Material imprensa: “Retiraram quadro que se exibia no mar” Jornal La
Estrella, Fevereiro 2003. (Registro fotográfico particular da artista).
GT92993
 “La Balsa de la Medusa. Quadro vai adquirir os sinais da sua passagem pelo mar para
em seguida integrar exposição no MAC Santiago” (Jornal El Mercurio de Valparaíso, 19 Fevereiro
2003, Capa do jornal): nessa manchete é resgatada a ação de arte como um indício, vestígio, marca,
sublinhando o processo criativo da obra. Aqui, não se considera tal “passagem marinha” como parte
da sua exposição, mas o processo que envolveu a geração da obra, o que faria com que seu destino
fosse a exposição no museu (MAC Santiago), ou seja, o retorno a seu espaço de exibição natural.
 “Aves marinhas deterioram La balsa de la Medusa” (Jornal La Estrella, 23 de Fevereiro
2003, p.11): aqui é feita a relação direta com a obra original de Géricault, de maneira sarcástica ou
inverossímil. A possibilidade de que a obra do acervo do Louvre esteja submersa no mar chileno é
proposta ou poderia ser lida como uma farsa/comédia. A manchete ressalta a interpictoricidade da
obra. A sinédoque (como figura retórica na qual se exprime uma parte por um todo, ou um todo por
uma parte; só a parte do título da obra que remite à obra de Géricaul ou à Balsa original) tão comum
ao fazer referência a obras de arte, ou na literatura, geralmente é utilizada para provocar o inusitado
nas expressões escolhidas, aqui torna visível a intencionalidade da manchete em chamar a atenção do
leitor/espectador.
Fig.7 (a e b) - a) Material imprensa: “Quadro vai adquirir sinais da sua passagem marinha para em seguida integrar
exposição no MAC Santiago” Jornal El Mercurio de Valparaíso, Fevereiro 2003. (Registro fotográfico particular da
artista); b) Material imprensa: “Aves marinhas deterioram La Balsa de la Medusa” Jornal La Estrella, Fevereiro 2003.
(Registro fotográfico particular da artista).
4 Considerações Finais
De acordo com o exposto é possível afirmar que a obra de Jorquera propõe uma reflexão
crítica sobre a leitura da história das influências na arte chilena.
A arte tradicional dos grandes estilos europeus, na sua expressão mais tradicional e acadêmica,
como foi e ainda é o quadro, na sua importação para latitudes latino-americanas, naufragou na costa
chilena. A obra pós-naufrágio adquire uma linguagem que vai além da narrativa e importância do
tema, que está entrelaçada com o contexto e o conceito. A pintura pós-naufrágio padece do seu próprio
tema e na ação de arte do naufrágio passa para uma dimensão analítico-conceitual.
O naufrágio de Jorquera se refere à desterritorialização. A obra que começa num contexto
(Romantismo francês) termina por se constituir em outro (analítico da história das influências
procrastinadas no Chile). A estratégia da artista consiste nessa “citação traduzida” (produto do
naufrágio) da arte universal. Nesse devir é gerada a marca física do naufrágio, um jogo conceitual:
GT92994
a jangada da Medusa de Géricault, literalmente afundada no mar chileno, se corrói e se constitui
dentro de um novo universo plástico pós-naufrágio, pós-trauma. É possível afirmar que, desde essa
premissa, não existe uma história nesse objeto. São muitas histórias. No mesmo objeto convivem,
no mínimo, uma história da obra, uma história de sua retomada e a história do espectador. Trata-se,
consequentemente, de um signo dotado de diferentes e contraditórias possibilidades intelectuais e
informativas.
Contextualizando a obra de Judith Jorquera na exposição “Cambio de Aceite”, no Museu
de Arte Contemporânea de Santiago do Chile, em 2003, é possível ler ou reconhecer uma provável
finalidade: o dispositivo da obra se encontra na ação transversal da sua constituição e gera um “pré”
e um “pós” em sua natureza pictórica. Depois do naufrágio, a obra é exposta no Museu de Arte
Contemporânea de Santiago do Chile. A obra pictórica que naufragou na experimentação de seus
recursos de representação retorna à instituição que a fez reconhecida: o museu. Porém, ao retornar
à sua origem, onde deveria ter sido contextualizada12, aquele território não podia mais revalidar
ou devolver seu caráter pictórico tradicional, convencional, já que os vestígios e as marcas da sua
passagem marinha eram perceptíveis não somente em um nível visual, mas também olfativo (o cheiro
da sala onde era exibida La balsa de la Medusa Naufraga en Costas Chilenas denunciava sua estada
no mar, expressando e induzindo outro sentido, uma experiência sensorial mais complexa). A obra,
então, passa a criar outras possibilidades no espaço museu e com as relações que essa instituição
tradicionalmente oferece aos objetos de arte, aos bens artísticos. Nesse sentido, se acrescentam dados e
sentidos ao objeto de arte, produto dos vestígios perceptíveis do seu processo criativo, os quais dentro
do espaço do Museu – musealisado -,representam uma nova condição e problemática. Representa um
desafio tanto para as leituras e narrativas do museu quanto para os efeitos de montagem e exibição,
pensando também nas áreas de Conservação e documentação do espaço. Conforme assevera Pinheiro
(1996 apud PINHEIRO, 2005), “os museus de arte, na sua condição de centros de referência cultural e
na sua potencialidade educacional, bem como as bibliotecas de arte, geram informações artísticas e
culturais”.
Como assevera González de Gomez (1993, p.217-222 apud PINHEIRO, 2005): “A transferência
da informação, por sua vez, não assegura o conhecimento e depende do ‘conjunto de ações sociais
como os grupos’ e as instituições organizam e implementam a comunicação da informação através
de processos seletivos que regulam sua geração, distribuição e uso”. Com essa afirmação é possível
compreender a importância dos mecanismos de transferência, bem como é possível a tomada de
consciência de como as instituições ou agentes podem intervir na comunicação de informações a
partir de instrumentais diversos que, sem dúvida, são obrigatórios quando dizem respeito à arte e ao
espectador.
A obra La balsa de la Medusa naufraga en la costa chilena se expôs como um modelo
12 A imagem da obra como quadro, no seu suporte mais tradicional e cobiçado pela instituição/museu aparece como uma antítese da
imagem da obra jangada naufragando no devir do oceano.
GT92995
distinto de apresentação de uma produção artística produto do seu processo criativo. Foi submetida
a uma situação inesperada por parte de muitos observadores, o que permitiu a visibilidade de suas
mudanças e estimulou novas relações entre os aspectos químicos, simbólicos, estéticos e culturais.
O dispositivo da obra se encontra nessa transferência de sentido (ou na possibilidade de exigir
outros sentidos). A obra pictórica que sai do museu e naufraga, volta corroída, marcada pelo meio
se constitui um novo espaço plástico. Por sua vez, através do processo criativo, a obra gera uma
irrupção crítica dentro da experiência cotidiana, intervindo na paisagem e problematizando assim
as relações entre obra, mensagem, espectador e meio de exibição.
Isso tudo abre um espaço para debates sobre bens simbólicos e proporciona interação entre
as diversas áreas voltadas ao estudo da produção artística, como os estudos sobre o patrimônio, a
museologia e a ciência da informação, a ponto de incentivar e divulgar novas pesquisas no meio
acadêmico e no âmbito da sociedade em geral. Toda a situação gera abertura a debates interessantes
e importantes a partir da sua visibilidade midiática. Busca-se, por meio da sua interpretação, a
inserção humana no universo semântico da obra e das informações presentes nesta.
Segundo Pinheiro (1996 apud PINHEIRO, 2005) informação em arte:
é o estudo da representação do conteúdo informacional de objetos/obras de arte, a partir
de sua análise e interpretação” e, nesse sentido, a obra de arte é fonte de informação “e, ao
mesmo tempo, expressa múltiplas manifestações e produções artísticas.
Com isso, gera-se uma aproximação inicial ou introdutória ao campo da informação em
arte e entende-se, também, a obra de arte como fonte de informação. A obra analisada representa
essa fonte de informações que significa também a expressão em si de outras produções artísticas,
a através de diversas informações que dirigem a diversas referências, como intertextualidade.
Continuando com Pinheiro (2005) e dentro desta relação entre arte e informação acrescentaremos
que “a arte e a produção artística são comunicadas sob a forma de informação artística e tendo
como suporte as novas tecnologias de informação, o que pode levar à concretização de um
trabalho social e educativo”. Nesse sentido, sublinha-se a importância dos meios de movimentação
dessa comunicação, da relevância de observar e analisar os mecanismos desses movimentos, os
agentes de transmissão, a transferência em si. As obras e as interpretações destas, assim como
suas informações, serão vinculadas então a esses mecanismos de transmissão e fundamental de
considerar no momento de refletir sobre produções artísticas insertas num meio e contexto social
específico.
Depois do naufrágio, em 18 de fevereiro de 2003, de La balsa de la Medusa Naufraga en
la Costa Chilena, a arte e os movimentos artísticos na região de Valparaíso, no Chile, nunca mais
serão os mesmos. O acontecimento imprimiu nova orientação na história da arte à reconhecida
região rica por sua origem cultural.
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GT92996
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GT92998
COMUNICAÇÃO ORAL
CURADORIA E AÇÃO INTERDISCIPLINAR EM MUSEUS:
A DIMENSÃO COMUNICACIONAL E INFORMACIONAL DE
EXPOSIÇÕES
Julia Nolasco Moraes
Resumo:
Este trabalho realiza discussão acerca dos conceitos e definições de curador e curadoria
e da relação entre exposição, ação interdisciplinar e público. Para tal, são apresentados conceitos e
problemáticas relacionados ao processo curatorial e à dimensão comunicacional e informacional das
exposições museológicas, observando-se a curadoria sob a perspectiva da interdisciplinaridade e da
relação da exposição com o público. Introduz-se o histórico das ações de curadoria em museus, sendo
possível perceber as modificações sofridas pelo conceito ao longo do tempo. Aborda-se a relação
contraditória entre curadoria, entendida como cadeia operatória, conjunto de atividades solidárias, e
o curador, por vezes reconhecido como profissional onipotente em relação à dinâmica institucional,
apresentando-se modelos tipificados de curador. Exposições são compreendidas como empreendimentos
complexos dentro dos museus, integrantes de um sistema de comunicação e informação específico
que tem como um de seus elementos constituintes o público. Enfatiza-se que a existência do museu
e o desejo de transferir informações e gerar conhecimentos não garantem a apropriação por parte
dos visitantes dos conteúdos potencialmente disponíveis. A transferência de informação ocorrerá
de acordo com as condições sociais e culturais que interferirem neste processo. Entende-se que a
exposição é uma construção que exige diferentes suportes e linguagens, não se desenvolvendo como
uma expressão natural e/ou espontânea ou uma mera composição estética. Trata-se do processo de
tomada de decisão em exposições e compreende-se o processo curatorial como resultado de um
trabalho que visa criar condições para transferência de informações e produção de conhecimento
e, indo mais longe, diz-se que o processo curatorial deve estimular o envolvimento do visitante, na
forma de cooperação. Gerenciando, organizando e articulando informações, o processo curatorial
deve ser trabalhado na perspectiva de intermediação entre acervo musealizado e indivíduo, na busca
por uma ação cooperativa entre museu e público.
Palavras-chave: curadoria; exposição museológica; interdisciplinaridade; transferência de
informação.
Abstract:
This article starts a discussion about concepts and definitions of curator and curatorship
and about the relationship between exhibition, interdisciplinary action and audience. For this,
GT92999
we present concepts and issues related to the curatorial process and the communicational and
informational dimension of the museological exhibitions, observing curatorship from the perspective
of interdisciplinary and the relationship between exhibition and audience. It introduces the history
of curatorship actions in museums, which shows the changes undergone by the concept over time.
Addresses the contradictory relationship between curatorship, understood as a set of interdependent
activities, and curator, sometimes taken as a professional all-powerful in relation to institutional
dynamics, and also presents types of curator action. Exhibition is understood as complex project
within museums which is part of a specific communication and information system that has as one of
this constituent elements the audience. It is emphasized that the existence of museums and the desire
to transfer information and generate knowledge not guarantee ownership by the visitors of content
potentially available. Information transfer occurs according to the social and cultural conditions that
interfere in this process. We believe exhibition is a construction that requires different media and
languages, not developing as natural or spontaneous thing, nor a mere aesthetic composition. Talks
about the process of decision-making on exhibitions, understanding curatorship process as a result of
work which aims to create conditions for information transfer and generate knowledge, and further,
it is said the curatorial process should encourage visitor involvement by cooperation. Managing,
organizing and coordinating informations, curatorial process should be seem in the perspective of
intermediation between collections and individual, looking for a cooperative action between the
museum and the audiente.
Key words: curatorship; exhibition; interdisciplinary; information transfer
1 INTRODUÇÃO
O termo curadoria tem estado cada vez mais em evidência para designar ações desenvolvidas
em instituições culturais, que envolvem a seleção, interpretação e comunicação de um determinado
conteúdo para o público. É possível observar o emprego do termo curador – aquele que responde
pela curadoria – para se referir sobretudo – ainda que não exclusivamente - ao responsável por
exposições em museus, centros culturais, bienais ou feiras, bem como mostras de vídeos, filmes,
áudios, performances, entre outras expressões que buscam a comunicação.
Na esfera de atuação e leitura dos museus e da Museologia, a discussão acerca da curadoria
não é tema novo, embora nem por isso seja assunto esgotado ou pacífico. A maneira como os museus
conduzem os processos curatoriais em seu interior traduzem a forma como as instituições se pensam,
articulam e comunicam com seu público. Geralmente associado à realização de exposições e gestão,
estudo e promoção de coleções, o processo curatorial gerencia, organiza e articula informações a
fim de garantir da melhor forma possível as condições para a transferência dessas informações ao
visitante com vistas à produção de conhecimento.
O presente texto parte de pesquisa de doutoramento acerca do processo de transferência de
informação e da produção de conhecimento em museus por meio de exposições museológicas, sob
abordagem da Museologia e da Ciência da Informação. Pretende-se, por meio deste, iniciar uma
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discussão acerca dos conceitos e definições de curador e curadoria e da relação entre exposição,
ação interdisciplinar e público. Para tal, num primeiro momento serão levantados alguns conceitos
e problemáticas relacionados à curadoria; como segunda etapa se trará ao debate a dimensão
comunicacional e informacional das exposições museológicas; e, finalmente, como terceiro movimento,
se abordará a curadoria sob a perspectiva da interdisciplinaridade e da relação da exposição com o
público.
2 CURADORIA: ALGUMAS FACETAS DO CONCEITO
Em texto que discorre sobre a definição de curadoria pela via dos caminhos de enquadramento,
tratamento e extroversão da herança patrimonial, Maria Cristina Bruno (2008, p. 16) chama atenção
para o fato de que tal conceito teria em suas origens as experiências dos gabinetes de curiosidades e dos
antiquários do renascimento e dos primeiros grandes museus europeus surgidos a partir do século XVII.
Segundo a autora, “a origem das ações curatoriais carrega em sua essência as atitudes de observar,
coletar, tratar e guardar que, ao mesmo tempo, implicam em procedimentos de controlar, organizar e
administrar”. Para Bruno,
O conceito de curadoria surgiu influenciado pela importância da análise das evidências
materiais da natureza e da cultura, mas também pela necessidade de tratá-las no que
corresponde à manutenção de sua materialidade, à sua potencialidade enquanto suportes
de informação e à exigência de estabelecer critérios de organização e salvaguarda. Em
suas raízes mais profundas articulam-se as intenções e os procedimentos de coleta, estudo,
organização e preservação, e têm origem as necessidades de especializações, de abordagens
pormenorizadas e do tratamento curatorial direcionado a partir da perspectiva de um campo
do conhecimento. (BRUNO, 2008, p. 17)
Ainda segundo a autora, as raízes conceituais da curadoria se ramificaram primeiramente nas
instituições museológicas dedicadas às ciências e só tardiamente, na segunda metade do século vinte,
migraram para as instituições dos campos das artes, adquirindo novas facetas. Da mesma forma, até
meados do século XX, as ações curatoriais se restringiram aos procedimentos de estudos e salvaguarda
dos acervos e, na contemporaneidade, subsidiam os processos de extroversão dos bens patrimoniais,
consolidando ações de comunicação e educação (BRUNO, 2008, p. 18). Conforme Bruno,
Na segunda metade do século XX, o processo de trabalho curatorial passou a ser relevante
para as instituições com acervos – materiais e imateriais – artísticos, históricos, de cultura
popular, entre muitos outros e, ainda, ampliou os seus tentáculos atingindo outros modelos
de instituição, como centros culturais, centros de memória e galerias de arte. Esse movimento
entre funções, responsabilidades e perfis profissionais potencializou as atividades curatoriais,
orientando-as também para as ações de exposição e educação. Entretanto, é possível
constatar que o profissional curador e o conceito de curadoria foram delimitados aos museus
tradicionais, impregnados pela projeção das especializações, pela relevância dos profissionais
e pela potencialidade científico-cultural dos acervos e coleções. (BRUNO, 2008, p. 18)
Ainda de acordo com a autora,
GT93001
De certa forma, as ações curatoriais que contribuíram para o delineamento do perfil das
instituições museológicas e permitiram a emergência de áreas de conhecimento, evidencia
a importância da articulação cotidiana de diferentes trabalhos, mas uma observação
pormenorizada dessas instituições nos faz perceber que essa herança chegou ao século
XX permeada por ações isoladas, com pouca inspiração democrática e vocacionada ao
protagonismo. (2008, p. 18)
Tal afirmativa leva essa mesma autora (p. 18) a destacar que é comum se observar um contrasenso envolvendo as definições de curadoria e de curador. Enquanto a primeira faz alusão a uma
cadeia operatória, a um conjunto de atividades solidárias, a segunda, conforme aponta Bruno (2008,
p. 18), geralmente, refere-se a um profissional onipotente em relação à dinâmica institucional. Tal
contradição traz implicações para as relações profissionais e disciplinares que se estabelecem nos
museus, na medida em que o processo de musealização consiste em um conjunto de ações que
envolvem desde a coleta, registro ou preservação in-situ do patrimônio até sua interpretação e
extroversão, por meio de exposições e ações educativo-culturais. Ora, se para desenvolver o ciclo de
musealização do patrimônio são necessárias diversas ações, inscritas numa cadeia operatória, como
um único profissional, agindo de forma onipotente, poderia tomar decisões sem considerar todas as
outras operações que, juntas, compõem o processo? Esta discussão nos leva até a formação de equipes
interdisciplinares, o que será melhor explorado em outra seção deste texto.
A partir da segunda metade do século XX, conforme aponta Bruno, o conceito de curadoria
passou a desempenhar um papel central em relação ao estudo, organização e visibilidade dos acervos
de arte e da produção artística, com especial ênfase para a produção contemporânea. Neste movimento,
a noção de curadoria teria ganhado atributos novos que trouxeram à tona “a super valorização das
atividades expositivas das coleções e dos acervos, a possibilidade de articulação com os próprios
autores das obras e um protagonismo sem precedentes que se mistura com o mercado de artes, com os
canais de comunicação e com a projeção social” (p. 20), conforme será observado mais adiante com os
argumentos de Oguibe (2004). Sob esta perspectiva, Bruno ressalta que enquanto a herança proveniente
dos museus de ciências valoriza o curador como o especialista de sua própria instituição e com enorme
projeção interna no que diz respeito aos destinos da instituição, os museus de arte não priorizam essas
características e, muitas vezes, abrigam trabalhos curatoriais externos ao seu universo profissional.
A partir da afirmação da autora, poderíamos dizer que, no caso de museus de ciências, é comum nos
depararmos com curadores de coleções ou acervo e, nos museus de arte, curadores de exposições,
embora isso não se constitua como regra.
Atualmente, o termo curadoria vem sendo frequentemente empregado no cenário artístico,
constituindo-se como tema de questionamentos envolvendo artistas, críticos de arte, colecionadores,
especuladores, entre outros personagens relacionados ao chamado sistema de arte. Em texto intitulado
“O fardo da curadoria”, o artista, crítico, curador e professor Olu Oguibe (2004) discorre sobre o
surgimento da figura do curador e seu papel como agente cultural no contexto da história da arte,
desde meados do século XX, classificando e analisando possíveis configurações para o trabalho de
GT93002
curador dentro do cenário da arte contemporânea. Tal artigo descreve a atuação de alguns modelos
tipificados de curadores, contribuindo para a discussão do presente texto na medida em que trata do
campo de atuação de curadores contemporâneos e consequentemente do trabalho de curadoria para
além da instituição museu. Ainda que trate especificamente do contexto da curadoria de exposições
de arte, seus modelos tipificados servem para ilustrar também outras realidades.
Oguibe (2004, p.7) acredita que até a segunda metade do século XX, o curador era principalmente
“um agente provinciano com uma referência estrutural limitada, etnocêntrica, e também excêntrica,
sustentada pela autoridade da qualificação e especialização acadêmica”. Já na virada para o século
XXI, “o curador passa então a representar a figura mais temida e talvez a mais odiada da arte
contemporânea.” Ao final do século XX, o curador teria mudado sua base de qualificação acadêmica
e especialização erudita por habilidades empresariais que incluem “desde um conhecimento mais
amplo, mas também superficial, da área de interesse – apesar de ainda dentro de limites geográficos até o domínio das idiossincrasias atuais do jogo da cultura global.”, inserindo-se dentro de uma lógica
de economia, política e poder pela via da cultura, da arte e das redes sociais. Segundo Oguibe (p. 8),
Hoje o curador de arte contemporânea possui um diploma em ciências sociais, é capaz de
manter uma conversação sobre diversos tópicos além da vida e idiossincrasias de um único
artista morto, goza da companhia de um círculo de indivíduos que trabalham em mais do
que apenas nas artes visuais e facilmente reivindica um lugar entre os visíveis destaques da
sociedade de sua geração. O curador da arte contemporânea é uma parte sólida do circuito de
moda Hugo Boss. A profissão de curador na arte contemporânea foi diversificada e ampliada
para fora da estrita, e possivelmente obrigatória, associação institucional que a caracterizou
nas décadas anteriores. [...] o curador agora pode existir e atuar sem a reputação e o estigma
da instituição, dependendo, contudo, de instituições a fim de concretizar seus projetos. (p. 8)
Oguibe descreve três diferentes tipos de atuação de curadores, nomeados por ele como:
curador burocrata, curador connaisseur e curador corretor cultural.
O curador burocrata, segundo o autor, a configuração mais tradicional de curador, seria aquele
profissional fiel que, em sua essência, teria suas obrigações básicas determinadas por exigências
institucionais:
ir ao encontro dos interesses do museu, galeria ou coleção; localizar a melhor, mais promissora
ou quase sempre mais popular obra de arte para aquisição pela instituição; montar o mais
popular ou o mais bem sucedido display para a instituição e, relacionado a este último ponto,
especialmente hoje, atrair o maior público para o museu, galeria ou coleção e tê-lo formando
filas ao redor do quarteirão[grifo do autor] (OGUIBE, 2004, p. 8-9)
Ainda argumentando a respeito do curador burocrata, Oguibe explica que, em segundo plano,
“está a lealdade pessoal do curador à obra de arte, que pode tomar a forma de uma defesa quase
clandestina em que o curador burocrata luta para assegurar que a atenção e os recursos das instituições
sejam aplicados em trabalhos e em artistas que são de seu interesse” (p. 9).
O segundo modelo apresentado por Oguibe é o curador connaisseur, descrito como “o
colecionador especialista e excêntrico cuja atração por uma forma particular ou trabalho, ou grupo
GT93003
de artistas é tão irracional quanto fielmente constante”. Segundo o autor, esse curador pode ou
não trabalhar para alguma instituição ou apenas desenvolver os próprios interesses, montando um
conjunto de obras conforme seus interesses e dedicando-se obstinadamente a trazer-lhe visibilidade
e publicidade a qualquer custo. “Nesse caso, a fidelidade do curador é bem definida e situa-se quase
inteiramente na obra e em si próprio”. (p. 9)
Tal curador consideraria então sua responsabilidade “trazer esclarecimentos aos outros,
colocando-os a par dessa área de gosto única e especial. Nesse sentido, o curador connaisseur é como
um explorador, um descobridor, um pioneiro cujas descobertas foram feitas para redefinir o gosto
contemporâneo” (p. 9). E Oguibe prossegue, explicando que
Já que o curador connaisseur intermedia o contato entre artistas e obras de interesse, as
culturas e a sociedade, assim como com um público sem qualquer familiaridade com elas, e
já que se dedica a reformatar os contornos do gosto para adequá-lo a suas descobertas, com
o tempo e na ausência de contestação, o público começa a aceitar sua autoridade. O curador
torna-se um árbitro do gosto ainda mais poderoso por causa de sua autoridade inquestionável.
Além disso, devido à habilidade do curador connaisseur de trazer visibilidade ao trabalho
e aos artistas de seu interesse, às vezes eles se tornam capazes de influenciar a direção da
produção artística. (OGUIBE, 2004, p. 11)
Assim como acontece com o curador connaisseur, o terceiro tipo trazido por Oguibe, o curador
corretor cultural, “emprega seus conhecimentos, autoridade e contatos direcionando-os à arte e aos
artistas, que podem não ter acesso imediato aos patronos ou ao público, de modo a fixar-se no papel
de agenciador cultural intermediário” (p. 11). Segundo Oguibe,
O curador corretor cultural às vezes não possui vínculo institucional regular e, como o
connaisseur, aprecia a mobilidade entre os espaços dos patronos, do público e de legitimação,
e as regiões de intimidade da produção artística. Tem um olho aguçado para as obras de arte
viáveis, um instinto para artistas agradáveis, um impulso natural acerca dos caminhos do gosto
ou de demandas populares e uma mente empresarial rápida, capaz de inserir tais trabalhos nas
correntes de reconhecimento e demanda. O curador corretor cultural, portanto, tem o instinto
do galerista, a mobilidade e flexibilidade do empresário e a ousadia do agente publicitário
corporativo; sua compreensão das idiossincrasias do gosto e das frivolidades do patrocínio
não apenas ajuda a divinizar aquelas idiossincrasias e frivolidades, mas também a tornálas vantajosas. [...] Na realidade, o curador corretor cultural é o mais moderno e atualizado
mestre no mecanismo de visibilidade e pode usar, onde for possível, esse mecanismo num
jogo discricionário para validar ou desqualificar artistas e obras. Como um hábil navegador
da faixa da cultura, o curador corretor cultural é uma figura poderosa principalmente entre
artistas, que talvez o concebam como uma inevitável porta de entrada para a visibilidade
(OGUIBE, 2004, p. 10)
Após apresentar os três modelos tipificados de curador, Oguibe chama atenção para o fato de
que, embora ações de curadoria em arte contemporânea, hoje, mantenham relativa proximidade com o
mercado e/ou com relações egóicas, as origens da profissão de curador estão ligadas à responsabilidade
de vigiar objetos icônicos, imagens e registros, zelar por eles. Desta forma, o autor afirma convictamente
que o papel ideal do curador é o de um vigia do processo artístico, objeto ou situação. Nesse papel, “o
GT93004
curador é igualmente um defensor, como em todos os outros papéis, mas um defensor cujo impulso
primordial é a empolgação e a satisfação de ser parte do processo mágico de transição de um trabalho
de arte desde a idéia à ocupação do espaço público” (OGUIBE, 2004, p. 13).
Assim, para Oguibe, o bom curador deve ser inquisitivo, curioso, dedicado, estimulável e
bem preparado para trabalhar com artistas a fim de estabelecer as conexões necessárias entre eles e
o público. Esta responsabilidade seria, então, o que o autor chama de “fardo da curadoria”, que dá
título ao seu texto. Para o autor, o curador não deve ser uma figura que fica no meio do caminho,
como um obstáculo, mas um ator fundamental no caminho entre o artista e o público, responsável por
proteger, zelar, colaborar, ajudar e ensinar (OGUIBE, 2004, p.14). Oguibe aproxima então o trabalho
de curadoria à intermediação entre as faces do processo artístico: obra, artista e público.
Corroborando e complementando aquilo que foi dito por Bruno anteriormente, Conduru
afirma que
Inicialmente, os curadores cuidavam da preservação, do estudo e da exibição das obras
nos museus, sendo especializados por tipos de objetos, períodos temporais ou regiões
geopolíticas, conforme a lógica de estruturação dessas instituições por departamentos.
Ultimamente, quando ganhou evidência o fato de a exposição de arte ser uma obra em si, com
autorias, teorias, práticas e histórias, passou a ser necessário distinguir e valorizar a função
autoral na exposição de maneira a expor os múltiplos participantes do jogo da arte. Deve
haver equilíbrio entre a exposição como obra e as obras de arte exibidas, entre o curador e
os demais autores envolvidos – artistas, colecionadores, indivíduos, grupos, instituições – já
que a curadoria consiste, muitas vezes, em uma assinatura crítica fundamental (CONDURU,
2008, p. 77-78).
Barbosa ao escrever sobre curadoria e acervos científicos e tecnológicos, traz questão chave
para a condução da discussão do presente texto: segundo a autora, ao falarmos de ação curatorial,
não tratamos apenas do estudo de coleções, mas também e principalmente do sentido atribuído a
elas, ou seja, é a partir da ação curatorial, que se estabelece uma identidade para o acervo e quando
esta identidade é bem trabalhada, as exposições passam a ser “agentes de informação para o público
visitante” (BARBOSA, 2008, p. 85).
Para retomar essa discussão posteriormente, na seção que explorará a curadoria como ação
interdisciplinar, antes se faz necessário compreender a dimensão comunicacional e informacional das
exposições, as quais cumprem papel protagonista entre as ferramentas utilizadas pelos museus para
cumprir o ciclo da musealização.
2 DIMENSÃO COMUNICACIONAL E INFORMACIONAL DAS EXPOSIÇÕES
MUSEOLÓGICAS
Atividade que caracteriza e legitima o museu como tal (SCHEINER, 1991), a exposição é o
lugar de variadas formas de (re)significação do acervo e da política institucional, estabelecendo-se
como uma espécie de síntese mais ou menos explícita da instituição museológica que a concebe,
planeja e realiza. É, ainda, o meio privilegiado para transferência de informações no âmbito do sistema
de comunicação e informação que constitui o museu, conforme define Ferrez (1987).
GT93005
Metáfora discursiva dos museus, é através das exposições que o Museu representa, significa e
produz sentidos (SCHEINER, 2003). A exposição é, assim, o produto final – dentro dos limites físicos
e espaciais da instituição – das políticas e mediações de sentidos que se estabelecem institucionalmente,
mesmo que esses ultrapassem os muros da instituição. No entanto, é preciso destacar que, como
produto final das políticas e mediações de sentidos que se estabelecem institucionalmente, é, também,
o ponto se não inicial, chave, necessário ao diálogo entre museu e visitante, emissor e receptor.
Assim, para estudar as exposições não basta apenas compreende-las como mostras de objetos –
sejam históricos, artísticos, etnográficos, científicos, etc. -. É preciso inseri-las na política institucional
e no contexto no qual foram concebidas, planejadas e executadas, além de se considerar o momento
de fruição pelo visitante. Neste sentido, torna-se fundamental observá-las a partir dos elementos que
integram o sistema de comunicação e informação do qual fazem parte.
Elemento fundamental deste sistema do qual as exposições fazem parte e sem o qual as
exposições não exercem seu papel principal são os visitantes. Receptores do processo de transferência
de informação que constitui a exposição, os visitantes são entendidos por aqueles profissionais que
concebem, planejam e realizam exposições como produtores de conhecimento em potencial. Dar
subsídios informacionais para a produção de conhecimento do visitante é, portanto, uma das principais
funções das exposições, seja qual for o tipo de acervo exposto, a abordagem dada ao tema ou a
especialidade do museu. Sob esta perspectiva, o processo curatorial deve ser dirigido para este fim.
Com origens que apontam para a prática do colecionismo, ao longo do tempo, o papel dos
museus vem sendo questionado progressivamente, resultando, de acordo com Cury (2005b, p. 29),
na ampliação do conceito de museu-instituição e na reflexão em torno da disciplina museológica. Na
atualidade, não é mais suficiente aos museus apenas coletarem e preservarem acervos em vitrines ou
paredes intocáveis. Comunicar o resultado de pesquisas realizadas em todas as vias de preservação
do patrimônio e dialogar com o público não apenas sobre o acervo, mas também e principalmente
sobre a inserção e a apropriação deste acervo no cotidiano do visitante é o que se espera dessas
instituições, hoje compreendidas como meio de comunicação, prática e representação social, e
sobretudo ferramenta para o desenvolvimento social.
Tradicionalmente citadas e consagradas pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), as
funções básicas dos museus são: preservação, pesquisa e comunicação. À pesquisa em andamento
que dá origem a este texto interessa particularmente a função de comunicação, embora entenda que
as outras duas funções se configuram sob uma lógica de interdependência, em especial por tratarmos
do museu como um sistema de comunicação e informação específico, que conjuga aspectos técnicos,
conceituais, culturais, sociais, ideológicos e políticos.
Interdependentes, preservação, pesquisa e comunicação são as funções motrizes do sistema
de comunicação e informação que constitui o museu. Embora compreendida como a principal ação
que representa a função comunicacional dos museus, hoje, pelo menos dentro dos estudos do campo
da Museologia, sabe-se que a exposição exige esforços advindos de diferentes setores dos museus,
tendo em vista ser a primeira forma de reconhecimento e identificação do museu compartilhada pela
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sociedade. Assim, estudar exposições museológicas é compreender o que se passa nas instituições
e, principalmente, dar conta de como estas percebem as informações que produzem, pesquisam,
transmitem e a partir disso são realimentadas, criando um novo ciclo info-comunicacional.
Neste sentido, Scheiner nos diz que
é a vitalidade das linguagens, e não o acervo em si mesmo o que torna fascinante qualquer
exposição. Essa característica fascinante da informação em processo, em permanente fluxo,
com suas nuances cambiantes e suas sutilezas, é o que torna inesquecível a relação entre
visitante e museu. E o mais fascinante de tudo isso é que esse é um processo que não tem fim,
o que confere a toda exposição (e não apenas às de arte) a característica de obra aberta – onde,
ao conjunto existente, somar-se-á a pessoa do observador, com seu tempo e sua ‘Gestalt’
específicos. Apenas na relação entre conjunto expositivo (objeto) e visitante (sujeito) é que
cada exposição se realiza – e é por meio desse processo, sempre fluido, sempre mutável, que
os museus tornam-se poderosas agências comunicacionais, capazes de contribuir de forma
expressiva para o conhecimento humano, com ênfase na qualidade social. (SCHEINER,
2003)
O argumento de Scheiner nos remete a inúmeros estudos em Ciência da Informação que,
ao abordarem conteúdo, linguagem e significado estão se referindo à informação, que a própria
autora citada também introduz: forma e conteúdo, informação em processo, embora ressalte mais a
comunicação do que a informação em si. Suas observações nos remetem, também, à noção de relevância
de Saracevic e a definição de informação de Belkin e Robertson (1976).
A noção de relevância, segundo Saracevic, está diretamente ligada ao conceito de comunicação
como processo, “uma seqüência de eventos onde alguma coisa chamada informação é transmitida de
um objeto (fonte) a outro (destinatário), muitas vezes numa série de reiterações ou seqüências, do tipo
realimentação” (CARVALHO, 1998, p. 27-28). A noção de relevância é essencial para a avaliação dos
sistemas de comunicação em instituições que lidam com as questões informacionais. De acordo com
Carvalho (1998, p. 28), o conceito aponta para aspectos de transferência da informação de uma exposição
em um museu para o público, ou seja, a possibilidade de que só seja transferida para o visitante aquela
informação que para ele seja relevante.
Belkin e Robertson (1976) nos dizem que “informação é aquilo que é capaz de transformar estruturas”,
portanto, é noção atrelada a de receptor. Este é quem possui as estruturas cognitivas capazes ou não de
decodificar a informação e codificá-la em seu interior, transformando as estruturas previamente existentes
e (re) criando potencialmente a informação no seu próprio contexto e sua relação com o conhecimento. O
processo, que acontece através da transformação de uma mensagem em informação, depende de uma série
de fatores e variáveis determinada pelas condições de emissão e recepção da mensagem.
Para pensarmos a exposição no âmbito do sistema de comunicação e informação do museu, é
preciso então compreende-la a partir das dinâmicas informacionais e comunicacionais. Rocha (1999) é
exemplo de autora que realiza esse esforço. Em sua dissertação, procura abordar o aspecto informacional
subjacente às exposições.
Ao trabalhar o processo de construção do discurso museográfico e suas estratégias expositivas,
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Rocha (1999, p.1) busca enfoca-lo como um “processo informacional que envolve atividades técnicas
e científicas, no qual estão subjacentes uma gama de conceitos, idéias e visões de mundo que inscreve
as marcas de um discurso contextual - histórico, social e culturalmente determinado”. Para a autora,
“o discurso e a estratégia museográfica elaborados por um museu para uma determinada exposição
constituem-se em apenas uma das possibilidades discursivas acerca de um conteúdo museológico em
meio a tantas outras construções interpretativas”.
A informação, segundo Rocha (1999, p.52), adquire uma dimensão peculiar nas práticas
museológicas. Além de atuar como elemento preservador e organizador de um acervo, originalmente
lacunar e disperso, a informação passa a ser a estrutura que poderá possibilitar mudanças no sujeito
social por constituir-se num meio de acessar os significados e de construir interpretações a respeito do
real. A autora (1999, p.52) enfatiza em seu texto, com base em Tálamo, que não basta que a informação
esteja organizada, ou até mesmo disponível, é preciso principalmente que “sejam estabelecidos canais
efetivos que não só a transmitam mas efetivamente a transfiram, isto é, uma organização que comunique.”
(TÁLAMO apud ROCHA, 1999, p. 52) .
A partir disso, podemos citar Granato (2006), que afirma que a exposição constitui-se como
algo muito mais amplo que uma mera “composição estética”. É preciso que a composição incentive a
comunicação e a fruição da exposição dependerá necessariamente da relação do todo expositivo com o
receptor, ou visitante e da maneira como se dá a transferência das informações neste espaço que se insere
numa determinada cultura. A fruição de uma exposição é, portanto, um processo que envolve diferentes
fatores, que são em boa parte relacionados com informações e conhecimentos que são mentalmente
acessados antes, durante e após a experiência da visita. A fruição da exposição deve ser, portanto, objeto
de análise ao longo do processo curatorial que resultará na mostra.
A lógica deste raciocínio nos remete a questões levantadas por Bourdieu (1992), a partir da noção
de habitus, que indica a existência de repertórios individuais, pautados nas relações sociais decorrentes
de experiências e concepções de mundos dos indivíduos. Com base em argumentos trabalhados pelo
sociólogo francês, Rocha (1999, p. 81) considera que numa exposição, diferentes códigos de classificação
do museu e do usuário estão em jogo. Desta forma, não basta apenas expor ou apresentar a informação,
pois a transferência informacional depende do domínio dos códigos pelos usuários, sem os quais o
museu não alcança os seus objetivos sociais como agente de transformação.
Assim, a existência do museu e o desejo de transferir informações e gerar conhecimentos não
garantem a apropriação por parte dos visitantes dos conteúdos potencialmente disponíveis – transferência
da informação. Isto porque, conforme sugerem as proposições de Bourdieu (1992), existem condições
sociais e culturais que interferem neste processo.
Neste sentido, cabe retomar a noção de relevância de Saracevic já mencionada anteriormente,
bem como destacar que também Vickery (1987 apud ROCHA, 1999, p. 114) atenta para o fato de
que “nós só iremos prestar atenção para uma mensagem - na verdade, nós só vamos olhá-la como
informação - se nós a acharmos compreensível, crível e relevante para nossas necessidades”. Desta
GT93008
forma, conforme ressalta Rocha (1999, p. 114), “a assimilação de um conteúdo narrativo só será
possível se ocorrer sintonia entre emissor e receptor e, mesmo assim, as incertezas e os ruídos
necessariamente farão parte da mensagem”. 4 CURADORIA DE EXPOSIÇÕES E INTERDISCIPLINARIDADE
Empreendimento complexo, que demanda esforços advindos de distintas frentes de trabalho,
as exposições museológicas, segundo Cury (2003, p. 45), fazem parte de um processo que
[...] compreende um conjunto de atribuições imbuídas de grande detalhamento, complexidade
e responsabilidade. Caracteriza-se por ser coletivo, não individual, e devido à sua
complexidade, sugere coordenação compartilhada com subcoordenações e, especialmente
equipe qualificada. (CURY, 2003, p. 45)
Ainda conforme a autora,
os museus contemporâneos propõem-se a participar do complexo processo de construção
dos significados culturais, e as exposições têm o seu papel a cumprir. Do mesmo modo,
os processos inerentes à concepção e à montagem de exposições também são complexos
e devem, necessariamente, ser elaborados por uma equipe interdisciplinar altamente
especializada em comunicação museológica. Trata-se, portanto, de um trabalho de coautoria, no qual o coordenador tem as suas responsabilidades e atribuições – que são claras
-, mas não responde pela exposição como um todo. Na realidade, o todo da exposição é de
responsabilidade institucional. É ela, inclusive, que se coloca à frente da sociedade a partir
de determinados conteúdos e formas. (CURY, 2003, p. 46)
Como linguagens narrativas, conforme destaca Scheiner (1991), as exposições funcionam como
o principal veículo de comunicação dos museus com a sociedade, uma janela que mostra o resultado de
tudo o que ocorre no seu interior, constituindo-se como a atividade que caracteriza e legitima o museu
como tal. É, portanto, assim como afirma Cury (2003), de responsabilidade da instituição como um todo.
Na realidade, a exposição não se constitui somente como uma mediação ou um diálogo de um tema com
um contexto; é uma intervenção da instituição realizada com base em saberes e práticas acumuladas e
negociadas com outros saberes e práticas.
A exposição é, assim, uma construção que exige diferentes suportes e linguagens, não se
desenvolvendo como uma expressão natural e/ou espontânea, uma mera “composição estética”, para
citarmos a expressão de Granato mais uma vez. Constituindo-se como processo em que os profissionais
envolvidos apresentam limitações individuais ou setoriais e não são capazes de responder a todas as
questões de forma isolada, desconexas no conjunto, as exposições se constroem como espaços férteis de
interdisciplinaridade nas instituições museológicas.
Cury (2005a), ao apresentar modelos de exposição que seguem posturas diferenciadas de
comunicação, levanta a relevância da formação de equipes curatoriais, nas quais as decisões são
discutidas e avaliadas pelo conjunto de profissionais e não somente por uma única pessoa – que
centraliza as decisões – conhecedora profunda de aspectos sobre o tema, mas que sozinha não é
GT93009
capaz, até mesmo por limitações próprias das disciplinas e próprias do ser humano, de configurar
situações criadas pelo tema sob diversidade de ângulos.
Neste sentido, vale destacar o argumento de Scheiner (2003), de que como instância relacional
e instrumento mediático o museu não apenas conjuga pessoas e objetos, mas também, e principalmente,
pessoas e pessoas. Parte daí a importância e a necessidade das equipes constituídas por diferentes
profissionais que atuam não somente em seus setores específicos, mas também na concepção, na discussão
e na avaliação dos projetos.
No entanto, conforme demonstra Bruno, a constituição de uma equipe curatorial nem sempre faz
parte do cotidiano dos museus, assim como nem sempre é compreendida como algo desejável, o que é
corroborado pelos argumentos de Conduru, apresentados anteriormente, que dizem respeito à “assinatura
autoral” da exposição. De acordo com Bruno, nas últimas décadas, a definição de curadoria tem sido
permeada pelas noções de domínio sobre o conhecimento de um tema referendado por coleções
e acervos que, por sua vez, permite a lucidez do exercício do olhar, capaz de selecionar, compor,
articular e elaborar discursos expositivos, possibilitando a reversibilidade pública daquilo que foi
visto e percebido, mas considerando que as ações de coleta, conservação e documentação já foram
realizadas. Para alguns, a implementação de atividades curatoriais depende especialmente de uma
cadeia operatória de procedimentos técnicos e científicos, e o domínio sobre o conhecimento que
subsidia o olhar, acima referido, é na verdade a síntese de um trabalho coletivo, interdisciplinar
e multiprofissional. Para outros, o emprego da definição de curadoria só tem sentido se for
circunscrito a uma atividade que reflita um olhar autoral, isolado e sem influências conjunturais
que prejudiquem a exposição de acervos e coleções, conforme os critérios estabelecidos em
função do domínio sobre o tema (BRUNO, 2008, p. 20).
Tais diferentes compreensões de metodologias de ação para planejamento e realização de
exposições, nos levam a retomar Cury (2005b), quando a autora trata do processo de tomada de
decisão necessário a toda e qualquer exposição, utilizando como referência James Volkert. O autor
divide o processo em três eras: autocrática, enfoque de equipe e decisão cooperativa.
O processo de tomada de decisão autocrático consiste quando as decisões fundamentais são
tomadas por poucos, a partir de um ponto de vista hierárquico, na medida em que o museu é que julga
o que é importante para o visitante (VOLKERT apud CURY, 2005b, p. 22). Nesse processo, uma
única pessoa, em geral ou um diretor ou um curador, assume a responsabilidade e autoridade para
dirigir o resultado do projeto da exposição. Cury (2005b) salienta que
O processo autocrático pode ser eficiente, pois uma série de ações subseqüentes ocorrerão
de forma a viabilizar, na prática, os pressupostos de seu idealizador. No entanto, o risco se
evidencia em uma visão limitada de público de museu, um público de iniciados no assunto.
Esse processo desconhece a pluralidade de públicos que visitam uma instituição museológica,
partindo da visão única de uma pessoa. A autoria e a responsabilidade pelo resultado está nas
mãos dessa pessoa. (CURY, 2005b, p. 83)
Já o processo de tomada de decisão em equipe representa a reunião de diversos profissionais
do museu em torno das decisões referentes à exposição, compreendida a partir de um enfoque
educacional. Consiste num processo levado adiante pela integração de diferentes vozes especializadas
GT93010
que coabitam os setores das instituições e integram o grupo de planejamento. Um ingrediente
determinante do enfoque em equipe é, de acordo com Cury, a preocupação em estabelecer contato
com o público, satisfazendo suas expectativas e necessidades e respeitando suas características. Ainda
conforme Cury (2005b, p. 84)
O enfoque em equipe representa um real esforço em construir coletivamente um processo
e um produto. A atuação e a experiência de todos são fundamentais para a eficiência do
processo e a eficácia do produto. No entanto, faz-se necessária a adoção de metodologia
que contemple a diversidade de pontos de vista para alcançar uma única finalidade: uma
exposição de relevância educacional.[...] Por outro lado, esse enfoque deposita em advogados
o poder das vozes: os profissionais que vão opinar e/ou decidir sobre a exposição. Advogados
porque defendem posições distintas, próprias de seus ângulos de visão. [...] Muito embora o
público esteja presente no processo de tomada de decisão, sua participação é indireta, ocorre
por meio da representação do seu advogado ou por processos de estudos de público (CURY,
2005b, p. 84)
Finalmente, o processo de tomada de decisão cooperativa pressupõe a ampliação da
participação do público de forma que este interfira diretamente no planejamento, ampliando o ponto
de vista do museu. Nele
não é o público que decide. Aqui sua participação é relativizada. Quem tem a responsabilidade
da decisão final é o museu, muito embora este não se considere o dono da verdade absoluta,
pois o seu poder também é relativizado. No enfoque cooperativo, o museu e sua equipe
desenvolvem métodos que ampliem a entrada de seu público, dividindo o poder e as decisões
pertinentes ao processo (CURY, 2005b, p. 85)
Os museus são instituições – de diferentes configurações sociais e preocupações - que,
de acordo com Cury (2005b, p. 35), vêm enfrentando o distanciamento com a sociedade. Este
distanciamento traz sua historicidade, que tem como base a idéia de museu público gerada a partir
da institucionalização de coleções privadas, formadas a partir dos valores de seu proprietário
inicial. Na verdade, esta colocação ganha sentido na argumentação da autora na medida em que
abrir uma coleção ao público, com amplo acesso, não é democratizar, já que “o direito ao acesso
não garante que essas coleções sejam democraticamente apropriadas, pois as intenções do seu
formador (quando selecionou) eram pessoais, de seu próprio modo de ver e entender o mundo”. O
museu, dessa maneira, pode tornar-se algo distante, que reflete o modo de ver e entender o mundo
do outro, expressivamente alheio ao “nosso”. Trazendo a discussão para o âmbito da Ciência da
Informação e o conceito de relevância de Saracevic já mencionado, é como se não fosse possível
obter informação de toda a experiência, já que só compreendemos como informação aquilo que
identificamos como relevante.
A partir de meados do século XX, ganhou força a discussão acerca dos museus mais próximos
à idéia de fórum. O museu passou a ser desejado como instrumento de transformação social. Essa
mudança do “museu autocrático”, com exposições de enfoque taxonômico, ao “museu comunicativo”
teve em seu bojo, conforme destaca Cury (2005b, p. 37), uma transformação na forma de se trabalhar
GT93011
as exposições, antes contemplativas e concebidas por uma pessoa (ou centralizada em poucas pessoas).
As primeiras exposições eram
[...] herméticas, pois somente pesquisadores eram capazes de perceber e compreender essas
estruturas classificatórias, provocando uma atitude passiva no visitante comum. Na segunda
as exposições são concebidas por equipes para serem compreendidas e provocarem uma
atitude ativa no visitante. A equipe é formada para responder às indagações: como as pessoas
aprendem, o quê e como estamos ensinando e, ainda, quais são as melhores estratégias
expográficas de comunicação (grifo da autora). Como resultado, surgiram as equipes
interdisciplinares formadas por pesquisadores, educadores, designers e museólogos. (CURY,
2005b, p. 37)
As reflexões surgidas a partir do novo sentido e expectativas atribuídos aos museus fizeram
com que os profissionais destas instituições desenvolvessem maior preocupação com o público,
visando a realização de exposições mais próximas de seus repertórios culturais. De acordo com Cury
(2005b, p. 38), procura-se oferecer ao público a oportunidade para um comportamento ativo cognitivo
(intelectual e emotivo), interagindo com a exposição (mensagem expositiva), a fim de que permita
uma experiência de apropriação de conhecimento – e para isto, acrescentamos, é essencial que os
profissionais de museus também redefinam suas práticas, prioridades e metodologias de trabalho
objetivando construir o encontro entre o público e a polissemia das exposições. Desta forma, acredita
a autora, a exposição não tem importância por si só, mas sim pela interação entre o museu, a exposição
e o público, idéia que muito se aproxima ao conceito de curadoria ideal trazido por Oguibe, abordado
anteriormente. Para Cury (2005b), parte fundamental dessa interação é o trabalho interdisciplinar,
que favorece que perspectivas diferentes sejam debatidas e vistas por diversos ângulos.
No entanto, a autora esclarece que não se pode descrever o processo de concepção e montagem
de exposições e dessa descrição fazer generalizações. Isto porque há o risco de se reduzir as discussões
e transformar uma descrição em regras. Na realidade, o que Cury enfatiza é que não existe uma única
maneira processual, um único modelo descoberto para ser aplicado indiscriminadamente em todos os
museus, por qualquer equipe, como um receituário (CURY, 2005b, p. 51).
4 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Conforme exposto ao longo deste texto, a prática da curadoria em museus vem se modificando
ao longo do tempo. No entanto, se considerarmos a sintonia que hoje deve ter com o debate que se
apresenta aos museus e à Museologia, então o processo curatorial deve ser o resultado de um trabalho
que tem como objetivo atingir o público, a fim de criar as condições necessárias para a alteração
de suas estruturas cognitivas - para citar o conceito de informação de Belkin e Robertson (1976) -,
potencializando a possibilidade de produção de conhecimento. Indo mais longe, seria possível dizer
que o processo curatorial não somente buscaria atingir efetivamente o público, mas, muito mais do
que isso, estimularia seu envolvimento, na forma de cooperação, tal como expresso por Cury (2005b).
GT93012
Esta mesma autora (2005b, p. 31) explica em seu texto que é na exposição que o público
tem a oportunidade de acesso àquilo que chama de “poesia das coisas”, a qual consiste no elementochave dos museus; a qualidade que torna o ato de expor uma ação comunicacional e informacional.
Para Cury (2005b, p. 32), o processo de musealização, que tem na curadoria um de seus artifícios de
atuação, trabalha menos com “as coisas” e mais com a “poesia que está nas coisas”. É neste sentido
que Cury acredita que aos profissionais de museus cabe a construção do encontro entre as pessoas e
a “poesia das coisas”.
E a maneira como o visitante se sentirá convidado a desvelar a poesia potencialmente
presente em cada “coisa” musealizada dependerá da maneira como se sentir fazendo parte do jogo
comunicacional e informacional proposto pela exposição, resultado de versos, estrofes, ritmos e
metrificações articuladas, cujo foco deverá ser seu mais ilustre leitor: o visitante, sempre plural.
Gerenciando, organizando e articulando informações que se pretende que sejam relevantes
para os visitantes com vistas à produção de conhecimento, o processo curatorial deve ser sempre
trabalhado na perspectiva de intermediação entre acervo musealizado e indivíduo, na busca por uma
ação cooperativa entre museu e público.
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GT93014
COMUNICAÇÃO ORAL
A INFORMAÇÃO PATRIMONIAL E A CONSTRUÇÃO
DA MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DE
PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DO IPHAN E IPHAEP
Danielle Alves Oliveira, Carlos Xavier Azevedo Netto
Resumo: O presente trabalho partiu das reflexões ainda em construção do objeto da dissertação
que trará como temática a importância da informação patrimonial na construção da memória. Nesta
perspectiva, teremos como objetivo verificar como a informação e a diversidade de seus suportes
atuam na preservação do patrimônio cultural, tendo como foco a análise das formas de registro para a
preservação da memória no IPHAN e IPHAEP. Deste modo, discutimos no presente trabalho a relação
da informação e da memória, assim como a relevância da informação no processo de preservação da
memória tendo como referência o Patrimônio Cultural. Para isso, utilizamos como principais referenciais
teóricos Azevedo Netto (2007), Pollack (1992), Silva (2006), Capurro (2003) e Martins (2010), dentre
outros. Quanto aos procedimentos metodológicos, a presente pesquisa qualifica-se como qualitativa,
exploratória e documental. Acreditamos que a informação tem um papel fundamental junto às agências
de preservação da cultura, logo, o desenvolvimento do trabalho irá agregar enormes contribuições à
área da Ciência da Informação.
Palavras-chave: Informação. Memória. Informação Patrimonial. Preservação da memória.1
1 INTRODUÇÃO
A multidiversidade das transformações e inovações ocorridas no mundo globalizado inaugura
no presente século a necessidade cada vez mais incessante do homem pelo acesso à informação.
Diversas são as explicações para essa busca acentuada, dentre elas o uso da informação como
fenômeno estratégico nas organizações e a necessidade do homem em conhecer o seu passado, a fim
de sentir-se partícipe da história social.
Optamos nesse trabalho por refletir sobre o segundo aspecto supracitado, haja vista que desde
os primórdios da humanidade o homem vem demonstrando o interesse pela preservação da memória,
seja através da transmissão oral e escrita, ou até mesmo pela criação dos lugares de memória, como é
exemplificado pelos estudos de Leroi-Gourhan (1983).
A expressão ‘lugares de memória’ foi criada por Pierre Nora (1993), historiador francês do
século XX. Ele acreditava que os lugares de memória deveriam ser compreendidos a partir de uma
tríplice acepção, no que tange: lugares materiais, lugares funcionais e lugares simbólicos. Conforme
Oliveira e Rodrigues (2009), os arquivos, bibliotecas, museus e centros de documentação, assim como
GT93015
os elementos “chaves” da memória coletiva do povo, ou seja, o patrimônio cultural, são igualmente
considerados “lugares de memória”.
A memória está intimamente atrelada ao sentido de identidade dos sujeitos, portanto, a
preservação é fundamental para que a sociedade tenha a possibilidade de se reconhecer nos espaços de
memória. Nesse sentido, Pollack (1992, p. 212) assevera que “a memória é um elemento constituinte
do sentido de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentido de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo
em sua reconstrução de si”. Deste modo, acreditamos que a informação é de suma importância nesse
processo da preservação da memória, pois é ela quem vai contribuir na significação dos artefatos e
evidenciar a sua relevância na sociedade.
Considerando estas perspectivas, a pesquisa terá como objetivo a verificação de como
a informação e a diversidade de seus suportes atuam na preservação do patrimônio cultural. Para
isso, iremos focar na análise das formas de registro para a preservação da memória no Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
do Estado da Paraíba (IPHAEP).
Acreditamos que a informação tem papel fundamental junto às agências de preservação da
cultura, logo, verificar como essas informações atuam em nível nacional e estadual, é contribuir para
a função social da Ciência da Informação (CI) no que tange à socialização da informação para a
construção do conhecimento e para manutenção da memória social.
2 REFERENCIAL TEÓRICO: discutindo a relação informação e memória
O conceito de informação é um dos grandes dilemas enfrentados pelos estudiosos em CI, pois
como afirmam Capurro e Hjorland (2007, p.11) “[...] quase toda disciplina científica usa o conceito
de informação dentro de seu próprio contexto e com relação a fenômenos específicos”, o que acaba
acentuando a polissemia do termo e dificultando a construção de um conceito único para a área. No
entanto, os autores supracitados afirmam ainda que, essa diversidade de conceitos abarcados nas mais
diferentes áreas do saber e, a evolução do termo pode ser interessante para a Ciência da Informação,
uma vez que esta precisa de conceituações capazes de atingir todo o seu campo de atuação.
Buscando abarcar as diversas concepções acerca de informação, Capurro (2003) propõe uma
teoria unificada, onde a informação seria compreendida sob três aspectos: físico, cognitivo e social.
Segundo ele, a Ciência da Informação deve contemplar as diversas facetas que a informação pode
assumir - saindo assim, da perspectiva de conceitos reducionistas e verdades absolutas advinda do
modelo positivista.
Nesse trabalho partimos da concepção da informação “como um fenômeno humano e social,
que deriva de um sujeito que conhece, pensa, se emociona e interage com o mundo sensível à sua
volta e a comunidade de sujeitos que comunicam entre si”, portanto, comungamos com a compreensão
qualitativa da informação (SILVA, 2006, p. 24).
GT93016
Por muitos anos o conceito de informação foi sendo confundido com o de memória devido à
relação de proximidade e interação entre estes dois elementos, para tanto, Silva (2006, p. 25) assegura
que a diferença está na concepção da memória “como um processo que ocorre no âmbito social, e a
informação, como um fenômeno humano e social”.
Acerca da concepção da informação como fenômeno humano, Azevedo Netto (2007, p. 4)
colabora: “(...) a Informação só existe na presença do homem, como seu receptor, já que é nesta
instância que se dá o reconhecimento da Informação, mas incluindo aí o homem não só como
indivíduo, mas também como ser e ator social”. Bronowski (1997) explica na obra A evolução e o
poder da linguagem simbólica que os demais animais não possuem a capacidade de captar os dizeres
da mensagem e separá-la do conteúdo emocional, logo o que eles recebem são apenas instruções.
Já a memória pode ser compreendida segundo Azevedo Netto (2007, p. 9) “como o
encadeamento de elementos que remetem a um passado, real ou fantástico, e que são dados na
esfera da consciência individual ou, principalmente, coletiva, que é referendada no reconhecimento
dos patrimônios culturais, recuperados”. Portanto, percebe-se que a memória se apresenta como uma questão
fundamental na sociedade da informação, uma vez que deixa de ser compreendida de forma genérica para ser vivenciada
como inerente à manutenção da coletividade e para a identificação individual dos sujeitos.
Diante do exposto, é possível verificar que a informação é fundamental no processo de consolidação da memória,
pois ela necessita de representações ou suportes informacionais para serem evidenciados e percebidos dentro do contexto
“transpassada por um universo simbólico dos mais significativos,
mediante um processo de representação no qual são criados referentes para sua cristalização”
conforme assevera Azevedo Netto (2008, p. 12).
social. Ou seja, a memória deve ser
3 Contextualizando o Patrimônio Cultural e a relevância da informação no processo de
preservação da memória
Iniciando a discussão acerca do Patrimônio Cultural é relevante trazer, a priori, a
contextualização de Le Goff, quanto à noção de monumento e documento. Segundo o autor, a memória
pode se observada sob estas duas vertentes, onde o monumento é reconhecido pela capacidade de
evocar o passado, haja vista, que ele é reconhecido como vestígio humano de uma memória; já o
documento, é algo selecionado pelo historiador. Ele afirma que a objetividade do documento opõe-se
à intencionalidade do monumento, além do que, ao longo dos anos o documento foi sendo justificado
pelo seu caráter de testemunho escrito, ou seja, pela sua característica de comprovação. (LE GOFF,
1994).
Apesar disso, o autor supracitado, acaba assegurando que o monumento pode ser encarado
sob a ótica do documento, todavia deve sempre ser questionado quanto a sua intencionalidade. Nesta
perspectiva, Fuzzi (200-, p. 2) discorre: “O questionamento que se faz a um documento facilita os
estudos diante de um monumento que se tornará um patrimônio e que conduzirá a estudos sobre uma
identidade nacional específica”.
GT93017
Extrapolando o debate entre monumento e documento, e partindo para a compreensão do
Patrimônio Cultural, Souza (2006, p. 141) assevera que Patrimônio Cultural, trata-se, antes de tudo, da
“afirmação das identidades culturais dos povos e funciona como mediador entre o presente e o passado.”
As primeiras discussões acerca de patrimônio cultural, no Brasil, têm início no começo do
século XX, devido às constantes evasões de bens e obras de arte para outros países aproveitando a
falta de legislação que regulamenta a obrigatoriedade da permanência dos bens no Brasil. Outro fator
bastante relevante nesse processo foi a necessidade de autoafirmação da identidade brasileira advinda
do Movimento Modernista.
Contudo, é nos anos 1930, durante o governo do nacionalista Getúlio Vargas, que as questões
referentes à identidade nacional assumiram papel de destaque. A partir de então, foi que houve o
início oficialmente das políticas públicas destinadas à preservação do patrimônio histórico e artístico.
A consequência disso foi a criação do SPHAN1 (Serviço do Patrimônio Histórico Nacional) no intuito
de “promover em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento
e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional” (SOUZA, 2006, p. 141).
Perpassando as discussões acerca do processo histórico e buscando refletir o Patrimônio
Cultural sob a sua ótica representativa comungamos com Sá (2005, apud MARTINS, 2010, p. 82),
quando define o Patrimônio como “a tentativa de resgatar o passado e resgatar tudo que ele representa
e valoriza diante da herança cultural, formando um elo entre as gerações”. Todavia, esse processo
só ocorre quando o sujeito reconhece o patrimônio pelo seu poder simbólico e representativo, daí a
importância da informação no processo de re-significação da memória.
Deste modo, podemos inferir que a informação é condição sine qua non para o estabelecimento
de identificação dos sujeitos com o patrimônio cultural. Para Hall (2006, apud MARTINS, 2010,
p. 82) “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e
transformadas no interior da representação”.
Tendo ciência da relevância da informação no processo de preservação e identificação do
Patrimônio com a sociedade, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
tem como uma das atividades centrais o registro dos bens culturais a fim de garantir a socialização
da informação. Além disso, a instituição afirma que o registro serve ainda, como uma forma de
reconhecimento e valorização dos bens inventariados, conforme demonstrado na citação a seguir:
[O registro] corresponde à identificação e à produção de conhecimento sobre o bem cultural.
Isso significa documentar, pelos meios técnicos mais adequados, o Patrimônio Imaterial
no Brasil: legislação e políticas estaduais passado e o presente da manifestação e suas
diferentes versões, tornando essas informações amplamente acessíveis ao público. Vem
favorecer um amplo processo de conhecimento, comunicação, expressão de aspirações
e reivindicações entre diversos grupos sociais. O registro é, antes de tudo, uma forma
de reconhecimento e busca a valorização desses bens, sendo visto mesmo como um
instrumento legal. (IPHAN, 2006, p. 22).
1 A denominação IPHAN, como conhecemos atualmente, foi instituída em 6 de dezembro de 1994 através da medida provisória
nº752, convalidada mensalmente nos seus efeitos, e, definitivamente, pela Lei 9649 de 27 de maio de 1998.
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Diante do exposto, podemos inferir a relevância da informação no processo de socialização da
memória e na construção da identidade cultural. Logo, verificar como as agências de preservação, tais
como o IPHAN e IPHAEP, têm feito uso dessas informações a fim de contribuir com a preservação do
Patrimônio Cultural é atender a função social da Ciência da Informação, pois segundo Fragoso (2008),
a preservação da memória faz parte da responsabilidade social da CI, já que ela está comprometida
com a sociedade.
4. PROCEDIMENTOS METODOLOGICOS
Na Ciência da Informação (CI) não há “[...] métodos preferenciais ou abordagens teóricas
exclusivas, que possibilitem ao pesquisador ampla escolha de métodos e estratégias, talvez refletindo e
reforçando a sua condição de disciplina em constante expansão, sem limites definidos.” (MUELLER,
2007, p. 9).
Iniciando o delineamento da pesquisa optamos pela abordagem qualitativa, uma vez que
iremos analisar e refletir acerca dos problemas de informação na preservação do Patrimônio Cultural
de forma a atribuir respostas em âmbito qualitativo. Quanto aos objetivos, a pesquisa classifica-se
como exploratória, consistindo na exploração de um fato.
No que se refere aos procedimentos técnicos, optamos pela pesquisa documental. Nesses
casos, os conteúdos dos textos não tiveram nenhum tratamento analítico, tornando-se matéria-prima
a partir dos quais o pesquisador vai desenvolver sua investigação e análise. Nesta perspectiva e
buscando a melhor forma de atender ao objetivo da pesquisa, faremos uso da análise de conteúdo de
modo que sejam estabelecidas algumas categorias de análise para facilitar a compreensão dos dados
encontrados nos registros documentais do IPHAN e IPHAEP.
Temos plena consciência que o conhecimento científico não é inerte, pelo contrário, é dinâmico
e repleto de desdobramentos. Portanto, não nos fechamos a técnicas únicas, porque inexistem
métodos e técnicas de investigação autossuficientes, estabelecem-se, somente, nortes para a obtenção
do conhecimento desejado na pesquisa.
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