Universidade do Estado do Rio de Janeiro Viviane Fernandez Para
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Viviane Fernandez Para
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Viviane Fernandez Para onde vamos com o sequestro de carbono? A rede sociotécnica do carbono assimilado por manguezais Rio de Janeiro 2014 Vivviane Fernan ndez Para on nde vamos com o sequ uestro de caarbono? A rede r sociotéécnica do carbono c asssimilado poor manguezzais Tese aprresentada, como c requiisito parciall para obtenção o do título de Doutor, ao Program ma de Pós-grad duação em m Meio Ambiente,, da Universiidade do Esstado do Rioo de Janeiro o. Orientaador: Prof. Dr. D Mário Luiz L Gomess Soares Coorientaddor: Prof. Dr. D Carlos Jo osé Saldanhha Machado R de Janeirro Rio 2014 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CTC-A F363 Fernandez, Viviane. Para onde vamos com o sequestro de carbono? A rede sociotécnica do carbono assimilado por manguezais / Viviane Fernandez . - 2014. 448p.: il. Orientador: Mário Luiz Gomes Soares. Coorientador: Carlos José Saldanha Machado. Tese (Doutorado em Meio Ambiente) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Inclui bibliografia 1. Manguezais - Rio de Janeiro (RJ) - Teses. 2. Mudanças climáticas - Teses. 3. Aquecimento global – Teses. 4. Ciência - Aspectos sociais - Teses. 5. Ciência e tecnologia - Teses. I. Soares, Mário Luiz Gomes. II. Machado, Carlos José Saldanha. III.Universidade do Estado do Rio de Janeiro. IV. Título. CDU 574.5(815.3) Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte. ________________________________________ Assinatura __________________________ Data Viviane Fernandez Para onde vamos com o sequestro de carbono? A rede sociotécnica do carbono assimilado por manguezais Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aprovado em 29 de setembro de 2014. Orientadores: Prof. Dr. Mário Luiz Gomes Soares Faculdade de Oceanografia - UERJ Prof. Dr. Carlos José Saldanha Machado Fundação Oswaldo Cruz Banca Examinadora: __________________________________________________ Prof.ª Dra. Cecília Campello do Amaral Mello Universidade Federal do Rio de Janeiro __________________________________________________ Prof. Dr. Ivan da Costa Marques Universidade Federal do Rio de Janeiro __________________________________________________ Prof.ª Dra. Fátima Teresa Braga Branquinho Faculdade de Educação - UERJ __________________________________________________ Prof.ª Dra. Helena de Godoy Bergallo Instituto de Biologia Roberto Alcantara Gomes – UERJ __________________________________________________ Prof.ª Dra. Elza Maria Neffa Vieira de Castro Faculdade de Educação - UERJ Rio de Janeiro 2014 DEDICATÓRIA Para vó Matilde, que levantava bandeiras e cuidava dos netos; Para Taíssa Neves, que caminhava humanizando o fitoplâncton. AGRADECIMENTOS Os outros: o melhor de mim sou eles Manoel de Barros Ao professor, orientador, amigo e paraninfo Mário Soares, por ter me acompanhado desde a medição das primeiras plântulas da dinâmica, em 1997. Mais do que simplesmente pelo ensino da técnica, agradeço por ter me levado a refletir sobre nossas ações no mundo e pela confiança em minha capacidade. Sua coragem, dedicação e sabedoria são exemplos para mim. Certa vez, uma dedicatória sua me dizia assim: "À amiga Viviane, para sempre lutarmos pela ética na vida". Espero que tenha ficado feliz com a contribuição da tese! À professora Fátima Branquinho, que tocou minha mente e meu coração com seu jeito claro, objetivo, sincero e doce de ensinar. Muito obrigada por ter me apresentado a teoria ator-rede, pela paciência com as minhas insistentes questões em sala de aula, por ter me acolhido e transmitido coragem e pelas leituras e sugestões. Ao professor Saldanha, pela coorientação desta tese. Desde os comentários na banca do exame de qualificação e reuniões para discussão, até as críticas nos meses finais de redação, sua participação determinou algumas decisões de caminhos a serem tomados. Ainda que divergências tenham persistido, sou muito grata às suas colocações incisivas que me fizeram pensar. À professora Elza Neffa, pelas aulas, provocações, textos e encontros, que contribuíram muito para o desenvolvimento da tese. Obrigada também por sua dedicação ao PPGMA, pois passar por ele foi uma experiência incrível. À amiga Paula Maria, que sem duvida é a pessoa que mais compreende como e porque o trabalho seguiu determinados rumos e se transformou nesta tese. E pensar que ela dizia "não entendo o trabalho da Vivi", quando no início este era "só dinâmica, modelo e sequestro". Obrigada por tudo: comentários, reflexões, trechos sublinhados de livros, mapas de presente, textos enviados pelo celular, orientações da Geografia e, também, dicas de "diva acadêmica". Preciso destacar especialmente sua parceria essencial na análise dos arquivos originais do inventário de emissões, que deu origem à seção III desta tese. Então, cada momento ao seu lado (literalmente) foi de extrema importância. Desculpa por eu "só falar da tese" nesses mais de 4 anos. Ao amigo Gustavo Estrada, que também esteve ao meu lado (literalmente) nesses mais de 4 anos. Obrigada pela ajuda nos trabalhos de campo e em todas as etapas das análises estatísticas, pelas conversas curiosas sobre meus estudos, trocas de experiências, preocupações com o laboratório, disponibilização da bibliografia organizada e atualizada e, principalmente, pelo incentivo para concluir essa etapa e seguir em frente. Ao amigo Marciel Estevam, por ter abraçado a dinâmica e cuidado dos dados com empenho, por ter feito uma dissertação de Mestrado muito importante para esta tese, por ter realizado os cálculos de estoque e sequestro de carbono, pela ajuda nos trabalhos de campo e laboratório, pela parceria nas etapas finais (muito tensas) de organização e impressão e, principalmente, pelos momentos de descontração e risadas, com café, pão, doces, biscoitos... Ao amigo Daniel Medina Santos, por ter cortado "praticamente todas as árvores" que precisei para compor os modelos. Nunca vou me esquecer daquele dia de sol em que você atravessou o apicum com mais baldes do que deveria. Obrigada. Ainda vou fazer o "camarão na moranga" prometido aos "meus meninos". Às amigas e atuais mestrandas do NEMA, Mayne Assunção, Carolina Cardoso, Brunna Tomaino e Ana Carolina Nunes, pela participação nos trabalhos de campo e por me ouvir falar (muito) da tese. Também agradeço à Maria Rita Olyntho e Daniela Pelluso, que contribuíram desta forma nos primeiros anos da tese. Aos amigos Filipe Chaves e Júlio Pellegrini, companheiros de jornada, entre trabalhos de campo, discussões filosóficas e troca de experiências de vida. Aos estagiários do NEMA que já mediram as plântulas e jovens no monitoramento da dinâmica, ou seja, praticamente a todos que já passaram por aqui. São muitos... Obrigada! À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pela bolsa de doutorado e pelos recursos do Projeto APQ-1 “Avaliação do Processo de Sequestro de Carbono por Comunidades Pioneiras de Manguezais” (processo: E26/111.513/2013). À Secretaria do PPGMA, pelo auxílio ao longo de todos esses quase 5 anos. À biblioteca CTC-A da UERJ, em especial à bibliotecária Rosalina, pelo cuidadoso auxílio na formatação da versão final desta tese. Às Instituições EMBRAPA e EMBRATEL, pelo apoio logístico aos trabalhos de campo do NEMA em Guaratiba. Ao Instituo Nacional de Ciência e Tecnologia “Ambientes Marinhos Tropicais: Heterogeneidade Espaço-Temporal e Respostas à Mudanças Climáticas” (INCTAmbTropic), pelo apoio aos estudos do NEMA/UERJ. Às queridas Fátima Kzam, Roseantony Bouhid, Joana Macedo, Rosemary Godinho, Paula Maria Almeida e Fátima Branquinho, por nossos frutíferos encontros latourianos. Estou ansiosa para ver o trabalho de vocês e para continuar nossos estudos. À Vanessa Hacon, que me ajudou desde o momento em que nos conhecemos, em 2012. Obrigada pela bibliografia crítica, por me apresentar as “etnias”, pelo interesse no trabalho e pela torcida. À professora Cecília Mello, por ter aceitado gentilmente conversar comigo sobre o trabalho, me indicando vários atores e sugerindo uma bibliografia fundamental. Apesar de eu não ter conseguido inserir tudo na tese, com certeza as sugestões seguirão guiando minhas pesquisas. Ao professor Henri Acserald, por ter me ouvido em 2012, por ter escrito livros inspiradores e por ter me indicado estudar sobre “sociologia da ciência” e para conversar com a professora Cecília Mello sobre meu trabalho. Aos pesquisadores integrantes e parceiros do Núcleo de Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (NECSO), da UFRJ, pela acolhida e experiências proporcionadas nos eventos “Ator-rede e além... no Brasil” e Ato-rede, 2013. Agradeço especialmente aos que formaram o aglomerado “conhecimento científico e aquecimento global”: Daniela Alves, Adriano Premebida, Ivan Marques e Bernardo Esteves. A apresentação do aglomerado da psicologia também foi muito importante para esta tese. À professora Daniela Alves, que me deu força para descrever minha trajetória até a proposta da tese, no capítulo 2. Obrigada pelo interesse no trabalho, pela torcida e por ter aceitado trabalhar na mediação do texto de nosso aglomerado. À professora Gleyci Moser pelo convite para co-orientar a monografia da Taíssa, e por me escutar dizendo que o natural e o humano nunca estiveram separados. Obrigada pelo carinho e respeito. À Taíssa Neves Stavale, por me ouvir atentamente e por me inspirar com a sua inquietação humana e oceanográfica. Tenho certeza que você segue caminhando com seu jeito tão bonito e iluminado, só que agora em outro plano. Nosso encontro foi muito especial. Obrigada. À Michelle Araújo e Márcia Martins, atuais orientandas do Mário no PPGMA. Obrigada por nossas conversas, pelo incentivo, e por compartilhar comigo das mesmas aflições para fazer uma tese interdisplinar. Aos meus alunos de gestão ambiental do SENAC, pela troca de experiências que “entrou” de alguma forma na tese. Adorei por vocês terem me definido como um professora, ao mesmo tempo, “nerd” e “maluco beleza”, ou seja, um híbrido “nerdbeleza”. Às professoras da Oceanografia, Gleyci, Cláudia, Cássia e Letícia, pela torcida, pelas dicas experientes e pelos cafezinhos. À Márcia Pinheiro, Yolanda Freire e Octavio Rosário, por me ajudarem no cuidado comigo mesma. Aos amigos e familiares que me aguentaram nesses mais de quatro anos de reclusão, e sempre respeitaram minhas ausências, torcendo: Ana Margarida, Nélia Paula, Nicole, Lu Vicente, Lu Cunha, Rachel, Ju, Luluzes, Paula, Pedro, Carlos Milton, Bia Castellar, Bia Barbosa, Sara, Paulo, Tia Pepita, Tio Caim, Tia Vilma, Vó Hadije, Tati, Bruno, Denise e tantos outros. Aos meus sogros, Helena e Celso, pelo cuidado incentivo e amor, especialmente nos finais de semana. Aos meus pais, Rosa e José, pelo amor com que me criaram e educaram. Aos meus irmãos, pela companhia. Ah, obrigada, Vinícius e Vanessa, pela participação naquele trabalho de campo de um feriado laaaaaá em 1999. Os dados estão aqui na tese. Aos meus gatos Sissi e Tom, que subiam em cima do computador para me avisar quando eu estava exagerando. Aos meus amores, André e Matheus, por fazer a minha vida mais alegre. Ao André, sempre companheiro, por cuidar de mim, ler os textos, me criticar quando necessário, me apresentar outras abordagens e por me distrair, quando necessário. Por exemplo, obrigada por me colocar para assistir Emeril (seven) green e para “trocar uma ideia” com os amigos. Ao Matheus, por crescer ao meu lado, me deixando participar de suas transformações ao longo desses anos. Quando comecei tudo isso, você tinha 5 anos, assistia Discovery Kids (“coisa de bebê”) e ainda não sabia escrever. Em julho desse ano, com 8 anos, já me ajudou a digitar a tradução de um artigo em inglês (Lembra? No hotel fazenda), e é o rei do Pokemón. Lindo! Desculpa por todas as vezes que não pude brincar com você “por causa da tese”. Prometo brincar agora. Então me diz qual é a graça De já saber o fim da estrada Quando se parte rumo ao nada? Paulinho Moska RESUMO FERNANDEZ, Viviane. Para onde vamos com o sequestro de carbono? A rede sociotécnica do carbono assimilado por manguezais. 2014. 448p.: il. Tese (Doutorado em Meio Ambiente) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. O presente estudo defende a tese de que o desenvolvimento da capacidade de abordar a realidade de forma integrada, através de exercícios interdisciplinares e/ou transdisciplinares, torna a ciência mais interessante, completa e, ao mesmo tempo, mais comum. Para alcançá-la, em lugar de abordar o "estoque e sequestro de carbono em manguezais" como um objeto de estudo natural e pertinente às disciplinas Oceanografia, Ecologia, Engenharia Florestal e outras do mesmo campo, optou-se por descrever a rede sociotécnica do carbono assimilado por manguezais. Trata-se de um mergulho na prática científica e de um rastreamento dos vínculos sociais criados e recriados por nossa relação com os objetos tecnocientíficos. O texto resultante destes movimentos — que inclui desde estimadores de biomassa vegetal e povos das florestas, até a Convenção do Clima, grandes corporações "verdes" e inventários nacionais de emissões — proporciona uma reflexão sobre a forma como a ciência se desenvolveu e tem se apresentado ao mundo contemporâneo (“moderno”), regulando a ordem política. E é exatamente para tal reflexão que a pergunta "Para onde vamos com o sequestro de carbono?" convida. Depois de percebermos o carbono como um híbrido de natureza e cultura — em seus aspectos natural-social, científico-político e local-global —, concluímos que o desenvolvimento de metodologias e a elaboração de estimativas de estoque e sequestro de carbono florestal podem ser um caminho para a mitigação do aquecimento global, desde que não sejam colocados de antemão como um conhecimento essencial para tal fim, e que, por ser natural/científico, subjuga os demais saberes. Palavras-chave: Teoria ator-rede. Ciência. Mudanças climáticas globais. ABSTRACT FERNANDEZ, Viviane. Where are we going with carbon sequestration? The sociotechnical network of the carbon assimilated by mangroves. 2014. 448p.: il. Tese (Doutorado em Meio Ambiente) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. This study supports the thesis that the development of the ability to approach reality in an integrated way, through interdisciplinary and/or transdisciplinary exercises, makes the science more interesting, complete and at the same time, more common. To achieve this objective, we chose to describe the socio-technical network of the carbon assimilated by mangroves instead of addressing the "stock and carbon sequestration in mangroves" as a relevant natural object of study to the disciplines Oceanography, Ecology, Forestry and others of the same field. This is a dive in the science practice and a screening of the social links created and recreated by our relationship with technoscientific objects. The text resulting from these movements - which includes everything from estimators of plant biomass and forest peoples, to the Climate Convention, major "green" corporations and national emission inventories - provides a reflection on how the science has been developed and has presented itself to the contemporary world ("modern"), regulating the political order. And it is exactly for such reflection that the question "Where are we going with carbon sequestration?" invites. After realizing carbon as a hybrid of nature and culture — in their natural-social, scientific- political and local-global aspects — we conclude that the development of methodologies and preparation of estimates of stock and forest carbon sequestration can be a way to mitigate global warming, since they are not placed beforehand as an essential knowledge for this purpose, and which, being natural/scientific, subdues the other kinds of knowledge. Keywords: Actor-Network Theory. Science. Global climate change. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................... 15 I A TEORIA ATOR-REDE................................................................... 31 1 SOBRE A TEORIA DO ATOR-REDE (ACTOR-NETWORK THEORY, ANT)................................................................................... 34 1.1 O carbono como método: acrescentando as práticas de mediação às de purificação.................................................................................. 34 1.2 Os cientistas da nova constituição...................................................... 39 1.3 A ciência na nova constituição............................................................ 46 1.4 A essência do sequestro de carbono como trajetória...................... 2 POR QUE A TEORIA ATOR-REDE?.............................................. 53 2.1 A definição da tese como uma rede.................................................... 53 2.1.1 Do estudo da quantificação do sequestro de carbono aos estudos sobre conflitos socioambientais............................................................. 53 2.1.2 Dos estudos sobre conflitos socioambientais à sociologia do conhecimento......................................................................................... 58 2.1.3 Da sociologia do conhecimento à teoria ator-rede................................. 67 2.1.4 Da teoria ator-rede à minha tese............................................................ 70 2.1.5 A relação entre a teoria ator-rede e o paradigma emergente de Boaventura de Souza Santos.................................................................. 73 2.1.6 A relação entre a teoria ator-rede e os textos sobre justiça ambiental... 76 2.1.7 A teoria ator-rede e a mudança climática global................................... 78 II O CARBONO É NATURAL-SOCIAL.............................................. 82 3 DESENVOLVIMENTO DE MODELOS ALOMÉTRICOS PARA ESTIMATIVA DA BIOMASSA AÉREA DE ARBUSTOS DE Avicennia schaueriana e Laguncularia racemosa........................ 87 3.1 Introdução............................................................................................. 87 3.2 Material e Métodos.............................................................................. 89 3.2.1 Desenho amostral................................................................................... 89 3.2.2 Procedimentos de campo e de laboratório............................................. 95 3.2.3 Análises estatísticas................................................................................ 99 3.3 Resultados............................................................................................. 102 3.4 Discussão............................................................................................... 125 3.5 Considerações Finais............................................................................ 134 49 4 ESTOQUE E SEQUESTRO DE CARBONO POR COMUNIDADES PIONEIRAS DE MANGUEZAL EM RESPOSTA À ELEVAÇÃO DO NÍVEL MÉDIO RELATIVO DO MAR............................................................................................... 135 4.1 Introdução............................................................................................. 135 4.2 Material e Métodos.............................................................................. 138 4.2.1 Dinâmica de colonização da comunidade pioneira................................ 138 4.2.2 Estimativa do estoque de carbono.......................................................... 140 4.2.3 Estimativa do sequestro de carbono (Remoção líquida de C)................ 142 4.3 Resultados............................................................................................. 142 4.4 Discussão............................................................................................... 153 4.5 Considerações finais............................................................................. 161 5 COMO O CARBONO É NATURAL-SOCIAL?.............................. 163 5.1 Uma introdução ao desenvolvimento da resposta............................. 163 5.2 Os manguezais de Guaratiba, as mudanças climáticas globais e o NEMA/UERJ........................................................................................ 164 5.2.1 A historicidade do sequestro de carbono nos manguezais de Guaratiba................................................................................................ 165 5.3 Da translação de interesses às “caixas-pretas”: os elementos dos artigos científicos.................................................................................. 193 5.4 Os instrumentos como “caixas-pretas” mediadoras......................... 199 III O CARBONO É CIENTÍFICO-POLÍTICO..................................... 206 6 ABRINDO A "CAIXA PRETA" DO INVENTÁRIO BRASILEIRO DE EMISSÕES........................................................... 210 6.1 O Relatório de Referência de Emissões de Gases de Efeito Estufa no Setor Uso da Terra, Mudança do Uso da Terra e Florestas................................................................................................ 210 6.2 Diagnóstico dos manguezais no Inventário Brasileiro...................... 216 6.3 Controvérsias em torno do inventário................................................ 224 6.3.1 Identificação das controvérsias (Material e Métodos)........................... 224 6.3.2 As controvérsias (Resultados e Discussão)............................................ 226 6.4 Considerações finais............................................................................. 244 7 ABRINDO A "CAIXA PRETA" DA GESTÃO BASEADA EM INVENTÁRIOS NACIONAIS............................................................ 246 7.1 Possibilidades de melhoria?................................................................ 246 7.2 A historicidade dos Inventários Nacionais......................................... 249 IV O CARBONO É LOCAL-GLOBAL.................................................. 256 8 O CARBONO DENTRO DA REDE SOCIOTÉCNICA................. 262 8.1 A rede sociotécnica do carbono........................................................... 262 8.1.1 O coletivo da UNFCCC......................................................................... 262 8.1.2 O coletivo do IPCC................................................................................ 268 8.1.3 O coletivo das Nações Unidas................................................................ 271 8.1.4 O coletivo do REDD+............................................................................ 277 8.2 Apontamentos finais: Instrumentos, técnicas, procedimentos e redes ...................................................................................................... 329 9 OUTROS CARBONOS?..................................................................... 333 9.1 Relatos de conflito................................................................................ 333 9.1.1 Primeira fonte de relatos........................................................................ 334 9.1.2 Segunda fonte de relatos........................................................................ 346 9.1.3 Terceira fonte de relatos......................................................................... 353 9.1.4 Quarta fonte de relatos........................................................................... 354 9.2 Justificativa da resistência................................................................... 359 9.2.1 A Bolívia................................................................................................ 359 9.2.2 O posicionamento do Grupo Carta de Belém........................................ 362 9.2.3 O estado do Acre, Brasil........................................................................ 364 9.2.4 A declaração final da Cúpula dos Povos na Rio+20: por justiça social e ambiental............................................................................................. 367 9.3 A questão dos outros carbonos............................................................ 369 REFLEXÕES FINAIS......................................................................... 387 REFERÊNCIAS................................................................................... 398 15 INTRODUÇÃO Do lugar onde estou já fui embora Manoel de Barros O aquecimento global, decorrente do aumento das concentrações de gases causadores do efeito estufa na atmosfera, dentre eles o CO2, é considerado um dos resultados da crescente interferência da ação do homem sobre a natureza (VITOUSEK, 1997; IPCC, 2013). Essa interferência foi intensificada a partir do século XVIII, quando o desenvolvimento das máquinas a vapor, da agricultura mecanizada e da facilitação do transporte das produções (PORTO-GONÇALVES, 2012, p.26-28) resultaram na Revolução Industrial. De fato, pesquisas atuais registram que a concentração global de CO2 atingiu 391 ppm em 2011, que representa um aumento de 40% em relação aos níveis do período pré-industrial. No período entre 2002 e 2011 a taxa de aumento das concentrações de CO2 foi de 1,9 – 2,1 ppm.ano-1 (IPCC, 2013). Tendo como referência a temperatura média global entre os anos 1850 e 1900, estima-se um aumento de pelo menos 1,5 °C até o final do século XXI (IPCC, 2013). Entretanto, segundo o cenário de projeção mais catastrófico, a temperatura poderá exceder 4°C (IPCC, 2013). Além do aumento das emissões de CO2, diagnosticado tardiamente, herdamos da Revolução Industrial o impulso ao fortalecimento da ciência moderna (SANTOS, 2008) e uma espécie de “pronta aceitação mística das conseqüências sociais do progresso econômico”, quaisquer que elas sejam (POLANYI, 2000, p. 51). Apesar de frequentemente, em nossa vida comum, nos atermos à primeira herança ao pensarmos na mitigação do aquecimento global, buscando meios de compensar emissões de CO2 para a atmosfera com reduções de CO2 da atmosfera, nessa tese, abordamos a tecnologia de quantificação do sequestro de carbono florestal reconhecendo um entrelaçamento desta com as outras duas heranças, que dizem respeito à ciência e à política, respectivamente. A pergunta que dá um título à tese, “Para onde vamos com o sequestro de carbono?”, está inserida em um questionamento mais amplo, sobre para onde estamos indo com a ciência ambiental praticada em nossos laboratórios. Desde a graduação em Oceanografia (1996-2000), sempre me incomodaram as justificativas descritas nas publicações científicas (artigos, relatórios técnicos, livros, monografias, dissertações, teses, etc.) dos estudos do meu campo de conhecimento, as ciências exatas e da terra, e de campos correlatos, que envolvem disciplinas e sub- 16 disciplinas afins, como a biologia e a ecologia. Ou os estudos faziam parte de uma cadeia interminável que supostamente levaria ao perfeito entendimento de um processo natural, esse entendimento em si mesmo justificável; ou eram importantes por contribuir com informações que incentivariam a conservação do meio ambiente1; ou serviriam para fundamentar, preferencialmente com números, legislações ambientais em formulação, processos de identificação de danos ambientais e outros encaminhamentos jurídicos para proteção ao meio ambiente; ou seriam a base de mecanismos de gestão ambiental nos quais se planeja uma intervenção antrópica mais adequada ao equilíbrio da sociedade com o meio ambiente, como estudos de impactos ambientais (EIAs) obrigatórios ao processo administrativo de licenciamento ambiental de atividades potencialmente poluidoras. Em todos os casos, percebia que a responsabilidade dos jovens cientistas se limitava a garantir que os estudos fossem desenvolvidos com rigor científico/acadêmico para que as informações de fato pudessem representar a realidade da natureza. O que aconteceria na sociedade, para que sua 'justificativa' se tornasse 'justificada', não lhes dizia respeito diretamente. A distância entre os extremos: natureza e sociedade, ciência e política, objeto de estudo e contexto social, cuja conexão se dava sutilmente por meio do discurso daquelas justificativas, parecia aumentar, e não diminuir, conforme novos estudos sobre determinado processo ambiental eram desenvolvidos. Provavelmente porque ambos extremos tornavam-se cada vez mais complexos. Um maior detalhamento dos processos naturais, de um lado, um maior número de instituições, empresas, leis, procedimentos de gestão, de outro, e uma justificativa que me parecia construída cada vez mais de forma automatizada. Em conversas trocadas com outros pesquisadores do campo, eu ouvia que as coisas aconteciam assim mesmo, que existe um intervalo de tempo entre os avanços da ciência e o uso desses resultados pela sociedade. Ouvia também que deveríamos cobrar para que o poder público buscasse com maior disposição esses resultados, em sua gestão direta, ou na cobrança de ações das instituições privadas. “Seria obrigação deles se empenharem mais em levar a ecologia de nossos laboratórios para a política!”, diziam alguns. Por outro lado, nós cientistas também deveríamos atuar prontamente em fóruns onde nossas informações são solicitadas, como por exemplo, alguns conselhos 1 São comuns citações como esta: "The main objective of limnological research is to understand the behavior of freshwater ecosystems and it is one of the most important tools for conserving and preserving biodiversity and water resources" (BORTOLONI e BUENO, 2013). 17 gestores de unidades de conservação. Por esses dois movimentos, de mesma direção e sentidos opostos, poderíamos chegar, então, a uma política mais ecológica e científica2, pretensamente mais sustentável e justa. Entretanto, sem que eu tivesse conhecimento até ingressar no Programa de Pósgraduação em Meio Ambiente da UERJ, vários pesquisadores dos campos da sociologia/filosofia/história/antropologia da ciência/conhecimento travavam, desde os anos de 1960, debates epistemológicos na tentativa de superação dos pares dicotômicos próprios do pensamento ocidental (objetividade/subjetividade, indivíduo/sociedade, agente/estrutura e natureza/cultura) (ZHOURI et al., 2005, p. 13). Não falavam especificamente sobre a ciência ambiental, mas sobre a teoria geral3 em que se baseiam todas as ciências. Dentre esses, os filósofos da ciência, particularmente, não se preocupavam em produzir conhecimento, mas em "refletir sobre os próprios fundamentos do conhecimento que é gerado por cientistas, assim como suas possibilidades e limites" (ALVARENGA et al., 2011). A Ciência da forma como praticamos hoje tem suas origens no século XVII, quando a “filosofia natural”, mais contemplativa, que descrevia o sistema do mundo em sua totalidade, transformou-se na “ciência” propriamente dita, onde a análise matemática revelava como as coisas deveriam ser (HENRY, 1998, p. 20). Após a grande separação entre filosofia e ciência, à filosofia couberam apenas as reflexões sobre o porquê das coisas serem da forma como somente a ciência poderia descobrir que eram (STENGERS, 2006, p. 134). Segundo Santos (2008), esta nova visão do mundo e da vida reconduziu-se a duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. Ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna passou a desconfiar sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata. Somente a ciência, com seus métodos de observação livre, sistemática e rigorosa dos fenômenos naturais, encontraria na matemática um instrumento de análise privilegiado. Então, conhecer passou a significar quantificar, e o rigor científico passou a ser medido pelo rigor das medições. 2 Esse tipo de intenção dos cientistas pode ser claramente percebido nas palavras de Paulo Moutinho, diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), ao falar de sua palestra intitulada “Da ciência à política: qual o melhor caminho (se é que ele existe)?” e proferida em abril de 2013 na Universidade Federal da Bahia. Conforme consta no site do IPAM, ele explica que ainda não existe resposta de como a ciência pode fornecer informações que determinem mudanças ou decisões políticas no trato com o meio ambiente, mas afirma que “certamente algumas lições aprendidas indicam alguns caminhos para aproximar a ciência dos tomadores de decisão” (IPAM, 2013). 3 Poderíamos substituir o termo por metateoria ou metafísica. 18 Tal modelo de racionalidade, inicialmente limitado às ciências naturais, estendeu-se às ciências sociais no século XIX (SANTOS, 2008). Ora, se as qualidades intrínsecas do objeto foram desqualificadas e, em seu lugar passaram a imperar quantidades, podemos imaginar o que acontece quando o objeto de estudo é social. Os indivíduos foram substituídos por categorias, como gênero, idade, classe social, atividade de renda etc; os fatos sociais foram reduzidos às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis4. Boaventura de Souza Santos defende que, com o fortalecimento da ciência moderna ao longo do tempo, perdemos gradativamente a capacidade de nos perguntar sobre o valor humano do conhecimento científico gerado. Para o autor, "esta pergunta está, no entanto, inscrita na própria relação sujeito/objeto que preside a ciência moderna, uma relação que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis". Nesses termos, quanto mais o conhecimento avança, aumentando nossa capacidade de intervenção tecnológica no mundo, menos percebemos os limites de nossa compreensão sobre nós mesmos (SANTOS, 2008). Portanto, soluções para aproximar os resultados científicos das "justificativas" previstas nos estudos não seriam encontradas tornando as propostas acadêmicas mais aplicadas e vinculadas a ações de gestão, ou tornando as propostas de gestão mais pautadas nos conhecimentos científicos. Deveríamos procurar as soluções repensando nossa forma compreender, conceber e fazer ciência, ou seja, nossa forma de constituir os objetos de estudo, de abordá-los e de perceber seus vínculos com nossa humanidade. Hoje, "as condições epistêmicas das nossas perguntas estão inseridas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta" (SANTOS, 2008). São perguntas complexas, por exemplo, "como resolver a questão do aquecimento global?", "como promover o desenvolvimento sustentável?", ou "o que fazer com o lixo produzido no mundo?", que tentamos responder fragmentando-as em milhares de perguntas mais simples, para que possam se encaixar nos métodos científicos disponíveis. O que escapa à fragmentação, porém, é a expressão da busca humana por felicidade, que estava contida nas perguntas complexas iniciais. 4 Segundo Lakatos (1990), por exemplo, "Na obra Suicídio (1987), Èmile Durkheim demonstra que o suicídio varia inversamente ao grau de integração do grupo social do qual o indivíduo faz parte, com algumas exceções por ele apontadas. A lei do suicídio de Durkheim é considerada uma lei sociológica em virtude de as variáveis relacionadas constituírem fenômenos sociais: a taxa de suicídio [...] e o grau de coesão [...]. Assim, se a sociologia estuda fatos sociais, uma proposição que estabeleça relação de regularidade entre eles é uma lei sociológica". 19 Se a ciência moderna aumentou nossas perspectivas de sobrevivência, via o conhecimento funcional do mundo, hoje não se trata apenas de sobreviver, mas de saber viver. Portanto, os limites deste tipo de conhecimento são qualitativos e, por isso, não são superáveis com maiores quantidades de investigação ou maior precisão dos instrumentos (SANTOS, 2008). Sheila Jasanoff, ao explorar as tensões que surgem quando o imaginário da mudança climática projetado pela ciência (impessoal, apolítico e universal) entra em conflito com as imaginações dos atores humanos comprometidos com a natureza (subjetivas, localizadas e normativas), destaca a intervenção de um brasileiro durante as audiências da Comissão Brundtland para preparação do documento “Nosso Futuro Comum”. "Vocês falam muito pouco de vida, vocês falam muito sobre sobrevivência. É muito importante lembrar que as possibilidades para sobrevivência começam quando as possibilidades para a vida se esgotam. Existem pessoas aqui no Brasil, especialmente na região Amazônica, que ainda vivem, e essas pessoas que ainda vivem não querem chegar até o nível de sobrevivência"5. (JASANOFF, 2010). Tradução nossa. Na visão de Santos (2008), o paradigma6 emergente pode ser anunciado como o paradigma de um conhecimento decente (paradigma científico) para uma vida prudente (paradigma social de uma sociedade ela própria revolucionada pela ciência). Em seu fluxo, o movimento científico da interdisciplinaridade apresenta-se abrindo espaço para que os próprios cientistas possam promover reflexões – de natureza filosófica – sobre a produção do conhecimento (ALVARENGA et al., 2011). Trata-se de fazer ciência com consciência e, para isso, necessitamos desenvolver metodologias "a fim de permitir que a atividade científica disponha dos meios da reflexividade, isto é, da auto-interrogação" (MORIN, 2005, p. 26). Alvarenga et al., (2011) dedicaram a parte final de sua publicação aos desafios metodológicos encontrados pelos cientistas, ou cientistas-filósofos (terminologia proposta por SANTOS, 2008), em suas pesquisas interdisciplinares. Para estes autores, 5 O texto em lingua estrangeira é: "You talk very little about life, you talk too much about survival. It is very important to remember that when the possibilities for life are over, the possibilities for survival start. And there are peoples here in Brazil, especially in the Amazon region, who still live, and these people that still live don’t want to reach down to the level of survival’ (WCED, 1987: 40)." (JASANOFF, 2010). 6 Paradigma é um conceito definido por Thomas Kuhn que representa "as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modulares para uma comunidade de praticantes de uma ciência" (KUHN, 2006, p. 13). Quando as realizações científicas não conseguem mais responder às questões que surgem, inicia-se um período de transição para um novo paradigma. 20 ainda que a filosofia da ciência tenha a interdisciplinaridade como objeto de análise, será por meio da produção científica que a mesma poderá se constituir e se identificar como campo de conhecimento propriamente dito. Entretanto, pensar na pesquisa interdisciplinar pressupõe “um exercício de crítica e justificação que aproxime necessariamente o trabalho do cientista propriamente dito das reflexões de cientistasfilósofos ou de filósofos da ciência, embora guardadas as especificidades de seu trabalho” (OLIVEIRA FILHO, 1976 apud ALVARENGA et al., 2011, p. 55). Portanto, para os autores, “falar em interdisciplinaridade implica necessariamente contar com a abertura de cientistas formados nas ciências disciplinares das diferentes áreas do saber, dispostos a ingressarem no espaço do desconhecimento, das incertezas, das verdades provisórias e do diálogo” (ALVARENGA et al., 2011, p. 29). Assim é que se reconhecem os pesquisadores do Núcleo de Estudos em Manguezais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEMA/UERJ) — laboratório onde esta tese foi desenvolvida —, pretendendo contribuir com a “passagem de um paradigma (espírito de uma época) para o seguinte, [que] é feita graças a homens que têm um pé no antigo, enquanto o outro avança para o novo” (ATLAN, 1992 apud ALVARENGA et al., 2011, p. 23). Definido o contexto no qual se insere a pergunta da tese: "para onde vamos com o sequestro de carbono?", a problemática que lhe deu origem, partindo de uma proposta inicial disciplinar, será apresentada a seguir. Uma crônica sobre a construção da problemática e da nova proposta de tese7 O último relatório do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2013) alertou a população mundial sobre o ainda crescente aumento das concentrações atmosféricas de CO2, sobre a constatação de efeitos já percebidos das concentrações atuais e sobre a previsão de consequências futuras. Em decorrência disso, a agenda científica global sobre as mudanças climáticas demanda pesquisas que viabilizem possíveis estratégias, associadas à ideia de desenvolvimento sustentável, para mitigação do aquecimento global. Uma dessas estratégias diz respeito à contraposição das unidades de CO2 convertidas em biomassa 7 Esse foi o primeiro trecho a ser escrito no desenvolvimento da tese. O formato de crônica foi mantido do texto original, de modo a evidenciar minha resistência inicial em incluir a mim mesma, como cientista, na problemática da tese. Além disso, o formato foi mantido porque a tolerância discursiva é o outro lado da pluralidade metodológica prevista no paradigma emergente apresentado por Boaventura de Souza Santos (SANTOS, 2008). 21 vegetal através da fotossíntese e aprisionadas nos ecossistemas, às unidades de CO2 emitidas pela sociedade humana. Assim, assumindo como verdadeira a proposição: “Metodologias para quantificação do sequestro de carbono em manguezais justificam-se pela necessidade crescente de informações que viabilizem a mitigação do aquecimento global", uma pesquisadora brasileira inicia sua pesquisa de doutorado, sobre tais metodologias, motivada por valores pessoais e morais como respeito à vida, de onde partem suas ações em prol da conservação da biodiversidade, e igualdade de direitos entre todos os seres humanos, para a qual imagina que seus resultados possam convergir por meio de políticas públicas. Ocorre que, no afã de combater o aquecimento global, a implantação do mecanismo formulado, no âmbito da Convenção do Clima, para reduzir "as emissões causadas por desmatamento e degradação" de florestas naturais — promovendo, ao mesmo tempo, o "desenvolvimento sustentável" e a "redução da pobreza" — tem causado graves conflitos socioambientais locais. Manifestações sociais e publicações científicas apontam os perigos da transformação de territórios de naturezas e culturas próprias em espaços mercantis, nos quais as associações de humanos e não-humanos ali viventes são reduzidas a unidades métricas de carbono da vegetação para serem negociadas no mercado de carbono global. McAfee (1999), por exemplo, faz uma crítica em pormenores sobre a inconsistência do discurso sobre “vender a natureza para salvá-la”. O grupo Carta de Belém, outro exemplo, expõe textualmente que “A complexidade técnica dos cálculos do carbono e o aparato financeiro e burocrático previsto para a implantação de REDD+ [Mecanismo de Redução de Emissões Causadas por Desmatamento e Degradação de Florestas] e desse mercado combinam-se para afastar os centros de decisão real das organizações de base e, portanto, de uma democracia real” (GRUPO CARTA DE BELÉM, 2012). Inevitavelmente chega-se ao ponto de constatar que a proposição que justifica a tese, apresentada como fato estabilizado, é contraditória8 aos valores pessoais e morais que motivavam a referida pesquisadora. Ora, podemos dizer como Latour (2004, p. 8 Seguindo os estudos sobre a teoria do ator-rede percebi que o termo contradição deveria ser substituído pelo termo controvérsia. Uma vez que se a tese está acontecendo e eu sou a autora, uma coisa (a proposição, a tese) não deve excluir a outra (valores morais). A existência de ambas gera uma controvérsia, que é parte da pesquisa, ainda que não seja parte da tese. A tese trata da controvérsia de que não haveria lugar no contexto “social” construído pela Ciência moderna (LATOUR, 2012), para uma tese sobre sequestro de carbono que tentasse abordar ambos os caminhos (o da modernização ecológica e o da justiça ambiental), sem que fosse realizada a crítica de pelo menos um deles. 22 184): “Mas há ao mesmo tempo aí um problema ético!” 9. Como defender uma tese que tem como base o desenvolvimento de uma metodologia — que pode inclusive ser classificada como inovação tecnológica — que pretende uma coisa e pode terminar por realizar outra? Seria uma saída defender a neutralidade científica dos estudos sobre o sequestro de carbono florestal e apontar o "mau uso" de seus resultados pelos responsáveis pela elaboração das políticas para mitigação do aquecimento global e pela gestão das ações decorrentes? Outra saída poderia ser condenar a proposta original do estudo e desenvolver uma crítica à ideologia do desenvolvimento sustentável, que fundamenta as ações de mitigação dentro da lógica do capital? Não, essas não seriam saídas, seriam fugas. No primeiro caso a inovação tecnológica da tese não seria reconhecida como parte do problema. No segundo caso, a autora dispensaria mais de uma década de estudos sobre a ecologia do ecossistema manguezal em nome de outra certeza tão grave quanto assumir como verdadeira aquela proposição, assim resumida: “se as plantas de mangue podem sequestrar carbono, então elas podem mitigar o aquecimento global." A outra certeza vem a ser o oposto: "ainda que as plantas de mangue possam sequestrar carbono, elas não poderão mitigar o aquecimento global", pois a causa dessa crise ambiental está em nossa organização econômica e social. Para CARNEIRO (2005), o problema da ideologia do desenvolvimento sustentável é focar em processos físicos abióticos em detrimento do que Foladori expressa nessa citação: “[...] os problemas ambientais da sociedade humana surgem como resultado da sua organização econômica e social e [...] qualquer problema aparentemente externo se apresenta, primeiro, como um conflito no interior da sociedade humana [...] (FOLADORI, 2001)”. Tal ideologia fundamenta o desenvolvimento de metodologia para a quantificação do sequestro de carbono em manguezais porque, diante do problema do aquecimento global, a humanidade entende que ao mensurar todos os elementos de emissão e remoção de CO2 da atmosfera, incluindo a quantificação do sequestro de carbono em florestas, poderá tomar ações de controle. E se o problema estiver na forma como as ciências, naturais ou sociais, constroem o conhecimento sobre uma realidade? E se o problema estiver na formulação 9 Para Boaventura de Souza Santos, "A condição epistemológica da ciência [atual] repercute-se na condição existencial dos cientistas. Afinal, se todo conhecimento é autoconhecimento, também todo desconhecimento é auto desconhecimento" (Santos, 2008, p. 58). 23 de nossas perguntas? E se o “conflito no interior da sociedade humana” for, portanto, um conflito epistemológico? As duas “fugas” pensadas para o problema da tese compartilham da mesma busca por uma verdade científica e excluem-se mutuamente! Cada uma considera um lado, da mesma moeda. Enquanto uma eleva o status do desenvolvimento de metodologias para quantificação do sequestro de carbono, a outra, o condena. De qualquer forma, continuaremos dizendo que a gestão do problema do aquecimento global diz respeito à política! Enquanto o primeiro segue as decisões políticas tomadas na arena da convenção do clima, o segundo parte das manifestações políticas dos menos favorecidos pelo discurso do desenvolvimento sustentável. Talvez esse seja o problema: acreditarmos que à ciência cabe apresentar fatos científicos (naturais ou sociais) sobre uma realidade indiscutível, que vem a ser seu objeto de estudo, e que à política cabem as atribuições de valor, as discussões, ou seja, a atuação dos sujeitos políticos. E se as ciências dedicarem-se a perceber a realidade discutível, em movimento, tal qual ela é? E se reconhecerem que fazer ciência é fazer política? E se puderem identificar cientistas, não-cientistas, instrumentos de laboratório, leis, instituições, governantes e toda sorte de humanos e não-humanos como atores de um coletivo que caminha instituindo o sequestro de carbono? E se reconhecerem que a ação de qualquer dos atores pode produzir uma mudança em como, e para que, o sequestro de carbono se dá? A questão do conflito ético da pesquisadora poderia ser amenizada se assim abordasse seu “objeto de estudo”? Retornamos ao texto de LATOUR (2004, p. 184-185): “A cada vez que aparece um debate sobre os valores, aparece sempre uma extensão do número de participantes da discussão. Pela expressão: "Mas há ao mesmo tempo aí um problema ético!", nós exprimimos nossa indignação ao afirmar que os poderosos omitiram ao levar em consideração certas associações de humanos e não-humanos; nós os acusamos de nos terem colocado diante do fato consumado, tendo tomado decisões muito rapidamente, em um grupo muito pequeno, com pouquíssimas pessoas; indignamo-nos por terem omitido, esquecido, proibido, renegado, denegado, certas vozes que, se tivessem sido consultadas, teriam modificado consideravelmente a definição dos fatos de que se falam, ou que teriam dado à discussão um giro diferente”. Que nos leva, então, a perguntar: que vozes faltam ao apelo? Seriam as vozes dos “povos das florestas”, excluídos do jogo político que define aquela proposiçãojustificativa-da-tese? Seriam as vozes dos outros elementos (bióticos e abióticos) do ecossistema florestal, que não armazenam carbono propriamente, mas que contribuem 24 para que o sistema exista? Estes deveriam então ser quantificados para agregar mais valor de mercado à floresta? Seriam as vozes de legislações que garantissem a “participação dos povos das florestas em todas as etapas do processo de implantação de um projeto de REDD+”? Seriam as vozes da educação, que pretendem empoderar os sujeitos para participar do jogo político? A voz que falta ao apelo, na proposta da tese, não está relacionada à tentativa de resolver de pronto a grande questão do aquecimento global, ou da mitigação do aquecimento global — pois a solução, acredito, será construída democraticamente, por todos e em conjunto, dentro do tempo necessário para isso. Falta consultar uma voz que permita visualizar o problema de outra forma, na qual a contradição geradora do dilema da pesquisadora, em seu fazer ciência, pudesse ser plenamente abarcada. Essa voz pode ser representada por uma teoria, a teoria ator-rede. Ao ser utilizada na tese de doutorado, permitirá não só posicionar todos os elementos da antiga contradição-dilema como atores do coletivo, como também permitirá posicionar ela própria, a tese, no coletivo do sequestro de carbono florestal para mitigação do aquecimento global. A própria tese torna-se assim uma proposição nova, que vem agitar o coletivo do sequestro de carbono, pois quer um lugar na dita Ciência para Sustentabilidade, criticando a existência de uma justificativa “oficial” para ela, vinculada ao conceito hegemônico de desenvolvimento sustentável. Nas palavras de Milton Santos encontramos uma explicação para a antiga contradição-dilema, por ora esclarecida, da pesquisadora: “A noção e a realidade da rede provocam um sentimento de ambigüidade, cada vez que não consideramos o seu caráter definitivo, que é ser um híbrido, um misto. Ora, o papel dos mistos, no dizer de Bruno Latour (1991, pp.166167), é exatamente o de unir as quatro “regiões criadas como sendo diferentes: o natural, o social o global e o local, de modo a evitar que “os recursos conceituais se acumulem nos quatro extremos [...]” levando a que “nós, pobres sujeitos-objetos, humildes sociedades-natureza, pequenos locais-globais, sejamos literalmente esquartejados entre regiões ontológicas que mutuamente se definem e, entretanto, não mais se assemelham às nossas práticas” (Bruno Latour, 1991, p. 167)”. (SANTOS, 2009, p.279). Assim, utilizando a própria tese de doutorado como estudo de caso, sobre a construção do conhecimento científico sobre uma realidade, a tese a ser defendida é a de que um melhor entendimento sobre o sequestro de carbono florestal será alcançado por meio do ato de considerar (coletar) os atores humanos e não-humanos que se associam em torno desse processo e a ele atribuem movimento. Em outras palavras, a tese a ser defendida é a de que desenvolver a capacidade de abordar a realidade de forma 25 integrada, através de exercícios interdisciplinares e/ou transdisciplinares, torna a ciência mais interessante, completa e, ao mesmo tempo, mais comum. No lugar de alimentar com certezas os dois lados do debate político sobre a mitigação do aquecimento global: desenvolvimento sustentável x justiça ambiental, a tese seguirá o convite de Bruno Latour para “remeter o enigma da produção científica ao coração da ecologia política10” (LATOUR, 2004, pp. 15-16), de modo a contribuir com uma “política da realidade” que se alimenta das “preocupações morais”, em contraposição à “Realpolitik” 11 (LATOUR, 2004, p. 267). É muito provável que se consiga explicitar que a construção de nossos “fatos” científicos, como a quantificação do sequestro de carbono por comunidades pioneiras de manguezais, em nada difere das “opiniões” dos povos das florestas (LATOUR, 1994). Caberá dizer que um território de floresta, a ser conservado pelo mecanismo e REDD+, já é conservado hoje porque as dinâmicas sociais nele presentes não percebem diferenças entre natureza e cultura, tal como nós — sociedade urbana preocupada com a mudança do clima exatamente porque precisa da energia geradora do problema —, achamos que fazemos (LATOUR, 1994). É como se, pensando em um território de floresta de mangue, dotado de uma grande quantidade de carbono armazenada, pudéssemos parodiar Josué de Castro, autor de Geografia da Fome. Se para o autor “No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama”12, hoje parece que "No mangue, tudo será carbono, inclusive o homem, a lama e o caranguejo". A partir da teoria ator-rede, a pesquisadora buscará tornar compreensível porque um estudo científico que pretende desenvolver “metodologias para quantificação do sequestro de carbono em manguezais com a finalidade de contribuir para mitigação do aquecimento global” deve reconhecer a intrínseca relação entre fatos e valores existente 10 A ecologia política a que se refere Bruno Latour almeja a cosmopolítica proposta por Isabelle Stengers: um projeto político — liberado da economia política — que reúne humanos e não-humanos em um mesmo coletivo (CONTRERAS, 2010, p. 67). Portanto, se distancia da ecologia política que antes enfoca as assimetrias de poder sobre os usos da natureza e efeitos da poluição, defendida por autores como DUPUY (1980) e CASTORIADIS E COHN-BENDIT (1981). Utilizaremos o termo "ecologia política crítica" para diferenciar essa segunda ecologia política. 11 Termo criado por Ludwig von Rochau, político e escritor alemão do século XIX, para caracterizar uma política ou diplomacia baseadas principalmente no poder e em considerações práticas e materiais, em detrimento de noções de ideologia ou premissas morais e éticas (ROBERTSON, 2004). 12 Josué de Castro, 1966, em “A descoberta da Fome”, prefácio para a edição portuguesa de “Homens e Caranguejos”. 26 em seu escopo. E estará, por fim, diretamente envolvida com seus valores13, ao construir o “fato científico”- tese14. Objetivo geral O objetivo geral desta tese é descrever a rede sociotécnica do sequestro de carbono, reconhecendo o processo de sequestro, ou simplesmente o “carbono”, como um híbrido de natureza e cultura. Objetivos específicos Para reconhecer o carbono como um híbrido de natureza e cultura este estudo seguiu três objetivos específicos: i) Caracterizar o carbono como natural-social; ii) Caracterizar o carbono como científico-político; iii) Caracterizar o carbono como local-global. A estrutura da tese A teoria ator-rede constituirá o método sobre o qual se baseará a tese sobre o sequestro de carbono de uma comunidade pioneira do manguezal de Guaratiba, Baía de Sepetiba, Rio de Janeiro (RJ). Utilizando esse “lápis” (método), as tCO2.ha-1.ano-1 deixarão de se parecer com árvores em crescimento para constituírem-se em teses de doutorado, laboratórios de pesquisa, pesquisadores, inventários nacionais de emissões, mapeamentos de carbono por sensoriamento remoto, legislações, índices de referência para metodologias internacionais, base para discussões nas Conferências das Partes da Convenção do Clima, prova de redução de emissões de CO2, créditos de carbono etc. A mitigação do aquecimento global não será mais a finalidade da quantificação do sequestro de carbono. A determinação das tCO2.ha-1.ano-1 será apenas um caminho 13 Segundo Boaventura de Souza Santos, é necessário que desenvolvamos uma outra forma de conhecimento, “um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos” (SANTOS, 2008). 14 No momento em que escrevi esse texto, chamar a tese de “fato científico” foi a melhor forma encontrada para expressar que ela própria faz parte da realidade e a modifica. Hoje, melhor seria chamá-la de um relato arriscado (LATOUR, 2012), ele próprio um mediador do sequestro de carbono. 27 epistemológico para a mitigação, quando a ontologia do sequestro de carbono for apresentada sob a perspectiva da teoria ator-rede. Antes de iniciar a descrição (desenho/ relato) da rede, apresentaremos na seção I as características do método (“lápis”) utilizado (capítulo 1) e os motivos de sua escolha (capítulo 2). Conforme o próprio Latour assevera, desenhar com um lápis grafite é completamente diferente do que desenhar com um pedaço de carvão (LATOUR, 2012, p. 208). O método, que consiste em seguir os vínculos de risco promovidos pelo sequestro de carbono, desde o laboratório até a Convenção do Clima, fundamenta-se na metafísica experimental15 (LATOUR, 2004). Esta metafísica opõe-se às explicações prévias do mundo pela metafísica da natureza, pois não visa explicar qualquer realidade, mas perceber sua construção permanente e imprevisível. A imprevisibilidade vem da infinidade de resultados possíveis quando cada ator tem livre-arbítrio para atuar de forma única, e modificável, no coletivo (LATOUR, 2004). Nas seções II, III e IV os três objetivos específicos desta tese serão alcançados, respectivamente, por meio das seguintes “brincadeiras” com a teoria ator-rede: o carbono é natural-social, quando observamos os híbridos; é científico-político, quando percebemos as controvérsias; é local-global, quando ficamos mais atentos às mediações do que ao contexto. Ainda que a seção I contenha os princípios da teoria ator-rede, um detalhamento das “brincadeiras” é abordado nos textos de apresentação que antecedem cada uma das seções (II, III, IV). A seção II é composta pelos capítulos 3, 4 e 5. Os dois primeiros foram escritos em formato bastante próximo ao de artigos científicos a serem publicados em revistas científicas das áreas de ecologia ou oceanografia. No capítulo 3 são elaborados modelos alométricos específicos para estimativa da biomassa de arbustos de mangue que crescem sob estresse. No capítulo 4 utilizamos uma composição entre os modelos gerados e dados de 15 anos de monitoramento da colonização de uma planície hipersalina por espécies de mangue para calcular o estoque (tCO2.ha-1) e o sequestro de carbono (tCO2.ha-1.ano-1) associado ao processo. No capítulo 5 percebemos que para ter a aparência “natural” apresentada nos capítulos 3 e 4, o carbono é também social. Assim, nesta seção I, o sequestro de carbono acontece nas práticas de pesquisa do laboratório Núcleo de Estudos em Manguezais da Universidade do Estado do Rio de 15 Utilizada para descrever o trabalho de mediação, ou para compor a dimensão não moderna dos estudos científicos, ou para fazer ecologia política, ou para promover a composição progressiva do mundo comum. 28 Janeiro (NEMA/UERJ), com toda a estrutura institucional, material e de pessoal necessárias. Esse sequestro de carbono ocorre em Guaratiba — e não na Baía de Guanabara, por exemplo — principalmente por questões históricas do grupo. Na década de 70, o orientador dessa tese adentrava ludicamente a floresta e, na década de 90, ao fundar o NEMA, tomou-a como sua principal área de estudo. Além disso, os dados de monitoramento utilizados no capítulo 4 fazem parte do projeto do NEMA intitulado "Avaliação da utilização de manguezais como indicadores de variações do nível médio relativo do mar". Este projeto teve início em 1998 e contava comigo como bolsista de iniciação científica. O que existe para além das paredes do laboratório, como a agenda científica global e suas regras e referências para publicação, também se misturam com as medidas tomadas em campo, tornando o resultado natural-social. Na seção III, os valores de sequestro e estoque de carbono, quantificados por diversos laboratórios (como o NEMA) que estudam diferentes biomas, bem como as mudanças de uso da terra quantificadas por meio de técnicas de sensoriamento remoto, irão compor o inventário nacional sobre emissões e remoções de gases causadores do efeito estufa. Identificamos, especificamente no capítulo 6, a contribuição da conversão de áreas de manguezais para as emissões brasileiras, bem como analisamos as controvérsias em torno dessas estimativas, pois elas constituem as verdades científicas a influenciar as decisões nas Conferências das Partes da Convenção do Clima. De que forma os cálculos foram realizados? Quais parâmetros foram considerados? Qual o nível de detalhamento das informações sobre mudança no uso da terra condensadas nos 77 % das 1.879.029 Gg de CO2 emitidas em 2005 (MCT, 2010a)? O que representa essa verdade “cientificamente comprovada”? Se na seção II acompanhamos a constituição de um fato científico moderno (capítulos 3 e 4), que faz parte do processo de tornar real o 'sequestro de carbono em manguezais para a mitigação do aquecimento global', na seção III abriremos a caixa-preta (LATOUR, 2000) de sua utilização mais direta, o inventário nacional de emissões. Tal abertura se deu nos capítulos 6, que observou aspectos técnicos do inventário, e 7, que abordou aspectos da gestão baseada em inventários nacionais. Na seção IV, composta pelos capítulos 8 e 9, as informações dos inventários chegam à Convenção do Clima para fazer com que a mitigação do aquecimento torne-se mais palpável ao debate político internacional, ao mesmo tempo em que esta instituição incentiva mais pesquisas quantitativas — via Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) e transformação das agendas científicas globais (NEVES & LIMA, 29 2012) — e mais estruturas (legislações, mecanismos, instituições), em um ciclo interminável de co-produção científica e política sobre a construção do conhecimento para a resolução do problema (MILLER, 2004). Quando o sequestro de carbono é convertido em unidades de redução de emissões e em créditos de carbono, estes ganham vida nos mercados de carbono e nas estratégias políticas e econômicas dos países. Passam a interferir (positiva e/ou negativamente) na vida de pessoas que vivem em territórios de floresta, na vida dos pesquisadores e técnicos que possuem a expertise para desenvolver mais estudos e publicações, ou atuar em projetos que necessitam de quantificações, na vida dos empresários, advogados, gestores de unidades de conservação, e toda sorte de profissionais habilitados a participar do processo, bem como na vida das pessoas comuns, que poderão sentir-se aliviadas pela redução do desmatamento e pela mitigação do aquecimento global16. Ao final de cada uma das seções (I, II, III e IV), apresentamos um texto de fechamento das mesmas. Na seção IV este texto representa a proposta de um fechamento provisório do coletivo em análise, ou da rede sociotécnica do sequestro de carbono. Se, ao longo dos 9 capítulos buscamos identificar "quantos somos nós" a participar dessa rede (do sequestro de carbono), neste momento de finalização da seção IV refletimos se "podemos viver em conjunto" (LATOUR, 2004). Constatamos ter deixado excluídos para trás, que não couberam ao conjunto em análise, mas reconhecemos que estes (não-humanos e humanos) possuem dignidade ontológica e autorização analítica para retornar ao coletivo, em uma próxima investigação (LATOUR, 2004). Nesse contexto, a sociedade, assim como a natureza, deixou de existir como algo reunido de forma prematura, passando a ser visto como uma entidade em movimento, “posta à nossa frente, e não atrás de nós” (LATOUR, 2012, p.247). Nas reflexões finais, após termos posto a viver em conjunto — na arena (de análise) dessa tese de doutorado, e com os mesmos cuidados — as atuações das associações entre o laboratório científico e seus instrumentos, o Brasil e seu inventário 16 Um exemplo de marketing verde que proporciona essa sensação de "dever cumprido" aos cidadãos comuns é a Banco da Árvore, uma empresa que presta o serviço de contagem e compensação das emissões de carbono oriundas de empresas e pessoas físicas. O banco calcula a quantidade de árvores necessária para neutralizar as emissões e fazem a restauração florestal em locais específicos, como áreas de preservação permanente e matas ciliares degradadas. O custo de R$ 22,10 por árvore, contempla não só a muda, mas também a regulamentação da documentação da área, cercar os limites, estudo florístico, criação das mudas nativas adequadas para região em viveiro, preparo da terra, plantio, adubação, combate a ervas e pragas, monitoramento e realização de relatórios anuais do andamento do Restauro Florestal nos 2 primeiros anos do restauro. Informações como essas foram retiradas do site http://www.bancodaarvore.com.br/ , que na abertura apresenta o slogan "Plante árvores, neutralize suas emissões de carbono e invista em um futuro melhor para o planeta". 30 de emissões, a Convenção do Clima e suas decisões, as instituições e seus mecanismos e os povos das florestas e suas manifestações, concluímos ter satisfeito as preocupações morais levantadas na problemática construída nesta introdução. Defendemos a hipótese de que a redução da desigualdade deve passar por uma modificação da forma de construção do conhecimento sobre a realidade, da qual essa tese pretendeu ser um simples exemplo. Que as árvores tenham morrido não "pela ciência"17, mas por um mundo comum. 17 Esteves cita em sua matéria sobre os “contadores de carbono”, cientistas como nós do NEMA/UERJ: "Desmatar é um dos ofícios de Higuchi, um filho de imigrantes japoneses que nasceu no Paraná e vive há mais de trinta anos no Amazonas. Em nome da ciência, ele já serrou e derrubou 1 500 árvores. Seu objetivo com a chamada “coleta destrutiva” foi pesar árvores e calcular a quantidade de carbono armazenada em cada uma delas. O cálculo serve para aquilatar quanto carbono existe na Amazônia – informação essencial para se entender a influência da floresta no clima da Terra" (ESTEVES, 2011).