Tocqueville e as formas de governo
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Tocqueville e as formas de governo
“Tocqueville e as formas de governo” Rafael Salatini1 1. [historicismo] O clássico tema das formas de governo, que nasceu com Herótodo (e sua famosa discussão dos três reis persas) e passou à filosofia política a partir das obras de Platão e Aristóteles, não arrefeceu na filosofia política moderna, estando presente nas obras de Maquiavel, Bodin, Hobbes, Vico, Montesquieu, Hegel e mesmo Marx, como demonstrou brilhantemente N. Bobbio em seu curso (no Brasil publicado como livro) A teoria das formas de governo na história do pensamento político (1976), oferecido originalmente na Universidade de Turim no ano acadêmico de 1975-1976. Entretanto, nesta obra, não se faz nenhuma referência ao pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), como de resto pouca atenção tem sido dada a este tema em sua vasta obra. Tocqueville escreveu pelo menos duas obras fundamentais do pensamento político do século XIX: os dois volumes de A democracia na América (1835, 1840) e O Antigo Regime e a Revolução (1856). No primeiro empreende-se um abrangente e originalíssimo estudo sobre a vida social e política da insurgente sociedade norteamericana, escrito a partir de uma viagem exploratória feita pelo autor entre maio de 1831 e fevereiro de 1832 nos EUA, juntamente com seu amigo Gustave de Beuamont (com quem escrevera ainda Do sistema penitenciário nos Estados Unidos e de sua aplicação na França, publicado em 1833), dividido em duas partes: o volume I, de caráter descritivo; o volume II, analítico. A segunda obra trata-se de um estudo também profundo e original sobre as causas que levaram à Revolução Francesa. É curioso que Tocqueville até hoje nunca tenha sido considerado sob a perspectiva da teoria das formas de governo, uma vez que o tema não é ausente nem se trata de uma questão menor em seu pensamento político. A questão das formas de governo parece mesmo um tema dos mais importantes tanto em A democracia... quanto em O Antigo Regime..., fornecendo-lhes inclusive os conceitos principais com que se descrevem tanto a vida política americana do século XIX em um quanto a vida política francesa do século XVIII no outro. Espero neste ensaio poder resgatar essa dimensão 1 Doutorando em Ciência Política na FFLCH-USP. 1 esquecida do pensamento tocqueviliano, ainda que só o possa fazer aqui de forma introdutória e incompleta. Tocqueville, como se sabe, é discípulo de Montesquieu (outra influência sua é Guizot, de quem fora aluno na Sourbonne2). A influência do autor de O espírito das leis (1748) em seu pensamento é tão grande que abrange desde sua concepção filosófica mais geral até especificamente a maior parte das categorias conceituais utilizadas em suas obras, embora esta influência não signifique certamente nem uma mera repetição nem uma falta de identidade intelectual própria. A concepção filosófica adotada por Montesquieu – que Tocqueville seguirá – trata-se do historicismo, perspectiva que remontava a uma velha tradição intelectual que inclui em sua fileira nomes como Aristóteles entre os antigos, Agostinho entre os medievais e Maquiavel entre os modernos, e que permanecera praticamente esquecida entre os séculos XVII e XVIII, em função do predomínio do racionalismo contratualista de autores como Hobbes, Espinosa e Locke (e que chegaria até Rousseau e Kant). Embora alguns autores nesse período tivessem permanecido fiéis à filosofia historicista, e críticos ao racionalismo, como é o caso de Vico (que não obstante seria pouco lido até o século XIX), Montesquieu seria o primeiro autor setecentista verdadeiramente influente a basear suas afirmações em fatos históricos e não nos ditames da reta razão – ainda que alguns desses fatos fossem mais fantasiosos que reais (como de resto também eram o Rômulo citados por Maquiavel, o “verdadeiro Homero” de Vico ou o Teseu citado pelo jovem Hegel). O historicismo de Montesquieu seria tão influente que alcançaria tanto autores contratualistas tardios como Rousseau (o primeiro a falar num contrato histórico) e Kant (que escreveria um artigo intitulado “Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita”, em 1784) quanto o maior filósofo historicista moderno, Hegel, que também aproveitaria em sua filosofia do direito as categorias das formas de governo utilizadas pelo pensador francês. Remetendo-se diversas vezes, explicitamente, à influência recebida de Montesquieu – citado em praticamente todas suas obras –, Tocqueville também desenvolve suas idéias políticas à luz de fatos históricos, procurando elementos históricos concretos em que basear seu pensamento político3 em lugar do modelo da geometria que servira a filósofos como Hobbes e Espinosa. Não por outro motivo, para escrever A democracia..., visitou pessoalmente a América, assim como procurou ler arquivos e relatórios históricos sobre seu objeto (citados nas diversas notas de rodapé presentes na obra); já O Antigo Regime.... custou-lhe cinco anos de exaustiva pesquisa histórica e documental em obras históricas e arquivos públicos sobre o século XVIII na França, material que faz questão de mencionar profusamente e cuja importância enaltece desde o prefácio da obra. A respeito do método histórico, comentando um novo livro que pretendia escrever (que viria a ser justamente O Antigo Regime....), escreve o seguinte, numa carta de 26 de dezembro de 1850 ao velho amigo G. Beaumont: “Como se sabe, há muito tempo que estou preocupado com a idéia de empreender um novo livro. (...) Comecei portanto a procurar seu assunto enquanto percorri as montanhas de Sorrente. Tinha de ser contemporâneo e fornecer-me os meios de combinar os fatos com as idéias e a filosofia da história com história em si. Estas são, para mim, as condições do problema. Pensara muitas vezes no Império, neste ato singular do drama ainda sem desenlace que chamam Revolução Francesa. Mas sempre fiquei reprimido pela visão de obstáculos intransponíveis e principalmente pelo 2 Sobre a formação intelectual de Tocqueville, cf. L. Díez del Corral, El pensamiento politico de Tocqueville, Madrid, Alianza, 1989 (402 p.). 3 Sobre o historicismo em Tocqueville, cf., em português, M.G. Jasmin, Alexis de Tocqueville – A historiografia como ciência da política, Rio de Janeiro, Access, 1997 (341 p.). 2 pensamento de que eu daria a impressão de querer fazer livros celebres já feitos. Mas, desta vez, o assunto surgiu aos meus olhos sob uma forma nova que pareceu torná-lo mais abordável. Pensei que não deveria empreender a história do Império e sim tentar mostrar e fazer compreender a causa, o caráter, o alcance dos grandes acontecimentos que formavam os elos principais da corrente desse tempo. Então a narração dos fatos não seria mais a meta do livro. Os fatos só seriam, de certa maneira, a base sólida e contínua sobre a qual apoiar-se-iam todas as idéias que tenho na cabeça, não somente sobre esta época mas também sobre a que a antecedeu e a que a sucedeu, sobre seu caráter, sobre o homem extraordinário que a preencheu, sobre a direção por ela dada ao movimento da Revolução Francesa, à sorte da nação e ao destino de toda a Europa”4. Este trecho é essencial para se entender o historicismo tocquevilliano. Seu núcleo metodológico consiste em “combinar os fatos com as idéias e a filosofia da história com história em si”. Se a filosofia racionalista se baseava somente em idéias e a disciplina histórica somente com fatos, o historicismo pretende oferecer uma ponte para entre ambas. Seu pressuposto básico é que as idéias sem os fatos não passam de fantasia, enquanto os fatos sem as idéias são incompreensíveis. Não se trata portanto, de “empreender a história do Império”, mas “sim tentar mostrar e fazer compreender a causa, o caráter, o alcance dos grandes acontecimentos que formavam os elos principais da corrente desse tempo”. Mas, se o interesse é reunir numa só forma de pensamento idéias e fatos, filosofia e história, tal empreendimento em Tocqueville se faz partindo-se dos fatos para as idéias e não o inverso. São os fatos que dão origem às idéias e não as idéias aos fatos, ou com suas palavras, “os fatos só seriam, de certa maneira, a base sólida e contínua sobre a qual apoiar-se-iam todas as idéias”. Ou seja, trata-se em verdade de um historicismo materialista, e não idealista (para além do seu providencialismo retórico). Com essa convicção, Tocqueville abre o Prefácio que escreve para O Antigo Regime.... com a seguinte frase: “O livro que publico agora não é uma história da Revolução, história que foi feita com demasiado brilho para que eu chegue a sonhar em refazê-la; trata-se de um estudo sobre esta Revolução”5. O modelo desse tipo de abordagem Tocqueville encontrará, como afirma numa carta anterior, de 15 de dezembro de 1850, a L. Kergorlay (tratando ainda do assunto do novo livro), em Montesquieu: “O inimitável modelo deste gênero está no livro de Montesquieu sobre a grandeza e a decadência dos romanos. Nela passamos através da história romana por assim dizer sem pararmos, e contudo percebemos o bastante dessa história como para desejarmos as explicações do autor e compreendê-las”6. 2. [categorias conceituais] Esclarecido o fundamento filosófico do pensamento tocquevilliano, passo diretamente às suas categorias conceituais. No que ao tema das formas de governo, o quadro conceitual que Tocqueville utiliza é emprestado diretamente de Montesquieu. Tanto em A democracia... quanto em O Antigo Regime...., embora não se empreenda em nenhum momento uma apresentação formal de tal quadro, a classificação das formas de governo empregada é a mesma que havia sido desenvolvida em O espírito... (que seria utilizada ainda por pensadores como Rousseau, Kant e Hegel), a qual incluía três 4 Citado em J.P. Mayer, “Introdução”, in A. Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, trad. Y. Jean, Brasília, UnB, 1982, p. 27. 5 A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 43. 6 Citado em J.P. Mayer, “Introdução”, in A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 29. 3 espécies: a república, a monarquia e o despotismo. A república, dizia Montesquieu, é aquela forma de governo em que “todo o povo, ou pelo menos uma parte dele, detém o poder supremo”; a monarquia, “aquela em que governa uma pessoa só, de acordo com leis fixas e estabelecidas”; enquanto, no despotismo, “um só arrasta tudo e a todos com sua vontade ou caprichos, sem leis ou freios”. Montesquieu especifica ainda, na seqüência, que “quando, na república, é o povo inteiro que dispõe do poder supremo, tem-se uma democracia; quando o poder supremo se encontra nas mãos de uma parte do povo, uma aristocracia” (O espírito..., livro II, capítulo I). É este o quadro conceitual que será utilizado por Tocqueville tanto em A democracia... quanto em O Antigo Regime... (e mesmo em obras menores), sem qualquer alteração, seja para acrescentar, diminuir ou mesmo renomear alguma forma. Ainda que existam ao longo de seus escritos outros termos clássicos do debate sobre formas de governo (como oligarquia, tirania ou anarquia), o quadro conceitual geral e operacional utilizado por Tocqueville serão as três formas montesquianas, incluindo as duas subespécies de república. Pode-se ver uso dos três termos monarquia, aristocracia e democracia neste pequeno trecho de O Antigo Regime...: “Os primeiros esforços da Revolução tinham destruído esta grande instituição da monarquia: foi restaurada em 1800. Não foram, como disseram tantas vezes, os princípios administrativos da de 1789 que triunfaram nessa época e depois, mas, ao contrário, os princípios do antigo regime que voltaram todos a imperar e lá ficaram. Se me perguntarem como esta porção do antigo regime assim pôde ser transferida inteiriça na nova sociedade e nela se incorporar, responderei que a centralização não pereceu com a Revolução porque era o próprio sinal desta Revolução, e acrescentarei que quando um povo destruiu em seu seio a aristocracia corre em direção à centralização como atrás de si mesmo. Então é mais fácil jogá-lo neste declive que freá-lo. Em seu seio, todos os poderes tendem naturalmente à unidade e é preciso muita arte para separá-los. A revolução democrática que destruiu tantas instituições do antigo regime tinha, portanto, que consolidar esta unidade, e a centralização encontrava tanta naturalidade seu lugar na sociedade formada pela Revolução que é fácil entender por que a consideram obra sua”7 (livro II, capítulo V). Com relação ao despotismo, escreve mais à frente: “Se quiserem ter uma idéia exata das revoluções que o espírito dos homens pode sofrer devido às mudanças de sua condição, é preciso reler os cadernos da ordem do clero em 1789. Neles o clero mostra-se muitas vezes intolerante e às vezes obstinadamente ligado a alguns de seus antigos privilégios, mas pelo resto e tão inimigo do despotismo, tão favorável à liberdade civil e tão apaixonado pela liberdade política que o terceiro estado ou a nobreza, e proclama que a liberdade individual deve ser garantida não por promessas mas por um procedimento análogo ao do habeas corpus”8 (livro II, capítulo XI). Mas disse que influência não significa repetição e isso aplica ao uso que Tocqueville faz das formas de governo montesquianas (e justifica em si um ensaio exclusivo a respeito do assunto). Enquanto o mundo de Montesquieu era a França absolutista, o mundo de Tocqueville trata-se do século que recém assistira a fenômenos políticos tão grandiosos quanto a independência dos EUA e a Revolução Francesa, aspectos históricos que, se chegaram a impressionar mesmo um pensador ultraracionalista como Kant, não deixariam de deixar uma marca profunda em praticamente todos os pensadores historicistas (de Burke a Marx). Assim, o resultado mais evidente dessas mudanças é a importância dada a cada forma. A categoria central para 7 8 A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 94. A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 125. 4 Montesquieu era a monarquia constitucional (cujos exemplos são a França e a Inglaterra de sua época), ao passo que a república (cujos exemplos são as cidades antigas: Atenas, considerada uma república democrática, e Roma, considerada uma república aristocrática) e o despotismo (cujo exemplo modelar é a China) serão consideradas categorias auxiliares. Tocqueville imprimirá outra ordem à disposição da importância das formas de governo, alterando a posição de dois termos: embora o despotismo (cujo exemplo maior continua sendo a China) continue sendo uma categoria auxiliar, diminui a importância da monarquia (cujo exemplo igualmente continua sendo as monarquias absolutas européias) e aumenta a da república (cujos exemplos deixam de ser antigos e passam a ser moderno: a França, como república aristocrática, e os EUA, como república democrática). Assim, se a ordem de importância das formas de governo para Montesquieu seguia o sentido despotismo < república < monarquia, para Tocqueville seguirá o sentido despotismo < monarquia < república, constituindo uma nova ordem. Sobre a perda de importância da monarquia em função do ganho de importância por parte da república, afirma-se o seguinte, no livro I de A democracia...: “Hoje em dia, o princípio republicano reina na América como o princípio monárquico dominava na França sob Luís XIV. Os franceses de então não eram apenas amigos da monarquia, mas, ainda, não imaginavam que se pudesse colocar alguma coisa em seu lugar; admitiam-na, pois, assim como se admitem o curso do sol e as vicissitudes das estações. Entre eles, o poder real não tinha mais defensores que adversários. É assim que a república existe na América, sem combate, sem oposição, sem prova, por um acordo tácito; uma espécie de consensus universalis”9 (segunda parte, capítulo X). A monarquia para Tocqueville tornara-se um fenômeno do passado, enquanto a república tratava-se do fenômeno político mais espetacular do presente, sobretudo na América independente (mas também na Europa pós-Revolução Francesa). Mas, se tanto na América quanto na Europa a república entrava em cena substituindo a monarquia, em ambos os continentes o fenômeno não possuía exatamente as mesmas características. Uma das marcas do pensamento historicista é justamente a relevância destacada para os aspectos particulares. Enquanto o pensamento racionalista, de Platão a Kant, sempre se dedicou à perscrutação do Estado como uma categoria universal, os autores historicistas se dedicarão à argumentação das diferenças marcantes entre os diversos Estados (como Maquiavel argumentará acerca das diferenças entre a Itália e a França, e o jovem Hegel entre a França e a Alemanha). Em A democracia..., Tocqueville não se cansa em nenhum momento de apontar as diferenças entre os Estados Unidos e a França (e por vezes à Inglaterra). Aludirá, assim, entre as inúmeras diferenças, ao fato de que, dado seu forte passado monárquico, mesmo que a França se torne republicana, a república ali terá sempre fortes traços monarquistas – entre os quais a centralização do poder (tema fundamental de O Antigo Regime...); ao passo que os EUA, não possuindo passado monárquico (exceto aquele longínquo que se liga à antiga metrópole), dificilmente se tornariam uma monarquia. Um trecho de A democracia... destaca a distância entre ambas as nações: “Se, hoje em dia, um partido decidisse fundar a monarquia nos Estados, estaria numa posição ainda mais difícil que a daquele que desejasse proclamar desde logo a república na França. A realeza não encontraria a legislação preparada de antemão para ela, e seria então, bem realmente, que se veria uma monarquia rodeada de instituições republicanas. O princípio monárquico penetrará com igual dificuldade nos costumes dos americanos. Nos Estados Unidos, o dogma da soberania do povo não é, de maneira 9 A. Tocqueville, A democracia na América, trad. N.R. Silva, Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1987, p. 305. 5
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