universidade federal do rio de janeiro centro de ciências da saúde
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA Nathalia Ramos da Silva INTERAÇÕES EM UMA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA: um estudo sobre a gestão das emoções RIO DE JANEIRO 2014 Nathalia Ramos da Silva INTERAÇÕES EM UMA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA: um estudo sobre a gestão das emoções Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Saúde Coletiva. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rachel Aisengart Menezes RIO DE JANEIRO 2014 iii Agradecimentos Primeiramente gostaria de agradecer a Rachel Aisengart Menezes, minha orientadora, não só pela competência e seriedade, mas por sua dedicação constante ao longo dos dois anos de desenvolvimento desta dissertação. Agradeço a disponibilidade em compartilhar seus conhecimentos, sua rica biblioteca e muitas vivências. Às professoras Claudia Rezende e Jaqueline Ferreira, pelas importantes contribuições para o desenvolvimento deste estudo. Aos professores, Martha Moreira, Octavio Bonet e Veriano Terto, por seu aceite em participar da banca examinadora. Às colegas Ângela Speroni, Joyce Flores e Patrícia Barbosa, pelo companheirismo nesta jornada. À amiga Flavia Teixeira, um presente que recebi neste Mestrado, uma amizade única, sem suas longas conversas não teríamos chegado até aqui. Aos funcionários do IESC, Fátima Gonçalves, Nadja de Oliveira, Roberto Unger, pela atenção e dedicação de sempre. À Valdemir Santana, “o Dentinho”, pela ajuda com as cópias do material para estudo. À direção e às chefias da UTI do HUGG, pela disponibilidade e atenção, pela confiança, ao permitir a realização desta pesquisa. Aos profissionais e pacientes da UTI, por compartilharem suas emoções. Agradeço especialmente à enfermeira Valéria Belo, que foi minha inspiradora, para desenvolver o estudo que deu origem a esta dissertação. À amiga Hildeliza Salles, pela incrível ajuda com seu inglês impecável. Aos meus amigos, por entenderem minha ausência em muitos momentos. Aos meus avós, Benícia Marinho e José Lourenço da Silva, pela torcida e carinho de sempre. Aos meus avós, Irene Ramos (in memorian) e Waldyr Ramos (in memorian), sei que estarão torcendo por mim, seja onde estiverem. Por último e não menos importante, aos meus pais, Eliane Ramos e Gerson Marinho, e à minha irmã, Bruna Ramos, que são a base de tudo. Sem eles nada disso seria possível. Especialmente à minha mãe, pelo tempo gasto lendo meu trabalho, corrigindo e iv ajudando a construir essa dissertação. Ao meu pai, pelas traduções e auxílios com os ajustes nos programas de computador. v Um homem livre pensa em tudo menos na morte, e sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida. (Baruch Spinoza) vi RESUMO SILVA, Nathalia Ramos. Interações em uma Unidade de Terapia Intensiva: um estudo sobre a gestão das emoções. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Esta dissertação objetivou apreender a gestão das emoções dos profissionais de uma unidade de terapia intensiva (UTI), de hospital público universitário da cidade do Rio de Janeiro. A UTI é uma unidade hospitalar que foi criada para o atendimento de enfermos muito graves, com risco de vida. Para tanto, este setor conta com assistência médica e de enfermagem ininterruptas, com equipamentos específicos, recursos humanos especializados e acesso a aparelhagem sofisticada, tanto destinada ao diagnóstico quanto à terapêutica e manutenção da vida. Para realizar este estudo foi empreendida observação etnográfica na UTI do HUGG, totalizando 356 horas de observação, das interações entre os diferentes atores sociais: pacientes, seus familiares e profissionais de saúde. A rotina deste setor é organizada de modo a manter controle das funções vitais do doente, que é monitorizado por equipamentos eletrônicos. Trata-se de uma unidade que busca controlar a doença e a morte, sempre que possível. Estudos empreendidos no setor evidenciaram um modo característico de gestão das emoções, de equipes intensivistas. Há restrito espaço para a expressão de sentimentos na unidade, mas certas situações provocam uma emergência emocional, tanto da parte de enfermos, de seus familiares ou dos profissionais. Estes tipos de situações geralmente provocam reações nas equipes: a morte de um paciente, quando não esperada; sobretudo quando o enfermo é jovem ou quando ele permanece internado por muito tempo no setor, entre outras. Como a rotina da unidade não deve ser perturbada, estratégias são construídas e acionadas, para lidar com estas situações. O estudo evidenciou o recurso ao humor, quando vii eufemismos e brincadeiras emergem, para aliviar a tensão que porventura tenha se instalado no ambiente da UTI, setor em que a morte é uma presença cotidiana. Palavras-Chave: UTI. Emoções. Profissionais de Saúde. Vida/Morte. Decisões. viii ABSTRACT SILVA, Nathalia Ramos. Interações em uma Unidade de Terapia Intensiva: um estudo sobre a gestão das emoções. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. The Intensive Care Unit (ICU) is a hospital unit where people are admitted for varying lengths of time because their illness or injuries may be life-threatening and they need intense support while they are treated, constant monitoring and 24-hour medical and nursing assistance that cannot be performed on general wards. The routine of this unit is organized in order to maintain the control of the vital functions in critically ill patients. For these reasons, ICU are recognized as stressful environments. This study aimed to report the healthcare professionals’ perceptions in the ICU in a university–affiliated hospital in the city of Rio de Janeiro and their coping mechanisms to deal with the emotions when patients die. This study was conducted to undertaken ethnographic observation in the HUGG ICU, with the total of 356 hours of observation of the interactions among different people: healthcare professionals, patients and their families. Studies undertaken in the unit showed that everyone deals with death differently. Defensive distancing techniques support continuing function but raise secondary adaptive problems. In spite of the limited expression of feelings in this unit, some situations often causes reactions on people: the patient’s death while not expected, especially when the patient is young or when he remains for a long time in this unit, the constant health improvements and deteriorations, trigger emotional emergency on patients, their families and professionals. In fact, emotions of patient, family, ICU doctors, nurses, and other personnel occurs simultaneously, interacting in subtle yet powerful ways. The study showed that the use of humor, with ix euphemisms and jokes, relieves tension that may have been installed in the ICU since they have to deal with death and bereavement everyday. Keywords: ICU. Emotions. Health Professionals. Life/Death. Decisions. x LISTA DE SIGLAS AMIB – Associação de Medicina Intensiva Brasileira CC – Centro Cirúrgico CCBS – Centro de Ciências Biológicas e da Saúde CCIH – Comissão de Controle de Infecção Hospitalar CEP – Comitê de Ética em Pesquisa CP – Cuidados Paliativos CTI – Centro de Tratamento Intensivo DPOC – Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica FPTC – Fora de Possibilidades Terapêuticas de Cura HD – Hemodiálise HIV - sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana, causador da AIDS HUGG – Hospital Universitário Gaffrée e Guinle IOT – Intubação Orotraqueal LCD – Display de Cristal Líquido, do inglês, Liquid Crystal Display NEFRO – Nefrologia PCR – Parada Cardiorrespiratória TC – Tomografia Computadorizada TQT – Traqueostomia UTI – Unidade de Terapia Intensiva VM – Ventilação Mecânica VNI – Ventilação Não Invasiva xi SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 1. A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA 20 1.1. PERSPECTIVA TEÓRICA: MODELOS DE MORTE 1.2 UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA: HISTÓRICO E FUNCIONAMENTO 1.3 TERAPIA INTENSIVA NO BRASIL 20 24 26 2. METODOLOGIA DE PESQUISA 31 2.1. DUPLA IDENTIDADE DA PESQUISADORA 33 3. A UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO GAFFRÉE E GUINLE 36 3.1 DESCRIÇÃO DO SETOR 3.2 ROTINA DE TRABALHO DA UNIDADE 36 40 4. SITUAÇÕES OBSERVADAS 43 4.1. A “HÓSPEDE” ALICE 4.2. “DE VOLTA PARA CASA” 4.3 “AQUI DENTRO”, “LÁ FORA” 4.3.1. “TUDO É MUITO DIFÍCIL LÁ FORA” 4.4 “SE PARAR, PAROU”: SPP 4.5. “A MULHER ERA UMA BRUXA” 43 49 57 66 72 81 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 85 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 90 GLOSSÁRIO 98 APÊNDICE I – LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO 102 xii Introdução Sou formada em Fisioterapia (UFRJ 2007) e desde então atuo em Unidades de Terapia Intensiva (UTI)1. Em 2010 ingressei na UTI do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) por concurso público. Atualmente ocupo a posição de liderança da equipe da fisioterapia do setor. Conversas com colegas da equipe de enfermagem em plantões na UTI foram fundamentais na elaboração do projeto desta investigação. Em diversas ocasiões, enfermeiros compartilharam suas dificuldades emocionais, no acompanhamento do processo do morrer. Eles também expressaram seu incômodo, com seus limites, por não poderem modificar as condutas na assistência ao paciente “fora de possibilidades terapêuticas de cura” (FPTC)2, com o objetivo de propiciar conforto no término de sua vida. A partir destes relatos, defini o objeto de investigação, com o intuito de apreender a gestão das emoções dos profissionais de UTI. Para tanto, analiso diversas situações observadas no cotidiano dos intensivistas, com base em referencial teórico das ciências sociais, especialmente da antropologia da saúde/doença, da morte e da sociologia das profissões. O presente estudo se insere no conjunto de estudos das ciências sociais dedicado à apreensão das diferentes formas de gestão do fenômeno saúde/doença. As ciências sociais têm desenvolvido relevantes contribuições no campo de investigações dirigido ao entendimento dos processos saúde/doença (LANGDON et al., 2012, p. 63). O que a perspectiva sociológica objetiva, nestes estudos, é uma busca de entendimento acerca dos modos como se processa a afirmação da racionalidade biomédica, em contraste com as dimensões holísticas das representações ou das vivências dos eventos da saúde/doença (DUARTE, 2003, p. 177). Parte-se aqui do pressuposto de que, ao analisar as práticas e os discursos de profissionais de saúde de determinado setor hospitalar, é possível alcançar uma compreensão das representações de pessoa e indivíduo ali vigentes. Indo além, considera-se que é possível apreender os valores atribuídos à vida/morte, saúde/doença e sofrimento, pelos diferentes atores sociais envolvidos na gestão dos cuidados. 1 2 A partir daqui passo a me referir à Unidade de Tratamento/Terapia Intensiva como UTI. Uso sempre FPTC em referência a “fora de possibilidades terapêuticas de cura”, a partir daqui. 13 O campo de estudos da antropologia da saúde3 se constituiu nos anos 1960 nos Estados Unidos, como ramo aplicado da antropologia geral, fortemente associado à epidemiologia e à clínica. Em linhas gerais, dedicou-se ao estudo da incidência e distribuição das doenças, aos cuidados em instituições médicas, aos problemas de saúde e à etnomedicina. Young (1982) apontou três razões sobre o desenvolvimento da Antropologia Médica nos Estados Unidos: uma relacionada à emergência de um discurso antropológico sobre a enfermidade; a outra ligada às novas oportunidades de trabalho, proporcionadas pelos esforços dos clínicos, insatisfeitos com o reducionismo biológico, o que propiciou a inclusão de antropólogos junto à clínica e nos programas de atenção primária e familiar. Por último, o alto estímulo financeiro proporcionado aos cientistas sociais interessados nos temas médicos (CANESQUI, 1994, p. 15). Este campo busca rastrear as abordagens em torno da temática do sofrimento e da emoção. Desde a constituição da área, tratava-se de questionar o estatuto das categorias saúde, doença, dor e sofrimento. O corpo, o sofrimento e a emoção, ao invés de se constituírem como objetos delimitados e circunscritos, como pretende o positivismo das ciências biológicas e psicológicas, demonstraram, na perspectiva antropológica, sua inelutável abrangência como fenômenos sociais, avessos à circunscrição. O campo nasce, assim, do que se configurou como um embate com a (poderosa) área biomédica, e de uma tentativa de se posicionar em relação às verdades produzidas com seu saber, e institui com suas práticas. Uma boa parte do esforço fundante se concentrou na oposição ao reducionismo biomédico e procurou em múltiplas frentes desconstruir a arraigada percepção de uma “naturalidade” das experiências do adoecimento (e de suas terapêuticas) (SARTI, 2010, p. 201). No campo da Antropologia da Saúde não houve uma preocupação de definir sofrimento, dor e emoção como objetos específicos de análise, mas de situá-los em uma tentativa mais ampla de demarcação de uma perspectiva de análise antropológica das 3 Há uma polêmica acerca da nomenclatura do campo – antropologia médica, antropologia da saúde, antropologia e saúde -, que reflete os dilemas desse campo híbrido, não apenas no Brasil (SARTI, 2010, p. 200). Na França, a Antropologia da Saúde ou da Doença é considerada uma disciplina bastante recente. Tanto uma como outra denominação privilegiam o significado ou as representações da doença, sua causalidade, as medicinas tradicionais e a medicina moderna. Embora esteja em expansão no Brasil o interesse na pesquisa de temas relacionados à antropologia e saúde, inexiste ainda o consenso dos antropólogos de constituir esta subárea de conhecimento. Tanto é que nos anos de 1970 e 1980 a temática abordada pelos pesquisadores assumiu diversas denominações: antropologia da saúde, antropologia nutricional, antropologia da ou e saúde e medicina, antropologia médica, o desvio, as aflições, perturbações físico-morais, pessoa, corpo, sob as quais configuram-se distintos enfoques das relações da antropologia com as ciências médicas ou interpretações sobre a doença (CANESQUI, 1994, p. 16). 14 perturbações e aflições de diferentes ordens, às quais estão associados esses fenômenos. Nesse caso, em face das características do campo biomédico, ao qual se contrapõe essa perspectiva e que, pelo imperativo da “objetivação”, fragmenta, recorta e esquadrinha seu objeto, reduzindo-o, impôs-se a necessidade de uma estratégia analítica, que implicou um olhar para a totalidade, por meio dos recursos da etnografia (SARTI, 2010, p. 205). No Brasil, a pesquisa antropológica em saúde cresceu a partir de estudos sobre vários temas, como medicina popular, “nervos”, cultura da psicanálise, mudança nas práticas tradicionais, ideologias e representações, bem como saúde indígena. As primeiras revisões bibliográficas sobre esse campo de conhecimento (QUEIROZ & CANESQUI, 1986a, 1986b CARRARA, 1994) identificaram as pesquisas como “antropologia da medicina” ou das medicinas, quando considerado o foco em estudos das medicinas populares, tradicionais, “religiosas”, “eruditas”, “medicina oficial moderna” etc., e salientaram a necessidade de desenvolvimento de paradigmas capazes de analisar a subordinação ao modelo capitalista de processos sociais locais associados à saúde. Essas resenhas também afirmaram que paradigmas alternativos à abordagem biológica são fundamentais. Compartilhando esta perspectiva, os antropólogos que pesquisaram o campo da saúde indígena e dialogaram com a biomedicina e as políticas públicas argumentaram em prol da importância dos fatores sociais e culturais na produção ritual do corpo, nos padrões de doença e na cura (BUCHILLET, 1991; VERANI & MORGADO, 1991) (LANGDON et al., 2012, p. 59). Como todas as instituições públicas na cultura ocidental moderna, as que se ocupam da medicina e da saúde sofrem os efeitos da “racionalização” instrumental, baseada na segmentação dos saberes e domínios de prática. Tal organização tem implicado na criação de serviços cada vez mais especializados, em que prevalece a atenção a dimensões isoladas dos “doentes” ou das “doenças”. A segmentação dos domínios de saber é um dos estímulos originais ao que se veio a chamar de “especialização” médica, reproduzindo no nível das técnicas e da organização da prática médica, o efeito de dissolução da totalidade da experiência da saúde/doença. As UTIs parecem representar a forma mais aguda desta tendência, no radical isolamento a que submetem seus usuários, em circunstâncias e condições frequentemente vividas ou representadas como “desumanas” ou “despersonalizantes”. Parte das críticas crescentes a esse efeito se fundamenta justamente na linguagem de defesa da “pessoa” ou da “personalização” – ou 15 seja, de uma atenção à totalidade ou singularidade do doente e de sua vivência (DUARTE, 2003, p.178). Na sociedade ocidental moderna, os estudos antropológicos acerca dos processos saúde/doença se associam ao conjunto dedicado à temática da Morte. Como outros fenômenos da vida social, o processo do morrer pode ser vivenciado de distintas formas, segundo os significados compartilhados socialmente em torno desta experiência. O morrer não é um fato biológico, mas um processo construído socialmente. Neste sentido, a morte não se distingue de outras dimensões do universo das relações sociais e, em cada momento histórico, há uma produção de práticas e retóricas que constroem significados. Pode-se afirmar que há uma via de mão dupla: o contexto modela os discursos e estes reconfiguram o próprio contexto social (MENEZES, 2006, p. 18). Além dos campos previamente mencionados, cabe acrescentar a perspectiva da antropologia das emoções. A análise das emoções ganhou força na antropologia com o desenvolvimento da abordagem interpretativa na década de 1970 nos Estados Unidos. As emoções passam a ser tomadas como um idioma que define e negocia as relações sociais entre uma pessoa e as outras. As emoções gozam de um status ambíguo como objeto de estudo das ciências sociais. Sua representação pelo senso comum ocidental como um fenômeno pertencente à esfera do individual e à esfera do natural parece ter contribuído para situá-las no polo “excluído” das duas oposições fundadoras das ciências sociais: indivíduo-sociedade e natureza-cultura (COELHO, REZENDE, 2011, p.7). O estudo antropológico das emoções passou a enfatizar o elemento do contexto em que se manifestam os conceitos emotivos, buscando ir além das relativizações para analisar sob um ponto de vista pragmático as situações sociais específicas em que eles são expressos (REZENDE, COELHO, 2010, p. 14). O campo da Antropologia das Emoções estruturou-se não apenas com uma variedade de estudos etnográficos, como também com um conjunto de questões teóricometodológicas que buscavam fornecer instrumentos para a comparação. Das relativizações iniciais passou-se para um esforço maior em mostrar a dimensão micropolítica das emoções e revelou como são mobilizadas em contextos sempre marcados por relações e negociações de poder em vários níveis. Recentemente este tema apresenta uma consolidação, como área autônoma de investigação e de elaboração teórica, com ênfases diferenciadas sobre o foco da atenção e análise, uma vez que a dimensão emotiva é 16 considerada como uma esfera central, não somente na vida dos sujeitos, como da estrutura que rege o funcionamento das instituições (REZENDE, COELHO, 2010, p. 15). No Brasil, as emoções também aparecem em estudos das Ciências Sociais, destacando-se os estudos de Roberto DaMatta, que analisam como as formas de expressão das emoções se ajustam às diferenças entre espaços públicos e privados. Gilberto Velho (1981, 1986) e Luiz Fernando Dias Duarte (1986) são apontados como figuras de referência, por seus estudos sobre os modos particulares pelos quais as emoções são expressas nas camadas médias e populares. Claudia Rezende dedicou-se ao tema da amizade em perspectiva comparativa, entre os universos londrino e carioca (2002a, 2002b), ressaltando a relação entre amizade, emoção e hierarquia. Em estudos recentes, analisou a elaboração subjetiva da identidade brasileira entre professores universitários que estudaram no exterior, destacando o aspecto emotivo presente nessa construção identitária, além das emoções ligadas à experiência de ser estrangeiro (2009). Maria Claudia Coelho explora a temática desde seus estudos sobre idolatria, em que trabalhou a relação entre amor e fascínio na experiência do fã (1996, 1999), além de sua pesquisa sobre a dádiva no universo das camadas médias cariocas em que a emoção foi abordada à luz de duas perspectivas: a tensão entre a obrigatoriedade e espontaneidade (2006a). Mais recentemente, investiga a relação entre emoção e violência, com foco em relatos de experiências de vitimização em assaltos a residências (2006b, 2009) (COELHO, REZENDE, 2011, p. 19). Estudos de Rachel Aisengart Menezes (2004, 2005, 2006) são dedicados à análise do morrer no hospital e aos modos de gestão das emoções dos profissionais de saúde, frente à morte e ao sofrimento, a partir de suas pesquisas etnográficas em duas unidades hospitalares públicas, uma UTI e um hospital de cuidados paliativos, voltado ao atendimento de pacientes com câncer, considerados FPTC. No campo da sociologia das profissões, teóricos (GOODE, 1969; MOORE, 1970; WILENSKY, 1970; LARSON, 1977; FREIDSON, 1978) concordam que dois atributos são fundamentais e inquestionáveis para definir uma atividade humana como “profissional”: um corpo específico de conhecimentos e a orientação para o ideal de serviços. Tais atributos são adotados por Machado (1991), em seus estudos sobre profissões. A autora considera a medicina uma profissão, enquanto farmacêuticos e enfermeiros são classificados como “semiprofissões”. Tal posicionamento é justificado por não haver um corpo específico de conhecimentos nem um mercado de trabalho inviolável, 17 como ocorre com os médicos. Já a sociologia e a psicologia seriam categorias profissionais em processo de profissionalização, que ainda não adquiriram status e perfil de uma “profissão sólida” (MACHADO, REGO, 1996, p.123). O estudo sobre e na UTI é desenvolvido a partir das perspectivas da antropologia da saúde, da morte, das emoções e, também, da sociologia das profissões. A investigação sobre esta unidade voltou-se a compreender como se produz, na prática cotidiana dos profissionais de saúde de uma unidade hospitalar muito específica, a busca de resolução da equação entre as duas dimensões constitutivas dessa mesma prática, diante de situações que envolvem decisões de vida, morte e sofrimento. A UTI é um espaço social no qual a dupla dimensão estruturante da prática médica – o cuidado e a competência – está criticamente implicada no processo decisório (MENEZES, 2006 p. 20). Os estudos de alguns pesquisadores constituem um referencial de extrema relevância no desenvolvimento desta pesquisa. Assim, Glaser e Strauss (1965), em um estudo que analisa as interações sociais na expectativa de morte, de moribundos, seus familiares e profissionais de saúde, comparando as mobilizações dos atores envolvidos. Jane Seymour (2001) em investigação realizada em duas UTIs na Inglaterra examina a reificação da “morte natural” e enfoca a polarização entre morte tecnológica e “natural”. Seu estudo investiga casos relacionados às experiências de pessoas próximas a doentes que estiveram internados em UTI. Graça Carapinheiro (2005) analisa o hospital e, ao mesmo tempo a medicina, os profissionais e os doentes, a fim de descobrir os conteúdos dos seus saberes, os seus referentes simbólicos e os sentidos das suas práticas sociais, que tornam possível compreender porque a realidade hospitalar se compõe de realidades sociais tão diversas. Rachel Menezes (2006), em sua pesquisa etnográfica na UTI de um hospital público universitário do Rio de Janeiro, analisa de que forma, na prática cotidiana dos profissionais de saúde, são tomadas as decisões referentes à doença, sofrimento e morte dos doentes internados. Esta dissertação está dividida em três partes. A primeira explicita a construção do objeto de pesquisa, com uma descrição das características de uma UTI, de sua estrutura física e normas de funcionamento. Ainda nesta seção há uma apresentação da metodologia utilizada, com uma reflexão sobre a dupla identidade da pesquisadora, ao empreender investigação no local em que trabalha. Na segunda seção há uma descrição do início das observações e da rotina de trabalho da UTI do HUGG. Em seguida são apresentadas 18 diversas situações, que foram observadas no cotidiano da unidade, com o objetivo de refletir sobre a gestão das emoções dos atores sociais envolvidos no setor, com foco em torno dos profissionais de saúde. Por fim, a dissertação é concluída com reflexões acerca do processo vivenciado pela fisioterapeuta/pesquisadora, e sobre o término do período em que atuou como investigadora. 19 1. A construção do objeto de pesquisa 1.1. Perspectiva teórica: modelos de morte A morte é uma presença constante na UTI e os profissionais estão em contato rotineiramente com o processo do morrer. Por vezes, os recursos técnicos, o saber e a competência do intensivista são limitados, diante do avanço da enfermidade, sobretudo quando a cura não é mais possível em alguns casos, como quando o paciente recebe o diagnóstico de FPTC. Ariès (2012), historiador pioneiro na investigação sobre as mudanças nas atitudes coletivas frente à morte no Ocidente, pesquisou e descreveu os diferentes períodos históricos, e as transformações que ocorreram no tempo. A partir desta abordagem, o autor formulou modelos de morte, como tipos ideais weberianos 4. Nesta forma de modelização, a “morte domada”, característica da Alta Idade Média, era ritualizada, comunitária e enfrentada com dignidade e resignação. A morte era uma cerimônia pública, confiada à Igreja, esperada no leito e organizada pelo próprio moribundo, que conhecia e presidia seu protocolo. Por se tratar de um evento público, o quarto do enfermo era local em que se entrava livremente. O moribundo morria cercado por familiares, amigos, vizinhos e crianças. O ritual da morte era aceito e cumprido, de modo cerimonial, sem qualquer caráter dramático ou gestos de emoção excessivos (ARIÈS, 2012, p. 39). A “morte de si” surgiu nos séculos XI-XII e se estendeu até o século XIV. Foi marcada pelo reconhecimento da finitude da própria existência da pessoa e coincidiu com o surgimento de um sentimento mais pessoal e interiorizado da morte. A morte permanecia no leito do moribundo, porém com um caráter dramático, com uma carga emocional que antes não possuía. O enfermo prossegue no centro da ação, que não só preside como anteriormente, mas também determina como deve ocorrer. Durante a segunda metade da Idade Média se deu uma aproximação entre três categorias de representações mentais: as da morte, do reconhecimento por parte de cada indivíduo de sua própria biografia e do apego apaixonado às coisas e aos seres. A morte tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência de si (ARIÈS, 2012, p. 57). 4 Um conceito formulado por Max Weber sobre um fenômeno, a partir de suas características mais gerais. 20 A partir do século XIX e até o século XX, a “morte do outro” se tornou dramática e insuportável, dando origem a um processo de mudança que resultou no afastamento social do moribundo e do término da vida. A morte é vista como uma ruptura e não mais com familiaridade; passa a contar com agitação, decorrente de emoção, choro e gestos. Essa expressão da dor dos sobreviventes se deve a uma nova intolerância em relação à separação; a simples ideia da morte comove. As grandes mudanças ocorridas neste período são: a complacência com a ideia da morte e a relação entre o moribundo e sua família. Os familiares aceitam com dificuldade a morte do outro; não é mais temida a própria morte, mas a do outro (ARIÈS, 2012, p. 67). A partir do século XVI ocorreu, em processos concomitantes e convergentes, uma expansão do poder médico institucional e a consolidação da família como núcleo de relações afetivas. Este processo conduziu às famílias, no século XIX, a delegarem os encargos dos cuidados dos moribundos às instituições médicas, então fortalecidas e reorganizadas. Houve, pois, um deslocamento do lugar da morte: das casas, com a participação da comunidade, para o hospital, lugar dos médicos. A partir da consolidação da instituição hospitalar – medicamente administrada e controlada – iniciou-se um processo de medicalização do social, que foi ampliado no século XIX, sendo extensa e profundamente desenvolvido durante o século XX. A medicina, seu saber e sua instituição tornam-se referências centrais no que se refere a saúde, vida, sofrimento e morte, surge o modelo de “morte moderna” (MENEZES, 2004, p. 28). A morte, tão presente e familiar no passado, torna-se vergonhosa e objeto de interdição – a “morte interdita” -. Aqueles que cercam o moribundo tendem a poupá-lo e a ocultar-lhe a gravidade de seu estado. Esse sentimento foi superado por outro, característico da modernidade: evitar não somente ao moribundo, mas à sociedade, a perturbação e a emoção excessivamente fortes, insuportáveis, causadas pela simples presença da morte em plena vida feliz (ARIÈS, 2012, p. 84). A morte no hospital não é mais uma cerimônia pública e ritualística presidida pelo moribundo, em meio a seus parentes e amigos. Na maioria dos casos, o enfermo está inconsciente. Ela se torna um fenômeno técnico, dividido, parcelado em pequenas etapas, que substituíram e apagaram sua grande ação dramática (ARIÈS, 2012, p. 86). A visão da equipe de saúde e dos familiares sobre esse processo pode variar, segundo diferentes interpretações e percepções (SEYMOUR, 2001, p. 15). 21 Diante desse modelo, a morte passou a ser cada vez mais empurrada para os bastidores da vida social, em um processo que integrou o impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significou que eles também passaram ser ocultados da vida social, tornando-se isolados. Segundo Elias (2001, p.66), essa transformação no comportamento social em torno do morrer acarretou uma série de mudanças, alterando comportamentos e sentimentos, o que gerou um processo de internalização individual e o consequente aumento do autocontrole. O sentimento amplamente difundido nas sociedades ocidentais modernas com seus membros altamente individualizados – de que cada um existe apenas para si mesmo, independente de outros seres humanos e de todo o “mundo externo” – em geral acaba prevalecendo, e com ele a ideia de que uma pessoa deve ter um sentido exclusivamente seu (ELIAS, 2001, p. 65). Em síntese, Elias (2001, p. 23) refere que a vida na sociedade medieval era mais curta; os perigos, menos controláveis; a morte, muitas vezes mais dolorosa; o sentido de culpa e o medo da punição depois da morte, a doutrina oficial. Porém, em todos os casos, a participação de outros na morte de um indivíduo era mais comum. A partir do século XIX, por vezes, sabe-se aliviar as dores da morte; as angústias de culpa são mais plenamente recalcadas e talvez dominadas. No século XX, a morte torna-se um tabu, de modo a acarretar uma interdição à demonstração de sentimentos (ELIAS, 2001, p. 36). Uma morte aceitável é aquela que pode ser tolerada pelos que sobrevivem. Ariès (2012, p. 87) afirma que a emoção deve ser evitada, tanto no hospital quanto na sociedade, de modo geral, e só se tem o direito de chorar quando ninguém vê nem escuta. Trata-se de um luto solitário e envergonhado, o único recurso quando a morte se torna tabu. No entanto, sabe-se que no Brasil ainda existem pessoas contratadas para expressar emoções em velórios e enterros – as carpideiras -, o que evidencia as diferenças entre os contextos. De acordo com Seymour (2001, p. 19), a principal característica do hospital do século XX é o modo como ele assumiu o cuidado, na gestão do morrer dos pacientes, juntamente com o controle e a definição da morte. A morte hospitalizada é caracterizada pela perda da possibilidade de escolha individual, pela presença do medo, pelo isolamento da família e amigos, pela ausência de cuidadores, pela preeminência da alta tecnologia e do prolongamento do morrer. 22 De acordo com Seymour (2001), Menezes (2006) e Ariès (2012), a UTI é um local exemplar do modelo da “morte moderna”, em que o processo de morrer é medicalizado, controlado pela equipe de saúde, sem contar com a opinião do doente. A expressão dos sentimentos é ocultada, tanto do paciente e seus familiares como dos profissionais, que tendem a manter permanente autocontrole das emoções. Lofland (1978) apresenta seis definições características do modelo de “morte moderna”: alta tecnologia da medicina, detecção prévia da doença, definição complexa da morte, alta prevalência da doença crônica, baixa incidência de doenças fatais e intervenção ativa no processo do morrer. O modelo de “morte moderna” implica na percepção do enfermo, por parte dos profissionais de saúde, como partes e não como um todo. A preeminência é concedida ao tratamento médico, à cura e aos resultados de exames. Glaser e Strauss (1965) identificaram uma trajetória incerta do processo de morrer de doentes internados em hospitais. No entanto, esta não é uma questão valorizada no atendimento médico e no trabalho da equipe da UTI. A partir dos anos 1960 emergem críticas à excessiva racionalização da assistência em saúde (GLASER e STRAUSS, 1965, 1968; ELIAS, 2001; MENEZES, 2006; ARIÈS, 2012), sobretudo ao modelo de morte presente no hospital – “morte moderna”. Diante das críticas a essa racionalização surgem novas propostas, a fim de propiciar uma “boa morte” dos enfermos. O modelo de “morte contemporânea” - assim denominado por estudiosos das ciências sociais dedicados ao tema – consiste em resultado destas novas propostas de assistência ao processo do morrer, como os cuidados paliativos e os programas de humanização da assistência em saúde, alguns implantados em UTIs, a partir da preocupação com a produção de uma morte humanizada e aceita socialmente por todos os envolvidos – pacientes, familiares e equipe de saúde. A “boa morte” está presente em unidades de cuidados paliativos. Ali a participação do doente na escolha das condutas é central. O ideal é que a morte ocorra em casa, com controle da dor e dos sintomas, na companhia da família. No modelo de “morte moderna”, o paciente está isolado, solitário, e a morte é um processo impessoal, tida como “sem dignidade” (SEYMOUR, 2001, p. 21). Contrapondo-se ao modelo da “morte moderna”, eminentemente curativo, no qual o doente é despossuído de voz, o modelo de “morte contemporânea” (MENEZES, 2004, p. 37) valoriza os desejos do enfermo. O aspecto central é o diálogo entre os atores sociais 23 envolvidos no processo do morrer: uma vez explicados os limites da ação do médico e dos desejos do doente, é possível a deliberação sobre o período de vida ainda restante, a escolha de procedimentos e a despedida das pessoas de suas relações, com o suporte da equipe multidisciplinar. No modelo de “morte moderna” o médico é o principal personagem a tomar decisões, enquanto no modelo de “morte contemporânea” a autoridade seria a própria pessoa. A tomada de decisões deste indivíduo depende de três requisitos: o conhecimento do avanço da doença e da proximidade da morte, por comunicação da equipe médica; a expressão dos desejos e sentimentos do paciente para as pessoas de sua relação e, finalmente, a escuta e atuação dos que cuidam do doente. O primeiro aspecto desse novo modelo é a consciência do indivíduo da proximidade de sua morte (MENEZES, 2004, p. 40). Do silêncio, ocultamento e negação passou-se à colocação da morte em discurso na segunda metade do século XX, devido ao engajamento político, ideológico e social dos indivíduos portadores do vírus HIV 5. De acordo com o ideário dos cuidados paliativos, os sentimentos face à finitude devem ser expressos. As expressões “boa morte”, “morte tranquila” e “morreu bem” passam a ser utilizadas amplamente pela literatura de difusão do ideário dos cuidados paliativos, não se restringindo ao âmbito dos profissionais de saúde (MENEZES, 2004, p. 37). No século XXI os dois modelos de morte – a moderna e a contemporânea – podem ser observados. A morte é um evento sempre presente na vida humana, mas em cada momento histórico se apresentam novas configurações e possibilidades. Com a crescente capacidade de prolongar a vida, com auxílio de tecnologia construída com esta finalidade, atualmente é possível manter vivo um paciente com diagnóstico de morte encefálica, para que possa ser realizado um transplante de órgãos. 1.2 Unidade de Terapia Intensiva: histórico e funcionamento Os cuidados intensivos foram criados a partir do reconhecimento, por parte da equipe de enfermagem, da importância do exercício de controle e vigilância sobre 5 De acordo com o Ministério da Saúde, HIV é a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana. Causador da AIDS - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida -, ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo de doenças - http://www.aids.gov.br/pagina/o-que-e-hiv. Acesso em 19 de outubro de 2012. 24 pacientes em situação de risco de vida. Para tanto, eles passaram a ser agrupados em áreas específicas do hospital. A ideia era de que, assim, os enfermeiros poderiam se certificar de que os doentes mais graves poderiam receber mais atenção, quando alocados na proximidade do posto de enfermagem (SOCIETY OF CRITICAL CARE)6. De acordo com o mito construído por profissionais de enfermagem, este tipo de unidade teria origem no século XIX. A enfermeira Florence Nightingale seria a responsável pela organização deste setor hospitalar. Em 1854, na Guerra da Criméia, ela atuou como voluntária, quando conseguiu promover a redução da taxa de mortalidade dos soldados feridos, com a realização de reformas no ambiente, após constatar a falta de higiene do local. Nightingale contribuiu para que o hospital se transformasse em uma “máquina de curar”, e se tornou uma figura central na ideia que conduziu à criação dos cuidados intensivos (KRUSE, 2004, p. 57). Em 1926 é criada a primeira unidade intensiva em Baltimore, Estados Unidos, pelo neurocirurgião Dr. Walter E. Dandy, com três leitos pós-operatórios de neurocirurgia, no Hospital John Hopkins. Segundo a Society of Critical Care7. Este serviço foi o preconizador do modelo inicial e atual da UTI. Em 1947 e 1948, em decorrência da epidemia de poliomielite na Europa e nos Estados Unidos, foram desenvolvidos os ventiladores mecânicos8, na busca pela manutenção da vida das crianças afetadas pela epidemia (SOCIETY OF CRITICAL CARE)9. Os primeiros pacientes que usufruíram da assistência intensiva foram os soldados feridos na Segunda Guerra Mundial e na guerra da Coréia. Pesquisadores ingleses e norteamericanos concluíram, ao fim dos anos 1960, que os gravemente enfermos possuíam problemas fisiopatológicos comuns, e que suas sobrevidas dependiam do controle de uma série de funções corporais. O controle destas funções corporais, aliado às novas drogas e técnicas para tratamento da falência múltipla de órgãos e de septicemia constituíram as 6 http://www.myicucare.org/Pages/HistoryofCriticalCare.aspx. Acesso em 23/09/2012. Tradução de minha autoria, como todos os trechos a seguir, salvo menção expressa. 7 http://www.myicucare.org/Pages/HistoryofCriticalCare.aspx. Acesso em 23/09/2012. 8 A ventilação mecânica (VM) ou o suporte ventilatório, consiste em um método de suporte para tratamento de pacientes com insuficiência respiratória, por meio da utilização de aparelhos, os ventiladores mecânicos artificiais. Tem por objetivos, além da manutenção das trocas gasosas, aliviar o trabalho da musculatura respiratória que, em situações agudas de alta demanda metabólica, está elevado; reverter ou evitar a fadiga da musculatura respiratória; diminuir o consumo de oxigênio, dessa forma reduzindo o desconforto respiratório; e permitir a aplicação de terapêuticas específicas (CARVALHO, JUNIOR, FRANCA, 2007, p.54). O ventilador mecânico é o aparelho utilizado na ventilação mecânica, também conhecido como respirador. 9 http://www.myicucare.org/Pages/HistoryofCriticalCare.aspx. Acesso em 23/09/2012. 25 “tecnologias de salvamento” que catalisaram o crescimento da terapia intensiva (MENEZES, 2013, p. 415). Na Segunda Guerra Mundial, os pacientes de pós-operatório passaram a ser agrupados em salas de recuperação, a fim de garantir um atendimento mais eficaz, devido ao número reduzido de profissionais de enfermagem. Em 1958, aproximadamente 25% dos hospitais norte americanos com mais de 300 leitos contava com uma UTI. Os benefícios deste tipo de organização do trabalho, dirigido ao atendimento destes enfermos resultaram na disseminação destas salas para quase todos os hospitais, sobretudo a partir dos anos 1960 (SOCIETY OF CRITICAL CARE)10. No Brasil, essa modalidade de serviço surgiu nessa mesma década, em hospitais de grande porte do Sul e Sudeste do país (MENEZES, 2006, p. 30). Esta unidade representa, tanto no sentido simbólico quanto na prática, a preocupação moderna com o controle de doenças. Sua meta consiste na cura, no prolongamento e/ou manutenção da vida (MENEZES, 2013, p. 415). Desde o surgimento dessa modalidade de serviço, da especialização e habilitação de profissionais para prestar assistência intensiva, apresentam-se diversos questionamentos, sejam em torno das consequências de uma internação no setor para doentes e seus familiares, sejam referentes às condições de trabalho da equipe de saúde (MENEZES, 2013, p. 416). De acordo com o Ministério da Saúde, no Brasil, UTI não é sinônimo de CTI (Centro de Tratamento/Terapia Intensiva). Denomina-se Centro de Terapia Intensiva o agrupamento, em uma mesma área física, de duas ou mais UTIs, incluindo-se, quando existentes, as Unidades de Tratamento Semi-Intensivo (PORTARIA Nº 466, 1998). 1.3 Terapia Intensiva no Brasil De acordo com o Ministério da Saúde brasileiro (1998), as UTIs são unidades hospitalares destinadas ao atendimento de enfermos graves ou de risco 11, que dispõem de 10 http://www.myicucare.org/Pages/HistoryofCriticalCare.aspx. Acesso em 23/09/2012. De acordo com RDC Nº 7, de 24 de fevereiro de 2010, risco refere-se à combinação da probabilidade de ocorrência de um dano e a gravidade de tal dano - http://brasilsus.com.br/legislacoes/rdc/102985-7.html. Acesso em 19/09/2012. A definição de risco em saúde pública pode ser separada em duas perspectivas principais: a primeira, vista como um perigo para a saúde das populações que são expostas a riscos ambientais, como poluição, lixo 11 26 assistência médica e de enfermagem ininterruptas, com equipamentos específicos próprios, recursos humanos especializados e que tenham acesso a outras tecnologias destinadas ao diagnóstico e à terapêutica. O funcionamento de uma UTI requer alguns requisitos operacionais básicos, segundo o Ministério da Saúde brasileiro: toda unidade deve contar com, no mínimo, cinco leitos; 24 horas por dia de acesso aos serviços de laboratório, hemodiálise 12, cirurgia, entre outros; existência de uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH), para prevenção e controle de infecções hospitalares. Além destas características, é preciso contar com um manual de rotinas de procedimentos13 médicos, de enfermagem, de manutenção dos aparelhos, de biossegurança etc. (PORTARIA Nº 466, 1998). A infraestrutura física deve obedecer a determinadas exigências, como: ser uma área própria dentro do hospital, de acesso restrito, porém com acesso facilitado ao centro cirúrgico (CC), unidades de emergência e outras unidades intensivas; o posto de enfermagem deve estar instalado de forma a permitir completa observação dos leitos, seja visualmente ou por meio eletrônico, obedecendo à relação de um posto para cada dez leitos; as paredes devem ser constituídas de material transparente, a fim de permitir a visão contínua e à distância dos enfermos e monitores; quartos de isolamento providos de antecâmara e lavatório exclusivo para uso da equipe; iluminação de luz natural e posicionamento de relógios, de maneira que possa ser observado pelo paciente internado; nuclear e resíduos químicos tóxicos. Neste contexto, a ameaça para a saúde é considerada como um risco que é externo, ao longo do qual o indivíduo tem pouco controle. A segunda abordagem concentra-se na consequência das escolhas de vida feitas por indivíduos e, assim, coloca em ênfase o autocontrole. Nesse sentido, é imposto internamente, em função da capacidade do indivíduo para gerir a si mesmo. Um terceiro uso menos comum do termo, refere-se a grupos sociais por não terem acesso suficiente aos serviços de saúde. Neste caso, o risco refere-se à desvantagem social, que, dependendo da posição política, pode ser representado como uma função de fatores externos, tal como renda, ou fatores internos, como a falta de motivação, ou uma combinação de ambos. A estratégia de testes de diagnóstico tem sido adotada para lidar com o risco na saúde, tanto externa quanto internamente imposta. A lógica do teste é que os padrões de risco devem ser primeiramente determinados, para identificar aqueles que possuam o potencial para desenvolver uma determinada condição patológica e, em seguida, tratada. Acredita-se que o exame diagnóstico possa identificar a doença antes dos sintomas aparecerem, o que acarretaria em um tempo maior para tratar ou prevenir a doença, ou alertar pessoas para o seu potencial de transmissão, tal como o HIV ou de uma doença genética. Possuir um teste, de qualquer tipo, é conceituado como oferecer controle, uma maneira de “fazer alguma coisa” na presença de um potencial de uma doença. A relação entre a definição do risco e da estratégia de testes de diagnóstico é, portanto, sinergética: os indivíduos são estimulados a participar de um teste, pois eles são considerados em risco de desenvolver uma doença ou condição patológica e as estatísticas produzidas servirão para apoiar ou reformular as avaliações dos padrões de risco na população (LUPTON, D., 1995, p.77). 12 Processo de filtração do sangue, efetuado por aparelhagem. 13 Termo amplamente utilizado por equipes de saúde. Refere-se à retirada de sangue ou outras condutas, como punção arterial, dissecção de veia profunda, intubação e colocação de prótese respiratória. 27 redes de gás oxigênio e ar comprimido em todos os leitos (PORTARIA Nº 466, 1998). Por último, é preciso uma equipe multiprofissional exclusiva e materiais e equipamentos tecnológicos atendendo às quantificações exigidas na Portaria nº 466, 1998. A UTI é um setor hospitalar que necessariamente deve contar com diferentes categorias profissionais, como: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos de enfermagem, nutricionistas, residentes de diversas áreas, estagiários, faxineiros e outros (MENEZES, 2006, p. 34). Assim como o hospital, esta unidade funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. Além destas características, trata-se de um setor que não existe fora da instituição hospitalar. Para manter seu funcionamento adequado, a UTI necessita do suporte de outros setores hospitalares. O trabalho neste ambiente pressupõe a existência de uma equipe multiprofissional, pois sem os cuidados especializados das distintas categorias profissionais não seria possível seu desenvolvimento. Cada profissional tem uma tarefa específica, fundamental para o funcionamento do setor. A unidade tem o objetivo de concentrar três componentes críticos: os doentes mais graves, o equipamento técnico mais caro e sofisticado, a equipe com conhecimento e experiência para cuidar desses pacientes e de lidar com essa aparelhagem (MENEZES, 2006, p. 30). Uma das principais características da moderna UTI é a preocupação com o domínio da doença, a erradicação da morte de tempo incerto e o prolongamento da vida. Com seu surgimento, a organização do hospital modificou-se: alguns tratamentos limitaram-se a esta unidade, iniciando uma busca pela cura e pelo adiamento da morte, em muitos casos (SEYMOUR, 2001, p. 10). Por ser um setor fechado e organizado de maneira a permitir uma vigilância e controle permanentes dos pacientes internados, a UTI promove maior segurança dos profissionais. Há um notável controle do tempo, com horários estabelecidos para a realização dos banhos, administração dos medicamentos, realização de exames complementares, visita dos familiares, descanso dos pacientes e da equipe etc., estabelecendo assim, uma rotina dentro do setor. Para que um doente seja admitido na unidade é necessária avaliação pela equipe médica, acerca de sua gravidade, por meio de um índice de prognóstico14 com a classificação da severidade da enfermidade (RDC Nº 7, 2010). Na UTI Adulto esse índice 14 Previsão médica da evolução de uma doença. 28 é denominado APACHE II15 (PORTARIA GM/MS Nº 3432, 1998). Sem essa análise, ele poderá não ser internado no setor, por não possuir os critérios estipulados para tal. Para o Ministério da Saúde brasileiro (2010), o termo rotina compreende: “na descrição dos passos dados para a realização de uma atividade ou operação, envolvendo, geralmente, mais de um agente. Favorece o planejamento e racionalização da atividade, evitam improvisações, na medida em que definem com antecedência os agentes que serão envolvidos, propiciando-lhes treinar suas ações, desta forma eliminando ou minimizando os erros. Permite a continuidade das ações desenvolvidas, além de fornecer subsídios para a avaliação de cada uma em particular”. A UTI é baseada nessa rotina, com a aquisição de informações pelo profissional com a educação continuada em saúde (RDC Nº 7, 2010) para que o trabalho da equipe seja sempre o mais próximo da perfeição, sem erros e, com isso, manter o controle do setor, a estabilidade clínica e hemodinâmica do paciente internado. Nesta prática é concedida prioridade aos enfermos mais graves, com maior risco de vida, que são avaliados antes dos demais pela equipe. Essa primazia também é observada na realização de exames complementares – sobretudo no caso daqueles de maior complexidade, como a tomografia computadorizada (TC). Devido à prioridade concedida a seus pacientes, além do fato de possuir os equipamentos mais sofisticados e complexos e do nível de profissionalização e capacitação especializada de suas equipes, a UTI constrói uma imagem de um setor essencial ao hospital, posicionado hierarquicamente acima dos outros serviços. De acordo com Menezes (2006, p. 50), o setor é considerado por alguns profissionais da UTI por ela observada como o “topo do hospital”, o “suprassumo”. Essa hierarquia também ocorre com os profissionais atuantes neste ambiente e se manifesta como um “poder” sobre os demais colegas de outros setores do hospital. O intensivista é visto por seus pares como um profissional completo, que engloba outras especialidades. A partir desta abrangência de qualificação, é possível usar o superlativo “super” para designar o profissional da UTI: um “superespecialista”. A expertise do intensivista é afirmada pela extensão de sua bagagem de saber, por sua habilidade e perícia técnica no manejo da aparelhagem moderna, como também pela desvalorização do colega de outra especialidade: um “leigo” (MENEZES, 2000, p. 32). 15 O escore APACHE II (Acute Physiology and Chronic Health Evalution) é uma forma de avaliação e classificação do índice de gravidade da doença, e tem como objetivo principal a descrição quantitativa do grau de disfunção orgânica de pacientes gravemente enfermos, gravidade que é traduzida em valor numérico a partir das alterações clínicas e laboratoriais existentes ou do tipo/número de procedimentos utilizados (FREITAS, 2010, p. 22). 29 As diferentes categorias profissionais que atuam na UTI explicitam a existência de uma identidade, comum a todos que ali trabalham: a de intensivista – condição que prevalece, em face de outra possível classificação, que possa ocorrer entre os componentes da equipe da UTI. 30 2. Metodologia de Pesquisa Para desenvolver esta investigação, a metodologia qualitativa foi considerada a mais adequada para atingir aos objetivos da pesquisa. Como método de coleta de dados, a observação participante, a fim de apreender a gestão das emoções dos profissionais de saúde da UTI. Inicialmente a ideia era utilizar, além da observação participante, entrevistas com roteiro semiestruturado, como sugerido pela banca examinadora na qualificação do projeto. Porém não foi possível realizar entrevistas, devido ao tempo prolongado da aprovação do projeto pelo CEP, o que ocorreu somente em outubro de 2013. Como a pesquisa já havia recebido autorização das chefias da UTI e da direção do hospital, as observações foram empreendidas antes da liberação do parecer do CEP. A importância da utilização da metodologia qualitativa reside na possibilidade de “estudar o geral através do singular e estudar o singular na sua constituição histórica e social, fazendo uma escavação no microcosmo para nele entrever o macrocosmo” (PEREIRA, 1991, p. 117). Portanto, o objeto desse estudo não é o indivíduo em si, mas as relações nas quais ele se encontra imerso: nas situações sociais das quais ele é, ao mesmo tempo, produto e produtor. Nesse sentido, o exame das narrativas produzidas pelos sujeitos consiste em uma forma de acesso às suas experiências (ALVES; RABELO; SOUZA, 1999, p. 19), em uma dialética entre o polo do evento e o polo da significação, entre sentido e referência, entre a singularidade e a subjetividade da experiência e a objetividade e a intersubjetividade da linguagem, das instituições e dos modelos legitimados socialmente (ALVES; RABELO, 1999, p. 173). Como primeira etapa da pesquisa, foi realizado um levantamento bibliográfico sobre a emergência das emoções na UTI 16. Há que se destacar que a maior parte da revisão bibliográfica examinada sobre o tema é de autoria de profissionais da área de saúde, em especial os de enfermagem. Não foi selecionado um recorte temporal na escolha dos artigos, visto que o objetivo era justamente levantar o conjunto de estudos sobre o tema, até os dias atuais. Para Víctora et al.(2000, p. 71), a análise de documentos é uma técnica de coleta de dados que, apesar de não ser frequentemente aplicada na pesquisa qualitativa, constitui importante fonte de informações. 16 Planilha com levantamento bibliográfico no apêndice I. 31 A observação foi iniciada em fevereiro de 2013, após autorização oficial das chefias do hospital e da unidade. As observações foram realizadas durante quatro meses, totalizando 356 horas. Busquei estar presente em diferentes períodos do dia, de forma a captar o ritmo de trabalho, inclusive em plantões noturnos, vivenciando diversas situações, a fim de apreender a gestão das emoções destes profissionais. Como profissional da unidade, permaneci trajando jaleco, assim como os demais colegas da equipe. Alguns intensivistas questionaram a metodologia do estudo, por não contar com números e gráficos, apenas com observação. Quando eles tomaram conhecimento do título, comentaram: “Ah, muito legal!”. O diário de campo também foi objeto de curiosidade dos colegas que, ao perceberem que anotava alguma situação, reagiram da seguinte forma: “A Nathalia tá anotando tudo!”, eles pediam para ler o que estava escrito. Cada tipo de metodologia traz consigo um conjunto de pressupostos sobre a realidade, bem como um instrumental, composto por diversos conceitos (Víctora et al. 2000, p. 33). Segundo as mesmas autoras (Víctora et al. 2000, p. 54), o método etnográfico possibilita ao investigador compreender as práticas culturais em um contexto social mais amplo, estabelecendo as relações entre fenômenos específicos e determinada visão de mundo. Resgatar a perspectiva etnográfica e trazê-la para o âmbito da saúde coletiva é uma estratégia de qualificação da pesquisa qualitativa na área. A etnografia é entendida aqui não como simples técnica de coleta de dados, mas enquanto uma forma de olhar, apreender e interpretar a realidade. Um dos desafios na área da saúde é sua inserção em campos estruturados, hierarquizados e “privados”, como são os serviços de saúde e, em particular, alguns espaços, como a UTI. O que é peculiar à antropologia não é apenas sua metodologia de investigação, mas a maneira como concebe as relações entre social e individual, entre natureza e cultura, entre universal e particular. A preocupação constante com o sentido e o significado, com o contexto e a situação na qual se inserem os comportamentos, com as particularidades de cada cultura ou grupo e com os determinantes sociais que se impõem a este (KNAUTH, 2010, p. 110). A observação participante se remete à tradição antropológica e envolve um triplo trabalho de percepção, memorização e anotação (BEAUD; WEBER, 2007, p. 93). A observação etnográfica constitui o método antropológico por excelência, na medida em que possibilita ao pesquisador apreender lógicas que modulam – e são moduladas – por 32 práticas sociais específicas. Para compreender os sentidos e significados de uma prática social é imprescindível a inserção no universo nativo, com participação nos eventos do contexto. No desenvolvimento deste tipo de trabalho, a sensibilidade e a subjetividade do antropólogo encontram-se invariavelmente incluídas (GOMES; MENEZES, 2008, p. 2). Portanto, implicar-se na pesquisa envolve, para o pesquisador, o duplo movimento de identificação e estranhamento, transformando o “exótico em familiar” e o “familiar em exótico” (DAMATTA, 1978). Assim, a tarefa primeira do antropólogo deve ser a busca pelo progressivo distanciamento crítico de seus próprios valores (LERNIER, 2003, p. 27), especialmente quando o universo pesquisado consiste em um campo conhecido. 2.1. Dupla Identidade da pesquisadora Como fisioterapeuta da UTI do HUGG, além de ocupar uma posição de liderança no setor, sou a profissional responsável por resolver questões burocráticas, de modo que mantenho contato próximo com a direção do hospital. Por esse motivo, tenho fácil acesso ao diretor. Como foi preciso autorização da instituição para desenvolver meu estudo, procurei o diretor. Ele estava fora do Rio de Janeiro, em viagem. Tive então a oportunidade de conversar com seu substituto eventual, o superintendente médico: Pesquisadora: “Bom, gostaria de saber se poderia realizar a pesquisa do meu mestrado aqui no hospital, na UTI. Trata-se da gestão das emoções dos profissionais no cuidado de pacientes FTPC. Seriam observações e entrevistas com os profissionais”. Superintendente médico: “Você não está fazendo mestrado em fisioterapia?” Pesquisadora: “Não, estou fazendo em Saúde Coletiva, no Fundão (UFRJ)”. Superintendente Médico: “Claro que pode! Quando você for encaminhar ao CEP e precisar de alguma declaração, me avise!” Pesquisadora: “Ok! Muito obrigada!”. Superintendente Médico: “Mais alguma coisa?” Pesquisadora: “Não, só isso tudo!” Superintendente Médico: “Qualquer coisa, estamos aqui!” Pesquisadora: “Ok! Muito obrigada!”. A partir da autorização da direção, procurei as chefias médica e de enfermagem, para solicitar seus consentimentos. Na mesma semana consegui reunir as duas chefias, 33 apresentei os objetivos do estudo e explicitei a intenção de desenvolver a pesquisa na UTI. A reação foi de curiosidade em relação à metodologia, seguida de aceitação. Expliquei como seria efetuada a coleta de dados – observação participante e entrevistas - e solicitei que comunicassem às equipes, para que todos tomassem conhecimento de que eu passaria a assumir dois papeis no setor: de fisioterapeuta e pesquisadora. A chefia médica logo se prontificou a ajudar, caso necessário, afirmando que não haveria problema em relação à minha investigação. Prometi enviar o projeto por e-mail. Nesse contexto, passei a ter dupla identidade: de profissional de saúde integrante da equipe da UTI e de pesquisadora. Tal posicionamento demandou maior capacidade de reflexão e de autocrítica, tanto na observação como na elaboração desta dissertação. Neste tipo de trabalho de campo trata-se de transformar o familiar em exótico (DAMATTA, 1978, p. 28). Como profissional de saúde e integrante da equipe da UTI do HUGG, o desafio consistiu em despir a roupagem de membro de uma classe e/ou de um grupo social específico, para estranhar regras previamente conhecidas e familiares. Somente deste modo é possível descobrir o exótico presente em cada pessoa, pelos mecanismos de legitimação. Tal condição conduz ao encontro com o outro e, ao mesmo tempo, ao estranhamento. Uma das mais tradicionais premissas das ciências sociais é a necessidade de uma distância mínima que garanta ao investigador condições de objetividade em seu trabalho. Afirma-se ser preciso que o pesquisador deva observar a realidade com “olhos imparciais”, evitar envolvimentos que possam deformar ou distorcer seus julgamentos e conclusões. Este movimento de relativizar as noções de distância e objetividade, se de um lado nos torna mais modestos quanto à construção do nosso conhecimento em geral, por outro lado permite-nos observar o familiar e estudá-lo sobre a impossibilidade de resultados imparciais, neutros. Nesse nível, o estudo do familiar oferece vantagens em termos de possibilidades de rever e enriquecer os resultados da pesquisa. O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos e situações (VELHO, 1978, p. 36). Descrever o outro com presumida neutralidade, sem emitir valores pessoais nem esclarecer o processo de intercâmbio de experiências entre pesquisador e nativos é assumir a crença na objetividade do cientista. O que está em jogo durante a pesquisa é tanto a contenção e o controle da expressão dos sentimentos do pesquisador no campo, quanto o 34 uso de suas emoções na elaboração do texto (GOMES; MENEZES, 2008, p. 1). Como profissional de saúde nesse ambiente hospitalar, a experiência tem servido como eficaz garantia de autoridade etnográfica, uma presença participativa, um contato sensível com o mundo a ser compreendido, uma relação de afinidade emocional com seus semelhantes, o que é considerado por Clifford (2008, p. 36) como uma concretude de percepção. Realizar a pesquisa etnográfica em um ambiente previamente conhecido, tanto no sentido de ser uma profissional de saúde como por ser funcionária da instituição, foi uma nova experiência, que acarretou uma abertura de horizontes e de percepções. Observar os colegas sob a nova ótica gerou ricas reflexões sobre o trabalho em UTI. 35 3. A Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle A Unidade de Terapia Intensiva em que foi realizada a pesquisa está localizada no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG), que pertence à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Situa-se na zona norte da cidade do rio de janeiro, entre os bairros da Tijuca e Praça da Bandeira. O HUGG foi fundado em 1929 por Cândido Gaffrée e Guilherme Guinle, com o nome de Fundação Gaffrée e Guinle. Na época era o maior hospital da cidade, contando com 320 leitos. Em 1966 foi incorporado à Escola de Medicina e Cirurgia. A partir de 1968 passou a ser denominado Hospital Universitário Gaffrée e Guinle. Na ocasião foi realizada uma grande reforma para adaptação como um hospital-escola. Em 05 de junho de 1979 passou a integrar a Universidade do Rio de Janeiro, atual UNIRIO, passando a fazer parte de seu Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) 17. Atualmente o hospital possui cerca de 200 leitos para internação e não oferece atendimento de emergência, apenas ambulatorial. 3.1 Descrição do setor No início do período de observação etnográfica a UTI do hospital estava em obras, de modo que as primeiras observações foram realizadas em um espaço reduzido, com menor número de leitos em relação ao habitual – antes com oito e na etapa com obras apenas dois -, uma vez que profissionais e pacientes foram alocados na enfermaria de Ortopedia, no primeiro andar do hospital. Pelo fato de contar com menor número de pacientes internados, alguns profissionais da equipe de enfermagem foram remanejados para atuar em outros setores. O ambiente tinha formato retangular e não contava com divisórias entre os leitos dos enfermos e a equipe. Havia uma porta na entrada, sempre fechada. Ao entrar era 17 http://www.unirio.br/imunoalerg/infraestrutura.html. Acesso em 27 de julho de 2013. 36 possível visualizar todo o setor. À esquerda havia duas mesas, com os prontuários18 e papéis. As gavetas eram utilizadas para armazenar as medicações dos pacientes. Em um pequeno canto, ao lado das mesas havia um “carrinho de parada19”, que foi improvisado para preparação dos medicamentos. O espaço também contava com um armário, no qual eram armazenados os soros. À frente havia uma porta que dava acesso à única pia do local, utilizada para lavagem das mãos. Este espaço contava com duas portas, uma de cada lado da pia: a da esquerda, um local no qual os profissionais guardavam seus pertences. Já à direita havia um vaso sanitário. Este local permanecia trancado com cadeado, para não ser utilizado. Ao lado desta porta havia um sofá para a equipe e, ao lado estavam: o “carrinho de parada”, um armário que apoiava o telefone, um carrinho com materiais como luvas, gazes, álcool etc., uma bancada com uma televisão, outro carrinho que guardava a roupa de cama e, no final, um ventilador mecânico extra. Em frente a esse material havia dois leitos dos pacientes, sem divisórias, o que possibilitava que os doentes conversassem quando isso era possível. Ao lado de um dos leitos tinha um armário com mais materiais. Os leitos eram dispostos com a cabeceira para a parede, e os pés dirigidos para os materiais encostados na parede em frente. Cada um tinha uma mesa com o monitor de sinais vitais e uma cestinha com materiais para uso no enfermo internado. O ambiente contava com dois aparelhos de ar condicionados para refrigeração. A equipe controlava a temperatura. A iluminação com lâmpadas fluorescentes era mantida acesa, na maior parte do dia. À noite algumas luzes do setor eram apagadas para que os enfermos pudessem dormir. A permanência da UTI neste local foi de aproximadamente sete meses. Por se tratar de um ambiente restrito, com poucos recursos para o funcionamento de uma unidade de terapia intensiva, comportava somente dois doentes. Por esse motivo, uma parte da equipe de enfermagem foi remanejada para outros setores, visto que a equipe da UTI é composta para atender a oito pacientes graves – dois enfermeiros e cinco técnicos de enfermagem. A 18 O prontuário médico, de fato, prontuário do paciente, é o conjunto de documentos padronizados, ordenados e concisos, destinados ao registro de todas as informações referentes aos cuidados médicos e paramédicos prestados ao enfermo. 19 O “carrinho de parada” é um armário com rodas, no qual são armazenados os materiais e medicações utilizados para reverter em uma parada cardiorrespiratória (PCR) e vai exigir procedimentos de socorro imediatos. Conforme a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), a nomenclatura mais apropriada é Carrinho de Emergência, http://cientifico.cardiol.br/. Acesso em 22/05/2013. 37 cada plantão um enfermeiro e três técnicos eram transferidos para as enfermarias, escolhidos especialmente no caso de possuírem pacientes graves com demanda de cuidados intensivos. O fato de a UTI funcionar com apenas dois leitos durante tanto tempo impossibilitou a realização de diversas cirurgias, pois não havia condições para que os pacientes permanecessem nas enfermarias no pós-operatório. Com o término da obra, toda a equipe retornou para o terceiro andar do hospital, no qual está localizada a UTI, em um ambiente reformado, com as paredes em tom de verde claro, móveis nas cores bege e azul. Na entrada da UTI há uma grande porta de madeira (mantida sempre aberta) e uma sala de espera para familiares dos internados na unidade, com aproximadamente dez cadeiras, uma pia e uma janela, com visão para um jardim interno do hospital. Para entrar na UTI é preciso passar por uma porta “vai e vem” de plástico, que dá acesso a um corredor, no qual há um banheiro para uso dos familiares; um espaço em que é armazenado material, chamado de “arsenal”, que permanece trancado; além de armários individuais, utilizados pelos funcionários para seus pertences. Ao lado do “arsenal” há outra porta, semelhante à anterior, que dá acesso à UTI. Ao passar pela porta de entrada da UTI há três portas à esquerda: a primeira, um banheiro para os pacientes em condições de locomoção, ou o local no qual a equipe pega a água para o banho no leito; a segunda, um expurgo20; e a terceira, um leito de isolamento respiratório21. À direita, outro leito de isolamento respiratório. À frente há duas pias para lavar as mãos, conectadas ao posto de enfermagem. O posto de enfermagem tem formato retangular e é dividido em duas partes: uma na qual os profissionais podem se sentar para escrever nos prontuários, composta por bancadas, cadeiras, armários e gavetas utilizadas para armazenar materiais e roupas de cama, com um telefone, um interfone, uma calculadora e um rádio. A outra é destinada à realização de medicações dos pacientes, isolada por uma divisória com janelas de vidro e duas portas pequenas “vai e vem” de madeira, para evitar a circulação de pessoas no local. Também é composto por diversas gavetas e armários, uma extensa bancada e uma pia. Do lado de fora, na outra extremidade, há mais duas pias para lavagem das mãos. De cada lado do posto há um carrinho com materiais, como: luvas, gazes, esparadrapo, álcool etc. 20 21 Local em que são desprezadas as secreções dos pacientes, como urina, fezes e secreção traqueal. Leito específico para pacientes com doenças transmissíveis pelo ar, como a tuberculose. 38 O posto está situado em um nível superior do restante (um degrau acima), para que seja possível ver o que ocorre em nos leitos, inclusive os de isolamento, através das janelas de vidro. Há cinco leitos do lado esquerdo e sete do direito. Nem todos os leitos são ativos. No momento apenas oito são utilizados: quatro do lado esquerdo, sendo um leito de isolamento respiratório e quatro do lado direito. Trata-se de uma estrutura semelhante à do Panóptico de Bentham (Foucault, 2004, p. 166): uma organização com máxima visibilidade do ponto central, possibilitando controle e vigilância permanentes. O leito inativo do lado esquerdo está localizado no fundo da UTI, junto a uma máquina para digitalização e visualização de raio-x, uma televisão de LCD presa à parede, uma pequena geladeira para armazenamento de medicações, um “carrinho de parada” e um armário com materiais de fisioterapia. Em dois leitos inativos do lado direito, também ao fundo do setor, encontram-se armários com materiais diversos para ventilação mecânica e ventilação espontânea22, soro para medicações, cadeira de rodas, balas de oxigênio para realização de transporte de pacientes e bombas infusoras 23 extras conectadas à rede elétrica. O outro leito inativo é para isolamento respiratório, na entrada da UTI, onde estão os ventiladores mecânicos e camas extras, além de um aparelho de ultrassom. Os leitos estão dispostos com as cabeceiras encostadas nas paredes e os pés voltados para o posto de enfermagem, separados por cortinas de correr presas ao teto. Na cabeceira de cada um há uma janela (que não abre) e uma grande quantidade de aparelhos (bombas infusoras, um ventilador mecânico, um monitor de sinais vitais preso à parede), ao lado, uma mesa com gaveta e uma cestinha plástica contendo materiais de uso cotidiano como sondas, gazes, luvas etc. Atrás do posto de enfermagem há uma pequena sala com janelas de vidro, denominada pelos profissionais de “aquário”, com uma mesa, computador e impressora, dois sofás, um negatoscópio 24 e um quadro de cortiça, no qual são afixados os pareceres com pedido de vaga para internação na UTI, a folha de frequência dos acadêmicos de medicina e avisos de congressos de terapia intensiva. Esta sala é utilizada pela equipe médica para discussões dos casos dos pacientes internados, juntamente com a equipe de fisioterapia e de enfermagem. 22 Modo normal de respiração. Aparelho para a administração de medicamentos e alimentação. 24 Aparelho para a visualização de exames radiográficos (raios-x, tomografias). 23 39 De cada lado do “aquário” estão os dois quartos de descanso das equipes: do lado esquerdo, o da enfermagem e do direito, o dos médicos e fisioterapeutas. Em frente ao quarto da enfermagem, colado ao “aquário”, há um armário onde ficam os prontuários dos pacientes. Seguindo pelo lado esquerdo do “aquário” há um corredor: na primeira porta à esquerda encontra-se a copa, com uma geladeira, um micro-ondas, um filtro de água, uma pia e armários, onde são realizadas as refeições e lanches pelos profissionais, logo em seguida, também à esquerda, há duas janelas de vidro para a colocação das roupas sujas; em frente às janelas está a mesa da funcionária administrativa com um computador e um armário. No final do corredor, presa à parede, há uma máquina para a realização do exame de gasometria arterial25. Ao virar à direita existe um pequeno corredor, onde se localizam os expurgos – limpo e sujo – para colocação de materiais que foram utilizados pelos pacientes. À esquerda há uma porta de madeira (que permanece sempre trancada) que dá acesso à roupa suja desprezada pelas janelas de vidro e outra porta que dá acesso à enfermaria. Ao entrar na UTI é possível perceber a baixa temperatura, produzida pelo ar condicionado central; o ambiente é mantido sempre iluminado por lâmpadas fluorescentes; as janelas são cobertas por filme, sempre fechadas (não é possível que sejam abertas; há muitos ruídos, oriundos das vozes dos profissionais, dos aparelhos ligados, com seus alarmes, do telefone do setor, dos celulares dos profissionais e do rádio ligado no posto de enfermagem; os odores causados pela mistura de cheiros: materiais de limpeza, secreções e medicações; e muitos dispensers de álcool gel presos às paredes do setor. 3.2 Rotina de trabalho da unidade A UTI observada conta com um ambiente no qual circulam muitos profissionais: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos, dentista, residentes, acadêmicos, funcionários da limpeza e funcionários administrativos. 25 Exame que avalia a acidez (pH) e a pressão parcial do oxigênio e do gás carbônico no sangue. 40 A equipe de enfermagem funciona pelo sistema de plantões: três para o turno do dia e três para o noturno. A maioria das enfermeiras é do sexo feminino, há dois enfermeiros no plantão noturno. Entre os técnicos há uma divisão mais equilibrada, entre o número de homens e mulheres. Na equipe de medicina há 14 médicos, cinco mulheres e nove homens. O mesmo ocorre com a equipe de fisioterapia: são oito fisioterapeutas, quatro mulheres e quatro homens. Cada plantão, diurno ou noturno, conta com um médico plantonista, um fisioterapeuta, dois enfermeiros, cinco técnicos de enfermagem e um funcionário da limpeza. O plantão diurno conta ainda com dois residentes de fisioterapia (um do primeiro ano e outro do segundo), acadêmicos de medicina (em geral quatro) e enfermagem (geralmente dois), o médico, o fisioterapeuta e o enfermeiro da rotina, dois funcionários administrativos, um técnico de enfermagem diarista, além de cirurgiões e nefrologistas26 que vêm ao setor avaliar os doentes internados. Geralmente os plantões diurnos são mais movimentados do que os noturnos e os finais de semana. A dentista tem dias específicos de trabalho: terça e sexta-feira. Os nutricionistas e fonoaudiólogos não pertencem exclusivamente à equipe da UTI, eles atendem todo o hospital e só estão presentes no período diurno. A rotina diária se inicia às sete horas da manhã, com a “passagem de plantão” da enfermagem, da medicina e da fisioterapia, que conta com informes detalhados dos pacientes internados e termina às 19 horas com o mesmo processo, para a equipe que chega para “render” a que está de plantão. No turno da manhã, os enfermeiros e técnicos dão banho nos pacientes, que é dividido com a equipe noturna, em que cada plantão realiza a higiene na metade dos enfermos internados. O banho geralmente é feito no leito. Enquanto isso, os médicos avaliam os pacientes, ajustam as medicações prescritas e determinam quais doentes irão de alta para a enfermaria e quais serão internados na UTI. A equipe de fisioterapia efetua seu atendimento com ajustes na ventilação mecânica e atividade motora, como sentar e caminhar. As equipes de nutrição, fonoaudiologia, cirurgia e nefrologia passam pelo setor para avaliação dos enfermos. Os funcionários administrativos repõem os materiais nos leitos, além de verificar se a equipe necessita de algum medicamento ou insumo que o 26 Especialidade referente ao funcionamento dos rins. 41 setor não possui. A responsável pela limpeza esvazia as lixeiras e se certifica da limpeza da unidade. À tarde, geralmente as modificações já foram realizadas nos doentes e as equipes aguardam as internações que procedem do centro cirúrgico e transferem os pacientes que estão de alta para a enfermaria. Os funcionários administrativos, o médico, fisioterapeuta e enfermeiro da rotina não permanecem no setor, visto que seu horário de trabalho é concluído no horário de almoço. Assim, nesse período há menor circulação de pessoas no setor. Quando não há qualquer intercorrência, os intensivistas conversam, assistem televisão, lancham. Às 14 horas ocorre a visita dos familiares aos doentes internados, com duração de uma hora. A visita é liberada pela enfermeira do plantão e é realizada por um familiar de cada vez. Todos os familiares são orientados a lavar as mãos antes e após o contato com o doente. Há ainda mais um horário de visita, às 19:30 horas, com duração de 30 minutos. Ao se aproximar do término do plantão, a equipe de enfermagem se organiza para “passar o plantão”: troca as fraldas e reposiciona os doentes nos leitos, realizam as medicações do horário, anotam as evoluções nos prontuários e aguardam os colegas. Os fisioterapeutas reavaliam os pacientes para verificar a necessidade de ajustes nos parâmetros da ventilação mecânica ou aspirar a secreção traqueal. Às 19 horas ocorre novamente a troca de plantão de todas as equipes e a rotina recomeça. O perfil dos pacientes internados é variado: jovens e idosos, homens e mulheres, brancos, negros e pardos (não há diferença significativa entre as categorias), de baixa renda, geralmente estão internados para acompanhamento pós-operatório de cirurgias de retirada de tumor (câncer), complicações de doentes com HIV 27 ou descompensação de doenças crônicas como, por exemplo, DPOC28. A seguir são apresentadas situações observadas na UTI do HUGG, com o objetivo de analisar as interações e a gestão das emoções dos atores sociais envolvidos. 27 28 Sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana, causador da AIDS. Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica. Obstrução fixa ao fluxo aéreo ou enfisema. 42 4. Situações observadas 4.1. A “hóspede” Alice Alice29, uma das doentes internadas, já era conhecida por alguns da equipe, por suas internações anteriores. Ela estava conosco desde que a UTI entrou em obras e permaneceu internada durante todo o processo. Então, além de apenas dois leitos, um deles não tinha rotatividade, pois foi ocupado pela mesma paciente, Alice. Tal condição permitiu maior proximidade entre equipe e a doente, em comparação com outros pacientes, que estavam no leito ao lado. Durante os últimos três meses na Ortopedia, os dois pacientes foram sempre os mesmos: Alice e Paulo, o que fez com que eles desenvolvessem uma “amizade”. Eles perguntavam um pelo outro, cumprimentavam-se, questionavam o que estava acontecendo. Como o local era pequeno e com poucos pacientes, os profissionais estavam mais próximos dos enfermos, comparativamente ao modo cotidiano de funcionamento e de relacionamento na UTI. À época, a equipe relatou que eles não eram pacientes, mas hóspedes, por estarem há certo tempo internados e, por não serem doentes em condição de gravidade extrema, que precisavam apenas de cuidados que não poderiam ser realizados na enfermaria. Eles permaneciam acordados, com suas funções vitais estáveis, dependendo de ventilação mecânica. Esse fato mobilizava a equipe, que expressava de distintas formas: medo de morrer e da possibilidade de alta para a enfermaria, pois os profissionais da UTI consideravam que a equipe da enfermaria não seria capaz de cuidar bem deles. Os intensivistas faziam as vontades destes pacientes: escolha do horário para o banho, de sentar, do atendimento pela fisioterapia; compravam refrigerantes para Alice, levavam bolos e doces feitos em casa; além de outras coisas. Alice, 60 anos, negra, portadora de DPOC e hipertensão pulmonar 30. Em sua terceira internação nos últimos três anos, e nesta última ficou dependente da ventilação 29 Nome fictício, como todos os mencionados, com o objetivo de garantir sigilo das identidades. Elevação acima dos níveis normais da pressão sanguínea na pequena circulação ou circulação pulmonar (designação dada à parte da circulação sanguínea na qual o sangue é bombeado para os pulmões e retorna rico em oxigênio de volta ao coração. Em síntese, é uma circulação coração-pulmão-coração). 30 43 mecânica. Enferma ativa, sentava-se fora do leito, andava pelos corredores do hospital, comia por via oral, conversava mesmo sem a possibilidade de emissão de som, pois era traqueostomizada31. Em frente ao seu leito havia uma televisão, doada por uma médica da UTI. Alice foi internada na unidade assim que a UTI entrou em obras, em setembro de 2012, e prontamente foi intubada 32, em decorrência da insuficiência respiratória 33 que sofria. Não demorou muito tempo para que a equipe de saúde realizasse uma traqueostomia, para facilitar o desmame34 da ventilação mecânica. Ela permaneceu na UTI durante todo o período em que ficamos na enfermaria da Ortopedia, com apenas dois leitos. Um leito era o dela, o que impossibilitava a internação de outros doentes, já que se tratava de uma paciente sem condições clínicas de transferência para uma enfermaria. Por se tratar de uma doente crônica, que necessitava de ventilação mecânica e de alguns cuidados intensivos, seu caso passou a não ser mais discutido pela equipe, que questionava o desmame e a ocorrência de alguma alteração, como febre. Durante a maior parte do tempo de sua internação ela se encontrava acordada e cooperava com as demandas dos profissionais. Muitas vezes ela “mandava”: por exemplo, ela determinava o horário em que desejava tomar banho, dizia que queria tomar café antes de ser atendida pela fisioterapia, escolhia o horário para sentar na cadeira, não queria ficar com a monitorização, etc. A equipe geralmente acatava seus pedidos. No atendimento a Alice os profissionais usualmente se mostravam animados, sorriam, brincavam, faziam palhaçadas, conversavam sobre assuntos transmitidos pela televisão. O acordar da paciente mobilizava o setor. Todos iam até seu leito para desejar um bom dia a Alice. Profissionais da unidade compravam refrigerante, doces, salgadinhos, geralmente a pedido da doente, além de cortarem seu cabelo. A equipe permitia que ela trajasse sempre uma camisola do hospital, que não é comumente usada pelos pacientes da UTI, somente das enfermarias. Os intensivistas controlavam os programas de televisão que ela poderia assistir: quando ocorriam desastres, tragédias, como o incêndio da boate Kiss, em Santa 31 Procedimento cirúrgico pelo qual é produzido um orifício na região anterior do pescoço, para permitir a entrada de ar na traqueia. Colocação e fixação de um tubo dentro da traqueia do paciente (canal que liga a garganta ao pulmão), para que o ventilador mecânico seja conectado. 33 Condição clinica na qual os pulmões não conseguem desempenhar adequadamente sua principal função, a troca gasosa, o que significa que a captação de oxigênio e liberação de CO2 estão prejudicadas. 34 Processo gradual de retirada de aparelhagem para ventilação artificial (VM). 32 44 Maria (RS), a televisão era desligada ou o canal era alterado, sob a alegação de que não seria a melhor opção para ela naquele momento. A equipe de fisioterapia se mobilizava, ao perceber que Alice estava mais “pra baixo” e triste. Algum fisioterapeuta então a levava para caminhar fora do setor, pelos corredores do hospital e estacionamento. Como a enfermaria da Ortopedia está localizada no primeiro andar, era fácil levá-la para andar ao ar livre e ver o dia fora da UTI. A paciente relatava se sentir bem, ao ir ver o sol ou a chuva. No entanto, por se tratar de uma doente acamada, sentia dores e cansaço ao caminhar. Alguns fisioterapeutas brigavam com ela, para a realização de certos procedimentos, como aspiração traqueal35. Eles alegavam que ela poderia se machucar e que não havia necessidade dela própria se aspirar, pois o setor contava com muitos profissionais para ajudá-la. Ela aprendeu a realizar determinados procedimentos, por sempre estar atenta aos cuidados com ela e com outros pacientes. Por esse motivo, ela sabia se tal conduta estava correta ou não, e o que seria melhor ou mais confortável. Como ela sempre observava a rotina do setor, sabia o que acontecia, quem morria, quem ia de alta, quais profissionais faltavam ao plantão, quem estava de férias etc. Assim, ocorreu um envolvimento dela com toda a equipe, além dos intensivistas: com as copeiras que levavam sua comida, os técnicos do laboratório que iam colher material para exames de outros doentes internados (já que ela não necessitava de exames todos os dias) e os técnicos da radiologia. Algumas situações provocavam risos, como quando ela observava um paciente levantar da cama e tentar caminhar com dificuldade, ela expressou: “eu já passei por isso, dói muito e dá muito medo!”. Pelo tempo de internação na unidade e pela observação do dia-a-dia, desenvolveuse um vínculo da equipe com Alice. Os profissionais tinham grande preocupação com ela, estavam sempre alerta para atender aos seus pedidos, faziam algumas vontades, além de expressarem preocupação em relação à alta da UTI e ida para casa. Os intensivistas comentavam: “Não consigo parar de pensar que a Dona Alice vai morrer. Prefiro não saber!”, disse uma enfermeira. Presenciei o diálogo entre Alice e uma técnica de enfermagem. A paciente chorava. Quando me aproximei para questionar o que estava acontecendo, Alice disse que não era 35 Retirada passiva das secreções por sonda, conectada a um sistema de vácuo. 45 nada demais, só estava triste. Insisti para que dissesse o que havia, mas ela não falou. Quando me afastei, ela continuou a conversar com a técnica e chorar. Pouco depois a técnica veio conversar comigo e relatou que a Alice estava triste, devido ao desligamento de uma técnica de enfermagem, pois declarou que iria sentir saudades. Percebi que os técnicos de enfermagem mantêm um contato mais próximo com os pacientes, em comparação com a equipe médica e de fisioterapia, devido aos cuidados que realizam, como banho, troca de fraldas, medicações, alimentação. Em decorrência deste envolvimento com Alice, sua filha Joana tinha prioridade no setor, sendo permitido um tempo maior do que o habitual de permanência durante a visita. Ela podia deixar alguns pertences da Alice no leito, como escova para cabelos e dentes, perfume, hidratante, óculos, espelho, comida, tudo a pedido da própria doente. Mesmo que ela chegasse atrasada para o horário da visita, era concedida a liberdade de visitar sua mãe, sem que a equipe reclamasse. Essa atitude só era permitida para a filha da Alice, jamais para familiares de outros doentes. Na inauguração da UTI após a obra, houve um momento de descontração para esta paciente. A equipe de fisioterapia a levou para a nova unidade caminhando e, ao chegar na porta da UTI, brincadeiras foram feitas com a doente: “Vai para casa nova!”, disse uma enfermeira. “Corta a fitinha de inauguração, Dona Alice!”, disse uma fisioterapeuta. Após algumas semanas internadas na “nova UTI”, Joana procurou-me para conversar sobre a ideia de levar sua mãe para casa. Ela perguntou sobre a maneira de conseguir um home care36 pelo SUS e questionou se seria muito difícil. Disse a ela que seria um longo processo judicial, mas que seria possível. Comentei então que conversaria com o médico da rotina para saber quais procedimentos seriam necessários para iniciar o processo, pois ela só teria condições de ir para casa com toda a aparelhagem, para suprir suas necessidades físicas. Conversei com o médico da rotina sobre a possibilidade de dar alta para Alice. Afirmei que era o momento de pensarmos mais nela do que em nós – intensivistas -, de pensar no emocional da paciente e não nas condutas traçadas para ela. Reiterei minha opinião, de que ela não teria condições de ir de alta, pela necessidade de 36 Também conhecido como assistência domiciliar. É uma modalidade continuada de prestação de serviços na área da saúde, que visa à continuidade do tratamento hospitalar no domicílio. É realizado por equipe multidisciplinar. 46 ventilação mecânica e de cuidados intensivos, mas que a doente precisava permanecer próxima da família e, quem sabe, assim ela teria “melhor qualidade de vida”. Ele concordou e disse que é o momento de pensar nos sentimentos de Alice e disse que iria conversar com a filha, para resolver a situação burocrática. Ele conversou com Joana e decidiram iniciar o processo para solicitação do home care. Ao terminar o período de observação, Alice ainda permanecia internada na unidade. Como logo após o término da coleta de dados entrei de férias, não acompanhei o processo. No final do mês de maio, ainda de férias, recebi uma mensagem de texto de uma residente de fisioterapia, que dizia que a Alice tinha ido de alta para a enfermaria e que todos estavam muito contentes com a situação, sobretudo a enferma. Aguardavam o julgamento do processo para o home care. A situação da Alice é análoga ao caso descrito por Menezes (2006, p. 85), sobre o envolvimento de uma profissional com um paciente, em que uma enfermeira diz em entrevista: “As minhas barreiras não foram suficientes e acabei levando o Carlos pra minha casa. Aí eu chegava em casa e o meu marido perguntava: como é que foi o Carlos hoje? Eu trouxe a minha filha pra conhecer o Carlos. Sabe, Carlos, essa aqui é minha filha. E lembro da cara dele direitinho, do sorriso que ele dava, um sorriso sem dente. Ele conheceu minha filha e eu conheci a esposa dele, as filhas, os filhos, os problemas, tudinho. Eu me envolvi de tal jeito. E ele ficou no CTI durante tanto tempo que ninguém aguentava mais o Carlos, ninguém queria prestar assistência ao Carlos. E me envolvi tanto com ele que, mesmo eu sendo enfermeira plantonista, eu ia prestar assistência direta a ele”. Outra situação semelhante é mencionada por Bonet (2004, p. 106), ao se referir a um residente de medicina que se preocupava com o bem-estar do paciente de tal modo, para além do cuidado estritamente médico. Ele havia dado alta para casa para o enfermo, que apenas aguardava o resultado da biópsia. O residente considerou que o paciente estaria melhor em casa do que no hospital (sua preocupação era pelo doente e não pelos custos hospitalares). Dias depois ele comentou: “Dei-lhe alta até que saísse a biópsia, e chamou a irmã (dele) porque sentia dores (...) disse a ela: ‘é bom trazê-lo porque a cama 28, na qual ele estava, está desocupada’; mas, quando saiu, estava muito magro (...) voltou a se internar. Na segunda, à noite, estava em minha casa, vendo televisão; liguei para saber como estava, e me disseram que havia morrido”. No dia seguinte o residente comentou 47 que foi ao enterro do doente, situação inusitada, em se tratando de estudante de medicina ou de médico. *** Enquanto a UTI estava em obras e havia apenas dois leitos em funcionamento, uma doente do sexo feminino, 33 anos, negra, estava internada na enfermaria de ginecologia, em acompanhamento pós-operatório, de histerectomia37. A paciente estava grávida de seu quinto filho, porém ele havia morrido. O parto foi induzido para a retirada do feto. Durante a indução houve uma ruptura uterina e grande sangramento, o que provocou a decisão médica de retirada do útero. A doente foi intubada e levada para a enfermaria em estado grave, já que não havia leito vago na UTI. O médico do plantão geral pediu auxílio ao médico plantonista da UTI, para dar assistência à enferma. Toda a equipe intensivista foi mobilizada – médico, fisioterapeuta, enfermeira – e surgiram questionamentos sobre o caso: “a paciente é muito nova, já tem quatro filhos, por que tantos filhos?”, “por que não fizeram uma cesárea na paciente, já que era um feto morto?”. O médico explicou à equipe que, geralmente, nesses casos não é feita a cesárea, para que a doente não fique com uma cicatriz e não traga recordações daquele momento, por se tratar de um feto morto, além de se tratar de um hospital público, caso tivesse sido na rede privada, talvez fizessem a cirurgia. Importante ressaltar que naquele momento não havia apenas esta paciente grave nas enfermarias, mas foi a que provocou mobilização da equipe da UTI. Todo o cuidado possível foi fornecido à paciente: transfusão sanguínea, exames laboratoriais, hemodiálise, retorno ao centro cirúrgico para lavagem da cavidade abdominal, pois ainda havia sangramento. Todos os procedimentos foram conduzidos pela equipe da UTI, e não das enfermarias. No início do plantão, ao ser “passado o caso” para o médico intensivista, foi cogitada a ideia de dar alta para Alice, que estava internada há mais de cem dias na unidade, mas ainda necessitava de cuidados intensivos, como a ventilação mecânica. A alta não foi dada na ocasião, e a paciente jovem foi transferida para um hospital de referência obstétrica dois dias depois. Esse episódio evidencia a mobilização dos intensivistas, em relação a pacientes jovens, principalmente ao cogitar a possibilidade de alta da UTI para uma enferma idosa, mesmo sem condições clínicas de permanecer em enfermaria. Como afirma Lasagna 37 Cirurgia para extração do útero. 48 (1982, p. 83), o comportamento do profissional de saúde, em relação ao doente grave, é influenciado pelo próprio paciente e sua doença. Um dos principais determinantes desse comportamento é a idade: quanto mais jovem for o enfermo, maior o entusiasmo da equipe. Casos semelhantes foram descritos por Menezes (2006, p. 68): um residente de medicina, angustiado, com a solicitação de uma vaga de UTI para um jovem de 16 anos diz: “Bem que podia acontecer uma desgraça com o senhor do leito 4. Ele podia ter uma acidose38 daquelas que a gente não consegue controlar e... Seria uma desgraça para ele e um bem para esse garoto que precisa da vaga”. O paciente do leito 4 tinha 50 anos. Outra situação observada por Menezes (2005, p. 210): uma médica se referiu a um doente com AIDS que tinha apresentado piora clínica, afirmando: “não vamos desistir deste doente: ele é jovem, está reagindo e pode ser salvo”. O valor da juventude é geralmente reiterado por profissionais de UTIs. 4.2. “De volta para casa” Com o término das obras e o retorno à UTI, a rotina foi reestabelecida e os pacientes graves e instáveis que estavam nas enfermarias foram internados no setor. Com isso, uma unidade que funcionava com apenas dois leitos, passou a trabalhar com oito. Assim, a movimentação de pessoas aumentou, pois não havia mais necessidade de remanejamentos de membros da equipe de enfermagem. Um médico comentou que não aguentava “essa bagunça” e o fato de ser chamado em muitos momentos. Por esta razão, afirmava precisar de “dar uma respirada lá fora” e descia até a cantina do hospital para tomar um café. Alguns médicos e técnicos de enfermagem disseram que não queriam ter retornado para a UTI, pois agora teriam mais trabalho, pois o número de pacientes aumentou, em comparação com o período em que estavam na enfermaria da Ortopedia. Alguns fisioterapeutas e médicos declaravam felicidade, por estarem de “volta pra casa”. Ao atenderem um paciente que havia sido internado no setor, as residentes de fisioterapia permaneceram além de seus horários, para avaliação e atendimento do enfermo. Elas comentaram então que estavam nervosas, por não realizar um atendimento de um paciente grave há muito tempo e, ao mesmo tempo, estavam animadas com a 38 É a diminuição do pH de todo o organismo, tornando-o ácido devido à baixa concentração de bicarbonato no sangue. 49 situação. Esse sentimento de “animação”, tanto pelo fato de estar novamente no “ambiente próprio”, em um local conhecido e “dominado” pelos profissionais do setor, como pela possibilidade de cuidar de pacientes graves e instáveis, que não estavam internados na enfermaria da Ortopedia (pois eram apenas dois pacientes crônicos, porém estáveis) foi comentado diversas vezes, ao longo da semana. Somente a funcionária administrativa não demonstrou a mesma “euforia”, pois ela começou a trabalhar com a equipe intensivista quando a UTI ainda estava em obras. Assim, ela não pôde presenciar situações com intercorrências com os pacientes. Portanto, ao retornar ao setor, ela ficou espantada com a “confusão” durante a internação de um doente grave. Sua atitude não demorou para se modificar, após cerca de três ou quatro dias, quando a funcionária não se assustou mais com a rotina. Durante a intubação de uma paciente, de 90 anos, portadora de doença pulmonar crônica, o médico, a fisioterapeuta e a enfermeira realizavam o procedimento e todos os técnicos de enfermagem observavam a intercorrência, com “olhar triste”, cabisbaixo. Um técnico questionou-me se a paciente teria chances de sair da UTI e digo a ele que provavelmente não, por se tratar de uma doente muito grave, com doença e idade avançadas, o que interfere no desmame da ventilação mecânica. Ele pergunta se não seria melhor pedir autorização para a realização de traqueostomia precoce (procedimento que usualmente é efetuado após aproximadamente 12 dias de tubo orotraqueal39). Respondi que sim, pois poderia facilitar a retirada da ventilação mecânica. Essa situação chamou minha atenção, pois o “olhar triste” e “com pena” dos profissionais de saúde é raramente visível, em se tratando de intubação de paciente. Geralmente esses eventos são realizados com rapidez, com restrito espaço para expressão de emoções. A paciente morreu nesta mesma noite. Ocorreram situações que despertaram uma mobilização na equipe intensivista, como no caso em que pacientes internados necessitam de intervenções cirúrgicas, o que podia agravar seu quadro clínico, quando enfermos acordados e lúcidos necessitam de auxílio para comer, mudar de posição no leito, etc.; quando não há melhora do paciente e a morte ocorre, de forma não esperada – para os intensivistas. Situações como estas podem provocar uma expressão de desconforto, da parte dos profissionais, que desabafam com seus colegas. Em certa ocasião, ao chegar no plantão, um técnico de enfermagem 39 Intubação orotraqueal (IOT), consiste na colocação e fixação de um tubo (tubo orotraqueal) dentro da traqueia do paciente (canal que liga a garganta ao pulmão) para que o ventilador mecânico seja conectado. 50 comentou com a enfermeira que não queria cuidar de determinado enfermo, por estar muito próximo dele, pois no último plantão conversou com ele e tomou conhecimento de certos dados sobre sua vida fora do hospital. O desejo do profissional foi expresso então: quer que o paciente saia da UTI bem e, caso morra, sabe que sofrerá muito. Essa situação é semelhante ao que Menezes (2005, p. 209) descreveu, quando uma enfermeira se referiu à possibilidade de envolvimento emocional: “Quando eu vejo que a barreira está diminuindo, levanto ela de novo: eu fujo”. Esta declaração reflete o que Rabin e Rabin (1982, p. 179) referem, em relação à forma de lidar com a morte. Não importa qual o tipo de relação existente entre profissional e paciente, em geral, o intensivista apresenta dificuldades de aceitar a morte. De acordo com Herzlich (1993, p. 10), o ocultamento da morte visa proteger a vida hospitalar, evitar a angústia dos profissionais, o que não significa proteger o doente do sofrimento, no final de sua vida. A angústia ou culpa de um profissional de saúde pode perturbar sua capacidade de tomar decisões com objetividade. Cada profissional encontra sua própria maneira de lidar com o sofrimento e com a morte de um paciente. Foram observadas duas formas de gestão das emoções: uma atitude aparentemente impessoal, na relação com o paciente ou a evitação de contato com o doente. Para Deslandes (2002, p. 140) a postura forjada pelo profissional no cotidiano pode se apresentar de dois modos: ficar insensível, diante da recorrência de tantas situações semelhantes, ou ter a concreta necessidade de se acostumar, para não sofrer a cada novo episódio. Entre a “frieza humana” da falta de solidariedade, e a “frieza profissional” necessária para atuar, muitos desenvolvem uma “comoção seletiva”, o que permite ao profissional se emocionar somente diante de algum tipo específico de situação ou de doente, como crianças e jovens. De acordo com Menezes (2004, p. 170), a morte de crianças e adolescentes, invertendo a sequência natural dos acontecimentos, é, na sociedade ocidental contemporânea, particularmente triste, tendo em vista a valorização desta faixa etária, constituindo o principal critério de “morte injusta”, que é especialmente valorizada pela equipe, ao se tratar de uma situação familiar socialmente valorizada, como, por exemplo, uma jovem mãe com bebê ou filhos pequenos. A mobilização emocional dos intensivistas é consideravelmente maior quanto mais jovem for o enfermo (MENEZES, 2006, p. 69). 51 Bonet (2004, p. 106) menciona a fala de um residente de medicina, que expressa esta “frieza profissional”: “à medida que passa o tempo, ‘cada vez mais você se torna pior’. No princípio, quando morre um paciente seu, você chora; depois vai passando”. Menezes (2001, p. 128) refere que esse distanciamento do drama vivido pelo doente e por seus familiares faz parte da prática voltada ao “cuidado competente”, uma forma específica de organização do tempo do profissional. O tempo é um dos aspectos a serem levados em conta, na gestão das emoções do profissional de saúde. Quando o intensivista “se envolve” com o drama vivido pelo enfermo, ele passa a dedicar um tempo maior do que o “adequado”. Tal aspecto se apresenta particularmente neste setor, pelo fato de se tratar de um ambiente que lida com situações críticas, no limiar da vida e da morte, passíveis de extrema mobilização para os profissionais. Essa aproximação do enfermo foi descrita por Menezes (2006, p. 85), em uma situação em que um médico, ao “receber o plantão” e ouvir o relato do caso de um menino de 11 anos com o mesmo nome de seu filho, reagiu: “Deus me livre, que caso grave, e tem o mesmo nome do meu filho”. Essa identificação influenciou a tomada de decisão de alterar a medicação: “Diminui o Fentanil40 para 50 por hora, para o menino não chorar. Assim o pai não fica estressado, nem a gente, Deus me livre”. Na UTI, a tecnologia dura – descrita por Merhy (1999) como referida aos equipamentos, insumos, protocolos – associada aos riscos de vida, pela instabilidade crítica da saúde dos pacientes, pode ser usada como justificativa para reduzir o processo de escuta do outro. Entretanto, a tecnologia leve – das relações entre os sujeitos, o diálogo ativo, a escuta atenta – não deveria ser desconsiderada, ao contrário, pode e deve existir permeabilidade entre elas, sabendo-se que é a tecnologia leve que move as relações, inclusive com equipamentos e suas leituras. Em ambiente intensivista, somente a tecnologia não é capaz de responder às múltiplas variáveis que emergem das situações. Se não houver articulação que favoreça o cruzamento da tecnologia dura ao projeto de cuidado como reconhecimento da condição de sujeito, não construímos sujeitos, e não cuidamos de sujeitos, mas apenas mantemos “estabilizados” corpos acoplados e sustentados pela tecnologia dura (DUARTE; MOREIRA, 2011, p. 695). Para alguns membros da equipe, lidar com emoções é “perda de tempo”. O trabalho voltado às funções dos órgãos, às medidas, procedimentos técnicos e terapêuticos, é mais 40 Potente analgésico utilizado contra a dor. 52 valorizado do que o contato com sentimentos. Lidar com emoções dos pacientes pode demandar um tempo e uma mobilização afetiva dos profissionais, que passam a ser consideradas “interferências” ao bom andamento do trabalho. A delegação dos encargos da morte à equipe deste setor hospitalar não fornece ao profissional os meios de elaboração do contato com o sofrimento. Assim, apresenta-se um ônus. As equipes da UTI são formadas de modo a se posicionarem a uma distância “adequada” do doente e de seu sofrimento. O profissional não deve estar tão próximo, de modo a propiciar uma identificação com o drama vivido nem tão distante, o que pode impedir um mínimo de contato necessário ao desenvolvimento de uma interação entre médico e paciente (MENEZES, 2005, p.210). Os profissionais de saúde são diariamente confrontados ao sofrimento alheio e devem reprimir uma forte tendência à empatia com a situação dos doentes para não se emocionarem. Um quadro de referências, parte integrante de seu ofício que, entretanto não exclui o sentimento de proximidade ou de compaixão, indica aos profissionais a justa medida da distância afetiva. Ele permite o reconhecimento do outro ao mesmo tempo em que impede o absorvimento por suas aflições. A prática de alguns ofícios exige um sólido autocontrole para que o profissional não se deixe levar pelo sofrimento do outro e mantenha, até o fim, a atitude adequada, tampouco caindo na indiferença ou na rotina. São ocupações que exigem uma aptidão ao trabalho emocional, o controle da afetividade pessoal nos momentos em que o sujeito deve se esforçar para suscitar e manifestamente ouvir a reclamação ou o pedido do outro, enviando-lhe uma imagem positiva (LE BRETON, 2009, P. 145). De acordo com Menezes (2006, p. 85), o envolvimento do profissional com o doente e seu sofrimento, além de certo limite, é percebido como uma dissolução dos limites necessários à atitude ideal, uma ameaça à sua atuação técnica. Nesse sentido, os mecanismos de gestão das emoções são cruciais para garantir a eficiência do trabalho. Assim, muitas vezes os profissionais procuram se distanciar dos pacientes para não despertar as emoções que possam emergir no contato com eles. Na rotina institucional do hospital moderno há restrito espaço para emoções – sejam as da equipe, dos doentes e/ou dos familiares. Esta restrição de espaço para a expressão de sentimentos é um sintoma das sociedades contemporâneas, nas quais frequentemente as pessoas constroem uma autoimagem de mônadas isoladas, o “homo clausus” (ELIAS, 2001, p. 63). 53 De acordo com Rezende e Coelho (2010, p. 98), a expressão dos sentimentos, na etnopsicologia ocidental moderna, é considerada como um domínio sujeito às regras sociais que regulam quando, como e para quem manifestar emoções. Em contrapartida, o sentimento seria uma reação da ordem do natural ou mesmo biológico, que pode ser diferenciada das normas sociais. Seria, portanto, um fenômeno ao mesmo tempo individual, no sentido de particular de cada um, e comum a todos os seres humanos. Fundamental nessa visão é a concepção de que a pessoa possui uma dimensão interna e privada, que se distingue de sua apresentação pública. As emoções localizam-se assim nessa interioridade e surge a ideia de uma distinção entre o sentimento sentido e o sentimento expresso. O que é sentido e pensado no privado é verdadeiro enquanto o que é apresentado em público pode ser falso. Cria-se, portanto, uma tensão entre sentir e expressar. Por sua vez, como afirma Sennett (1988), as expressões autênticas dessa interioridade são valorizadas, principalmente quando acontecem em público. A emoção expressa pode estar em dissintonia com o sentir já que o indivíduo não deseja expor-se e pretende responder aos seus companheiros por intermédio de uma série de sinais que exprimem outra situação. Pode haver vantagem em representar outro sentimento por razões de conformidade, de preservação da própria imagem, enquanto estratégia pessoal, no objetivo de alcançar favores de alguém, para não se expor, para não machucar o outro etc. Ao manifestar os sinais aparentes de uma emoção que não sente, o indivíduo se insere em meio às expectativas coletivas ou constrói seu personagem de maneira apropriada a suas intenções. A face social sobrepõe-se, de certa forma, à interioridade do sentimento (LE BRETON, 2009, p. 142). As mesmas circunstâncias determinam comportamentos afetivos sensivelmente diferentes se o indivíduo está sozinho em seu quarto ou em meio a um grupo de pessoas próximas ou desconhecidas. A ressonância das emoções é, portanto, variável, assim como o regime de sinais individuais cuja exibição ou pronúncia ela causa. Em nossas sociedades, a linha que divide o público e o privado, em termos de relacionamento com o corpo e com a afetividade, é claramente delimitada. Sozinho em sua casa, o homem pode entregar-se ao choro ou às lamentações num período de tristeza; em meio a desconhecidos, ele se esforça para se controlar. De acordo com diferentes públicos que presenciam ou que participam ativamente, a emoção pode tomar formas e intensidades variadas, seja ela compartilhada ou não (LE BRETON, 2009, p. 162). 54 O ambiente da UTI foi construído para a cura dos pacientes, sendo o trabalho da equipe centrado na técnica, nos procedimentos de cuidado ao enfermo, nas tecnologias e nas rotinas institucionais. Assim, prioriza-se a objetividade, em detrimento do espaço para os sentimentos. O que importa para a rotina institucional é a realização das condutas de maneira correta e, caso o profissional se envolva emocionalmente, ela poderá ser afetada. O que ocorre na UTI é semelhante ao que Mauss (1979) afirma, em seu artigo “A Expressão Obrigatória de Sentimentos”. Segundo o autor, as expressões orais dos sentimentos consistem em fenômenos sociais marcados, de caráter coletivo. Trata-se de uma obrigação para determinado grupo. A forma de expressar a emoção não é espontânea. Antes, trata-se de uma linguagem, uma ação simbólica. Na terapia intensiva, o modelo de comportamento dos profissionais indica a “obrigação” de não expressar o sofrimento, para não perturbar a rotina do setor. Deste modo, a maneira adequada de expressão no setor é o silêncio. Toda a equipe deve se posicionar da mesma maneira. A medicina é compreendida por diversos autores como constituída por uma dupla dimensão, que pode ser nomeada de diversas formas: “competência-cuidado”, “objetividade-subjetividade”, “racionalidade-experiência”, “sabersentir”, entre outras (MENEZES, 2001, p. 118). Não são pólos facilmente articuláveis e ao mesmo tempo são intrínsecos e inerentes à prática médica, o que conduz necessariamente a uma tensão, compreendida como estruturante dessa mesma prática. Mary-Jo Del Vecchio Good e Byron Good (1993) enfocaram a dupla dimensão da medicina, em pesquisa realizada com estudantes, na qual os temas do “cuidado” e da “competência” representam uma tensão cultural desenvolvida durante o período de aprendizado. A “competência” é associada à linguagem das ciências básicas, ao conhecimento, à técnica, ao fazer e à ação, enquanto o “cuidar” é expresso na linguagem dos valores, das relações, da compaixão e empatia, isto é, o “não-técnico”, vinculado às “humanidades”. Ao longo de sua formação, os estudantes entram em contato com esta dupla dimensão e nos estágios práticos eles serão confrontados com os modos como os profissionais resolvem a difícil equação entre “cuidado” e “competência”. Mas somente o saber e a competência não dão conta da abrangência da prática médica, pois a experiência, o sentir e a subjetividade do profissional também são extremamente relevantes no atendimento ao doente (MENEZES, 2001, p. 118). Para Testa (1992), a transformação do paciente em objeto não é um fato isolado e circunstancial, mas a constatação de que qualquer paciente é, ao mesmo tempo, objeto e 55 sujeito. A enfermidade de origem biológica, que afeta órgãos definidos, faz com que se destaque o caráter objetual do indivíduo e, portanto, o tratamento desse particular objeto. A objetualização incontrolada, todavia, produz consequências negativas para o paciente e o profissional de saúde, sendo a subjetividade e a socialidade importantes para a eficácia do tratamento. O autor insiste que considerar o paciente em sua condição de objeto é uma necessidade parcial da atenção ao paciente, mas a objetualização absoluta leva a sofrimentos de pacientes e profissionais (DUARTE; MOREIRA, 2011, p. 697). Bonet (2004, p. 118), em sua etnografia da aprendizagem médica, constatou as delimitações do “profissional” e do “humano”, ou do “saber” e do “sentir”, como dois conjuntos de representações separadas, que se manifestam de forma permanente nas práticas cotidianas do serviço. Para se constituir como um campo de saber científico, a “biomedicina” – baseada nessa construção dualista, o que se denominou “tensão estruturante”, - afastou três totalidades: o médico, o paciente e a relação entre eles, deslocando para o inconsciente os aspectos emocionais dessas totalidades porque não se encaixavam no discurso criado sobre o processo de saúde-doença. Mas, no dia-a-dia, o que foi reprimido encontra uma brecha pela qual se manifesta, fazendo sentir seus efeitos na prática biomédica. A UTI pode ser considerada um local em que a tensão estruturante da medicina – o “cuidado” e a “competência” – apresenta-se de forma particularmente explícita, tendo em vista a importância da tecnologia nesse setor (MENEZES, 2001, p. 118). Segundo Menezes (2005, p. 211), as formas de gestão emocional utilizadas pela equipe da UTI, referentes ao modelo de morte presente neste ambiente hospitalar – o modelo de “morte moderna” -, são: a fragmentação, quando os profissionais se referem ao doente por meio de partes de seu corpo, de seus parâmetros, órgãos e funções, por exemplo, “o paciente do leito um”, “o HIV”, “o fígado do leito dois”; e a medicalização, pelo uso de medicamentos, como os calmantes ou de categorias médicas em relação ao sofrimento, como a psiquiatria. A rotina das equipes é organizada de forma a silenciar a expressão emocional dos atores sociais envolvidos. Desse modo a morte, tão presente, é silenciada, banalizada, regulada e rotinizada. As palavras morte e morrer são evitadas e os eufemismos são largamente utilizados pela equipe intensivista: “está descendo a ladeira”, “está indo embora”, “está no finzinho”, “não há mais o que fazer”, “está afundando”, “está entregue a 56 Deus”, “não vai durar muito”, “parou, tentaram reverter mas não deu”, “não vai passar de hoje”, “alta celestial”, além de “faleceu” (MENEZES, 2006, p. 83). No momento em que o “saber” não dá respostas esperadas, o “sentir” adquire força e é então que os dramas sociais explodem, os médicos conseguem perceber a ilusão da separação entre profissional e humano, ou entre o saber e o sentir (BONET, 2004, p. 118). Quando os sentimentos não são relacionados à morte, geralmente os profissionais compartilham com todos da equipe. Caso esteja envolvido algum paciente grave, com risco de morte, as emoções tendem a ser ocultadas o máximo possível, e não sendo compartilhadas entre os profissionais, mas apenas com os mais próximos, sejam eles da própria categoria e/ou equipe ou não. 4.3 “Aqui dentro”, “lá fora” A rotina da UTI é baseada no modelo de interdisciplinaridade, em que a equipe busca uma abrangência e qualidade na assistência prestada ao paciente, com articulação entre os profissionais, em que cada especialidade saiba seu local de atuação, sem prejudicar ou se sobrepor à atuação do colega. Exige que a equipe médica se transforme em equipe de saúde. Porém, o que ocorre na prática é a multidisciplinaridade, oriunda da justaposição de disciplinas com o intuito de atuar sobre certos elementos comuns dentro de uma realidade compartilhada (RIOS, 2011, p. 117). Entretanto, uma hierarquia se destaca na UTI: “médico-demais profissionais de saúde”. Esta forma de organização simbólica não permite que o diálogo ocorra sem divergências, gerando conflitos entres os profissionais, uma vez que os médicos detêm o “poder” do setor e os outros integrantes da equipe preconizam que o serviço seja organizado de modo interdisciplinar. Essa hierarquia se apresenta em diversas situações, especialmente quando são discutidas condutas terapêuticas em relação a enfermos FPTC. No entanto, na UTI também há situações em que há uma valorização dos profissionais, como nas seguintes: Um médico questionou a possibilidade de dar alta da UTI para uma paciente, e respondi que talvez não fosse o melhor momento, pois ela ainda necessitava de cuidados intensivos e não os teria na enfermaria. Ele concordou com minha opinião e a alta não foi 57 dada. Após esse questionamento, perguntei a ele se não haveria indicação de prescrição de medicação antidepressiva para a enferma, uma vez que ela estava internada há muitos dias, lúcida e mal adaptada ao ventilador mecânico quando acordada, o que impossibilitava seu desmame. Ele também concordou com a conduta41. Quando uma das equipes – enfermagem ou fisioterapia – solicita ao médico que prescreva alguma medicação para um doente, geralmente se trata de analgésicos42, para que possam realizar as condutas sem que o enfermo sinta dor, ou sedativos 43, para auxiliar na adaptação ao ventilador mecânico ou para que o doente fique menos agitado, o que perturba a rotina do setor. Tais demandas usualmente são bem recebidas e geralmente atendidas. Nesses casos há uma valorização do que é dito. Ao perceber alguma alteração no tubo ou na traqueostomia do paciente, os fisioterapeutas comunicam ao médico a ocorrência. Nesses casos faz-se necessária uma rápida intervenção, para evitar prejuízos ao doente. Em todas as situações observadas, os médicos realizaram a conduta prontamente, o que demonstra confiança na avaliação técnica e clínica dos profissionais. Entre os profissionais da rotina - especialmente os médicos e de fisioterapia, já que a rotina de enfermagem se concentra em resolver problemas burocráticos do setor e nem sempre está na assistência – há um diálogo, para saber o que ocorreu com os pacientes internados. O médico da rotina afirma aos plantonistas que a rotina da fisioterapia tem conhecimento de detalhes minuciosos dos doentes, pelo fato de estarem presentes por maior tempo dentro da unidade. O médico de plantão recebe várias sugestões, mas nem todas as opiniões são aceitas, pois dependerá do médico de plantão, do profissional que está contestando e do enfermo em questão. Alguns médicos tomam decisões sem a concordância das demais categorias profissionais, como no caso de expor se o paciente tem chances de cura ou se simplesmente é “conforto” (como é chamado o paciente FPTC nesta UTI). Nestes casos, não importará a opinião dos demais, visto que o médico chegou a conclusões de que o doente não terá chances de melhora. Este tipo de situação pode gerar conflitos entre membros da equipe. Nada é exposto pelos demais profissionais, todos acolhem a decisão, podem até não concordar, mas não entram em discussão. Geralmente os intensivistas 41 Técnica utilizada para o tratamento. Medicamento contra a dor. 43 Substâncias com o intuito de acalmar o paciente, muitas vezes causando sonolência. 42 58 expressam sua indignação para seus pares. A frustação foi relatada por Seymour (2001, p. 62), em uma situação em que o médico solicita que a sedação da paciente seja reduzida, para que ele possa evoluir o desmame de ventilação mecânica. As enfermeiras não concordam com a conduta, mas elas não se dirigem ao médico para afirmar sua opinião, mas conversam dentro do grupo da enfermagem. Nesta UTI, quem monitoriza e realiza alterações nos parâmetros da ventilação mecânica é a equipe de fisioterapia. Contudo, se houver discordância, é o médico o profissional que toma a decisão. Assim, por vezes há conflitos entre médicos e fisioterapeutas, por divergência em relação a condutas. Em certas ocasiões, medidas são tomadas pela equipe médica e não são comunicadas verbalmente às demais, principalmente à enfermagem. Como exemplo, alta de doentes internados na UTI, suspensão de medicações ou dieta da prescrição 44 do enfermo, pedidos de internação etc.. Nestes casos os profissionais expressam irritação: “Ninguém lê minhas evoluções45? Tá escrito lá”, disse um médico. “A enfermagem é a última a saber das coisas”, disse uma enfermeira, ao tomar conhecimento de que haveria uma internação. “Eles diminuem e não avisam a ninguém”, disse uma enfermeira, ao perceber que a vazão46 da medicação do doente foi modificada. Este tipo de tensão, em decorrência desta modalidade de circunstâncias são comuns na rotina da UTI, visto que a enfermagem necessita saber de muitas, senão de todas, medidas realizadas ou modificadas em relação aos doentes, pois é ela quem administra o setor. O profissional de enfermagem deve saber a que horas um paciente poderá ir de alta ou será internado, já que quem prepara o leito para a internação ou prepara o enfermo para a transferência para a enfermaria é a enfermagem. Além disso, é ele quem controla os horários de visita, que tem a função de comunicar o momento em que poderá ser liberada a entrada dos familiares no setor, e antes da liberação, deve conferir se os doentes estão limpos e estáveis, para que não ocorra qualquer intercorrência durante a visita; manter a ordem no setor, tanto dos profissionais que realizam procedimentos e necessitam de materiais que são organizados e instrumentados pela enfermagem, como dos doentes, com a função de vigiá-los, a fim de saber se estão estáveis, agitados, com febre ou chamando 44 Ato de dispor em papel as drogas e seu modo de usar, a dieta e outros cuidados a serem dados ao paciente; receita médica. Escrita diária sobre o quadro clínico dos pacientes nos prontuários. 46 Quantidade volumétrica de um fluido, no caso a medicação, que escoa por uma seção de uma tubulação ou canal, no caso a bomba infusora, por unidade de tempo. 45 59 por algum motivo; além de monitorar os equipamentos que estão no setor. Essa série de tarefas da enfermagem é distinta daquelas dos médicos. Estes últimos profissionais detêm o “poder” sobre o doente, enquanto a enfermagem é responsável pela ordem do setor, o que inclui tanto os profissionais como os enfermos. A enfermagem é o “coração” da UTI, ou quem sabe, do hospital (MENEZES, 2006, p.50). O enfermeiro deve ter ciência de tudo o que é realizado dentro do setor. Por vezes ele deve auxiliar o médico, deve realizar medicações; conter o enfermo no leito, para evitar que ele arranque sondas, tubos e acessos venosos; auxiliar em procedimentos invasivos, como punção venosa ou arterial47, com a finalidade de preparar o material para uso do médico, desde as luvas do tamanho ideal até os instrumentos cirúrgicos; intubações orotraqueais, em que são separados os materiais como o tubo, medicamentos, ambú 48; nas paradas cardíacas, auxiliam inclusive na massagem cardíaca etc. Algumas medidas podem ser realizadas por qualquer membro da equipe, mas geralmente elas constituem responsabilidade do enfermeiro. No estudo etnográfico que empreendeu na Inglaterra, Seymour (2001, p. 60) refere um trecho da entrevista com uma enfermeira: “eu sinto que a equipe de enfermagem da UTI tem a responsabilidade total com tudo o que acontece ao paciente, seja o cuidado de enfermagem, cuidado do bem-estar psicológico e clínico do doente, além de cuidar dos familiares e todas as intervenções médicas que acontecem para o enfermo, você se sente diretamente envolvidos com os pacientes”. Ao realizar o banho dos pacientes, a enfermagem consulta o profissional de fisioterapia, sobretudo quando o enfermo está sob os cuidados de fisioterapia respiratória e necessita de ventilação não invasiva 49 (VNI), ou quando precisa trocar a fixação do tubo orotraqueal (funções dos fisioterapeutas nesta UTI) ou, ainda, no caso de desmame, para que não ocorra qualquer intercorrência durante o procedimento. “Quando for dar banho nela (paciente), avisa a gente (fisioterapeutas) para voltar ela para a VM”, digo ao técnico de enfermagem. “Posso trocar o fixador ou vocês trocam?”, me pergunta um técnico de enfermagem durante o banho do paciente. 47 Ato de puncionar; operação que consiste em penetrar em cavidade ou coleção líquida, com instrumento perfurado para retirada de líquidos. Pode ser na veia ou na artéria. 48 Aparelho para ventilação manual. 49 Técnica na qual é colocada uma máscara adaptada ao rosto do paciente, que evita fuga de ar. A máscara está ligada a uma máquina que gera um fluxo de ar, para facilitar a respiração e melhorar a oxigenação. 60 Há ainda outro tipo de relação, em que os intensivistas não conversam sobre condutas. São momentos de descontração, conversas informais durante as refeições, entre um atendimento e outro, comemorações de aniversários dos integrantes da equipe. Essa convivência ocorre sem tensões, exceto quando alguém “invade” o espaço do colega da equipe. Cada categoria possui um espaço físico pré-determinado dentro da UTI. Os médicos, no “aquário”, junto com os fisioterapeutas, seus residentes e os acadêmicos de medicina e os enfermeiros e técnicos no posto de enfermagem. Caso a dentista esteja presente no plantão, ela poderá se reunir com qualquer equipe, sem causar incômodo. Os demais profissionais que atuam no setor – nutricionistas, fonoaudiólogos, cirurgiões -, não permanecem por muito tempo, apenas passam para avaliar os doentes e retornam para suas salas, localizadas fora da UTI. As funcionárias da limpeza e administrativa permanecem sempre com a equipe de enfermagem no posto. Quando integrantes da equipe de enfermagem permanecem por muito tempo dentro do “aquário” para utilizar a internet, pois só há computador neste local, alguns médicos reclamam, dizendo que aquele espaço não é para ser desfrutado por outros, mas somente por eles e pela equipe de fisioterapia. Alegam que o “aquário” é o único local de discussão dos casos dos pacientes, para descanso e conversas: “é o lugar deles”. Alguns médicos sugerem a retirada do computador do “aquário”, para não atrapalhar o ambiente, para o uso de todos, mas isto nunca é exposto verbalmente para a enfermagem, somente para seus colegas ou para os fisioterapeutas. De maneira distinta, quando médicos e fisioterapeutas permanecem no posto de enfermagem, os enfermeiros não reclamam da presença dos colegas no “seu espaço”. Nestas ocasiões, há conversas informais e brincadeiras. Por ocasião da obra da UTI surgiram comentários sobre o espaço físico, pois alguns médicos não concordaram com as mudanças realizadas pela chefe da enfermagem no posto de medicações, mesmo sabendo que não seria para seu uso, mas para os técnicos e enfermeiros. Há alguns médicos com uma postura diferente. Eles permitem que todos utilizem qualquer espaço da UTI, seja o banheiro dos médicos, o computador, o “aquário” etc., conduta que promove uma relação de proximidade entre as equipes. Nos plantões destes médicos, geralmente há café da manhã e almoço pagos pelo médico, comemorações de aniversários com direito a bolo, salgadinhos, bolas de enfeite, em que todos participam, cantam parabéns, tiram fotos e as despesas são divididas, com exceção do aniversariante, que poderá ser qualquer membro da equipe. 61 *** Nesta UTI, a equipe de enfermagem dificilmente discute ou argumenta com outras categorias profissionais. Eles permanecem unidos a maior parte do tempo do plantão, seja no momento do trabalho, no leito ou nas brincadeiras e conversas nos horários de refeições. Raramente estão sozinhos e dificilmente convidam um médico para almoçar ou lanchar. Já a equipe de fisioterapia se mantém próxima da equipe médica, especialmente por dividirem o mesmo quarto para descanso e utilizarem o mesmo banheiro, que é sempre separado da enfermagem. A relação com os enfermeiros e técnicos de enfermagem é de proximidade: conversam, brincam, almoçam, além de dividirem certos momentos de expressão de emoções, como desabafo sobre situações difíceis vivenciadas no cotidiano, sobretudo com pacientes jovens ou FPTC. Há momentos de descontração entre as equipes, com brincadeiras. Este tipo de situação é valorizado pelos intensivistas, pela capacidade de tornar o plantão “menos pesado”: “Fisioterapia que nada, trocar fralda faz muito mais exercício! Fisioterapia é para os fracos!”, disse uma enfermeira, brincando com o paciente e com o fisioterapeuta. “O problema desta paciente é da fisioterapia, o problema dela é o desmame do ventilador. É preciso ‘intensificar a fisioterapia’”. disse um médico rindo na passagem de plantão. “Tá ‘boicotando’ nosso trabalho?”, disse um fisioterapeuta ao técnico ao administrar diazepam50 no paciente no momento em que ia sentar o enfermo. “Gasometria!”, exclamou um médico com um estalar de dedos para que a fisioterapeuta pegue a seringa para realizar o exame. Além dessas falas rotineiras durante o trabalho, existem situações em que a conversa é referente a qualquer assunto veiculado na mídia, como: política, novelas, reality show, esportes, viagens, dietas, quando todos participam, riem, comentam e expõem suas opiniões. Apesar de os intensivistas realizarem plantões fora da unidade, como nas enfermarias e nefrologia, eles permanecem grande parte de seu tempo no setor: almoçam, utilizam o banheiro ou apenas vão para conversar com os colegas e comentam o que acontece nos setores “lá fora”. 50 Medicamento ansiolítico, anticonvulsivante, relaxante muscular e sedativo. 62 O panorama aqui descrito, da UTI do HUGG, se assemelha ao que é descrito em estudos que relatam o cotidiano dos intensivistas, como de Glaser e Strauss (1982), Moreira (1996), Seymour (2001), Carapinheiro (2005) e Menezes (2006). Segundo Menezes (2006, p. 48), a prática da UTI pressupõe a existência de uma equipe multiprofissional. No entanto, há um responsável no que se refere à vida do doente: o médico, e é a sua posição que está mais diretamente em jogo. Para Freidson (1988), o que diferencia a profissão médica das paramédicas é o grau de autonomia, prestígio, autoridade e responsabilidade que a profissão médica detém. Há, assim, uma divisão do trabalho organizada com uma hierarquia de autoridade, estabelecida e legitimada, não permanentemente explicitada, uma vez que é necessário um trabalho coordenado entre as equipes, que pode ser sabotado se a hierarquia se tornar explícita. Por essa razão, surgem conflitos entre os profissionais que atuam em UTI. Guimarães e Rego (2005) consideram que o trabalho em equipe é complexo e apresenta importantes consequências para as corporações profissionais da área da saúde, que se constituem como tal por possuírem características, historicidades e processos de trabalhos que as distinguem das demais. Freidson (1970, 1994) afirma que os saberes profissionais e suas especificidades referem-se à autonomia profissional, tema central para o entendimento sociológico das profissões. A existência de conhecimentos próprios à profissão remete ao trabalho especializado e a uma base epistemológica própria, institucionalmente consagrada. A atuação em equipe multiprofissional prescreve uma articulação entre todas as profissões, criando uma zona comum de troca de conhecimentos, de certa forma na contramão do esoterismo corporativo, termo que descreve a característica do saber exclusivo de cada profissão (MORETTI-PIRES et al., 2011, p. 1087). Para Moretti-Pires e colaboradores (2011, p. 1091), para a efetividade do trabalho multiprofissional faz-se necessária uma reavaliação dos saberes e das competências específicas de cada formação profissional, preservar limites e respeitar a divisão do trabalho, sem desconsiderar a necessidade de ações em comum. Ainda segundo os mesmos autores (2011, p. 1091), as sociedades atuais desenvolvem o pensamento de que o profissional não é apenas um indivíduo capaz de resolver problemas concretos, relacionados aos problemas do cotidiano da população, mas também um indivíduo detentor de conhecimentos, que proporciona um poder de autorregulamentação, uma das maiores 63 ambições das profissões atuais, o que permite a cada profissional conhecer seus limites de atuação. Os médicos, em suas atividades cotidianas, instauram constantemente regras implícitas e normas informais de funcionamento, o que estabelece, para os restantes dos profissionais, relações permanentemente inseguras e equivocas com as regras e normas hospitalares, quando pressionados, a cumprir simultaneamente umas e outras (CARAPINHEIRO, 2005, p. 185). Assim, se só os médicos dispõem do saber de diagnosticar e tratar, são eles que estabelecem “oficialmente” o fim do processo de internação, a partir da análise de dados objetivos que comprovam que a situação clínica de cada doente está controlada e que, portanto ele pode receber alta. No entanto, a versão médica “oficial”, imperativa e indiscutível, pode não coincidir com a dos enfermeiros e de outros profissionais de saúde. Para Carapinheiro (2005, p.188), esses desacordos tornam a figura do médico uma autoridade científica indiscutível. A decisão dos enfermeiros é demarcada pelos médicos, definem o que eles podem fazer e dizer aos pacientes e exercem sobre a enfermagem o constante pedido de responsabilidades. Como plataforma de mediação entre médicos e doentes, exige-se aos enfermeiros que desenvolvam não só um trabalho técnico, mas também um trabalho de controle social sobre os doentes, na manutenção da ordem e da disciplina concebida pela autoridade social dos médicos. De acordo com Moreira (1996, p. 15), a prática de enfermagem é percebida pela medicina como “menor”, por seu caráter “subalterno” e meramente “executador” de tarefas e prescrições médicas e, ao mesmo tempo, busca a integridade das ações de cuidado ao paciente. Estes profissionais apresentam uma singularidade, que é constituída por sua prática e saber, o que representa uma centralidade nas equipes hospitalares, especialmente na UTI, pelo fato de terem um contato mais próximo com os doentes internados, em comparação com as outras categorias profissionais. Tal condição permite um controle sobre os pacientes, além de manter a organização do setor. Quer se tratem de problemas relacionados aos pacientes, administrativos ou burocráticos, o controle dos medicamentos dos enfermos, o empréstimo de materiais para outros setores, a marcação de exames, entre outras tarefas, constituem responsabilidade da equipe de enfermagem. Em investigação empreendida na Inglaterra, Seymour (2001, p.64) observou que a equipe de enfermagem, mesmo quando não concorda com as condutas realizadas, tende a 64 não se manifestar. Os enfermeiros se afastam e desabafam com colegas da enfermagem, com fisioterapeutas ou, até com a própria pesquisadora, mas nunca com os médicos. Já para Glaser e Strauss (1982, p. 150), no contexto por eles investigado, os enfermeiros podem demonstrar sua discordância de forma aberta e exercer pressão direta sobre os médicos nessas situações. Quando eles não tentam influenciar a decisão, eles contestam sobre o poder paradoxal da medicina moderna: prolongar a vida por um bom motivo ou nenhum? Essa experiência não foi vivenciada por mim, na relação com enfermeiros, apenas com outros médicos do setor, cirurgiões, nefrologistas e até com fisioterapeutas da unidade. Há situações que acionam processos de negociação. Trata-se daquelas que ocupam uma posição central no processo de trabalho organizado para o tratamento dos doentes e que suscitam desacordos, discrepância de pontos de vista entre médicos e enfermeiros. Nestes casos, há certa padronização e uma tendência a uma solução negociada entre as duas categorias profissionais. Nesta relação surgem casos em que os enfermeiros com experiência podem informar e/ou aconselhar um médico mais jovem sobre as iniciativas de atuação médica, face às situações clínicas problemáticas e seu apoio pode não ser bem aceito. Também, na sequência de um erro médico de prescrição, o enfermeiro que o detectou pode tomar a iniciativa de corrigi-lo, atitude que pode ou não receber aprovação da parte dos médicos (CARAPINHEIRO, 2005, p. 144). Outra situação capaz de gerar conflitos entre estas duas categorias profissionais é quando ocorre alguma urgência, em que o enfermeiro pode tomar a decisão de organizar procedimentos terapêuticos para controlar a crise. Estes profissionais, por vezes sem tempo para aguardar a autorização dos médicos, realizam manobras de reanimação no paciente, como, por exemplo, passar um soro ou iniciar massagem cardíaca em doente com parada cardiorrespiratória. Porém, caso o procedimento não seja eficaz, o enfermeiro pode ser responsabilizado por atuar sozinho e, assim, ter permitido que o enfermo morresse. Por essa razão eles não costumam ultrapassar a decisão médica e tendem a se recolher ao campo cotidiano de tomada de decisões que está delimitado e restrito às intervenções meramente executivas de ordens médicas de prescrição. Tais situações podem ocorrer com qualquer profissional de saúde, não somente com os enfermeiros. No caso das UTIs, esse modelo apresentado por Graça Carapinheiro (2005, p. 190) pode não se confirmar. A autora afirma que, nas terapias intensivas por ela observadas, esse relacionamento pode ser 65 distinto, com melhor entrosamento entre as partes, o que promove satisfação intelectual de enfermeiros e de outros profissionais de saúde. Esta situação foi observada por mim no HUGG. Segundo Menezes (2006, p. 49), há uma tendência, da parte de cada categoria profissional, a se relacionar com seus pares. Apesar da existência de tantas diferenças e tensões entre os diversos grupos que trabalham na UTI, há uma identidade profissional singular, que perpassa todos os agentes de saúde envolvidos – a de intensivista. De acordo com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) 51, “intensivista é o nome dado ao profissional dedicado ao atendimento do paciente internado em unidades emergenciais tais como prontos-socorros e UTIs”. 4.3.1. “Tudo é muito difícil lá fora” Um médico da UTI foi chamado pelo plantonista do plantão geral (médico que atende as intercorrências nas enfermarias após a saída dos profissionais da rotina) para ajudá-lo a conduzir o caso de uma menina de 15 anos internada com pielonefrite 52 e pneumonia53 grave. Ao ser convocado para ir à enfermaria, o médico da UTI me chamou para auxiliar na atenção respiratória à paciente (é importante lembrar que nas enfermarias há uma equipe de fisioterapia). Ao chegarmos ao leito da doente estavam presentes uma fisioterapeuta e uma residente médica daquela enfermaria. Sugeri que a conduta fisioterapêutica fosse modificada, para melhor adaptação da paciente e o médico prescreveu um novo antibiótico, deu orientações à residente sobre as condutas a serem realizadas e conversou com os familiares da doente. Este caso demonstra a relação da equipe intensivista com a das enfermarias, na qual as decisões dos profissionais da UTI são respeitadas pelos colegas, sem contestações. Esses eventos ocorriam sempre que algum doente agravava e não havia vaga disponível na UTI para internação. Pelo fato de recorrer à equipe intensivista para auxiliar na assistência desses pacientes, além de pedir materiais emprestados na UTI, como monitores, ventiladores mecânicos e medicamentos, por vezes os profissionais das enfermarias eram considerados pelos intensivistas como “não capazes” de cuidar de enfermos graves. Importante destacar 51 http://www.amib.org.br/conteudo.asp?cod_site=0&id_menu=53&men=53. Acesso em 01/11/2013. Infecção dos rins, geralmente produzida por bactérias. 53 Inflamação do tecido pulmonar. 52 66 que a equipe intensivista só auxilia os pacientes graves das enfermarias caso eles tenham alguma proposta terapêutica, ou seja, quando não são diagnosticados como FPTC e, em especial, ao se tratar de doente jovem. “Fui ver um paciente na 10ª enfermaria, que a residente não sabia o que fazer, ajudei na parada (cardíaca) e na intubação. Depois de tudo feito, a residente me disse que achava que não era para fazer nada, que o paciente era sem proposta (FPTC). Quase bati na residente”, disse um médico. Um médico disse que as enfermarias deveriam ter o material necessário (medicamentos, ventiladores mecânicos, monitores) para atender pacientes graves que ficam internados, e não ir buscar na UTI. “Eles precisam ir à farmácia pegar, funciona 24 horas. Mas é mais fácil ir na UTI”, disse a enfermeira. “É isso que está acontecendo, e não temos como justificar na farmácia a quantidade de medicamentos gastos com apenas dois pacientes internados, e isso pode trazer problemas”, disse o médico. “Olha aí! Compras da 10ª (enfermaria)!”, disse a enfermeira com a chegada de outra enfermeira na UTI pedindo material. A equipe relatou que as enfermarias não possuem condições para dar assistência adequada para um enfermo grave: “Tudo é muito difícil lá fora”, disse um médico. “Eles (residentes de medicina) não sabem manejar esse tipo de doente”, disse uma fisioterapeuta. “Depois de tudo isso (grande tempo de internação na UTI), ele vai acabar piorando e a vaga dele vai estar ocupada e vai morrer na enfermaria”, disse uma enfermeira. “Sabemos que ela vai morrer lá fora!”, disse uma enfermeira sobre uma paciente traqueostomizada ir de alta para a enfermaria. “A paciente tem condições de alta (da UTI), mas não no feriado, é preciso saber cuidados de enfermagem para sobreviver na enfermaria. É contra a minha religião dar alta hoje (véspera de feriado)”, disse um médico rindo. Via de regra, a transferência de um paciente para a enfermaria provoca preocupação no intensivista, em relação à qualidade da assistência que o doente passará a receber. A UTI usualmente é descrita por seus profissionais como uma unidade “fechada”, por ser um ambiente isolado do restante do hospital, com características específicas, como isolamento do mundo exterior, iluminação artificial, entre outras. As expressões “aqui dentro” e “lá fora” são muito utilizadas por equipes intensivistas de todo o país. Essa perspectiva faz 67 com que os intensivistas sejam criticados por seus pares, por formarem uma “elite” institucional, e desfrutar de privilégios. Por vezes, o intensivista se considera um profissional que sabe mais do que seus colegas, sobretudo acerca dos cuidados referentes a estados físicos de grande gravidade. A UTI ocupa uma posição hierárquica superior, relativamente aos outros setores do hospital no qual está inserida. Tal posicionamento é justificado tanto pela existência de aparelhagem mais moderna e sofisticada quanto pelo nível de especialização da equipe (MENEZES, 2013, p. 421). Os médicos ligados à UTI, pela experiência que adquiriram na prática de certas manobras de urgência, deslocam-se frequentemente aos outros setores hospitalares. Assim, estes médicos vêem o seu poder aumentar, na medida em que os procedimentos técnicos que produzem não sejam de rotina, utilizem equipamentos complicados e de manuseio arriscado, um mínimo deslize pode comprometer a eficácia do procedimento e exija a apropriação de conhecimentos muito recentes (CARAPINHEIRO, 2005, p. 201). Quando a UTI estava em obras e alguns profissionais de enfermagem eram remanejados e vivenciaram a rotina de outros setores, surgiram comentários sobre o cotidiano das enfermarias: “O pessoal do CTI precisa chegar nas enfermarias para dar ordem no setor!”, disse uma técnica de enfermagem sobre conseguir realizar três banhos em uma hora e a equipe da enfermaria não conseguir. Eles relatavam que, pelo fato de serem remanejados para as enfermarias, passaram a ser obrigados a cuidar dos pacientes mais graves, que deveriam estar na UTI e não estavam por falta de leitos. Os demais profissionais afirmavam que, como eram intensivistas, estavam prontos para cuidar “daquele tipo de doente”. Quando se tratava de enfermo FPTC, os intensivistas reagiam da seguinte maneira: “É uma sacanagem o que fazem com a gente, dão os pacientes mais graves pra gente”, disse um técnico de enfermagem. “Ninguém ajuda! Colocam mais pacientes pra gente e sempre muito grave”, disse uma técnica de enfermagem. “Não quero ser remanejado, nos últimos plantões fiquei com dois pacientes FPTC”, disse um técnico de enfermagem. Durante o período de remanejamento, surgiam brincadeiras ao tocar o telefone, pois era desta forma que a chefia de enfermagem comunicava para qual setor os profissionais seriam deslocados: 68 “O ‘Big Fone’ vai tocar e dizer: Atenção, atenção! Você não pode falar com ninguém! É merda! Você vai se ferrar na 10ª enfermaria!”, disse um técnico de enfermagem relacionando o telefone a um episódio de reality show. Ele falava com o mesmo tom de voz do programa de TV, Big Brother Brasil, transmitido no primeiro semestre de 2013. “O ‘Big Fone’ ainda não tocou”, disse uma técnica de enfermagem. *** A enfermagem apresentava contato frequente com diversos setores do hospital: radiologia, tomografia, laboratório, farmácia etc. Com alguns, o contato se dava por telefone, como a lavanderia e a manutenção. Por vezes, o contato com o centro cirúrgico (CC) provocava atrito com as enfermeiras da UTI, pela falta de comunicação entre os setores, para transferência de pacientes, situação que “pega” a equipe despreparada para internação de doente em pós-operatório e, às vezes, sem o preparo do leito com os materiais necessários para a acomodação do enfermo, trabalho que é realizado pela equipe de enfermagem: Enfermeira: “Quem mandou subir?”. Anestesista: “Ah! Falaram que podia vir!”. Enfermeira: “Então quem te falou está mentindo. Pode voltar (para o CC)!”. A nutrição pede auxílio para os fisioterapeutas, para pesar os doentes – os que têm condições -, pois é necessário colocá-los de pé. Além das fonoaudiólogas, que necessitam de comunicação constante com a equipe de fisioterapia, para evolução do enfermo. Já com a equipe médica há tensão na comunicação com a radiologia, a farmácia, a tomografia, além das equipes de nutrição e fonoaudiologia. “Ela não faz favor, não encaixa paciente do CTI, não dá atenção a ninguém, nem olha pra você”, disse uma médica sobre a radiologista de plantão. “Marquei a TC54 ontem e não chamaram o paciente para fazer o exame. É um absurdo!”, disse o médico. Um médico comenta sobre a dificuldade de lidar com os nutricionistas, principalmente da via oral (a nutrição dos hospitais geralmente é organizada em: oral, enteral55e parenteral56), pois eles “desacatam” os médicos, e realizam suas condutas; da dificuldade de liberar comidas (sólidas) para os pacientes e alega que eles só querem dar 54 Tomografia Computadorizada. Alimentação por meio de sonda, que libera o alimento diretamente no intestino. 56 Alimentação por meio de cateter inserido na veia do paciente. Serve para complementar ou substituir completamente a alimentação oral ou enteral. 55 69 sopa aos enfermos. Ele refere que, em todo hospital, a relação é a mesma. Completa que, por vezes, no caso de dieta enteral e parenteral, a convivência é melhor, pois é coordenada por médicos. Outra médica relata que ficou chateada com a postura da nutricionista, que não acatou sua decisão de liberar a dieta oral para a paciente, e disse que precisava da autorização da fonoaudióloga para a liberação. Na relação com a farmácia, um médico reclama da “má interação com a UTI”, pois não há liberação de alguns medicamentos prescritos, ou pela rejeição, para a compra do medicamento, e solicita que o médico mude a medicação. A equipe intensivista admira os profissionais que atendem suas necessidades prontamente, como afirma Menezes (2006, p. 56): os contatos entre a UTI e outros setores do hospital não são homogêneos e o intensivista estabelece distinções entre eles. Enquanto alguns setores “não servem para nada”, outros são valorizados, especialmente quando a UTI solicita exames ou pareceres de outra unidade e é rapidamente atendido. A relação com a equipe cirúrgica é central na UTI. Os médicos intensivistas relatavam que os cirurgiões staffs deveriam ir à UTI mais vezes, para acompanhar o doente, e não somente os residentes. “Eles operam e ‘jogam’ esses pacientes aqui pra gente olhar”, disse um médico. “O paciente não tinha dono”, disse médico se referindo à equipe da cirurgia não ir à UTI acompanhar o paciente. Além disso, havia discordância entre condutas, por exemplo, quando o doente apresentava infecção no pós-operatório de cirurgia abdominal. A equipe cirúrgica afirmava que o foco era pulmonar e a equipe clínica afirmava que era “da barriga”. Essa divergência era frequente: os intensivistas desejavam que se reabordasse o enfermo, e a cirurgia não. “Tem um abscesso57 e eles não querem reabordar, o problema é o antibiótico”, disse um médico ao ler a evolução58 da equipe cirúrgica que sugere a troca do antibiótico. “A prova de função pulmonar59 era ruim e vocês operaram? Agora precisamos fazer milagres para tirar ele da VM. Não tinha como operar ele!”, disse um médico da UTI para a residente da cirurgia. “Estamos saturados desses pacientes insolúveis”, disse um médico. 57 Coleção de pus, geralmente produzida em geral por infecção bacteriana. Anotações diárias, efetuadas por profissionais de saúde, sobre o quadro clínico dos pacientes, em seus prontuários. 59 Técnica capaz de medir a capacidade pulmonar. 58 70 “Não tinha que ter operado ela, tinha que dar dignidade para a paciente morrer em casa, com a família”, disse um médico. “Não é uma duodenopancreatectomia60, e ‘atropelamentopancreatectomia’”, disse uma fisioterapeuta. sim uma Quando o cirurgião considerava que o doente tinha condições de alta para a enfermaria e a equipe da UTI não concordava havia tensão entre os profissionais: “Quando a gente quer dar alta, eles não querem, e quando eles querem, a gente não quer”, disse um médico da UTI que não queria dar alta para uma paciente com menos de 24 horas de cirurgia. “Eles estão colocando pressão para poder operar, por isso querem que dê alta”, disse uma fisioterapeuta. Em certa ocasião, um intensivista afirmou: “Nem sempre a gente está com razão, a cirurgia não abordou e pela gente teria reabordado várias vezes, mas eles estavam certos. Agora ele vai de alta”, disse um médico da UTI ao saber que um paciente iria de alta para casa. O relacionamento da equipe da cirurgia com a fisioterapia era diferente. O profissional por vezes pedia ajuda em certos procedimentos, como traqueostomias e drenagens de tórax61. Com a enfermagem, o cuidado é com a ordem do setor: não levantar a grade da cama do paciente; não ter o cuidado de separar os materiais pérfuro-cortantes ao terminar um procedimento, para que a enfermeira recolha a bandeja de instrumentos cirúrgicos sem o risco de acidentes; não calçar a luva e vestir o capote62 para examinar os pacientes, são atitudes que deixam a enfermagem contrariada. “Assim não tem como! Se for para ter dois procedimentos, tem que ter organização! Deixou tudo jogado aqui no leito três e já está no leito nove!”, disse uma enfermeira ao cirurgião. Uma equipe de cirurgia é admirada pelos intensivistas do HUGG: a torácica, principalmente pelo fato de que a médica staff costumava ir à UTI acompanhar os doentes. Ela também se mostrava disposta a ajudar em procedimentos, como traqueostomias. Os confrontos com os outros setores hospitalares são frequentes, uma vez que a competição é constante no ambiente hospitalar (MENEZES, 2006, p. 57). 60 Também chamada de procedimento de Whipple. Cirurgia que envolve o pâncreas, duodeno e estômago, realizada para o tratamento de tumor na cabeça do pâncreas. 61 Esvaziamento de conteúdo líquido ou gasoso patologicamente retido na cavidade pleural. 62 Roupa utilizada por cima do jaleco. 71 As relações entre os profissionais, intensivistas ou não, depende do problema ou do foco em pauta: quando o doente está envolvido, as tensões aparecem devido à hierarquia presente no ambiente hospitalar: médicos-demais profissionais de saúde. Na UTI, em certas situações é possível que os intensivistas valorizem outro profissional. Em momentos de descontração, a hierarquia aparentemente desaparece. Há, também, preferência por staffs, o que significa uma desqualificação das condutas realizadas por residentes. Conclui-se, portanto, que o modelo interdisciplinar no qual a rotina do setor é baseada, na prática, não é implementada, em decorrência da hierarquia, de forma que o trabalho se baseia em equipe multiprofissional. 4.4 “Se parar, parou”: SPP Na rotina da UTI há uma diferença entre o óbito e a parada cardiorrespiratória (PCR): os termos se distinguem pela postura da equipe, em relação ao paciente internado, para reanimá-lo ou não. Ao diagnosticarem um paciente como FPTC, os médicos tomam certas decisões, como a de não mais “investir” no enfermo, não mudar de antibióticos, não tratar novas infecções que porventura possam surgir. Eles comunicam a toda equipe que “se o paciente parar, parou” (SPP). Caso ocorra uma parada cardiorrespiratória, a ordem é de não realizar manobras de ressuscitação. Nesta UTI, este tipo de enfermo passa a ser denominado de “conforto”. Assim é definido o óbito. A comunicação aos profissionais é necessária, pois quem monitora os doentes é a equipe de enfermagem. Estes profissionais informam ao médico os casos de parada cardíaca ou qualquer intercorrência. Entretanto, quando o enfermo é considerado “viável”, ele passa a receber todas as formas possíveis de tratamento e, em caso de parada cardíaca, é prontamente reanimado. Assim é definida a PCR. Neste caso, os intensivistas realizam todas as condutas para que o doente não morra, o que pode ter duração de cerca de até uma hora de reanimação. Em conversa com um colega, um técnico de enfermagem relatou que, para trabalhar na UTI, é preciso estar sempre atento e preparado para “entrar em uma parada” a qualquer momento, pois os pacientes são de alta complexidade. A grande diferença entre os dois termos – óbito e parada – concerne à expectativa e ao controle. No óbito a morte é esperada, aparentemente os profissionais não se abalam 72 quando ela ocorre. No segundo caso ela é evitada ao máximo, por meio do uso de tecnologia e de medicamentos. Quando o doente morre, a equipe considera que foi uma surpresa, que ocorreu algo inesperado. Neste tipo de situação é possível observar expressão de sentimentos dos intensivistas. Quando um doente é diagnosticado como FPTC, a equipe espera uma PCR, que não se trata de uma “parada”, mas de um óbito. Em certa ocasião, enquanto conversava com dois técnicos de enfermagem, olhei para o monitor de um paciente FPTC e percebi que a frequência cardíaca estava “zerada”. Falei com um técnico: “acho que ele parou”. O técnico de enfermagem foi até o leito e ajeitou os eletrodos de monitorização cardíaca para verificar se havia alguma interferência, procurou o pulso no doente e constatou que não havia. O outro técnico foi ao “aquário” comunicar à médica de plantão que o paciente havia “parado”. O técnico retornou, dirigiuse ao leito do paciente, fechou a cortina e disse: “ela (médica) pediu para esperar um pouco, ela está terminando de passar os casos (dos doentes) com os acadêmicos (de medicina)”. Este episódio demonstra que os profissionais agem sem pressa quando um óbito ocorre, pois não é preciso interromper a rotina do setor. Depois da constatação do falecimento de um enfermo, faz-se necessário que a enfermagem prepare o corpo e que comunique à família do doente. A seguir, deve decidir qual será o novo paciente a ser admitido no setor. A definição do paciente como “conforto” pode conduzir à manifestação de diferentes tipos de emoção por parte dos profissionais de saúde. Por vezes, quando o médico informa à equipe que o paciente é FPTC, alguns profissionais passam a não mais atentar para a analgesia e sedação63 do enfermo, para que ele não sinta dor. Este aspecto é valorizado pela equipe de enfermagem, já que no banho no leito, na troca de fraldas e nos curativos os pacientes podem expressar desconforto. Afinal, são os profissionais da enfermagem que estão presentes nesses episódios. Por vezes, alguns enfermeiros não aceitam o diagnóstico e a conduta médica, o que provoca tensão na equipe. Para eles, o essencial é que o paciente não sofra, não sinta dor, seja ele “viável” ou não. Este dado foi relatado por Seymour (2001, p. 63), em entrevista com uma enfermeira staff acerca de uma paciente idosa. Sua sedação foi retirada pela equipe médica, e a enfermeira achava que não seria o certo para a doente, pois considerava importante que a paciente “morresse em paz”. 63 Ou sedativos. Substâncias para produzir alteração do estado de consciência do paciente, muitas vezes causando sonolência. 73 A morte é, tanto para o médico como para o hospital, antes de tudo um fracasso (HERZLICH, 1993, p. 7). Por esta razão torna-se conveniente que a morte perca sua importância central e cesse de mobilizar recursos e energias, sobretudo nas atitudes cotidianas da equipe face ao agonizante. Neste sentido, os profissionais de UTI devem aprender estratégias de enfrentamento da tensão emocional, no contato com a morte e sofrimento. Eles devem se comportar com autocontrole. A rotina das equipes do hospital é organizada de forma a silenciar a expressão emocional dos profissionais, dos doentes e de seus familiares. A morte tão presente na UTI – é silenciada, regulada e rotinizada, talvez como uma tentativa de banalização desse fenômeno (MENEZES, 2001, p. 126). Para Glaser e Strauss (1982, p.150), a enfermagem parece estar presa a um dilema, entre o prolongamento da vida ou a aceleração do processo da morte. Geralmente, ela tende a resistir ao prolongamento da vida de um paciente internado. Quando se trata de doente diagnosticado como FPTC, esta situação é evidente. As duas categorias – médicos e enfermeiros – apresentam diferentes perspectivas: o médico tende a explicitar uma visão fragmentada e despersonalizada do paciente, “o corpo separado da pessoa”, com uma postural impessoal (GOOD, 1994, p. 73); o enfermeiro tende a uma visão mais abrangente da pessoa, com troca de sentimentos, em busca da promoção de um cuidado totalizante do paciente. Além dos aspectos técnico e fisiológico, a enfermagem relata aos médicos os dados subjetivos que observam dos enfermos internados, mesmo quando sedados, o que não é priorizado pela medicina convencional (SEYMOUR, 2001 p. 55). A discussão da “boa morte” na UTI é recorrente: para os intensivistas, há diferença entre este conceito, em relação à “boa morte” dos cuidados paliativos (CP). Na terapia intensiva, o “conforto” ao paciente é fornecido por meio da intubação orotraqueal, por aparelhos de ventilação mecânica e sedativos, condição oposta da que é priorizada na assistência em CP, sem manobras invasivas, apenas com analgesia. O discurso profissional sobre a “boa morte” tornou-se um ponto de referência central para as ideias mais amplas sobre o “momento natural de morrer” e a “forma de morrer”. Ele é caracterizado pelas ideias da consciência da morte, de desenvolvimento da consciência de auto-identidade e de preparação social e psicológica para a morte. No entanto, a aplicação destas ideias para os óbitos ocorridos na UTI é, à primeira vista, complexa. Quando ocorre uma morte na UTI, geralmente é marcada pela vulnerabilidade e dependência física do doente que, muitas vezes, conta com uma aparente ausência de consciência do “eu”. Tal condição é resultado 74 da gravidade de seu estado biológico e, em parte, devido à indução de um estado “artificial”, por drogas sedativas e analgésicas para aliviar a dor inevitável da doença e o desconforto causados pelos tratamentos da terapia intensiva (SEYMOUR, 2001, p. 128) A “boa morte” está presente em unidades de CP, com a participação do doente na escolha das condutas. O ideal na assistência paliativa é que a morte ocorra em casa, com controle da dor e dos sintomas, na companhia da família. No modelo de “morte moderna”, a morte é hospitalizada, caracterizada pela perda da possibilidade de escolha individual, pela presença do medo, pelo isolamento da família e amigos, pela ausência de cuidadores, pela preeminência da alta tecnologia e do prolongamento do morrer. Nesta forma, o paciente está isolado, solitário, e a morte é um processo impessoal, considerada como sem dignidade (SEYMOUR, 2001, p. 19). Contrapondo-se a esse modelo, eminentemente curativo, no qual o doente é despossuído de voz, o modelo de “morte contemporânea” valoriza os desejos do enfermo. O aspecto central é o diálogo entre os atores sociais envolvidos no processo do morrer: uma vez explicados os limites da ação do médico e dos desejos do doente, é possível a deliberação sobre o período de vida ainda restante, a escolha de procedimentos e a despedida das pessoas de suas relações, com o suporte da equipe multidisciplinar. No modelo de “morte moderna” o médico é o principal personagem a tomar decisões, enquanto no modelo de “morte contemporânea” a autoridade seria a própria pessoa. A tomada de decisões deste indivíduo depende de três requisitos: o conhecimento do avanço da doença e da proximidade da morte, por comunicação da equipe médica; a expressão dos desejos e sentimentos do paciente para as pessoas de sua relação e, finalmente, a escuta e atuação dos que cuidam do doente. O primeiro aspecto desse novo modelo é a consciência do indivíduo da proximidade de sua morte. De acordo com o ideário dos cuidados paliativos, os sentimentos face à finitude devem ser expressos. As expressões “boa morte”, “morte tranquila” e “morreu bem” passam a ser utilizadas amplamente pela literatura de difusão do ideário dos cuidados paliativos, não se restringindo ao âmbito dos profissionais de saúde (MENEZES, 2004, p. 37). Alguns militantes da proposta paliativista descrevem a “boa morte” como “uma morte o mais próximo possível das circunstâncias em que a pessoa teria escolhido” (CAMPBELL, 1990, p.2); “a morte com integridade, de acordo com a vida que a pessoa levou” (KOMESAROFF et al., 1995, p.597). Se, no século XVI, descreveu-se a pessoa que 75 está morrendo como a figura poderosa, com o controle de seu leito de morte sobre as pessoas próximas, no século XX, houve uma transferência de poder para o médico. No século XXI, parece mover-se, novamente, em direção a um modelo participativo do doente. Os conflitos atuais sobre os papéis e responsabilidades em torno da morte e do morrer refletem os movimentos de mudança de poder (PETERSEN & WADDELL, 1999, p. 298). A “boa morte” significa um processo em que o doente terminal, a família e a equipe profissional de saúde aceitam a morte que se aproxima e participam da tomada de decisões compartilhada. Acima de tudo, esta maneira de morrer é dito ser digna e pacífica. Porém, ela só pode ocorrer se o enfermo, a família e os profissionais, todos concordam com o que acontece pouco tempo antes da morte. (PETERSEN & WADDELL, 1999, p. 170). Na UTI não é possível a ocorrência da morte de acordo com este modelo. Geralmente o paciente está inconsciente e a família não é abordada pelos profissionais para ter sua opinião expressa, ela não participa da tomada de decisões, que se restringe aos intensivistas, principalmente ao médico. Neste setor, o conforto é oferecido aos membros da equipe, uma vez que, para o alívio dos profissionais, por vezes decide-se intubar o enfermo e conectá-lo ao aparelho de ventilação artificial, de modo a não acompanhar e testemunhar o doente em insuficiência respiratória. A enfermagem usualmente apoia a realização dessas intervenções, para o “menor sofrimento do paciente”. Em certa ocasião, um médico se referiu a um paciente internado com sedação, com noradrenalina64, tubo e ventilador mecânico. Ele se irritou ao avaliar o doente, pois achava que o mesmo deveria ser reoperado, para resolver a infecção e disse: “Era para ter sido resolvido ontem, chamado a cirurgia e mandado abrir (a barriga), ou então pára de fazer tudo, porque nora e sedação é tudo paliativo!”. Este episódio evidencia a diferença entre os conceitos dos cuidados paliativos, na UTI e em unidade paliativa. Os dados analisados por Seymour (2001, p. 152), em seu estudo na Inglaterra, sugerem que é pela percepção do significado da tecnologia que são determinadas as representações da “boa morte” na UTI. Essas percepções, por sua vez, dependem das circunstâncias específicas nas quais o paciente é atendido, como a tecnologia é empregada pela equipe clínica, e até que ponto os familiares são capazes de compreender e aprovar tais ações. 64 Medicação utilizada para elevar a pressão arterial. 76 *** Durante o período de observação ocorreram algumas mortes de figuras públicas. Diferentes formas de expressão de sentimentos ocorreram em dois casos. Praticamente no mesmo dia dois homens morreram: o presidente venezuelano, Hugo Chavez, e o cantor da banda Charlie Brown Jr., o Chorão. O primeiro faleceu em decorrência de um câncer na região pélvica, aos 58 anos. O segundo morreu aos 42 anos, por overdose de cocaína. Os comentários que surgiram então na UTI do HUGG foram diversos, sobretudo pelo espanto em relação à morte do cantor, por ser jovem. Ninguém esperava que fosse ocorrer, mesmo sabendo que o cantor fazia uso de drogas. Já em relação à morte de Chavez, todos consideraram tratar-se de uma “morte esperada”, pois ele tinha um câncer. “Foi uma surpresa!”, disse uma enfermeira, sobre a morte do cantor. Esta situação evidencia a diferença entre uma “morte inesperada” e “esperada”, para a equipe da UTI. Um câncer é uma doença grave, até o momento sem cura, é uma morte aguardada pelos intensivistas, assim como no caso de paciente com AIDS 65. Nesse caso, mesmo se o enfermo for jovem, a morte é esperada, pois ele é portador de uma enfermidade grave. Geralmente os doentes que internam na UTI não aderem ao tratamento66 de modo regular, não tomam os antirretrovirais 67, condição que conduz a uma antecipação da morte. Glaser e Strauss (1982, p. 133) afirmam a existência de três tipos de morte rápida: a esperada, na qual fica claro para os profissionais que o paciente morrerá em algumas horas ou, no máximo, em um ou dois dias. A segunda é a morte esperada, com a consciência que o doente irá morrer. A equipe tem certeza de que o doente irá morrer, mas não se antecipa para o pior. Por último, a morte inesperada, quando não se espera que o enfermo morra; espera-se que o paciente se recupere e, ao contrário, ele morre rapidamente, para surpresa dos profissionais e familiares. Em geral, a morte inesperada e a esperada apresentam diferentes impactos, tanto para profissionais como para familiares. Apesar de seu contato frequente com o processo do morrer, em certas situações alguns intensivistas demonstraram tensão e dificuldade em aceitar a morte de algum 65 Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, causada pelo vírus HIV. É o estágio mais avançado da doença, que ataca o sistema imunológico. 66 Adesão ao tratamento: quando a pessoa segue as recomendações do profissional de saúde, sejam elas medicamentosas ou não. 67 Medicamentos para impedir a multiplicação do vírus HIV no organismo. 77 paciente. Os enfermos jovens ou aqueles que apresentaram uma “morte inesperada” podiam provocar incômodo, sobretudo quando o paciente se encontrava com um quadro clínico estável e, até, em condições de alta da UTI. Quando ocorrem estas situações no setor, alguns profissionais expressaram sentimentos, especialmente aqueles que permaneceram mais tempo em contato com o doente internado, como a equipe de enfermagem e fisioterapia – o que não significa que alguns médicos não tenham demonstrado suas emoções. A equipe médica não permanece rotineiramente ao lado dos pacientes. No início do plantão, os médicos avaliam o enfermo, modificam as medicações e as condutas, e não se mantêm próximos aos doentes até o fim do turno. Diferentemente de outras equipes, que devem realizar intervenções diversas vezes ao dia, como no caso da fisioterapia: retirada da ventilação mecânica dos pacientes em desmame, realização de VNI, aspiração traqueal para eliminar as secreções etc., e da enfermagem: troca de fraldas, curativos, banho, mudança de decúbito68 no leito, para evitar o surgimento de feridas, alimentar os doentes que comem por via oral etc. Essas condutas demandam uma presença constante em contato ao enfermo, uma monitorização constante, para que não ocorra qualquer intercorrência. Os médicos reconhecem a proximidade do enfermo, da parte de alguns profissionais: “A enfermagem está mais próxima do doente e por isso podem dizer ao médico se o paciente está urinando ou não”, disse um médico durante o round69. “O contato da fisioterapia e da enfermagem com os pacientes é maior e, por isso, a ligação é maior”, disse uma médica. Essas equipes demonstram suas angústias ao ver um paciente morrer, ainda que se trate de um doente FPTC, principalmente se ele for jovem ou apresentar uma “morte inesperada”. Quando um doente com AIDS recebe alta da terapia intensiva, a equipe espera que ele sobreviva por alguns anos. Contudo, quando ele vem a falecer na enfermaria poucos dias após a alta, esta situação é considerada como uma “morte inesperada”, provocando surpresa nos profissionais. Este tipo de situação pode ser ilustrado pelo seguinte diálogo, 68 Modificação da posição do corpo, quando deitado. De acordo com Dicionário Prático Collins (2001, p. 283) round significa rodada, ronda, visitas. No contexto investigado refere-se a uma reunião de importância central na UTI. As informações dos pacientes são relatadas de forma detalhada – desde a história da internação, evolução, até o exame físico e as dosagens dos medicamentos do dia. Procede-se uma avaliação e discussão sobre o estado do paciente e as decisões são tomadas: pedidos de exames, pareceres de outros serviços do hospital ou alterações da terapêutica e dos medicamentos (MENEZES, 2000, p. 36). 69 78 ocorrido entre eu, uma fisioterapeuta, o médico da enfermaria. O tema da conversa era um paciente jovem, portador do vírus HIV, que havia recebido alta há poucos dias: Fisioterapeutas: “Como ele está?” O médico responde: “Morreu!” Fisioterapeutas: “Como?” O médico contesta: “Vocês queriam o quê? Ia morrer!” Fisioterapeutas: “Mas não agora!” Quando a situação ocorre com um paciente FPTC ou com um doente com uma “morte esperada”, os comentários são os seguintes: “vai morrer”, “esse paciente não sai”, “dos oito leitos, nove vão morrer”, “ele está com olho de peixe morto, não passará de amanhã”, “esse é highlander70”, “se piorar, não é para ficar inventando”, “não é para ficar nem olhando muito”, “tem um prognóstico horrível, não vou fazer nada para atrapalhar”, “pra ficar ruim, precisa melhorar um pouco”, “se intubar reza, não sai mais”. Essas falas consistem em eufemismos para a morte, o que também foi observado por Menezes (2001, p. 126), em sua pesquisa. Esta maneira de expressão evidencia angústia frente à morte, condição gera uma produção de mecanismos de defesa71. O uso de eufemismos pode ser uma estratégia para se afastar do drama vivido pelo enfermo e/ou por seus familiares. 70 Refere-se a um filme cujo herói é um guerreiro imortal. Trata-se da pessoa que, a despeito de todo o investimento terapêutico, não apresenta melhora nem piora, durante certo tempo prolongado. Em geral, ele resiste, apesar da decisão médica de interromper o tratamento (MENEZES, 2006, p. 79). 71 Os mecanismos de defesa do ego entram em ação com a finalidade de proteger o ego do indivíduo e reduzir / aliviar a tensão interna. Representam a parte inconsciente do ego. São eles: Repressão: operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno (ideia, afeto) – recalcamento. Formação reativa: duas atitudes ambivalentes e antagônicas, onde: uma se torna inconsciente e a outra aparece supervalorizada (consciente). Exemplo; amor X ódio. Regressão: retorno do indivíduo a estágios anteriores do seu desenvolvimento pulsional. Negação: consiste em negar parte da realidade externa desagradável ou indesejável à consciência, por meio de uma fantasia de satisfação do desejo ou pelo comportamento. Introjeção: relacionada à identificação. O indivíduo faz passar de “fora” para “dentro” objetos e qualidades inerentes ao outro. Projeção: enquanto mecanismo de defesa consiste em atribuir ao outro, características que o sujeito recusa ou rejeita em si. Os desejos são retirados da consciência e colocados no outro. Isolamento: consiste em isolar um pensamento ou comportamento, de forma que sua ligação com os demais seja quebrada. Ocorre um breve vazio mental por certo período (pausa ou silêncio). Anulação: uma ação cuja finalidade é invalidar ou anular um possível dano que o indivíduo, inconscientemente, imagina que seus desejos possam causar. Deslocamento: uma carga psíquica é deslocada (transferida) de uma representação mental para outra. Esse mecanismo de defesa encontra-se muito presente nos sonhos. Racionalização: tentativa inconsciente de forjar razões capazes de conciliar os desejos reprimidos com as exigências da censura. O indivíduo procura apresentar uma explicação do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma ideia, um sentimento, de cujos motivos verdadeiros não se apercebe. Sublimação: os impulsos instintivos sexuais e/ou agressivos sofrem uma “dessexualização”, sendo descarregados para objetos ou objetivos socialmente aceitos (LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.B., 1983). 79 Os intensivistas estão em contato constante com a morte, ainda que façam todo o possível para que ela não ocorra, por meio do uso de medicamentos e aparelhos de alta tecnologia. Menezes (2006, p. 78) conclui em seu estudo em UTI que os recursos técnicos, o saber e a competência do profissional de UTI são limitados, diante do avanço da enfermidade, sobretudo quando a cura não é mais possível. Em muitos momentos surgiram brincadeiras entre os intensivistas, especialmente ao se tratar de situações tensas, associadas a mortes. Durante um round, em que um acadêmico de medicina relatava o caso de um doente internado com câncer, ele comentou a localização do tumor, concluindo sua frase da seguinte maneira: “saiu do bom, para morto”. O tumor era de vias biliares, quadro clínico com péssimo prognóstico. Todos os presentes reagiram com risos. Em outra ocasião, um profissional atendeu a uma ligação de um funcionário da capela do hospital, questionando a presença de familiares de um paciente que havia morrido de madrugada. No entanto, outro doente havia falecido há poucos minutos na unidade. Perguntei ao médico se poderia avisar ao funcionário da capela para retirar o corpo. O médico respondeu da seguinte maneira: “a capela tá pró-ativa hoje!”. Todos os presentes riram deste comentário. Brincadeiras surgiram em torno de um aparelho para dar banho nos pacientes no leito, uma ducha. Os profissionais apelidaram o objeto de “Michael”, em homenagem ao cantor Michael Jackson, pois o aparelho chegou à unidade na época em que o cantor morreu. Na inauguração da UTI outro aparelho foi comprado, pois haveria mais leitos, e foi nomeado de “Chorão”, pois foi no dia da morte do cantor. Esses episódios demonstram o uso de estratégias pelos profissionais, em momentos tensos, relacionados à morte. Segundo Menezes (2001, p. 126), o humor é uma forma de expressão e de gestão das emoções neste ambiente. A partir da perspectiva da psicanálise, o humor tem sido compreendido como revelador de verdades – às vezes extremamente difíceis – que só podem vir à tona por meio de chistes ou de metáforas. Como a morte é encarada, no modelo “moderno”, como fracasso, por vezes observa-se comentários jocosos ou piadas de humor negro, relacionados a situações tensas (MENEZES, 2005, p. 212). De acordo com Apte (1985, p. 115), o humor é principalmente verbal, embora muitas vezes seja acompanhado de gestos e outras modalidades não-verbais, ele se apresenta através de piadas, provérbios, enigmas, rimas, contos, anedotas e lendas. No mundo ocidental, a forma mais popular de humor são as piadas, seguido por enigmas e rimas, como se pode observar na 80 UTI. Expressões como “trambiclínicas”, “PIMBA – Pé Inchado Mulambo Bêbado Atropelado”, “mulambulatório” são utilizadas como um referencial tanto às condições de saúde do indivíduo e da população brasileira, como às próprias condições de trabalho do profissional de saúde (MENEZES, 2001, p. 128). Segundo Peterson (1998, p. 673), as gírias médicas têm a função de promover harmonia entre os profissionais de saúde, manter uma distância entre profissionais e pacientes e diminuir as tensões produzidas pelo trabalho médico. Este autor demonstra, em seu estudo sobre as gírias médicas cariocas, que elas criam novos significados na relação de médicos, não só com pacientes, mas também para a sua própria aquisição de conhecimento clínico e experiência, sobretudo, para o sistema público de saúde. Deslandes (2004) aponta que a linguagem é um instrumento que reúne diversas dimensões: de gênero, poder, classe social. Essas dimensões refletem uma cultura e constroem as relações e interações no ambiente de saúde (DUARTE; MOREIRA, 2011, p. 690). Os intensivistas evitam ao máximo o uso da palavra morte, ainda que se trate de um evento muito presente, em sua rotina na UTI. Brincadeiras, metáforas e eufemismos são frequentemente utilizados por estes profissionais, para amenizar o sentimento de frustração e impotência em diversas situações, como quando ocorre uma morte, sobretudo não esperada. 4.5. “A mulher era uma bruxa” Os pacientes categorizados como FPTC ou muito graves, com risco iminente de morte mobilizavam os intensivistas, que se manifestavam da seguinte maneira: “ele está pedindo pista”, “não quero que ele morra ‘que nem uma pipa72’”, “é preciso começar a fazer macumba, mágica para poder melhorar o paciente”, “pegue seu banquinho e saia de mansinho”, “ela é um ser anaeróbio 73”. Alguns profissionais, ao ouvirem essas falas, achavam graça na forma de expressão. Ao mesmo tempo, muitos se lembravam do caso da médica de Curitiba (PR), Virgínia Soares de Souza (Revista Piauí, Junho, 2013), que foi presa em 19 de fevereiro de 2013, acusada de provocar mortes na UTI do Hospital Evangélico. Inicialmente esta médica foi acusada por uma fisioterapeuta da unidade, por “antecipação de óbitos”. Ela relatou que a doutora mandava administrar um coquetel de sedativos e de 72 73 Refere-se a um paciente com edema, inchado. Organismos que vivem sem ar ou sem oxigênio. 81 bloqueadores neuromusculares74, o chamado “kit morte”, além de manipular os padrões de oxigênio dos aparelhos respiratórios, de modo que, na maioria dos casos, a morte do doente ocorria em poucas horas. Ainda segundo a fisioterapeuta Karina Casser, o motivo era a liberação de leitos na UTI, para acomodação de novos pacientes. A maioria dos funcionários da unidade discordava desta prática, mas muitos eram coniventes, “por obediência à chefe”. De acordo com notícias na mídia, Karina realizou diversas ligações para a Ouvidoria Geral do Estado do Paraná, em março de 2012, para dar queixa da Dr.ª Virgínia. Após oito dias de ligações, a Promotoria de Proteção à Saúde Pública de Curitiba foi acionada. Por meio de certidões de óbito, promotores confirmaram nomes, dia e horário das mortes dos pacientes mencionados na denúncia. O Núcleo de Repressão aos Crimes contra a Saúde, da Polícia Civil, passou a investigar o caso. A investigação correu em segredo de Justiça. Em janeiro de 2013 a Promotoria realizou gravações telefônicas dos números da casa, do celular e do ramal da Dr.ª Virgínia do hospital. Nas gravações, a doutora conversa com médicos, enfermeiros, diretores do hospital e com familiares dos doentes. As expressões utilizadas pela médica chamaram a atenção dos policiais: “infelizmente, a missão nossa é intermediá-los do trampolim do além”, “preciso desentulhar a UTI”, “a UTI tem de girar”, “está quase lá”, “desligar o paciente”, “com a cabeça tranquila para assassinar”. Para os investigadores, havia material suficiente para incriminá-la. Ainda segundo notícias veiculadas pela mídia, a médica apresentava uma postura arrogante, não possuía amizades, cobrava trabalho dos demais profissionais, principalmente da enfermagem, o que gerava comentários entre as equipes, que a apelidaram de “bruxa”, tanto por seu comportamento quanto por sua aparência física. Além disso, ela confiava em alguns profissionais da UTI. Testemunhas afirmavam que ela cultivava “um grupinho”, “os preferidos”. Aos demais, não dirigia a palavra. Quando o fazia, era para chamar a atenção: “não quero ver bunda em cadeira”, “olha aqui, ô, primor de inteligência”. O superintendente do hospital, o pastor Olegário Teixeira da Costa, declarou: “ela tratava mal as pessoas, é verdade, mas é uma questão de temperamento, cada um tem o seu. Com os doentes nunca houve reclamação. Ao contrário. Muitas vezes, vi familiares pedindo para ela desistir de tentar salvar um parente, deixá-lo ir em paz, e ela tentando todas as alternativas”. Cinco dias após a prisão da médica, a polícia voltou atrás. Segundo notícias, ela não dissera “com a cabeça tranquila para assassinar”, mas “com a cabeça tranquila para 74 Medicamento que causa a paralisia dos músculos esqueléticos. 82 raciocinar”. O procurador Marco Antonio Teixeira afirmou então que o conjunto de conversas era pesado e evidenciava a intenção de provocar a morte dos pacientes, independente das palavras “assassinar” ou “raciocinar”. Nos relatos em juízo de testemunhas, havia frases como: “eu ouvi dizer”, “era consenso no hospital”, “soube que”, “o grande comentário é”. Mas a essa altura, Dr.ª Virgínia era “um monstro”. Ela permaneceu presa por um mês. Durante o processo, comentários de colegas de profissão surgiram, em defesa da médica. A presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do Paraná, Cintia Grion, considerou ter havido criminalização das falas analisadas fora de contexto. Seu advogado, Elias Assad, afirmou que as acusações foram feitas por leigos, que se impressionaram com o que se passa em ambiente de UTI, além de terem sido motivadas por vingança pessoal, contra os desacatos ditos pela médica. Para o ortopedista Manuel Ruedas Guerrero, seu companheiro de trabalho no Hospital Evangélico: “pegaram o que existe de mais sensível, que é a morte, com o que há de mais obscuro, que é uma UTI: portas fechadas, a tênue linha entre vida e morte. E uma mulher que era uma bruxa”. Para ele, é possível que as acusações contra a médica tenham outras razões: “ela é grossa, é racista, é mal-educada, é implicante, é desrespeitosa, é feia. Se for isso, acusem-na, processem-na por racismo ou assédio moral. Mas falar que ela matava? Qual seria o seu interesse? Financeiro? Loucura?”. Após ser libertada, em entrevista, a médica disse que só queria saber o motivo de suas supostas ações: “sou uma psicopata que montou, ao longo de 25 anos, uma quadrilha de outros psicopatas, que aderiram sem ganho algum? Nesses anos todos, 400 médicos não acharam nada errado? Ou, se acharam, ficaram calados porque sou extremamente poderosa? Isso é sensacional!”. Segundo a médica, o que a promotoria chamou de “kit morte” constituem procedimentos corriqueiros, usados em UTI em pacientes de extrema gravidade, na tentativa de melhorar o estado do doente, jamais com a intenção de criar uma situação inversa. Ainda em entrevista, Virgínia comentou o caso de uma menina que havia sido atacada por um cachorro, e estava em morte cerebral documentada: “não se prolonga um sofrimento desses, isso é desesperar uma família. Mas nós, latinos, temos essa cultura de deixar tudo, respirador, droga, e isso é um crime porque a pessoa não está mais lá”. A doutora foi acusada de “antecipar a morte” de um paciente de 65 anos, acamado desde 1996, pois havia sofrido sete derrames. Ele fora reanimado durante 100 minutos, depois de ter sofrido uma parada cardíaca. Segundo Virgínia, o prontuário deste paciente é a maior testemunha de que tudo foi feito para salvá-lo. No inquérito constava uma foto deste senhor 83 pescando. A doutora afirmou então: “Deve ser de 1995. Então o que parece é que ele chegou lá andando e morreu do nada” 75. Virgínia comentou com a jornalista que nem todo paciente cujo coração pára tem que ser reanimado: “Tem doente que até não tem que ir para a UTI. Mas, se você tenta explicar isso, acontece o que aconteceu comigo: ‘ela deixou ele morrer’, ‘ela acelerou a morte’. Não! O doente já estava tecnicamente morto. Ninguém acelera nada”. Não se trata aqui de defender a médica, mas de utilizar seu caso para refletir sobre o processo de tomada de decisões em UTI. Quando trechos de falas são mencionados, fora de contexto ou presenciadas por leigos, os relatos adquirem diferentes sentidos. Assim, podem veicular significados associados a cenas e situações drásticas. Um médico, ao comentar esse caso, afirmou que nós, intensivistas, falamos o mesmo que ela. Para os profissionais de UTI essa linguagem é comum, mas para quem não trabalha neste ambiente pode ser um absurdo, quando fora do contexto do setor, como: “deixa morrer”, “não vou fazer nada”, “tem paciente mais viável lá fora (nas enfermarias)”. Mesmo com a lembrança desse caso, o assunto era abordado com descontração no setor: “Fala baixo, porque podem gravar e vai todo mundo preso”, diz um médico. “Fala baixo, se alguém ouvir pode ser perigoso”, diz outro médico. “Cuidado para não ser presa, hein! Igual à médica!”, diz um médico. Durante o período de observação, o tema provocou polêmica entre os intensivistas. Ao mesmo tempo, a permanência do assunto na mídia acarretou uma tomada de consciência, por parte dos profissionais, de que sua linguagem poderia ser interpretada de diferentes maneiras. Na época, todos os profissionais com quem conversei sobre este caso não concordaram com a prisão da médica, com base em suas falas em conversas telefônicas gravadas. Para eles, todos os profissionais do HUGG também poderiam ser presos pelo uso daquela linguagem. A delegação dos encargos da morte ao intensivista é capaz de gerar angústia, em torno da decisão acerca de quem irá morrer ou sobreviver. Pelo fato de este profissional de saúde deter o controle sobre a morte de um paciente, é possível que surjam críticas e especulações, especialmente com os médicos, o que conduz ao surgimento de julgamentos, como no caso da “bruxa” Dr.ª Virgínia. 75 Este paciente, na UTI do HUGG, talvez nem tivesse sido reanimado pela equipe, por se tratar de um enfermo totalmente dependente, com “prognóstico reservado”. 84 5. Considerações Finais Como profissional de saúde de UTI, não esperava dar conta e observar tantos detalhes de meu trabalho cotidiano. O medo de não conseguir realizar a observação era grande, por se tratar de um ambiente extremamente familiar. Este questionamento surgiu antes e durante o período de observação, inclusive foi um tema debatido na qualificação. Inicialmente achei que faria relatos do dia a dia, sem “ver com outros olhos” ou “ver de fora”. No entanto, aos poucos percebi que meu olhar se transformou. Passei a enxergar o contexto com um olhar diferente e mais distanciado, em relação à perspectiva da biomedicina. Estudar o familiar, principalmente no próprio ambiente de trabalho, requer um exercício de reflexividade contínuo, pois a exposição a determinadas situações do setor; das equipes, discussões, contradições, sentimentos; das condutas; dos pacientes, pode conduzir à sensação de traição nos colegas. Acrescente-se que, após o término do estudo, é preciso retornar ao mesmo local apenas como fisioterapeuta, e não mais como pesquisadora. Situação análoga ocorreu com Maria Cristina Senna Duarte (2011), em sua pesquisa em UTI pediátrica na cidade do Rio de Janeiro. Neste caso, a pesquisadora chefiava a unidade e foi necessário colocar em suspensão perspectivas, valores e ideias anteriores, para deixar emergir o sujeito e sua relação com os objetos, como se mostravam nos momentos de observação participante e de entrevistas (DUARTE; MOREIRA, 2011, p.689). No período de observação e na redação desta dissertação, estas questões se mostraram centrais, no que tange ao que ocorre na UTI. Após meu retorno, desempenhando novamente apenas o papel de profissional de saúde, determinadas atitudes e comentários de colegas, que anteriormente ao período de observação eram rotineiros, passaram a provocar em mim certo incômodo. Percebi que palavras ditas em um plantão sobre um paciente, por exemplo, podem ser mal interpretadas por pessoas leigas ou pelas que não estão inseridas no contexto da unidade, de modo que passei a me policiar em relação ao que falo. Além disso, como durante as observações não poderia haver um julgamento de valor da minha parte, passei a redimensionar as concepções de “certo” e “errado”, pois percebi que tudo depende do contexto, e não necessariamente da minha opinião. Assim, o que pode ser certo na UTI do HUGG pode não o ser, em outra UTI. A principal transformação que observo em mim diz respeito à emergência de meus sentimentos, no contato com os pacientes e em momentos próximos da morte. O fato de ler, 85 refletir e escrever sobre a morte, o morrer e acerca do paciente terminal fez com que minha visão sobre a UTI mudasse. Hoje, quando auxilio em uma parada cardiorrespiratória, e o doente morre, não considero que isto seja mais um simples procedimento e que a vida volte logo ao normal. Fico triste, choro ou sinto raiva, por não ter conseguido fazer com que o enfermo sobrevivesse, mesmo sabendo que toda a equipe, inclusive eu, se empenhou ao máximo para que isso acontecesse. A percepção de insucesso é frustrante, mas agora busco vivenciar aquele momento com a consciência de que todos nós, da equipe intensivista, fizemos de tudo para salvar aquele paciente, mas isso não significa ignorar ou “virar uma pedra” sem sentimentos. Agora, trata-se de entender que, no local em que trabalho, há contato frequente com doentes graves e com a eventualidade da morte. A UTI é considerada uma “unidade fechada”, tanto em seu espaço físico, com janelas e portas fechadas, ar condicionado central, luzes artificiais, mantendo o ambiente externo “lá fora”, como pela “superespecialização” de sua equipe profissional, que lida com equipamentos de alta tecnologia para o cuidado de pacientes graves. Por tais características, a equipe intensivista é considerada “melhor” do que a de outros setores do hospital, tanto pelos intensivistas como pelos profissionais de outros setores do hospital. A rotina da UTI é organizada pela equipe, com a função de manter o maior controle possível sobre as condições clínicas e funções vitais do doente, que é mantido em constante monitoramento, por equipamentos eletrônicos, pela equipe de enfermagem. Trata-se de evitar a morte, sempre que possível. Devido às especificidades da UTI, as relações entre a equipe intensivista com os profissionais dos demais setores hospitalares podem ser tensas, pela hierarquia entre os serviços. Dentro do setor, mesmo com a rotina estabelecida em equipe multiprofissional, há forte distinção entre “médicos e demais profissionais de saúde”. A palavra e a decisão do médico têm preeminência sobre as demais opiniões. Porém, quando outro setor do hospital está envolvido na tomada de decisões, a escolha do intensivista, seja ele de qualquer categoria profissional, tende a prevalecer. Os intensivistas “se acham melhores” do que os demais profissionais, por possuírem uma carga de conhecimentos teóricos e uma experiência prática “mais avançada”, por cuidarem de pacientes graves, com risco de morte, e atuarem em procedimentos que geralmente só acontecem dentro da unidade, como intubações e reanimação de paradas cardíacas. Por vezes, este posicionamento conduz a conflitos, mas ao mesmo tempo, também se apresenta como um 86 suporte para os outros setores hospitalares, como quando não há vagas para internação e um doente grave permanece em enfermaria. A principal preocupação dos intensivistas é referente ao atendimento que o paciente terá na enfermaria, visto que os profissionais que lá atuam são considerados pelos intensivistas como “não possuindo capacidade técnica para lidar com esse tipo de pacientes”, inclusive quando o doente apresenta condições de alta da unidade, mas ainda necessitam de maior vigilância. Essa preocupação faz com que, muitas vezes, enfermos permaneçam mais tempo internados na UTI. Os intensivistas atuam neste ambiente especializado, com doentes de alta gravidade, de modo que estão em constante contato com a morte. Porém, no setor, o processo do morrer é denominado de diferentes maneiras: como óbito e como PCR. Esta diferenciação acarreta formas distintas de ação, assim como de expressão – ou não – de sentimentos. O óbito é entendido como uma morte esperada, quando todos os profissionais aguardavam que aquele enfermo morresse em algumas horas ou em poucos dias. A equipe não faz nada para reverter o quadro. Os profissionais não expressam sofrimento quando a morte de fato ocorre. Já na PCR, os intensivistas fazem todo o possível para que o paciente sobreviva, utilizam todos os recursos da unidade. Quando o doente sobrevive, há grande satisfação da equipe. Ao contrário, quando a morte ocorre, os profissionais referem a existência de sentimentos de fracasso, insucesso, impotência. Por vezes, eles consideram tratar-se de uma morte inesperada. A partir dessas definições, é possível diferenciar a visão da “boa morte” na UTI, vista pelos profissionais como aquela em que se deve amenizar o sofrimento do paciente que está morrendo com analgésicos, sedativos e intubações, conectado a aparelhos de ventilação mecânica e monitores, sem a presença dos familiares, apenas dos profissionais, até que o óbito ocorra. Diferente da “boa morte” dos cuidados paliativos, em que nenhum procedimento invasivo é realizado, apenas analgesia, para que o doente não sinta dor e a presença constante da família com o enfermo. A mobilização de sentimentos na UTI varia de acordo com o doente e com o que acontece com ele. A morte inesperada é uma situação capaz de provocar a emergência de sentimentos, por parte da equipe intensivista. Por vezes, quando o enfermo envolvido é jovem observa-se o surgimento de desconforto na equipe, pelo fato de aquele indivíduo “ter muita coisa para viver ainda”. No caso de internação prolongada no setor, pode se desenvolver um processo de identificação entre o intensivista e o enfermo, o que pode gerar preocupações com o momento da alta para enfermaria e/ou para casa, se terá ou não os cuidados necessários. Por 87 vezes o profissional estabelece uma amizade com o paciente e passa a comprar comidas, presentes, a ter longas conversas com o doente e com seus familiares, o que não é comumente feito com outros pacientes internados. Essa situação ocorreu com a paciente Alice e sua filha Joana: a equipe se mostrou muito mobilizada com o fato de a enferma permanecer por um longo período internada na UTI. Por ocasião de sua alta para a enfermaria, a equipe se preocupou e considerou que ela poderia não receber os cuidados necessários. Quando ocorre este tipo de envolvimento, alguns profissionais utilizam recursos para lidar com a emergência de sentimentos em momentos difíceis, como o uso de eufemismos e de brincadeiras para aliviar o clima tenso. Brincadeiras com uso do nome de artistas que já morreram eram frequentemente utilizadas no setor. Aparelhos passaram então a receber apelidos, como “Chorão” e “Michael”. Os eufemismos, como “ele está pedindo pista”, “se intubar reza, não sai mais”, “ele está com olho de peixe morto”, “pegue seu banquinho e saia de mansinho” eram utilizados frequentemente pelos intensivistas como meio de afastamento do sofrimento associado à morte e ao processo do morrer. Quando uma médica de Curitiba, Dr.ª Virgínia Soares de Souza, foi presa e acusada de antecipar óbitos em uma UTI, o uso destas frases passou a ser menos frequente, e surgiram comentários como o seguinte: “fala baixo, porque podem gravar e vai todo mundo preso”. As emoções não são frequentemente demonstradas neste setor. Os profissionais evitam um contato mais próximo com o doente e com seus familiares, como modo de evitar envolvimento emocional. Na UTI, a expressão de emoções é considerada como uma perturbação à rotina da unidade, que pode atrapalhar a atuação técnica dos profissionais. Por esse motivo, a não expressão se torna uma obrigatoriedade para os intensivistas. Quando não é possível um autocontrole emocional e as emoções afloram, por vezes os profissionais desabafam com os colegas de sua confiança, sejam eles da mesma categoria profissional ou não. Recentemente surgiram programas de humanização da assistência hospitalar, especialmente em UTIs. Contudo, apesar da implantação desta proposta, o modelo de morte moderna ocorre neste setor, em pleno século XXI. Na UTI investigada, observa-se uma tentativa de mudança desse modelo, por exemplo, na identificação dos pacientes por seus nomes e não mais por números, no aumento da quantidade de períodos de visitas de familiares durante o dia, na permissão de permanência de parentes no setor, em alguns casos. Tais modificações no modelo de morte moderna, tão presente em UTIs, não significam a implementação, na prática, do modelo de morte contemporânea, mas representam formas 88 inovadoras de gestão do processo do morrer e da rotina de trabalho no local exemplar do modelo de morte moderna. Ainda são necessárias muitas mudanças, para que a assistência em UTIs se torne efetivamente “humanizada”, principalmente aquelas referentes ao processo de formação dos profissionais de saúde. Desde a graduação, estudantes da área da saúde aprendem a pensar no enfermo como um objeto, constituído por partes, e não como um indivíduo. Considero que, se ocorrerem transformações no ensino das formações do campo da saúde, é possível que muitas características do modelo de morte moderna se modifiquem. Atualmente atingiu-se um patamar de desenvolvimento tecnológico no qual é possível certo domínio e regulação do processo do morrer. O médico é figura central neste cenário. Cabe ampliar os debates em torno da gestão da morte e das possibilidades de expressão de sentimentos na unidade de terapia intensiva, talvez como possibilidade de evitar – ou, pelo menos reduzir - o sofrimento de todos os atores sociais envolvidos no acompanhamento do término de uma vida – o que evidencia a fragilidade da existência humana. 89 Referências Bibliográficas ALVES, P.C. B.; RABELO, M.C.M. Significação e metáforas na experiência da enfermidade. In: RABELO, M.C.M.; ALVES, P.C.B.; SOUZA, I.M.A. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 171-185. APTE, M. L. Humor and laughter: an anthropological approach. London: Cornell University Press, 1985. ARIÈS, P. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. AURELIANO, W. A. Espiritualidade, saúde e as artes de cura no contemporâneo: indefinição de margens e busca de fronteiras em um centro terapêutico espírita no sul do Brasil. 2011. 446f. 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ANTIRRETROVIRAIS - medicamentos para impedir a multiplicação do vírus HIV no organismo. ASPIRAÇÃO TRAQUEAL – retirada passiva das secreções por sonda, conectada a um sistema de vácuo. BLOQUEADOR NEUROMUSCULAR - medicamento que causa paralisia dos músculos esqueléticos. BOMBA INFUSORA – aparelho para administração de medicamentos e alimentação. CAPOTE – roupa utilizada por cima do jaleco. CARRINHO DE PARADA – armário com rodas, no qual são armazenados materiais e medicações utilizados para reverter uma parada cardiorrespiratória (PCR). DESMAME – processo gradual de retirada de aparelhagem para ventilação artificial (VM). DIAZEPAM – medicamento ansiolítico, anticonvulsivante, relaxante muscular e sedativo. DIETA/NUTRIÇÃO ENTERAL – alimentação por meio de sonda, que libera o alimento diretamente no intestino. DIETA/NUTRIÇÃO PARENTERAL – alimentação por meio de cateter inserido na veia do paciente. Serve para complementar ou substituir completamente a alimentação oral ou enteral. DOENÇA PULMONAR OBSTRUTIVA CRÔNICA (DPOC) – obstrução fixa ao fluxo aéreo ou enfisema. DRENAGEM DE TÓRAX - esvaziamento de conteúdo líquido ou gasoso patologicamente retido na cavidade pleural. 98 DUODENOPANCREATECTOMIA – também chamada de procedimento de Whipple. Cirurgia que envolve o pâncreas, duodeno e estômago, realizada para tratamento de tumor na cabeça do pâncreas. EVOLUÇÃO – anotações diárias, efetuadas por profissionais de saúde, sobre o quadro clínico dos pacientes, em seus prontuários. EXPURGO – local em que são desprezadas as secreções dos pacientes, como urina, fezes, secreção traqueal. FENTANIL - potente analgésico utilizado contra a dor. GASOMETRIA ARTERIAL – exame que avalia a acidez (pH) e a pressão parcial do oxigênio e de gás carbônico no sangue. HEMODIÁLISE – processo de filtração do sangue, efetuado por aparelhagem. HIGHLANDER- refere-se ao filme cujo herói é um guerreiro imortal. Trata-se da pessoa que, a despeito de todo investimento terapêutico, não apresenta melhora nem piora, durante certo tempo prolongado. Em geral, ele resiste, apesar da decisão médica de interromper o tratamento. HIPERTENSÃO PULMONAR - elevação acima dos níveis normais, da pressão sanguínea na pequena circulação ou circulação pulmonar (é a designação dada à parte da circulação sanguínea na qual o sangue é bombeado para os pulmões e retorna rico em oxigênio de volta ao coração. Em síntese, é uma circulação coração-pulmão-coração). HISTERECTOMIA – cirurgia para extração do útero. HOME CARE – também conhecido como assistência domiciliar. É uma modalidade continuada de prestação de serviços na área da saúde, que visa à continuidade do tratamento hospitalar no domicílio. É realizado por equipe multidisciplinar. INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA – condição clinica na qual os pulmões não conseguem desempenhar adequadamente sua principal função, a troca gasosa, o que significa que a captação de oxigênio e a liberação de CO2 estão prejudicadas. INTUBAÇÃO OROTRAQUEAL – colocação e fixação de um tubo dentro da traqueia do paciente (canal que liga a garganta ao pulmão), para que o ventilador mecânico seja conectado. MECANISMOS DE DEFESA - os mecanismos de defesa do ego entram em ação com a finalidade de proteger o ego do indivíduo e reduzir / aliviar a tensão interna. Representam a parte inconsciente do ego. Tirar os sublinhados Repressão: operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno (ideia, afeto) – recalcamento. Formação reativa: duas atitudes ambivalentes e antagônicas, onde: uma se torna inconsciente e a outra aparece supervalorizada (consciente). Exemplo; amor X ódio. Regressão: retorno do indivíduo a estágios anteriores do seu desenvolvimento pulsional. Negação: consiste em negar parte da realidade externa desagradável ou indesejável à consciência, por meio de uma fantasia de satisfação do desejo ou pelo comportamento. Introjeção: relacionada à identificação. O indivíduo faz passar de “fora” para “dentro” 99 objetos e qualidades inerentes ao outro. Projeção: enquanto mecanismo de defesa consiste em atribuir ao outro, características que o sujeito recusa ou rejeita em si. Os desejos são retirados da consciência e colocados no outro. Isolamento: consiste em isolar um pensamento ou comportamento, de forma que sua ligação com os demais seja quebrada. corre um breve vazio mental por certo período (pausa ou silêncio). Anulação: uma ação cuja finalidade é invalidar ou anular um possível dano que o indivíduo, inconscientemente, imagina que seus desejos possam causar. Deslocamento: uma carga psíquica é deslocada (transferida) de uma representação mental para outra. Esse mecanismo de defesa encontrase muito presente nos sonhos. Racionalização: tentativa inconsciente de forjar razões capazes de conciliar os desejos reprimidos com as exigências da censura. O indivíduo procura apresentar uma explicação do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma ideia, um sentimento, de cujos motivos verdadeiros não se apercebe. Sublimação: os impulsos instintivos sexuais e/ou agressivos sofrem uma “dessexualização”, sendo descarregados para objetos ou objetivos socialmente aceitos. MUDANÇA DE DECÚBITO – modificação da posição do corpo, quando deitado. NEFROLOGIA – nefrologista, especialidade referente ao funcionamento dos rins. NEGATOSCÓPIO – aparelho pra visualização de exames radiográficos (raios X, tomografias). NORADRENALINA – medicação utilizada para elevar a pressão arterial. PIELONEFRITE – infecção dos rins, geralmente produzida por bactérias. PNEUMONIA – inflamação do tecido pulmonar. PRESCRIÇÃO – ato de dispor em papel as drogas e seu modo de usar, a dieta e outros cuidados a serem dados ao paciente; receita médica . PROCEDIMENTO – termo amplamente utilizado por equipes de saúde. Refere-se à retirada de sangue ou outras condutas, como punção arterial, dissecção de veia profunda, intubação e colocação de prótese respiratória. PROGNÓSTICO – previsão médica da evolução de uma doença. PRONTUÁRIO – prontuário médico, de fato, prontuário do paciente, é o conjunto de documentos padronizados, ordenados e concisos, destinados ao registro de todas as informações referentes aos cuidados médicos e paramédicos prestados ao enfermo. PROVA DE FUNÇÃO PULMONAR – técnica capaz de medir a capacidade pulmonar. PUNÇÃO VENOSA/ARTERIAL – ato de puncionar; operação que consiste em penetrar em cavidade ou coleção líquida, com instrumento perfurado para retirada de líquidos. Pode ser na veia ou na artéria. ROUND – Rodada, ronda, visitas. No contexto investigado refere-se a uma reunião de importância central na UTI. As informações dos pacientes são relatadas de forma detalhada – desde a história da internação, evolução, até o exame físico e as dosagens dos medicamentos do dia. Procede-se uma avaliação e discussão sobre o estado do paciente e 100 as decisões são tomadas: pedidos de exames, pareceres de outros serviços do hospital ou alterações da terapêutica e dos medicamentos. SEDAÇÃO/SEDATIVOS – substâncias para produzir alteração do estado de consciência do paciente, muitas vezes causando sonolência. STAFF – profissional que possui estabilidade funcional, geralmente concursado que ocupa posição hierárquica superior aos outros profissionais, que trabalham em regime de contrato temporário. TRAQUEOSTOMIA - procedimento cirúrgico pelo qual é produzido um orifício na região anterior do pescoço, para permitir a entrada de ar na traqueia. TUBO OROTRAQUEAL - tubo colocado na traqueia do paciente, durante intubação orotraqueal, para que o ventilador mecânico seja conectado. VAZÃO – quantidade volumétrica de um fluido, no caso a medicação, que escoa por uma seção de uma tubulação ou canal, no caso a bomba infusora, por unidade de tempo. VENTILAÇÃO ESPONTÂNEA – modo normal de respiração. VENTILAÇÃO MECÂNICA – método de suporte para tratamento de pacientes com insuficiência respiratória, por meio da utilização de aparelhos, os ventiladores mecânicos artificiais. VENTILAÇÃO NÃO INVASIVA - técnica na qual é colocada uma máscara adaptada ao rosto do o paciente, que evita fuga de ar. A máscara está ligada a uma máquina que gera um fluxo de ar, para facilitar a respiração e melhorar a oxigenação. VENTILADOR MECÂNICO/ARTIFICIAL – respirador, aparelho utilizado na ventilação mecânica. 101 APÊNDICE I – LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO TÍTULO AUTOR CATEGORIA PROFISSIONAL REVISTA ANO Philip Burnard Enfermagem Intensive Care Nursing 1987 José M. Ribeiro; Lilia B. Scharaiber Saúde Coletiva Cad. Saúde Públ. 1994 A difícil convivência com o câncer: um estudo das emoções na enfermagem oncológica Noeli Marchioro Liston Andrade Ferreira Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 1996 Os Profissionais de Enfermagem e seus Emblemas: Identidades e Distinções na Construção de uma Cultura Profissional. Dissertação de Mestrado. Martha Cristina Nunes Moreira Psicologia Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. 1996 A percepção da equipe de enfermagem em situação de morte: ritual do preparo do corpo pós-morte Maria Cecília Ribeiro; Solange Baraldi; Maria Júlia Paes da Silva Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 1998 Adriana Kátia Corrêa Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 1998 Marisa Antonini Ribeiro Bastos Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 2001 Coping with emotion in intensive care nursing A autonomia e o trabalho em medicina O paciente em Centro de Terapia Intensiva: reflexão bioética Etnografia: estratégia metodológica utilizada para contextualizar o cenário cultural do CTI de um hospital universitário 102 O que é paciente terminal Pilar L. Gutierrez Medicina Rev. Ass. Med. Brasil 2001 Marisa Antonini Ribeiro Bastos Enfermagem Rev. Latino-Am. Enfermagem 2002 Posicionamento dos enfermeiros relativo a revelação de prognóstico de fora de possibilidade terapêutica: uma questão bioética Daniela Vivas dos Santos; Maria Cristina Komatsu Braga Massarollo Enfermagem Rev. Latino-Am. Enfermagem 2004 A morte no cotidiano dos profissionais de enfermagem de uma Unidade de Terapia Intensiva Ligia Aparecida Palú; Liliana Maria Labronici; Leomar Albini Enfermagem Cogitare Enfermagem 2004 Suely Ferreira Deslandes Saúde Coletiva Ciência & Saúde Coletiva 2004 Maria Cecilia Toffoletto; Suely S. Viski Zanei; Edilene Curvelo Hora; Gisele Puerta Nogueira; Ana Maria K. Miyadahira; Miako Kimura; Kátia Grillo Padilha Enfermagem Acta Paulista de Enfermagem 2005 Maria Abadia Leite; Vanessa da Silva Carvalho Vila Enfermagem Rev. Latino-Am. Enfermagem 2005 Suely Ferreira Deslandes Saúde Coletiva Interface – Comunic., Saúde, Educ. 2005 Rosemary Silva da Silveira; Valéria Lerch Lunardi; Wilson Danilo Lunardi Enfermagem Texto Contexto Enferm. 2005 O saber e a tecnologia: mitos de um Centro de Tratamento Intensivo Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar A distanásia como geradora de dilemas éticos nas Unidades de Terapia Intensiva: considerações sobre a participação dos enfermeiros Dificuldades vivenciadas pela equipe multiprofissional na Unidade de Terapia Intensiva O projeto ético político da humanização: conceitos, métodos e identidade Uma tentativa de humanizar a relação da equipe de enfermagem com a família de pacientes internados na 103 UTI Filho; Adriane M. Netto de Oliveira Kenneth Rochel Camargo Jr. Saúde Coletiva Physis: Rev. Saúde Coletiva 2005 Beatriz Aparecida Ozello Gutierrez; Maria Helena Trench Ciampone Enfermagem Acta Paul Enferm. 2006 Kátia Poles; Regina Szylit Bousso Enfermagem Rev. Latino-Am. Enfermagem 2006 Dirce Stein Backes; Wilson D. Lunardi Filho; Valéria Lerch Lunardi Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 2006 Rachel Duarte Moritz Medicina RBTI 2007 Número de horas de cuidados de enfermagem em Unidade de Terapia Intensiva adultos Ana Maria Tranquitelli; Maria Helena Trench Ciampone Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 2007 Intensive Care Units cultures and end of life decision making Judith Gedney Baggs; Sally A. Norton; Madeline H. Schmitt; Mary T. Dombeck; Craig R. Sellers; Jill R. Quinn Enfermagem J. Crit. Care 2007 Cuidado humanizado de enfermagem: o agir com respeito em um hospital universitário Ingrid de Almeida Barbosa; Maria Júlia Paes Silva Enfermagem Rev. Bras. Enferm. 2007 Cuidado humanizado em terapia intensiva: um estudo Joselany Áfio Caetano; Enedina Soares; Enfermagem Esc. Anna Nery R. 2007 A biomedicina Profissionais de enfermagem frente ao processo de morte em Unidades de Terapia Intensiva Compartilhando o processo de morte com a família: a experiência da enfermeira na UTI pediátrica O processo de humanização do ambiente hospitalar centrado no trabalhador Como melhorar a comunicação e prevenir conflitos nas situações de terminalidade na Unidade de Terapia Intensiva 104 reflexivo Enferm. Luciene Miranda de Andrade; Roberta Maria da Ponte Serafim Barbosa Santos Filho Saúde Coletiva Ciência & Saúde Coletiva 2007 A autonomia do paciente no processo terapêutico como valor para a saúde Jussara Calmon Reis de Souza Soares; Kenneth Rochel Camargo Jr. Saúde Coletiva Interface - Comunic., Saúde, Educ. 2007 O enfermeiro frente ao paciente fora de possibilidades terapêuticas oncológicas: uma revisão bibliográfica Jacqueline Camilo da Costa; Kassandra Lopes; Dienne Margaria Caetano Rebouças; Ludmila do Nascimento Rodrigues Carvalho; Juliana Furtado Lemos; Orcélia P. Sales C. Lima Enfermagem Revista Vita et Sanitas 2008 Rosãngela Zampieri Pina; Luciane Ferrira Lapchinsk; Jussara Simone Lenzi Pupulim Enfermagem Cienc. Cuid. Saude. 2008 Roberto Carlos Lyra da Silva; Isaura Setenta Porto; Nébia Maria Almeida de Figueiredo Enfermagem Esc. Anna Nery R. Enferm. 2008 Lúcia M. Beccaria; Roberta Ribeiro; Giovanna L. Souza; Nathalia Scarpetti; Lígia M. Contrin; Roseli A.M. Pereira; Ana Maria S. Rodrigues Enfermagem Arq. Ciênc. Saúde 2008 Perspectivas da avaliação na Política Nacional de Humanização em Saúde: aspectos conceituais e metodológicos Percepção de pacientes sobre o período de internação em Unidade de Terapia Intensiva Reflexões acerca da assistência de enfermagem e o discurso de humanização em terapia intensiva Visita em Unidades de Terapia Intensiva: concepção dos familiares quanto à humanização do atendimento 105 Waldir da Silva Souza; Martha Cristina Nunes Moreira Saúde Coletiva Interface - Comunic., Saúde, Educ. 2008 Por uma etnografia dos cuidados de saúde após a alta hospitalar Edna Aparecida Barbosa de Castro; Kenneth Rochel Camargo Jr. Enfermagem; Saúde Coletiva Ciência & Saúde Coletiva 2008 Percepção de enfermeiros sobre dilemas éticos relacionados a pacientes terminais em Unidade de Terapia Intensiva Adriano Aparecido Bezerra Chaves; Maria Cristina Komatsu Braga Massarollo Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 2009 Geraldo Magela Salomé; Maria de Fátima Moraes Salles Martins; Vitória Helena Cunha Espósito Enfermagem Rev. Bras. Enferm. 2009 Mertieli Sulzbacher; Anelise Vieira Reck; Eniva Miladi Fernandes Stumm; Leila Mariza Hildebrandt Enfermagem Scientia Medica 2009 Patrícia Gisele Sanches; Maria Dalva de Barros Carvalho Enfermagem Rev. Gaúcha Enferm. 2009 Distanásia, eutanásia e ortotanásia: percepções dos enfermeiros de Unidades de Terapia Intensiva e implicações na assistência Chaiane Amorim Biondo; Maria Júlia Paes da Silva; Lígia Maria Dal Secco Enfermagem Rev. Latino-Am. Enfermagem 2009 Humanização em Unidade de Terapia Intensiva adulto: compreensões da equipe de enfermagem Silvio Cruz Costa; Maria Renita Burg Figueiredo; Diego Schaurich Enfermagem Interface – Comunic., Saúde, Educ. 2009 Luiz Augusto de Paula Souza; Vera Ciências Humanas e Interface – Comunic., 2009 A temática da humanização na saúde: alguns apontamentos para debate Sentimentos vivenciados pelos profissionais de enfermagem que atuam em unidade de emergência O enfermeiro em Unidade de Terapia Intensiva vivenciando e enfrentando situações de morte e morrer Vivência dos enfermeiros de Unidade de Terapia Intensiva frente à morte e o morrer O conceito de humanização na Política Nacional de 106 Humanização Lúcia Ferreira Mendes da Saúde Saúde, Educ. Rosangela de Oliveira; Sônia Ayako Tao Maruyama Enfermagem Rev. Eletr. Enf. 2009 Ruben Araújo de Mattos Saúde Coletiva Interface – Comunic., Saúde, Educ. 2009 Laura Johanson da Silva; Leila Rangel da Silva; Marialda Moreira Christoffel Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 2009 Perfil e gravidade dos pacientes das Unidades de Terapia Intensiva: aplicação prospectiva do escore APACHE II Eliane Regina Ferreira Sernache de Freitas Fisioterapeuta Rev. Latino-Am. Enfermagem 2010 Estudo fenomenológico sobre a vivência da morte em uma Unidade de Terapia Intensiva neonatal Laureana Cartaxo Salgado Pereira Silva; Cecília Nogueira Valença; Raimunda Medeiros Germano Enfermagem Rev. Bras. Enfermagem 2010 Kátia Maria Oliveira de Souza; Suely Deslandes Ferreira Psicologia Médica Ciência & Saúde Coletiva 2010 Severina Alice da Costa Uchôa; Kenneth Rochel Camargo Jr. Saúde Coletiva Ciência & Saúde Coletiva 2010 Marina Soares Mota; Giovana Calcagno Gomes; Monique Farias Coelho; Wilson Danilo Lunardi Filho; Lenice Dutra de Sousa Enfermagem Rev. Gaúcha Enferm. 2011 Princípio da integralidade numa UTI pública: espaço e relações entre profissionais de saúde e usuários Princípios do SUS e a humanização das práticas de saúde Tecnologia e humanização na Unidade de Terapia Intensiva neonatal: reflexões no contexto do processo saúde-doença Assistência humanizada em UTI neonatal: os sentidos e as limitações identificadas pelos profissionais de saúde Os protocolos e a decisão médica: medicina baseada em vivências e ou evidências? Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente à morte dos pacientes sob seus cuidados 107 Janaína Gomes Perbone; Emília Campos de Carvalho Enfermagem Rev. Bras. Enferm. 2011 Cuidando do paciente no processo de morte na Unidade de Terapia Intensiva Rudval Souza da Silva; Ana Emília Rosa Campos; Álvaro Pereira Enfermagem Rev. Esc. Enf. USP 2011 A integralidade na formação dos profissionais de saúde: tecendo valores Gabriela Guerra Gonze; Girlene Alves da Silva Saúde Coletiva Physis Revista de Saúde Coletiva 2011 Autonomia e cuidado em terapia intensiva pediátrica: os paradoxos da prática Maria Cristina Senna Duarte; Martha Cristina Nunes Moreira Saúde Coletiva Interface – Comunic., Saúde, Educ. 2011 A dialética humanização-alienação como recurso à compreensão crítica da desumanização das práticas de saúde: alguns elementos conceituais Competência profissional do enfermeiro para atuar em Unidades de Terapia Intensiva: uma revisão integrativa Rogério Miranda Gomes; Lilia Blima Schraiber Saúde Coletiva Interface - Comunic., Saúde, Educ. 2011 Silvia Helena Henriques Camelo Enfermagem Rev. Latino-Am. Enfermagem 2012 End of life care in the intensive care setting: a descriptive exploratory qualitative study of nurses' beliefs and practices Kristen Ranse; Patsy Yates; Fiona Coyer Enfermagem Australian Critical Care 2012 Perspective of physicians and nurses regarding end of life care in the Intensive Care Unit Emir Festic; Michael E. Wilson; Ognjen Gajic; Gavin D. Divertie; Jeffrey T. Rabatin Medicina J. Intensive Care Med. 2012 Sentimentos do estudante de enfermagem em seu primeiro contato com pacientes 108