Tese de Mestrado em Teorias de Arte pela Faculdade de Belas
Transcrição
Tese de Mestrado em Teorias de Arte pela Faculdade de Belas
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS ARTES MESTRADO EM TEORIAS DA ARTE HOMEOSTÉTICA ANOS 80 NAS ARTES PLÁSTICAS EM PORTUGAL MARIA CLARA RODRIGUES SILVA DE BRITO Orientador: Pintor Hugo Ferrão Professor Auxiliar da Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Lisboa 2000 Maria Clara Rodrigues Silva de Brito HOMEOSTÉTICA ANOS 80 NAS ARTES PLÁSTICAS EM PORTUGAL Dissertação de Mestrado em Teorias de Arte Faculdade de Belas Artes Universidade de Lisboa Orientador: Pintor Hugo Ferrão. Professor Auxiliar da Faculdade de Belas Artes de Lisboa Lisboa 2000 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Agradecimentos Tenho a agradecer aos artistas do grupo homeostético, muito particularmente a Pedro Proença pela confiança que manifestou ao entregar-me os documentos originais, bem como pelo esclarecimento de dúvidas relativamente aos mesmos. Agradeço ao meu marido e aos meus filhos por me terem dispensado muito tempo do seu convívio. À Maria João Amaral, pelo cuidado colocado na revisão dos textos. Á Maria Antónia Linhares pela formatação do trabalho. Ao Sr. António Silva da Sociedade Nacional de Belas Artes Ao Professor Hugo Ferrão, pelo apoio e incentivo contínuos. E finalmente a todos os artistas, teóricos da arte, criticos e filósofos com quem aprendi coisas que de outro modo não teria descoberto. HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Resumo Nas publicações que desde meados dos anos 90 se tem escrito sobre a arte contemporânea portuguesa, “Homeostética” é um rótulo que surge associado aos artistas que constituíram este grupo: Fernando Brito, Ivo, Manuel Vieira, Pedro Portugal, Pedro Proença e Xana, não existindo porém qualquer esclarecimento sobre o significado desta expressão, nem qualquer referência ao grupo como um todo. Nesta dissertação procuramos clarificar a dinâmica deste grupo que tal como outros, se exerceu e desencadeou o seu processo de afirmação nos anos 80, tendo a distinguilo uma reflexão e produção teórica que vimos agora revelar e onde através dum discurso original e verdadeiramente inspirado nos permite reflectir sobre a capacidade especulativa da arte e do artista enquanto captador das sensibilidades do seu tempo. O material reunido em anexo não esgota a produção textual existente, mas por questões programáticas, começámos a nossa investigação pela análise e tratamento dos textos de catálogo, dos manifestos e de diversos textos que indiciam a intencionalidade de criar uma teoria homeostética. HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Apresentação No verão de 1986, acompanhei a preparação da exposição “Continentes” e admirei o entusiasmo e o trabalho daquele grupo, que exteriorizava uma vontade indomável. Sabia-os muito cúmplices, desenvolvendo uma série de projectos, mas nunca soube muito bem o que era a “homeostética”. Para mim era um nome e uma dinâmica que funcionava. Passados anos, constatei que esta designação continua a funcionar, quer como fundamento conceptual para o trabalho artístico de uns, quer como recordação muito importante para outros, quer como referência para pessoas que se moveram à volta do grupo e que, de alguma forma, estiveram em contacto com essa dinâmica. A Homeostética continuava uma palavra viva. Sabendo que vários elementos do grupo possuíam documentos originais e que havia motivação para os reunir a fim de começarem a ser tratados e divulgados, a escolha do tema para esta Tese tornou-se-me óbvia. Numa primeira fase do trabalho, desenvolvi contactos para fazer a recolha dos documentos, materiais e textos existentes, com os quais fiz um inventário. Posteriormente, senti a necessidade de fazer uma selecção desses materiais, tendo apurado os textos dos catálogos, os Manifestos e um conjunto de textos cujo teor se pode situar no âmbito da reflexão estética e da teoria de arte e que agrupei sob a designação de “Teoria Homeostética”. Em termos de produção textual, quer Pedro Proença, quer Manuel Vieira podem considerar-se estilistas. Citando Deleuze 1 , o estilo em Filosofia "está disposto segundo três pólos, o conceito ou novas maneiras de pensar; o percepto ou novas maneiras de ver e escutar, o afecto, ou novas maneiras de experimentar", sendo todos eles necessários para fazer o movimento, ou “a filosofia como ópera”. Por essa razão, perscrutar os textos homeostéticos levou a três atitudes: ou aceitá-los como 1 Deleuze Gilles: O mistério de Ariana, Ed. Vega, 1996: p. 97 e segs. 1 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 peças enigmáticas e poéticas e fruir o seu discurso; ou, mediante uma tentativa de depuração e capacidade interpretativa, tentar explicar a superfície epidérmica do discurso; ou investigar sentidos junto dos seus autores e referentes, confrontando-os com outros, a fim de validar as suas propostas ao nível de conceitos e actuações. A organização da Tese corresponde ao percurso que considerei necessário para o desenvolvimento desta investigação e entendimento do tema. Assim temos três partes: enquadramento, biografia e teoria homeostética. Na primeira parte, dedicada ao enquadramento, pretendo dar a conhecer o contexto (social, artístico, teórico) em que emerge este grupo, sendo que no plano nacional, se assiste a uma mudança de paradigmas e atitudes, quer na vida política, quer no social, constituindo a arte e o discurso artístico um reflexo desse período de transição. No segundo capítulo, recorremos entre outros, a dois críticos portugueses, António Cerveira Pinto (arte) e Eduardo Prado Coelho (literatura), através dos quais procuraremos apresentar genericamente a problemática da passagem do modernismo para o pós-modernismo. Na tentativa de delimitar os conceitos que no inicio dos anos 80 começavam a agitar a comunidade artística em Portugal, surgiu a necessidade de abordar as teorias transvanguardistas de Bonitto Oliva e os defensores do pósmodernismo na arquitectura. Veremos que o discurso teórico deste período contém uma familiaridade na abordagem das mesmas questões, o que nos permite pensar que estamos perante uma época suficientemente caracterizada pelas suas (in)constantes formais e conceptuais. A segunda parte deste trabalho, é dedicada à biografia do grupo, para a qual foram realizadas entrevistas e cruzados depoimentos, nomeadamente, o de Pedro Cavalheiro que relembra o período entre 1982 e 1986, enquanto os elementos deste grupo frequentam a Escola de Belas Artes de Lisboa. A dinâmica homeostética corresponde ao período de formação académica dos seus elementos. O seu percurso e visibilidade será revelado através de fotografias, catálogos das exposições, textos, manifestos e das notas da critica realizadas por ocasião da última exposição (“Continentes”). 2 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 O reconhecimento da homeostética enquanto grupo, é ainda bastante insuficiente, verificando-se uma certa superficialidade na aplicação desta designação. O 5º capítulo, “Os manifestos homeostéticos” afigura-se particularmente importante, pois é através destes que se caracterizam e afirmam a sua identidade. O discurso, original pela sua ironia, recheado de metáforas e clichés da linguagem comum, permite-nos rever esses anos onde assistimos ao surgimento dum “art world” nacional, e ainda à transformação da sociedade portuguesa, particularmente a vida mundana lisboeta. Os manifestos ainda nos permitem subtrair o projecto e intenções artísticas do grupo. Serão estes últimos, o espelho duma visão paradoxal do mundo, onde se interroga a própria arte, os mecanismos de legitimação e a problemática da relação da arte com o público. Finalmente a terceira parte desta tese, dedicada à análise e síntese dos textos homeostéticos, começou por me fazer interrogar os próprios textos tendo levantado questões que habitualmente parecem situar-se fora do âmbito da teoria de arte. Os princípios da teoria homeostética, post-paradoxologia, parahermenêutica, infracriptográfico e transmenipeia, suscitaram a necessidade de fazer uma incursão ainda que de caracter genérico, sobretudo no domínio da filosofia, dos quais foram destacados autores como Ricoeur, Hans Robert Jauss, Baktine, Edmund Husserl e respectivas teorias que respondem não só às temáticas e questões propostas pela homeostética, mas que parecem cruzar-se nos diversos autores que reflectem sobre o caracter da pós-modernidade. A problemática da hermenêutica e a sua influência nas teorias da interpretação e na estética da recepção, o dialogismo e a menipeia baktinianos, e finalmente a fenomenologia são os conteúdos que emergem dos textos que analisámos. Os conteúdos tratados ao longo do 6º capítulo serão retomados na conclusão desta Tese, com uma abordagem à obra de Arthur Danto, que defende a interdependência das reflexões filosófica e artística. Os 7º e 8º capítulos procuram sintetizar duma forma organizada os princípios propostos e as suas implicações no processo criativo. A recorrência às citações e à remetência para os textos originais (em anexo) pretende conduzir o leitor na leitura dos mesmos de acordo com a interpretação aqui apresentada. 3 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Finalmente o 9º capitulo, sendo uma espécie de pré-conclusão, pretende fechar o circulo que ilustra esta narrativa. A trilogia “Métis, Kairos, Enthousiasmous” vem responder às questões que são colocadas no 1º capitulo, condensando as atitudes propostas pela homeostética relativamente ao período de indeterminação conceptual que se viveu nos anos 80 e aos discursos apocalípticos sobre a arte. Os Anexos desta dissertação representam o percurso efectuado na investigação: o levantamento de dados, primeiramente através de entrevistas a que alguns elementos do grupo tiveram a gentileza de responder. A pesquisa e organização dos documentos originais, dos quais extraímos os textos residentes nos folhetos que acompanharam as exposições homeostéticas, os manifestos e um conjunto de 40 textos escritos por Pedro Proença, cujo tratamento deu origem à terceira parte da dissertação. E ainda os artigos da critica à exposição“Continentes”. 4 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Índice Geral Agradecimentos...................................................................................................................................... 4 Resumo................................................................................................................................................... 5 Apresentação .......................................................................................................................................... 1 Índice Geral ............................................................................................................................................ 5 Prefácio................................................................................................................................................... 7 Capítulo 1 - Da Euforia Revolucionária à Vontade de Mudança..................................................... 12 1.1 O 25 de Abril e a Missão Revolucionária: Arte e Intervenção ............................................. 13 1.1 As Bienais como Reflexo das Tendências do Campo Artístico............................................ 15 1.2 Exposições relevantes entre 1979 e 1986 ............................................................................. 17 1.3 Anos 80: o fim da obrigatoriedade revolucionária e as transformações no “universo” cultural português. ......................................................................................................................................... 27 1.4 A capitalização do campo artístico, ou o mito do mercado ................................................. 31 Capítulo 2 - Da Modernidade à Pós-Modernidade ........................................................................... 36 2.1 O conceito de modernidade e as implicações na prática artística ......................................... 38 2.2 Anos 80: correntes artísticas dominantes e o pensamento estético...................................... 46 2.2.1 A transvanguarda.......................................................................................................... 47 2.2.2 Os “pós-modernismos” na arquitectura ........................................................................ 51 Capítulo 3 - A “Saga” Homeostética ................................................................................................ 56 3.1 ESBAL 1982: um clima propício à eclosão homeostética.................................................... 56 3.2 Os grupos no meio das artes plásticas. Homeostética, grupo ou movimento?.................... 61 Capítulo 4 - Percurso e Visibilidade................................................................................................. 69 4.1 O Reconhecimento Hoje....................................................................................................... 69 4.2 Exposições e textos de catálogo ........................................................................................... 74 4.2.1 Educação Espartana...................................................................................................... 78 4.2.2 Continentes ................................................................................................................... 80 4.3 As Opiniões da Crítica.......................................................................................................... 83 Capítulo 5 - Os Manifestos Homeostéticos ...................................................................................... 87 5.1 Caracterização / Identidade .................................................................................................. 88 5.2 “Art World”.......................................................................................................................... 93 5.3 Reflexão sobre a nacionalidade ............................................................................................ 96 5.4 Projecto e Intenções.............................................................................................................. 98 Capítulo 6 - Os Referentes Teóricos............................................................................................... 103 6.1 Hermenêutica, filosofia e pensamento estético................................................................... 103 6.2 A Teoria da Interpretação de Ricoeur................................................................................. 106 6.3 Jauss e a “Estética da Recepção”........................................................................................ 109 6.4 O Dialogismo Bakhtiniano ................................................................................................. 111 6.5 A Fenomenologia ............................................................................................................... 116 6.6 A Teoria da Ideologia de Ricoeur e o Mito, o Dogma e a tradição na Teoria Homeostética 119 Capítulo 7 - Os Princípios Homeostéticos...................................................................................... 123 7.1 Post-paradoxologia ............................................................................................................. 123 7.2 Parahermenêutica ............................................................................................................... 128 7.3 Infracriptográfico................................................................................................................ 132 7.4 Transmenipeia .................................................................................................................... 137 Capítulo 8 - O Processo Criativo .................................................................................................... 146 8.1 Apropriação ........................................................................................................................ 146 8.2 Desconstrução..................................................................................................................... 149 5 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 8.3 Reflexão.............................................................................................................................. 151 8.4 Reconstrução ...................................................................................................................... 153 8.5 O Topos da Arte.................................................................................................................. 157 Capítulo 9 - Métis Kairós Enthousiasmous e a Sofística ................................................................ 162 Posfácio .............................................................................................................................................. 168 Bibliografia......................................................................................................................................... 174 Artigos da Crítica ............................................................................................................................... 179 Artigos (Outros), em Colecções, Revistas, Publicações.................................................................... 181 Catálogos de Exposições .................................................................................................................... 183 Outros ................................................................................................................................................. 184 ANEXOS – Índice geral..................................................................................................................... 185 6 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Prefácio Ao longo deste trabalho apresentaremos a “Homeostética”, enquadrando a sua actuação na primeira metade dos anos 80. Trata-se de um período que se caracterizou em Portugal pelo esbatimento da utopia revolucionária, em simultâneo com a abertura de país ao mundo, nomeadamente, a adesão à comunidade europeia e a absorção da população retornada das antigas colónias. Dum modo geral assiste-se ao desenvolvimento da sociedade de consumo e de modos de vida hedonistas e privatistas cuja consequência em termos culturais se manifesta no despique pelo protagonismo e na tomada de consciência da necessidade de divulgar a produção artística a um público mais vasto, quer no contexto nacional, quer no contexto internacional. No campo artístico foi um período de todas as afirmações, como repetidamente declararam alguns críticos, e associadas a estas gera-se uma dinâmica que pretende tomar posse dos mecanismos de legitimação desse mesmo campo. Nela estão envolvidos os novos artistas, os novos críticos, as novas instituições e as novas galerias. Relativamente ao discurso teórico sobre arte existe a disposição em reclamá-lo para o artista, enquanto que na prática artística se assiste a uma tal profusão de temáticas e modos de fazer que reunidos apressadamente sob a designação de “eclectismo”, indicam que a liberdade para a experimentação e para o individualismo, ultrapassa tanto os academismos quanto as motivações ideológicas e que prazer e profissionalismo podem coexistir. No reverso, o chamado “regresso à pintura”, é visto por alguns críticos como uma resposta às necessidades do mercado da arte e ao aparecimento duma jovem média burguesia que pretende investir e enfeitar-se culturalmente. Face à catadupa de propostas e ao surgimento nos artistas de uma atitude que permite a coexistência pacífica de “gerações” estilísticas, coloca-se em causa o termo e o 7 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 papel da Vanguarda. Vulgarizada e assimilada pela moda, esta expressão parece ter perdido o o sentido que a caracterizou desde os finais do sec. XIX: factor de resistência, ou de ultrapassagem conceptual. De facto estes anos 80 trazem-nos uma concepção artística que assume a fragmentação, a subjectividade, o abandono de que uma obra de arte pode contribuir para resolver os problemas sociais e de que existe uma única tendência de natureza estrutural e fundamental. Ao analisarmos a critica de arte, observamos a coexistência das várias mentalidades que definem o período de transição e o estado de indeterminação conceptual que se vivia. Os críticos que se haviam empenhado nos valores por que se regeu a arte no período revolucionário reflectem um certo desânimo face a um movimento de entropia e de afastamento do papel interventivo da arte no social. Outros, numa atitude expectante face ao trabalho e atitudes dos artistas mais jovens, para as quais não parecem encontrar uma explicação teórica e conceptual esclarecida, remetem, na perspectiva mais optimista, para a responsabilidade do artista a tarefa da sua autolegitimação. Apesar do aparecimento de artistas e figuras do mundo da arte internacional em acontecimentos artísticos nacionais e da influência que estes terão tido na abertura do sistema legitimador, a verdade é que em termos de teoria de arte poucos são os que escrevem ou reflectem sobre os conceitos que nos círculos universitários europeus e americanos, vêm a influenciar o discurso sobre a arte. Os jovens “homeostéticos” encontram-se como estudantes na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, sensivelmente entre 1981 e 1982. Pertencem a uma geração que reflecte os paradoxos da sociedade portuguesa e incorporam-nos na sua prática numa clara atitude de irreverência que se poderá situar entre a utopia e a transgressão. Como grupo têm uma dupla face: uma extra-mural, conivente com o “art wold”, de tal modo que os elementos deste grupo iniciam a sua carreira profissional no decorrer do período homeostético, enquanto que no seu aspecto intramural, na clandestinidade, para usar uma expressão muito reabilitada pelo período revolucionário, desenvolvem uma série de acções que têm a ver com um experimentalismo interdisciplinar, que parece não ter cabimento nestes anos dominados pela lei do mercado. 8 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 A duplicidade Homeostética é magnificamente ilustrada pela trilogia de conceitos que encontram para definir a sua teoria: Métis, kairos, Entousiasmos e que em suma resumem a cartilha do artista nestes anos 80: Capacidade de fazer, saber tirar partido da ocasião e finalmente, o entusiasmo gerador da persistência e da persuasão. Foi sem dúvida o seu aspecto intra-mural que mais nos aliciou, e neste, a produção teórica elaborada e quase não divulgada, ou não divulgada de todo. Assistimos assim a uma ficção organizada com displicência, mas não isenta de intencionalidade. Prova disso foi a existência de documentos e manuscritos originais ciosamente guardados pelos elementos do grupo. Através da análise destes textos assistimos à leitura critica dum período, onde para além das referências aos aspectos sociais, mundanos e políticos, se levantam questões e reflexões que se processam de modo mais alargado, nos domínios da arte, da estética, da filosofia, dos estudos literários. Pedro Portugal diz: Parece-me que todos tínhamos a certeza do que era a estética certa. Intuição transpenipeica? Transe? E o que é este “intuição” senão um sintoma das afinidades que atingem todas as áreas do saber num mesmo e determinado período? As intenções e propostas da Homeostética consistem na contaminação das disciplinas e na dissolução das categorias, na relação da obra com o fruídor, na revalorização da função retórica da imagem, e numa atitude claramente lúdica e crítica, revêem as mitologias e figuras da identidade nacionais sob a forma de clichés icónicos. A paródia , no sentido que lhe atribui Linda Houtcheon (“repetição com distância critica”) surge na apropriação, quer do passado (obras, mitos, figuras), quer do presente (política, teoria e crítica da arte, factos quotidianos) duma forma completamente desiherarquizada, mas que partindo da intenção e da preferência do artista, desencadeia o processo criativo e constitui afinal o contéudo e o poder semântico da obra. Partindo da ideia que se vive uma época babélica, a sua teoria advoga a continentalidade da arte. A Continentalidade é uma metáfora para designar a abertura da arte ao Outro. O Outro entendido por: outros campos do saber e do fazer; entendido na problemática da relação da obra com o público; entendido na relação do artista com a própria arte. 9 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Deste modo, o texto homeostético, além de prender o leitor pela qualidade da sua paisagem discursiva cheia de metáforas e analogias, suscita e propõe conceitos que nos levaram a pensar o papel da hermenêutica, da recepção, da intencionalidade e das relações que estes estabelecem com o pensar e fazer arte. O Topos da arte e os factores que a distinguem como “discurso” intemporal são também questões às quais se irá procurar responder. Colocar os textos homeostéticos à disposição de novos leitores e de novas leituras, irá contribuir sem duvida para confirmar a capacidade do artista na condução do seu próprio discurso sobre a arte. Esta investigação merece ser continuada de modo a fazer uma cobertura mais extensa de todos os originais, inclusive por estudiosos de outras áreas do saber, já que se produziram também pequenos contos, sinopses e poesia. Houve ainda outro material que de momento não me foi possível considerar, as imagens. Por um lado, porque a produção realizada nessa época já desapareceu quase toda, por outro lado, porque mesmo o pouco existente implicaria um trabalho aprofundado de natureza iconográfica e iconológica, que no entanto, considero indispensável para completar o desenvolvimento deste trabalho. 10 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Parte I – Enquadramento 11 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 1 - Da Euforia Revolucionária à Vontade de Mudança No primeiro capítulo serão abordadas as tendências artísticas que se foram revelando no contexto nacional após o 25 de Abril de 1974, com destaque para a fase pósrevolucionária, consolidada nos anos 80. É no auge deste período pós-revolucionário que surgem grupos entre os quais o Homeostético que, apesar da sua juventude, irá participar no aparecimento de novos paradigmas e atitudes no campo artístico nacional. Será esclarecido genéricamente o que se entende por “campo artístico” e como se processam os mecanismos de legitimação. Será neste quadro que assistiremos à reconfiguração de protagonismos através dos acontecimentos que se afiguram mais significativos, e que permitiram a emergência do grupo homeostético. Até que ponto contribuíram ou simplesmente acompanharam uma tendência favorável, são questões que ficam em suspenso. Porquê retomar o fio a partir do período revolucionário? Num contexto minimamente biográfico, impõe-se rever a importância deste acontecimento que Maria de Lourdes Pintasilgo designa como acto fundador 2 e a sua influência na formação da identidade destes artistas, à época, adolescentes. Referimo-nos a uma das gerações do 25 de Abril, ainda não aquela que, nas palavras 3 de Idalina Conde, se caracteriza pela assunção “natural” da modernidade portuguesa, mas a geração que foi semeada 2 Nas palavras de Maria de Lourdes Pintasilgo (Dimensões da Mudança), mais do que revolução, o 25 de Abril foi um acto cultural, um acto fundador: foi acontecimento, irregularidade, perturbação, quebra do previsível, desvio em relação à norma, onde um curto período de euforia (-25 de Abril de 74 a 11 de Março de 75-) se pautou pela participação popular na vida pública, algo que compara aos fenómenos ocorridos nos anos 60, em países como França, EUA, Japão, entre outros. 3 Conde, Idalina, “Contextos, Culturas, Identidades” in António Firmino da Costa e José Manuel Viegas (orgs.), Portugal, Que Modernidade? , Oeiras, Celta, 1998, p. 103: “Os jovens que pertencem à democracia da última vintena de anos em Portugal, nasceram com a nossa própria modernidade, e nessa medida representam, talvez, o produto mais “natural” de uma forma múltipla de ser que não perde os vínculos primordiais”. 12 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 no período anterior, que explodiu com a euforia do “pós” e amadureceu ao longo dos anos 80. A geração que reflecte todos os paradoxos da sociedade portuguesa num período que Boaventura de Sousa Santos designa “de transição”. 1.1 O 25 de Abril e a Missão Revolucionária: Arte e Intervenção No Catálogo da Exposição “Aspectos da Arte Abstracta 1970-80”, Rui Mário Gonçalves afirmava: “Um fundo crítico - ideológico impõe a esta exposição uma dupla intenção que o crítico Ernesto de Sousa, seu organizador, definiu “Primeiro: que a única atitude ou função didáctica válida no nosso tempo é de natureza estética. Segundo: que todas as vanguardas estéticas que realmente merecem esse nome se confundem, ou convergem para uma única a que chamarei conceptual. Por isso (...) não havia pinturas emolduráveis ou esculturas “plintáveis”. Por isso havia uma máquina para música bio-electrónica e uma “secretária” para uma sociedade em vias de “construção”, mas não havia objectos, essa mentira e repressão a todos os projectos, obras acabadas, negações de liberdade” 4 . Asfixiada pela condição periférica e pelo isolamento do país face aos principais centros de produção artística e de inovação (Europa e, crescentemente, os Estados Unidos), a situação da arte portuguesa foi, em consequência da política cultural do Estado Novo e apesar das emigrações artísticas, afectada na sua possibilidade de projecção e diálogo com o exterior. Contrariando a natureza expansiva e errante do português, o fechamento da ditadura criou no plano cultural um período “Sem começo, nem acabamento. Rito sem passagem, festa sem orgia” onde a negatividade se transforma na resistência possível, a resistência do sobrevida” 5 . Entretanto, a partir dos finais de 60, alguns artistas que, emigrando, se afirmam em território europeu são mitificados e os que vão lá fora e regressam vêm a influenciar particularmente a década de setenta, introduzindo tendências alinhadas com as 4 Gonçalves, Rui Mário, in: Catálogo da Exposição “Aspectos da Arte Abstracta 1970-80” SNBA , Janeiro-1982. 5 Sousa, Ernesto de, Ser Moderno em Portugal, p.22. 13 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 correntes conceptuais e vivificadoras da prática artística (João Vieira, Lurdes de Castro, René Bertholo, José Escada, Helena Almeida, e outros). No plano institucional, este processo de abertura da arte portuguesa assiste a uma dinâmica que se manifesta pela procura de uma expressão mais pública através da expansão do mercado e aumento dos investimentos artísticos (abertura de novas galerias, inauguração da Fundação Calouste Gulbenkien). No entanto, os anos setenta serão marcados pelo estabelecimento de novas relações entre a arte e o público, investindo-se sobretudo em território nacional. Sublinhando a importância cultural do 25 de Abril pela "ruptura", pelo “desvio em relação à norma”, viver-se-á um período eufórico, alucinante e mágico (Mª L.Pintasilgo), em que conscientes da necessidade dum forte suporte cultural na formulação duma nova maneira de viver em sociedade, “trabalharam artistas, imensos. Todos.” Após o 25 de Abril, verificam-se duas grandes vertentes na acção artística, uma mais interventiva, outra mais conceptual, mas ambas de acordo quando à necessidade de questionar a arte enquanto objecto, logo enquanto mercadoria. Ao Norte, mobilizam-se artistas em redor de projectos de descentralização cultural 6 com evidentes preocupações pedagógicas e de intervenção social e política. A acção artística e os debates da época visavam o conceito e a prática duma arte sociológica 7 . Essa prática visava também subverter as estruturas tradicionais do campo artístico, onde a pintura e a escultura são preteridas em favor das acções de rua, dos happenings e das performances. Numa fase inicial (74 -76) o grupo Alvarez (Porto), particularmente Jaime Isidoro e o critico de arte Álvaro Egídio irão organizar os Encontros Internacionais de Arte (Valadares, 1974; Viana, 1975; Póvoa, 1976; Caldas, 1977), que terão como consequência as Bienais de Cerveira, a partir de 1978. Mas outras acções colectivas e dos novos modos de semear arte, serão dinamizadas através de grupos como Puzzle,Texturations, Presença, Vanguardas Alternativas e Centro de Artes Plásticas de Coimbra, entre outros. 6 M. L. Pintasilgo sublinha (p.66) que nesse período a gente da cultura apostava numa “via original”. 14 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Em Lisboa, as actividades conceptuais e pós –conceptuais, entretanto protagonizadas por inúmeros artistas, serão o assunto aglutinador da exposição "Alternativa Zero", organizada por Ernesto de Sousa em 1977. Claro que em Portugal houve e há um espírito Fluxus, mesmo com os nomes mais dispares, abjeccionismo, surrealismo, experimentalismo e até dadaísmo, e sem-nome o que ainda é mais interessante. Isso provou-se por exemplo com a Alternativa Zero. 8 O espírito Fluxus 9 (To be in) é definido por Ernesto de Sousa como a recuperação da antiga conexão entre a arte e vida, pelo envolvimento e participação, entrega e abertura, dádiva improdutiva e, de um modo geral por todas as atitudes artísticas que tendem a reverter a disponibilidade estética em festa.10 1.1 As Bienais como Reflexo das Tendências do Campo Artístico O campo artístico é investido de dinâmicas próprias que lhe conferem autonomia e especificidade. A sua génese está associada à constituição social do artista enquanto “personagem”, dotado de individualidade e de “nome” e da crença do valor artístico. Sendo assim, um sistema de posições, agentes e instituições ligados entre si por relações de legitimação recíproca, condiciona o funcionamento da economia dos bens culturais (locais de exposição, instâncias de reprodução dos produtos e dos consumidores, agentes especializados), e impõe uma medida específica do valor do artista e dos seus produtos. O campo das artes plásticas é então a área de intersecção entre os agentes produtores, o público e os críticos / comentadores. As estratégias de legitimação são ainda condicionadas (segundo Bourdieu 11 ), face à dupla clivagem: temporal (antiguidade / actualidade) e institucional (centralidade / periferia). A sucessão no campo artístico dá-se de forma quase convulsiva e cíclica, mantendo-se 7 Conde, Idalina – “Transformações recentes no campo artístico português” in A Sociologia e a sociedade portuguesa na viragem do século (Actas do I Congresso de Sociologia), 2º Vol., Lisboa, Editorial Fragmentos/ Associação Portuguesa de Sociologia, 1988. 8 Sousa, Ernesto de: Ser Moderno em Portugal, (P. 251). 9 Idem, ibidem. Na pag. 250 Ernesto de Sousa faz uma síntese histórica do movimento Fluxus. 10 Idem, ibidem: p.143. 11 Sobre a definição de “Campo Artístico”, ver: Pierre Bourdieu, Les régles de l´art – génese et stucture du champ literaire, Paris, Éditions du Seuil, 1992 e na mesma linha, José Augusto França, “Le fait artistique dans la sociologie de l´art” in Colóquio Artes, nº17, 1974. 15 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 a estrutura formal do campo, apesar de mudarem os conteúdos (conjunto de agentes, grupos, movimentos estéticos). Como estrutura dinâmica obedecem a ciclos de “estruturação, desestruturação e reestruturação” através de ritmos, duração, intensidades. Este movimento, dá-se pela oposição dinâmica de gerações artísticas e respectivos modos de produção estética, sendo a curta duração, uma característica das últimas décadas do século XX. Sucedâneo do antigo “Salão”, a “Bienal” procurou imitar, ainda que a uma escala mais modesta, os grandes encontros internacionais e democratizar o acesso à participação. Decorrente da política de descentralização cultural, característica da primeira fase do período pós - revolucionário que se estendeu até meados dos anos oitenta, permitiu que se tivessem encontrado os novos protagonismos que se destacaram nessa década. Nestas Bienais 12 observou-se um fluxo e uma emergência de artistas cada vez mais jovens, na sua maioria estudantes da Escolas de Belas Artes de Lisboa portadores de expectativas de profissionalização antecipadas, se os compararmos com o comportamento e o tempo de carreira dos membros das gerações mais velhas. A bienal reserva regularmente um espaço para a exposição de obras de artistas homenageados, representantes prestigiados da arte moderna portuguesa (...). Sarah Afonso e Almada Negreiros na 1ª Bienal, Barata Feyo na 2ª; Vieira da Silva na 3ª; Amadeu de Sousa Cardoso e Santa Rita na 4ª. Nesta última Bienal conservou-se igualmente uma sala para oito dos artistas pioneiros do processo de vanguarda: Arlindo Rocha, Fernando Lanhas, João Hogan, Joaquim Rodrigo, Júlio Pomar, Júlio Resende e Luís Dourdil, geração dos anos 40 até hoje (...). Já na 5ª Bienal (1986) numa secção à parte apresenta-se a nova geração de pintores (seleccionados também pela nova geração de críticos): Pedro Calapez, Cabrita Reis, Xana, Pedro Portugal, Pedro Proença, entre outros. Em 1984 um grupo destes jovens constitui o que hoje será designada de geração de oitenta nas artes plásticas portuguesas, geração produtora de novos comportamentos estéticos e também recentes reconhecimentos institucionais - o que acontece em Cerveira, 12 Depois da 1ª Bienal de Cerveira em 78, seguir-se-ão: Campo Maior em 81; Lagos em 82 e Chaves, em 83. Idalina Conde faz o estudo do campo artístico nacional seguindo a Bienal de Cerveira entre 78 e 84, e defende que através desta bienal lhe foi possível assistir às “tendências de reestruturação” e “reconstituição de protagonismos” onde distingue duas etapas: uma primeira, de 78 a 84, e outra posterior. 16 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 em 86, quando para eles é reservada uma secção extra concurso, representando as actuais tendências da vanguarda. 13 Este excerto oferece-nos uma visão retrospectiva do desenvolvimento dos protagonismos e respectiva valorização e legitimação. Se as primeiras bienais se fazem creditar com artistas consagrados, seguida duma geração de abstraccionistas à qual ainda não se teria prestado a devida homenagem, já nas últimas bienais, a juventude ocupa o primeiro plano, numa atitude orquestrada de clara afirmação e tentativa de domínio dos mecanismos de legitimação. Apontando para uma direcção distinta daquela que se manifestou na década anterior, as Bienais de 84 e 86, vêem uma revalorização das artes plásticas tradicionais (pintura e escultura e modalidades próximas). As modalidades desenvolvidas, principalmente nos anos 60 e 70, "aparecem agora (na opinião dos artistas e críticos emergentes) como sinal de uma modernidade atrasada" 14 e pouco representativa da estética internacional . 1.2 Exposições relevantes entre 1979 e 1986 Analisados em traços gerais o período pós-revolucionário e a sua influência na prática artística, constata-se que em finais da década de setenta uma série de exposições irá contribuir para uma mudança do paradigma estético e a emergência daquela que foi designada de “geração de 80”. Através destas exposições assistiremos à reconfiguração do campo artístico e aos protagonismos, atitudes e conceitos daí decorrentes. Dois anos depois da Alternativa Zero, a Galeria de Arte Moderna de Belém recebe, durante os meses de Outubro e Novembro, uma grande exposição internacional de desenho - LIS 79 15 . Organizada pela Secretaria de Estado da Cultura, pretendeu cumprir dois objectivos: divulgar as novas propostas e confrontá-las com as práticas estabelecidas. Os textos do catálogo são da autoria de José Augusto França e do 13 Conde, Idalina “Bienais e Artistas em Cerveira”, in Sociologia, Práticas e Problemas, nº4, 1988, Pág. 103. 14 Idem, Ibidem, pag. 96 15 LIS´79 –Exposição Internacional de Desenho – Galeria Nacional de Arte Moderna – Lisboa 30 de Outubro a 30 de Novembro. 17 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 teórico da Transvanguarda Achile Bonito Oliva, tendo este integrado o júri de selecção das obras premiadas. Atendendo às notas da crítica, destaco em Eurico Gonçalves 16 as referências ao eclectismo da selecção que vem demonstrar a possibilidade de coexistência de diversas tendências estéticas. Já Nelson di Maggio 17 , com o título Lis´79 cai em zona cinzenta, chama a atenção para aspectos contextuais, criticando a ineficiência da organização no que diz respeito à divulgação e alerta para necessidade de uma mediatização dos acontecimentos artísticos como forma de os valorizar. Num historial breve sobre as mutações de sentido do desenho, admite que se impõe um novo código de leitura, pois “ tudo é permitido, e as artes inter-relacionam-se intercambiando-se. É difícil delimitar fronteiras. A colagem, a pintura, a terceira dimensão, os mais diversos materiais são chamados a participar num “desenho”. Ao mesmo tempo, entre 1 e 26 de Outubro, ocorria em Estugarda uma exposição em reacção ao IX Congresso Internacional de Artistas, que se reunira nessa cidade a 29 de Setembro. Esta exposição surgiu da iniciativa de 50 Galeristas de 10 Países Europeus atentos não só à vanguarda, mas sobretudo à juventude dessa vanguarda. Entre os “operadores estéticos” Cerveira Pinto 18 destacou: Nikolaus Urban, Pieter Mol, Gerard Merz, Mary Kelly, Stephen Mckenna, Tonny Cragg, Michelle Zaza, Mimmo Paladino, Marci Bagnolli, Nicola di Maria, Luccianno Castelli (premiado na Lis 79), Michel Biberstein, Jorg Renz, Ruch. Os artistas portugueses, representados através da Galeria suíça E+O Friederisch, foram Julião Sarmento e Helena Almeida. A estes artistas, aponta uma filiação onto-estética que designa por narcísica negativa, com origens nas sensibilidades do pós-guerra e cujas manifestações reflectem um estado de tensão e conflito entre a subjectividade concreta e os instrumentos da sua manifestação: as linguagens. Cerveira Pinto associa o narcisismo negativo a uma exaltação nostálgica do paraíso perdido, da perda da paisagem e do centro de que o homem é símbolo. A exteriorização deste sentimento 16 “Lis´79: Exposição Internacional de Desenho” in: Diário Popular, Lisboa, 8/11/79 . 17 In: O Jornal, Lisboa, 9/11/79. “ Europa: Arte dos anos 80” in: Diário Popular, Lisboa, 18/10/79, pp.X-XI. 18 18 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 revela-se na provocação e mutilação levada a efeito pelo artista, inclusive com seu próprio corpo. Em oitenta, a Bienal de Paris recebe, após um interregno de onze anos, uma representação portuguesa. Referindo-se-lhe, Egídio Álvaro 19 manifesta decepção face às novas tendências artísticas que se afastam da intervenção social, convergindo em noções que designa por “conceptualismo romântico na teoria, pragmático e frio nas obras”, onde emerge um discurso marcado pela “efemeridade, solidão, silêncio, de coisas situadas entre a vida e a morte”. Critica a atitude estética de aproximação às teses do sublime: “Entramos no campo da Utopia, na definição da obra de arte como passaporte para a plenitude. É pedir um pouco demais, sobretudo no estado actual da sociedade, em que os estetas não abundam. Utopia, romantismo, ilusão?”. Para Egídio Álvaro, a arte portuguesa passa por um estado de indeterminação: “estes artistas representam em Portugal uma certa ruptura, uma concepção particular … que não se definiu ainda suficientemente e que … se orienta mesmo para vias … que escapam às intenções conscientes dos seus praticantes”. A Documenta 7 de Kassel, em 1982, consagra o conjunto de artistas que anteriormente haviam exposto em Estugarda e as tendências por eles representadas. Conjuga o carácter retrospectivo, apresentando artistas como Beuys, Merz, Warhol, Oldenburg, Kossuth, Burri e Serra, com o de consagração de jovens artistas como Clemente, Chia, Paladino, Longo, Cragg, Salomé, Salle, Imendorf, Kiefer, representantes das tendências transvanguardistas, neo-expressionistas e americanas dos anos 80. Portugal faz-se representar pela primeira vez por Julião Sarmento, cujo trabalho, segundo Leonel Moura 20 se caracteriza por um optimismo estético e pela busca de referências interiores, ao que se acrescentam todos os dados culturais à mão, sem qualquer preocupação de rigor linguístico. Entretanto, no contexto nacional e após o incêndio do Centro Cultural de Arte Moderna de Belém, a Sociedade de Belas Artes de Lisboa irá ocupar o lugar dos acontecimentos artísticos mais significativos e determinantes no processo de afirmação de diversos artistas entre os quais se situa o grupo Homeostético. A 19 20 “Portugueses na Bienal de Paris” in: Diário de Notícias, Lisboa, 23/10/80 . “Documenta 7” in: Revista Mais, nº 18, Lisboa, 13/8/82, pp. 46-48. 19 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 escolha deste espaço para a realização da Exposição Continentes, não se deveu só às características do salão, mas também ao carácter patrimonial e emblemático desta instituição, única associação de artistas a representar as principais “épocas” da arte portuguesa desde finais do século passado. No mesmo ano (1982), a SNBA realiza a Exposição de Arte Moderna 82. Mais do que a selecção de artistas, importa destacar o texto introdutório do catálogo assinado por Fernando de Azevedo: “Opondo-se a uma localizada persistência passadista os Salões de Arte Moderna da SNBA foram, em seu tempo, uma necessária frente empenhada na defesa de um espírito de actualidade (...). Pode ser que este nome de moderno, tal como a palavra arte, (...) guardem hoje um certo ressaibo épocal e apeteçam outras fórmulas mais em uso e, por isso, também epocalmente mais significantes. (...) Caracteriza este espaço um evidente eclectismo de tendências que reflecte, sobretudo, uma diversidade de atitudes, de expressão, de processos, na permanência de uma experiência que consagra algo do espírito modernista, de par com outras manifestações em que um maior sentido experimentalista ou mais acentuadamente polémico por sua vez se manifesta (...). 21 Neste excerto podem adivinhar–se hesitações face à indeterminação dos conceitos surgidos nas teorias estéticas e filosóficas, bem como uma certa crise de certezas que se procura ultrapassar através do eclectismo da selecção. O ano de 1983 começa com a exposição Depois do Modernismo 22 , antecipadamente anunciada na revista Expresso do mês de Novembro através de um artigo 23 de Francisco Belard e de um texto de Eduardo Prado Coelho, onde este tenta explicar o que é o Pós-Moderno. Este objectivo foi também o dos promotores da exposição, bem como a necessidade de “delimitar um estado de espírito”. Com um carácter ecléctico, a exposição reuniu várias disciplinas: Artes Visuais, Arquitectura, Moda, Música, Dança, Teatro e Colóquios. Germano Celant e Rudi Fucks foram alguns dos convidados internacionais que participaram nos colóquios. 21 Catálogo da “Exposição da Arte Moderna - 82” SNBA. Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 7 a 30 de Janeiro. 23 “Depois do Modernismo” in: Revista Expresso, Lisboa, 20/11/82. 22 20 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Segundo Belard, descobre-se neste projecto a necessidade de legitimar um território, ainda que esse não seja um lugar de homogeneidade, ou de pacíficos encontros. Trata-se conscientemente da primeira afirmação geracional, que coloca questões relativamente novas em Portugal: 1. « Em que medida se esgotou o conceito e o conteúdo do Modernismo? 2. Haverá em Portugal formas de expressão que possam integrar uma noção como Pós-modernidade? 3. Haverá aspectos comuns às várias disciplinas artísticas? Que espírito particular representará este facto? » Demarcando-se claramente da institucionalização modernista e referindo-se à incapacidade de esta concepção accionar os poderes criativos de negação, os coordenadores da exposição defendem que os anos 80 assistem a uma revalorização da subjectividade. Em termos de expressão plástica, José Luís Profírio 24 assinala uma rematerialização da arte, protagonizada pela figuração do corpo humano em artistas como Leonel Moura, José Carvalho, Julião Sarmento e António Palolo. É nesta rematerialização (reconversão à sensualidade, passagem do conceito ao objecto) que reside uma das mudanças significativas deste começo dos anos 80. Passando à análise dos textos do catálogo, Cerveira Pinto situa a arte no âmbito da linguagem onde os sentidos actuam como ponte que o sujeito lança objectivamente em direcção à sua exterioridade feita objecto. Segundo ele, esta ponte é um corredor histórico-cultural, portanto ideológico. Pondo em causa a utilidade social da arte, afirma que o seu objecto é o sujeito. Interroga-se acerca do discurso artístico enquanto forma de legitimação, defendendo a conquista da autonomia 25 desse discurso, bem como a sua devolução ao artista: “a discussão teórica sobre arte … é em absoluto privilégio do artista”, transformando-se assim numa meta-linguagem: “ 24 “A moda e o resto” :, Revista Expresso, ( p. 31), Lisboa, 29/01/83. 25 Esta autonomia implica uma linguagem / código artístico que medeia as interacções dos seus elementos e que delimita o acesso ao campo, uma vez que a sua decifração (conceitos, categorias, e símbolos), pressupõe uma aprendizagem e uma acumulação de capital cultural e simbólico. A contribuição do estruturalismo e do conceptualismo foi decisiva para a autonomia do discurso artístico. 21 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 todo o discurso tendente a esclarecer o sentido e as deformações dum jogo de linguagem chama-se (modernamente) uma meta-linguagem”. Cerveira Pinto procura definir o “indizível pós-moderno” através dos seguintes parâmetros: “ Necessidade (…) de limitar a actividade predatória das colectividades e do indivíduo; consciência da capacidade de real extinção da espécie humana; necessidade de uma revolução radical do estatuto da individualidade (fim do «homo economicus»)”. Neste contexto a Vanguarda 26 figura -se na “tríade Negação-Superação-Afirmação”, cabendo ao artista modificar o curso das tendências instituídas e reagir aos condicionalismos históricos e ideológicos. Continuando a análise do catálogo, e passando a Leonel Moura observo que este, tal como João Boaventura Santos situa a sensibilidade pós-moderna entre atitudes de suspeição e recuperação, das quais derivam uma série de impulsos contraditórios que reflectem um estado muito particular das artes e da vida contemporânea: esgotamento das propostas formalistas e incapacidade efectiva da produção do Novo. Nestes impulsos distingue: A pouco convicta recriação de uma tendência geral neoclássica; O eclectismo (que designa de confusão geral); A frontal recusa da veracidade possível da própria época. Interrogando-se sobre a capacidade de renovação permanente da arte, para L. Moura, urge desmistificar a ideia de progresso como factor positivo, restando uma noção de diferença num contexto que se proclama a-histórico. Enfim, nesta perspectiva, continuar a acreditar no que já não se pode acreditar é que é verdadeiramente a condição pós-moderna. José Barrias relaciona pós-modernismo com a permanência post-mortem do passado: 26 O conceito de Vanguarda tem uma conotação política pois está associado à oposição, “arte burguesa” ou comercial e “arte pura” ou desinteressada, sendo a segunda privilegiada pelo campo artístico, gerando no entanto as lutas e contradições entre grupos, e acabando por alimentar um processo circular (inovação, assimilação, inovação) de auto renovação. Na perspectiva da Sociologia da Arte, este movimento pode traduzir-se pelo confronto “norma e desvio” ou “ regra e contra-regra”, entre os “estabelecidos” e respectivo publico e os “aspirantes” destinados a públicos por conquistar. Para mais esclarecimento sobre este assunto consultar, “O Poder simbólico” de Pierre Bordieu. 22 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 “ A arte não se mexe, a arte tende (…) porque as alternativas não se verificam”. Daí o surgimento duma “estética de etiqueta – que tranquiliza a consciência (pequeno burguesa, porque outra não está à vista) na actual perspectiva da exploração da volubilidade consumista das modas e dos revivalismos de moda que alguns chamam história”. A Moda, um dos temas da exposição, é definida como uma forma de vida participante no contexto donde advém o movimento e a inovação : “Definir o nosso modo de vida a partir da moda é escolher o desconforto, a vertigem do movimento, é sacrificar o essencial para sublimar o acessório”. Moda e Vanguarda serão a mesma coisa? – interroga-se José Luís Profírio 27 : “ou terá apenas mudado de nome essa tradição do novo que sempre tem dominado a vida da modernidade?” Relativamente à Arquitectura, destaco nas notas da imprensa, a opinião de Manuel Graça Dias 28 , para quem as virtudes da exposição residem no relançamento da “disciplina” como arte, contra a tecnicidade a que esta tem estado ligada e que a afasta dos salões de exposição. Destaca o papel dos novíssimos arquitectos, com idades entre os 27 e os 30 anos, que representam o “relançamento da Arte, em força, em Portugal e em 1983”. Manifesta o seu contentamento pelo facto de a exposição e o respectivo catálogo constituírem, não uma cartilha de tendências ou intenções, mas um amontoado de ideias e atitudes, que, pela sua natureza dispersa, formulam um “Álbum documental estimulador” para a desprezada disciplina, valorizando as nossas soluções relativamente às estrangeiras. Profírio 29 refere-se à saudável diferença de opiniões entre os arquitectos Lisboetas e os Portuenses, sublinhando ainda a emergência de novas atitudes na arquitectura em Portugal: os revivalismos e as atitudes de recuperação das práticas artesanais nas campanhas de preservação do património. Numa entrevista 30 dada pelos organizadores da exposição Depois do Modernismo, publicada no Jornal em 8 de Janeiro, fica clara a intenção de não pretender dar respostas, mas a de mostrar que existe um número significativo de artistas cujas referências se afastam a passos largos daquelas por que se regem a pouca critica e a pouca teoria de arte deste país. 27 In: Expresso, Lisboa, 29-01-83, p. 31R. “Depois do Moderno? Portugal”, in Expresso, 8/01/83, p. 25R. 29 Op. Cit. 30 Cerveira Pinto “ O fim de um modernismo em debate”, in: revista Expresso, Lisboa. 28 23 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Os critérios que determinaram a selecção das obras expostas manifestam uma concepção artística que assume a fragmentação, a subjectividade, o abandono das ideias de que uma obra de arte pode contribuir para resolver os problemas sociais e de que existe uma tendência única de natureza estruturante e fundamental. Destaquese o preenchimento do catálogo com textos de autor (artista) numa clara atitude da apropriação do discurso critico-teórico pelo artista, conforme argumento apresentado por Cerveira Pinto. Se o ano de 1984 foi marcante na Bienal deVila de Cerveira pelas razões que já apontei, em Lisboa, a grande colectiva “Novos, Novos” revela “obras significativas de artistas portugueses e estrangeiros radicados em Portugal, novos na idade (compreendida entre os vinte e os trinta anos), novos no seu aparecimento público, e novos nas propostas estéticas que procuravam assumir. A Sociedade Nacional de Belas Artes convidou 60 jovens artistas recentemente revelados, que por seu turno, tiveram oportunidade de convidar mais 60.” Foram apresentadas 159 obras de oitenta e seis autores. No texto do catálogo, Eurico Gonçalves procura identificar as tendências estéticas que caracterizam esta geração: Numa primeira abordagem ressaltam algumas características comuns, derivadas de uma nova atitude perante a arte: a “Bad-Painting”, o neo-expressionismo selvagem, a nova figuração narrativa, “fauve” e “pop”, a nova abstracção, o conceptual, o elementarismo emblemático e mínimal, o decorativismo deliberado, o “kitsch”, o neo-naturalismo, a dissolução de fronteiras estéticas, a utilização de técnicas mistas em diversos suportes, quer à escala monumental, quer no pequeno formato, e, sobretudo, uma grande vitalidade associada à expressão directa e despreconceituada de certa irreverência. (...) O que muitos destes jovens artistas pretendem é, de facto, desdramatizar uma situação histórica de impasse, ao pintar descomplexadamente e despreconceituadamente, reabilitando o instinto da pintura e o prazer lúdico da experimentação de diversos materiais e técnicas. (...) A arte dos novos-novos (...) caracteriza-se por uma vitalidade que, associada às proezas da imaginação, retoma aspectos julgados ultrapassados e chama a atenção para a necessidade de se interrogar desde as origens, enraizando-se assim na mais viva tradição criadora”.31 31 Gonçalves, Eurico: Catálogo - Novos Novos – SNBA, Setembro, 1984. 24 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Dois anos depois, as dúvidas apresentadas por Fernando Azevedo parecem ser aqui resolvidas com optimismo: Ser absolutamente moderno é ser capaz de se assumir inteiramente (…) é ser inovador, promover novos modos de sentir e pensar (…) correr o risco de não ser imediatamente entendido, ter de esperar algum tempo para que a sua linguagem seja estudada e decifrada à luz de novos códigos. (…) Tal como Cerveira Pinto, que defendeu a necessidade da autoria do discurso artístico pelo artista, também Eurico Gonçalves vem dizer que ninguém melhor do que o próprio pintor pode defender a sua pintura: “Só a convicção do artista o salva”. O salão da Sociedade Nacional de Belas Artes será, em 1986, o local escolhido para as exposições de afirmação de dois grupos que disputam entre si o protagonismo no campo artístico. As exposições “Arquipélago” e “Continentes” são o corolário deste período febril para a vetusta Sociedade. Neste ano, a Secretaria de Estado da Cultura irá cortar o financiamento a esta instituição e, coincidentemente, a sua importância junto às gerações mais jovens irá cair a pique. Arquipélagos e Continentes, duas grandes exposições de afirmação geracional. O regresso aos temas, aos títulos, e a discussão do sentido. Segundo a teoria homeostética, a “autofagia” e a “continentalidade” encontram-se em pólos opostos nos actuais posicionamentos perante a arte: autofagia, significa o fechamento da arte sobre si própria. Nesta concepção são inscritas todas as tendências monológicas da teoria de arte, nomeadamente aquelas que se pautam quer pelo formalismo, quer pelo subjectivismo. Na prática artística, o conceptualismo, e dum modo geral todas as práticas ligadas ao vicio do estilo. A continentalidade, pelo contrário, visa o diálogo da arte com outros campos de saber e da vida, ou seja, de tudo o que poderá contribuir para a riqueza semântica da obra e da experiência estética do receptor. Nesta concepção, o estilo não faz sentido, pois será a apetência pelos referentes e a natural mobilidade dos “apetites” que irá conduzir o surgimento da obra. A Continentalidade é fundamentada na teoria homeostética, com veremos mais detalhadamente na 3ª parte desta tese, pela co-habitação e pela participação. 25 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Citando do Texto 21 (Teoria Homeostética): Existe a postura de significação que é um acto de dádiva, e a postura do significante que é meta-linguistica e por isso mesmo autofágica (...). O “Projecto para texto sobre os Continentes”, que apresento no sub-capítulo 4.2. é completamente elucidativo acerca desta problemática na Teoria homeostética. O catálogo da exposição Arquipélagos contém textos de Fernando de Azevedo, Bernardo de Almeida e Maria Filomena Molder. Nas palavras de Azevedo, o “Arquipélago” metaforiza a duplicidade da relação que, no percurso criativo, se manifesta pelo vai-vém entre o exílio e a comunicação, a separação e o elo. Da “fulcral relação entre local e global que domina cultura(s) e sociedade(s) contemporânea(s) retira-se o direito à diferença” (B.P. Almeida). De entre os intervenientes no campo artístico, defende-se, à semelhança dos autores e críticos que temos vindo a analisar, que deve ser o artista o responsável pela condução da sua actividade e legitimação. Ao negar a Instituição como ponto de partida, os responsáveis pela modernidade desde sempre tiveram a consciência nítida de que não é a eles quem cabe procurá-la, mas àquela que compete encontrá-los (…) a arte foi redescobrindo (…) o seu sentido – o seu lugar exacto em relação à sociedade, não mais como ilustradora dos poderes de circunstância, mas como domínio instigador do mito, lugar do artificio e do jogo, operando num limiar ressacralizador do mundo (…) A arte não se pode confinar ao domínio estreito das escolas ou de imposições constrangedoras, mas antes se reclama do gesto comum de uma comum aprendizagem e invenção a que a Instituição, se quer sobreviver, deverá render-se. (F. de Azevedo) Do texto de Maria Filomena Molder, ressaltam as referências à analise dos trabalhos expostos, dos quais terão desaparecido “a agonia da referência”, do ser real ou ideal que marcou os inícios da arte moderna. Formalmente, e utilizando as palavras da autora, observam-se movimentos de anfibiologia, que esta procura interpretar através dum discurso estético pontuado pelos mais diversos e poéticos epítetos. O catálogo da Exposição Continentes, deliberadamente, não inclui qualquer texto ou apadrinhamento teórico, mas apenas uma dedicatória a Ernesto de Sousa. 26 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Ernesto de Sousa é considerado pelo grupo uma referência como artista e como teórico de arte no século XX em Portugal. Trata-se portanto de uma homenagem. 1.3 Anos 80: o fim da obrigatoriedade revolucionária e as transformações no “universo” cultural português. A sociologia atenta às antinomias reflexivas classifica as mudanças na sociedade actual como intensas, pludireccionais, contraditórias ... rumando-se assim para uma perspectiva ecléctica atenta a paradoxos. (Conde, Idalina: p. 79: Portugal, que modernidade? ) Relativamente à evolução política e sociológica da sociedade portuguesa nestes anos de pós-revolução, as perspectivas são pelo menos de duas ordens: Pintasilgo 32 refere a falta de visão da classe política e o progressivo fechamento que se manifestou pela operação redutora de tudo limitar a esquemas e pressupostos ideológicos: “Mas mercê da inércia cultural dos principais actores da vida política, a margem do desvio foi-se fechando até nela só ficar a rotina” 33 . Da democracia participativa à democracia representativa, serão a contabilidade e o mercado das ideologias a comandar o “País de Abril”, cujo corolário se dará com a entrada na Comunidade Económica Europeia. Se os partidários da “democracia participativa” se mostram desiludidos com o rumo dos acontecimentos e vêm revalorizar a ideia de Utopia 34 e uma nova teoria da democracia e da emancipação social (Pintasilgo, Boaventura S. Santos), outros há que destacam a importância da conquista da modernidade e a velocidade a que tudo aconteceu: 32 Pintasilgo, Maria de Lourdes (1988): “Contudo este fenómeno cultural em si mesmo, não foi entendido nem pela inteligência, nem pelos líderes políticos do País” (p.217). 33 Idem, ibidem. 34 Santos, Boaventura de Sousa: Pela mão de Alice, o social e o político na pós-modernidade ( in Introdução) : " O excesso de regulação modernista faz com que (...) (o bloqueio das alternativas) (...) só possa ser ultrapassado por via do pensamento utópico, aliás uma das tradições suprimidas pela modernidade que urge recuperar". 27 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 (...) Nenhum outro País Europeu conseguiu liquidar o campesinato, alterar a taxa de fecundidade, mudar os padrões de consumo, diminuir a mortalidade infantil, instaurar o sufrágio universal, transformar as relações igreja - estado, criar uma classe média, abrir as fronteiras a pessoas e bens, escolarizar a população, liquidar um império à velocidade a que Portugal o fez. Na economia como nas almas o país está irreconhecível”. 35 Também Ernesto de Sousa nos traça um retracto do ambiente cultural neste período de transição, onde destaca a mistura do velho e do novo e, consequentemente, o aparecimento de novas relações de coexistência Agora e aqui. Portugal muda vertiginosamente. Novos cinemas em exibição, companhias de teatro independente que não se contam pelos dedos, traduções (algumas surpreendentes), novos autores, novos interesses. É claro que o antigo persiste remansosamente (...) É verdade, o novo e o antigo misturam-se. Ou melhor... Há o que remanesce de um passado mais ou menos recente. Mas o antigo já verdadeiramente não o é; porque onde há diferenças, mesmo que sejam pequenas roturas, pequenas clivagens, todo o edifício treme. 36 A partir dos anos oitenta, Portugal tem os sinais de uma nova era, que o aproxima das sociedades europeias: alargamento do sistema escolar; metropolização das maiores cidades; esbatimento das fronteiras entre as culturas de elite, popular e de massas e o surgimento entre os jovens de uma ética do lazer. (Conde: Portugal, Que modernidade?, p.79). Boaventura Santos chama-lhe "década pós - marxista" 37 , caracterizada pela transnacionalização da economia, lógica económica capitalista sob a forma neoliberal e consequente apologia do mercado, da livre iniciativa, do fortalecimento sem 35 Mónica, Maria Filomena (1997: 230) “A evolução dos costumes em Portugal 1960-1995, in António Barreto (Org.), A Situação Social em Portugal, 1960-1995, Lisboa ICS (citada por Idalina Conde em Portugal, que modernidade? p. 79 ). 36 Ser Moderno em Portugal, p.23. 37 Santos, p.31: "O perfil pós-marxista da década de oitenta tem um traço fundamental: é antireducionista, anti-determinista e processualista"; (p.30): "Em virtude do colapso dos regimes comunistas do Leste Europeu, o marxismo passou a ser visto como uma espécie de anacronismo"; (p.33): " a década de oitenta foi pois uma década em que o marxismo pareceu desfazer-se definitivamente no ar". 28 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 precedentes da cultura de massas, e derivados estilos de vida e de imaginários sociais individualistas, privatistas e consumistas. Em Portugal, à semelhança do restante mundo ocidental, é a ressaca da política manifestada pela descrença nas ideologias, ou grandes narrativas, como lhes chama Lyotard. O texto Homeostético 38 “O INCONSCIENTE POLÍTICO” destaca aspectos comuns aos discursos político e artístico, assinalando a falta de consistência dos mesmos e a sua dependência de situações conjunturais: Se na produção artística influi obviamente a condição política, além de uma consciência política (diluída ou não no discurso estético), esse espectro de consciência é apenas o iceberg, a formalização de um inconsciente político. As variações a que nos fomos acostumando quer na moda artística, quer no discurso político têm estado cada vez menos dependentes de pressupostos nítidos. A consciência política é cada vez mais uma consciência desenraizada cujos postulados se eriçam num discurso ecléctico cujos desígnios são uma secularização dos discursos mais radicais cujo epílogo foi só no início dos anos 70. Entre um nihlismo mais ou menos radical, um eclectismo racionalista e um discurso arcaízante, têm-se sucedido algumas modas. A arte depende de factores mais ou menos mimético / mediúnicos (não me lembro da expressão que Duchamp usou), o discurso político, a sua consciência também dependem muito de factores ocasionais, de uma inconstância mimética, do que aquilo que se possa supor. Não que tudo seja aleatório, nem que tudo seja imprevisível, mas que perante a secularização das diversas formas políticas (do fascismo, comunismo, da democracia europeia, etc, dos movimentos contestatários, ecologistas, anarquistas, feministas e outros) ainda se pode assistir à necessidade de variação, com a irrupção contínua de factores estranhos que põem em causa as formas de poder constituídas (mesmo as mais abertas). Isto são truísmos, e todos nós sabemos. As minorias passarão a ser cada vez menos minoritárias (...). Trata-se duma fase de transição paradigmática com um perfil vagamente descortinável ainda sem nome, e que se designa por pós-modernidade (Santos, 1994), onde emerge uma crise cujos sinais evidentes são a eminente catástrofe ecológica e a mercadorização da vida 39 . 38 Texto 24 (Teoria Homeostética, em Anexos). 39 Idem, ibidem: pp.34 e 35 29 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 A referida ressaca política, manifesta-se na população em geral pelo desvio de interesse dos valores (“grandes narrativas”: políticos, éticos, morais) para o consumo. Contrariamente, em termos artísticos esse desvio é entrópico. De acordo com as opiniões dos criticos que aqui temos vindo a analisar, as tendências vão no sentido do exterior (do social, do interventivo) para o sujeito artista (subjectivismo), para a disciplina, para a história, num movimento de reflexividade. Ainda que “Modernização e Progresso" sejam as palavras de ordem da política nacional, nos países altamente industrializados surgem desde os anos sessenta, movimentos minoritários que traduzem a saturação e desilusão face às promessas da modernidade. Face ao crescendo das minorias, Boaventura Santos aponta o desfasamento entre os movimentos de regulação e os de emancipação sociais: entre o estado que mantém a espacialização ideológica (direita, centro, esquerda) com o objectivo de se perpetuar no poder, e a sociedade que já não vê nas bipolarizações a solução para a crise. Face à universalidade dos problemas e à uniformidade rotineira dos mass media, emergem os cultos, quer pela diferença, quer pela indiferença: (...) aquilo que definiu a um nível mais global a expressão post-moderna foi um clima milenarista em que o “tanto-faz” tomou o lugar que a “Diferença” ocupou na década de 70. Esta indiferença que capitalizou os desânimos e os falhanços dos mais diversos projectos, de tudo o que implicou uma luta contra as estruturas do sistema políticoeconómico ocidental, que vive na tensão permanente de uma hecatombe que resultaria da guerra entre as duas superpotências, assim como das enormes catástrofes técnicas e naturais (vejam-se os recentes desastres dos vaivém espaciais e de Chernobyl), esta indiferença refugia-se na busca de situações que façam esquecer a impotência face a estes problemas. 40 A posição homeostética é critica relativamente a este período de indeterminação que se vive. Na sua teoria, ele é metafóricamente designado de Babel. 41 40 Texto 31 (Teoria Homeostética, em Anexos). 41 Texto1 (Teoria Homeostética, em Anexos). 30 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 As atitudes viram-se para o local, para o indivíduo, onde a única estratégia possível é o diálogo 42 . Face à dificuldade em de narrar diacronicamente a contemporaneidade devido à profusão e mediatização dos acontecimentos, ou como diz o texto homeostético: hoje a perca de Sentido deve-se sobretudo à avalanche da multiplicação dos sentidos (Texto 8, em anexos), cai-se, segundo alguns autores 43 , na perpetuação do presente através duma leitura circular e horizontal. Por outro lado, os trajectos diacrónicos passam a ser feitos com finalidades heurísticas e reconstrutivas. Na sua relação com a história, a atitude pós-moderna proclama a superação das dicotomias e a reflexividade disciplinar e heterodisciplinar, e serão as práticas das diversas formas de cultura os melhores indicadores desta sensibilidade. Cerveira Pinto, em “O Lugar da Arte” publicado pela Quetzal em 1989 dá-nos um perspectiva optimista sobre o “pós-modernismo” e a sua influência nas artes. “Regresso à acção” é a palavra chave para um movimento que se operou em dois momentos, o primeiro, interdisciplinar (duchampiano: anos 60 e 70) e um segundo, intradisciplinar (expressionista: anos 80) e que estariam na génese da pósmodernidade (pag.40). Interroga-se se a intradisciplinaridade será uma força pacificadora (pag.41). Aquela que dissolveria as contradições modernistas e a vanguarda no seu tradicional papel provocador e revolucionário. 1.4 A capitalização do campo artístico, ou o mito do mercado No campo das Artes Plásticas, a partir de 84, novos protagonistas e novos valores estéticos significam a entrada numa nova etapa para a qual contribuiram os seguintes factores: A emergência de uma nova geração de artistas e de críticos de arte. 42 A questão do “diálogo” será amplamente abordada na 3ª parte desta tese. Muito esquematicamente, refiro agora que por diálogo se deverá entender, a revalorização da história, da tradição e da memória no encontro do sujeito com o mundo da vida através da recepção, da interpretação, e da performatividade. Na Teoria Homeostética, mais que uma estratégia, o diálogo das contradições (polemos) será a única possibilidade da arte não emudecer. 43 Ver sub-capítulo 2.1. desta Tese. 31 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 A crescente comercialização da arte contemporânea e expansão do mercado 44 à qual estão associadas estratégias prioritárias de internacionalização dos artistas plásticos portugueses (cuja evidência se observa no sucesso de mercado e intensidade de presenças nas grandes exposições internacionais, no circuito de mundanidade cultural e nos meios de comunicação social especializados, ou não). Políticas culturais do estado no reconhecimento e apelo à progressiva implementação do mecenato na empresa (1986-criação de legislação que, à semelhança de outros países europeus, implicará o mecenato empresarial no patrocínio de manifestações artísticas). A propósito desta abordagem economicista do campo artístico, Alexandre Melo fará notar que os persistentes factores da crise e instabilidade que ensombram o panorama económico internacional desde meados dos anos 70 terão criado as condições para o investimento em arte, como um bem susceptível de se valorizar. Digamos, não sem alguma ironia, que a euforia democrática da década anterior se traduz agora numa euforia económica e que o impulso expansionista da década de sessenta encontra aqui a sua plena realização. Na emergência do mercado, novas galerias e instituições vão deixando para trás aquelas que víamos ligadas a um tipo de coorporativismo artístico. Às instituições anteriormente consolidadas, (Fundação Calouste Gulbenkian, Sociedade Nacional de Belas Artes e Galeria de Arte Moderna de Belém), sucedem-se novos espaços que visam responder à urgência da actualização. Destacam-se: em 1983, a abertura do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, com uma exposição permanente de proveniência exclusivamente portuguesa; a reabertura em 1984 do Museu de Arte Contemporânea do Chiado e a inauguração da Fundação de Serralves, no Porto, já na segunda metade dos anos 80. Com a progressiva falência e perda de protagonismo das instituições tradicionalmente promotoras, surgem outras, ligadas ao estado e, portanto, de pendor marcadamente político. São elas: a Secretaria de Estado da Cultura e a Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento. São sobretudo estas duas instituições e as recentes galerias Cómicos e Módulo em 44 "...as galerias comerciais predominam agora sobre os salões de exposição; na 2ª metade dos anos oitenta, a arte portuguesa expõe-se para se vender, segundo uma lógica quase oposta à da década precedente." I.Conde: “Transformações recentes no campo artístico português”, 1988, p.182. 32 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 conjunto com os novos críticos, (dos quais destaco Alexandre Melo, João Pinharanda, Alexandre Pomar, entre outros), que irão promover os artistas em território nacional e internacional através de inédita campanha de mediatização em literatura especializada, ou não (destaque para a secção de artes do Jornal "O Expresso"), e em inúmeras revistas da especialidade internacionais (Flash Art; Lapiz, etc...), conduzindo os novos artistas portugueses a visibilidade social e profissional anteriormente inexistente. Esta situação revela uma nova consciência profissional 45 , onde os meios e estratégias de afirmação no campo artístico se pautam abertamente pela estratégia do mercado e seus sucedâneos publicitários (marketing, crítico associado, galerista e bolsa de clientes), em suma, os Lobbies 46 . A lógica do campo artístico ganha proporções traduzíveis por: agente, espaço, dinheiro, mediatização. Daí que Alexandre Melo destaque que esta foi uma época de 45 Desde o Renascimento que o artista, deixando de ser uma peça anónima num processo de produção e de prestação de serviços, passa a uma etapa de profissionalização diferenciada por paradigmas teóricos construídos dentro do próprio campo e organizada com autonomia cultural e social sob a forma de corporações ou academias, onde o artista é tido como criador. Raymonde Moulin (“De l´artisan au profissionel”; in Sociologie du travail, nº4/83, p.388). designa uma 2ª fase, a que chama “desprofissionalização”, caracterizada pelo abandono da ideia de profissão artística institucionalizada, anulatória da liberdade do sujeito como criador. São estes os pressupostos do movimento Romântico (séc. XIX) e Vanguardistas (séc.XX), onde os artistas reivindicam o individualismo, a ética da vocação e a estética da mudança: “ É o sujeito investido em si ”, onde se propicia a intenção como geradora da singularidade do produto, e do acto como expressão da singularidade do sujeito. (Idalina Conde (“Artistas, profissão e dom” in Vértice, nº60, Maio-Junho, , 1994, pag.78) defende um regresso à profissão já na segunda metade do sec. XX, fundamentada na “normalidade” do artista integrado num mercado profissional dotado dos mesmos direitos e deveres sociais que qualquer outra profissão, cujos critério, no entanto resultam ambíguos na sua definição. O dom, a vocação e o talento assumem na modernidade um estatuto de competência, diferenciado dos restantes grupos e categorias profissionais, pelo seu carácter personalizado, definível somente por critérios intrínsecos ao campo. Por outro lado, e apesar de todas as evoluções do campo artístico esses critérios persistem enquanto dimensões históricas no reconhecimento, identidade e legitimação. A sociologia da arte, propõe alguns critérios que permitem identificar socialmente a condição de artista enquanto profissional: a independência económica (viver da prática artística); a autodefinição (como artista); a competência especifica ( associada ao credencialismo); e o reconhecimento do meio artístico. 46 Como exemplo, a organização da exposição “E depois do modernismo” juntou Cerveira Pinto, Leonel Moura, Julião Sarmento e Fernando Calhau, funcionários da Secretaria de Estado da Cultura; da Galeria Cómicos: Luís Serpa; no Jornal “Expresso” Alexandre Melo e João Pinharanda; na Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento: Manuel Castro Caldas 33 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 “legitimação por circunstância 47 ”. Nós atrevemo-nos a propor a expressão legitimidade por cumplicidade, aliás comum às duas outras formas de legitimidade. Um dos críticos afirmava: “Aqui faz-se jus a uma comum sensibilidade geracional entre críticos e artistas (...) aproximados por vivências cúmplices e por sensibilidades provisoriamente identificadas... Como noutras etapas das artes plásticas, a geração de artistas é inseparável da constituição de um círculo social alternativo aos já estabelecidos, círculo esse que representa uma nova forma de identidade colectiva. Sem esta expressão de coesão não teria sido possível realizar nestes anos oitenta um conjunto de políticas de afastamento dos códigos tradicionais... 48 A expressão “geração de 80” requer esclarecimento: defendo que é necessário esclarecer que geração é esta, ou teremos uma história da arte portuguesa marcada pela narrativa dos legitimadores oficiais, das instituições, onde as singularidades submergem em consequência das tendências reducionistas ou limitadas dos críticos. Em primeiro lugar: Não existe uma geração de oitenta, mas várias gerações. Esta Tese tem como objectivo revelar uma delas, a Homeostética. Em segundo lugar: Não duvido de que o sucesso e o mediatização de alguns artistas, se inscreve num processo de “legitimidade por circunstância”, mas esta não exclui a forma da “legitimidade por obsessão”, evidente no carácter subjectivista do novo discurso estético, na atitude de auto-afirmação e na persistência da prática artística, reveladoras de uma postura lúcida e profissionalizada. Anteriormente propus a expressão “legitimidade por cumplicidade”, e é nesta forma de legitimidade que coloco o “destino” das carreiras mediáticas do “Art World”. Em terceiro lugar questiono o significado de “geração” e a sua atribuição a um decénio, pois no decénio de oitenta assiste-se a movimentos de revelação, como no caso da exposição “Novos-Novos”. A movimentos de afirmação, como no caso das exposições “Arquipélagos” e “Continentes”; a movimentos de consagração de 47 Ao processo da construção da imagem do artista estão associados modelos de legitimação, que certificam e pontuam de algum modo os percursos nas suas opções estético-artísticas. Bourdieu indica duas vias de legitimação: A “legitimação pela obsessão”, característica da ideia romântica de artista com vivências periféricas às normas sociais de conduta recusando a a arte puramente orientada para os circuitos comerciais. A “legitimação pela circunstância”, associada à ideia do artista integrado, quer do ponto de vista da aceitação pelos indivíduos, quer do ponto de vista do mercado. 34 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 artistas dissidentes do espírito politizado que animava a geração interventiva e conceptual de setenta, e que se manifestaram na exposição “E depois do modernismo”. O mito do mercado nas artes plásticas em Portugal, foi antes de mais o reflexo duma conjuntura internacional que exerceu em Portugal a sua influência, nomeadamente no grande dinamismo da bolsa de valores, e de que os agentes do campo artístico usando de grande sentido de oportunidade, souberam tirar partido. Para usar as palavras de Cerveira Pinto, esta década foi uma “era de reprodutibilidade económica da própria arte” (in: Catálogo da Exposição E depois do modernismo). Pela primeira vez o discurso artístico acede aos média comuns e chega a um público mais vasto, quer em território nacional, quer internacional. Esse foi sem dúvida o aspecto mais positivo. No entanto a recessão económica dos finais da década de oitenta e inícios de noventa, irá constituir um crivo por onde iriam passar inúmeros projectos, galerias e artistas. É o início de um período de desinvestimento... comercial e institucional. 48 Barroso, Eduardo Paz, « Portugal e as artes dos Anos 80» in Catál. (citado por Idalina Conde na p. 181: «Transformações recentes no campo artístico português» 1988) 35 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 2 - Da Modernidade à Pós-Modernidade A distinção entre memória, razão e imaginação, deu origem a partir do sec. XVIII, ao processo de libertação e autonomização das artes. Escapando-se aos conceitos, a arte encontrou em Kant a ideia estética que lhe correspondeu: o “belo desinteressado”, que agrada universalmente a todos. No entanto um século depois, Hegel vem declarar a inutilidade da arte que por não ter qualquer papel no mundo, não passa de uma coisa do passado. Decorrente desta crise debatem-se a partir dos finais do sec. XIX duas tradições vanguardistas, uma de natureza ontológica e outra de natureza estética. As guerras vêm entretanto provocar a crise da modernidade e a arte aprende a ser cínica. Com Duchamp, a arte assume-se como jogo de linguagem e encontra-se com o problema da sua própria definição. O Conceptualismo retoma a ideia da arte como problema de linguagem e de filosofia assumindo uma estratégia metalinguistica. Paralelamente ao Conceptualismo e ao Minimalismo, assiste-se desde os anos sessenta ao surgimento de movimentos que reflectem a descrença nos grandes ideais políticos e sociais. A Pop Art ao centrar a sua temática nas questões do quotidiano: sociedade de consumo e de informação vem devolver à arte sua natureza critica, reforçada agora por uma ironia explicita. Andy Wharol, com as suas Brillo Box, constitui segundo Arthur Danto, a machadada no paradigma que regia as BelasArtes. O Belo é substituído pela Intencionalidade. Questionam-se as convenções artísticas e assiste-se a um período de desânimo que anuncia o fim da Arte. A morte da arte entendida como Belas-Artes é segundo Arthur Danto, uma declaração política, um grito revolucionário. Acabada a incompatibilização entre prazer e responsabilidade será a capacidade de seleccionar o que quer que seja para responder às suas intenções, num espirito de absoluta liberdade, que caracteriza o artista pós-histórico. 36 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 P. Proença: Gosto da história como de desenhos, de pequenos quadros (Lorrain, Turner, Piranesi), de expressões macias, de pequenas narrativas. Não aceito a história como uma grande narrativa, nem acredito nos grandes momentos históricos. S. Chia: “A mim, no plano formal não me interessa a inovação, eu faço arte com os materiais da arte” ... “Seja qual for a interpretação, a obra por si é uma coisa misteriosa. Eu não tenho, nem quero ter uma chave para a leitura da minha obra, pelo contrário ela é aberta e está em constante movimento” ... E. Cucchi: “ Eu penso que toda a actividade passa pelo corpo de outros artistas, a espiritualidade, a ideia do mundo que tem cada artista.... Eu devo tudo a todos.... Sou um tremendo coleccionador (... ). 49 W. Dahn: O selvajismo que simulava na execução era fictício (...) O accionismo e o gestualismo nunca me interessou como problema, para mim encerrou-se com Pollock. O que me interessava era aplicar à pintura as experiências da arte conceptual. 50 Rainer Fetting: “ Abstracta é qualquer coisa que sai da cabeça, operação que se realiza quer na pintura, quer na poesia, quer na música. Quando está bem feito e a coisa sai comprimida, então sai abstracto. Neste sentido sempre pintei abstracto, porque queria expressar algo determinado e para isso sirvo-me da pintura. Porque eu não posso representar a realidade. Só a minha realidade. 51 Helmut Middendorf :“Em 1977/78 era para mim claramente mais importante assistir a um bom concerto que olhar para um quadro num museu (...) Pensei que a intensidade que tinha sentido ali também a teria que ter um quadro”. 52 M. Barceló 53 : “...Se pinto é só por curiosidade (...) A minha intenção é provar outras coisas (...) Penso que é muito melhor correr riscos ainda que faças quadros horrorosos, do que pintar sempre igual. Em tudo isto há uma certa perversão (...) com o passar do tempo Jackson Pollock e Tintoretto parecem-me quase o mesmo (...) dentro da minha cabeça a história de arte é muito distinta das cronologias”. Fernando Brito: O que me atraia no mundo moderno, na arquitectura, no design, era a clareza. Só gosto de enigmas que sejam caricaturas de enigmas. Só gosto de enigmas que sirvam para desconstruir, para gozar... Eu tive sempre intenções diferentes dos outros. Nunca tive interesse em jogos de referências. Eu nunca vi na erudição senão uma ferramenta, nunca tive nenhum interesse especial nas ideias, mas em ver que uso podia fazer de cada uma. (Entrevista em anexo) 49 Idem, pag.444 Idem, P.446 (notas:Catálogo Origen y Visión, Nueva pintura alemana, pag.19 ) 51 Idem, P.446 (notas:Catálogo Origen y Visión, Nueva pintura alemana, pag.28 ). 50 52 53 Fiz, Simon Marchan, P.449/450. Idem, pag 151/152. 37 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 2.1 O conceito de modernidade e as implicações na prática artística A “Modernidade”, micro-episódio, entre muitíssimos, no movimento de transferência do poder da mão para o cérebro, desencadeou-se no Renascimento, ou com Descartes (1596-1650) (não aceitar, decompor, enumerar, ordenar e rever). Hegel propôs que se chamasse moderna a uma sociedade cujos valores se pudessem distinguir de acordo com as críticas de Kant (Ciência, Moral e Arte). 54 A modernidade contrapôs-se à ordem tradicional, na implicação de progressiva racionalização e progressiva diferenciação, económicas e administrativas, das quais nasceu o estado capitalista industrial. A sociologia do desenvolvimento 55 , tem chamado “modernização” aos efeitos dessa racionalização e dessa diferenciação na ordem tradicional, de que terão resultado a secularização, e a emergência da mentalidade moderna (sentido de descontinuidade do tempo – angústia da contingência e do efémero – num personagem que procura, na constante reinvenção de si, o sentido da experiência nos novos espaços urbanos, num contexto crescentemente consumista) 56 . Paralelamente ao positivismo histórico e ao racionalismo cientifico, assiste-se ao processo de autonomização das artes. 54 “Um ano depois da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), Kant escrevia na sua Crítica da Faculdade de Julgar: “En un mot: L´idée esthétique est une representation de l´imagination associé à un concept donné, et qui se trouve liée à une telle diversité de representations partielles, dans le libre usage de celles ci, qu´aucune expression, désignant un concept determiné, ne peut être trouvé pour elle, et qui donne á penser en plus d´un concept bien des choses indicibles, dont le sentiment anime la faculté de connaissance et qui inspire à la lettre du langage un esprit” (Cerveira Pinto, O Lugar da Arte, p. 44). Cerveira indica os filósofos D´Alembert, Compte e Kant, aos quais atribui as teorias conducentes ao processo de libertação e autonomia das artes. De Kant vem-nos a frase “É belo, o que agrada universalmente sem conceito”, ou seja, a ideia do belo desinteressado. 55 Mike Featherstone: “Moderno e pós-moderno” in Sociologia, Problemas e práticas, nº8, 1990 56 Jean Beaudrillad, no seu “A sociedade de consumo”, declara que o objecto de consumo se foi transformando em “objecto-signo”, cujo significado se adquire e autonomiza como diferença codificada, ou seja é pelo objecto de consumo que se regem os valores sociais, os quais já não residem na relação entre as pessoas, mas na relação diferencial de cada signo com os outros. O consumo baseia-se sobretudo na necessidade de produção social de um código de significação e valores estatutários. Para Guy Debord (A sociedade do espectáculo), a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como acumulação de espectáculos, onde a realidade se afasta numa representação de parcelas desligadas da vida, conducentes, por um lado, a uma imagem autonomizada, e por outro lado, a uma relação social mediatizada por imagens. 38 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Citando António Cerveira Pinto 57 : “Recorreremos ao “Discours Préliminaire de l´Encyclopedie”, publicado por D´Alembert em 1763, para localizar com maior precisão a origem do mencionado processo de libertação das artes (...): “Os objectos de que a nossa alma se ocupa são espirituais ou materiais, e a alma ocupase destes objectos ou por ideias directas, ou por ideias reflectidas: o sistema dos conhecimentos directos só pode consistir na colecção(...) passiva e (...) maquinal desses mesmos conhecimentos; é o que se chama memória. A reflexão é de duas espécies (...): raciocina sobre os objectos das ideias directas, ou imita-os. Assim a memória, a razão propriamente dita, e a imaginação são as três maneiras diferentes porque a nossa alma opera sobre os objectos dos seus pensamentos. (...) Estas três faculdades formam as três divisões gerais do nosso sistema, e os três objectos gerais dos conhecimentos humanos: a história, que diz respeito à memória; a filosofia, que é o fruto da razão; as belas-artes, que brotam da imaginação”. Há quem veja neste movimento constitutivo da autonomia do estético, o verdadeiro fundamento do que viria a ser, posteriormente, o Modernismo na sua acepção Formalista. Kandinsky leu certamente Kant . Leu-o (...) Greenberg. Produziu-se na segunda metade do século XVIII, uma das fundamentais teorias modernas da arte. A Estética nasceu nesta mesma época pela pena de Baumgarten (1714-1762). “ A crise moderna estala, afinal mais cedo do que seria de supor: em 1835, quatro anos depois da morte de Hegel sai do prelo a sua Estética, onde podemos ler estas espantosas reflexões: “A nos besoins espirituels, l´art ne procure plus la satisfaction que d´autres peuples y on cherché et trouvée. Nos besoins et interêts se sont déplacés dans la sphére de la répresentation et, pour les satisfaire, nous devons appeler à notre aide la réflexion, les penseés, les abstrations, des representions abstraites et générales. De ce fait l´art n´occupe plus dans ce quíl y a de vraiment vivant dans la vie la place qu´il y occupait jadis, et ce sont des représentations générales et les réflexions qui y ont pris le dessus. C´est pourquoi on est porté de nos jours à se livrer a des réflexions, a des pensées sur l´art. Et l´art lui même, tel qu´il est de nos jours, n´est pas trop fait pour devenir un object de pensées.” E ainda: “ Sous tous ces raports, l´art reste pour nous, quand à sa suprême destination, une chose du passé” . É precisamente à boémia de 1830 que alguns autores fazem remontar a origem do chamado “Modernismo” (designação assente para o conjunto da cultura que tem 57 Pinto, António Cerveira – O lugar da Arte, Lisboa, Quetzal Editores 1989 ( pp.44 a 46). 39 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 acompanhado a “modernização”), caracterizado por crescente auto-consciência, crescente reflexão estética, crescente rejeição da narrativa em favor da montagem (o cinema industrial, por exemplo, resolveu o encerramento das diacronias em totalidades orgânicas, o que tinha sido o ideal dos grandes romances de formação desde o século XVIII), a crescente expurgação do paradoxal, do incerto, do ambíguo, a crescente rejeição da noção de personalidade integrada (relativamente ao espaço da pintura renascentista, a martelada cubo-futurista estilhaçou o observador central imóvel e monocular, seu corolário). Seja qual for a época de que date, a Modernidade é inseparável do enfraquecimento da crença e da descoberta do “pouco de realidade da realidade”. No contexto da cultura positivista degladiaram-se duas tradições vanguardistas58 : a primeira (chamemos-lhe ontológica), onde couberam os expressionismos (Construtivismo, Futurismo e Surrealismo, incluídos), e outra (chamemos-lhe estética) onde se integram os movimentos convergentes na abstracção. Tanto relativamente a uma como relativamente a outra, a noção de crise remeteu para a cada vez mais precoce fragilidade, quer das formas, quer das normas e um uso particular de vanguarda apareceu como reacção ao fenómeno da crise, quase sempre sob forma de fuga mais ou menos desorganizada à velhice do novo. “A noção de Vanguarda abrange os domínios das filosofias e das ciências, mas também da política. Importado da linguagem militar , o conceito marcou o culminar do processo de emancipação humanista do Renascimento decisivamente acelerado pelas Luzes e pelo Romantismo. O novo antropocentrismo e o novo etnocentrismo, situaram as sociedades ocidentais perante a responsabilidade de inventar uma representação objectiva e coerente do real, a partir da única faculdade considerada apetrechada para o efeito: a Razão. Tudo o que não resistiu a uma prova de verdade cientificamente organizada, foi relegado para o baixo mundo da ideologia. Foi em nome da razão que nasceu a teoria da Luta de Classes, dentro da qual se considerou a necessidade transitória (dialéctica) de uma Vanguarda Revolucionária e de uma Ditadura do Proletariado, ainda não totalmente 58 O objectivo desta dupla trajectória foi a criação de uma arte liberta do corporativismo académico e do imaginário retorcido da burguesia (Cerveira Pinto): Monet e a dialéctica do sensível (não vemos a realidade, vemos impressões sempre que a luz o permite); Manet e a representação fenoménica; Cézane e a morfogénese do pictórico (cilindros, cones, esferas, correspondem ao programa seminal do modernismo). A autonomia da arte implicava um discurso filosófico e uma lógica formal que, por analogia com a música, se afastou cada vez mais do visível em direcção à abstracção. De um lado, o 40 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 libertas do mundo das aparências, mas sob cuja afirmação se assistiria ao nascimento do reino definitivo da Verdade. Este mesmo objectivo anti- ideológico e positivista é perseguido pelos sectores mais avançados da burguesia e corresponde à lógica intrínseca de crescimento e expansão do capitalismo! O que separa o positivismo do marxismo não é tanto uma questão de finalidade, mas antes de meios. O que afasta as democracias e as ditaduras capitalistas das ditaduras estalinistas, é mais uma divergência de regime do que um antagonismo filosófico sobre a questão da racionalidade (...) Enquanto sob um ângulo marxista a arte tendeu a ser vista como auxiliar propagandístico da luta de classes, aliado ou inimigo do Proletariado e da sua vanguarda organizada, o partido leninista, já sob uma perspectiva positivista ela tende a ser uma “arte pela arte” – uma disciplina autónoma da subjectividade cujo interesse e portanto grau de vanguardismo, reside na sua capacidade de se tornar objecto de reflexão.” (C. Pinto, pp. 49, 50) O desejo de uma autonomia e a fé numa arte nova tinham, entretanto, sofrido abalos. A guerra de 1914 e a Revolução Russa tinham re-introduzido a discussão da arte ao serviço de uma causa: o Expressionismo e o Dadaísmo, por um lado, o Construtivismo, por outro, sem descurarem revoluções formais, afastavam a ilusão de uma arte em si. O apodrecimento da revolução russa e a guerra de 1939 reduziram os argumentos da modernidade: o Modernismo aprendeu a ser cínico. Mais do que a busca de uma linguagem universal de formas, o artista produzia enigmas. Duchamp e Magritte foram os paradigmas desta nova atitude sardónica, indiferente. Assumindo a arte como um jogo de linguagem, desviaram as suas trajectórias das conjunturas histórico-ideológicas e reconduziram-nas ao problema da definição da arte: “Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente. Tanto no que lhes diz respeito a ela só, como no que diz respeito à sua relação com o todo, como, até, no que diz respeito ao seu direito à existência” escreveu Adorno no inicio da sua Teoria Estética. Na impossibilidade de uma linguagem universal das formas que fizesse da arte, uma arte “em si”, Duchamp e Magritte produziram, por paradoxos e por absurdos uma prova da existência do ”em si” pela via da impossibilidade perceptiva, pela via da decepção retiniana, desviando a discussão artística, do plano estético, para o plano ontológico. Expressionismo tendo como causas o indivíduo e o seu estar no mundo, do outro, o Construtivismo, cuja utopia se resumia a uma arte nova para uma sociedade nova. 41 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 O Conceptualismo retomou a arte como problema de linguagem e de filosofia “Art after philosophy” ou “Art as Ideia as Ideia”. A prática da arte foi assumida como investigação. Os jogos de linguagem de Duchamp; a filosofia de Wittgenstein, a linguística de Saussure, somados aos repetidos impasses da pintura ou da escultura abstractas, levaram Kosuth a postular que o artista como analista apenas se ocupasse do crescimento conceptual da arte e da maneira como as suas proposições se revelassem capazes de o seguir logicamente. A arte transformou-se em Meta-Arte. Perante o sentimento de crise que a Arte Moderna transporta, quando a sucessão de movimentos não produzia senão formalismos e formalidades, o Conceptualismo assumiu uma estratégia metalinguística. Paralelamente ao Minimalismo e ao Conceptualismo, desde o início dos anos sessenta, num crescendo de ondas de choque “com apogeu ritual em Maio de 68” ( Alexandre Melo 59 ), assistimos à denúncia do terrorismo comunista e do falhanço das estratégias imperialistas em superar o desenvolvimento do terceiro mundo. Para Barry Smart 60 , o problema não está tanto numa rejeição do modernismo, mas numa condenação do processo imperialista da ocidentalização cultural. “Post-modernismo”, termo “passepartout” (Calabrese) do campo expressivo, foi utilizado por Frederico de Onis, nos anos 30, para designar reacção ao modernismo. Em 1934, no seu Study of Story, Arnold Toynbee referia uma era pós-moderna. Tornou-se marca de operações (criativas e não só) diferentes entre si. A sua difusão está relacionada com três campos: popularizou-se nos anos 60, em Nova-Iorque, no uso que lhe deram jovens artistas, escritores e críticos (Rauchenberg, Cage, Bourroughs, Barthelme, Fielder, Hassan, Sontag) numa atitude critica ao exausto Hight Modernism, institucionalizado no plano dos museus como no das universidades. Livros e filmes que não consistiam em experimentação, mas desconstrução dos patrimónios literário e cinematográfico imediatamente anteriores, vieram a receber a designação, assim como todas as manifestações da chamada PostMovement Art (a ocupação do Campo Expandido pela escultura, entre outras) e, 59 MELO, Alexandre – Lost paradise – 1999, Texto de Catálogo. SMART, Barry – A Pós-Modernidade – Biblioteca Universitária, Publicações Europa América, 1993. 42 60 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 posteriormente, na Europa, o Neo-Expressionismo alemão, e a Transvanguarda italiana. No âmbito estritamente filosófico, popularizou-se no uso que lhe deu J.F. Lyotard no seu conhecidíssimo A Condição Post-Moderna (Relatório ao Conselho do Estado do Québec sobre sociedades avançadas e a sua forma de desenvolvimento do saber). Popularizou-se, enfim, no campo da arquitectura, no das disciplinas projectuais em geral, principalmente em Itália e nos Estados Unidos, sobretudo a partir da exposição dedicada à Strada Novíssima (Bienal de Veneza, 1979), cujo catálogo foi intitulado Post-Modern pelo seu organizador, Paolo Portoghesi. Neste campo, “Pós-Moderno” passou a ter um sentido ideologicamente preciso: rebelião (virulenta) contra os princípios do modernismo. Vejamos Gillo Dorfles 61 : “Creio, afinal, que uma das mais prováveis justificações de muitas tentativas ( por vezes definidas de “Pós-modernas” , mas a que prefiro chamar Neo-Românticas ou Neo-Barrocas, todas em nítida contraposição com as maciças e frígidas construções do veterofuncionalismo derivante das poéticas do movimento moderno) esteja, justamente, nesta recuperação do imaginário (...) enfrentar com maior fantasia uma existência muitas vezes tragicamente comprometida pela “ditadura da razão”. Mais cruamente, Dieter Kopp (citado por Paolo Portoghesi 62 ): A arte moderna, ensinounos a deixar a tradição, isto deve ensinar-nos a deixar a tradição da arte moderna. Assim se foram diluindo as obsessões da arte como comunicação signica, rompendo com as dependências relativamente à linguística, tal como se manifestavam nas concepções “analítica” e “conceptual”. “ A condição pós-moderna destaca-se pela primazia da interpretação, pelo seu carácter hermenêutico”: “Tanto el arte como la estética procuran vencer las sombras socráticas, cientifistas, con objecto de reencontrar la polifonia interior” 63 . 61 DORFLES, Gilles – O elogio da desarmonia – Edições 70; Colecção Arte e Comunicação, 1988, (p.37). 62 PORTOGHESI; Paolo – Depois da arquitectura moderna – Edições 70, Lisboa, 1975, (p.155). 63 MARCHAN Fiz; SUREDA Joan – Del arte objectual al arte del concepto: Madrid: Akal, 6ª Edição, 1994 (a propósito da mudança do paradigma estético, p. 314: Fiz refere a dissolução da “magna aesthetica em virtude do pluralismo, tão próprio da nossa cultura de mosaico. Libertas de regras, as manifestações artísticas dependem assim da capacidade de interpretação quer do artista, quer do público que as irá legitimar). 43 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Eduardo Prado Coelho, no seu livro “A Mecânica dos Fluidos 64 ” aborda no último capítulo a problemática do pós-modernismo: referindo-se a vários autores destaca de Barthes o conceito de “atopia” (habitáculo à deriva), cujo valor “neutral” irrealiza o teatro das grandes antinomias escolásticas. Se ao “moderno” associa a capacidade de “negação”, ao pós-moderno estará associada a consciência de “perda”, cujas consequências se manifestam pela descrença na universalização dos homens cedendo lugar ao culto pela diferença. Face ao descrédito da linearidade histórica, o passado e o futuro são vistos como instâncias do presente. Esta mesma ideia de “perda” é partilhada por Lyotard para quem o espaço pós-moderno resulta da crise de todas as grandes metanarrativas e dos “restos” que elas nos legaram, ficando assim um espaço de dispersão onde passam a existir múltiplos jogos de linguagem, que mediante determinismos locais só podem ser avaliados por critérios de performatividade. De Daniel Bell (The cultural contraditions of capitalism) vem entre outras, a afirmação de que o fio condutor da modernidade é a noção de indivíduo, esgotada na “massa cultural”. Melquior 65 define um programa pós-modernista por um “micro ou hiper realismo, a eclipse das vanguardas e o reassumir da razão crítica”. Estabelecer a síntese, numa perspectiva plural e por vezes paródica, entre o prémodernismo e o modernismo é para John Barth 66 a tarefa do pós-modernismo. Habermas defende que a modernidade é um projecto inacabado: por ter realizado a separação entre as várias esferas da vida, a modernidade perdeu a sua credibilidade, logo, para levar avante esse projecto deverá instaurar um “interjogo”, articulando as esferas “prático-moral”, do “conhecimento” e a “expressiva-estética”, a fim de que se estabeleça um novo discurso permitindo uma “unidade de experiência”. 64 COELHO, Eduardo Prado – A Mecânica dos Fuidos, literatura, cinema, teoria – Temas Portugueses, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa. [“Pós-Moderno, o que é? (pp. 295 a 305) ]. 65 : Citado em: “A mecânica dos fluidos” (p. 299) - José Guilherme Melquior: “O significado do pósmoderno”, Colóquio Artes, nº52, Novembro de 1979. 66 Citado em: “A mecânica dos fluidos” - John Barth: “The literature of the replishment”, The Atlantic, 1980 44 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 John Rajchman (professor de Filosofia em Fordham, autor de Ethics after Foucault entre outros), numa alusão irónica ao desinteresse dos franceses 67 pelo PósModernismo americano escreveu que o Pós-Modernismo é o que os franceses souberam que os americanos chamavam ao que eles pensavam. Para Habermas, a crítica americana de matriz francesa era a expressão filosófica do Pos-Modernismo que desprezava os valores iluminados da ciência e da democracia. O crítico (formalista) Michael Fried (1982) disse que o pós-modernismo era outro nome para o regresso da vanguarda dadaísta (contra a arte abstrata), mas o que veio a ser chamado pós-modernismo (arte), segregou a própria ideologia, nem nominalista, nem essencialista: diz que processo nenhum é puro. Nas opiniões mais negativistas, o Pós-Modernismo foi considerado, a arte da impureza da arte, a da mistura dos processos, das justaposições, da descrença na possibilidade de progresso; terá aproveitado do modernismo a ideia de redução de cada disciplina aos constituintes, mas voltou-a sobre si na proclamação de que o processo estaria terminado; na redução, cada disciplina teria esgotado a possibilidade de se renovar; restariam a citação e o pachwork, provas do que Duchamp já tinha chamado a morte da arte – arte da simulação do que a arte tinha sido. Beaudrillard, ofereceu a teoria geral deste fim das possibilidades da arte: seria parte de um colapso da realidade num mundo “kitsch” de simulação sem fim. Simulação por uma razão simples: era um conceito à luz do qual coisas ainda podiam ser feitas, mostradas (e compradas e vendidas: a desconfiança, não pode senão crescer de cada vez que a arte regressa de outra das suas mortes). Na formulação (1984) de Frederic Jameson (professor de literatura, teórico social, marxista, crítico, responsável pela passagem do conceito Art World Nova-Iorquino para a crítica literária), o “Pós-Modernismo” era a dominante cultural do capitalismo tardio (pós-guerra), relacionado com a América e com a indústria electrónica, ancorado na reprodução, conducente à expansão da cultura “até ao ponto em que tudo na nossa vida social, pode dizer-se, se tornou cultural”, à dissolução da 67 Foucault rejeitou a noção: “ devo dizer que tenho uma certa dificuldade em responder a esta questão ... porque nunca compreendi claramente o que queria dizer ... quando se emprega o termo modernidade”; Guattari, desprezou-a; Derrida, não lhe descobriu utilidade; Lacan e Barthes não estavam vivos. Althusser não estava disponível para saber dela. 45 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 realidade em imagens, à experiência do tempo enquanto sucessão de eternos presentes. Independentemente das diversas posturas teóricas sobre este conceito, fica a ideia de que a “pós-modernidade” não representa um tempo cronológico, ou uma “periodização histórica”, (periodizar ainda é um ideal clássico ou moderno), mas um “estado de espírito”, ou “carácter” da época em que vivemos (Lyotard 68 ). Opinião partilhada por Umberto Eco, que acrescenta como factor de caracterização (no plano narrativo), a reflexão irónica sobre a pluralidade dos modelos. E os anos 80? Se a crise do conceptualismo se tinha manifestado na falência do que tinha parecido inabalável no fim dos anos 60 (a ideia de que, com o naufrágio do Formalismo, a Pintura e a Escultura tinham perdido lugar na história), meia década de Expressionismo (alemão, americano, italiano) chegou para questionar o decénio anterior. A historiografia moderna sofreu. Os esquemas tradicionais de periodização e de valorização da arte moderna entraram em crise. A pintura, o desenho, a escultura, que ocuparam os lugares de honra em bienais durante os anos 80, a Bad Painting, Transvanguarda, a Nova Subjectividade, os Novos Selvagens, romperam com a tradição formalista denunciada pelo Conceptualismo e pela Arte Povera. Não assumindo qualquer estatuto de vanguarda, aceitando a tradição em vários pontos, instauraram o debate da Pós-Modernidade no campo das artes visuais. 2.2 Anos 80: correntes artísticas dominantes e o pensamento estético O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que, para o construir, lhe temos que dar tudo, até a nossa vida. Mas para dar, é necessário possuir, e nós não possuímos outra vida, outro sangue além dos tesouros herdados do passado e dirigidos, assimilados e recriados por nós. Em todas as exigências da alma humana, nenhuma é mais vital do que a do passado. Simone Weil 69 68 FEATHERSTONE, Mike: “Moderno e Pós-Moderno” in: Sociologia, Práticas e Problemas, nº8, 1990 (cita Lyotard “Rules and Paradoxes and Svelte Appendix”). 69 In: Portoghesi, Paolo: Depois da arquitectura moderna, (pag.45). 46 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 No início de oitenta desaparecem portanto as resistências relativamente às categorias tradicionais e, reactivamente assiste-se a uma consagração generalizada da pintura como comprovou a Documenta 7 de Kassel (1982) 70 , onde a nova figuração internacional neoexpressionista e transvanguardista coexistia com os representantes da arte “povera”, com Warhol, J. Beuys, ou F. Stella. Na Europa, observa-se o retorno de certos nacionalismos ou mesmo regionalismos. A cena internacional é sacudida pela pintura alemã e italiana. Na Alemanha, surgiram os popularmente designados por “novos selvagens” ou “neo-expressionistas. Em Itália, na primeira metade dos oitenta a Vanguarda/Transvanguarda (Roma, 1982) surge como uma das mais sintomáticas manifestações e o seu suporte teórico é assinado por Achille Bonito Oliva. Em Espanha , apesar de uma certa euforia, as iniciativas são de carácter privado, de amplitude limitada, quase sempre circunscritas a um elenco de artistas, ou a cargo da própria Administração. Fiz admite que em Espanha tardiamente se consciencializou a modernidade ou as rupturas com a mesma, dizendo que faltou a “tradição do novo” e das instituições que o confirmariam: museus, coleccionismo, exposições com substrato cultural, publicações com panorâmicas globais e monografias. Destaque-se neste processo de revitalização a entrada em cena dos críticos estrangeiros, a partir da Arco 82. 2.2.1 A transvanguarda “A área cultural em que opera a arte da última geração á a da transvanguarda, que considera a linguagem como um instrumento de transição – passagem de uma obra a outra, de um estilo a outro”. 71 70 A partir de 1982, com a participação de Barceló na Documenta, assiste-se a uma espécie de reconversão pictórica, da abstracção para a figuração e desta à sensibilidade pictórica dos anos 80, caracterizada pela proliferação de vitalismos artísticos. 71 OLIVA, Achille Bonito, “Avanguardia e Transvanguardia” Milão, Electa, 1982, (p.6 - tradução minha). 47 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Achille Bonito Oliva, promotor e crítico de arte, publica em 1982 na Giancarlo Politi Editore (Milão), o manifesto Transavangarde International. Neste manifesto, aponta para a questão da transitoriedade da arte; o papel das ideologias e as tendências artísticas; as minorias artísticas e a importância da transvanguarda nessa revalorização; explica a distinção entre “transvanguarda” e “vanguarda”; as relações e as diferenças estabelecidas pela e na linguagem; a capacidade de síntese no enlaçamento das velhas com as novas formas de cultura e o poder semântico dos jogos de linguagem. A bomba atómica poderá significar (metafóricamente) a simultaneidade, a irradiação de estilos e tendências que se verifica a partir do pós-guerra. Micro-movimentos, pequenas catástrofes conduzem a erupções nos mais diversos campos linguísticos, que por via de diálogos transversais e cruzados (interacções), vêm colocar em relevo factores como diferença, falha, desvio, fissura, onde se descobre o lugar do entre, e nesse, o reconhecimento das necessárias pontes. É nessas paisagens tectónicas que surgem conceitos como instabilidade e fluidez. A transvanguarda proclama-se como área indefinida, onde grupos de artistas estão juntos não por tendências ou afinidades comuns, mas com vista a uma atitude artística e filosófica que pontua a sua própria centralidade e advoga a recuperação de uma razão interna, que não nega a arte precedente. Derrubando a ideia do progresso em arte, esta surge como superamento e conciliação da tradição e da diferença. O eclectismo é a característica que tende a neutralizar as diferenças entre os diferentes estilos e a distância entre o passado e o presente. Não aspirando a uma única linhagem, a sua ascendência tem a mais diversa origem e proveniência, desde a mais recente vanguarda, até às chamadas artes menores (o artesanato, a banda desenhada, etc…). The artists of transavangarde realize that anthropological roots, while independent of each other, all tend to affirm the biology of art, the necessity of a kind of creativity aimed at instance of sedution and mutation. 72 72 Idem, ibidem, p.10. 48 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 A produção artística é caracterizada por uma intertextura da subjectividade, que não sendo fenómeno autobiográfico ou estritamente pessoal, resulta da manifestação controlada da linguagem, através de uma visão irónica dos seus motivos persistentes.. Em resposta ao impasse da realidade, a nova sensibilidade vira-se para os jogos de linguagem, não deixando porém de captar os ecos provenientes do exterior. A desintegração da ideia unitária da obra revela uma projecção sobre a desintegração das visões unitárias do mundo, constituindo a fragmentação uma imagem da descontinuidade e da metamorfose. O artista torna-se o veículo das sensibilidades, captando –as e solidificando-as através dum trabalho que recuperou o tempo e o prazer da execução. Serão essas sensibilidades colhidas no “ar” (tornadas assuntos e referentes) que conduzem ao impulso criativo. Por outro lado, o retorno à manualidade recupera a noção da singularidade do objecto artístico, relacionado com o tempo e o gesto da criação. A ironia é um componente essencial desta arte. Ela consiste em esvaziar (neutralizar) o conteúdo simbólico de uma imagem, ou conjunto, retirando-a do seu contexto. Trata-se da passagem de uma posição tradicionalmente metafórica para uma metonímica, onde as “figuras” passam a assemelhar-se em termos de estatuto – o figurativo equivale ao abstracto. 73 Pelo uso da metonímia a obra coloca a sua potencialidade na relação de mobilidade e translação do sentido; por sua vez, a atenuação do significado pela inércia metonímica cria a cómica alteração da metáfora. O componente irónico pode aparecer tanto explicita (por exemplo, na utilização da miniaturização) como implicitamente dando novos sentidos a um signo (resignificações), fazendo com que a imagem oscile entre a convenção e a invenção. A diferença relativamente à tradicional composição baseada na unidade reside na tensão gerada pela combinação de opostos cuja inconstância provoca inúmeras leituras. Para Oliva, se há um sentido para isto, ele é do da disseminação da atenção. 73 Idem, Ibidem, p.18: To deprive language of meaning always means something; in this case it is the symptom of a mentality that no longer shows preferences, but tends to consider the language of painting entirely interchangeable. 49 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Se com o conceptualismo o processo formal era de carácter analítico, nos anos 80 a atitude vai no sentido de encontrar sínteses74 entre a memória, a subjectividade e as linguagens (referências externas e internas). Em oposição à frieza e ao racionalismo conceptualista, surge uma arte de opulência e vitalismo, que já não provém somente da expressão de impulsos internos, como no caso da action-painting, mas da liberdade de poder adoptar vários estilos, aliado a um pragmatismo caracterizado pelo desejo de contínua experimentação. Por todas estas razões surgem as analogias com o período do maneirismo e a necessidade de aprofundar o seu significado. A transvanguarda inscreve-se na ideology of the traitor (ideologia do traidor), a mesma por que se pautou a atitude maneirista, uma atitude que favorece o ambíguo e a lateralidade, pela canibalização das linguagens e de modelos, não na sua pureza, pois que a impossibilidade de regressão conduz à reconstituição de novos sentidos. Opondo-se ao sentido tradicional da vanguarda, bastião da resistência políticocultural, a nova postura inscreve-se no que Oliva designa por “niilismo activo”. A preocupação com a identidade, é outro dos aspectos considerados. Em reacção à crescente massificação e uniformização dos media, verifica-se a urgência de considerar a tradição artística e cultural duma civilização, mas também o genius loci, ou seja as particularidades das culturas locais. Estes propósitos têm levado a que alguns autores vejam nas manifestações recentes da arte europeia, apenas um esforço numa disputa de protagonismos: de um lado, a Europa com a sua longa tradição clássica e humanista; do outro, a América que se tem vindo a evidenciar desde os anos cinquenta coadjuvada pelo seu poderoso domínio dos meios de informação e divulgação. A citação e a fragmentação são, na atitude de recuperação do mítico e do figurativo, o processo de distanciamento que permite ruminar o passado sem hierarquias. As imagens tornam-se não figuras, mas figuráveis. Procurando atenuar as diferenças entre a cultura erudita e a cultura popular, incluem-se neste repertório as imagens produzidas pelos mass media. Esta proliferação de pontos de vista além de conduzir 74 Oliva diz que a arte possui uma valência funcional, que lhe permite assimilar e resolver as antinomias negativas. 50 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 necessariamente a expedições particularmente individualizadas, dá origem a um processo de desideologização em todos os campos da cultura. 2.2.2 Os “pós-modernismos” na arquitectura Robert Venturi 75 , Paolo Portoghesi 76 e Charles Jenks 77 foram os três principais arquitectos e autores que no panorama internacional desencadearam a discussão em redor do conceito de pós-modernismo na arquitectura. O universo das artes plásticas é também alvo de teorização por parte de Jenks no “Post-Modern Classissism”. Ao analisar estes três autores, constatei a presença de conceitos afins em todos eles, não obstante a diferença nas datas de publicação das suas obras. É essa síntese que irei apresentar, destacando as particularidades que os distinguem. Associado ao “movimento cultural” (Charles Jenks, Lyotard) que se regista a partir do final da década de cinquenta (Europa Central, EUA), o pós-modernismo na arquitectura, porém, só se começa a distinguir em meados de setenta . As características da arquitectura Pós-moderna propostas por C. Jenks 78 são colhidas sobretudo por diferença relativamente à tradição do movimento moderno e também por analogia com a produção cultural dos períodos que considera historicamente semelhantes ao actual, como o maneirismo e o barroco 79 . Contra os dogmas da 75 Venturi, Robert: Complejidad y contradicción en la arquitectura, Editorial Gustavo Gil, S.A (1ª edição, 1972) 76 Portoghesi, Paolo: Depois da arquitectura Moderna, Edições 70, Col. Arte e comunicação, Outubro, 1985 77 Jenks, Charles: Post-Modernism, the new classissism in art and architecture, Academy Editions,, London 1987 78 Para Jenks, o campo das artes plásticas é mais confuso. Defende que no panorama americano o aparecimento de uma série de “pós” não seria mais que o prolongamento de experiências do passado próximo (vanguardas) ou reavaliações das mesmas. Daí que associe o termo “Post” ao “fetiche do novo”, defendendo a ideia de que o pós-modernismo não é um modernismo no fim, mas no seu estado nascente, remetendo para o significado etimológico da palavra “moderno”. 79 Omar Calabrese, em A Idade Neo-barroca (pag.27) defende (na sequência da perspectiva formalista de Wollflin e Foccilon) que muitos dos importantes fenómenos da cultura do nosso tempo são marcas de uma “forma interna específica” que só pode evocar o barroco. Esta referência não significa uma “retomada” daquele período, mas uma reconsideração desse conceito á luz dos nossos dias. A sua tese filia-se em Sarduy, para quem pode haver “barroco” em qualquer civilização, já que este é visto não como um estilo situado no tempo, mas como “categoria do espírito”. Também Gillo Dorfles já tinha usado a expressão “Neobarroco” num livro intitulado, O barroco na arquitectura moderna . Em 51 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 univalência, da coerência estilística pessoal, do equilíbrio estático e dinâmico, contra a pureza e a ausência de qualquer elemento “vulgar”, a arquitectura pós-modernista valoriza a ambiguidade e a ironia, a pluralidade dos estilos, o duplo código, o que lhe permite virar-se por um lado para o gosto popular através da citação histórica ou vernácula, e por outro, para os apreciadores do virtuosismo, através da explicitação do método compositivo e daquilo que é definido por “gosto das figuras” aplicado à composição e à decomposição do objecto arquitectónico. No que se refere à memória colectiva, as novas tendências sustêm a necessidade de contaminação entre as que provêm da histórica e a tradição do novo 80 . Da complexidade e dispersão do universo da cultura arquitectónica, Paolo Portoghesi extrai dois factores que o levam a pensar numa mudança radical, não só no modo de encarar a arquitectura, mas também a sua articulação com a história. Na base desta mudança dois movimentos: um de reconstrução e outro de reexaminação, que se manifestam através do “ desmontar peça por peça da grande pirâmide virtual do movimento moderno e da sua substituição por uma grande quantidade de pirâmides pequenas diversamente orientadas” (Portoghesi, p.19) numa atitude de fragmentação e reorganização. Outro aspecto focado por Porthogesi é a relação entre a alta cultura e o quotidiano, ou da “arquitectura culta”, versus “arquitectura banal”, apelando sobretudo aos modos de interpretação. Face à crescente complexidade, propõe novas premissas metodológicas e novos instrumentos de compreensão que têm como base: o entendimento das culturas como um factor de identidade (não sendo lícito atribuir a alguém, ou grupo, o monopólio da cultura); constatação de que, a par da produção individual, existe uma produção colectiva de obras com interesse estético, ligadas a processos subjectivos e mediadas por instituições e formas de agregamento sociais Elogio da desarmonia, ainda que não utilize essa expressão, ele enuncia alguns dos princípios retomados por Calabrese: a constatação do abandono das características de ordem e harmonia em prol do desarmónico e do assimétrico. 80 A concepção da arquitectura como produto colectivo (ex: Robert Venturi e o projecto “Las Vegas”) manifesta-se através da reapropriação da metáfora e do símbolo, “ do gosto e sensibilidades das gentes” partindo de “códigos visuais mais difusos” pertencentes a uma nova “atmosfera” cujo eclectismo pode prever uma linguagem mais semelhante ao Art Nouveau, do que ao International Style. 52 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 novas e antigas; o papel determinante das mutações ambientais sobre a dita produção “culta”, e a interpretação dos novos sinais e formas por parte desta; a descrença na equação “desenvolvimento tecnológico = progresso social”. Referindo-se às Artes Plásticas, Jenks defende que o pós-modernismo tem vindo a evoluir por fases. Numa primeira, a partir dos anos cinquenta, ele é visto pelo seu aspecto mais negativo – declínio das normas e reflexo do niilismo inerente à sociedade de consumo, de que a Pop Art é o exemplo mais significativo e onde a técnica de colagem, com a sua estética de fragmentação e recomposição, traduz os novos media, sobretudo a T.V. e outros (música pop, cinema, ficção científica), produtos e veículos da cultura urbana massificada. A segunda fase corresponde aos anos sessenta, onde os movimentos antiestablishment, representando ideologias de protesto específicas, encontram estratégias para responder às realidades sociais detectadas. É então que escritores e artistas declaram a necessidade de uma cultura de inversão ao sistema. Recordamos que 1966 é o ano em que emerge o “movimento estruturalista” 81 . Pluralismo e subjectivismo manifestam-se na arquitectura pela característica “addoc”, cheia de humor, ornamento e metáfora . Nas artes plásticas reaparecem: o narrativo, os ensinamentos clássicos na representação do real e do corpo humano, o hiper-realismo poético; paisagem, interiores e naturezas mortas, pontuados por enigmáticas alegorias, pequenos paradoxos e anomalias que sublinham o olhar irónico do artista (representação americana na 5ª Documenta de Kassel,1972). A terceira fase do Pós-modernismo começa nos finais dos anos setenta e vem até ao presente (anos 80), caracterizando-se por uma linguagem clássica mas ecléctica, baseada em premissas 82 distintas dos revivalismos renascentistas. Do diálogo com a história procuram–se os arquétipos universais e as constantes formais. É este aspecto 81 Coelho, Eduardo Prado: A Mecânica dos Fluidos, pag. 259. 82 Na definição do “Free Style Classissism” Jenks estabeleceu canônes e regras, onde verificámos uma confluência de conceitos propostos anteriormente por Robert Venturi em Complexidade e Contradição na Arquitectura. Resumidamente: desarmonia, pluralismo, antropomorfismo, continuum histórico, pragmática do fazer, duplo-código, multivalência, ressonância, retórica e recentramento (na arquitectura). 53 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 que leva Jenks a associar o pós-modernismo ao espírito que animava os artistas e filósofos da Renascença, defendendo, no entanto, uma nova visão do conceito Classicismo, distinguindo Classicismo Canónico (de Vitrúvio, ou dos Humanistas da Renascença) do “Free Style Classissism”. Esta atitude representa para Jenks, a alternativa ocidental face à noção modernista da “tradição do novo”: na incorporação do passado no presente, não há hierarquia, as “figuras” históricas adquirem um estatuto de igualdade com os contemporâneos provando a noção da tradição clássica de continuum orgânico (a living whole). Daí a tese de que o pós-modernismo não seja revolucionário, mas evolucionista. 83 Como reflexo deste continuum, e face ao descrédito relativamente aos antagonismos, o pós-modernismo resolve pela operação de síntese as tradicionais oposições, Passado / Presente, Academia / Vanguarda , o que faz, segundo Jenks, com que se possa incorporar o modernismo, já não em obediência à sua ideologia, mas transcendendo-a na síntese com outros conceitos. 83 “ these simoultaneous returns are, however, tradition with a difference and that difference is the intervention of modern world and the tenuous place of the humanism within it” , in: JENKS, Charles: Post-Modernism, the new classissism in art and architecture, Academy Editions,, London 1987 (p.11) 54 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Parte II – Biografia 55 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 3 - A “Saga” Homeostética Tendo como objectivo a caracterização deste grupo e a sua actuação enquanto tal, os percursos individuais, quer pessoais, quer profissionais/artísticos, não terão cabimento neste trabalho. A presente contextualização irá centrar-se na microhistória para a qual recorremos a um tratamento biográfico, mas de vertente “particularista” ou “singularizante”. Para isso houve que recorrer à memória comparticipada, através de entrevistas e depoimentos que cruzados nos permitiram retirar do passado o que numa perspectiva intramural, ainda vive ou é capaz de viver na consciência do grupo que a detém e não ultrapassa os seus limites. Foi atendendo à importância da contribuição das memórias individuais para reconstituir o período em que a geração dos homeostéticos estudava na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa que realizei entrevistas (em anexo) aos seus elementos e solicitei a Pedro Cavalheiro a autorização para utilizar excertos da crónica que traz em mãos, intitulada “Biografia não autorizada de Manuel João Vieira”, textos a partir dos quais podemos recordar a atmosfera da época e o espírito que os animava. 3.1 ESBAL 1982: um clima propício à eclosão homeostética EXCERTOS 84 “(...) Objectivamente conheci-o 85 no primeiro ano das Belas Artes. Éramos da mesma turma, tal como o Ivo, o Pedro Portugal e o Pedro Proença que vieram a ser os pintores do grupo Homeostético, tal como o Xana e o Fernando Brito que também eram alunos da escola mas em anos mais avançados. (...) Tenho poucas recordações dele, durante esse primeiro ano. Lembro-me de que se costumava sentar debaixo de um alpendre que nesse tempo havia no pátio das Belas Artes, enquanto chovia e desatava a tocar melodias, em regra, portuguesas. Tinha também um bandolim e certamente guitarras ou violas, piano e não sei que mais 84 Excertos da crónica de Pedro Cavalheiro. Pedro Cavalheiro refere-se a Manuel João Vieira, um dos elementos do grupo Homeostético. Hoje além de artista plástico (pintor), associa também as actividades de líder e vocalista dos grupos Ena Pá 2000 e Irmãos Catita, bem como as de performer e actor. 56 85 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 instrumentos de música. Andava sempre a poupar dinheiro para comprar não sei que instrumento. (...) E assim ao som dos seus instrumentos de cordas vivíamos na sensação de sermos os últimos estudantes tradicionalmente portugueses, melancólicos e lúgubres (...) hoje os estudantes vivem ao som dos rádios constantemente presentes em todo o lado, que a tocarem música portuguesa será por engano e tradicional, só por milagre. (...) A beleza da melancolia dos estudantes do meu tempo nunca será recuperada e nós tivemos o privilégio de termos sido os últimos contemplados com essa atmosfera graças ao cavaquinho do Manuel João, durante os primeiros anos da década de oitenta deste século XX.. É verdade que não há, desde a morte de Bocage e dos outros turbulentos poetas arcádicos do século XVIII, outros cabotinos como eu e o Manuel João. Seremos reencarnações? Abra-se justa excepção para os futuristas portugueses e boémia anexa. O que se passa é que nós não somos propriamente do século XX. Somos do século XXI que paira ameaçador na sua estranha aurora, cheio de poluição, excesso de chineses e dinheiro falso. O leite que bebemos na infância era da escola franco-belga. Nunca gostámos de "marvells" como a juventude que aí apareceu depois. Somos europeus, não somos americanos, nem japoneses. (...) O Manuel João foi sempre um aluno brilhante, mas por vezes pegava-se com um ou outro professor de ânimos mais exaltados, criaturas menos serenas. A sua pior pega foi com o austero professor de gravura, Gil Teixeira Lopes. Era um homem que não tolerava qualquer falta de disciplina. (...) Este professor, espécie de sucedâneo do realismo-socialista, afirmando-se ainda como neo-realista português, movimento a que havia de estar ligado de alguma maneira, tinha criado um moderno academismo rotineiro de modelo retirado das academias de arte dos países pertencentes ao pacto de Varsóvia, "a cortina de ferro" como se dizia. E era este lúgrube modelo que pretendia impor aquela malta que transbordava de espírito de forma gritante. (...) Era muito autoritário e ainda que algum seu comentário pudesse pontualmente ter alguma propriedade, a sua falta de pedagogia e a sua vontade instintiva de desfazer qualquer manifestação de originalidade, quando não de personalidade, criaram-lhe os maiores atritos com os rapazes da minha geração. A apoteose deste drama foi o confronto que houve com o chamado "movimento homeostético" (...) 57 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 tentou obstinadamente destruir psicologicamente os rapazes que criaram este movimento. O Pedro Portugal respondeu-lhe executando quadros mitológicos académicos dentro do género "kitsh", agravando-lhes o piroso. O Pedro Proença, hoje mais do que célebre, foi visto a chorar à porta da sala de pintura demasiado ferido no seu interior pelas imprecações do professor. Quanto ao Manuel João, menos prudente, o professor reprovou-o. (...) A arte do Manuel João não amadureceu cedo. Nunca foi um virtuoso do desenho e já só no final da mocidade se revelou o seu génio. Sempre foi extremamente culto, quer literariamente, quer em termos de cultura visual. Conhecia todos os segredos da história de arte, com todas as suas subtilezas E a sua criação manifestou-se desde sempre torrencial em termos de ideias, sendo as suas referências as mais vastas, desde a grande ideia filosófica ao mais pitoresco detalhe decorativo em que sempre se mostrou mestre ao mesmo tempo que era capaz da maior espontaneidade”. Com este relato constatamos uma existência irreverente, quer nas atitudes do “comviver”, quer académicas. Na introdução ao catálogo da Exposição “Novos-Novos”, Eurico Gonçalves descreve esta geração sublinhando a sua relação com os meios de informação e divulgação artísticas, e a sua insatisfação face aos currículos e métodos em vigor nas Escolas de Belas Artes: “Informados sobre a história da arte recente, atentos ao que se faz e ao que se mostra nas grandes exposições internacionais, muitos destes jovens artistas, enquanto alunos, enfrentaram e enfrentam ainda algumas dificuldades de adaptação nas Escolas Superiores de Belas Artes, cujos métodos de ensino, por muito flexíveis e permissivos, não deixam de impor a sua autoridade académica, (...) embora se reconheça já um nítido progresso na mentalidade estética de alguns mestres...” 86 Nas entrevistas realizadas aos elementos do grupo homeostético são poucas as referências positivas, quer aos “Mestres”, quer aos métodos de ensino na Escola de Belas Artes, o que nos remete para a importância do autodidactismo na formação destes jovens artistas. Passo a transcrever excertos de algumas dessas entrevistas: 86 Gonçalves, Eurico, in : texto do catálogo da exposição “Novos-Novos” SNBA 1984. 58 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Até aos 13, 14 anos, tive uma influência predominantemente visual e, nos anos seguintes, fiz muitos exercícios de escrita, até com amigos meus, e há uma curiosidade intelectual, que neste caso se poderá chamar de vocação. Entre os 16 e os 19 anos foi o período mais forte. Usufruía dos livros que tinha em casa, era uma biblioteca mais de análise e de filosofia, mas depois sobretudo de literatura. (...) O professor decisivo para mim foi o João Vieira, em aulas na Sociedade Nacional de Belas Artes, antes de entrar para a ESBAL. (Pedro Proença). Qual a tua opinião sobre o ensino na Escola de Belas Artes nos anos da tua frequência? Alguma influência?... Não. Nenhuma escola te pode ensinar o que tu queres, mas a ESBAL, além de não ter ensino, não criava ritmos de trabalho e pesquisa nos alunos. A bibliografia que os professores forneciam era de livros que eu conhecia de outras fontes. Influência, só se for a dos colegas. Com isto não esqueço Jorge Pinheiro, José Fernandes Dias, mais um ou dois professores. Em 1984, comecei a dar aulas de pintura no Ar.Co, ou seja, viajava da colina pré-moderna para a pós-moderna. (Ivo) Qual a tua opinião sobre o ensino na Escola de Belas Artes durante o período homeostético? Patético, como o deve ser agora. Aprendi três coisas: do António Sena da Silva: querer ser designer em Portugal é como querer ser astronauta; com alguém, a esticar uma tela; e em geometria descritiva a desenhar o entroncamento entre dois sólidos. Alguma sensibilidade do prof. Jorge Pinheiro e o aconselhamento das tintas acrílicas Liquitex como as melhores. Em termos de trabalho, quais eram os teus referentes na época? Revistas de arte. (Pedro Portugal) . A Escola estava fora do mundo e nós éramos muito inocentes. (F.B.) Creio que esta terá sido porventura a primeira geração a provocar uma instabilidade e uma confrontação dentro da estrutura da escola caracterizada por aquilo que se tornou numa das frases homeostéticas – Por um academismo corrupto e centralizado. Efectivamente, até as experiências vanguardistas dos anos 70 em Portugal passaram despercebidas face à orientação académica, quer de tendência clássica (desenho do natural, pintura de género), quer dum modernismo tardio (abstraccionismo e formalismo). Dum modo geral, os professores, cristalizados no tempo da sua própria experiência artística, revelavam dificuldade ou mesmo falta de curiosidade em ir ao encontro das necessidades dos alunos. 59 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 A crítica mais frequente incide sobre o desfasamento da escola (direcção e corpo docente, estrutura curricular) face aos acontecimentos artísticos da contemporaneidade e à diversidade e interacção das várias práticas disciplinares. Verificou-se dum modo generalizado a prática da pintura, até porque a estrutura dos cursos de artes plásticas se dividia pelas duas categorias tradicionais: pintura e escultura. Face a esta estrutura curricular, generaliza-se entre os alunos uma prática dominada pela ironia. Esta ironia é talvez a resposta ao paradoxo existente entre as orientações académicas e os referentes e as experiências de alguns alunos. Formalmente, esta ironia toma diversas configurações: a prática paródica da citação (Pedro Portugal) ; a inclusão de signos e da linguagem gráfica da B.D. (Pedro Proença, Fernando Brito, mais tarde Pedro Cavalheiro e José Eduardo Rocha, que optaram definitivamente pela ilustração e pela Banda Desenhada); o primitivismo e o grafitti no exercício da pintura (Ivo); a miscelânea de referentes eruditos e populares (em Manuel Vieira, o que designava de “impressionismo barroco”); as naturezas mortas miniaturizadas de Miguel Branco; o humorismo dos objectos pictóricos e escultóricos de Caseirão; o neo-modernismo monumental de Fernando Brito que, tocando várias disciplinas, ora pensava e trabalhava em arquitectura, ora em design, ora em banda desenhada, ora em pintura, numa polivalência que dum modo geral constitui outro carácter distintivo desta geração. Esta hibridismo, quer de exercício, quer de categoria disciplinar, manifesta-se em Xana, que a crítica repetidamente afirma não saber como classificar, se pintor, se escultor, ao que o próprio responde: “pinto com cores compridas”. Outro factor que terá conduzido a uma certa irreverência prende-se com circunstâncias externas à escola: precocidade no início de carreiras artísticas (o caso de Pedro Proença e Pedro Portugal que começaram o seu percurso nas galerias que na época se destacaram por investir em novos valores: Cómicos e Módulo); projecção e crescente legitimidade artística que os alunos iam obtendo no exterior, conforme explicitado na primeira parte deste trabalho. Um vestígio de boémia romântica associado à ideia dum neo-dadaísmo com identidade nacional (os futuristas do Orfeu), uma consciência de liberdade conquistada e a desfrutar sedimentam a vontade da mudança e a auto-afirmação. 60 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Voluntarismo e vitalidade são os traços distintivos deste período. Apesar da falta do estímulo escolar, ou talvez por essa mesma razão, muitas são as iniciativas promovidas pelos estudantes da Escola de Belas Artes, desde o associativismo 87 (Associação de Estudantes) à apropriação e reutilização de espaços da escola para exposições dos alunos (caso das primeiras exposições homeostéticas), ao grupo de teatro, às revistas: Arte-Opinião, propriedade da Associação de Estudantes, teve o ensejo de se tornar uma revista com propósitos sérios, com um corpo redactorial e financiamentos próprios. Mas outras revistas circulavam entre os alunos: Hard-Core, Figuração Narrativa, Filhos de Átila, em “jeito” de fanzine, fotocopiadas, dadas ou vendidas a preços irrisórios, onde predominava a Banda Desenhada colectiva (nas duas primeiras). Filhos de Átila era a revista Homeostética, da qual saíram apenas dois números e que combinava o texto e a ilustração. 3.2 Os grupos no meio das artes plásticas. Homeostética, grupo ou movimento? A formação de grupos nos meios artísticos não é uma situação inédita. Os grupos 88 nas artes plásticas, em Portugal, sobretudo desde o final do século passado (Grupo do Leão, Grupo do Orfeu, Os Surrealistas de Lisboa, KWY, Grupo Puzzle) aparecem geralmente em início de carreira e destacam-se pela extrema juventude dos seus elementos, constituindo uma dinâmica de auto-formação e afirmação. Quer associados à literatura ou à poesia, quer através de textos ou manifestos, estes grupos têm deixado alguma produção teórica que permite reflectir sobre os momentos históricos e artísticos que lhes estão associados. Yves Michaud 89 refere que a associação de artistas é uma reacção defensiva contra as instâncias legitimadoras que, segundo ele, dão origem ao corte do mundo artístico em duas categorias: os que beneficiam da atenção oficial e os que não beneficiam dela. "Les jeunes artistes réagissent désormais par des comportements plus 87 Pedro Portugal e Pedro Proença pertenceram à Associação de Estudantes em 1984/85. Refiro-me a grupos autodenominados e não aos agrupamentos de individualidades que representam as correntes artísticas conforme as épocas, sendo posteriormente associados pelos historiadores de arte. 88 61 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 autonomes et plus agressifs, en formant des associations, en partageant des sites communes (...) en montant des expositions hors circuit, par exemple dans l’espace public" 90 . Poderá dizer-se que o grupo homeostético não pretendeu reagir agressivamente contra entidades públicas ou privadas, muito pelo contrário, pois desde 1983 que a maioria dos seus elementos foi convidada a expor em galerias comerciais 91 , o que poderá ter constituído um dos factores conducentes ao final do grupo em 1988. Além disso, com o final do curso, verificou-se uma dispersão geográfica de alguns dos seus elementos, bem como vários casamentos 92 . Embora não seja este o tema do presente trabalho, seria porventura interessante considerar o perfil das galerias e a sua importância para a afirmação das carreiras de alguns destes artistas: público, estratégias de divulgação e promoção, direccionamento internacional, actualização, em suma, dinamização e contactos. Interessa-nos saber que há um aproveitamento de parte a parte e um reconhecimento por particulares que, dum modo geral, assegurou progressivamente aos elementos do grupo homeostético uma área de exposição, mais do que de intervenção. Talvez tenha sido essa a razão por que as exposições Homeostéticas 93 foram realizadas fora dos circuitos comerciais: 90 Michaud, Yves, La crise de l´Art contemporain – Presses Universitaires de France, Paris, 1ª ed. 1997, Octobre: p.146. 91 Nota biográfica: 1ª exposição nos circuitos comerciais: “Esfinge Rosa” – Galeria Cómicos, 1984: Pedro Proença, Manuel Vieira e Xana. Pedro Proença e Pedro Portugal alinharam respectivamente pelas Galerias Cómicos e Módulo, mais tarde os outros se lhes seguiriam em diferentes galerias. Em 1987 todos os artistas homeostéticos estão enquadrados em Galerias: além dos acima citados, Xana (Módulo); Fernando Brito e Ivo (Quadrum); Manuel Vieira realizou a 1ª exposição individual na Galeria Diferença. Neste ano, estiveram todos representados pelas respectivas galerias na ARCO (Madrid), com o apoio económico das Fundações Calouste Gulbenkian, Luso-Americana para a Cultura e da Secretaria de Estado da Cultura. Sobre esta participação, ver artigo de António Rodrigues na Colóquio Artes, 74, 2ª Série, 29º ano, Setembro 1987. 92 Nota biográfica: Xana casou-se e foi viver para o Algarve; Fernando Brito casou-se em 83 e foi viver para Santarém; Pedro Portugal, Pedro Proença e Manuel Vieira, em Lisboa, associaram-se num atelier comum, a que deram o nome de Fundição, até constituirem os seus próprios núcleos familiares. 93 Excepto a exposição “Continentes”, que foi bem registada fotograficamente e fixada em catálogo, e a exposição “Educação Espartana”, da qual existem fotografias, é impossível reconstituir os trabalhos apresentados nas restantes exposições. 62 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 1983: 1ª Exposição Homeostética e Um labrego em Nova Iorque, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa; 1984: Se em Portimão houvesse baleias, Galeria Quarto Crescente em Portimão; 1986: Educação Espartana, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra; 1986: Continentes, Sociedade Nacional de Belas Artes- Lisboa. Conclui-se então que existe uma não coincidência entre a exteriorização individual em galerias comerciais e a dinâmica do movimento. Esta "duplicidade", se assim se poderá considerar, opõe uma dinâmica interior, quase desconhecida publicamente (críticos, galerias, media), secreta na sua produção teórica e nos seus desdobramentos ficcionais, a uma atitude oficial mais conivente com o sistema legitimador-comercial do art world. F. Brito dirá: "... trabalhávamos nesse tal espaço de liberdade que a homeostética era, porque depois, em público, na cidade, à parte da circunstância da exposição Continentes... quando se chegava a altura de sair para a rua, e na altura saía-se para a rua pela via das galerias, o que as pessoas mostravam era a assinatura, portanto, eram sempre cautelosas e respeitadoras do sistema ... a Homeostética era um espaço de liberdade e fraternidade, mas era uma espécie de recreio do trabalho...” 94 . Circunstâncias únicas na época 95 (boom económico, proliferação das galerias, a moda e a necessidade do Novo, novos públicos conservadores) permitiram com certa facilidade a profissionalização de alguns artistas muito jovens. O seu espaço de intervenção foi claramente anímico e não propagandístico ou revolucionário. À pergunta “Homeostética é um movimento ou um grupo?”, P. Proença responde: “Eu penso que é um movimento. Grupo é o grupo de pessoas que lá estão. No 94 95 Entrevista com Fernando Brito em “Anexos” desta Tese. Registo a opinião de Pedro Cavalheiro sobre este período: “(...) Sei que toda a gente ou parte desta gente teve pegas com galeristas, andas e desandas, entendiam-se, não se entendiam...(...) Foi uma época em que circulou muito dinheiro que significou veneno, uma época muito nefasta, muito dura, difícil, em que havia muita gente afortunada e em que as pessoas não se entendiam. É esta a minha impressão.” 63 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 entanto, uma série de coisas aconteceram ao lado, têm a ver com o clima que se pode ter despoletado... Moviam-se pessoas à nossa volta (...) queríamos ter uma mitologia, “Cidade Nova” que, no fundo (...), estava cheia de contradições (...) ter um corpus. Quase algo que mais tarde fosse um continente. Interdisciplinar, com um fundamento e espírito comunitário. (...) A ideia era construir um “lugar”. Trabalhávamos juntos durante o período da escola e fora dela (...) o artista não vive isolado, (...) acho que nós, quer a nível de partilhar o espaço, o trabalho, partilhar ideias... o desejo de uma comunidade, não era o grupo homeostético, mas o movimento (...)” 96 . À mesma pergunta, responde Fernando Brito: “Nem uma coisa, nem outra, porque nunca houve uma organização (...) a homeostética foi uma coisa que teve um sentido afectivo para mim (...) era um espaço, e as pessoas exerciam-se nesse espaço, mas não sei se esse exercício era muito profissional, além de que as pessoas traziam para a homeostética o que não levavam para as galerias. Na sua vida pública, profissional, aquilo que ficou registado pelos críticos, que veio nos jornais, as pessoas tinham desempenhos muito convencionais. A homeostética foi um espaço de liberdade partilhada, não sendo conhecido precisamente por isso (...) A coisa mais homeostética que muitas pessoas conheciam eram as festas homeostéticas (...) retrospectivamente a homeostética foi uma espécie de Situacionismo. Foi uma situação em que houve imensa deriva, em que houve imensa dinâmica e isso nunca se chegou a conhecer (...)”. Se para Pedro Portugal se tratava de um grupo de conjurados, para Ivo, mais que um grupo, era a soma de cinco, depois seis personalidades. Finalmente Manuel Vieira, no “Manifesto”, declara: “Somos um movimento rude, indisciplinado como uma bola de neve que rola por uma montanha de estrume! Sim, somos o caos! Mas o caos límpido na sua forma ordenada e bruta! O raw caos!” 97 Revelando uma nova consciência relativamente ao papel do artista e à sua profissionalização, este grupo autolegitima-se ao registar a maioria dos seus 96 Entrevista com Pedro Proença em “Anexos” desta Tese. 97 Manifesto (Manuel Vieira, 1983), em “Anexos” desta Tese. 64 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 movimentos, em diversos suportes, a partir dos quais é possível reconstituir o seu historial. Segundo R. Poggiolli, citado por Quadrado 98 , e seguindo a sua metodologia, as características que definiriam a estrutura e a actuação dum movimento poderiam resumir-se em dois grandes apartados: organização e doutrina. Quanto à ORGANIZAÇÃO, podemos deparar-nos com um ou vários grupos; uma ou várias destacadas personalidades, chefes ou cabeças visíveis do movimento. No que respeita à DOUTRINA, esta pode ser mais ou menos sistemática ou elaborada, manifestando-se duma intervenção (teórica e prática; directa e indirecta; social e estética) e tendo como uma das suas principais formas a produção textual. Aplicando esta metodologia à análise da dinâmica homeostética, observamos que, no respeitante à ORGANIZAÇÃO, encontramos um movimento natural e espontâneo na aglutinação dos seus elementos 99 . Um período "Pré- homeostético", terá tido início com a entrada para a Escola Superior de Belas Artes, de Pedro Proença, Manuel Vieira e Pedro Portugal, no ano 98 Quadrado, Perfecto E. – A única real tradição viva, Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa (pp. 9 e 10), Assírio e Alvim, Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, 1998. 99 Excerto da Biografia não autorizada de Manuel João Vieira, por Pedro Cavalheiro: “Houve durante os anos oitenta do século XX, na Escola de Belas Artes de Lisboa, dois importantes grupos de alunos que se afirmaram pela sua originalidade e modernidade. Diria que eram estes os tempos dos pósmodernismos. Mas como não sou crítico de arte, não vou perder tempo com classificações, ou "ismos". Contarei o que vi. Quando em 1981 eu, o Manuel João, o Ivo, o Pedro Portugal, o Pedro Proença, o Pedro Silva Dias, o Mariano Piçarra, o Filipe Alarcão, o Jorge Colombo, o João Correia Pais e mais uma grande quantidade de rapazes e raparigas (...) quando nesse tempo entrou toda esta rapaziada para o primeiro ano havia um grupo de alunos dos outros anos que se tinha afirmado na pintura. Desses destaco o Xana e o Pedro Casqueiro, que vi representados no Museu de Arte Moderna da Gulbenkian, tal como o Pedro Cabrita Reis, que anda hoje nos píncaros. Os outros pintores, que me lembre, eram a Alda Nobre, a Madalena Coelho, a Inês Simões e o Jaime Lebre. Vestiam-se excentricamente, mas em estilo chique, num exibicionismo, quem sabe se inspirado na Sónia Delaunay, de quem havia então uma grande exposição na Gulbenkian. A crítica chamou-lhes “Talentos Emergentes”, e o grupo ficou conhecido pelo “grupo dos emergentes” (...). O grupo Homeostético apareceu a seguir. Assisti à sua criação. Foi na cantina das Belas Artes, numa manhã de inverno. Entre três desenhos garatujados que me deu, o Pedro Proença inventou a palavra. Tinha andado dias à procura de um nome para um novo movimento artístico. Ficou eufórico e foi apregoar a sua invenção para o pátio. Aderiram imediatamente a este movimento o Pedro Portugal e o Manuel João. O Ivo integrou-se logo a seguir. Eram todos do meu ano. Depois, dois veteranos aderiram a esta ideia, o Xana e o Fernando Brito.” 65 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 lectivo 81/ 82. A a estes juntar-se-ão, em 83, Xana e Ivo. Em 86, formaliza-se (porque já antes havia colaboração) a inclusão de Fernando Brito 100 . O objectivo inicial desta associação terá sido a organização de exposições: em Janeiro de 83, " Onze anos depois" 101 - ESBAL (Talentos Emergentes), após a qual se seguiriam as cinco exposições homeostéticas. Estes elementos desdobram-se em núcleos (ou sub-grupos) com projectos distintos e complementares, alastrando assim o espírito homeostético: 81/84, Grupo Babel (Num Farum Putorum): Filipe Alarcão, Pedro Silva Dias, Pedro Portugal, Pedro Proença e Xana, e Fernando Brito (convidado por carta, dado residir desde 83 em Santarém); 83/85, Grupo V Império: Pedro Proença e Fernando Brito; 86/88, Grupo Porkys, com o projecto Marmoreo Odeon: Pedro Proença e Manuel Vieira; 85/88, Grupo CO-CO, com o projecto Gabinete Adamastor: Fernando Brito e Pedro Portugal. Quanto às "CABEÇAS VISÍVEIS", não há "chefes", pois que, respeitando as características pessoais de cada elemento, não há tarefas distribuídas ou lutas pelo poder. O envolvimento homeostético 102 pode antes caracterizar-se por uma interacção um tanto caótica, exaltada e participativa, conforme nos indica o primeiro manifesto (1983), que mais adiante iremos analisar. Digamos que um principio de trabalho de projecto reúne os seus elementos de forma activa em volta das iniciativas que se propunham realizar. Poderão atribuir-se a Pedro Proença, Manuel Vieira e Fernando Brito textos e manifestos, se bem que uma das características do grupo seja a hetero- canibalização ou "antropofagia", sendo por vezes difícil atribuir autorias. Como diz F. Brito, " Nós alimentávamo-nos uns dos outros mas era para efeitos homeostéticos. Nós utilizávamos títulos uns dos outros, poemas uns dos outros, 100 Nota biográfica: esta inclusão ocorre por altura da exposição “Educação Espartana” é a única que obedece a uma “iniciação” ritualizada: nas escadarias da Faculdade de Coimbra, todos colocam os pés em cima do novo elemento; atrás desta cena, numa faixa, lê-se “Retomar a esperança”. 101 Esta exposição ocorreu deliberadamente em simultâneo com a exposição “E depois do modernismo?”. 102 Ver folheto da exposição “Educação Espartana”. 66 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 personagens uns dos outros, escritos para filmes uns dos outros, formas uns dos outros..." (entrevista em “Anexos”). Tudo leva a crer que os textos existentes, sobretudo ao nível da ficção, terão resultado de reflexões, discussões conjuntas, excursões, sessões de gargalhadas, excessos. Pedro Portugal é o responsável pelo registo das actividades, sendo-lhe atribuídas todas as fotografias existentes, bem como a produção de acontecimentos e as relações com o exterior. Não poderemos afirmar que exista uma preocupação doutrinal, se bem que ao longo dos Manifestos se vão desenhando PRINCÍPIOS, não de tendência impositiva, mas aberta, formulados numa atitude interdisciplinar, como afirma Proença. Creio que os textos escritos não revelam, até à exposição “Educação Espartana”, uma preocupação em criar uma teoria. Parecem querer ser o depósito proveniente da interacção das tendências individuais que se manifestam no grupo. No entanto, depois de analisar os textos que agrupei sob a designação de Teoria Homeostética (em “Anexos” da Tese), penso poder defender que existe a formulação de princípios que foram desenvolvidos na invisibilidade por Pedro Proença através de textos de trabalho elaborados durante todo o período homeostético e, inclusive, pré-homeostético. Em contrapartida, os panfletos que acompanharam as exposições, declarações curtas um tanto neo-dadaistas e enigmáticas, são pouco reveladores das intenções ou do pensamento teórico do grupo. Relativamente à INTERVENÇÃO, distinguiremos as operações formais, os acontecimentos e a “deriva homeostética”. As operações formais realizaram-se nos mais variados domínios: ARTES PLÁSTICAS (Exposições Homeostéticas, destacando-se a descentralização das mesmas); DESIGN (Comunicação: alfabetos homeostéticos, cartazes, folhetos, logotipos, etc.; Equipamento: projecto Gabinete Adamastor); BANDA DESENHADA (F. Brito: “O Fado”; “O caso das moscas verdes”); ARQUITECTURA (F. Brito, figuras da arquitectura homeostética ou a monumentalidade pura). MÚSICA (M. Vieira: Projecto Ena Pá 2000, “Concerto para pandeireta e máquina de lavar”, som que passou durante a 1ª exposição homeostética; Xana: “Walking around Serra da Estrela”; Francisco Ferro: 67 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 composição étnica para a Exposição Continentes); REVISTAS (OS FILHOS DE ÁTILA, predominantemente visual, feita por pessoas de artes plásticas com algumas vocações extra artes plásticas, literárias, musicais... 103 , e ao jeito de fanzine, fotocopiada e com pouca qualidade gráfica, onde colaboraram, entre outros, Pedro Cavalheiro (Banda Desenhada); ASA DE ÍCARO, projecto para uma outra revista, da qual existem sobretudo maquetas de imagens, e nome para uma hipotética editora). Sobre estas revistas diz Ivo: As revistas homeostéticas fazem parte da nossa energia transbordante da época e também caótica, porque os números eram assim preparados, sem conteúdos prévios. Se os havia, eram rapidamente ultrapassados pelos desenhos e textos escritos por todos nós. A relação com a Arte Opinião é totalmente inexistente. A Arte Opinião, fundada pelo Pedro Cabrita Reis, é uma revista tradicional de arte (no bom sentido), com artigos e entrevistas a artistas, reprodução de obras, concursos para a execução da capa da revista, enquanto os Filhos de Átila e Asas de Ícaro são sobreposições caóticas de bandas desenhadas, editoriais do Proença, desenhos de alguns de nós, com textos de outros elementos do grupo, etc.- o caos quase perfeito. ( Entrevista em anexo). Os acontecimentos e experiências foram nas áreas da PERFORMANCE, TEATRO, CINEMA, INSTALAÇÃO, dos quais restam textos, fotografias ou filmes, conforme os casos. A “deriva” diz respeito às viagens de grupo ou de alguns dos seus elementos (Beiras: Capinha, Pampilhosa da Serra; Amesterdão, Veneza, Grécia, Nova Iorque). Apesar das referências a uma certa invisibilidade, esta só se deu ao nível teórico, já que o mundanismo e as relações sociais entre amigos, artistas ou instituições foram constantes. A PRODUÇÃO TEÓRICA faz-se representar nos MANIFESTOS, POESIA, FICÇÃO (pequenos romances: Budonga, Marmoreo Odeon, Fragmentos dos cadernos de Augusto Barata, etc.); SINOPSES para filmes; e TEORIA DE ARTE, mais propriamente os textos que fundamentam a teoria homeostética. 103 Entrevista com P. Proença. 68 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 4 - Percurso e Visibilidade 4.1 O Reconhecimento Hoje Considerando que uma das formas de legitimação consiste na certificação de determinada ocorrência cultural ou artística pela pena dos críticos e dos historiadores de arte em documentos de carácter mais ou menos definitivo, pretendemos verificar a existência do termo "Homeostética" nas obras sobre arte portuguesa recentemente publicadas. Sendo escassas, foram no entanto escolhidas pelo seu carácter generalista e pela possibilidade de apresentarem uma panorâmica sobre a arte portuguesa das últimas décadas. Nelas se dá conta de uma total ausência de referências, ou referências sumárias relativamente à Homeostética. As obras consultadas foram as seguintes: Novembro 1993, Pintura Portuguesa do século XX - Bernardo Pinto de Almeida; Setembro 1995, "O declínio das vanguardas nos anos 50 ao fim do milénio" in História da Arte Portuguesa, Volume 3, - João Lima Pinharanda; Junho 1998, Artes Plásticas em Portugal, dos anos 70 aos nossos dias Alexandre Melo; Dezembro 1998, A Arte Portuguesa do Século XX - Rui Mário Gonçalves. Bernardo P. de Almeida 104 , no capítulo "Aspectos da Pintura Portuguesa da década de oitenta", escreve: "Encerrando este ciclo de artistas revelados na década de 80, deverão referir-se ainda os nomes de Pedro Proença e Pedro Portugal que igualmente na SNBA (Lisboa), surgiram em 86 no contexto da mostra colectiva "Continentes", em irónico comentário ao título "Arquipélago" com que se haviam afirmado os que se haviam imediatamente precedido." E, mais adiante: "outros jovens artistas, como Pedro Proença e Pedro Portugal, vinculados a um grupo de circunstância - Os 104 Almeida, Bernardo Pinto de: Pintura Portuguesa do século XX , editora Lello & Irmãos, Porto, Novembro 1993. 69 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Homeostéticos - optaram por modelos que nada tinham que ver com os da geração imediatamente anterior e fixaram-se em dominantes mais experimentais." Para este crítico, os anos oitenta foram o período de todas as afirmações: "...raras vezes, ou nenhuma, uma década terá sido entre nós tão assumida, enquanto valor ideológico de afirmação geracional, como foi a década de 80 em Portugal. Foram sensivelmente dez anos de todas as afirmações - extemporâneas muitas vezes; de todas as exposições, do rebentar do mercado em inesperadas direcções, do surgimento de um sem número de novas galerias, o aparecimento de uma nova geração de críticos de arte e de comissários de exposições...". Em termos de prática artística e tendência estética, assistiu-se a um "regresso à pintura", com uma "explosão de linguagens quentes, expressionistas, eclécticas, que multiplicaram os seus pontos de referência e as modalidades de expressão pessoal e da citação, entre a provocação e a paródia, que foram entre os artistas portugueses reflexo de um novo comprometimento com as linguagens internacionais em voga, um pouco como o acertar dum relógio que havia estado parado ou atrasado". João Pinharanda 105 considera as "novidades" dos anos 80, destacando a acção dos grupos: "Antes da individualização das carreiras, os novos artistas afirmam-se através da acção de grupos. Reunidos por questões de amizade e frequência escolar, esses grupos não significam unidade programática e estética, mas uma acção de afirmação estratégica e provocatória". Pinharanda identificou com precisão os "grupos" que, desde o início da década de oitenta, foram protagonistas da paisagem artística lisboeta, tendo a Escola de Belas Artes como local comum de iniciação e enquadramento. Destaca quatro grupos de artistas. Um primeiro constituído por Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, José Pedro Croft, Rui Sanches, Ana Léon e Rosa Carvalho (Exposição “Arquipélago”, SNBA, 1985 - única exposição conjunta e dispersão no sentido de carreiras individuais); Grupo dos Talentos Emergentes, 105 Pinharanda, João Lima, “O declínio das vanguardas nos anos 50 ao fim do milénio” in Paulo Pereira (dir.): História da Arte Portuguesa,Volume 3, Círculo de Leitores, Temas e Debates, Setembro 1995. Observação: refere individualmente Pedro Portugal, Pedro Proença (pp. 625, 632633), Xana (pp. 627- 628), Fernando Brito (pág. 634); “Ases da Paleta” (Quadrum 1989, Fernando Brito, João Paulo Feliciano, Manuel Vieira e P. Portugal – pág. 633). 70 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 constituído por Ana Vidigal, Pedro Casqueiro, Alda Nobre, Madalena Coelho e Inês Simões (Exposição "11 Anos depois", com elementos do grupo Homeostético e outros - dispersão no sentido de carreiras individuais: Pedro Casqueiro e Ana Vidigal); e o terceiro, contemporâneo dos acima citados, que, não tendo funcionado em conjunto na ESBAL, virá, após o curso, a reunir-se à volta do projecto "Galeria Monumental". De entre os seus elementos destacam-se Manuel San-Payo, Gonçalo Ruivo, Miguel Branco, Jorge Varanda, cujos propósitos contemplam vertentes pedagógicas pluridisciplinares e artísticas. O grupo Homeostético é referido nos seguintes termos: "Finalmente podemos estabelecer uma linha de irrisão e jogos de linguagem, em artistas que, não tendo já participado na vertigem revolucionária, recuperam valores reflexivos, filosóficos e mesmo políticos mas estabelecendo uma dinâmica de desconstrução irónica (ou puramente lúdica) de referências e temáticas. Autodenominam-se "Homeostéticos" e incluem, na sua versão mais alargada, Pedro Portugal, Pedro Proença, Manuel João Vieira, Fernando Brito, Ivo e Xana". Alexandre Melo 106 sublinha "as características da conjuntura artística dos anos 80" apontando como factores " a animação mundana e mediática produzida pela afirmação pública de grupos informais de artistas" revelados pelas "exposições e entrevistas colectivas". Caracterizando esta tendência associativa, afirma: "Tais grupos correspondiam mais a cumplicidades de formação, promoção e atitude do que a afinidades programáticas ou estéticas conforme se viria a comprovar pela rápida autonomização de carreiras individuais". Não utilizando a expressão "homeostética", refere-se -lhes: "Uma outra vaga de artistas irá surgir, ainda em meados da década de 80, numa série de exposições colectivas, entre as quais se destaca "Continentes" (SNBA, 1986). Entre eles estão Pedro Portugal e Pedro Proença". Alexandre Melo revela os contornos da prática "inicial" do grupo, que a seu ver "estava marcada 106 Melo, Alexandre: Artes Plásticas em Portugal, dos anos 70 aos nossos dias, Editorial Difel, Junho 1998. Observação: Refere individualmente Pedro Proença (pags.184, 185, 198 e 187) e Pedro Portugal (pags. 188, 189, 190 e 191). 71 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 por uma grande exuberância visual e de atitude, um displicente eclectismo na manipulação de referências, um forte sentido lúdico de provocação e uma clara intenção de comentário irónico à actualidade artística". Rui Mário Gonçalves 107 , no capítulo intitulado "1983-1994 O Tempo Temporalizado; Neo- Expressionismo", caracteriza a situação conjuntural dos anos 80, não referindo grupos, mas apresentando listagens extensas de artistas, onde mistura gerações. Nessa listagem de artistas são referidos: Ivo (a quem dedica umas linhas mais à frente), Xana, Pedro Proença, Manuel Vieira e Pedro Portugal. No entanto, não usa o termo "Homeostética". Apresenta a sua visão da arte dos "anos 80": "a prática paródica de muita da arte internacionalmente mais divulgada durante os anos 80 facilitou a atitude desideologizada dos jovens artistas", sendo que no "(...) retorno à pintura na "bad-painting", no "neo-expressionismo" e na "transvanguarda", procurou intensificar tradições e valores regionalistas americanos, alemães e italianos, respectivamente, pois numerosos jovens artistas portugueses apresentaramse como inseridos nestes movimentos "regionalistas", imitando as obras (...) sem estabelecer quaisquer relações com quaisquer tradições ou valores portugueses: um paradoxal regionalismo alheio". Em termos de práticas artísticas, reitera o que é genericamente afirmado por todos os que escrevem sobre este período, onde, depois de uma década em que a vanguarda foi atraída pelo conceptualismo, a geração dos anos 80 retorna à pintura e à escultura. O “figurino” internacional, divulgado entre nós pelas revistas de arte, bem como a intervenção de destacadas figuras da arte europeia em acontecimentos artísticos nacionais (Bonito Oliva no júri da LIS’79; Germain Celant e Rudi Fusch nos colóquios da exposição E depois do Modernismo?), parece repercutir-se em Portugal. Relativamente à afirmação de Rui Mário Gonçalves acerca do “regionalismo alheio”, creio ser necessária uma mais correcta e aprofundada leitura iconográfica de obras deste período. Creio ainda que a expressão utilizada por este crítico ignora a problemática da globalização da 107 Gonçalves, Rui Mário: “1983-1994 O Tempo Temporalizado; Neo- Expressionismo" in A Arte Portuguesa do Século XX, Temas e Debates, Lisboa, Dezembro 1998, (pag.116). 72 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 informação, incluindo a artística, e a sua influência nas obras dos artistas portugueses contemporâneos. Relativamente ao período que nos detém (os anos 80), a utilização da palavra "Homeostética" é apresentada com mais convicção por Pinharanda, crítico cuja geração e início de carreira coincide com a dos nossos artistas, podendo atribuir-selhe muitos dos textos de imprensa que acompanharam, tanto a exposição Continentes, como exposições individuais. Apesar de pertencer à mesma geração e de ter feito crítica a estes artistas, Alexandre Melo, no livro acima citado, não se refere ao grupo como "Homeostética". Numa rápida visitação pelas obras supracitadas, pode concluir-se que a proximidade física e geracional aos artistas é uma mais valia para a fidelidade histórica, e que cada historiador, crítico, inventariador apresenta tendências empáticas com indivíduos, grupos, linhas estéticas, que vêm influenciar as suas escolhas e selecções. Outro factor a considerar é a repetição grosso modo dos aspectos que caracterizam o período em causa e os resultados artísticos. A palavra "homeostética" surge associada a estes artistas individualmente, o que parece fazer valer a frase do Manifesto da 1ª exposição: "a farda faz o militante, o rótulo apenas perfaz o homeostético". A "Homeostética", como verificámos, não passa de um nome, acerca do qual não há questionamento. No entanto, "Homeostética" , tal como "Dada", "Surrealismo", pertence às autodesignações, revelando assim uma consciência própria e interna de sentido. Segundo Pedro Proença, a palavra foi uma ideia de Pedro Portugal e terá tido a sua origem na palavra "Homeostase", que significa "equilíbrio orgânico". "Homeostética " será assim um sentido para uma estética orgânica, ou, como se afirma no "Manifesto para a Vegetarianização do pensamento": "O nosso elemento é a transformação, o mobili in mobilis". 73 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 4.2 Exposições e textos de catálogo Conforme assinalei no capítulo anterior, a intervenção fez-se a vários níveis. Destaquei as exposições devido aos textos que foram escritos por sua ocasião em folhetos fotocopiados (excepto o catálogo de “Continentes”) ou que, sem serem publicitados, foram escritos a seu propósito, permitindo analisar as intenções e o percurso conceptual do grupo. Da exteriorização homeostética também foram visíveis e concretizadas acções informais, lúdicas e experimentais, tais como performances e instalações. Mais uma vez, Pedro Cavalheiro vem recordar-nos os duelos e os torneios ocorridos no pátio da Escola de Belas Artes: (...) O duelo apresentava-se ao género de "performance". Apareceu na véspera um cartaz anunciando o evento, com letras negras desenhadas à régua onde eram representadas duas silhuetas de duelistas com cartolas (...) o duelo foi travado num tom entre pantomina e "performance" ... naquele tempo usava-se ainda o termo "happenning". (...) Rodeado pelos seus padrinhos que eram, se não me engano, o Pedro Proença e o Pedro Portugal. O local era obviamente o pátio da Escola de Belas Artes de Lisboa (...) a cena respirava mórbida solenidade. Havia uma pequena multidão que se espalhava ao longo dos muros austeros daquele edifício sem se acotovelar, não deixando transparecer nem o gozo que sentia, nem o assombro. A um momento as espadas cruzam-se. Os dois bateram-se violentamente e a assistência terá soltado alguns risos e sentido algum terror. A um tempo o Xana invade o campo e postando-se entre os dois antagonistas despeja alguns borrões dum frasco amarelo de tinta Sabú cor de rosa vivo e grita: Sangue! Dando em seguida uma mefistofélica gargalhada muito sonora... (...). Relativamente às exposições realizadas, conforme já referi, somente restam imagens das duas últimas: “Educação Espartana” e “Continentes”. Das anteriores, limitar-me-ei a analisar os textos que as acompanharam. No conjunto, foram inventariados os seguintes textos, onde se faz a distinção entre os publicados (P) e os não publicados (NP): 74 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Textos de Catálogo [P (Publicados) / NP (Não Publicados) ] Os textos encontram-se nos Anexos da Tese. 1. [P em folheto/Catálogo ] ONZE ANOS DEPOIS 2. [P em folheto/catálogo] 1ª EXPOSIÇÃO HOMEOSTÉTICA 3. [P em folheto/Catálogo] UM LABREGO EM NOVA IORQUE 4. [NP] UM LABREGO EM NOVA IORQUE (versão B) 5. [P em folheto/Catálogo] SE EM PORTIMÃO HOUVESSE BALEIAS 6. [P em panfleto] EDUCAÇÃO ESPARTANA 7. [NP] EX-CURSÕES HOMEOSTÉTICAS 8. [NP] Projecto para texto sobre os CONTINENTES (1986). O ano de 1983 destacou-se pela quantidade de exposições realizadas. A exposição pré-homeostética “11 ANOS DEPOIS - As Suecas saem à luz” teve a virtude de catapultar uma série de artistas para o art world. A partir daqui viram-se configurados agrupamentos, ou foram-se destacando individualidades No folheto desta exposição, uma frase emblemática aponta para a atemporalidade. A NÓS O FUTURO! A NÓS O PRESENTE! A NÓS O PASSADO E A PESADA AUTOCRÍTICA! No mesmo ano ocorreram ainda a primeira e a segunda exposições homeostéticas. A primeira, sem título, é acompanhada dum Manifesto onde se pode ler o desejo de assinar a derradeira certidão de óbito da arte de uma geração que encaram apenas como resultado da guerra fria, bem como o de agitar o público, “adormecido entre as suas batedeiras eléctricas e os mass media”. Definem-se os modelos: Átila, o Huno, enfim o arrojo, o prazer e a aventura. São um grupo “rude, indisciplinado como uma bola de neve que rola por uma montanha de estrume”, para o qual “é necessário dar ferro a esta anémica sociedade” e “decapitar os “papuça e dentuça”. O movimento homeostético proclama um novo modelo de caos, de limpidez, “uma moralidade natural por enquanto imberbe, mas amanhã pilosíssima”. Este Manifesto foi publicado no número um da Revista Filhos de Átila. O texto do folheto correspondente à segunda exposição, “Um Labrego em Nova Iorque” (1983), é lacónico: 75 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 ALGUMAS MEDITAÇÕES DE MICKEY M. SOBRE A MORALIDADE YANQUEE O POLVO E O ORNITORRINCO ERNESTO O ORNITORRINCO HONESTO PASSA DEBAIXO DO APARTAMENTO DO BRUTO SHARKEY, O POLVO Ó POLVO, DIZ O ORNITORRINCO, EU GOSTAVA DE SER INVERTEBRADO COMO TU. PUET! REPLICA O POLVO COM TÉDIO. MORAL “ TILT !!! ” Uma outra versão não publicada, da autoria de Manuel Vieira, “UM LABREGO EM NOVA IORQUE (versão B)”, revela sobretudo uma grande ironia relativamente aos mecanismos de recepção da obra de arte e à incapacidade de esta se fazer entender pelo público. “Um labrego em Nova Iorque? Quem pode captar a labiríntica maravilha desta frase? Qual o sortilégio alquímico? Que pode (na mente do público) estabelecer o contacto entre o significante e o significado? Um signo? (...) mas para quê desvendar a boa obra (de art) se tal coisa é desventurosa (ou mesmo) só aconselhada aos consagrados poetas (os eternos) (...) Pretendemos, com a embriaguez do nosso lúcido discurso, comprometer irremediavelmente a alma impura do vulgar observador de art e a condescendência do POVO (sentimento artístico animal). Cada obra deverá ser para o estimado indivíduo público um espelho de Alice. (...) Credes, consagrado público, que a nossa cruel ânsia se tornará, como tudo sócia da eterna cloaca nacional? (Excertos) 76 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Dentro do espírito de descentralização cultural que se vivia na época, “SE EM PORTIMÃO HOUVESSE BALEIAS “ (1984) é a primeira tentativa para divulgar o grupo no exterior 108 . UMA LANÇA NO ALGARVE HOMEOSTÉTICA UM NOME QUE NOS FAZ SONHAR HOMEOSTÉTICA O BÉBÉ PROVETA DA ARTE MODERNA AS CARAMBOLAS ACTUAIS NÃO NOS INTERESSAM (O QUE) AMAMOS, TUDO É BíBLICO. O SEXO, A AMIOSE, O MAR, A FOME, A NOSSA ARTE É (MAG) ESPELHO DE ALICE. O SIGNIFICADO PROFUNDAMENTE INFANTIL, E DE UMA ADORAÇÃO PERFEITAMENTE FANÁTICA E AO MESMO TEMPO SADO-MASOQUISTA (PARA) OU PURAMENTE IMPRESSIONISTA PARA COM AS FORÇAS NATURAIS, EXEMPLO: O MAR, AS ROCHAS, OS PINTAINHOS, OS UNICÓRNIOS, AS SEREIAS. Pode reconhecer-se neste texto o forte espírito hedonista que move o grupo. A esse hedonismo não é alheio um grande sentido de humor, que vem questionar, entre outras coisas, o panorama artístico contemporâneo, como podemos ler na seguinte nota 109 : “DE ALGUNS MOVIMENTOS DE ARTE Conceptualismo – simulacro da ideia enquanto ideia, hospitalização neo- platónica de uma pseudo- epistemologia de raiz artística. Arte povera – snobismo do material enquanto materialismo snob. Minimalismo – anacronismo da industria como arte, asneiras da diferença enquanto escala, imbecilidade da repetição enquanto conteúdo. Land-Art – piqueniques para intelectuais pequeno-burgueses. Happeningues – saloiada.” “Educação Espartana” e “Continentes”, ambas realizadas em 1986, revelam, quer através do catálogo (a primeira), quer dos textos escritos a seu propósito, uma maior 108 Com os mesmos objectivos (divulgação e descentralização), terá sido efectuada, em 86, a exposição “Educação Espartana” no Centro de Artes Plásticas de Coimbra. 109 Texto 33 (Teoria homeostética, Anexos). 77 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 maturidade e intencionalidade teórica. “Educação Espartana”, cujo catálogo/ folheto anuncia esquematicamente os princípios teóricos do que venho a considerar a “Teoria Homeostética” (ver 3ª parte desta Tese), foi, na opinião de Fernando Brito, a primeira exposição neo-conceptual portuguesa, tendo passado inteiramente despercebida no meio artístico e na crítica. 4.2.1 Educação Espartana O PANFLETO MAOÍSTA consiste num texto que questiona o Valor da Arte e das suas práticas tradicionais (estilos e categorias), bem como as tendências que visam a sacralização da mesma 110 . Neste apelo ao insurgimento, não isento de alguma ironia, observamos os mecanismos da retórica, num discurso que relembra o tom e expressões marcantes dum período de euforia revolucionária: “A arte foi novamente invadida pela anemia da pintura. Os Gestos Canalhas repetem-se, a retórica nietzschiana corrompe os espíritos, e o pensamento vive a sua calma luxúria de Narciso em eutanásia prateada, roxa, convexa. A quem interessam as rosas vermelhas murchas? Morte à Pintura, coisa de vermes! A idolatria e os mecanismos que presidem à Pose Abstracta, são os inimigos das transutopias que o progresso homeostético determina. (para esses a nossa aguerrida brigada determinará as mais impiedosas perseguições, as mais lúbricas torturas, as mais crápulas execuções!) A arte hoje passa pela guerrilha, pela guerra ao mercado da arte e a exposição dos cadáveres de tais rançosos comerciantes na praça pública. (no Rato, na Chiado, no Rossio) para deleite estético dos enxames de moscas. Oh doces zumbidos junto ao venenoso aroma! Arte igual a Guerrilha igual a Povo – o artista é o verdadeiro gatilho da Revolução, e não a delicodoce metáfora (género “a minha caneta é um arado, o meu pincel é um canhão”). A nós o estrondo e as dissonâncias da vanguarda, a vertigem da dizimação do balofo 110 A propósito do estatuto do produto artístico, Cerveira Pinto refere (no texto do catálogo da exposição E depois do modernismo?) o papel das instituições e o tipo de consumidores como factores a considerar na problemática do Valor da obra de arte. Esta pode ser vista, quer como objecto mágico, quer como objecto de posse, distinguindo a que possui um valor padrão (passível de variação), da que possui um valor patrimonial (consagrado). No primeiro caso, a noção de obra de arte, pelo seu carácter abstracto e incálculavel pressupõe a posse e o poder; no segundo, despida do estatuto de mercadoria, adquire um valor metafísico caracterizado pela metáfora da posse limite, tornando-se simultaneamente objecto de culto e de rapina. Ainda assim, continua a considerar-se que a arte possui uma essência autónoma que a distingue dos restantes objectos de troca. 78 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 autómato que é o burguês, e o seu mais contraditório / característico representante: O Pintor! “ Da capa do panfleto da Exposição “Educação Espartana”, destacamos a imagem central, uma torre monolítica que representa Babel, um dos pilares da Teoria Homeostética. Segue-se a enunciação dos Princípios desta Teoria: ENVOLVIMENTO HOMEOSTÉTICO POST-PARODOXOLÓGICO INFRACRIPTOGRÁFICO E TRANSMENIPEICO MÉTIS KAIROS ENTHOUSIASMOUS 6=O O UNIVERSO É UM CUBO IN DOXA EST PARADOXA Mais tarde, Pedro Proença acrescentaria a Parahermenêutica. Na contra-capa do panfleto, muito ironicamente, apresentam-se dois gráficos: um com a previsão da “popularidade” (reconhecimento artístico) até ao ano 2000 para cada um dos elementos do grupo e outro onde são apontadas as influências que co-habitam em cada um dos artistas. E o que significa a designação “Educação Espartana” dentro da teoria homeostética? No texto 32 (Ex-cursões homeostéticas, 1986), em Anexos, podemos ler: Educação espartana – a flexibilidade e a força de uma disciplina! De uma guerra subtil a todos os artistas instalados no seu trabalho hipnótico, escasso, balofo, vivendo da indisposição para o Entousiasmo da arte. Por isso opomos o músculo, a vertigem diária de uma ginástica, o horizonte de um inimigo permanente, multiforme, qual monstro oriental que perpetuamente é atingido e que perpetuamente se transforma. Este músculo 79 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 nómada que constantemente funda (dá fundo), novo Alexandre devastando e infligindo uma marca duradoura às Ásias artísticas – novas capitais desta purgaturial muscularização. Este texto refere-se ainda à problemática do Estilo 111 , na sua relação com a Posteridade 112 . O estilo, para a homeostética, não é a interjeição domesticada por um código, mas o “polemos” entre a interjeição e os códigos (oposição entre a noção clássica de estilo e a homeostética). Sendo o processo criativo entendido como uma aventura, os erros (É fugindo que nos encontramos) e os equívocos são alguns dos principais “motores” quer da teoria, quer da prática deste grupo. 4.2.2 Continentes Assumida como um espectáculo de pintura, a exposição “Continentes” irá contrariar teoricamente o espírito da exposição anterior. Sendo a contradição e o paradoxo um dos pilares da prática e da teoria do grupo, esta atitude leva-me a crer que os acontecimentos artísticos são principalmente motivo para ensaio e encenações sobre a arte propriamente dita, respondendo ao que Lyotard chama de “jogos de linguagem”, sobre, ou a partir dos quais dificilmente se obterá o consenso. É também com base na paradoxologia e na incerteza que se justifica a ausência dum estilo homeostético 111 “ Se o estilo é essa excessiva proeminência das saliências e das pregnâncias então sou um idólatra do estilo, um praticante dos seus mistérios, um cultor dos seus segredos. Porém há que levar mais longe o estilo com a sua dissolução, acentuando ainda mais as suas convexidades e concavidades, aumentando o delírio das diferenças, retendo as guerras e os ímpetos. Esse estado explosivo e cruel é porém uma criatura minuciosa, apta às vezes para as mais espectaculares economias assim como para os faustosos dispêndios. Contra o estilo – contra os cultores monológicos, o empobrecimento, a redução ao mínimo. O estilo é positivo porque reduz ao máximo as interjeições. O estilo como o hábito é a pior das domesticações: há um tempo para o estilo, mas toda a perpetuação, toda a posteridade é um nojo. Só chegam à posteridade os estilos que a recusam.” 112 “ Se somos inevitavelmente proféticos, isso não resulta de um desejo de assentarmos nessa futuração: pistas são pistas e o que vem é sempre outro. Eis uma das razões para essa in-disposição do futuro. A nossa disponibilidade para o futuro é o ser contra a posteridade, isto é, o sabermos a radical não-posse que é o devir. Quem teme enfrentar os problemas modernos? Os artistas modernos nas suas luxuosas colmeias vivem a letargia do trabalho de abelhas que não conhecem a luz do dia, nem o pólen. Como não trabalham nesta uraniana paz a ruína das flores vai sendo inevitável. Detêmse hipnotizados pela compactidão do conforto. O homeostético sai para as clareiras, dorme ao 80 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Recorrendo novamente a Pedro Cavalheiro, vejamos a sua descrição da exposição “Continentes”: “(...) A sua apoteose foi em 1986, no grande Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa. Fecharam-se durante meses num pavilhão em Xabregas e cada um pintou um gigantesco painel em cinco módulos. Apareceram com um fato negro cada um, o uniforme homeostético, desenhado pela Inês Simões (...). A seguir dois dos homeostéticos desapareceram de Lisboa. O Xana foi viver para o Algarve, e o Fernando Brito, se não me engano, já era casado e já vivia em Santarém. Nesta exposição cada painel representava um Continente, e a exposição pretendia significar o Planeta Terra. O Pedro Portugal ficou com os Pólos, o Xana com a Oceânia, o Brito com a América, o Ivo com a África, o Pedro Proença com a Ásia e ao Manuel João coube a Europa!. (...) Tenho sobre a minha mesa uma pequena colecção de velhos catálogos das exposições que esta gente fez durante estas duas décadas (...) O mais vistoso é sem dúvida, o da V Exposição Homeostética, a tal dos Continentes com a fotografia desta rapaziada toda ainda na flor da idade, com a capa verde e vermelha, as cores da República Portuguesa e o bizarro logotipo de Portugal com a esfera armilar transformada em quadrado... a quadratura do círculo!” Por opção do grupo, no catálogo da exposição, não existe qualquer texto, excepto uma curta dedicatória a Ernesto de Sousa, conforme referi no 2º capítulo. No entanto, a propósito da exposição e justificando o seu título, Pedro Proença escreveu um texto que passo a citar: Projecto para texto sobre os CONTINENTES O incessante fim da arte Ou Os incessantes fins das artes Ou A arte dos incessantes fins (antes de nós – antes do “Isso”) Nos oceanos da tradução subsistiam em ilhas, estabeleciam-se em litorais, dedicavam-se com um calor autofágico aos luxos de um arquipélago, aos diversos turismos metafísicos. Resistiam aos imperialismos continentais. Outros, de traseiros olhos, babavam-se em arqueologias sem ruínas. A busca interminável dos eternos fundamentos. Ou uma pessoalização abstracta. relento, constrói pequenos abrigos – não teme a doença, a fome, as catástrofes, porque kairos o 81 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 (qualquer coisa) Entretanto o Novo desaparecia, enamorado da sua própria história, numa rude anarquia de especularidades. Os artistas entregavam-se a simulações onânicas em magníficas performances. Os proclamadores do êxtase apocalíptico estavam satisfeitos. (princípio do Nirvana?) A obra de arte, impotente perante os declínios do sentido e da verdade ( e seus derivados), busca saídas em corredores esfíngicos de postiços enigmas. Dramatizava-se o apagamento do sentido recorrendo a cenários tecnológicos, a memórias esquizificadas, a instintos aleatórios. (having babys) Categorias liquidas, disseminação dos cultos da diferença e da indiferença. Sentíamo-nos alegremente condenados às vertigens risomáticas, a um simular desfrutante, a um inumerável apetite. (estradas, excessos e palácios) A terra tinha tremido e voltava a tremer. Olhávamos de lado para as dis-posições fractais. A terra, as plutónicas entranhas, não queriam mostrar mais tesouros. Talvez se reservasse a um octoniano pudor. Talvez tudo se tivesse dissipado. Havia também o esférico ser na sua suspensão brilhante. Num sus-pendiamento. No meteoro de pensar / pender onde não há crueldade ou sofrimento, mas apenas brilho. (the love of doxa and paradoxa) Crianças post-paradoxais, instintos trans-menipeicos, teatros infra-criptográficos. Contingências sigilares. Ou um desejo cruel, frenético, exigente de ornamentar com amáveis paraísos o vazio. (Continentes) Porque sim. Este texto resume assim o “esforço de guerra” (atleó) que a homeostética pretendeu travar contra um período de descrença na própria arte, cuja erosão era levada a cabo pelas atitudes autofágicas e teorias apocalípticas, conduzindo-a a um negativismo conduz.” 82 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 gerador de hesitações e indeterminações conceptuais, como procurei mostrar no 2º capítulo. 4.3 As Opiniões da Crítica Por ser a única das exposições homeostéticas, que recebeu os comentários da crítica, enuncio seguidamente os aspectos que me parecem dignos de destaque. Para João Pinharanda, 113 o meio de afirmação dos mais decisivos trabalhos do grupo é a atitude de irreverência paródica e a capacidade de lidar com o absurdo: “parodiar do ponto de vista conceptual certas seriedades de atitude e criação de gerações próximas, sem deixar de assumir também uma vigorosa procura de efeitos e afirmação estéticas”. José Luis Porfírio 114 , com o título “Coisas novas para ver”, parece estar a fazer publicidade a um produto, ou não utilizasse ironicamente a palavra “promoção”, quando se refere à disputa “Arquipélagos” vs “Continentes” (“Com esta quinta exposição, o grupo “homeostético”, surgido publicamente com duas exposições na ESBAL em 1983, atinge e ocupa o grande Salão da SNBA, isto, um ano depois de outro grupo da mesma geração, mas de uma “promoção” anterior, o ter feito com a exposição “Arquipélago”). Destaca o “grandíssimo” formato das pinturas (aspecto focado por todos os críticos), pois que para os homeostéticos se tratou de fazer, entre outras coisas, as maiores pinturas da história da arte portuguesa (10mx2.5m). Porfírio prossegue com comentários ao desempenho de cada artista. Em Fernando Brito (América) sublinha a capacidade compositiva; no trabalho de Pedro Proença (Ásia) vê o predomínio do “gozar” sobre o pintar; em Manuel Vieira (Europa) destaca “a narração e a ironia bem como o “kitsch” da execução à figuração”. A única “pinturapintura” é, para Porfírio, a de Ivo (África): “não que não nos surjam as citações necessárias para situar o continente, mas o pleno apelo da pintura é mais forte que 113 João Pinharanda, «”CONTINENTES”: Pedro Proença, Pedro Portugal, Xana, Manuel Vieira; Ivo, Fernando Brito». In: Jornal de Letras, Artes e Ideias – 27 Outubro 1986, pág. 21. 114 José Luís Porfírio “COISAS NOVAS PARA VER”, in: Revista Expresso – 1 Novembro 1986, pág. 42. 83 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 qualquer necessidade paródica ou figurativa”. Pedro Portugal, com Pólos, terá realizado uma grande “estrutura decorativa” cujas dominantes horizontais dão a Porfírio a sensação de passar por um “corredor”. A Oceania de Xana, com os seus “vestígios de salvados”, e a “secretária Continental” de Filipe Alarcão são, para este crítico, os objectos que no vasto espaço do Salão representam, um, a fragilidade dum propósito, e o outro, uma “espécie de rochedo” com um grande “acerto poético”. Porfírio refere ainda os apoios e patrocínios, que representam um “sinal seguro de mudança de tempos e de vontades públicas e privadas” e que permitiram a realização duma exposição “que é um excelente exemplo de desafio e de resposta deste grupo para consigo mesmo”. Recorrendo directamente ao discurso dos artistas, Alexandre Melo 115 capta as intenções do grupo: com esta exposição pretendem restaurar a virilidade da arte portuguesa. Por outro lado, “Continentes” surge como contraponto à exposição “Arquipélagos”, a qual para os homeostéticos apenas traduz “uma consequência teórica das “Atitudes Litorais”, inserindo-se na vaga pós-moderna do “cada um cultiva o seu jardim”. O resultado é uma insularidade crescente acompanhada de práticas autofágicas e de uma obsessão pela morte. Pelo contrário, a continentalidade é um processo progressivo de interacção em que a permanente superação se acelera pelo entusiasmo colectivo. Sendo assim, A. Melo adianta a sua própria interpretação. Para ele, o «possível ponto de clivagem entre estes artistas e alguns dos seus mais próximos antecessores será talvez uma posição diferente em relação à importância da reflexão e do pensamento não apenas sobre a obra, mas na própria obra. Isto é, tratar-se-ia, aqui, da recusa liminar de admitir a obre de arte como lugar de problematização de questões filosóficas, sociais ou outras. Uma abdicação teórica que perpassa em observações mais ou menos provocatórias como sejam “todas as pinturas são uma fraude”, “sinto-me um idiota taoista que contempla a pintura que surge para num instante a esquecer”. Para lá do lado anedótico desta absurda pseudo-abdicação 115 Alexandre Melo, “AS SEIS PARTIDAS DO MUNDO”, in: Revista Expresso, 1 de Novembro 1986, pág. 43. 84 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 teórica, que os homeostéticos cultivam como efeito de estilo e modalidade de “charme”, articulando assim a estratégia promocional que entendem mais adequada, importa entender o que ela revela como característica profunda da situação cultural contemporânea: uma disponibilidade infinita e instantânea relativamente a todas as referências, que tendem a tornar-se universalmente equivalentes, abandonadas que foram pelo pensamento contemporâneo todas as regras fixas da sua selecção e hierarquização. Fossem estas regras de natureza ideológica, estética ou mesmo pulsional (...). Dada esta situação, a alternativa é entre uma dinâmica re-teorizadora, que tenderá a recuperar perspectivas minimalistas e conceptuais, e um conjunto de sentido oposto em que se recenseia a euforia citacionista, o eclectismo e o sincretismo sem limites, a adesão naïf aos imaginários ficcionais, oníricos, infantis, sob as diferentes formas em que os podemos encontrar em Basquiat, Combas, Kunk ou Salvo, para dar exemplos muito díspares. Desde logo, a própria ideia da exposição pode ser vista como uma metáfora de uma intenção suprema que seria a de poder convocar e fazer interagir numa mesma e única exposição tudo o que há no mundo e tudo o que há na arte (...)». Ao intitular o seu artigo “ Do juízo pós-final”, Porfírio Alves Pires dá ao “pós” um sentido múltiplo: não só o relaciona com a iconografia de algumas obras e com a montagem propriamente dita, mas atribui-lhe também “o sentimento que a actualidade possui em relação ao passado próximo, sentimento de dependência e desejada libertação, que colocam o presente numa relação dialéctica de sujeição/recusa com a herança histórica sócio-artística de anteontem”, sendo este o sentido que observa no conjunto e em cada uma das obras presentes. Haverá um estilo homeostético? Em que medida é que o trabalho deste grupo difere do de outros grupos seus contemporâneos? 85 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Emídio Rosa de Oliveira 116 vem defender a necessidade de começar a estabelecer “uma cartografia da sensibilidade” dos “grupos” que, nos anos 80, se têm vindo a manifestar no panorama das artes plásticas portuguesas: “estes grupos não se alinham academicamente numa tendência, nem são uma escola, mas antes um agregado movido por um polémico e irónico desejo de se afirmar e de desbravar caminho, minando por dentro através duma sensibilidade larvar o paradigma pictórico que tem vigorado e comandado o “fazer artístico” nas artes plásticas”. O estudo que é necessário realizar “não poderá confinar-se ao estilo “soft” jornalístico corrido de uma certa crítica e ser acompanhado por uma investigação com o apoio das instituições e galerias que poderão providenciar com os meios necessários, para que possa ser levada a cabo uma reflexão que tenha em conta, não só a produção de estudos monográficos, como a elaboração de critérios estéticos e do enquadramento das novas tendências do contexto internacional”. 116 Emídio Rosa de Oliveira: A 5ª EXPOSIÇÃO HOMEOSTÉTICA, Semanário, 8 de Novembro de 1986, pag.35 86 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 5 - Os Manifestos Homeostéticos Os Manifestos propriamente ditos são entendidos como "pequenos romances sobre o que se passa à volta" e deverão ser classificados como "bases de trabalho" provenientes duma vivência comunitária - "Não eram tanto manifestos para o exterior, mas para consumo interno. Quando uma pessoa faz um Manifesto, há uma necessidade de mudarmos qualquer coisa e isso são afirmações que fazem tornar (essa intenção) mais real e efectiva." 117 Entre 1982 e 1989, surgiram os seguintes Manifestos 118 : PROCLAMAÇÃO NEO-CANIBAL (P. Proença, 1982) MANIFESTO HOMEOSTÉTICO (P. Proença, 1983) MANIFESTO (M. Vieira, 1983) MANIFESTOS (PARA USO PESSOAL) (P. Proença, 1985) SEGUNDO MANIFESTO PARA IMPESSOALÍSSIMOS ABUSOS (P. Proença, 1985) FRAGMENTOS DE UNS MANIFESTOS JAMAIS PROJECTADOS (P. Proença, 1985) MANIFESTO PARA A VEGETARIANIZAÇÃO Proença, 1985) MANIFESTO F.B. (F. Brito, 1985) MANIFESTO SOBRE O ESTADO DA NAÇÃO (P. Proença, 1985) CULTURA NACIONAL a bem ou a mal da nação (P. Proença, 1985) ÚLTIMO MANIFESTO (P. Proença, 1988) MARMÓREO ODEON OU MAIS UM MANIFESTO PÓSTUMO DANDO CONTA DE VELHAS PREOCUPAÇÕES (P. Proença, 1989) DO PENSAMENTO (P. Da leitura e análise dos Manifestos foram apurados os seguintes aspectos: 1. CARACTERIZAÇÃO E IDENTIDADE 117 118 Entrevista com Pedro Proença (Anexos). Em Anexos. 87 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 2. “ART WORLD” 3. REFLEXÃO SOBRE A NACIONALIDADE 4. PROJECTO /INTENÇÕES 5.1 Caracterização / Identidade O que é um homeostético? pergunta absurda cheia de táxis, caviar, livros de bolso e arsénico. Esta procura de uma definição encontrará resposta entre a ironia, o non-sense e a paródia: para ser homeostético, basta o rótulo; no entanto aquele é "um animal" sábio e consciente do seu génio. Nesta inversão de sentido, poderemos intuir uma ironia relativamente a noções como a do génio, ou a da auto-glorificação, ou a da sacralização do artista? Interrogando-se acerca da sua "missão" ("seremos nós os assumidores e eternos defensores desta causa que é a poesia hábil, bem feita e prometaica?") afirmam ser pessoas banais oscilando entre a exaltação e o sofá, vulcânicos ao amanhecer mas à noite ficamos quietinhos fumando narguilé e bebendo uns vinhos... . Em 85 (in Cultura nacional), interrogam-se acerca da sua identidade geracional: - o que é que os homeostéticos têm de semelhante? Será que podemos falar duma geração com práticas e valores partilhados? Nós que fizemos a adolescência com um simulacro de revolução às costas? A revolução de 74 não terá deixado de impressionar e de estar na origem da ideia da Utopia e na persistência dos mitos nacionais, quer para serem parodizados, quer para serem desconstruídos. A própria ideia de Comunidade poderá considerar-se uma consequência das utopias que abundaram durante os anos em que a revolução se fez sentir. Proença terá dito que a utopia homeostética era verde, ligada a um ideário ecologista e às vivências da infância num mundo rural já inexistente. É essa nostalgia do paraíso, constituindo uma espécie de paisagem psicanalítica, que virá, ainda que subterrânea, a revelar-se nos princípios homeostéticos. Em meados dos anos 80 começa a assistir-se a uma viragem, que culminaria com a subida ao poder do governo de Cavaco Silva. Os manifestos homeostéticos 88 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 conseguem filtrar e registar, com uma ironia quase tocando a sátira, as modificações no comportamento social e mundano do meio cultural e artístico. No confronto com uma sociedade em mudança, parodia-se evocando ou reutilizando novos conceitos em voga (cibernético, pos-modernismo, sida) - "Em que se está a transformar o homeostético? Num homossexual cibernético? Ou recaiu ele (tal como tudo) num banalizado produto da indústria contemporânea? O drama do homeostético é o drama da Santidade: como permanecer puro nesta opereta pós-moderna cheia de sexo higienizado? (in: Manifesto sobre o estado da nação). Ainda neste manifesto, o homeostético define-se como um “teórico em diáspora”, um “dogmático paradoxologista”, “um estado novista ridículo” e “um orientalista depravado". Com efeito, poderá dizer-se que todas as infâncias foram passadas sob o ainda governo Marcelista e que de algum modo, quer a revolução (cujos reflexos se podem ainda sentir nas palavras de ordem e expressões utilizadas nos manifestos), quer as colónias com o seu potencial exotismo constituíram referências e influenciaram os universos individuais. Fomos educados dentro dos ternos cânones de um colonialismo simpático, de uma pátria ultramarina com as suas províncias e rios que cuidadosamente decorámos. O nosso Salazar era um velho ridículo com voz tremida e os presidentes da república cortavam fitas para os telejornais. Colonialismo de que somos culpados, sim senhor, mas que decidimos esquecer, entregues os territórios aos revolucionários indígenas, às suas guerras civis e consequente ruína económica. O Mea Culpa não basta! Alguns de nós nasceram nesses PALOPs (que designação mais neo-colonialista!) ou por lá andaram. A diáspora portuguesa foi naïf e evangélica. Nós não somos naïfs nem evangélicos. Somos mentalmente retornados e espoliados, e no entanto sem nenhuma vontade de voltar atrás nem com lágrimas de saudade. Somos retornados como todos os portugueses, mesmo sem o saberem, o são. Como Ulisses, regressamos sem glória à amada pátria, onde alguns cães nos reconhecem. Esse retorno, esse Nostos, é o retorno a partir do qual já não é possível retornar, como dizia Kafka. E uma fatal diáspora habita-nos definitivamente. Essa diáspora é o mundo em fragmentos, e são esses fragmentos que voltam a escrever o mundo, quase viram contra a noite e o ressentimento. (In:LES ANIMACULES HOMEOSTÉTIQUES) 89 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Os mitos e as ficções homeostéticas andam à volta destes fantasmas: a nostalgia duma ruralização em vias de desaparecimento, a ambiguidade entre a marcação do território e o nomadismo cultural. O “estado novista ridículo” constituirá assunto para uma grande parte das paródias homeostéticas, desde o mito do 5º império aos colonialismos e suas atmosferas. “Pode-se no máximo falar de uma paródia das nossas instruções primárias e dos quintos imperialismos que vão do saloio saudosismo às megalomanias místicas de Fernando Pessoa.” (In:LES ANIMACULES HOMEOSTÉTIQUES) Trata-se da recuperação de assuntos que dominaram as preocupações do antigo regime e que aparecem escarnecidos, com um humor por vezes maldoso, em alguns trabalhos, tais como: as curtíssimas metragens "Sangue no Congo" ou a "A revolta dos pretos"; o projecto “5º império” e a “teoria do ângulo recto”; a designação "neo posmodernismo colonial", onde Fernando Brito interpretou de forma delirante, mas codificada, a ideia do"pensamento vegetariano". Em Proença, o "orientalismo" é mais que evidente, quer nos desenhos, quer na pintura. A associação nacionalismo/orientalismo tem sido o drama/paixão portuguesa desde o século XVII, representado no mito quinto imperialista do Padre António Vieira ou em Fernando Pessoa. Dogmático paradoxologista, pois que um dos pilares teóricos da homeostética é a post-paradoxologia 119 . Em tom provocatório, o manifesto acaba com mais um definição relativamente à atitude do homeostético: " Há os que gostam de passar ao lado das Utopias, os que as gostam de roçar e os (h)eternos insatisfeitos. O homeostético, pelo contrário, é um perpétuo satisfeito que finge buscar a harmonia como quem faz ginástica de manutenção. DEPOIS VÊM OS CRITICOS FAZER FICÇÃO TELENOVELEIRAMENTE". 119 Desenvolvimento no sub-capítulo 7.1. 90 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 O discurso sobre o grupo manifesta-se de três maneiras, ou aparece claramente virado para um possível leitor, onde o homeostético se afirma com alguma provocação: fechados numa fraternidade central, num espaço e tempo construído e desconstruído para habitarmos e transgredirmos, organizando desorganizando, mais ou menos exibicionisticamente (...) O caos existe no meio destas coisas... uma confusão activa e não actuante (...)" (1º Manifesto Homeostético, P.P., 1983). Já em 85, o leitor é incorporado nas dúvidas do grupo, fazendo-o partilhar das hipotéticas respostas. Em 88, pelo contrário, as declarações parecem ser de natureza defensiva, e o homeostético parece sentir-se obrigado a esclarecer, talvez em resposta a pressões ou intrigas (?): “Nós ainda não estamos fartos (...) queremos ser heróicos, mas se calhar ficar em casa, agarrados aos sofás, mornos, colados à televisão, adormecendo com uma rapariga ao lado, fartos do esplendor quotidiano. (...) Não, não temos espírito de revolta, nem nunca tivemos (...) A nossa moral podia ter sido "tanto faz" mas não foi. (...) Não queríamos, nem queremos ser sérios". Proença compara o sentido de comunidade existente na homeostética ao espírito de grupo dos surrealistas, sobre o qual Breton declarou na "Plataforma de Praga: "O surrealismo nasceu de uma afirmação ilimitada no génio da juventude. Só o homem que ainda não está confortavelmente instalado no mundo é capaz de assumir os riscos da criação e da revolta (...) No aspecto da colectivização de ideias que permanece uma das nossas preocupações específicas, o maior impulso será dado no surrealismo às actividades lúdicas e experimentais (...) animando a vida dos grupos, exaltando a amizade integrada, na reciprocidade da descoberta, elas estabelecem em cada um dos espíritos um estado de intersubjectividade onde soam harmoniosamente os factos gerais-actuais e os da história individual" 120 . Se exceptuarmos o discurso orientador e doutrinal de Breton, podemos encontrar algum paralelismo entre este texto e o Último Manifesto homeostético. As condições históricas e culturais são outras e, se bem que a intervenção homeostética se tenha pautado por um discurso de irrisão relativamente ao "drama" que envolve as 120 Cesariny, Mário: Textos de afirmação e combate do surrealismo mundial, Perspectivas e Realidades, Lisboa Nov. 1977, p. 241. Editora 91 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 discussões e as posturas teóricas e artísticas desde as últimas duas décadas, a sua actuação não foi de revolução, mas de implosão e de explosão. Implosão num espaço onde as pessoas se exerciam em liberdade, até para se “canibalizarem”. Para Proença, a ideia era construir um "lugar", onde se partilhassem espaço, trabalho e ideias. A explosão manifestava-se na produção delirante, de carácter absurdo e grotesco, onde só podiam penetrar os condicionalismos exteriores enquanto alvos de paródia e de deformação. Reflexões que interrogam a identidade homeostética e que parecem evidenciar uma uma reflexão interna (crise!?) aparecem em 85, no Manifesto para uso pessoal, e em 88, no Último Manifesto. São marcas dum percurso e através delas se vai entendendo um caminho paralelo, que é o da conquista de um lugar no reconhecimento artístico e respectiva legitimação individual. O Manifesto de 85 poderá reflectir também, duma forma quase autobiográfica, o percurso de P. Proença e as suas dúvidas relativamente a uma postura colectiva ou a um percurso individual como artista de carreira. No discurso enigmático, mais uma vez é necessário perscrutar sentidos, críticas, pressões invisíveis. Trata-se também do conflito entre os ideais e a profissionalização; da passagem da adolescência para o estatuto de adulto; das experiências para os produtos abalizados e vendáveis, onde o produto é tanto a obra quanto o seu autor. No seu conjunto, este grupo de artistas terá sido o mais jovem a profissionalizar-se e a ser legitimado. O "art world" espera-os cá fora, adultos, seguros, credíveis, prontos para consumo: " O heroísmo moldado a plasticina, e vendido (Deus o sabe!) ao Diabo, não nos autorizava sequer a sermos rascas, ou canalhas, ou malditos, ou cantores de Fado. O desprezo abateu-se sobre nós, e em vez de sairmos para a rua, ficámos em casa, no mais terrível abandono". A frase seguinte coloca em dúvida o percurso efectuado pelo grupo: "A estrada dos excessos que, por engano, conduzia ao Palácio da Sabedoria conduziu-nos ao Palácio das Gargalhadas estúpidas... Considerou-se que se tinha seguido a estratégia errada, e que tínhamos de encontrar uma mais conforme aos nossos virtuosos e nobres propósitos... Propõem-se estratégias: Fez-se 92 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 espionagem, e descobriu-se que a arma secreta dos nossos rivais era a Intiligência. Ficámos parvos. Tanta palhaçada para nada. A nossa adaptação à intiligência foi dolorosa, mas com resultados desiguais. Talvez tenhamos ficado a meio caminho, o que já não é mau". Proença manifesta assim com crueza o despique protagonizado no meio artístico entre a Homeostética e o grupo de Cabrita Reis, onde não havia lugar para paródias ou derisões. As pressões? : "Estávamos a ser usados pela sociedade pluralista e capitalista como carne para canhão (...) um certo espírito naïf e adolescentino persistia (...) Acabou-se o heroísmo, mas nada de resignações! Avante camaradas! Avante". Esta última frase pressupõe uma mudança de posicionamento? Efectivamente, os manifestos seguintes irão referir-se com mais frequência à teoria / doutrina homeostética, e o ano seguinte será também o das exposições mais significativas: "Educação Espartana" e "Continentes". Em 88, dois anos depois da exposição "Continentes", e com o grupo em dissolução, Proença traduz a situação do jovem artista que já se afirmou, mas a quem a "gloriazinha" parece algo sem sabor: "Há idades para tudo, uma para revoltas, pastilhas elásticas e chupa-chupas e outras para não ir a sítio nenhum e tratar da carreira (como deve ser?) (...) Será que nos institucionalizaram? É muito provável (bis). Será que o queríamos? É mais que provável (uh!) Pobres contestatários da nossa inércia piedosa ... Nenhum de nós quis partir a loiça ou os dentes ou dar simplesmente caneladas por debaixo da mesa ... Ora porra até certa medida triunfámos ... Mas a glória é uma chachada ... A glória deve ser uma enorme chatice, um aborrecimento, uma vida a prestações, algo parecido com o absolutamente nada (...) Se calhar ainda não começámos a ser verdadeiros homeostéticos, andamos atrelados à nossa ironia, e (como é óbvio) cada vez mais individualistas, fechados cada um na sua gaiola (...) A nossa moral podia ter sido “tanto faz", mas não foi". 5.2 “Art World” A escrita destinada à elucidação e compreensão é uma elaborada fraude porque pretende explicar uma quimera. Marmoreo Odeon 93 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 O grande alvo da homeostética são os críticos de arte, mas também os estetas e os que dum modo geral escrevem sobre arte. "Os mistérios são o miopismo do pensamento que não dá passos nem para a frente nem para trás. As farsas espirituais não têm lugar no meu cabide. A profundidade é encontrada à força de tiques e suspiros..." Dos primeiros, dizem que fazem ficção telenoveleiramente: "Os especializados consideravam do seu ângulo agudo que o único criticismo era olhar para os umbigos". No manifesto "Um labrego em Nova Iorque", Manuel Vieira escreveu um enigmático e surrealizante texto, onde evidencia ironicamente os mecanismos / critérios / valores de apreciação da obra de "art" e a sua desarticulação com o público: ... mas para quê desvendar a boa obra (de art) se tal coisa é desventurosa (ou mesmo) só aconselhada aos consagrados poetas (os eternos)... A ideia do espelho aparece com frequência nos escritos de Vieira - Cada obra deverá ser para o estimado indivíduo público um espelho de Alice – e, tendo tomado este facto como uma referência importante, questionei-o sobre isto. Respondeu-me que, tal como no espelho de Alice (Lewis Carrol), era necessário "cair" para dentro da obra para a compreender, querendo com isto dizer, o "deixar-se envolver", característica da recepção afectiva e também do “enthousiasmous”. A opinião sobre o sistema legitimador fica bem patenteada nesta frase: "Quando mandarmos lá na nossa terra serão queimados na fogueira: os pessimistas, os totalitaristas, os legitimistas e tudo quanto contradiz o sentido no humor e busque no estável estabilidade" (in:Manifesto p. impessoalíssimos abusos"). 94 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Os "marchands" e as instituições são também satirizados. No Último Manifesto são particularmente violentas as alusões ao "Art World": Pois é: há uma grande dissolução por aí, e os caniches passeiam-se acompanhados dos respectivos galeristas nas exposições e mijam o soalho e isto cheira mal (...) porque senão os senhores comentadores desportivos da actualidade artística vêm aí, arreganham os dentes e não estão para aturar brincadeiras adolescentes (...)Entretanto veio a máquina dos risos, triunfal com o seu ar vitalício e académico meus senhores e minhas senhoras há quem diga que vamos ficar por aí (...) Os senhores dos Ministérios vêm visitar-nos para ver os nossos quadrinhos. Somos seres ardentes e sociais (...) Uma magnífica postura. – Ó sr. Manuel Vieira veja lá faça qualquer coisinha com um ar mais apresentável, seja displiscente! Ora porra queremos aplaudi-lo! Trabalhe, seja honesto, mude um bocadinho, nós até queremos ser os seus sensatos admiradores – grita um sem número de vozinhas ao fundo da sala (...) Os críticos marxistas transatlânticos devem pensar que somos macacos para entreter esta post-sociedade com mais um ingénuo e deplorável espectáculo / "entertainers" num vazio com uma plateia de marionetes (...) Estamos fartos da pornografia, de infantilismo, da provocação que já não provoca nada, das feiras cheias de arte conceptual, dos truques maquiavélicos de promoção, de toda esta prostituição social sem contrapartidas". As referências pouco apreciativas e paródicas a uma post-modernidade e a uma vida artística e mundana serão satirizadas em diversos poemas homeostéticos, tais como "DOIS POEMAS AUTOUR DE LA CRITIQUE", do qual transcrevo um excerto: Algo me folheia, me toca nos orifícios e faz de mim uma publicação! As Flash- Arts afinam os meus vícios, os nomes dos críticos são indícios de que os encontrarei num bar em Sevilha ou num Kunsthal da Germania. Nada. Nada mais que nada. Imperativo de artista Não é apenas o hálito incongruente da revista Mas o abraço meloso do marchand E o anúncio do meu nome numa galeria de Amesterdã (...) Será que tudo na arte é banalização? Uma formalização fácil de alguma importação ? O figurino das revistas com ligeira alteração ?" 95 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 5.3 Reflexão sobre a nacionalidade Na "Proclamação Neo-Canibal" analisa-se a situação sociológica do País e da cultura nacional, dizendo-se que partimos duma situação de penúria económica que participa na legitimação de modelos culturais importados mal aprofundados. Na arte, o amadorismo é generalizado e a falta de entusiasmo é factor de manifesta baixa produção artística. A persistência do mito romântico ou a procura da originalidade a todo o custo, bem como a dificuldade em admitir influências, são também apontadas como motivos de estagnação. No manifesto " Cultura Nacional" afirma-se que a questão da homeostética está em rever o corpo das insignificantes mitologias nacionais como qualquer coisa susceptível de se perpetuar e pergunta-se: "Que universalidades se podem constituir dentro deste território limitado em que vagamos? Teremos um corpo comum? Teremos uma identidade do não idêntico?”. Neste manifesto procura caracterizar-se o espaço português 121 , situando-o entre o primeiro e terceiro mundo, entre a Idade Média e a revolução informática, entre uma moralidade romano-cristã e outra anglo-capitalista. Numa sátira divertida à vida mundana de Lisboa, compara-se o lisboeta a um "labrego em Nova Iorque", dividido entre a moralidade e o mundanismo, e descrevem-se as contradições e os dilemas que se deparam a um intelectual da classe média. Pedantismo é a atitude dos que consomem e aborvem sem digestão os produtos do vulgo "imperialismo cultural". 121 Questionando a identidade nacional, que Idalina Conde (“Portugal, que modernidade? Contextos, culturas, Identidades”) designa por “Portugal plural”, observam-se múltiplas identidades: grupos, contextos, territórios imaginários, com diversas proveniências espácio-temporais. Portugal no enclave de fluxos. Quer fluxos no sistema-mundo, quer do exterior para o interior (retornados, refugiados das ex-colónias...) e ainda a emigração interna (no movimento do interior para o litoral); o processo de dupla mobilidade geográfica e social, em ciclos geracionais ascendentes: do campesinato para o operariado, do operariado para as pequenas burguesias urbanas ... Surgem assim as “micro-pátrias” (Rocha Trindade, 1987) pontuando o país como lugares de saudade... Por sua vez, Maria Irene Ramalho de Sousa Santos (Portugal, um retrato singular, pp. 94 a 99), num ensaio intitulado “ A poesia e o sistema mundial”, coloca a questão da “semiperiferia”, apresentando esta noção através dos conceitos: “desenvolvimento intermédio”, “descoincidência articulada”, “funções de intermediação” e “correia de transmissão”. Esta autora cria um paralelismo entre a função de ligação da poesia e a função de transmissão/mediação de Portugal, caracterizando o papel histórico do nosso país sob o signo de Hermes. Fernando Pessoa terá sido quem melhor identificou a especificidade nacional. De excertos do seu “Fragmento para um projectado manifesto” colhemos algumas das propostas que apresenta para caracterizar a identidade portuguesa: “absorção artística”, “misticismo”, “repaganização”, “sensacionismo” e “interseccionismo”. 96 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Mas, apesar de tudo, o português sempre foi bafejado por um "visionarismo" que enforma as grandes obras, as grandes epopeias. Ambição infatigável é o que move, tanto o português que faz a história como o homeostético, pois "sem ambições qualquer disciplina fica adiada". O poliformismo da sociedade portuguesa resulta dum entrelaçamento do espaço nacional com o “sistema mundo” que a entrada na CEE veio triangular: identidades local, nacional e europeia. Nas exigências de uma colocação estratégica face à Europa, os discursos políticos recorrem à identidade e ao imaginário, alimentando toda a carga mítico-ideológica sobre a nacionalidade, a insularidade, a periferia ou regiões de “ultraperiferia” portuguesa. Assiste-se à passagem de uma “hiperidentidade”, durante a ditadura, para uma “hipo-identidade”, que por excesso de referências tende a um desenraízamento. Face aos confrontos e incertezas trazidos pela modernização, a característica dos discursos intelectuais sobre o “ser” e o futuro do “ser português” torna-se, ora jubilatória, ora lamentativa. Os estereótipos mantêm as mitomanias nacionais: Portugal, país turístico, cheio de emblemas e glórias do passado. Partir de nós, da nossa portugalidade, o que inclui os nossos mitos e realidades, é um dos objectivos da homeostética. Admite por isso a influência de modelos e artistas nacionais, tais como Ângelo de Sousa em Proença ou em Xana; Dacosta em Manuel Vieira; o modernismo e o "estado novo" em Fernando Brito. Pedro Portugal é um caso paradigmático de incorporações. Ivo pautava-se pelo neo-expressionismo. Os modelos provenientes do exterior também eram considerados numa prática que se caracteriza muito justamente pela "canibalização". Mais do que a nacionalidade, é a paródia a um certo de tipo de discurso de poder que é patenteada no Manifesto Fernando Brito. Teocracia despoticamente esclarecida, ou antevisão do período Cavaquista? Para lá do discurso incomodativamente demagógico, onde se relativiza a posição, quer das vanguardas, quer das elites, reduzindo-as à mesma actuação, ressalvo uma palavra que situa um projecto em curso: "Budonga". O que é Budonga senão uma anedota que terá 97 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 desencadeado um romance e um universo dentro da categoria dos mitos homeostéticos? Neste universo confunde-se a ficção com a realidade através da invenção de personagens que passam a existir nas conversas do dia- -a-dia. "Budonga" é um pretexto para a desenvoltura do grupo se manifestar em diversos suportes e linguagens: na versão de Proença, é um romance para o qual foram escritas sete entradas, sendo este o início de uma delas: "Entrara em mim uma ascética doçura. Toda ela se reflectia no pestanejar bovino da minha amante. Ela gostava de ter a família por perto; nos armários, nas gavetas, na carteira. A família amava a minha fortuna. Eu gostava da minha amante de uma forma enciclopédica. Ela era um livro fechado para a vida que eu vivia, era um animal de estante, pesado e cheio de imagens pequenas. Os seus beijos eram deliciosas definições salpicadas aqui e ali de concisas histórias e de pitorescas citações. Tinha por ela um culto fotográfico. Distraía-me desta vida de hotel, deste nomadismo de hotel para hotel entre orquídeas e fardos de palha". Entretanto, Fernando Brito desenvolvia a ideia duma cidade monumental para a qual realizou inúmeros desenhos e maqueta, que veio a destruir mais tarde numa imensa fogueira. Nela se realizavam as figuras da arquitectura homeostética ou os clichés da construção monumental: arcos triunfais, pontes suspensas, obeliscos, pirâmides, estádios olímpicos, faróis. Pedro Portugal filmou várias versões da chegada do arquitecto Luís Mendonça (personagem homeostético) a Budonga. Para Pedro Portugal, Budonga é uma metáfora que representa o entusiasmo, a ambição e a desilusão face à impossibilidade de se construir o projecto Homeostético. É também a metáfora do mito do 5º império. "Budonga", "Cidade Nova", "Palácio da Sabedoria" constituem metáforas duma mesma utopia. Durante a subida duma enorme duna atrás da qual se esconde a cidade, Luís Mendonça morre sem chegar sequer a avistar Budonga. 5.4 Projecto e Intenções Em 83, no "Manifesto" (Manuel Vieira), conforme vimos, a homeostética enuncia a intenção de contribuir para a revitalização do campo artístico e de uma sociedade que se lhes afigura estagnada e sem perspectivas. Um dos seus propósitos consiste na 98 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 relação da obra com o fruidor: "Pretendemos com a embriaguez 122 do nosso lúcido discurso comprometer irremediavelmente a alma impura do vulgar observador de art e a condescendência do Povo (sentimento artístico animal)”. Outro dos propósitos consiste na pluridisciplinaridade: "Vamos carpinteirar frases eternas, tecer hinos, epopeias, catecismos" ("Manifesto para impessoalissimos abusos" -1985). Aqui se enunciam as suas diversas áreas de intervenção: a poesia, a música, a ficção e a teoria estética. A pintura, o desenho, ou as outras práticas de natureza plástica são por demais óbvias. A frase" O grande ornato é a irrupção do ausente. Deixem as portas abertas para o pródigo entrar" refer-se a uma arte ornamental e exuberantemente decorativa, característica sobretudo dos trabalhos de Proença (via orientalizante e barroco), Vieira (via maneirismo e surrealismo) e Xana ("pattern" e via Pop). O grande ornato é o nosso prato hiperbarroco ou hindu concreto ou abstracto vestido ou nu o grande ornato é o nosso prato ( in Segundo Manif. para Imp. Abusos) Matisse chama ao desenho "escrita plástica": "os preciosismos e os arabescos nunca sobrecarregaram os meus desenhos feitos a partir do modelo, pois esses preciosismos e arabescos fazem parte da minha orquestração" 123 . O ornamento está na matriz da maioria das operações artísticas. Para Gillo Dorfles é no “conjunto dos elementos construtivos da ornamentação que reside um dos mais fecundos motivos formativos de uma época cultural; pelo que a fase ornamental 122 Nietzsche (Crepúsculo dos Deuses, Guimarães Editores, Lisboa, 1989: pp. 86 e 87) introduziu os conceitos de apolíneo e dionisíaco na estética. Ele concebeu-os como "espécies de embriaguez", dizendo que o pintor, o escultor e o poeta épico são visionários por excelência. A embriaguez apolínea mantém excitado sobretudo o olhar, de modo que este adquire a faculdade de ter visões. O estado dionisíaco excita o sistema emotivo que manifesta, através da força da representação, da transfiguração e da transformação, toda a espécie de mímica e de histrionismo, sendo este portanto o que detém a arte da comunicação. 123 Matisse, Henry, Escritos e reflexões sobre arte, Editora Ulisseia , 1972. 99 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 poderá ser conforme os casos, tanto o embrião de uma sequente obra realizada, como o último acréscimo, a ramificação da mesma 124 .” À Homeostética corresponde um período de revisão, onde ocorrerão necessariamente sínteses das formas do passado, mas também contemporâneas, uma situação que faz lembrar Gaudi e as suas construções saturadas de elementos recolhidos nos jogos do acaso e da reconstituição. Outra das intenções da Homeostética está em rever o corpo "devidamente maquilhado" das insignificantes mitologias nacionais, mas como qualquer coisa possível de se perpetuar, de ter sequência (in Cultura Nacional, 1985), deixando bem clara a sua postura relativamente aos antecessores: " A tradição modernista recusa para poder afirmar, a homeostética afirma para poder recusar" (idem). No "Último Manifesto", a homeostética explica a sua relação com o passado e a atitude com que pretende reutilizar esse passado: " Nós queríamos ter uma relação com as senhoras musas e as coisas do passado, digamos como que despreocupada, sem aqueles tiques de suores e lágrimas e suspiros e um ar extremamente circunspecto e funerário" (...) "Não queríamos, nem queremos ser sérios". Linda Hutcheon, (Uma Teoria da Paródia) afirma que, como forma crítica, a paródia tem a vantagem de ser simultaneamente uma recriação e uma criação, fazendo da crítica uma exploração activa da forma, sendo que modernamente ela assuma as nuances da ironia, mais do que do escárnio, ou da sátira, a que habitualmente estava associada: " A paródia é um modo de chegar a acordo com os textos desse "rico e temível legado do passado" (...). É, digamos, uma estratégia utilizada pelos artistas modernos para o processo de transferência e reorganização desse passado. "As formas paródicas cheias de duplicidades, jogam com as tensões criadas pela consciência histórica,(...) e assinalam o desejo de pôr a refuncionar essas formas de acordo com as suas próprias necessidades" 125 . Na sua atitude positiva de tratar o passado, este método recorda em muitos aspectos as atitudes clássicas e renascentistas. Por outro lado, desenvolve uma actividade dinâmica de percepção, interpretação e produção de obras de arte, onde a função hermenêutica, com as suas 124 125 Dorfles, Gillo, O elogio da desarmonia, Edições 70, Col. Arte e Comunicação, 1986: p. 162. Hutcheon, Linda, Uma Teoria da Paródia, Edições 70, Col. Arte e Comunicação, 1989: p. 67. 100 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 implicações simultaneamente culturais e ideológicas, faz da paródia uma das formas mais importantes da moderna "auto reflexividade" e do "discurso interartístico". Outro aspecto igualmente interessante é o facto de a paródia colocar em causa a singularidade romântica: " o facto de hoje em dia se verificar uma viragem para a paródia poderá reflectir aquilo que os teóricos europeus vêem como uma crise em toda a noção do sujeito como fonte coerente e constante de significação" 126 . Dum modo geral, todos os historiadores da paródia são de opinião que esta floresce nos períodos de maior sofisticação cultural, a qual que permite aos parodistas confiar na competência do "espectador". Descodificar a paródia implica, então, a possibilidade de o o leitor, o espectador, ou fruidor identificar uma alusão ou citações intencionais, fazendo uso dos seus conhecimentos e memórias, pois, caso isso não aconteça , limitar- -se-á a neutralizá-la, adaptando-a ao contexto da obra no seu todo. Quando o homeostético diz "O trabalho hiper culto para as massas!" (Proclamação NeoCanibal, 1983), estará realmente a contar com a possibilidade cultural das "massas"? Em suma, as intenções e propostas da Homeostética consistem na pluridisciplinaridade, na relação da obra com o fruidor, na revalorização, quer da ornamentação, quer da monumentalidade, na revisão das mitologias nacionais, e numa atitude paródica na apropriação, quer do passado (obras, mitos, figuras), quer do presente (política, teoria e crítica da arte, factos quotidianos). 126 Idem, ibidem: p.15 101 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Parte III – Teoria Homeostética 102 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 6 - Os Referentes Teóricos Nota prévia: Tendo com ponto de partida a análise dos Textos Homeostéticos e apesar de não ter alterado significativamente a ordem pela qual estavam colocados nos dossiers que me foram facilitados, senti a necessidade de os numerar devido à quantidade de textos sem titulo. Os textos seleccionados encontram-se nos Anexos desta tese. As referências aos que irão surgir ao longo desta terceira parte, serão portanto dirigidas ao número a que corresponde o texto e não à página. A terceira parte desta tese pretende dar a conhecer o substracto teórico existente por detrás da visibilidade homeostética. Desencadeada pela leitura do conjunto de textos referidos, surgiu a necessidade de contextualizar os dados e conceitos apurados, daí que o 6º Capítulo apresente resumidamente autores e teorias que considerei pertinentes para a compreensão e enquadramento desta teoria, nomeadamente os conceitos post-paradoxologia, parahermenêutica, infracriptográfico e menipeia na sua relação com o processo criativo, cujo desenvolvimento será feito, respectivamente nos 7º e 8º capítulos. “Os referentes teóricos” que dão o titulo ao 6º Capítulo, não se tratam dos referentes homeostéticos, mas sim dos referentes teóricos que me responderam às interrogações levantadas ao longo da análise dos textos homeostéticos, ou seja, aqueles que me permitiram interpretar e fazer uma leitura critica. A perspectiva interpretativa aqui apresentada é de natureza filosófica, e ainda que a abordagem tenha um carácter generalista, com ela pretendo circunscrever e fazer uma aproximação aos conceitos determinantes para o entendimento do discurso homeostético. 6.1 Hermenêutica, filosofia e pensamento estético. Para Leibniz 127 (1646-1716), tudo está em tudo: o presente está grávido do futuro; o futuro poder-se-á ler no passado; o distante expressa-se no que está próximo. Poder127 Empenhado em todas as formas de saber, escreveu sobre matemática, física, história e sobretudo filosofia. Leibnitz encerra um período da filosofia que se inicia com Descartes, correspondendo o seu tempo mais ou menos ao período do Barroco. O seu contributo filosófico centra-se sobretudo, na ideia da física e no conceito de substância que desde Aristóteles tem sido matéria de especulação filosófica. A sua contribuição para a teoria de arte e para a estética, reside particularmente no conceito de mónada (unidade), que desenvolve na obra entitulada “A Monodologia” quando afirma que esta representa força (vis), uma força de representação (vis repraesentativa), contendo qualidades que, 103 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 se-á conhecer a beleza do universo em cada alma, se se puderem desdobrar todos os seus recursos, que só se desenvolvem sensivelmente com o tempo. A “intuição da duração” constitui o centro da filosofia de Bergson 128 (1859-1941). A duração é para Bergson a intercepção do espaço com o tempo. O seu ponto de partida é a instabilidade: «tenho experiências em que transito de estado para estado (…) sensações, sentimentos, volições, representações, eis as modificações entre as quais a minha existência se divide (…) mas não basta afirmar isto (…). Não há afecção ou representação, ou volição que não esteja em constante mudança; se um estado de alma deixasse de modificar-se, a sua duração deixaria de fluir.» 129 Na percepção visual de um objecto exterior imóvel, a cada mirada eu incluo a memória da mirada anterior, projectando o passado no presente. É a duração acumulada, que ampliando o “estado da alma, forma, por assim dizer, uma bola de neve”. A menêutica (teoria da reminiscência) surge com Platão. Partindo da ideia da imortalidade da alma e do renascimento múltiplo, o ser humano possuiria reminiscências (ecos) dos seus conhecimentos anteriores. Lembrar, recordar, investigar, aprender são acções decorrentes desta capacidade. Para Platão, se o homem possui respostas é porque elas sempre existiram na sua alma. Na Idade Média, hermenêutica foi a designação dada à tarefa de decifração dos textos bíblicos. distintas entre si e mudando de modo contínuo reflectem o mundo conforme a consciência que se têm dele. A sua visão é pluralista e perspectivista. Ainda que carregada dum contéudo metafísico, a ideia de contínuum (já aqui referida a propósito da viagem das formas defendida por alguns teóricos da pósmodernidade), é uma noção que vale a pena observar na filosofia de Leibnitz. 128 Bergson situa-se em Paris entre os séculos.XIX e XX . A partir de 1910 foi professor de Filosofia no Collège de France, a mais alta instituição francesa. A relação entre o espaço e o tempo é o cerne da sua teoria da duração, situando-os no equivalente às oposições: matéria e memória; corpo e alma. Correspondem estas oposições aos dois modos mentais do homem que considera radicalmente distintos: O pensamento e a intuição. A intuição é para Bergson um impulso vital, que tenta captar a vida “por dentro”, não se deixando circunscrever a um esquema conceptual espacializado. No entanto, a vida, para este filósofo, é entendida mais pelo seu sentido biológico do que biográfico ou histórico. Interessa-nos particularmente a sua teoria da intuição para a nossa análise da recepção do tipo emotivo (participação por entusiasmo) conforme é proposta na teoria homeostética e em particular no tratamento do conceito “Infracriptográfico”. 129 “Écrits et paroles”, 111, p.456, in Madelaine Madaule- Bergson, sup. Puf, 1968. Outras obras: Bergson, Évolution Créatrice, Puf, Paris, 1906, La pensée et le mouvant, Félix Alcan, Paris, 1939. 104 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Existe na menêutica uma dimensão temporal que hoje é retomada e que influencia a hermêutica, nomeadamente em autores que redescobrem o sentido da história e da tradição (Gadamer), quer nas práticas da vida comum, quer na produção intelectual ou artística. A sua função continua hoje a ser, como diz Ricoeur, a reconstrução e a projecção do sentido dos textos (produtos de natureza simbólica, onde incluo as artes em geral ) e dos mundos que eles representam. A reflexão hermenêutica incide sobre os produtos da linguagem: visa transformar o distante em próximo, o estranho em familiar, através dum discurso orientado pelo desejo de diálogo com o objecto de reflexão. Richard Rorty sugere que se adopte uma atitude epistemológica perante o discurso normal, comensurável, comprensível, e uma atitude hermenêutica perante o discurso anormal, incomensurável, incompreensível. Esta distinção “discurso normal”/ “discurso anormal” surge no pensamento de Kuhn, para quem a especialização do próprio discurso científico se tem vindo a tornar “anormal” dentro do próprio meio, provocando reacções de distanciamento e estranheza. À relação epistemológica eu-coisa, vem a hermenêutica propor a relação tu-eu, procurando a aproximação entre a obra (discurso) e o receptor (fruidor). A teoria homeostética dos pronomes 130 , questiona a relação da possessão no seu duplo sentido (posse, possuído) e a estética: As pessoas relacionam-se com os nomes através de algo que põem diante dos nomes. Os pronomes. A relação com o material faz-se com um pôr diante do que está disposto. O assumir dessa posição / pose é feito pela articulação de um tipo de relação. Exemplo: há pronomes pessoais, há pronomes possesivos, há pronomes demonstrativos, há um designar que é prenúncio do que sucede com os nomes (os substantivos) e seus atributos (os adjectivos). Não será a sintaxe, isto é, a ordem das disposições, delimitada pelos pronomes? Quando digo “a minha mesa” não será diferente de dizer “essa mesa” ou “aquela mesa”, etc ? Não se estabelecem relações de proximidade afectiva, de distância, de ódio? 130 Texto 27.9. (Teoria Homeostética, em Anexos) 105 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Algo mais elementar como os pronomes pessoais. O eu, o tu, o ele, (o nós, o vós, o eles). Será que esse tipo de designação está ausente da pintura? Há sempre uma marca do eu, do isto, isto é, uma relação narcísica ? “As minhas fotografias”. Até que ponto os pronomes participam na estética, no ver? No entanto, nesta “relação eu-tu” iremos observar duas perspectivas distintas. A de Ricoeur, mais centrada na compreensão, e a de Jauss, mais centrada na experiência estética. Ambos reenvindicam o contributo da fenomenologia. Como disciplina autónoma, e em reacção ao estruturalismo, a Hermenêutica surge a partir da década de sessenta 131 tornando-se um dos pilares das teorias, quer do “pós-estruturalismo”, quer do “pós-modernismo”. A compreensão do significado de uma obra (“processo de decifração”) é o aspecto central desta disciplina, a partir da qual se desenvolveram várias teorias da interpretação, das quais destaquei as Teorias de Ricoeur (Interpretação; Metáfora e Ideologia) e a “Estética da Recepção” de Jauss. Além destas, farei uma breve incursão na “Fenomenologia”, que dum modo geral tem influenciado os teóricos da hermenêutica. Com Bakhtine, um dos mais importantes referentes da teoria homeostética, serão abordados os conceitos de dialogismo e menipeia. Destacando-se da visão negativista de alguns teóricos da pósmodernidade, cujo ponto de partida se encontra na “suspeita”, a perspectiva do elenco teórico aqui apresentado poderá considerar-se optimista e reconstrutiva. Esta é também a postura homeostética, que humoristicamente nos diz: “deixemos as crises apodrecerem no lugar delas, isto é, exílios. Ou então, até que enfim, deportemo-las. Reivindicar dogmas é uma tarefa mais divertida que o ócio dos cépticos” 132 . 6.2 A Teoria da Interpretação de Ricoeur Ricoeur demarca-se das teorias que defendem a “congenialidade do sujeito leitor com a consciência do autor do texto” (Schleiermacher), que designa por “irracionalismo da compreensão imediata”, e da posição estruturalista, que defende a 131 Em 1966 emerge o movimento estruturalista nos Estados Unidos. No ano seguinte E.D. Hirsch desafia as ideias dominantes questionando o isolamento da crítica literária americana no respeitante à hermenêutica com a publicação do seu Validity of Interpretation. 132 Texto 7 (Teoria homeostética em Anexos) 106 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 independência do próprio texto. Este filósofo inicia o seu longo percurso com Karl Jaspers a partir do qual elabora uma “Filosofia da vontade”, e atribui a MerleauPonty a sua formação fenomenológica. Para Ricoeur, a tarefa da interpretação pressupõe, e requer, a abertura da filosofia (no nosso caso, entendamos a arte) a outras áreas do saber. A hermenêutica de Ricoeur é a desconstrução do cogito cartesiano: “No lugar da “consciência de Si” é colocado um Si mais rico e profundo que só se reconhece nos seus actos de existência. Interessa-lhe sobretudo a realização de uma ontologia da acção (área que lhe parece inexplorada na tradição filosófica), ou seja, “pensar o Ser em termos de acto, de acção, de agir, de sofrer.” A sua questão é: o que é o agir humano? Defende a legitimidade de uma filosofia da interpretação, articulando hermenêutica e fenomenologia («renovação da fenomenologia pela hermenêutica») que segundo ele se poderá fazer de duas formas: 1. pela «via curta» da compreensão (Heidegger) 2. pela «via longa» (passando pelo método defendido por Ricoeur). O seu processo interpretativo tem em Heidegger o ponto de partida, para dele se distanciar: não pretendendo pôr em causa a «ontologia da compreensão» heidegerianna, Ricoeur propôe aliá-la a uma «epistemologia da interpretação» através duma reflexão activa (a que chama tarefa ) e do diálogo com outros campos expressivos, ou dos saberes. Relativamente à hermenêutica heidegeriana, que se centra na “tomada de consciência do homem como “ser no mundo” antes de qualquer ensaio reflexivo” (partindo do zero), Ricoeur contrapõe que não há compreensão de Si que não seja mediada por signos, símbolos e textos, em suma, por experiências que se traduzem na linguagem 133 . Ao contrário de Heidegger, que parte da questão do Ser, Ricoeur inicia a sua reflexão por diferentes abordagens interpretativas “como diferentes vias de acesso ao ser que dá de si múltiplas facetas”(Ricoeur, p.15). Tendo em conta que a reflexão é mediada pelas representações, acções, obras, instituições e monumentos que a objectivam, é nelas 133 Símbolo, interpretação e hermenêutica pressupoêm a concepção heideggeriana e gadameriana de Homem como ser essencialmente linguístico. 107 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 que o sujeito se deve perder para se encontrar. A “leitura” distancia assim o sujeito de si mesmo, abrindo-o ao Outro através da obra. O ponto de partida situa-se na obra e no seu poder semântico: “A mediação dos textos é triplamente enriquecedora do ponto de vista semântico, uma vez que o discurso se autonomiza da intencionalidade do autor, do conjunto de receptores aos quais se destinava, bem como do contexto sócio-cultural do qual brotou” (Ricoeur, p. 321). A teoria da interpretação de Ricoeur 134 centra-se portanto nos símbolos enquanto “expressões de duplo sentido”, constituindo estas um fundo simbólico comum da humanidade: «é o sonho tornado linguagem que é objecto de interpretação. A linguagem de duplo sentido, ou linguagem simbólica, é aquela que vela e revela, que requer uma intercepção. O símbolo conduz-nos assim à hermenêutica» (Ricoeur, p.10). Esta interpretação dos símbolos deve ser contextualizada (na relação com o texto, ou obra), não se podendo excluir a conflitualidade dos pontos de vista. No quadro da Teoria da Interpretação, este filósofo desenvolve uma “Teoria da Metáfora”, segundo ele intimamente relacionada com o símbolo. Diz-nos na página 102, que o símbolo, dum modo geral, funciona como um “excesso de significação” (o surplus), reunindo duas dimensões, uma de ordem linguística e outra de ordem não linguística e defende, que a metáfora 135 é o reagente apropriado para trazer à luz o aspecto dos símbolos que tem uma afinidade com a linguagem. Ambas, metáfora e símbolo, fogem ao domínio do racional, daí que no processo interpretativo se deva falar de mais de assimilaçao pela intuição do que de apreensão pelo racíocinio. 134 Paul Ricoeur - Teoria da interpretação – Porto Editora, Colecção Philosofia. 135 Ricoeur refuta a concepção de “metáfora” procedente dos antigos retóricos, para quem esta era vista apenas como um efeito para ornamentar o discurso, tornando-o mais sedutor e persuasivo. Dentro desta concepção, a metáfora pode resumir-se às seguintes características: nomeação, extensão de sentido, semelhança ou substituição. O que Ricoeur vem propor é que a metáfora deve ser vista como o resultado da tensão entre dois termos, entre duas interpretações opostas na enunciação, sendo a estratégia do discurso uma “absurdidade”. É por isso que a metáfora não vale por si mesma, esperando quem a decifre. A operação de decifração (interpretação) é como o desatar dum nó, ou dum laço. Ou seja, é graças a uma “torção metafórica” (Beardsley) que a enunciação começa a fazer sentido. 108 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 6.3 Jauss e a “Estética da Recepção” 136 Hans Robert Jauss manifesta-se contra as teorias sociais da arte; critica duramente aqueles que designa por “ os grandes puritanos da filosofia da arte” (Platão, S. Agostinho, Rousseau, e nos nossos dias, Adorno e a sua estética da negatividade), para quem a experiência estética é vista como algo de suspeito ou perigoso, tendo em consequência disso, minimizado o seu valor ético e cognitivo. Considera o formalismo como um sistema fechado e separado da realidade. Apesar dos muitos aspectos da sua teoria serem comuns a Gadamer, nomeadamente o da “fusão de horizontes” e o do “círculo hermenêutico”, “experiência estética”, criticando-lhe “le demarca-se dele no que respeita à caractére événementiel d´une compréhension esthétique qui se soumet à la tradition” (Jauss, pag.140). Defende que a experiência visuo-receptiva e a intuição podem reabilitar o prazer da fruição estética (aestesis) face ao primado do conhecimento conceptual. Leonardo da Vinci é o exemplo do que considera a “experiência estética positiva”, ou seja, aquela que se manifesta através da função cognitiva do construir, que reúne a actividade científica e a actividade artística e que se perdeu com a dissociação das artes e das ciências. : “Léonard, qui nos offre à l´état pure le spectacle de l´activité créatrice d´un esprit universal, commande le passage de la conception ancienne de la connaissance – celle de l´Antiquité – à la conception moderne. En effet, “construire” présuppose un savoir qui est plus q´un simples retour contemplatif vers quelque réalité préexistante: un “connaître” qui dépend du “pouvoir”. Un pouvoir que s´expérimente lui-même dans l´”agir”, de tel sorte que comprendre et produire ne sont qu´une seule et même operation.” (Jauss, 152). Retoma de Kant a ideia do “prazer desinteressado” e a concepção pluralista do julgamento estético visando uma comunicação universal. No fundo, Jauss relê Kant aos olhos dum novo contexto. Se, no século XIX, o individualismo obstruiu a 136 JAUSS, H.R., Pour une esthétique de la réception, Collection Tell, Éditions Gallimard, Paris, 1978. Hans Robert Jauss, professor de literatura na Universidade de Constance, é um dos iniciadores das pesquisas que gravitam à volta da noção de recepção e que são designadas sob o termo genérico de “Escola de Constance”. As minhas considerações baseiam-se na leitura do capítulo “Petite apologie de l´expérience esthétique”, onde Jauss apresenta as suas teses relativamente à “estética da recepção”. 109 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 consecução destas ideias, não serão as possibilidades actuais de comunicação, extensão e uniformização de meios de que hoje dispomos que permitem rever as concepções kantianas, prevendo um meio de concretização das mesmas? Esclarece que o prazer estético difere de prazer sensual, pois implica uma distância (o lugar do imaginário) entre o sujeito e o objecto. Se o prazer estético implica necessariamente uma distância, parece-me fazer sentido afirmar que o assunto da reflexão estética deverá concentrar-se nesse espaço: o imaginário. “L´expérience esthétique est donc toujours aussi bien libération de quelque chose que libération pour quelque chose, ainsi qu´il ressort dejá de la théorie aristotélicienne de la catharsis” (Jauss, p.143). Jauss reintroduz três conceitos-chave da tradição estética: poiesis, aisthesis, e catharsis, cujas funções, na sua opinião, podem desempenhar um papel verdadeiramente social. Por Poiesis, entenda-se o “poder (saber-fazer) poético”, distinto, quer do saber científico, quer do fazer artesanal. Pela aisthesis, a obra de arte pode renovar a percepção das coisas, valorizando-se deste modo o conhecimento intuitivo. A catharsis significa o poder de libertação e de identificação estética produzidos pela percepção da obra de arte, com as eventuais modificações no comportamento ou julgamentos. É na emoção e na identificação estética espontânea que reside a proximidade entre a obra e o receptor. Das histórias que estão por se fazer, Pedro Proença diz que faz falta uma história sobre o “rapto”, também Jauss acha que a história da experiência estética ainda não foi escrita: ela deveria estudar a praxis da produção, da recepção e da comunicação artísticas. Isto porque toda a reflexão teórica que acompanhou a história da arte ocidental em direcção à sua autonomia tem a marca do platonismo 137 (Jauss, p.147). 137 Segundo Jauss, o platonismo imprimiu uma dupla orientação: o belo e a sua origem transcendental e a deficiência dos sentidos para captar esse mesmo belo, ou seja, o antagonismo entre o belo suprasensível e o belo sensível. É nesta “dicotomia do fenómeno e da ideia” (Jauss, 149), que se estabelece a agonia e o negativismo artístico. Deste modo, critica Gadamer por estabelece uma oposição entre a “experiência estética” enquanto “acontecimento portador de verdade” e a “consciência estética” simples sujectividade auto-recreativa (Jauss, 148). No processo de recusa do prazer estético considera dois momentos: um primeiro, a partir do séc. XIX, que passou pelo movimento tendente à autonomização da arte, e um segundo, marcado pelo ascetismo que, após a segunda G. Guerra, invadiu todos os campos culturais. Paralelamente, ambos os momentos terão contribuido igualmente para afastar a arte do seu papel e poder de comunicação: “le processus d´émancipation de l´expérience esthétique au XVIII siècle a conduit à opposer la 110 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 6.4 O Dialogismo Bakhtiniano Na opinião de Gardiner 138 , os conceitos desenvolvidos por Bakhtine (dialogismo, polifonia e carnaval), derivam das teorias marxistas da ideologia, e têm implicações na tradição hermenêutica representada por Gadamer, Habermas e Ricoeur e no pósestruturalismo de Barthes e Foucault. A teoria de Bakhtine compreende a natureza do “self” e a centralidade da linguagem no contexto da sociedade. O seu objectivo foi a aproximação interdisciplinar às formas de vida sócio-culturais manifestadas pela interacção simbólica. Estas são geralmente referidas como “metalinguagens” ou “translínguisticas”. A política cultural de Bakhtine é caracterizada pelo desejo de entender aquilo que designa por “desconstrução popular” dos discursos oficiais e das ideologias. Assim, a verdadeira democracia assentaria no estabelecimento da liberdade cultural e linguística. Ele crê que a interacção dialógica é necessária como a priori para uma imagem coerente do self comprometido em tarefas moralmente e connaissance sensible (cognitio sensitiva) à la connaissance rationnelle et – selon une expression de Baumgarten, le fondadeur de l´esthétique en tant que discipline philosophique – á revendiquer pour l´”horizon esthétique” une légitimité propre, à côté de l´horizon logique. Cette justification de la perception esthétique a été reprise par les artistes de la deuxième moité du XIX siécle, dans leur théorie et leur pratique, il s´agissait cette fois d´une révolte contre l´ideologie positiviste (…) l´”art industriel” (…) et le naturalisme.” Em consequência, na pintura assistiu-se à “déconcéptualization du monde” et la retransformation de l´oeil en organe d´une vision pure, non réflexive, opérées par l´impressionisme français” (d´aprés M. Imdahl, in Jauss, 155). A emergência duma teoria de arte como pura sensitividade visual (teoria desenvolvida por volta dos anos 1880 por Konrad Fiedler, e que manteve até à actualidade através de Adolf Hildebrand, Alois Riegel. Heinrich Wolflin; Richard Haman) baseia-se na convicção “de que o homem está capacitado para aceder ao domínio espiritual do mundo não só pelo conceito, mas também pela visão”. Por visão, Fiedler entende um olhar liberto de todo o saber pré-existente, que ultrapasse o acto de representação e se torne «“actividade criadora de formas visíveis”». O princípio da visão autónoma é expressamente dirigido contra o platonismo e a separação que este opera entre o conhecimento e a actividade artística, excluindo a imitação da natureza (mimesis) e o reconhecimento de “já visto” (anamnesis) e abandona também a referência a uma beleza ou sentimento que se pretendesse transmitir. A percepção estética assim compreendida deve proceder únicamente duma desconceptualização do mundo, e pretender dar a ver as coisas, desembaraçando-se de tudo o que tivesse a ver com o que sobrecarrega a pura aparência visual (Jauss, 155). Esta teoria pretendeu também reagir contra a concepção dos formalistas russos, da “arte como processo”, onde se pretendiam abolir os “hábitos alienantes da percepção”. Ressalve-se nesta concepção a função cognitiva da percepção estética: “La perception esthétique ne requiert donc aucune faculté particuliére d´intuition, mais une vision libérée par l´art du “dejá vu” (…) d´habitudes pétrifiées (…) barriéres autour de nos perceptions” (Jauss, 157). 138 Gardiner, Michael: The dialogics of critic, M. Bakhtin and the Theory of Ideology, Routledge London and New York, 1992. 111 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 esteticamente comprometidas. Daí que defenda a subversão das estruturas autoritárias das sociedades burocratizadas, a partir da libertação do potencial das formas da cultura popular. “Para uns (individualismo subjectivo), o estilo é o homem. Para outros (objectivismo abstracto), o estilo é a obra. Para Bakhtine, o estilo é (pelo menos) dois homens “ 139 . Tendo como ponto de partida, o homem como produtor de textos e criador de sentido, Bakhtine estabelece o estatuto dialógico das ciências humanas e o seu objecto - o texto (matéria significante): “Chamo sentido às respostas às questões. O que não responde a nenhuma questão é desprovido de sentido para nós” (citado por Prado Coelho, p.446). Logo, o sentido de um enunciado é a resposta que suscita. Colocando o homem na relação com o contexto, não há enunciado sem réplica, nem enunciado que não seja uma réplica de enunciado anterior. Qualquer diálogo é apenas uma ilha que emerge e se recorta no fluxo interminável da comunicação. Particularmente crítico para com todas as formas de monologização, podendo estas ser de cariz materialista (formalismo), ou idealista (expressão do psiquismo), põe em causa o estruturalismo pelo seu enclausuramento (ensimesmamento), propondo a profundidade em alternativa à exactidão. Em Universos da Crítica, Eduardo Prado Coelho faz uma análise do conceito de dialogismo, situando-o no paradigma “metapsicológico”. Este paradigma que diverge do “comunicacional” 140 , pelo surgimento da distinção entre o Outro como receptor e o Outro como elemento terceiro, define-se por dois princípios: por um esquema 139 140 Coelho, Eduardo Prado, Os Universos da Critica, p.445. A fixação de um sentido literal ou último, imobilizando a verdade do texto (esquema monista) processa-se através duma vertente formalista, definida pela valorização da obra-em-si-mesma (ensimesmamento ). Esta valorização é caracterizada por duas linhas fundamentais: a imaterialização da obra (o inefável); a concretização da obra (formalismo). A crise da vertente formalista verifica-se através da teorização da obra aberta (U. Eco). É esta abertura que irá conduzir ao paradigma comunicacional nos estudos literários. Eduardo Prado Coelho (p.16) define-o nestes termos: esquema dualista (emissor-receptor) no processo da comunicação literária e “vacilação da coincidência verdade-sentido através de um entendimento da verdade como intersubjectividade”, tendo dado origem a: “uma versão erótica”, conducente a uma crítica de identificação; “uma versão tecnocrática”, diluição do literário numa pragmática do texto ou da comunicação em geral e uma reformulação dos estudos históricos: a estética da recepção. 112 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 triádico sugerindo a existência de um terceiro termo, sempre outro, simultâneamente, anterior e posterior ao texto, e pela não coincidência entre sentido e verdade. A questão fundamental é a seguinte: se o objecto, se define pela sua diferença em relação a si mesmo, e se essa diferença é irredutível (aprofunda-se, não se elimina), então haverá sempre um sentido do objecto que excede a verdade que dele eu possa fixar” (E. Prado Coelho, pp. 447, 448). É este aspecto que define a “não coincidência entre verdade e sentido”. É dentro deste quadro que Bakhtine elege como alvo privilegiado, as teorias da expressão, todas elas fundamentadas numa concepção de enunciação-monólogo, demonstrando que o conceito de expressão implica sempre um dualismo falso. Dualismo, porque existe um contéudo (interior) e uma objectivação desse contéudo (exteriorização), no entanto se considerarmos que existe uma diferença “entre mim e o que eu digo” ( Fernando Pessoa,citado por EPC nas pags.448 e 449), a frase: “toda a forma exterior é uma deformação da forma interior” representa a ideia de que o essencial está no interior. Em Fernando Pessoa encontramos o paradoxo das teorias da expressão: a expressão é indispensável, mas a expressão é mentira”. A condição dialógica que a linguagem nos impõe, não se manifesta numa concordância, ou convergência, mas em aceitar os “dois sujeitos que existem no interior de um” (EPC, p.449). “A partir de agora tudo se duplica: a enunciação é o produto da interacção entre dois interlocutores; cada palavra é apenas o território precariamente comum entre o emissor e o receptor e, por isso, cada palavra é dupla ou dúplice”. (Entendamos o mesmo para a imagem). Outra das premissas de Bakhtine é que o sujeito se constitui sempre no campo do Outro, ou, por outras palavras, que todo o discurso é um discurso indirecto. Com isto pretende dizer-se que “a linguagem não vai da realidade em direcção às palavras, mas sim de um dizer para um dizer” (plurimimesis, na designação homeostética). Em Lacan , o Outro, entendido como lugar do Simbólico, evolui para o pequeno outro, entendido como objecto sempre parcial, ou resto, promovendo uma emergência do Real no interior do Simbólico (catástrofe): “Na medida em que a experiência estética consiste na experiência do resto (...) excedente de sentido em relação à verdade (…) o resto é o lugar onde o texto resiste (…) o lugar de inscrição 113 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 do sexual” (EPC, pags.16 e 17). No Texto 10 (Contrainducção / Aposta) da Teoria Homeostética podemos ler: “todo o sentido habita, isto é co-habita num “entre” a ausência e a presença, no toposatopos-utopos do desocultamento/ocultação”. E no Texto 14: “Na arte não há nomadologia, mas um topos preciso, o logos do entre. Lugar fronteiriço de mediação de criação de medidas. O entre não se define em relação a duas regiões, mas o que atravessa as regiões”. A arte, hoje, “deve constituir uma mediação entre saberes, pragmáticas, deuses, mas também o diálogo com o seu próprio Topos e esse diálogo só é possível na copulação com o que lhe é Outro (…)”. A componente hermenêutica das teorias de Bakthine integra-se nos conceitos e procedimentos do conjunto de autores contemporâneos (Gadamer, Ricoeur) que têm vindo a teorizar a interpretação/compreensão humana. Em comum, advoga a pré-existência de práticas e aquisições semióticas/linguísticas que interferem no “activ dialogic understanding”. A compreensão do sentido acontece através da reconstrução criativa do originário contexto verbal/semântico (no nosso caso, icónico/semântico) de modo idêntico a uma conversa ou diálogo. Na prespectiva homeostética este é o polemos, o diálogo das contradições (Texto 10), cuja resolução se resume ao jogo e à aposta, aposta essa que repousa sobre uma equivalência entre o provável e o improvável. O diálogo surge também brilhantemente associado à imagem do banquete (Texto 28.5.) do qual passo a citar: A boca gigantesca, os prodígios do banquete: o pão e o vinho; a conversação. A frase de Holderlin “desde que somos colóquio...” (na tradução portuguesa, nos TA “depuis que nous sommes un dialogue”) soa-me como “desde que somos banquete e comemos uns com os outros” (variante: E nos comemos uns aos outros). Este diálogo / colóquio / banquete, esta ingestão comunitária, esta festa permanente de gestos excessivos, de questões absurdas, de pensamentos idiotas ...há que alimentar o “espirito humano”. Daí as deliciosas polémicas...é “polemos” ( aluta, o confronto, a incoincidência, a guerra) que prepara o Banquete, que fundamenta a festa da paz (para usar um título de Holderlin) ...a polémica é o petisco do Banquete. A concertação do simposium é a do acompanhamento mandibular, dos gestos, que elevam as taças aos lábios, da cacafonia dos gemidos dos banquetiantes, do entusiasmo do comer, 114 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 da harmonia entre o trabalho da língua (falar, saborear) e o gozo da escuta... nenhuma ocasião é tão propicia como o banquete para que tenha lugar a escuta. No banquete não há hierarquia de espaço, ainda que haja lugares aos quais inicialmente é atribuída importância, eles dissolvem-se perante o diálogo. O processo intercontextual envolve portanto uma translação activa do sentido através de contextos que podem ser temporal e geograficamente remotos. A este propósito, vejamos duas declarações dos artistas Pedro Proença e Fernando Brito: Gosto da história como de desenhos, de pequenos quadros (Lorrain, Turner, Piranesi), de expressões macias, de pequenas narrativas. Não aceito a história como uma grande narrativa, nem acredito nos grandes momentos históricos. A emergência dos factos (inteligentes, estúpidos, ou apenas objectuais) é preparada por uma concentração de redundâncias, de lugares comuns, embora não predictível. Segundo Thom, um sistema nas mesmas condições pode desenvolver reacções completamente diferentes. Logo, a predictibilidade, mesmo no caso de serem sistemas fechados, não serve. Serve apenas a conjectura falaciosa; o profetismo. (P. Proença, 1985). O que me atraia no mundo moderno, na arquitectura, no design, era a clareza. Só gosto de enigmas que sejam caricaturas de enigmas. Só gosto de enigmas que sirvam para desconstruir, para gozar... Eu tive sempre intenções diferentes dos outros. Nunca tive interesse em jogos de referências. Eu nunca vi na erudição senão uma ferramenta, nunca tive nenhum interesse especial nas ideias, mas em ver que uso podia fazer de cada uma. (F.B. Entrevista em anexo). A posição de Bakhtine integra-se numa nova forma de dialéctica designada por “circulo hermenêutico”, que se traduz pelo vai-vém interpretativo entre o texto (ou a obra plástica, o discurso visual) e as circunstâncias históricas ou contextos relevantes, num movimento contínuo entre a partes e o todo. A natureza polifónica da interpretação é explicada pela natureza polissémica e instável dos signos, onde o interpretante terá que entrar nos meandros da linguagem como participante activo. Considerando que todas as formas da interacção e prática cultural-linguística são necessariamente mediadas pela nossa relação com os outros, também as acções e artefactos culturais se inscrevem nos modos de comunicação simbólica. 115 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Bakhtine vem dizer (na mesma linha de Gadamer 141 para quem o entendimento hermenêutico é necessáriamente instável), que a não coincidência do entre “mim e mim” produz a espontaneidade e a imprevisibilidade dos produtos discursivos e expressivos do ser humano, e deste modo, também são ilimitados o sentido e a significação. O encontro hermenêutico, que em Gadamer tem a designação de “fusão de horizontes” e em Bakhtine de “horizontes conceptuais sócio-ideológicos”, implica necessariamente a existência de uma distância entre os sujeitos significantes. Manifesta-se pela descoberta de sentido (desvelamento), num processo co-creativo e dialógico, envolvendo o texto (obra) e o interpretante, ambos situados num particular contexto histórico e cultural. Bakhtine situa este “background” (património comum) na histórica corrente da comunicação humana, o que permite uma constante renovação e re-avaliação do sujeito através de infinita diversidade de interpretações, imagens, combinações figurativas semânticas, materiais, etc. Recupera-se afinal uma tradição humanista, perdida ou abandonada desde que os métodos objectivistaspositivistas dominaram a vida intelectual europeia (séc.XIX), observável agora num crescente escoamento e derrapagem das fronteiras disciplinares. 6.5 A Fenomenologia Esta expressão foi utilizada pela primeira vez em 1764 por Lambert (lógico alemão) no seu Nouvel Organon. O termo Fenomenologia significa estudo dos fenómenos, isto é, daquilo que aparece à consciência, daquilo que é dado. Trata-se de explorar a própria coisa que se percebe, em que se pensa, de que se fala, evitando forjar hipóteses, tanto sobre o laço que une o fenómeno com o ser de que é fenómeno, como sobre o laço que o une com o Eu para quem é fenómeno, ou seja, sem pressupostos. Para os fenomenológos contemporâneos, o fenómeno não é mais que o ser em si. A origem desta noção remete-nos para Hegel e para o seu texto A Fenomenologia do Espírito (1807) onde apresenta três grandes etapas no respeitante a diferentes modalidades da consciência: o em-si (consciência como entendimento do 141 Desde meados dos anos sessenta, a hermenêutica tem sido dominada pelo trabalho de Hans Georg Gadamer (A verdade e o método). 116 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 mundo sensível através da percepção e observação) opera por regras para organizar a dispersão dos dados recolhidos; o para si (onde a consciência opera em interacção com o Outro) é o domínio da acção e o em-e-para si (a consciência como afirmação do conhecimento) legalizadora. Subjacente a esta tríade estaria o processo dialéctico (tese, antítese e síntese), cuja última etapa descobre uma consciência desdobrada no confronto entre a experiência da existência singular e o universal. Este campo de estudo da consciência foi retomado por Edmund Husserl (1859-1938) e germinou durante a crise do subjectivismo e do irracionalismo, na passagem do séc.XIX para o sec.XX. O seu pensamento inicial combinou o anseio cartesiano de uma mathesis universalis com uma postura Pós-kantiana, evitando a sistematização metafísica. Até ao aparecimento da fenomenologia, a indução e a dedução (estatística e experimentação) constituíam os dois pilares dos mecanismos da consciência considerados pelo pensamento ocidental. Nas suas Meditações Cartesianas, Husserl apresenta os fundamentos do método cartesiano que numa crítica positiva, o vão levar à redução fenomenológica. Esses fundamentos são: a dúvida metódica face ao não-provado e à incerteza; a negação sistemática e a crítica metódica; a força da evidência (Cogito ego sum: eu penso, logo existo). Husserl propõe que a consciência não é o pensar em si, mas o que se pensa (o cogito), onde a intencionalidade, fruto da consciência, é sempre consciência de alguma coisa. Após uma primeira “redução filosófica” que desloca a nossa atenção das teorias acerca das coisas para as concentrar nas próprias coisas, o processo fenomenológico husserliano comporta duas outras reduções designadas por redução eidética e redução fenomenológica. A etapa redutora compreende três passos: o retorno à coisa, a suspensão do julgamento e o “pôr entre parêntesis”. O retorno às próprias coisas inscreve-se num certo pragmatismo. Ao afirmar que tudo para onde a consciência tende é objecto e que a consciência é sempre consciência de alguma coisa estabelece as bases da intencionalidade. Esta “não tem apenas uma carácter perceptivo: Husserl distingue diversos tipos de actos intencionais: imaginações, representações, experiências alheias, intuições sensíveis e categorias, actos da receptividade e da espontaneidade, etc.; em resumo, todos os 117 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 conteúdos da enumeração cartesiana: Quem sou eu, eu, que penso? Uma coisa que duvida, que ouve, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (Palmer,p.33). Intencionais são igualmente todas as vivências actuais ou inactuais. Podemos dizer que é a intencionalidade que inclui o mundo na consciência, dado que a consciência não é só o pólo Eu (noese), mas também o pólo isso (noema). Assim entendida, a consciência será então activa e doadora de sentido: através dela se passa da subjectividade para a objectividade. “Evidência” é a designação de Husserl para o momento da consciência em que a própria coisa de que se fala se dá em “carne e osso”, “em pessoa”, à consciência; em que a intuição é preenchida (Palmer, p.40). “Husserl declara que do ponto de vista fenomenológico, o Outro é uma modificação do meu Eu (Cit. Por Lyotard na pag. 37) 142 . A suspensão do julgamento (époké) significa a inexistência de pressupostos e o esforço para se libertar de teorias apriorísticas. Defendida pelos cépticos gregos, époké significa parar, suspender, é a suspensão do julgamento, do entendimento. Em Husserl tem a ver com a suspensão do julgamento em relação ao mundo exterior. A fenomenologia destaca-se da atitude (compreensão-explicação) que procura conceitos, referências e conclusões. A filosofia de Husserl não é anti-racional, mas ante-racional: “há sempre um pré-reflexivo, um irreflectido, um antepredicativo, sobre que se apoia a reflexão, a ciência, e que ela escamoteia sempre, quando pretende explicar-se a si própria.”(Lyotard:Pag.11). Para suspender o julgamento há que se circunscrever ao facto (sem pressuposto), “descrevê-lo apenas tal como se nos apresenta” o que provoca um “momento crítico, uma denegação da ciência (MerleauPonty) que consiste na recusa em passar à explicação”. 142 LYOTARD, Jean François: A Fenomenologia, Biblioteca Básica de Filosofia, Edições 70, 1986 (1ª edição: Presses Universitaires de France, 1954) 118 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 «“ Pôr entre parêntises” 143 consiste, em primeiro lugar, em dispensar uma cultura, uma história, em refazer todo o saber elevando-se a um não saber radical». Mas tal recusa, esse dogmatismo, como Husserl lhe chama, radica numa herança, pois, apesar da intenção a-histórica, a história envolve a fenomenologia. É assim que (no final da sua vida) o pensamento de Husserl evolui no sentido de uma sociologia cultural (Krisis, 1936), desenvolvendo a filosofia da vida 144 (Lebenswelt) para onde convergem a história e a intersubjectividade. 6.6 A Teoria da Ideologia de Ricoeur e o Mito, o Dogma e a tradição na Teoria Homeostética Ricoeur demarca-se de Habermas em alguns aspectos (um deles é a ideia da hermenêutica da suspeita), e censura fortemente o marxismo por este assumir que a ideologia é um fenómeno puramente negativo. A Teoria da Ideologia de Ricoeur não se baseia em estruturas formais de racionalidade, mas assenta na concepção aristotélica da razão prática (pragmática). Sugere que a ideologia está relacionada com a necessidade de qualquer grupo social poderá querer dar de si próprio, para se representar e se realizar “in the theatrical sense of the world”. Sendo assim, a ideologia surge como uma forma de “memória social”, uma projecção simbólica dum passado primordial, através dos quais os grupos constroem criativamente uma representação simbólica das suas origens passadas, o que dá origem ao mito. Ricoeur sugere ainda que as funções da ideologia têm um papel simplificador e esquemático desenhando códigos ou grelhas que produzem um esqueleto 143 “ Ao meditar (...) na doação originária das coisas (percepção), descobrimos aquém da atitude pela qual estamos ao dispor das coisas, uma consciência cuja essência é heterogénea a tudo aquilo de que é consciência, a toda a transcendência “ (por transcendência, entenda-se: o modo de representação do objecto em geral)” , por meio da qual é posto o sentido mesmo de transcencente. É essa averdadeira significação do pôr entre parentêsis: refere o olhar da consciência sobre si mesma, transforma a direcção desse olhar e levanta, ao suspender o mundo, o véu que ocultava ao Eu a sua própria verdade. Essa suspensão revela que o que o Eu continua sendo o que é, isto é entrelaçado com o mundo...” (In: Lyotard, A Fenomenologia (pág.29). 144 O “mundo” da vida não é o mundo da ciência natural, mas o conjunto no sentido Kantiano, de tudo quanto há ou pode haver na consciência. Sendo doadora de sentido, o mundo que se descobre é o das experiências vividas (Lyotard, pag,42). 119 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 explanatório do entendimento da existência social, e da história humana, sacrificando o rigor em proveito da eficácia. Trata-se do carácter dóxico da ideologia, que permite idealizar e manipular auto-imagens de grupos ao serviço da dominação política. O mesmo acontece com o discurso ideológico que se manifesta através de dogmas e fórmulas ritualizadas. A ideologia está portanto intimamente relacionanda com a arte da retórica: persuasão através da emoção e da argumentação “racional”. É partindo destes princípios que a Homeostética cria os seus dogmas em texto e imagem, ou em combinações verbo-icónicas, ensaiando teorias e acções que visam uma mística. Mística essa que, em virtude das actuais tendências sócio-políticas e conceptuais, se revela afinal uma anti-mística: utilizando os procedimentos/estratégias de criação do dogma, no qual já não é possível acreditar, resta a sua desconstrução, para deles extrair os ecos, as matrizes (o slogan, o ritual, os tiques do discurso) que fazem parte de uma memória social e artística (commom sense) 145 e que quer na teoria, quer nas obras, pretendem não mais que transmitir uma visão critica do contexto social, politico e artístico. A título de exemplo, basta recordar os títulos, os chavões e os efeitos de linguagem (manifestos homeostéticos), que surgindo como “efeitos” (metáforas, metonímias, ironia, sarcasmo) se inscrevem num alinhamento retórico e pragmático. Retórico porque mais do que tentativa de persuasão, estes efeitos se insinuam como reforço e intensificação do sentido do discurso. Pragmático, porque ao incorporar códigos e “figuras” pertencentes ao domínio comum, quer dos usos da linguagem quer da história da arte, convidam o receptor à decifração e reconstituição dum sentido, ainda que à partida este pareça absurdo. 145 Gramsci defende que elementos da ideologia das classes dominantes, acabam por ser sedimentados pelas classes subalternas, no que designa por “common sense” (senso comum). “ Commom sense” is the folklore of philosophy, and its always alf-way between folklore properly speaking and the philosophy, science and economics of the specialists. Commom sense creates the folklore of the future, that is as a relatively rigid phase of popular knowledge at a given place and time”145. Gardiner defende que o “senso comum” consiste também nas experiências e ideias geradas na experiência do quotidiano. Na cultura oral, os provérbios, os dialetos locais, as canções. Pense-se agora nas imagens do quotidiano, nas imagens comuns, via televisão, publicidade, B.D., nas obras de arte mais divulgadas, no kitch. Pense-se também nos estereótipos visuais. emblemas, simbolos como a cruz romana, a cruz suástica, ou matrizes icónicas, como as figuras geométricas nas suas aplicações ornamentais, junto à cultura popular. Este conhecimento resulta, segundo Gramsci de uma “percepção empirica imediata”. 120 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Todo este conjunto contraditório cria uma sensação de perplexidade – o paradoxo: o esvaziamento do significante, das suas condições de produção e origem, dá lugar a uma ressignificação de ordem predominantemente semântica. Ou, como diz Paul Ricoeur “ an ideology is operativ and not thematic. It operates behind our backs, rather than about it. We think from it rather than about it” 146 , o que se traduz na máxima homeostética: “Sei que significa, mas não sei o que significa”. Efectivamente, esta frase aproxima-se do pensamento de Foucault no que diz respeito às relações entre hermenêutica e história. Ele passa do conceito de “geneologia” para o de “arqueologia”, movido pela descrença na validade da apropriação do sentido. É por essa razão que diz que a história deverá ser dissolvida no pluralismo das ilhas discursivas, donde serão excluídas as ideias de conciliação e globalidade, geralmente definidas por “o rosto de uma época” 147 . A desconstrução (esvaziamento) do conteúdo simbólico e reconstrução sob a forma de novo discurso que ocorre no processo da reinterpretação de acontecimentos ou “figuras” aproxima-se da estrutura do mito, porque a sua projecção cai no a- histórico, no comum. Levi-Strauss argumentava que o objecto de análise do mito se deveria procurar na “infraestrutura do inconsciente”, ou na “estrutura profunda”, mais do que nas manifestações da linguagem ou nos sistemas simbólicos, designando-o por isso de “estrutura estruturante”. Diz ainda que o mito não se confina às sociedades pré-industriais, pois, pelo contrário, as ideologias políticas modernas tornaram-se o lugar do mitico por excelência. Também para Barthes, o mito subjaz à ideologia da sociedade moderna, atingindo as mais variadas faixas da vida social (família, cerimónias públicas, religião, etc). Barthes distingue entre sígnos linguísticos e sígnos míticos: os primeiros, denotativos, são transparentes e ambíguos, trabalham à superfície; os segundos, conotativos são latentes ou escondidos. “Myth hides nothing. Its goal is to distort, not to make disapear” 148 Como uma forma de discurso despolitizado, o mito não nega a existência das coisas, mas dessacraliza-as, simplifica-as, retirando-lhes todo o equivoco e ambiguidade. (Gardiner, p.146). 146 Citado in Michael Gardiner, Dialogics of critics, p.125. 147 Ver Habermas, O discurso filosófico da modernidade, das pags.235 à 239 e 246). 121 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Este processo (descodificação e desmistificação do mito) implica, para Umberto Eco, a aplicação de métodos semióticos (“semiological guerrilla warfare”), tornando possível uma leitura cínica do mito. O pragmatismo, entendido como convite à acção, manifesta-se no movimento do sistema para o discurso e é representado pelo pós-estruturalismo. Assim sendo, a diacronia substitui a sincronia; o semântico suplanta o signo e a função ou processo tem proeminência relativamente à estrutura. Ricoeur sugere que a infinita criatividade da linguagem se baseia na polissemia inerente às suas formas (palavra, imagem, som, etc.), amplamente exemplificada pela catadupa de metáforas, trocadilhos, sinónimos, paralogias (com a correspondente tradução inerente a cada uma das formas de linguagem). O carácter polissémico da linguagem implica pelo menos duas coisas: em primeiro lugar, o discurso é sempre caracterizado por “excesso de sentido”, o que requer a interpretação. Em segundo lugar, tal interpretação só pode ter lugar enquanto troca dialógica, entre dois ou mais sujeitos, produzindo-se assim a comunicação intersubjectiva. Por sua vez, em Gadamer, o pragmatismo é visto na relação com a tradição “reason is not our master, but remains constantly dependent on the given circunstances in which it operates”. 149 Para a homeostética, a tradição implica a existência de um material que, sendo permanentemente traduzido, isto é, actualizado, vai ganhando em complexidade e profundidade, apresentando-se em cada actualidade num estado de condensação que urge descompactificar. A tradição é relacionada com traição (em termos etimológicos), com dívida (para com o passado) e com capital, “como um fabuloso tesouro à disposição de todos, mas que apenas raros ousam roubar”. 150 148 149 150 Idem, ibidem, p. 145. Citado por Gardiner, na p.111. Texto 23 (Teoria Homeostética, Anexos). 122 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 7 - Os Princípios Homeostéticos 7.1 Post-paradoxologia ( IN DOXA EST PARADOXA, IN PARADOXA EST DOXA) ... porque as paradoxologias ainda assentam num formulário e numa categorização que traduzem de outra forma a doxa tirânica; fuja esta ou não aos cânones do sistema digital. 151 A situação de apropriação, nos termos homeostéticos designada por antropofagia ou canibalismo, conduz necessariamente ao paradoxo. Na entrevista em anexo, Pedro Proença diz-nos: estamos sempre prisioneiros de situações paradoxais, uma delas é a linguagem 152 (...) o próprio paradoxo é vitima de si próprio. Às opiniões (doxa) opõe-se sempre uma contradoxa (uma opinião e o seu contrário), a paradoxa resolveria, uniria as duas opiniões, e nós não queríamos que essas opiniões ficassem anuladas, pois são importantes no momento da acção 153 . Trata-se de reunir o aparentemente inconciliável e de o reincorporar na produção das formas discursivas, sejam de natureza plástica, literária, cénicas, ou outras. Este processo irá necessariamente pôr em causa todas as concepções separatistas, baseadas na tradicional historicidade dos estilos e das categorias. Será isto o fim dos campos semânticos? Questiona-se Proença: Todas as questões se tornam absurdas. Dois homens põem-se a discutir defendendo teses opostas. A meio da conversa a tese torna-se contraditória e a do opositor por necessidade de oposição também se torna contraditória. A contradição continua a ser sustentável 151 152 In folheto da exposição “Educação Espartana”. Ver a problemática da linguagem em Júlia Kristeva: História da linguagem, Colecção Signos, Edições 70, Lisboa, Abril 1999. 153 Pedro Proença tem como referência os paradoxos paradigmáticos, os quais, fugindo à universalidade linguística, só funcionam dentro de determinado contexto em função do mesmo. (Ver Texto 28.3.). 123 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 porque ambos se esqueceram do que defendiam inicialmente. Há uma candura, uma ingenuidade do desejo de estar em posição de op-posição. Geralmente tem-se medo de sair de uma oposição para cair numa trivialidade. Dá-se uma revolução quantitativa com a passagem do dois ao três. A dialéctica com sínteses não é uma figura trivial. (Texto 35). A paradoxologia terá sido, segundo Proença, uma das últimas preocupações teóricas de Ernesto de Sousa. Com efeito, na página 299 do Ser moderno...em Portugal, Miranda Justo apresenta o texto que Ernesto de Sousa escreveu para a exposição “Atitudes Litorais”, onde o primeiro dos dez pontos do decálogo se intitula Interdisciplinaridade e paradoxologia. Miranda Justo escreverá que a paradoxologia é uma lógica metafórica direccionada antes de mais para a instabilização de uma visão separativa do mundo. É também, segundo este autor, a aceitação de que, não sendo possível fazer recurso a uma verdade das coisas, então é no logos do paradoxo que se pode procurar o momento incoativo, inaugural de todo o mais pensar. Não se trata de mera destituição dos saberes disciplinares, continua Miranda Justo, mas precisamente de um ensaio de compreensão conjunta, de relance perspéctico, das disciplinaridades e da sua insuficiência. Deste modo, tal como na teoria homeostética, faz-se a apologia duma interdisciplinaridade fundada no preenchimento do vazio e da fronteira entre as várias disciplinas. Sendo a post-paradoxologia um dos príncipios homeostéticos, muitos são os textos que se referem à contradição, à paralogia e ao paradoxo. Entre esses destaco o poema intitulado: “PARADOXOS” 154 : A mentira é verdade A mentira é uma verdade É sendo mentiroso que me torno verdadeiro Faz o que não farás! Sê espontâneo! (espontaneidade forçada) Doxa est in paradoxa 154 Texto 6 (Teoria Homeostética, in Anexos). 124 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 O amor é dúvida alucinante É fugindo que nos encontramos (não há paradoxos retroactivos, o paradoxo não é reaccionário) exemplo: a ousadia está no medo o medo é a ousadia com o medo está a ousadia contra o medo está o medo (inversão indutiva) todos os mortais são homens (todos os homens são Sócrates) (tudo foi feito, mas está tudo por fazer) é induzindo que deduzimos e deduzindo induzimos esperando desesperamos a verdade é verdade? É mesmo verdade a verdade? Toda a verdade é verdade? Nem toda a verdade é verdade? Então há verdade que é verdade e verdade que não é verdade? Em “Contrainducção/Aposta”155 , Proença recorre a Pascal, que, procedendo contraindutivamente, contrapõe a certeza do desconhecido à incerteza do conhecido: “A incerteza do conhecido é o acaso do saber, a des-construção que todo o conhecimento porta, a submissão à ausência de sentido (que é uma tirania tal como a presença do sentido: todo o sentido habita – isto é, co-habita – num “entre” a ausência e a presença, no topos-atopos-utopos do desocultamento /ocultação). A certeza do desconhecido é entendida como aposta, ornamentada com uma enorme quantidade de atributos e de ganhos. A certeza do desconhecido é o “fruto proibido”, acessível pela via da outra 155 Texto 10 (Teoria homeostética, in Anexos). 125 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 incerteza, a incerteza do jogo, do ganho / perca, do desocultamento / ocultação da certeza (...). Há como tal uma perversão do jogo (como a palavra “per-versão” o diz). Isto leva-nos a meditar sobre a ideia de perversão, da operatividade da per-versão na argumentação (na se-ducção). A per-versão é uma forma de paradoxo paradigmático: a predicção paradoxal. Joga com antecipação e com a incerteza e o que produz é a des-construção do jogo, isto é, de um paradoxo que vicia o jogo, mas do qual é impossível sair sem uma aposta, aposta essa que repousa sobre uma equivalência entre o provável e o improvável. Essa aposta, no entanto, mantém, ou aumenta as expectativas, colocando-as ao nível da consciência, do debate (polemos) dentro da consciência, na única forma de não contradição que é o diálogo das contradições”. É por essa razão que afirmam no Texto 8: “A nossa modernidade é a adivinha. O orgíaco futurar, o procurar na desierarquização, na mistura das culturas, nos erros. Mas procurar não basta. Não estamos aqui só para salvar nenhuma memória. A nossa instabilidade é promessa.” (...) a nossa ingenuidade só poderá advir da nossa consciência. A materialização das nossas seriedades é um jogo em que nenhum pressuposto é rei, mas todos podem ajudar. Os paradoxos e as contradições que isso permite devem ser entendidas nas complementaridades possíveis (locais e globais), ou / e nas interacções. (...) A incerteza é entendida como interacção de convicções incompatíveis. Como dogmatismo em metamorfose. O Humor e o Riso neste caso não se cingem à paródia festiva que alterna com os ascetismos e as seriedades. Antes será uma paródia ascética ou uma seriedade exuberante. Existe uma alternância de innensidades, de focagens mas sempre dentro das práticas paradoxais.” E ainda no Texto 18: “Agora que o ser moderno se cristalizou na “adivinha” – xamânico oficio -. E é na adivinha que se exerce o instaurar. Dar espaço aos dogmas. Ou a pequenas frases 156 como “paradoxa est in doxa”. 156 Eis algumas “Paradoxas/Doxas homeostéticas”: “Espontaneidade forçada” (Xana). “É fugindo que nos encontramos” (M. Vieira). “Por um academismo centralizado e corrupto” (M. Vieira). “ Doxa est in paradoxa/ Paradoxa est in doxa” (Pedro Proença). 126 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Será esse príncipio da incerteza que irá levar ao questionamento da própria arte. Vejamos o Texto 15: ARTE / NÃO ARTE Será o Não –Arte Arte? Será a Arte Não-Arte? Ou: Será o inartístico possível e a arte possível sem o inartístico? A arte como arte como arte é arte? (claro) Será a arte como tautologia a única arte? (não) Pode tudo ser arte? (talvez) O conceito de arte é vago? (sim senhor) Há necessidade em definir para fazer arte? (ainda não sei) A anti-arte é arte? (R: a anti-arte nunca existiu?) (interlúdio: imagine-se alguém que ignore completamente o inglês, vendo uma obra tautológica de Kosuth. Para ele que tem uma noção de arte, será essa obra “arte”?) A arte é feita pelos artistas? (nem sempre) A arte é concebida pelos artistas? (idem) A arte é ordem? (sim) Há arte sem ordem? (não) (nota: nunca há o “retour à l´ordre”, há é uma sua simplificação ou entropia) Qual a relação da arte com o inartístico? (de fome) A questão de D.: “Haverá obras que não sejam de arte?” a resposta é: “para quem?” Acabar com a diferença entre a arte e a vida (Fluxus) H á obras de arte melhores que outras? (sim) Como o sabemos? (é difícil. O meu critério é culinário. Logo há obras mais saborosas do que outras. O outro critério, subjectivo, é o hedonista, que eu aceito). Pode-se fazer arte sem saber o que é arte? (sim. Pode-se ter uma actividade que ignorando o que é o conceito arte possa coincidir, para um outro, que a observa, como arte). O conceito de “arte” pode ser inartístico? (sim) Nota: a arte não é um conceito, nem um uso desse conceito. Há interesse em separar o conceito das práticas artísticas? (não sei). “Mobilis in mobilis” (M. Vieira). “Non farum putorum” (Francisco Ferro). 127 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Face à incerteza e à contradição é desenvolvida uma tese baseada no gymnasium157 : Ginásio é a luta, o exercício, de várias teses. Enquanto exercício desenvolve uma musculação, uma capacidade de produzir “logoi” (ajuntamentos, poses, discursos), ao mesmo tempo que lança o descrédito sobre eles. (...) A trivialidade apenas se realiza como ficção, torna-se absurda, isto é, torna-se uma fraude, mas como fraude dá acesso a uma trapaça no interior da fraude, a uma fraude, à fraude, ao desparecimento das autenticidades e das fraudes…. Apenas fica algo, (uma musculatura) que introduz, faz aparecer e desaparecer tudo isto. Fica um ginásio e uma gymno-ásia….(Texto 35). 7.2 Parahermenêutica Uma das técnicas da parahermenêutica é a suposição duma presença que se ausentou. Em resposta à dispersão e à ambiguidade do universo pós-moderno, metaforicamente designado por “Babel” (Texto 1), surge a urgência de entender e teorizar o mecanismo das relações intersubjectivas e as suas repercussões na prática artística. O texto Parahermenêutica 158 faz uma breve incursão em autores relevantes e precursores no desenvolvimento das teorias da interpretação: de Heiddeger, refere a hermenêutica enraizada, contemplando a integração do gesto, da voz e da escuta, na região dos actos e dos conceitos; de Saussure, uma hermenêutica designada de escuta microscópica que conduz pela monumentalidade das palavras sob as palavras (Strarobinsky) ... a uma histerização latente de sentido; e o dissídio em Lacan. Os objectivos da Parahermenêutica visam a acentuação do carácter babélico dos signos (palavra, som, imagem), partindo do princípio de que estes são portadores de uma condição dúplice: a do pudor e a da prostituição. O objectivo do pudor visa a ausentação, o empobrecimento e a descompactificação do texto: O pudor não tem como destino criar um vago, mas tornar o texto impermeável (sem permeios)... Isto é 157 158 Ver Textos: 34 (De Gymnanium) e 35 (Arte como fraude da arte). Texto 5 (Teoria Homeostética, em Anexos). 128 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 viver em ascese ( e não, a loucura, a sexualidade, a orgia) de um não dito. O pudor não significa incapacidade de dizer, mas a recusa em dizer. Por sua vez, o dizível conduz à prática da “citação”: “toda a linguagem é (foi e será ) citação em acção”. Não se trata de simples imitação (pastiche) ou reprodução, mas de fazer reviver o que estava destinado ao esquecimento. Com esta prática perseguese um objectivo que visa a universalidade do objecto, sempre referenciável e passível de interpretação. Uma das técnicas da Parahermenêutica é a suposição duma presença que se ausentou. Esta atitude implica a identificação de uma matriz linguística e o seu afastamento deliberado, reconduzindo-nos ao conceito de Infracriptográfico: ... O que a linguagem já disse podemos ter uma pálida ideia, podemos seguir a sua génese na diversidade das suas particularidades, as suas misturas, as suas transformações, em suma a sua história com toda uma preciosa arqueologia de significados Se ao passado podemos ir captar as fontes referenciais ou de ensinamento, a obra existe em resposta ao presente (contexto e subjectividade). A desposse, a passagem do domínio privado ao público, implica o risco e a imprevisibilidade da leitura e a ressignificação por "outros". A esta problemática, que sugere um processo inclusivo (as fontes, o artista, o público), quer na interpretação, quer na extrepertação, atribui o texto homeostético a designação de “co-habitação” 159 . O problema heideggeriano da “habitação” é falso, não cesso de repeti-lo. O verdadeiro problema é o da co-habitação. Embora a arte possa propor um habitar (Dieu est-il inconnu? Est-il manifeste comme le ciel? C´est lá plutôt ce que je crois. Telle est la mesure de l´homme. Plein de mérites, mais un poéte, l´homme habite sur cette terre”. Holderlin). O estilhaçamento do medir, do estar em posse de uma medida acarreta a ruína dos antigos edifícios. A des-construção dos saberes, e as práticas de transgressão deram por outro lado lugar a uma série de inconstruções, a um habitar suspenso, a uma sede impossível de nomadismo (no entanto não se muda de lugares, simula-se antes um espaço, mais esbocejado que vivo, ante uma retórica que mostra pudor perante a ideia de retórica). Porém o nomadismo não resolve nada. A mera deriva não me interessa. Mas interessa-me a pluralidade das matrizes, a interacção, o deslize, os sigilos de cada uma das zonas de predação. Penso como tal que todo o fundar é plurimatricial. 159 Texto 27.3. (Teoria Homeostética, em anexos). 129 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 E ainda: Este co-habitar está no entanto vinculado de uma maneira extremamente forte a vários pais, a várias mães, somos castrados, deserdados, herdeiros. Ou inversamente, atribuímos paternidade ao que já foi, invocamos direitos sobre os mortos, fazemos renascer das cinzas imagens, textos, reivindicamos, ainda que de forma velada, uma autoria sobre eles. Não somos menos autores dos signos que re-produzimos. O habitar desloca-se. Já não podemos, como os cubistas, situar uma imagem de ângulos diferentes sob a coerência de um estilo. A imagem tornou-se incoincidente, suscita representações divergentes. O mesmo lugar, o mesmo ângulo, tem alguém que o diz com uma pluralidade de esquemas. Nenhum recusa forçosamente o outro. Um espaço ptolomaico não é para mim inconciliável com um espaço einsteiniano, nem com qualquer outro tipo de espaço. Nem posso dizer que um é melhor que o outro. Se os posso habitar a todos, se todos me concedem um habitar, a minha habitação é a teia de diferenças, de pragmáticas, de representações, que resulta desses fortuitos encontros. A “co-habitação” é o argumento para o “pluristilo 160 ” homeostético. Este decorre da liberdade em “capturar” os efeitos mais convenientes para a representação, ou da preferência individual por determinadas atmosferas plásticas. O pluristilo homeostético, ou a ausência de estilo na Homeostética, acontece devido à possibilidade de escolhas e preferências artísticas (referentes) e performativas (modos de fazer). O aprender a co-habitar exige por isso uma deslocação permanente em que muitas vezes surgem conflitos, recusas e polémicas pontuais, mas também aceitações, conciliações. A descrença ou o niilismo que uma situação destas poderia provocar traem ainda uma sede de Verdade, uma postura metafísica fundada na lógica aristotélica ... mas é-nos necessária uma verdade fechada? O espaço de Mondrian, de Kandinsky, de Pollock, de Rothko, etc, é ainda um espaço de obcessão metafísica. Um espaço descentrado foi-nos proposto por outros (Rauschenberg, nomeadamente), foi-nos inclusive demonstrado que somos um máquina atravessada diariamente por milhares de escritas todas elas falando línguas diferentes. E há críticos e artistas que ainda falam de estilo, que o protegem, com a mais reaccionária das maldades! Não digo que não haja necessidade de uma coerência, de um monologismo de vez em quando, de um repouso merecido, de um sono uniforme... tudo isso pode assomar como uma delicada paralogia que inflama um magma de reconciliação o sêr sequioso de 160 Sobre “a inexistência de estilo dentro do canône homeostético”, ver também Texto 9. 130 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 repouso, isto é, de morte. Há no entanto que caminhar nessa via de dissídios e analogias (...) o que é co-habitar ? é não só sermos os habitantes, os que se exibem, os que se têm na distância, os que representam, os que territorializam, os que possuem uma memória, mas o sermos habitados (por exemplo pelo eu, o tu, o ele, o nós, o vós, o eles) por uma multidão de daimones (ou anjos) que nos inflamam, que nos traem, que nos conduzem. Este “ser-se habitado” é aquilo a que Pedro Proença chama de entusiasmo. Resultante de um acto, a obra é acentuada no texto homeostético pelo seu aspecto comunicante, no qual a participação 161 constitui o centro e a ponte entre a comunidade e o indivíduo. A "ponte", necessariamente móvel, constitui o veículo do conteúdo incomunicável da obra. A "participação" é vista como a colaboração num destino, por possessão e entusiasmo. São estes os factores que determinam o território comum (a-temporal e transgeográfico) entre o autor e o "leitor". Um território que manifesta a ideia do "continuum" e onde é possível fazer reviver as formas e o espírito que as animou. Os actos entrelaçam-se com as catástrofes, o corpo é prolongado à natureza, a participação é a de um Tudo. A experiência hermenêutica deve ser conduzida pela obra – não se trata de análise, mas de algo captado pelo Ser, sendo o acto interpretativo uma “união amorosa” 162 . O que a homeostética propõe com a parahermenêutica é a paixão dos signos, cujos significantes são esvaziados de significado. As formas, “raptadas” numa dinâmica de prazer caracterizado pela capacidade de sedução e pelo entusiasmo que essas imagens suscitam, serão reutilizadas em novos contextos, como se de sinais abstractos se tratassem. Pelo afastamento da matriz originária, e de todo o peso contextual que a terá envolvido na origem, ressurge o poder evocativo da imagem, livre e passível de interpretações 163 . Será nessa liberdade que se conduzirá o fruidor 161 Sobre “participação” ver Texto 5 (Parahermenêutica). A esse encontro, Palmer chama de “momento estético”, não factual, nem conceptual, mas que acontece (pp.245-246). 163 O acto de “fixação” ou “inscrição” confere à obra um certo grau de autonomia: através da descontextualização, a obra torna-se independente das condições sócio-históricas da sua produção, das 131 162 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 no caminho para a participação. As analogias encontradas pertencem-lhe inteiramente, pois a obra não pretende impor um ponto de vista ou um objectivo, mas antes um encontro de “amantes”. Recuso o eterno diálogo, diz Proença: quero mantêlo e sustentá-lo enquanto for do meu interesse, enquanto me mantiver entusiasmado. Observamos então que não importam as intenções do autor, situando-se esta interpretação a um nível fenomenológico 164 . Trata-se portanto de uma concepção de obra aberta, instável e dinâmica que intersecciona o indíviduo e o contexto nas suas dimensões internas e externas. A Homeostética coloca no entusiasmo o impulso que reúne as actividades perceptiva e receptiva, quer do artista, quer do fruidor. Por sua vez, a produção de sentido, ao residir nas técnicas de sedução, pontuadas pela instabilidade e pelo desejo de alteração, implica necessariamente o compromisso do Outro. Isto é, a constituição do valor estabelece-se na passagem do Outro para o Si 165 . 7.3 Infracriptográfico 166 ... porque o sistema de decifrações e de escutas apenas tem atingido o iceberg, detendo--se na superfície das escritas e deixamdo por descompactar o rumor das entranhas com o seu lixo arcaico. 167 intenções do autor e das expectativas da audiência. A obra projecta um modo de ser (“mode of being”) a “proposed world”: “the text transgresses closure because the world it projects outward can be appropriated in a number of different ways concomitant with the socio-historical context of its reading- reception” (M.Gardiner, p.128). Bakthine considera esta “emancipação do texto” da maior importância para a distância crítica, implícita no acto da interpretação, argumentando que a hermenêutica não assenta no sentido escondido atrás do texto (intenções do autor, por exemplo), mas no próprio sentido do texto. Esta apreensão requer uma pré-compreensão que converte a ilusão em conhecimento. Por sua vez, Ricoeur reforça a ideia de que o conhecimento deve ser entendido como permanecendo parcial e fragmentário. 164 A crítica fenomenológica, incorporando a compreensão e a consciência histórica, veio desencadear a reflexão sobre a temporalidade. A obra situa-se no presente, mas também na recordação e na antecipação, resultando daí uma interpretação dinâmica, porque se altera de sujeito para sujeito. O significado será então atemporal, dinâmico e pessoal. 165 Sobre Valor e Produção de Sentido, ver Texto 16 (Dicionário) – (Teoria Homeostética, em Anexos). 166 Ver TEXTOS: 23; 27.3; 31. 167 In: Folheto da Exposição “Educação Espartana”. 132 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 O conceito de infracriptográfico surge na Teoria Homeostética em reacção à afirmação de que a arte se faz devido à pressão das precedências (arké). A precedência traduz-se por uma série de pressupostos históricos e futurizações tidas como cíclicas. Nas concepções formalistas existe a tendência para agrupar e uniformizar as ocorrências e a produção artística sob um estilo ou categoria, o que tem conduzido à proliferação dos “neo(s)” e dos “pós”. Sarduy, Calabrese, Gilo Dorfles, Eugenio d´Ors, entre outros, defendem que a nossa época se caracteriza por um carácter barroco. Outros há que defendem um neo-romantismo; outros, como Jenks, que vêem na arte actual um retorno a procedimentos que caracterizaram as práticas renascentistas (post-modern classicism), ou ainda, como Bonito Oliva, que encontra analogias com o maneirismo. A teoria homeostética afasta-se das tentativas para encontrar categorias, ou caracteres dominantes. O que se propõe com o conceito de “infracriptográfico” é uma dessacralização das precedências (arké), através do afastamento e da diluição das matrizes. O conceito de “infracriptográfico” suscita questões relativamente à temporalidade da cultura, quer através da acumulação, quer da disseminação da história e da tradição, questões estas que interagem com a actividade receptiva do artista, no momento de apropriação dos seus referentes e fontes de inspiração. Pretendendo ir para além da superfície, o desejo de alcançar a “sub-camada” é referido como “observação do centro da terra como algo de incontaminado, inobservável” (Texto 27.3). Esta retenção essencialista verifica-se na inscrição infracriptográfica, que, sendo deliberada, se destaca pelo desfrute dos códigos, como um gesto de vontade ou de desejo de presentificar um “não-se-sabe-o-quê”. Trata-se de uma inscrição descodificante que dialoga e descompactifica os códigos. Como exemplo dessa inscrição surge igualmente a ideia de uma “alfabetidade visual” que o autor (Pedro Proença) observa, quer no primitivismo, quer no grafitismo. Algo que, 133 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 fugindo ao “quadro” e ao “estereótipo”, se concentra e conserva o essencialismo da inscrição, da marca do artista168 . Considerando que a transparência do signo é aparente, pois oculta um lixo inominável de signos e transignos sobrepostos que o signo tapa, ou seja, camadas sobre camadas de significados decorrentes dum longo processo de transformação, metamorfose, desvios ou agregações de sentidos, o palimpsesto deixa de ser visto como simples acumulação, tornando-se antes o resultado de uma intenção que confere interioridade à obra, deixando entre-ver. Não se trata portanto de uma velatura, mas de um veículo portador de resíduos: Este palimpsesto opõe-se a qualquer espécie de velaturas: é a opacidade que comanda este jogo, como se dois momentos se sobrepusessem e no segundo apenas restasse uma míngua de permanência, transitasse muito pouco. Há um emudecimento do que passou, mas há acima de tudo a sua surdez: ele pode dizer-nos algumas coisas, mas nada pode escutar. Logo: a história não dialoga entre si, apenas alguns sussurros nos chegam (Texto 31). O palimpsesto é definido como a interioridade dos signos. Sendo o signo um Duplo, ele já o é por natureza na relação entre o significado e o significante, e é-o também pela sua qualidade comunicacional (uma figura para a eternidade), onde simultaneamente revela e esconde: “Há imensos nós, há resíduos que vão contaminando o meu meio. Há a pressão de uma tradição que lhe foi reactiva “ (refere-se ao primitivismo) “há uma redomesticação de um palimpsesto de “cultura” que não chega a tapar tudo. À cintilação que conduz ao facto do sentido ser imparável, chama-lhe Barthes “significância” distinto de significação” (Texto 29). A “escuta” e a memória constituem procedimentos contra a força da precedência. Como mecanismo de apropriação de dados, a escuta supera e enfraquece a arké, 168 Esta “marca” não se deverá confundir com estilo ou com assinatura, será antes o que permite estabelecer a coêrencia (ductus) não necessariamente dum conjunto de obras, mas de uma mesma obra, ou traçado. Esta concepção aproxima-se mais da ideia de “impressão digital”, algo como a transmissão e registo dos factores pulsionais. Na actividade da apropriação, a “marca” distingue-se pelo seu aspecto ob-sessivo e proeminente. 134 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 detém-se em algo que a precede (os índicios), em algo que emana dela (os códigos), em algo que a desconstrói, retirando-lhe a estrutura e reduzindo-a a pontos. Este processo de desdomesticação remete-nos para uma espécie de arcaísmo sem arké, conquistando-se assim um lugar violável por excelência, o lugar da tradição como capital disperso, como um fabuloso tesouro à disposição de todos, mas que apenas raros ousam roubar (Texto 23). Por sua vez, a memória, considerada como um bosque cheio de pequenos tesouros, permite tornar tudo contemporâneo, isto é, tudo o é susceptível de se tornar contemporâneo: Tudo o que trabalha para que as presenças se presentifiquem “(...)”tudo o que contribua para a sua aparição” 169 . Em consequência deste procedimento, o processo criativo passa a ser entendido como um “jogo” onde não existem prescrições ou regras, ficando dependente da anarquia, da anomia e da atopia 170 . No entanto, e apesar deste aparente vago, dá-se uma emergência intencional, por via da descompactificação. Será esta que irá conduzir a uma triagem, a partir da qual se retêm as proeminências 171 (figuras de elevado potencial pregnantizadas), sendo que no rememorar dessas figuras se pode operar o re-volar, o aumento do entusiasmo, das vontades parturientes. Esta 169 Texto 28.1. (assunto: memória e esquecimento). 170 O texto 31 esclarece-nos acerca destes conceitos: Anomia: não estatuto; não-lei; não-definição. An-arquia (an-arké): emergência que não tem em conta as causas, que se relaciona com a matriz como “fractriz” (fractura, disseminação da matriz); não-precedência. Atopia: relacionado com a ideia de Único (Barthes, Heidegger) que o ser funda e é fundador, embora ele próprio repouse no seu sem-fundo, na sua ausência de “arké”. A “Atopia” escapa-se quer à “utopia” (idealização), quer ao “lugar” (domesticação, logos). 171 Lyotard vem dizer-nos que a matriz residente no mito com a sua perpetuidade significa que resultou duma triagem, triagem essa que obedeceu a critérios. Por sua vez, onde não há matrizes imperam os jogos cénicos, nada é programado e as pessoas que jogam os seus jogos inventam com quê, sem certezas relativamente aos resultados possíveis. Decorrentes do afastamento das matrizes serão os efeitos que vão provar se “ça marche”: “On sera d´une méfiance universelle, mais en même temps, on sera d´une confiance universelle puisque s’il n’y a pas de critère, ça veut dire d’une certaine façon que tout ce qui est donné est vrai. Tout est vrai. Cette vérité là n´appartient au champ borné du vrai/pas qu´est celui de la science, mais elle appartient plus au contraire de la semblance, de l´apparence qui est évidemment, en même temps, un espace de dissimulation mais où rien ne se dissimule, où tout est donné, la dissimulation consistant précisément en ce que rien est dissimulé, tout est donné.” Eis a lógica das aparências. A meta-dissimulação acontece quando o enunciador está implicado no assunto da enunciação. “Chaque fois qu´un énoncé est donné, l´opérateur de métadissimulation fait qu´on est obligé de passer de cet énoncé à l´enoncé inverse, et donc cette méta135 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 rememoração entende-se como superação, algo que acentua a pluralidade do sentir (intensificando-o) (Texto 25). Afastados os procedimentos baseados no dever para com a história, ou para com os preceitos que ela nos legou, resta a idolatria. Assim, os referentes, as fontes, passam a depender duma relação de idolatria (Texto 29): “São ídolos (eidos / ideia) que se recortam como imagens, formas, ideias, adorações, entusiasmos, ainda que esse recorte seja uma mania, uma ficção, um fastio.(...). Essa idolatria é um dos prazeres que o grupo homeostético proclamou (…) a primazia dos ídolos sobre as pregnâncias que o possam envolver; os cultos, as construções, as organizações, as cidades. O que nos interessa nos ídolos é a quantidade de coisas que eles podem suscitar – contra arte ocidental, que é uma representação sem idolatria, sem paixão. Atendendo ao facto de o ídolo manifestar uma relação íntima com o material de que é feito, defende-se o reencontro entre o oikos (“o lugar inscrito no traçado das obras”) e a matéria prima. Será quem, apesar da relação de disseminação com a história e com a tradição, subsistirá um reencontro desencadeado pela materialidade das obras ? Gosto da história como de desenhos, de pequenos quadros (Lorrain, Turner, Piranesi), de expressões macias, de pequenas narrativas. Não aceito a história como uma grande narrativa, nem acredito nos grandes momentos históricos (...) Que questões é que a história nos pode pôr? Não estão elas circunscritas pelo oikos mudo que as envolve? Poderia dizer: “Amo o maneirismo, há um conjunto de problemas que são similares aos que hoje se põem, há que analisá-los!” No entanto para que hei-de analisá-los ... Talvez isso me traga alguns ensinamentos, alguma afortunada solução. Tudo isso é possível ou útil até. Mas apenas entendo isso como uma paixão. Leitura de hieróglifos, esfinges que em lugar de interrogarem são interrogadas. Como nos sonhos: o sentido que eles tomam não está na cifra, mas na decifração que a consciência lhes impõe. O inconsciente é mudo. A história, pelo contrário, é surda. (Conclusão de um asno: não há nenhum diálogo entre inconsciente e história) 172 . dissimulation est en même temps le moteur de cette machine. C´est une machine qui a vraiment la duperie comme moteur.” (Lyotard, 1975) 172 Texto 28.6. 136 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Não se trata portanto de fazer uma descodificação, no sentido do exercício interpretante, mas de activar uma receptividade sensível a aromas e atmosferas visuais, algo que tem no voyeurismo o seu ponto de partida. Há textos, tecidos, peles, e não tenho objectos, e o que me interessa dessas epidermes é toda uma cintilação faustosa: é nessa cintilação que recolho os “primitivismos”, primeiramente porque melhor se adaptam a essa demência combinatória, a uma determinação mais deductiva ou abductiva do que inductiva, segundamente porque essas formas exercem uma eficácia para lá do plano formal, exercem um fascínio de não gramaticalidade, como se algo difuso as envolvesse, um perfume. E esse perfume é o que se pretende traduzir, refazer, num contexto devastado pela impetuosidade atlética ou pelo projecto de uma semiologia exclusivamente visual. (...). (...) Quero saber algumas coisas e depois sentir uma espécie de odor forte, por vezes excitante. Quero fazer uma caminhada, mas de olhos vendados. Não me quero reduzir nem ao que o objecto é, nem ao que eu sou. Não o quero capturar e mantê- -lo como presa, mas apenas lançar de vez em quando o meu desejo, senti-lo de relance. Isto é. Quero estar em diálogo, manter o diálogo o tempo que for necessário (recuso o eterno diálogo), quero sustentar a sua presença, sentir algo próximo, como uma espécie de radar. (Texto 29) Será então pela escuta que se procederá ao desvelamento, não do sentido da obra, mas do sentido atribuído pelo artista / fruidor / leitor aos fragmentos que para si constituiram motivo de “significância”. 7.4 Transmenipeia ...porque entramos numa idade que atravessa o espaço deixado entre o não-dessacralizado; o único espaço em que ainda se pode rir, uma vez que o riso não está nele inscrito. 173 Mais uma vez, partindo de Babel, coloca-se a questão do Valor. Analisando o Texto 16, e após a listagem de questões colocadas no texto anterior 174 , depara-se-nos uma crítica ao Valor, tido como um movimento de pressupostos que se constituem em juízo. Ora, se tivermos em conta que o que caracteriza a época actual é a possibilidade de escolha e de troca, quer dos interditos, quer dos pressupostos, 173 In: folheto da exposição “Educação Espartana”. 137 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 esta constante possibilidade de mudança desierarquiza os valores, tornando as práticas e os conhecimentos mais maleáveis. Partindo da dúvida como referencial do Valor, a teoria homeostética propõe a interdição das desvalorizações, com o que irá proclamar e justificar, tanto os “equívocos” como os “erros” que ocorrem no jogo da criação. Decorrente do Princípio da Incerteza (sub-capítulo 7.1. Post-Paradoxologia), desencadeado pela avalanche da multiplicação dos sentidos, encontra-se justificação para que a ingenuidade possa ser brilhantemente proclamada: (...) E a nossa ingenuidade só poderá advir da nossa consciência. A materialização das nossas seriedades é um jogo em que nenhum pressuposto é rei, mas todos podem ajudar. Os paradoxos e as contradições que isso permite devem ser entendidas nas complementaridades possíveis (locais e globais), ou / e nas interacções. (...) A ingenuidade é para ser brilhantemente proclamada. A consciência do ingénuo e a consciência ingénua. A história e a reflexão opôs uma a outra, mas é óbvio que a consciência sempre foi ingénua. Certas ideias e conceitos e que foram o auge da consciência de determinadas zonas históricas surgem-nos muitas vezes risíveis e inadequados. Neste caso é a nossa seriedade que julga. Como espectadores fictícios de um referencial “futuro” podemos rir-nos dos conceitos que hoje praticamos. Hoje a perca de Sentido deve-se sobretudo à avalanche da multiplicação dos sentidos. (Texto 8). Face a uma situação tão abrangente, uma estratégia possível é a dum humor sem precedentes. O humor de alguém que pasma diante das possibilidades que se lhe oferecem. Continuando com a leitura do Texto 8, vejamos: Simulacro de oralidades bárbaras, ou de gracejos gaguejados por múmias, trácios e mongóis, estas imagens frenéticas galopam como orações descentradas, segmentos de traduções da Ilíada, Livros de Horas ou delírios poéticos de taoístas bêbados. Parafraseiam por outro lado teorias inconceptualizáveis localizadas em mimetismos de mimetismos, mimetismos toscos que se desfazem no exagero dos tiques, na abundância das inscrições, num humor de Calígula... Paródia de pedaços. Cada narrativa ao invocar a sua disseminação adquire um riso que se alastra para lá das ruínas. 174 Texto 15 (“Arte/ não Arte”). 138 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 E por essa razão Proença afirma no Texto 19: O discurso que sinto, e que desejo praticar, é aquele que simultaneamente sacraliza e profana, invoca deuses e derruba-os, postula interditos e troça deles. (...) Nenhum sentido de dramatização nisto, nada de tragicómico, etc., mas apenas a tensão dos lugares, o drama como intensidades dos desejos. Melhor será chamar-lhe paixão, ou paixões, um estado de deleite e desejo que aspira sobretudo a um Outro, mas um estado de paixão em que a dissolução, essa passagem ao nada, ao tudo, ao muito, não entra em contradição com os princípios de conservação, para não dizer, porque também, de regressão. Polifonia é a designação de Baktine para a “avalanche da multiplicação dos sentidos” e para as infinitas combinações e possibilidades que os “textos” nos podem oferecer. Decorrente do dialogismo, a polifonia significa a permeabilidade linguística, surgindo da pluralidade da mistura das “vozes” (recuperações e reconhecimentos, restos) provenientes dos enunciados (obras) da humanidade. Integrando-se no conceito de intertexto 175 , o processo criativo e a respectiva obra constituem produtos de captações e de todo o tipo de recursos, provenientes não só da leitura de outras obras, mas também de assuntos e materiais tradicionalmente considerados como não pertencentes à disciplina, mas que suscitam a imagem. Recusando o impulso hegeliano no sentido do “conhecimento total”, e afirmando que todo o conhecimento é falível, limitado e prático, Baktine contextualiza pragmaticamente o conhecimento, tornando-se este ajustado às necessidades do receptor, na problemática da comunicação/intenção. Esta forma de contextualização é por isso formulada em termos estéticos, mas também políticos, pois requer uma intervenção/participação. À “interacção dialógica”, proposta por Baktine, acrescenta-se a libertação do potencial das formas da cultura popular com todo o seu poder desconstrutivo. Para este autor, o carnaval (a cultura folclórica, o humor popular, etc…), será uma estratégia dissolvente dos truísmos auto-legitimadores e da razão burguesa: ao inverter a ordem estabelecida e celebrando a alegre relatividade de toda a ordem e 175 Sobre “Intertextualidade”, ver Texto 17.4. 139 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 estrutura, a lógica do carnaval pode quebrar a hierarquia social e as barreiras culturais. Se Ricoeur conecta ideologia e utopia, Bakthine faz do carnaval uma estratégia da utopia, sendo esta uma das formas para combater as tendências monológicas da sociedade. O princípio da gargalhada e o espírito do “carnaval”, no qual o grotesco 176 tem um papel essencial, desfamiliarizam o presente estado de coisas, rehistorizando o que é tido por eterno e imutável e relativizam os reclamantes da verdade através duma alegre paródia à razão institucionalizada. Ainda relativamente à Utopia, podemos ler no final do Texto 27.1. : As Utopias podem no entanto ser beberagens magníficas quando bem administradas. O artista é um xamã que as confecciona, que leva o espírito a regiões insólitas, que retorna, e é um habitante, um cidadão jogando na roleta social, um transgressor subtil da ordem, e um continuador dessa ordem que transgride. Contra a uniformidade, ou como escreve Feyerabend, “contra o método”. E no Texto 17.1.: A utopia nunca poderá ser um sistema, mas pode ser prevista dentro dum sistema – aprender a viver a Utopia, isso já vai dentro da pintura. 176 O conceito de grotesco apareceu na Renascença, quando a palavra grotteschi foi aplicada a um novo tipo de arte decorativa que incorporava elementos humanos, enfraquecendo a distinção que tradicionalmente se fazia entre o figural dos centros e o ornamental das periferias. O grotesco vai-se desenvolvendo à medida que os artistas foram descobrindo novos modos de manipular “estratégias de contradição”. As “grotesqueries” exigem e evitam definição. As suas formas não obedecem a regras préestabelecidas, e por outro lado não são tão desfiguradas que não as reconheçamos. Existem numa margem da consciência, entre o sabido e o não sabido, o reconhecido e o não reconhecido – contêm algo que nos chama a atenção, mas não satisfaz o nosso entendimento.Questionam o nosso processo de organização do mundo, da divisão do continuum da experiência em partículas conhecíveis. Harpham (On the grottesque, Strategies of contradition in art and literature) considera o grotesco um conceito sem forma (são-lhe atribuídos nomes tão vagos como monstro, objecto ou coisa). As palavras designam desfocagem e ultrapassagem da linguagem. Diz Harpham - defesa contra o silêncio, onde as outras palavras não têm cabimento. “Não-coisa” é outra designação para grotesco, reagindo a mente com estranheza a estas formas do ambivalente e do anormal, que saem fora do sistema das classificações estabelecidas. Não porque sejam pavorosas, mas porque, no meio de uma determinada impressão de monstruosidade, há nelas muito de reconhecível. Estas formas intercambiáveis estão ligadas tanto no plano da linguagem como no do inconsciente. Embora reconhecíveis, não se lhes pode atribuir nome fora do seu contexto habitual. Grotesco é, nas palavras de Harpham, designação para “paralisia da linguagem”. A forma grotesca é também associada à expressão de corrupção, ou debilidade espiritual, se bem que uma grande vitalidade a domine. Essa vitalidade é a rebelião, o emblema do pecado, ou (nas palavras de Lavater – citado por Harpham no capítulo I, p. 8 e segs.) a destruição da ordem. 140 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Encontramos nestes autores uma relação entre Utopia e Transgressão 177 . Para Baktine a estratégia é o Carnaval. Também para a homeostética se trata de carnavalizar o estado actual das coisas. Segundo Fernando Brito (entrevista em anexo): Eu via a homeostética como os Irmãos Marx da arte portuguesa. Tratava-se de responder ao absurdo das coisas com um absurdo ainda maior. Penso poder considerar que é entre a utopia (por diversas vezes referida nos Manifestos) e a transgressão que se situa a vivência homeostética, no seu aspecto intra-mural. 178 Caracterizando os anos oitenta como um período de “masturbação retórica”, será esta situação que despoleta uma espécie de revisionismo, dentro da qual se rejeita o sincretismo em favor do anacronismo 179 . Por outro lado, situando o carnaval entre o rito e a retórica, os centros, os lugares originantes, passam a ser entendidos como simulacros, cujo repensar implica um “esgravatar” impelido pela curiosidade. No texto 18 (Teoria Homeostética) podemos ler: (...) O carnaval situa-se agora entre o rito e a retórica. Os centros, as matrizes, os lugares originantes passam a ser entendidos como simulacros. Modelizáveis, é certo. Para os repensarmos tivemos que recorrer ao Palimpsesto. Esgravatar. A memória não era suficiente, nem a sua fantástica harmonia. Passou a ser outra coisa, num secretismo voluntário, que excita os espíritos curiosos. 177 Na sua Teoria da Paródia, L. Hutcheon destaca, a ironia como uma das estratégias da paródia. Também aqui surge o papel activo (doador de sentido) do interprete, bem como o caractér transgressivo da paródia. A ironia tal como a paródia constituem formas sofisticadas de expressão nas exigências que faz aos seus praticantes e interpretes. Ao contrário das formas mais monotextuais, como o pastiche, que acentuam a semelhança e não a diferença, poderá dizer-se que em certo sentido, a paródia se assemelha à metáfora. Ambas exigem que o descodificador construa um segundo sentido. Ironia ou paródia, uma implica a outra. A paródia é fundamentalmente dupla e dividida, uma espécie de transgressão autorizada resultante dos impulsos duais de forças conservadoras e revolucionárias. (Linda Hutcheon, pags.39 e 50). Por sua vez, em Jauss, e no que se refere aos modelos de identificação e comunicação estéticas, considera que o modelo irónico é o aspecto negativo da identificação catárquica, com o qual no entanto, a função de ruptura com a norma é activada (Jauss, 166). 178 A atribuição das designações intra-mural e extra-mural define a duplicidade homeostética, significando a primeira, o envolvimento do grupo, e a segunda, a exteriorização do mesmo. De notar que esta duplicidade, em termos políticos, representa dum modo alargado o “período de transição” que procurei caracterizar na primeira parte desta Tese. 179 Ver Textos: 17.3. e 25. 141 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Nesta tarefa de reconstrução, o texto homeostético destaca o mimetismo pelas suas potencialidades na aprendizagem das “características estilísticas”, entendidas como o que existe de proeminente, de saliente e caricatural, funcionando estas como aquisições sígnicas para o trabalho da simulação, ou encenação de novas situações. A “mimesis” 180 ressurge hoje revalorizada e reavaliada pelos teóricos, quer da literatura 181 , quer das artes plásticas. Na teoria homeostética, ela surge dentro do contexto do “diálogo” e por necessidade do mesmo: Durante séculos a arte foi a moeda de troca entre humanos e divinos. O que a especifica é a oikonomia, a região das trocas, o território deuses / homens. Como tal coincidia com o que se chamava religião. Com o nascimento do humanismo a mediação entre os homens, o domínio das ideias passa a a ser um traço da troca. Este domínio das ideias encontra-se associado à acumulação de capital. Uma ideia deve constituir capitalização, o saber deve ser entendido como uma acumulação, um valor central (seja esse saber técnico- o de performance – ou uma competência – a ilustração de um ideial). Outro conceito lhe sucedeu, o desse topos se isolar, o topos do entre, o que permite a capitalização, aspira ao conhecimento da sua constante, da sua essência, ao seu saber como linguagem. O resultado foi um empobrecimento do “entre”, uma não actuação para fora do seu domínio, em suma, uma “autofagia”. Hoje a arte deve libertar-se desse estado de onanismo e voltar a constituir uma mediação entre saberes, pragmáticas, deuses, mas também ao diálogo com o seu próprio topos, só que se diálogo só é possível na copulação com o que lhe é Outro, isto é, assumindo o transacto, a acção para lá do seu topos, isto é, um alargamento do topos a toda a sua outridade, a arte, como tal, deve constituir a troca por excelência do devir, substituindo a moeda “ (…). “Só na plurimimesis é possível o progresso mimético, e o progresso mimético consiste sobretudo num salto na apreciação. (Texto 14). 180 O humanismo da Renascença, reinterpretando a teoria platónica das ideias, delegou na actividade artística o trauma, de esta não ser mais que uma má mimesis e conferiu-lhe a mais alta missão cosmológica, a de mediar entre a realidade da experiência sensível e a visão teórica (Jauss, 146). É nesse alinhamento conceptual que Cézanne utiliza o termo Construção para designar o processo criador da realização e que se opôe à pintura mimética (Jauss, 154).Por sua vez, o principio da visão autónoma (que vai desencadear o formalismo), dirige-se expressamente contra o platonismo, e a separação que este opera entre conhecimento e actividade artística, mas exclui a imitação da natureza (mimesis) e o “dejá vu” (anamnesis). 181 Destaco como referência: Fernandes Maria da Penha, Mimese Irónica e metaficção, Tese de Doutoramento, Universidade do Minho, 1995. (Possível de consultar na Biblioteca da Reitoria Nacional). 142 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 “Citação em acção” e “Plurimimesis” são acções que pretendem responder à necessidade de criar relações, de unificar, porque, como diz Proença, se não vivemos dentro da unidade, também não podemos viver fora dela. A mimesis poderá ser simultaneamente uma estratégia de apropriação e um produto resultante, quer da intertextualidade, quer da interacção do sujeito no mundo (Lewensbelt- Husserl), quer no mundo das obras (metalinguagem) 182 . O que pretendo opor à autonomia da mimesis é a economia da mimesis. Se a autonomia é necessária, é um devaneio metalinguístico, esse devaneio é uma desmaterialização, um deslizar do fluxo da vida. Na economia da mimesis existe um retorno ao território, a uma dimensão pragmática, e porque não dizê-lo, do utilitário. A arte não pode constituir um mero desperdício poético, mas ingressar como Técné, no aparecimento do espaço do entre as diversas mimesis, isto é, o território das produções. O que entende por economia é a apropriação de uma plurimimesis para uma produtividade inerente a cada topologia, sendo o lugar plurimimético o entrelogos, isto é , o próprio Logos. (Texto 14). Na re-avaliação da mimesis, considero pertinente a tese de Linda Hutcheon 183 que defende a paródia como uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irónica; repetição com distância crítica que marca a diferença, em vez da semelhança. Não se trata de uma imitação nostálgica de modelos passados, mas de uma confrontação estilística, tendo como resultado uma recodificação dos dados captados. Por sua vez, para Júlia Kristeva, citada no Texto 28.5, «a menipeia é estruturada, assim, como uma ambivalência, como uma sede das duas tendências da literatura ocidental. Representação pela linguagem como encenação, e exploração da linguagem como sistema de linguagem correlativo de signos. A linguagem da 182 A propósito da metalinguagem podemos ler no Texto 21 (Administração da história): Existe a postura de significação, que é um acto de dádiva, e a postura do significante que é metalinguistica, e por isso mesmo, autofágica. O que não significa que a metalinguística seja caracterizada por autofagia. Antes pelo contrário. Só os actos verificatórios o são quando aplicados a “objectos usados”. A postura metalinguística forma três níveis, dois positivos e um negativo. Os positivos são: a) suscita pragmáticas ortodoxas, a sua performance é governada pelo não-desvio, por interditos, por uma experiência de sagrado, por um discurso sem resto, simétrico. b) suscita pragmáticas de desvio, que contestam e afirmam o acto teórico, o programa é a surpresa, o facto. O negativo é o que não se liga a uma poética, o seu domínio é o simulacro, a afirmação do poder, etc... 143 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 menipeia é, ao mesmo tempo, representação de um espaço exterior e “experiência produtora do seu próprio espaço”». Outras designações 184 têm sido encontradas para esta característica da arte contemporânea: “reciclagem artística” (Rabinowitz); “tráfico inter-artístico” (Leo Steinberg), que consiste “transcontextualização” 185 de na obras “revisão, de re-execução, arte anteriores, inversão sendo e esta transcontextualização o factor que distingue a paródia de pastiche ou da imitação. Demarcando-se da crença clássica e renascentista que atribuiu à imitação um meio de instrução, a paródia procura a diferenciação no seu relacionamento com o modelo; o pastiche, por sua vez, opera mais por semelhança. Esta relação terá assim mais a ver com o “inter-estilo” do que com o intertexto. A paródia está para o pastiche talvez como a figura de rétorica está para o cliché. No entanto, “tanto a paródia como o pastiche envolvem nitidamente a questão da intenção” (L. Hutcheon, pp. 55 e 56). A paródia assim entendida resulta numa estratégia utilizada tanto para ressacralizar como para dessacralizar. Para Barthes, o leitor (entendamos o fruidor dum modo geral) é livre de fazer associações mais ou menos ao acaso conforme a sua idiossincrasia individual ou cultura pessoal. Estamos então em face duma mimese hermenêutica, relacional e expansiva, já que permite, em liberdade, construir novos 183 Op. Cit. As referências feitas por L.Hutheon podem encontrar-se respectivamente em: Leo Steinberg na pág. 20; Rabinowitz, na pág. 27. Destaque ainda para a referência, na pág.32, à obra de Gérard Genette (1982) Palimpsestes (1982). 185 Texto 17 (“Intenções para mim mesmo”, em Anexos) podemos ler a propósito de intertextualidade: “Por um lado a ideia de intertextualidade é praticada na pintura não apenas no seu interior, mas socorrendo-se da multiplicidade de textos que agrupam (teoria, literatura, crenças, imagens). O que suscita a imagem. A prática citativa / descitativa, ou as pregnâncias. Ao entendermos as actividades fluídicas que se mantém em estado de performance perante um modelo que não se chega a vislumbrar. O modelo é um emaranhado intersubjectivo que não se chega a localizar.” 184 144 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 contextos e sentidos. Ou, como diz Proença (Texto 27.4.) a propósito da estratégia mimética: a passagem da informação consiste simultaneamente numa formação e numa deformação nos dois sentidos da interface, e, no Texto 17.3.: de resto a obra é sempre metamorfose das leituras, citação disfarçada, citação misturada, citação de projecto crítico, e em última análise, citação de lugares, de memória, de pensamento. 145 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 8 - O Processo Criativo A análise do elenco de autores e respectivos conceitos e teorias, aprofundados nos conceitos homeostéticos Parahermenêutica, Infracriptográfico e Transmenipeia, fezme concluir o que me parece óbvio no processo artístico contemporâneo, ou, pelo menos, naquele que nos é proposto pela homeostética e que se poderá traduzir pela sequência: apropriação, desconstrução, reflexão e reconstrução. Processo que também poderá ser traduzido na relação “complexidade/transmissão/ performatividade” 186 . Passemos pois à abordagem desta sequência, através da análise dos textos homeostéticos. 8.1 Apropriação A apropriação está relacionanda com a actividade perceptiva: para Leibniz, a percepção é um estado passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na unidade ou na substância simples. Ele distingue consciência de percepção, dizendo que foi aqui que o cartesianismo falhou, por não ter tido em consideração as percepções não apercebidas e considera que é o “apetite” (apetição) que desencadeia a percepção, ou a passagem de uma percepção para outra. Nos Textos Homeostéticos, a “apropriação” surge através das metáforas antropofagia, rapto e escuta. A “Antropofagia” surge por oposição à “autofagia”, ou ao “monologismo” da prática artística. Deste modo, “apropriação” é relacionada com a primeira operação da “digestão” (processo criativo: a digestão é o que leva e distribui a comida, que selecciona, que elimina, que estabelece a medida necessária, que expulsa o excedente). No texto 28.4., faz-se a distinção entre “comer” e “manducar”: 186 Texto 28.6. (Teoria Homeostética, em Anexos). 146 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 A questão do tempo, da digestão, regressa. Do comer, do como se come, e sobretudo do que não se come. Da proeminência da boca e do ventre. Comer: com-medere. Medere: pensar, medir, tratar (um doente), julgar. Comer é o estar com o pensamento, a medida, o julgamento, o tratamento.” (…) “A palavra manjar tem um significado e uma etimologia diferente (manducare), e é “tudo aquilo que pode deleitar ou fortalecer o espírito”. No entanto manducare ( de “mando”) está ligado a uma voracidade muito mais temporal, uma voracidade como a de Cronos engolindo os seus filhos, devorando tudo, às festas da comida (as Saturnais), a todo um universo mandibular que se centra mais na boca, no mascar, no mastigar, no despedaçar o alimento, na voracidade, na avidez, na pressa, na proeminência dos dentes e nos movimentos da boca, na sofreguidão da gula. Assim o “manducare” opõe-se ao “comedere”; e se o primeiro se centra na ingestão, o segundo (o comer) centra-se na digestão. A digestão é o que leva e distribui a comida, que selecciona, que elimina, que estabelece a medida necessária, que expulsa o excedente (as fezes, a urina). O como se come. Refiro-me aos preceitos, às escritas, às posturas perante o comer. Ao comportamento na “mesa”, à preparação dos alimentos, às atribuições simbólicas implícitas em cada um destes actos. O que não se come. Claro que não me refiro ao incomestível, ao que não é próprio para o estômago, mas ao que deliberadamente se elege como lugar do não –comer. Neste texto podemos observar que o “comer” (o quê e o como: referentes/mecanismos de produção) passa por um processo de abdução (selecção/intenção) cujo critério é simplesmente o da preferência, a partir da qual se estabelece uma hierarquia: « (…) Em primeiro lugar terei que reduzir essas diferenças através de preferências (…) não compete a um artista ser um “salvador” de diferenças, mas sim um “produtor” de diferenças. (…) podem interessar-me determinados elementos de uma cultura e rejeitar a maioria. O que é exactamente o contrário de exercer um juízo: não há exercício nem da razão, nem de um consenso de razões. O que faço é preferir: eleger. E toda a preferência faz uma hierarquização. Ao preferir faço uma pulverização, afasto o excesso de informação, reduzo a um número limitado a partir do qual estabeleço uma relação mais forte (…) 187 ». O rapto 188 (como algo subjacente a todas as obras de arte) é a outra analogia para a apropriação. É a preferência movida pelo desejo (o apetite) que irá levar ao “rapto” : 187 188 Texto 29 (Teoria Homeostética, em Anexos). Textos 27.3 e 27.4. (Teoria Homeostética, em Anexos). 147 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 “Um homem –sabe raptar; uma senhora merece ser raptada” (Almada Negreiros). Côncavo / convexo. A acção côncava do que é convexo. O rapto. Uma predação que não é vã, que resulta numa captura (que merece ser raptada), num objecto côncavo, que é depósito. A acção do artista é mais um depositar, manter prisioneira uma captura, do que emitir sinais que se fixam devido a uma projecção espermática. Um artista não é dono das catástrofes mas apenas o co-responsável por um rapto. O artista: o raptor. A obra de arte: a captura. A minha formulação do rapto como algo subjacente a todas as obras de arte. O artista quer dizer isto: “eis a Beleza, ela é minha prisioneira, dança para mim secretamente, no entanto tiraniza os meus pensamentos, exige-me veneração – esta cativa que me tem cativo!” Depois pensei num artista que tem um harém: “tenho imensas belezas, todas raptadas, um dia deleito-me com uma, num outro dia com várias ... à vez sinto uma insaciabilidade... procedo então a novos raptos ... oh, que sede de raptar!” Quer o “comer”, quer o “raptar” implicam uma “ab-ducção” 189 . Esta expressão significa raptar, fazer sair, tirar, arrebatar. Este rapto rouba ou faz sair de um determinado contexto uma determinada estrutura, assumida como hipótese, aplicando-se a outro contexto, a outra ordem. A “escuta”, já abordada no conceito Infracriptográfico, representa um tipo de apropriação de natureza menos intencional, mas mais fenomenológica ou intuitiva. Ela pretende descompactificar os “textos” (discursos, enunciados textuais ou visuais) para lhes retirar as energias originárias (a “significância”, nas palavras de Barthes). Vejamos um exerto de Texto 19, da Teoria Homeostética: (... ) o que é escutado aqui e acolá (principalmente no campo da arte, cuja função é muitas vezes utopista) não é a vinda de um significado, objecto de um reconhecimento ou de uma decifração, é a própria dispersão, a cintilação dos significantes, incessantemente introduzidos na corrida de uma escuta que produz incessantemente novos significantes, sem nunca parar o sentido: a este fenómeno de cintilação chama-se significância (distinta de significação): ao escutar um trecho de música clássica, o auditor é chamado a “decifrar” esse trecho, isto é, a reconhecer-lhe (pela sua cultura, aplicação, sensibilidades) a codificação, tão bem codificada (predeterminada) como a de um palácio numa certa época; mas ao “escutar” uma composição (é preciso tomar a palavra no seu 189 No tratamento do real, os modos de ducção são básicamente três: a in-ducção, a de-ducção e a abducção. O caso da ab-ducção é (segundo Peirce) o único susceptível de criar algo de novo. 148 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 sentido etimológico) de Cage, é cada som, um após outro, que escuto, não na sua extensão sintagmática, mas na sua significância bruta e como que vertical: ao desconstruir-se, a escuta exterioriza-se, obriga o sujeito a renunciar à sua “intimidade”. (Barthes / Havas). Qualquer um dos processos de percepção e captação de referentes aqui apresentados poderá inscrever-se no que Jauss defende acerca da validez da experiência estética, segundo o qual, pela aisthesis, a obra de arte pode renovar a percepção das coisas, valorizando-se deste modo o conhecimento intuitivo 190 contra a primazia do conhecimento conceptual. 8.2 Desconstrução Ainda que, numa primeira fase, o estruturalismo tenha contribuído para uma noção de desconstrução, esta não deverá confundir-se com a dissecação conceptual. Isolar para compreender melhor correspondia ao modelo formalista. O que nos traz a hermenêutica é a possibilidade do diálogo das parcelas ou fragmentos e a sua reunificação significante. Surge-nos assim a noção de que é pela experiência receptiva (compreensão e intuição) e não pela dissecação que se abre o universo da obra. Desconstrução será então o descascar dos significados construídos. Jacques Derrida (n.1930) representa a guerra contra o pensamento racionalista da tradição ocidental, que considerou dominado por uma “metafisica da presença” (logocentrismo). Ele é contra a noção essencialista da certeza do significado, defendendo que este não é inerente aos signos mas que resulta da relação entre eles. A este propósito, podemos ler no Texto 27.3. da Teoria Homeostética: A des-construção dos saberes, e as práticas de transgressão deram por outro lado lugar a uma série de inconstruções, a um habitar suspenso, a uma sede impossível de nomadismo (no entanto não se muda de lugares, simula-se antes um espaço, mais esbocejado que vivo, 190 Bergson (1859-1941) relaciona intuição e instinto. Para ele a inteligência e o instinto são orientados em dois sentidos opostos: a primeira opera por meio da ciência, chama o objecto, dá várias visões do mesmo, mas não entra nele. O instinto é simpatia, tem a ver com a vida e conduz à intuição. É esta capacidade que permite reflectir sobre o objecto e alargá-lo indefinidamente. A intuição, diz Bergson é essa espécie de simpatia intelectual que nos transporta ao interior do objecto (entendamos em sentido alargado: o Outro), para coincidir com o que nele há de único e, por conseguinte, de inexprimível nele. (Bergson, La Pensée et le mouvant). 149 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 ante uma retórica que mostra pudor perante a ideia de retórica). Porém o nomadismo não resolve nada. A mera deriva não me interessa. Mas interessa-me a pluralidade das matrizes, a interacção, o deslize, os sigilos de cada uma das zonas de predação. Penso como tal que todo o fundar é plurimatricial. (...). “Desconstruir” implica também “descompactificar”, tornar o “texto impermeável, isto é, sem permeios;” a adivinha do “não dito” (“a abrupta passagem pela língua, a salivação, as sílabas entranhadas (…). Se anteriormente vimos a “descompactificação” associada à “escuta”, funcionando esta como uma espécie de estratégia da intuição, com o sentido da “desconstrução”, o descompactar surge como reacção à uniformização (regra, cânone ou estilo), sendo o seu efeito o de uma pulverização. Esta, ao afastar o excesso de informação, reduz a um número limitado aquela a partir da qual se vai estabelecer uma relação mais forte: Descompactificar é desfazer os pactos: romper casamentos, incendiar a própria casa, renegar os seus ideais, quebrar, partir, etc. Mas também pode ser trapacear. Um jogo de esquivanços perante os pactos (e não regras), infiltração na rede parietal, traição aos compromissos, à memória. (…) O pacto resulta de uma conveniência, de um acordo, de uma convergência de interesses. Em suma da constituição de um poder. Compacto é algo que é denso, que tem as coisas juntas. Algo que como denso pesa, opondo-se assim ao que flutua, ao que é disperso, ao leve. Ou uma selvatização que desencadeia a métis: “Pensamento móvel, astúcia, errância, deriva, caça, perigo, etc… a interjeição, os ruídos pânicos (Almada)” : Os códigos assentam em promessas, em pactos. A questão da promessa, a má-consciência nietzschiana que é inerente à promessa, é inerente à própria linguagem escrita. Esta promessa, este pacto são a raiz da uniformização”. Pelo contrário o « pensamento móvel, astúcia, deriva, errância, caça, perigo, etc... A interjeição, os “ruídos pânicos” (Almada), trabalham contra a gramática (“Temo que não vamos desembaraçar-nos de Deus, porque continuamos a acreditar na gramática”... (Nietzsche). Este selvatizar com tudo o que há de pânico (a escuta pânica de que fala Barthes), de ecos e sussurros, de orelhas que se trabalham umas às outras, re-presenta e remetiza uma espécie de arcaísmo sem “arké”, mas ao contrário dos arcaísmos, este lugar surge como um lugar violável por excelência. Mais: a sua presença não advém de um retorno, mas de uma produção sem promessa, como pura dissipação, como muscularização da linguagem, 150 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 em lugar da ideia “culturalista” de que o traço do homem enquanto “antropos” é a linguagem, em lugar de invasão “linguocêntrica”» 191 . 8.3 Reflexão Nesta abordagem, a teoria homeostética apresenta duas posições aparentemente contraditórias. Por um lado, ao propor o “entusiasmo” em alternativa à “com-preensão”, parece divergir da Teoria da Interpretação (Ricoeur) e de um modo geral de todos os hermeneutas, que indicam esta operação como uma interiorização significante, que se traduz pela compreensão. A perspectiva homeostética parece ir mais ao encontro da fenomenologia de Husserl (suspensão do julgamento, pôr entre parêntesis, retorno à própria coisa). Por oposição ao compreender, é-nos apresentado o “possuir e o ser possuído”, com as devidas consequências num acto suspenso que se situa entre a recolha e a produção, ou, se quisermos, entre a interpretação (apropriação + selecção) e a extrepretação: Definição primeiramente pela negativa: ausência de razão como modelo de produção: Segundo: presença de uma actividade natural através de uma metáfora ligada ao corpo (inspirar... e porque não expirar, ou suspirar...” (…) “O que é que se inspira?). Como mecanismo natural ela no entanto opera sobre o artificial. Sócrates inverte o modelo da domesticação. O poeta é transportado por um desdomesticar (o que é diferente de um selvatizar). Terceiro: Um entusiasmo semelhante a ... os interpretadores (aqueles que a partir dum sistema limitado de signos, diagnosticam situações) e aos transmissores de enigmas sobre o tempo, sobre o devir (manipuladores de um tempo que ainda não é). Quarto: eles podem ser intérpretes ou transmissores mas não com-prehendem. E o que é com-prehender ? com-pre-hender é ser detentor do que é prévio à interjeição (ao espanto, à admiração, à catástrofe) Compreender: “Tomar; agarrar; prender. Apoderar-se; apanhar em flagrante; surpreender. Tomar juntamente: abranger; encerrar. Atar juntamente; ligar. Tomar raiz; conceber. Perceber. Atrair; chamar a si. “Há uma carga magnética; uma obsessão de conjunto; um tomar pela raiz (certamente ligada à noção de razão), de encerrar num sistema (compactificar), etc.” (…) “O poeta como tal faz a interjeição: Hem! Não se detém nos sufixos, não a prepara. Não é proprietário, ou mesmo ignora o terreno anterior ao grito; ao grunhido. O que o poeta faz é algo que está 191 Texto 31 (Teoria homeostética, Anexos). 151 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 entre “o grunhido pânico e o nome das coisas” (Almada): “Do grunhido pânico ao nome das coisas, o homem ficou seguro de ter deixado escapar o essencial”.(…) O nome das coisas. (de Onoma cuja raiz é gno-, de gnose; conhecimento). O essencial está nesse espaço dilatado, nesse terreno de caça incerto, nesse interdito que suporta os nomes (Heidegger diria o Ser). Etc. O entusiasmo é essa descida do nome ao grito (…) 192 Por outro lado, surgem relações que merecem ser questionadas como elementos correlativos e auxiliares, devendo esta atitude ser integrada dentro dum contexto dialógico que exprime uma “interiorização significante”, ou a “reflexão crítica” de que fala L. Hutcheon. A apropriação / decifração dos códigos implica uma tradução de “algo” distanciado do receptor ou mesmo esquecido. Esse processo de decifração pode passar por uma série de etapas ou variados pontos de abordagem, tal como nos é dado a ler no final do Texto 29: As artes primitivas estão codificadas segundo códigos que não possuo. A minha situação é a situação que quis traduzir em algumas pinturas: sei que significa mas não sei o que significa.. Sei que sem a existência de uma organização, um código, um desígnio esse meu não saber nunca incidiria sobre este tipo de atenção – a minha atitude seria a indiferença. Posso, através de estudos sobre primitivismo, ter acesso a alguma descodificação dessas imagens (não lhes chamarei ainda signos). A partir desse momento sou detentor de alguma significação, de informação que é agregada às imagens, posso compreender um pouco mais. No entanto continuo afastado do código em que essas imagens se constituem – posso deter modelos que me expliquem mesmo todas as relações. Objecto o seguinte: uma tradução é sempre uma tradução. Assim como cada disciplina tem os seus problemas específicos também as traduções impõem a sua linguagem. Esta objecção é uma objecção menor – os dados do problema são outros: detenho agregados de interpretação relativamente às imagens, mas eles constituem-se também como autonomia. Essa autonomia pode ser re-convertida como “inspiração estética”. Temos dois pontos de partida: as imagens, com ou sem agregados de informação; e as teorias, histórias, códigos, etc. com ou sem agregados de imagens. Ambos são fontes. Fontes de inspiração: (...)”. 192 Texto 28.5. (Teoria Homeostética, Anexos). 152 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Para resumir: o texto que acabámos de ler aponta para a necessidade de se possuirem complementos informativos (visuais e teóricos) para a decifração de códigos, mas, ainda assim, será pelo uso abdutivo 193 que o artista irá exercer a sua “intencionalidade” (Husserl) na selecção das “fontes de inspiração”. 8.4 Reconstrução A arte é ordem? Sim. Há arte sem ordem? Não. Na verdade, a reconstrução dá-se desde o primeiro momento da actividade perceptiva quando esta implica uma intencionalidade que se reveste de formas mais ou menos conscientes de selecção e produção de sentido. Sendo o espaço artístico fundamentalmente uma produção (“um lugar onde são capitalizados uma série de demónios, estejam eles vinculados a aspectos sociais, políticos, económicos psiquícos, biológicos, etc.”) 194 , no desconstrução, reflexão, reconstrução) âmbito desta sequência (apropriação, e mais por uma questão metodológica, atribuo à reconstrução o trabalho de materialização de todo este processo. Chamemos-lhe “a extrepertação” objectivada pela performatividade. Acerca da produção, do percurso artístico e do que está por detrás da obra, podemos ler no texto 27.1.: O agregado particular, chamado “homem” é visitado e ocasionalmente está habitado por “acontecimentos mentais”. Tais acontecimentos podem residir nele, mas também podem introduzir-se de fora. Como qualquer outro objecto, o homem é lugar de mudança de influências mais que uma única fonte de acção, um eu. O que vincula e o que se desvincula, quer na elaboração quer no entendimento da produção artística... o curioso, o desejoso de saber dos intricados enigmas (simulados ou não) de uma obra interessa-se por essa busca a “quimeras” que é a veniência das imagens, o como e o porque elas aparecem ... Traduzem elas mais do que essa ocorrência, em que se particularizam uma série de performances ? Normalmente pensa-se o objecto artístico como um dado.. .ignora-se o que ele foi obrigado a recusar, a negar, ou mesmo a trair. O que ele foi como acontecimento, na materialização de algo suficientemente obscuro, de um não-saber e de um saber que foram companheiros. Nada foi prévio. Mesmo na arte em que a execução é 193 Bergson chamou de “processo de regressão da verdade” a todo o sistema que repousa sobre a exclusão. 194 Texto 27.1. (Teoria Homeostética, Anexos). 153 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 impessoal, susceptível de ser feita por outros que não o artista. O momento do aparecimento pode ter o efeito de um raio, dando-se num instante, como uma hipótese feliz que por estranho destino surge. Instante feliz, mas fugidio. A outra hipótese é o que nos é dado, é o efeito de uma errância, dos erros desperdiçados, em que um lento constituir de território se faz, em que surgem, no solo, ruínas das quais se faz a argamassa para uma nova construção. Esse percurso é o de uma aventura ou de uma brincadeira. Ou: de uma brincadeira aventurosa. Ou: de uma aventura a brincar. Etc.” De certo modo, por detrás da obra está implícita a ideia da hetero-autoria, uma tribo de co-autores (anónimos ou declarados, fantasmáticos ou dissimulados), cujas influências habitam o artista e terão de ser disciplinadas por este 195 . O que nos propõe a Teoria Homeostética, no que designa por ductus (comando), é o movimento tendente à unificação (ao Um) dos dados dispersos, quer no interior, quer no exterior do sujeito. Mas ductus significa também a “coerência”, pela qual se poderá reconhecer a intenção (marca) do autor (Daimon) nessa ou num conjunto de obras. Depois da interpretação, segue-se a exterpretação, com toda a sua função comunicativa. Comunica-se para dar forma a uma ideia, utilizando para isso “um corpo de metáforas” (metamorfoses, contradições, acentuações, convenções) que dão origem ao imprevisível. Este conjunto de “efeitos” redundantes pretende fugir à uniformização porque estabelece tensões não uniformes. Porém, diz Proença, “há que mantê-las sob uma vigilância pessoal, por uma economia capaz de dispor e repor a multiplicação de tensões…” 196 A representação é entendida como a projecção do corpo “do artista” (do autor): O que queremos dar é o nosso corpo, o corpo inteiro contido no nosso corpo. Um corpo que já é a-territorial, cujo espaço não é enquadrado, canonizado, um corpo que é o prolongamento, que é os saberes, as memórias, os esquecimentos ou os desejos“. Asssim considerada, a representação implica o diálogo com o Outro. E, entendida com as qualidades do dialogismo, passa a conter a apresentação 197 porque, 195 Na relação entre a “representação” e a “hetero-autoria”, ver Texto 27.2. (Teoria Homeostética, Anexos). 196 Textos 29 (Teoria Homeostética, Anexos). 197 No Texto 20 “Alguns esquiços/ideias para a representação”, podemos ler sobre a apresentação: 154 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 enquanto se exterioriza, enquanto performance e passagem para algo não totalmente codificado, manifesta as presenças, as vozes, as inflexões como algo não acabado, num movimento de solicitação. Despida dos condicionantes estéticos e normativos que antes se faziam valer 198 , na representação, passam a justificar-se todos os meios inerentes ao jogo de simulação, levando a uma reavaliação da mimesis, que, como já vimos na abordagem do conceito Transmenipeia, tem ao longo dos textos homeostéticos expressões como plurimimesis ou mimesis mimética . O “revisionismo” conducente ao pluristilo e à plurimimesis coloca-nos a questão do critério. Que critério preside à selecção de um estilo em vez de outro? Por outros termos, o que é que define o desencadear dos interesses num autor? A resposta está no instinto, na intuição, sendo portanto de natureza individual e subjectiva: “ o gosto, no sentir do sabor … o que sabe bem é inesgotável para o paladar, para o exercício, para a reprodução, para a extrepertação” 199 . O “pluristilo” é também relacionado com o “nomadismo”: “a circulação de signos, a territorialidade difusa e fractal (as ficções projectam-se sobre a vida), os fragmentos tomando vários aspectos, esta pode surgir como o que se escapa à visibilidade, ficando ao nível da intuição e do desígnio; como colocação pura e simples das coisas, o “isso”, o estar lá, na sua objectualidade pura, na sua diferença/indiferença; como disposição enquanto matéria ou material; ou ainda como acontecimento, sendo neste caso o seu carácter de natureza essencialmente performativa (“o corpo dos actos”). É finalmente colocada a questão: será a apresentação o que solicita a representação? Creio que aqui podemos entender a apresentação como “aparição”. 198 Excerto do Texto 20: “Enquanto foi possível a universalidade, o monologismo, a representação era esquemática, obedecia aos dogmas e interditos que como crenças formavam as coisas. Entre a representação e o objecto existia obviamente a diferença, mas existia acima de tudo uma interdependência, o saber algo podia manipular o acontecer segundo um sistema de crenças e semelhanças. O que é semelhante actua sobre o que é semelhante. A representação não quis iludir o espaço, em resposta aos pavores que a realidade (human kind cannot bear to much reality) suscita. O pânico ainda hoje existe. Foi apenas por domesticação. As ilusões vêm mais tarde, com o maneirismo, com a mania de querermos mais espaço do que aquele que podemos ter, com o fabricarmos um Outro. O corpo torna-se fantasmático. Passamos a confundi-lo com a linguagem. A persuasão de que o corpo é o que se nomeia. Nomeia-se para seduzir. Mas enquanto a linguagem se mover dentro do cânone, não saímos de um labirinto de simulacros que só podem conduzir a um abismo. As paisagens podem vir todas ter connosco, mas enquanto não tentarmos dialogar com a paisagem, tentar aprender a sua linguagem, estaremos sempre num corpo em degeneração” (...). 199 Texto 25 (Teoria Homeostética, Anexos). 155 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 e as ruínas, a prática do simulacro como saída para o simulacro, a consideração de figuras de elevado potencial pregnantizadas” 200 . Sendo fruto do entusiasmo, o “revisionismo” é entendido como superação, algo que acentua a pluralidade. Vejamos o Texto 1 (“Babel”): a prática babelística resulta da crise da memória e da multiplicação da história. Neste texto é focada a prática da citação, na sua relação com os conceitos do "Novo" e do "Outro". O "Novo" é definido, no texto homeostético, como o que surge ou se erige sobre o já existente – “O novo jamais poderá ser " uma mancha cega e vazia como o isso". É certo que nasce do já estabelecido em crise e se vincula às exigências dum modelo. Seja qual for a Utopia ou a recusa de Utopia. Mas esse modelo será sempre um Outro...” Deste modo, a citação enquadra-se na ideia de vivificação do pré-existente, mediante a performance intrepretativa do "actor" (executante, etc.). Será esta capacidade interpretativa e activa (porque se materializa pela comunicação), que produz o Outro, e é também esta capacidade que anula o reducionismo tautológico da citação. ... “O actor não se limita à reprodução, mas inventa as produções.(...) Ao citar ... apenas cria o que estava destinado ao esquecimento”. Se atribuirmos ao conceito "catástrofe", frequentemente utilizado na teoria homeostética, as ideias de ruptura, transformação, imprevisibilidade, a "inversão das catástrofes" (metacatástrofe), procura instaurar um equilíbrio entre o acto de captação dos referentes dispersos e a selecção dos mesmos. “Existe uma espécie de oralidade que nos persegue, um desejo de performance, de memória activa, ritual...”. “Metacatástrofe” significará a capacidade de controlar o caos e será, portanto, parte dum sistema ordenador existente no processo criativo 201 . 200 Idem. Giles Deleuze em Le Pli, capítulo 6, diz-nos o que entende por “acontecimento” e qual a sua relação com o caos. Partindo da ideia de que todo o processo artístico é um acontecimento, atentemos no que diz Deleuze: o acontecimento produz-se num caos, numa multiplicidade caótica, na condição de que um filtro aí intervenha. O caos não existe, é uma abstracção, porque é inseparável do filtro que possibilita a saída ou resolução de qualquer coisa. O caos será para um “many” pura diversidade, assim como o “qualquer coisa” está para o “one”, ainda não uma unidade, mas qualquer coisa que regula uma qualquer singularidade. Como é que um “many” se torna um “one”? Para que saia qualquer coisa do caos é preciso que este passe por um filtro (“crible”), que ele aí intervenha como uma membrana elástica e sem forma, como um campo electromagnético (esta forma de energia poderá ser designada de entusiasmo, mas também de intencionalidade). Neste sentido Leibniz deu-nos várias aproximações ao caos. Numa aproximação cosmológica, o caos é o conjunto dos possíveis no qual o filtro só deixa passar os compossíveis na sua melhor combinação. Numa aproximação física, o caos 156 201 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Nas actuais previsões catastrofistas, a posição homeostética assume duas vertentes: por um lado, apela aos mais profundos sentidos do "fazer arte"; por outro, utiliza a paródia como estratégia de desconstrução dos meta-discursos artísticos. 8.5 O Topos da Arte O processo criativo é assim resumido nos Textos 3 e 4 (A pose e o ductus) da Teoria Homeostética. Sendo Babel a diferença, é também por isso a razão do diálogo. O diálogo cria o Fundo, entendido como cenário, contexto da criação: Fundar é criar o Fundo, o cenário Propício, para que a Métis se aplique, como o sémen no Vaso. Como os spermata. Fundar é construir o Vaso: a escuta recipiente (Kairos)... Criar implica a procura de um caminho... o ir fundando: Deter-se nas jornadas, nos caminhos e também nos desvios. Neste percurso errante, surgem os conceitos: destino, pose e ductus. O destino é entendido como o que concede as possibilidades (o erro e a correcção) e o encontro com a solução. O ductus significa o comando, a vontade que estabelece um caminho entre as possibilidades. Esta vontade é do domínio do desejo, mais que da razão : Esta veniência é mais uma veniência do desejo, que uma veniência de consciência, apesar dos incêndios que a Pose do saber suscita. A Pose (atitude, a energia que põe ou funda) é não só o locus intelectual, mas o topos cuja posição e características vitalizadoras (entusiasmo) determinam a fachada do Pôr. Entendendo a Pose como a exterioridade das interfaces, por ela passam as acções de pro-por, dis-por, com-por, im-por: A Pose é pois a fronteira entre o depósito e a composição. Mobilis in mobilis, homeostase, significam uma errância que adquire os contornos dum continuum fluido: o percurso levado a cabo pelo artista comporta já uma série de intencionalidades anteriores que irão continuar (essa errância, esse nomadismo), quer nas leituras e interpretações posteriores (numa aproximação às teorias da será um atordoamento, o conjunto de todas as percepções possíveis, incluindo as infinitamente pequenas, onde o papel do filtro se encarrega de extrair as diferenciais capazes de se integrarem nas percepções regradas. 157 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 interpretação), quer numa actividade de experiência estética espontânea (na perspectiva da teoria da recepção de Jauss) que a obra irá proporcionar aos futuros fruidores. A frase “ o acto imita a sua possibilidade, no entanto, o último detém o primeiro acto, o modelo” 202 é um bom exemplo da circularidade da recepção. Na teoria homeostética as condições de recepção são as mesmas, quer para o artista, quer para um qualquer observador. O que distingue o artista é a capacidade de dirigir e materializar a sua intencionalidade. É por isso que, apesar de alguns textos nos encaminharem para a relevância da intuição na percepção espontânea, no Texto 40 (Kairos e Paradoxo) podemos ler a importância dada às competências e à tecnicidade do artista : o Verbo é a performance, e repousa na competência que a solicita: tanto pode ser a tecnicidade do Dispensar, como do Recolher. Este momento de tensão é dinamizado pela energia do entusiasmo. Continuando com o mesmo texto, o “Verbo” (obra, acção artística) é solicitado pelo destino que conduz à Utopia do Fundo (Apeiron), isto é, para o seu Duplo, para os Nomes 203 . Sendo os Nomes a Imaterialidade e a única possibilidade de materialidade. O que são paradoxos. Ou melhor, a solicitação do paradoxo, o chamamento, a apelação, o entusiasmo. A passagem do “Nome” ao “Verbo” é uma metáfora da passagem do inarepresentável ao representável. Dentro da lógica da errância, o “kairos” é entendido como o destino, o que concede as possibilidades, e também o que, conduzido pelo entusiasmo, permite as 202 Texto 17.2. (Teoria Homeostética, Anexos). 203 “Partir das nuvens” é um assunto abordado, não só em Aristófanes, mas também em Platão. Lyotard remete esta expressão para a “meteoromogia”, especulação sobre as coisas, no ar. Platão apresenta este processo como uma espécie de percurso, caminho a percorrer. Diz que, para bem reflectir, se é obrigado a passar pela meteorologia, quer dizer, que é preciso deixar-se ir, planar. Trata-se (diz Lyotard) da lógica da verosimilhança, que opera mediante um trabalho de deslizamento, de condensação e de analogia (vizinhança). “Todos os paradoxos são paradoxos do continuum, mas se nos colocarmos na ordem do pulsional, este trabalho sobre as similitudes e sobre as pequenas dissemelhanças, pertence, como diz Freud, à natureza do sonho: “l´ordre du semblant qui est celui de l´opinion, est effectivement- je ne dis pas le même- mais en tout cas, procède de la même manière que l´ordre de l´imaginaire, à cette égard, et que celui du rêve (...) si la pensée voulait être distinte, et bien elle n´arriverait pas à penser. (…) elle serait obligée de s´en tenir aux singularités (…), alors il n´y a pas de concept et s´il n´y a pas de concept, il n´y a plus de jugement. (…) donc à ce moment là, on cesse de penser, on nomme”. Citado por Lyotard em Cahiers de Vincennes. 158 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 emergências: Toda a saída de um fundo (magma indistinto, onde o artista capta e rapta os seus referentes) repousa em Kairos guiado pelo Enthousiasmo cego, que faz a passagem do Sendo ao Ser (…). É o daimon (génio, critério, intencionalidade) que faz a diferença. O respeito pela individualidade, a pluralidade e a infinita possibilidade de interacções são as justificações para a inexistência de Estilo dentro do “cânone homeostético”. Daí que o factor conducente ao pluristilo seja Kairos (acontecimento propício) e Enthousiasmous (possessão). Voltando ao “pluristilo” e ao seu valor como dissolvente e neutralizador da incompatibilidade entre os modos do fazer, coloca-se a questão: “porquê uma incompatibilidade entre os caminhos? – Como caminhar em mais que uma estrada, será o verdadeiro pluralismo, uma aporia? Poderá o sem-fundo, entendido como o que funda e o que dá fundo 204 (cenário da criação) constituir um território ? A lacuna de território parece marcar as razões da pintura: “ os nomes, as citações, refazem-se mutuamente, propõem histórias num desperdício narrativo”. É pelo facto de o território da pintura ser um território “não-expíicito, inconsistente e quase imaterial” que se torna necessário contrapor-lhe a sua “figuralidade como objecto”. A presentificação faz-se por um processo triádico: “o movimento de multiplicação, de fragmentação, o movimento tendente ao Um, como soma dos aspectos, como configuração impossível para fora do discursável” (…). “Nenhum sentido de dramatização nisto, apenas a tensão dos lugares” 205 . É nesta oscilação entre o nomadismo e a procura dum território que surge a definição do lugar da arte: “A Transtopia introduz um Topos 206 do entre. Na arte não há 204 Texto 25. 205 Texto 19. 206 Topos é o lugar do Outro, (interlogos), mas também do “inter-dito”. A propósito deste assunto podemos ler em Universos da Crítica, pág. 458: «Para Bakhtine ou Lacan não há sujeitos prévios; os sujeitos são feitos do próprio processo da comunicação (Lacan: o sujeito é efeito do discurso). Por outro lado, o sujeito, ao falar, é sujeito de desconhecimento, não de saber, na medida em que o sujeito diz sempre mais do que aquilo que sabe. O inconhecido é o lugar do Outro (como lugar de determinação significante, como lugar do sentido). E ainda Lacan: eu falo com o meu corpo, e isto sem o saber: eu digo sempre mais do que aquilo que sei (…): o simbólico não se confunde, longe disso, com o ser, mas ele subsiste como ex-sistência do dizer […] o simbólico apenas suporta a exsistência (…) “há relação de ser que se não pode saber” a este “saber impossível” Lacan designa por 159 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 nomadologia, mas um topos preciso, o logos do entre. Lugar fronteiriço, de mediação, de criação de Medidas. O entre não se define em relação a duas regiões, mas o que atravessa as regiões.” 207 Assim, para este “lugar” são estabelecidas três territórios: 208 - território semiológico (gramatical) em que as representações se acercam da origem, da arké, da sua morfogénese. Primado da lógica da representação sobre aquilo que possa representar.... - território ecológico: economia da linguagem, uso de símbolos, orientação e interacção de imagens que estão indissociáveis das coisas. Magia por semelhança. Metáforas. Substituição, etc. - território dialógico: trabalho de distorção, ampliação e construção de relações mais ou menos casualmente. Autonomia da linguagem e do que a linguagem diz sobre uma possível analogia. Deslocação do sentido em direcção ao zero por excesso (por saturação, por desadaptação). Metonímia. Desperdício de linguagem. Dispersão. Descompactificação. Categorias: semiológico/ dedutivo; ecológico / indutivo; dialógico / abdutivo. Neste contexto, a representação é definida como “a gestualidade do regresso”, mas é também vista, em oposição às atitudes “autofágicas”, quer formais, quer filosóficas, dentro da perspectiva do dialogismo, sendo por isso inclusiva: interdito: que é dito entre as palavras e as linhas. O inter-dito é também a impossibilidade de que o todo se diga. O que significa que todo o dizer deixa um resto, sintoma de um real inabsorvível. Mas não podemos supor que o inter-dito completa o dito (…) pelo contrário, o inter-dito inter-fere no dito, fere-o, fere-o de morte (…) fruição, ex-sistência que resiste a toda a completude imaginária do saber, lugar impossível, onde o real ex-siste ao simbólico.». “Sabia que estava no irredutível, embora ignorasse qual é o irredutível” pode ser comparado à frase homeostética “sei que significa, mas não sei o que significa”. 207 208 Texto 14. Texto 12 (Inventário de Temas e Considerações). 160 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Hoje a arte deve libertar-se desse estado de onanismo e voltar a constituir uma mediação entre saberes, pragmáticas, deuses, mas também ao diálogo com o seu próprio topos, só que esse diálogo só é possível na copulação com o que lhe é Outro, isto é, assumindo o transacto, a acção para lá do seu topos, isto é, um alargamento do topos a toda a sua outridade, a arte, como tal, deve constituir a troca por excelência do devir (…)” 209 209 Texto 14. 161 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Capítulo 9 - Métis Kairós Enthousiasmous e a Sofística “(…) Un océan de forces s´enflant et fondant en tempête, sur lui même, se transformant éternellement, éternellement refluant en des colossales années de retour, en flux et reflux de ses formes; s´en expulsant les plus simples aux plus complexes, du plus immobile, du plus rigide, du plus froid au plus ardent, au plus violent, au plus incompatible avec soi-même, et puis de nouveau revenant de la plénitude à l´intime du simple, du jeu de la contradiction faisant retour au plaisir de l unisson, s´affirmant encore lui-même dans cette identité de ses parcours et de ses actes, se bénissant soi-même comme ce qui doit éternellement revenir comme un devenir qui ne connaît ni saciété, ni dégoût, ni lassitude. Voulez-vous un nom pour ce monde? Une solution pour tous ces énigmes? Nulle lumière pour vous, les plus secrets, les plus fortes, les plus intrépides, les plus proches de minuit: ce monde est la volonté de puissance, et vous-mêmes êtes aussi cette volonté de puissance et rien d´autre” (Lyotard, 1975) 210 . Nietzsche faz uma análise do seu tempo e, a uma distância de cem anos, antecipa o período actual. Senão vejamos: “Il naîtra peut-être une sorte de chinoiserie européenne avec une douce croyance bouddhiste et chrétienne et la pratique épicurienne et prudente que celle des chinois. Des réductions des hommes”. Por “redução” entende a libertação da procura incessante da “verdade”, dela resultando um homem mais livre de preconceitos e, portanto, mais imoral. Nos termos de Nietzsche, vivemos uma época de “decadência”, o que implica um enfraquecimento de forças. A sua posição sobre este assunto é ambivalente, pois que em toda a decadência existe uma espécie de dualidade de correntes, ou seja: se existe 210 LYOTARD, Jean François, “ Vincennes 7 Février, 1975”. Nesta espécie de diário ou epístolas, Lyotard debruça-se sobre a obra de Nietzsche e aborda conceitos que me parecem imprescindíveis para compreender o discurso e a postura homeostética. Resumidamente, trata-se de compreender a sofística como modo de actuação face à sociedade contemporânea, ou, como diz Lyotard, “notre object ce serait (…) de restituer un type de raisonnement, un type de vie, (…) un type de temps historique que sont sophistiques (...) ce que nos intéresse, c’est de restituer à nous-mêmes, les moyens qui ont été effectivement ceux de la sophistique.” 162 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 efectivamente uma decadência, também com ela emergem, por uma espécie de retorsão, as forças mais fracas. Estas deverão organizar a sua estratégia, partindo dos seguintes princípios: uma “justificação” (reflexão sobre o estado presente das coisas); dar garantia de “duração”, o que significa persistência num caminho que se afigura lento; e, finalmente, a “saúde”, no sentido ascético do termo, uma conquista que, sem exaltação, se vai obtendo pouco a pouco. Estes príncipios parecem ser os da homeostética, que utiliza a “métis” como estratégia de resistência. Na crítica que Nietzsche faz à modernidade, leio uma análise visionária da “pós-modernidade”. Dizia em meados do século XIX: «La croyance au “progrés” dans la sphère inférieure de l´intelligence, il semble que ce soit de la vie descendente; mais nous nous faisons illusion; dans la sphère supérieure de l´intelligence c´est la vie déclinante. Descriptions des symptômes. Unité du point de vue: incertitude au sujet des mesures de la valeur. Crainte d´en venir à proclamer que “Tout est vain”. “Nihilisme”.» 211 A perda do ascetismo, a descrença nos “valores” (já Nietzsche dizia que não se pode continuar a ouvir os discursos morais sem rir) terão assim conduzido a um estado civilizacional “budista”, algo que parecerá tranquilo, uma espécie de “nihilismo doce”, uma civilização de massas profundamente medíocre. A atitude homeostética poderá resumir-se a uma acção contra este “enfraquecimento de forças”, aproveitando e usando os mesmos argumentos, distinguindo-se, quer no discurso, quer nas suas produções, o seu aspecto retorsivo (reactivo) pelo uso da paródia, da ironia e também duma apologia do primitivismo, que não tem nada a ver, nem com “retorno passadista”, nem com o “eterno retorno”, sendo antes uma reacção à uniformização. A relação entre o “primitivismo” e o problema da “decadência” é abordada nos textos homeostéticos, nos seguintes termos: A arte faz-se devido à pressão das precedências. (...) A arte primitiva torna-se uma memória (história), num arquivo repleto de lacunas. A razão fundamental das lacunas está na diversidade do que é “primitivo”, quer por este ainda re-presentar alguma alteridade, algo que nos é estranho, que não habitamos. A isso se junta a nostalgia de algo carregado 163 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 de uma “energia”, de uma força que podemos mistificar, de uma associação à infância e ao prazer, de uma “libertação” das coordenadas culturais em que nos inserimos. Criamos como tal o mito do primitivismo, como um mito de libertação, um mito oposto ao mito da decadência. A ideia de precedência (assim como a glorificação dos antepassados, e de um dever para com eles) continua a ser a única resposta institucional à ideia de decadência.” 212 A Teoria Homeostética 213 , definida pelo triângulo Métis / Kairós / Enthusiasmous, é, de acordo com os seus autores, demagógica como toda a teoria o é. Na sua origem está a aceitação do lance (da jecção) que determina o carácter fortuito na associação destes três termos cuja disposição não pretende constituir um objecto, mas apenas a interacção entre o que cada um dos termos vai concedendo, as redes que vai desenvolvendo como modelo. O texto homeostético faz referência a cada um dos termos do triângulo, explicitando a sua origem e significado. A métis 214 foi a estratégia encontrada para reagir às indefinições conceptuais, ao negativismo da teoria de arte e, inclusive, à situação artística e social em Portugal nos anos oitenta. Depois de um período revolucionário que marcou qualquer um destes artistas, na época adolescentes, justifica-se o reviver deste conceito como estratégia de resistência em resposta a um tempo dominado pela fluidez e pela ambiguidade. São estes aliás os factores que constituem o campo de aplicação da métis: o múltiplo, o ambíguo, o instável. Ela actua sobre as realidades fluidas que não param de se modificar e que reúnem em si aspectos contraditórios (politropos). Em 211 212 213 214 In Lyotard 1975. Texto 29 (Teoria Homeostética, Anexos). Texto 39: “UMA TEORIA HOMEOSTÉTICA” , Anexos. No mundo lendário da Antiguidade, Métis é o nome da primeira mulher de Zeus. Como conceito, o primeiro modelo de métis aparece na cultura grega: trabalhado por Homero na Odisseia e na Ilíada, tem em Ulisses a sua personificação. A capacidade de esta personagem resolver pela astúcia as mais variadas situações é designada por polimétis de Ulisses. Em nome da metafísica do ser e do imutável esta forma de inteligência foi, a partir do século V, relegada pelos filósofos. Hoje, os estudiosos da cultura Grega, Detiénne e Vernant, pretendem, através da obra intitulada Les ruses de L´íntelligence - la métis des Grecs, reabilitar uma “categoria” que os modernos helenistas desconhecem ou têm vindo a desprezar. A métis dos Gregos - ou a inteligência industriosa - exercia-se em planos diversos, da caça à medicina, da pesca à retórica, mas sempre com uma finalidade prática. No engenho do artesão, na habilidade do sofista, na prudência do político ou na mestria do piloto ao dirigir o seu navio. A métis combina assim uma série de capacidades intelectuais: a persuasão, a sagacidade, o desdobramento. 164 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 termos homeostéticos ela realiza a post-paradoxologia, ou seja, circulando naturalmente entre os paradoxos, encontra formas de os incorporar, quer no discurso, quer nas obras, tornando-se o paradoxo, o leit motiv do diálogo das contradições. Como forma de resistência ao poder estabelecido, particularmente às formas que nos são dadas a observar neste período chamado de pós-modernismo (democracia global + capitalismo multinacional), ela emerge do próprio contexto, residindo a sua eficácia na conivência com o mesmo e na utilização das “armas” do seu adversário 215 . Esta não tem nada a ver com dialéctica, movendo-se antes num sistema de paradoxos, onde não ocorrem consensos ou conciliações, mas a possibilidade de uma co-existência entre os dados dispersos que afloram a consciência. Trata-se dum sistema de forças, que Nietzsche diz pertencer ao mundo da vontade. Sistema astucioso, onde se têm em conta os “efeitos” que, não sendo previstos, actuam como mecanismos de persuasão. É precisamente neste aspecto que se encontra o factor comum ao discurso do artista e do sofista: uma linguagem que, ao desmbaraçar-se do problema da Verdade, resulta divertida e irresponsável. Caindo na “lógica das aparências”, a produção de discursos inacabados opõe-se ao discurso moral com a sua veracidade e preocupação de não se enganar. É um discurso que vale por si mesmo. As qualidades que impulsionam a resistência não se operam mediante a doxa, ou o discurso racional, mas pelos instintos. Já “naturalização do homem”, Nietzsche, com a sua apologia da apelava aos instintos como forma de reacção ao positivismo. O mesmo faz a homeostética no impulso de auto-afirmação e reacção ao discurso artístico, apontando para uma “selvatização” como suspensão da domesticidade. Esta “natureza” é portanto a que apela aos instintos, e esta produção de instintos exige, diz Lyotard, a descompressão dos valores selectivos, tornando-se assim, simultaneamente, natureza e facto civilizacional. A perda do ascetismo faz ressurgir por uma espécie de retorsão as “forças mais fracas”: instintivas ou pulsionais, com capacidade para agir intensamente (lembro a questão do “vitalismo” 215 No discurso sofistico aparece um operador, o da “inclusão”, o que significa que o artista tem que estar incluido na classe, no “meio” dos artistas (“art world”) para que a sua acção seja eficiente. 165 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 atribuído às manifestações artísticas dos anos 80). Nietzsche distingue instinto, de “meio-instinto”, o que só reage à excitação, comportando essencialmente uma atitude defensiva: “il dépense sa force soit dans l´assimilation, soit dans la défense, soit dans la riposte – voilà du réactif -. Profonde baisse de spontanéité. L´historien, le critique, l´analyste, l´interprète, l´amateur, le collectionateur, le lecteur, rien que des talents de réaction. Et toute la science!”. Indo para lá da reacção, o instinto conduz ao agir através da capacidade de selecção (“selecção por expulsão”- Nietzsche), por uma espécie de triagem, designada por Proença de abdução. Vimos como esta capacidade se revela indispensável no processo criativo. Kairos (“momento oportuno”) caracteriza-se pela possibilidade de mudar de perspectiva ou ponto de vista. Esta capacidade de adaptação é para Nietzsche um factor de “saúde” (energia, vitalidade) para todos aqueles cuja única intenção seja atingir um objectivo. Enthousiasmous – conceito que surge no seio dos diálogos socráticos, como oposição à compre-hensão. Se esta detém a capacidade de orientar e governar riscando os modelos, o enthousiasmous é a própria imersão na desordem, pertence ao domínio das energias anímicas e ao dos instintos (a intuição, a inspiração) – “Je reconnus donc bientôt que ce n´est pas la raison qui dirige le poète, mais une inspiration naturelle, un enthousiasme semblable à celui qui transporte les devins et ceux qui président l´avenir; ils disent tous de fort belles choses, mais ils ne comprennent rien à ce qu´ils disent” (Sócrates) 216 . O entusiasmo está relacionado com o calor, com um estado de catástrofe, assim como com o amor. O entusiasmo é um estremecimento, é o estado de estremecimento, a vibração. Associa-se também por analogia à possessão xamânica, pertencendo esta ao domínio das intenções e do voluntarismo, já que é controlada pelo seu próprio “daimon” (génio) 217 . O entusiasmo só não se torna completamente irracional, porque 216 217 Citado no texto homeostético “Métis, Kairós, Entousiasmous”. Em Crepúsculo dos Deuses, Nietzsche relaciona “génio” com explosão (p.117), diferente do “pensar” que pode ser aprendido como o dançar “com os pés, com os conceitos, com as palavras, com a pena” (pp. 76 e 77). “Para que haja arte, para que haja alguma contemplação estética torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia – a embriaguez. O essencial da embriaguez é o 166 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 o génio lhe empresta as suas próprias defesas: O homeostético é um animal sábio e absoluto consciente do seu génio (máxima homeostética). No sentido aristotélico, sábio é diferente de sophos, tendo esta concepção de sabedoria mais a ver com a sageza, ou a astúcia, do que com o capital cognitivo. É nos seguintes termos que o texto homeostético articula os três conceitos: é este génio que faz o “ingénuo” (o engenho, a ingenuidade), ou seja, aquilo a que o homeostético chama métis (a polimétis de Ulisses): o pensamento móvel do caçador e do aventureiro, ao mesmo tempo candura e astúcia. A Métis é o que invoca os entusiasmos, os leva até certo ponto, faz os retrocessos, que dispõe as situações (Kairos), que provoca as predições, que propõe as estratégias. Como tal, ela é sobretudo de ordem pragmática e não metódica, não o meta-odos que interessa, mas apenas o “odos” (o caminho)”. O entusiasmo é o impulso oposto aos que esperam resignados – O génio talvez não seja tão raro: mas são-no as quinhentas mãos que são precisas para tiranizar o “kairós, o tempo oportuno para agarrar o acaso pelos cabelos! A inversão do método é adequar a métis para a constância do kairós, para a representação do “aion” como kairós”. sentimento de plenitude e de intensificação das forças. Deste sentimento fazemos partícipes as coisas, constrangêmo--las a que participem de nós, violentamo-las. Idealizar é o nome que se dá a esse processo: idealizar não consiste como se crê comummente num subtrair ou diminuir o pequeno, o acessório. Um enorme extrair os traços principais, isso sim, o decisivo, de tal modo que os outros desapareçam ante eles. Nesse estado uma pessoa enriquece todas as coisas com a sua plenitude: o que vê, o que quer, vê-o aumentado, condensado, forte, sobrecarregado de energia. O homem nesse estado transforma as coisas até elas reflectirem o seu poder, até que sejam reflexos da sua perfeição” (pp. 84 e 85). 167 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Posfácio Chamando à década de 80 “os anos da grande masturbação retórica”, na qual inclui a polémica do pós-modernismo (em particular os anúncios do fim das grandes narrativas e do fim da arte), a homeostética reclama-se de sentido próprio e relativamente às polémicas vem dizer que deixemos as crises apodrecerem nos lugares delas, defendendo, em contrapartida, a simulação da narrativa, os mecanismos de apropriação (mimesis, citação), a sedução, a imaginação e, principalmente, a desvinculação da obra de arte de todas as ideologias. Toda esta dinâmica implica o entusiasmo da acção e da interacção, devendo para isso ultrapassar o individualismo do artista e a rotina disciplinar através do “diálogo”. Na prática, caracterizou-se pela experimentação das mais diversas formas, jogando, sem hierarquia, categorias, modos, disciplinas e estratégias (desenho, hapenning, performance, conceptualismo, cinismo, arquitectura, pintura de cavalete, graffiti, barroco, minimalismo, design, primitivismo, escultura, banda desenhada, poesia, cinema, música, teatro, reflexão, perguiça, deriva, fraude, absurdo). Partindo de “Babel”, conceito que metaforiza a sociedade da informação, e em resposta ao período de indefinições, de interrogações filosóficas, a teoria e a prática homeostéticas assumem a incerteza como princípio, tendo isso em consequência o reforço da intencionalidade do artista na captação dos referentes, ordenamento e produção de novos sentidos. O principio da incerteza, questiona os critérios que definem o valor da obra, e estende-se à critica e à historiografia da arte, em atitude integrada numa vaga que defende o artista como entidade legitimadora (quer pela própria obra, quer pela manipulação do campo artístico, quer pela produção de teoria). Na atitude homeostética está subjacente uma decepção face ao esquecimento das funções sociais e formativas da arte em detrimento da sobrevalorização dos mecanismos do mercado. À formação política e intelectual dos elementos do grupo, 168 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 não é alheio o impacto da revolução, cujos ideais, captados com a sensibilidade e o inconformismo da adolescência, induzem uma ideia de sociedade (que de algum modo se julgou poder concretizar). Esse impacto, faz-se sentir na ideia de comunidade, de partilha, e dá origem a uma interacção que em várias circunstâncias se traduz em produção colectiva e anónima, de caracter experimental e muito lúdico, contrária ao individualismo promovido pelo sistema legitimador. A ambivalência entre o ideal e a realidade (profissional), é patente nas muitas criticas e angústias que os textos dos manifestos deixam escapar. A decepção relativamente ao evoluir da sociedade portuguesa, ao campo artístico, e ao ensino, traduz-se numa consciência critica que recorre retorsivamente à paródia e à menipeia. A paródia verifica-se na construção critica do meta-discurso, na apropriação, desconstrução e reconstrução das diversas formas de linguagem (icónica, literária, musical e outras), destituídas de hierarquia, excepto aquela que o artista elege. A ficção artística abre a todas as utopias! Esta ideia é reforçada por Arthur Danto, no seu “A Transfiguração do Banal”, quando refere o conceito dos “Mundos Possíveis” (podemos substituir a ideia de que qualquer coisa é metaforicamente verdadeira no Mundo Real pela ideia de que ela é efectivamente verdadeira num Mundo Possível). Outra constante da teoria homeostética, é a problemática da recepção da obra de arte (“Trabalho hiper-culto para as massas”, diz Manuel Vieira num dos seus manifestos). O homeostético, não é naif. Tem uma consciência nítida da impossibilidade de “as massas” interagirem com “a arte” ( já nos anos 70, as experiências de aproximação ao público por parte dos artistas do hapenning e da performance dão origem às maiores controvérsias, pelo que Idalina Conde nos diz em “ Percepção Estética e Públicos de Cultura: Perplexidade e Redundância”): “os artistas” e “as massas” vivem em mundos que se servem de linguagens muito diferentes. O homeostético sofre filosoficamente a consciência da impossibilidade de conciliar esta diferença. É desse filosofismo que nasce o que parece gozo. Daí que o seu trabalho se estruture no jogo das referências: na mistura de signos da cultura erudita popularizada com os da chamada baixa cultura (Vieira), no monumentalismo hermético de construções onde sentimos o fascínio pelo registo 169 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 gráfico das arquitecturas dos grandes impérios históricos (Brito), nas citações de fragmentos identitários de estrelas da arte contemporânea (Portugal), nas figurações pseudo narrativas de alusão pseudo antiga e recôndita (Proença), no recurso a um pseudo primitivismo de suportes e de inscrições, próximo da “arte bruta” e do gestualismo (Ivo), na pesquisa da plasticidade de materiais diversos com o objectivo de indiscriminar a bi e a tridimensão (Xana). A descodificação de um patchwork de referências (eruditas e/ou populares), exige comunhão de património entre o artista e o espectador. Na ausência reconhecida dessa comunhão, o artista mobiliza os recursos da menipeia: o humorístico, o grotesco, o carnavalesco, pretendendo com esta estratégia uma aproximação mais emotiva que rigorosa. Afastada a possibilidade de levar ao espectador a intenção do autor propõe-se a retórica aplicada ao sistema das imagens, reavivando assim o mecanismo da catarsis como estímulo à receptividade e à fruição. O emotivo, é um dos critérios que legitimam a intenção estética, mas, se acreditarmos, como Jauss, que as emoções podem alterar o comportamento (as ficções projectam-se sobre a vida, diz Pedro Proença), a obra é também formativa. A intima relação da arte com a filosofia (disciplinas que têm criado variadas interdependências), tem as suas raízes na cultura grega, funda-se na especulação sobre as relações entre a aparência e a realidade. Dessa especulação, nasce o conceito de arte (o simbólico nasce do mágico). O nó metodológico da filosofia da arte enquanto actividade semântica, segundo Danto, reside na tese de que o objecto possível da filosofia, não é o mundo, mas o modo como ele é visto e pensado. Para ele, a marca do Modernismo é a ambição da autodefinição (Hegel, constata que a arte já só se procura a si própria). Vê o culminar desta ambição nas Brillo Boxes de Andy Warhol (na demonstração de que a diferença entre o que é e o que não é arte já não pode assentar no visível): “Assim que os fazedores da arte se libertam da procura da essência da arte assumida no arranque do modernismo, libertam-se da história, entram na era da liberdade. Com o fim da história de arte, um conjunto de imperativos é levantado à prática artística no ponto em que a arte entra no seu momento pós-histórico.” (A. Danto: Narratives of the end of Art. /tradução minha ). A designação diz do sentido da mudança de paradigma a que se assiste, e procura 170 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 responder aos sintomas manifestos nos conceitos que têm vindo a estruturar o conhecimento e as representações. Á semelhança dos autores abordados a propósito do conceito de “pós-modernismo”, Danto parte do principio de que a Pop Art marca o inicio da arte pós-histórica. A mudança filosófica da arte pós-histórica relativamente à arte moderna, é no sentido da especulação: da diluição das fronteiras disciplinares, do comércio com outras áreas do saber. A nossa abordagem permitiu-nos concluir acerca da transversalidade dos conceitos e do que de familiar existe aos mundos da linguagem e da representação. Toda a representação é precedida duma intenção (segundo Husserl, o fruto da consciência é sempre consciência de alguma coisa). É esta estrutura intencional que permite distinguir uma obra de arte. A estética do Belo e a do Sublime, entram em crise quando o factor definidor da obra passa a ser a intencionalidade ( o ductus homeostético). Em resposta aos anúncios dos “finais da arte”, Arthur Danto defende a natureza estruturante da narrativa. Acreditar em “fins” da arte, é acreditar que a história tem uma estrutura narrativa, e que na narrativa estão implícitos conclusões e recomeços (mas não a paragem). O que acaba, é cada narrativa. É neste contexto que, nos anos 80, uma forte incidência sobre a estratégia da apropriação vem determinar a maioria das teorias pós-modernas. Entre o sentimento de perda (para uns) e a necessidade de recuperação (para outros), a apropriação entendida dentro das fronteiras disciplinares é ainda uma prática legitimadora. A leitura que o artista faz história da arte torna-se o argumento que legitima a obra. A esta atitude (ensimesmamento da arte), designada de “autofagia”, a homeostética propõe a “Continentalidade”, ou seja, que as artes se devorem umas às outras, recorrendo ainda a tudo o que do exterior possa contribuir para o processo criativo. Com a homeostética, a apropriação é uma estratégia para a captação de referentes, com os quais se constróem polifónicas (Baktine) ficções visivas. A obra passa a 171 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 oferecer um cruzamento entre o visual, o musical e a poesia: dinamismo, contaminação e homeostase. A apropriação remete para a interpretação Uma obra de arte não existe enquanto não for alvo de interpretação, podendo esta processar-se a dois níveis, conforme o objectivo, o tipo de interpretantes e o grau de profundidade da mesma. Um primeiro, perceptual e fenomenológico que aqui poderemos designar por recepção emotiva parece responder ao que Danto designa de “interpretação artística” (como é defendida por este autor, faz parte duma identificação e não deverá confundir-se com a interpretação hermenêutica, pois não é explicativa, mas constituinte). Um outro, implicando uma contextualização, exigirá o domínio de conhecimentos artísticos, históricos, filosóficos, científicos e outros. Este último tem como objectivo não o encontro com a intenção do autor, privada, inacessível, mas uma interpretação contextualizada pela época, lugar e experiências, sendo que é o interpretante que determina a sua interpretação. É neste quadro que situamos a apropriação como uma forma activa de interpretação, contendo os actos de “desinterpretação, apreciação, e transfiguração ou reenvio” (Arthur Danto: La transfiguration du Banal). Na homeostética as condições de recepção são as mesmas, quer para o artista, quer para o Outro. O que distingue o artista é a capacidade de dirigir e materializar a sua intencionalidade. A “Homestética”, foi uma trincheira no panorama das artes plásticas dos anos 80 em Portugal, uma verdade incomunicada, por não ter parecido comunicável. Constituiu uma dinâmica que impulsionou a carreira dos elementos do grupo. Volvidos 15 anos, o seu discurso é amostra dum período de excessos e euforias, de crescimento e de vontade. Um dos motivos porque valeu a pena debruçar-nos sobre a “Homeostética”, teve a ver com o facto de que trabalhar sobre indivíduos devidamente contextualizados é mudar o ponto de vista cognitivo. Considerando o indivíduo portador de história, é a própria história que desce à historicidade da praxis humana. Esta translação do olhar 172 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 implica a crença na intencionalidade e voluntarismo de indivíduos empenhados na construção do presente e prospecção do futuro. Citando Ives Michaud (La Crise de L´Art Contemporain) : “ Ce n´est pas la demande sociale formalisée par des experts qui fait naitre les artistes (...) Ce qu´il faut c´est que le besoin et l´envie exist vraiment, que des individus, des groupes aient vraiment besoin de s´exprimer et de laisser leur marque, que certains ne puissent pas faire autre chose qu´être “artistes” (...) Rien n´empêche ceux qui sont réelement attachés à une forme d´art de la pratiquer, de la défendre, de l´encourager (...) L´idée d´une Grande Esthétique pour une Grand Art est la machine fictive et terroriste destinée à nier cette réalité plurielle des comportements artistiques et esthétiques”. 173 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Bibliografia ALMEIDA, Bernardo Pinto de: Pintura Portuguesa do século XX , Ed. Lello & Irmãos, Porto, 1993. ALMEIDA, Bernardo Pinto de: O Plano da Imagem – Assírio e Alvim, Lisboa 1996. APPIGNANESI, Richard; Garrat Chris: Pós-Modernismo para principiantes, D.Quixote, 1997. BAKHTINE, Mikhail: The dialogic imagination: Four essays, Austin: University of Texas Press [1987]. XXXIV, 444p. BARBOSA, Pedro: As Metamorfoses do Real, Edições Afrontamento, Colecção Grande Angular/8, Porto 1995. BAUDRILLARD, Jean: As Estratégias Fatais, Editorial Estampa, Col. Margens, Lisboa 1991. BAUDRILLARD, Jean: A sociedade de Consumo, Colecção Arte e Comunicação, Edições de 70. BAYER Raymond: História da estética, Editorial Estampa, Col. Teoria de Arte, Lisboa, 1995. BERGSON: Évolution Créatrice, Puf, Paris, 1906. BERGSON: La pensée et le mouvant, Félix Alcan, Paris, 1936. BERGSON: O riso, ensaio sobre o significado do cómico, Colecção filosofia e ensaios, Guimarães Editores, (1ª Edição 1960), Viseu 1993. BLEICHER, Josef: A Hermenêutica Contemporânea, Edições 70, Col. O saber da Filosofia, Lisboa 1992. BOURDIEU: Pierre, Les régles de l´art, génese et stucture du champ literaire, Paris, Éditions du Seuil, 1992. CALABRESE, Omar: A idade neo-barroca, Edições 70, Colecção Arte e Comunicação, 1987. CARVALHO, Henrique Miguel: Critica, Mimese e Narrativa Histórica: a situação pós--desconstrucionista, Tese de Mestrado em Literatura, Universidade Nova de Lisboa, 1999. CASTORIADIS,Cornelius: A Ascenção da Insignificância, Editorial Bizâncio, Col. Torre de Babel, Lisboa 1998. 174 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 CESARINY, Mário: Textos de afirmação e combate do surrealismo mundial, Editora Prespectivas e Realidades, Lisboa, 1977. COELHO, Eduardo Prado: A Mecânica dos Fluidos, literatura, cinema, teoria, Temas Portugueses, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa. COELHO, Eduardo Prado: Os Universos da Crítica, paradigmas nos estudos literários, Colecção Signos, Edições 70, 1982. CORREIA, Carlos João Nunes: Ricoeur e a expressão simbólica do sentido, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Editorial Veja, Col. Artes/Ensaio, Lisboa 1990. DANTO, Arthur Coleman: The transfiguration of the commonplace, Col. A Philosophy of Art, Harvard University Press, 1981. DANTO, Arthur Coleman: Art in the historical Present – Encounters & Reflexions, The Noonday Press, Farrar Straus Giroux, New York, 1990. DANTO, Arthur Coleman: La transfiguration du banal, Editions du Seuil, Octobre 1989. DANTO, Arthur Coleman: The Philosophical Disfranchisement of Art, Columbia University Press, New York 1989. DEBORD, Guy: A Sociedade do espectáculo, Colecção Ensaios Documentos, Edições Afrodite, Lisboa 1972 DELEUZE Gilles: O mistério de Ariana, Ed. Vega, 1996 DELEUZE, Gilles: Le Pli - Leibniz et le Baroque, Collection Critique, Les Editions de Minuit, 1988. DERRIDA, Jacques: L´Archeologie du frívole, Denoel / Gontier, Paris 1973. DETIÉNNE & VERNANT: Les ruses de l´ inteligence, la métis des grecs, Champs Flamarion, Paris 1974. DODDS, E.R.: Os Gregos e o Irracional, Gradiva, Col. Trajectos, Lisboa 1988. DORFLES, Gillo: O Elogio da desarmonia, Edições 70, Col. Arte e Comunicação, 1986. EAGLETON, Terry: The Ideology of the Aesthetic, Basil Blackwell, Oxford, Cambridge, MA, 1990. FERNANDES, Maria da Penha: Mimese irónica e metaficção: para uma poética pragmática do romance (contemporâneo) – Tese de Doutoramento, Universidade do Minho, Braga 1995 FERRY-Luc (e) SOLERS, F. : Le sens du beau aux origines de la culture contemporaine, Editions Cercle d´Art; Paris 1998. FERRY-Luc: Homo Aestheticus: L´ Invention du gôut à L´âge democrátique, Bernard Grasset,; Col. Le College de la Philosophie, Paris 1991. 175 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 FIZ, Simon Marchan & SUREDA, Joan: Del arte objectual al arte del concepto, Akal, 6ª Edição, Madrid 1994. GARDINER, Michael: The dialogics of critic, M. Bakhtin and the Theory of Ideology, Routledge London and New York, 1992. GONÇALVES, Rui Mário: A Arte Portuguesa do Século XX, Temas e Debates, Lisboa, Dezembro 1998. HABERMAS, Hurgen: O discurso filosófico da modernidade, Publicações D. Quixote, Lisboa 1998 HARPHAM, Geoffrey Galt: On the grottesque, Strategies of contradition in art and literature, Princeton University Press, Princeton, New Jersey 1982. HUTCHEON, Linda: Poética do Pós Modernismo, Imago, Rio de Janeiro 1991. HUTCHEON, Linda: Uma Teoria da Paródia, Edições 70, Col. Arte e Comunicação, 1989. JAUSS, Hans Robert: Pour une Esthétique de la Reception, Galimard, Paris 1987 JENKS, Charles: Post-Modernism, the new classissism in art and architecture, Academy Editions, London 1987 KRAUSS, Rosalind E.: La Originalidad de la Vanguarda y otros mitos modernos, Alianza Forma, Madrid 1996. KRISTEVA, Júlia: Lisboa, 1999. LIPOVETSKY, Gilles: O Império do efémero, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1989 Lisboa 1997. LYOTARD, J. François: Moralités Pós-Modernes, Galilée, Col. Débats. Paris 1993. LYOTARD, Jean François, “Cahiers de Vincennes”, 1975 (Recolha de informação na internet) LYOTARD, Jean François: A condição pós-moderna – Gradiva, s/d LYOTARD, Jean François: A Fenomenologia - Biblioteca Básica de Filosofia, Edições 70, 1986 (1ª edição: Presses Universitaires de France, 1954). LYOTARD, Jean François: O pós-moderno explicado às crianças, Publicações D. Quixote, Lisboa 1987. MAN Paul de: A Resistência à Teoria, Edições 70, Lisboa, Outubro 1989. MARCHAN Fiz; SUREDA Joan: Del arte objectual al arte del concepto 1960 1974, 6ª Edição, Akal, Madrid 1994. MARIAS, Julian: História de la Filosofia, Manuales de la Revista de Occidente, Madrid, 4ª Edição, 1948. MATISSE, Henry: Escritos e reflexões sobre arte, Editora Ulisseia, 1972. História da Linguagem, Edições 70, Colecção Signos, 176 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 MELO, Alexandre: Artes Plásticas em Portugal, dos anos 70 aos nossos dias, Editorial Difel, Junho 1998. MICHAUD, Yves: La crise de l´Art contemporain – Presses Universitaires de France, Paris, 1ª ed. 1997, Octobre MILLET Catherine: A Arte Contemporânea, Instituto Piaget, Biblioteca básica de Ciência e Cultura, Lisboa 2000. NIETZSCHE: Crepúsculo dos Deuses, Guimarães Editores, Lisboa, 1989 OLIVA, Achille Bonito: “Avanguardia e transvanguardia”, Milão, Electa, 1982. OLIVA, Achille Bonito: “La Transvanguarda Italiana”, Milão, Politi, 1981. PALMER, Richard E.: Hermenêutica, O Saber da Filosofia, Edições 70, Lisboa, 1997. PINTASILGO, Mª de Lourdes: Dimensões da mudança, Edições Afrontamento, 1984. PINTO, António Cerveira: O lugar da Arte, Lisboa, Quetzal Editores 1989. PORTOGHESI, Paolo: Depois da arquitectura Moderna, Edições 70, Col. Arte e comunicação, Outubro, 1985. QUADRADO, Perfecto E.: A única real tradição viva, Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa, Assírio e Alvim, Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, 1998. RICOUER, Paul: Do Texto à Acção: ensaios de Hermenêutica, Diagonal, Porto 1989. RICOUER, Paul: Teoria da interpretação, Porto Editora, Colecção Filosofia e Textos, Porto 1995 ROMEYER, Dherby Gilbert: Os Sofistas, Edições 70, Lisboa 1989. RORTY, Richard: Contingência, ironia e solidariedade, Editorial Presença, Lisboa 1992. SANTOS, Boaventura de Sousa: Pela mão de Alice, o social e o político na pós-modernidade, Biblioteca das Ciências do Homem, Edições Afrontamento, 1997 (1º ed. 1994). SANTOS, Boaventura de Sousa: Portugal, um retrato singular, Afrontamento; Centro de Estudos Sociais, Col. Saber Imaginar o Social. Lisboa 1993. SMART, Barry: A Pós-Modernidade, Biblioteca Universitária, Publicações Europa América, 1993. SOUSA, Ernesto de: Ser moderno... em Portugal, Assírio e Alvim, 1998. THOM, René: Abordagens do real, Edições D. Quixote, Col. Viragem, Lisboa 1987. TORRES Félix: Dejá vu: Post et néo-modernism: le retour du passé, Ramsay, Colecção Rebours, Paris 1986. RES, Col. 177 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 VATIMMO, Gianni: O fim da modernidade: Nilismo e Hermenêutica na Cultura, Presença, Colecção Biblioteca de Textos Universitários 88, Lisboa1987. VATIMO. Gianni: As Aventuras da Diferença: e o que significa pensar depois de Heidegger e Nietzche, Edições 70, Lisboa 1988. VENTURI, Robert: Complejidad y contradicción en la arquitectura, Editorial Gustavo Gil, S.A (1ª edição, 1972). 178 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Artigos da Crítica ALMEIDA, Bernardo Pinto de, “Depois do modernismo” in: Notícias da Tarde, Porto 11/1/83. ÁLVARO, Egídio, “Os Portugueses na Bienal de Paris” in: Diário deNotícias, Lisboa, 23/10/80. AZEVEDO, Manuela, “Depois do Modernismo” in: Diário de Notícias, Lisboa, 26/1/83. BELARD, Francisco, “Depois do modernismo” in: Revista Expresso, Lisboa, 20/11/82. GONÇALVES, Eurico, “Lis´79 Exposição Internacional de Desenho” in: Diário Popular, Lisboa, 8/11/79. MAGGIO, Nelson di, “Lis´79 cai em zona cinzenta” in: O Jornal, Lisboa, 9/11/79. MAGGIO, Nelson di, “Num beco sem saída” in: O Jornal, Lisboa 21/1/83. MELO, Alexandre, “As Seis Partidas Do Mundo” in: Revista Expresso, Lisboa, 1/11/86, P. 43. MOURA, Leonel, “Documenta 7” in: Mais, nº18, Lisboa, 13/8/82, pp.46-48. OLIVEIRA, Emídio Rosa de, “A 5ª Exposição Homeostética” in: Semanário, 8 de Novembro de 1986, pag.35. PINHARANDA, João, “CONTINENTES” Pedro Proença, Pedro Portugal, Xana, Manuel Vieira; Ivo, Fernando Brito” in: Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 27/10/86, pag.21. PINTO, Cerveira, “Europa 79- A Arte dos anos oitenta” in: Diário Popular, Lisboa, 18/10/79, pp.X-XI. PINTO, Cerveira, “O fim do modernismo em debate” in: Revista Expresso, Lisboa, 8/1/83. PIRES, Porfírio Alves, “Do Juizo Pós-Final” in: Diário de Lisboa, 8/11/86, pag. 24. PORFÍRIO, José Luís, “A moda e o resto” in: Revista Expresso, Lisboa, 29/1/83. PORFÍRIO, José Luís, “Coisas Novas Para Ver” in: Revista Expresso, Lisboa, 1/11/86, pag.42. 179 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 XAVIER, Edgardo, “LIS´79 uma Bienal contestada” in: A Tarde, Lisboa, 4/11/79. 180 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Artigos (Outros), em Publicações Colecções, Revistas, CONDE, Idalina “Bienais e artistas em Cerveira”, in Sociologia, Práticas e Problemas, nº4, 1988. CONDE, Idalina – “Transformações recentes no campo artístico português” in A Sociologia e a sociedade portuguesa na viragem do século (Actas do I Congresso de Sociologia), 2º Vol., Lisboa, Editorial Fragmentos/ Associação Portuguesa de Sociologia, 1988. CONDE, Idalina: “Problemas e virtudes em defesa da biografia”, in Sociologia, Problemas e Práticas, nº13, 1993). CONDE, Idalina: Falar da Vida (I), in Sociologia – Problemas e Práticas,nº14, pp.199 a 222, 1994. CONDE, Idalina: “Falar da Vida (II)”, in Sociologia – Problemas e Práticas, nº16, 1994. CONDE, Idalina, “Contextos, Culturas, Identidades” in António Firmino da Costa e José Manuel Viegas (orgs.), Portugal, Que Modernidade? , Oeiras, Celta, 1998. CONDE, Idalina: “Percepção estética e públicos da cultura: perplexidade e redundância” in Idalina Conde (coord), Percepção estética e públicos da cultura, Lisboa, ACARTE / Fundação Calouste Gulbenkian. DANTO, Arthur Coleman: “Narrative and Style” in: The Journal of Aesthetics and Art Criticism, nº3, pp. 201-209, 1991. DANTO, Arthur Coleman:” A Future for Aestetics” in: The Journal of Aesthetics and Art Criticism, pp. 271-277, Vol.51, Nº2, 1993. DANTO, Arthur Coleman: “Art after Art” in: Art Forum International, Vol. 31, nº8, pp. 62-69, Abril 1993. FEATHERSTONE, Mike: “Moderno e pós-moderno” in Sociologia, Problemas e Práticas, nº8, 1990 FRANÇA, José Augusto, “Le fait artistique dans la sociologie de l´art” in Colóquio Artes, nº17, 1974. GONÇALVES, Rui Mário, in: Portugal, nas artes, nas letras, nas ideias: 19451995, Publicação do Centro Nacional de Cultura, Lisboa 1998. 181 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 LYOTARD, Jean François: “Reponse à la question: Qu´est que ce le Postmodern? In Critique, 419 (1982), pp. 357-367. MILLET Catherine, “Ce n´est qu´un début, l´art continue”, in Art Press n. esp. 13 [1992], p. 8-16. MOULIN, Raymonde: “De l´artisan au profissionel”; in Sociologie du travail, nº4, 1983. PINHARANDA, João Lima: “O declínio das vanguardas nos anos 50 ao fim do milénio” in: História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), Volume 3, Editorial Círculo de Leitores, Temas e Debates, Setembro 1995. PINHARANDA, João Lima: A exposição dos anos 80, in: , Artes e Leilões, Nº3, Lisboa (Fev. Março 1990), pp. 20-28. PINTO, António Cerveira: “A arte não é um conceito, mas um sentimento conceptual”, In Artes e Leilões: Nº 23 Lisboa (Dez. 1993-Jan. 1994); pp.75-79. RAJCHMAN, John: “Post-Modernism in a Nominalist Frame” in Flash Art, nº137, 1987. RORTY Richard: “Habermas, Lyotard et le Post-modernisme” in: Critique, 442 (1984), pp.181-197. RORTY Richard: “Post- Modernism Bourgeois liberalism”, in The Journal of Philosophy, Vol. LXXX (1983). 182 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Catálogos de Exposições “Aspectos da Arte Abstracta 1970-80” - Sociedade Nacional de Belas Artes, Janeiro, 1982. “Depois do Modernismo”- Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 7 a 30 de Janeiro, 1983. Exposição de Arte Moderna 82 – Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1983. “1ª Exposição Homeostética” – Escola Superior de Belas Artes, Lisboa 1983. Um Labrego Em Nova Iorque - Escola Superior de Belas Artes, Lisboa 1983. “Se Em Portimão Houvesse Baleias” - Portimão, Galeria Quarto Crescente, 1984 “Novos-Novos” - Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, Set.- Out. 1984. “Arquipélagos”- Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa. “Educação Espartana” - Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1986. “Continentes” - V Exposição Homeostética” - Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1986. “Lost Paradise” – 1999 183 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 Outros CAVALHEIRO, Pedro: “Biografia não autorizada de Manuel João Vieira”, (Excerto de manuscrito original), 1999/2000. LYOTARD, Jean François, “Cahiers de Vincennes”, 1975 (informação retirada da Internet por Pedro Proença, e que me foi gentilmente cedida – não tenho referência do site). 184 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 ANEXOS – Índice geral Entrevistas Com Pedro Proença Com Fernando Brito Com Ivo Com Pedro Portugal Exposições e Textos de Catálogo [P em folheto/Catálogo ] ONZE ANOS DEPOIS [P em folheto/catálogo] 1ª EXPOSIÇÃO HOMEOSTÉTICA [P em folheto/Catálogo] UM LABREGO EM NOVA IORQUE [NP] UM LABREGO EM NOVA IORQUE (versão B) [P em folheto/Catálogo] SE EM PORTIMÃO HOUVESSE BALEIAS [P em panfleto] EDUCAÇÃO ESPARTANA [NP] EX-CURSÕES HOMEOSTÉTICAS [NP] Projecto para texto sobre os CONTINENTES (1986). Artigos da Crítica Manifestos PROCLAMAÇÃO NEO-CANIBAL (P. Proença, 1982) MANIFESTO HOMEOSTÉTICO (P. Proença, 1983) MANIFESTO (M. Vieira, 1983) MANIFESTOS (PARA USO PESSOAL) (P. Proença, 1985) SEGUNDO MANIFESTO PARA IMPESSOALÍSSIMOS ABUSOS (P. Proença, 1985) 185 HOMEOSTÉTICA Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80 FRAGMENTOS DE UNS MANIFESTOS JAMAIS PROJECTADOS (P. Proença, 1985) MANIFESTO PARA A VEGETARIANIZAÇÃO DO PENSAMENTO (P. Proença, 1985) MANIFESTO F.B. (F. Brito, 1985) MANIFESTO SOBRE O ESTADO DA NAÇÃO (P. Proença, 1985) CULTURA NACIONAL a bem ou a mal da nação (P. Proença, 1985) ÚLTIMO MANIFESTO (P. Proença, 1988) MARMÓREO ODEON OU MAIS UM MANIFESTO PÓSTUMO DANDO CONTA DE VELHAS PREOCUPAÇÕES (P. Proença, 1989) Teoria Homeostética 186