reparação de danos e justiça na filosofia moral
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reparação de danos e justiça na filosofia moral
RICARDO JUOZEPAVICIUS GONÇALVES REPARAÇÃO DE DANOS E JUSTIÇA NA FILOSOFIA MORAL DEFRIEDRICH NIETZSCHE FACULDADE DE DIREITO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP 2013 RICARDO JUOZEPAVICIUS GONÇALVES Matrícula n.º 14832 – 5ºBN REPARAÇÃO DE DANOS E JUSTIÇA NA FILOSOFIA MORAL DEFRIEDRICH NIETZSCHE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO (MONOGRAFIA) APRESENTADO À BANCA EXAMINADORA DA FACULDADE DE SÃO BERNARDO DO CAMPO, COMO EXIGÊNCIA PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE BACHAREL EM DIREITO. ORIENTADOR: PROFESSORMARCELO SOUZA KOCH VAZ DÖPPENSCHMITT SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP 2013 FOLHA DA BANCA EXAMINADORA ________________________________ ________________________________ ________________________________ Aos meus pais, José Ricardo e Elisabeth. AGRADECIMENTOS Dedico e agradeço, em primeiríssimo lugar, aos meus pais, José Ricardo e Elisabeth, pela incrível paciência exercitada nos últimos meses que se passaram, com o término do curso e as decisões que dele advieram; pelo apoio incondicional e cego concedido a mim, o que foi fundamental para que continuasse seguindo o meu caminho livremente, superando os obstáculos ao lados deles. Meus pais que me proporcionaram os grandes ensinamentos da minha vida; exemplos de honestidade, educação e amor, as quais, com absoluta certeza, formaram o meu caráter e são as lições que quero transmitir às pessoas que eu puder influenciar durante a minha vida. Muito obrigado por serem meus espelhos: já os começo a ver em meu reflexo. Agradeço também à minha irmã Vladia e ao meu cunhado Ricardo, pelo companheirismo e pelos sábios conselhos que apenas irmãos mais velhos possuem capacidade e habilitação para conceder. Agradeço também pelo exemplo de empenho e cumplicidade de um casal. À minha namorada Rafaella Seixa Vianna, amiga e companheira para todos os momentos, partícipe de minhas conquistas e fundamental amparo em minhas derrotas; que, a exemplo de meus pais, também exercitou uma paciência homérica diante de minhas dúvidas, incertezas e entraves, mas que com suas doses diárias de amor e carinho fez com que as batalhas travadas pela minha consciência fossem menos sangrentas e até mais produtivas. Devo muito a você! Não poderia deixar de agradecer também à música, minha eterna companheira de vida, combustível para minha felicidade, sem ela com certeza não seria completo. Como diria uma das frases mais conhecidas e exaustivamente reproduzidas do filósofoestudado neste trabalho: “Sem música a vida seria um erro”. A minha com certeza seria. Não menos importantes agradeço agora ao meus querido amigos:Thyago Santos, irmão de ideias, parceiro da vida, um sincero agradecimento pelas longas conversas e discussões regadas a boas cervejas até altas horas da madrugada, sempre instigantes e questionadoras, na maioria das vezes nem tanto elucidativas, que sempre nos renderamdescobertas e outros novos questionamentos (e boas ressacas nas manhãs seguintes) que com certeza fizeram com que crescêssemos absurdamente diante dessa dialética desenfreada. Aos meus amigos Denis de Oliveira Renna e Murillo Fernandes Cutolo pelo laço formado durante os cinco anos de graduação que, com certeza, fizeram com que o árduo caminho trilhado fosse suavizado pelo afeto de dois irmãos escolhidos; um sincero agradecimento por todas as conversas, bares, risadas e dissabores vividos juntos:somos mais do que éramos com toda a absoluta certeza! Agradeço também ao professor Marcelo Souza Koch Vaz Döppenschmitt pela sua indispensável orientação em meio à tantas atividades, pela paciência e disposição para dirimir as inúmeras dúvidas que surgiram no decorrer da elaboração do presente trabalho. Por fim, um agradecimento especial à todos aqueles que participaram da minha passagem pela graduação em Direito e pelo processo de elaboração deste trabalho perguntando, questionando e, principalmente, ouvindo as minhas ideias quase sempre em formação, incompletas e megalomaníacas. “(...) quem aqui aprende a questionar, a este se sucederá o mesmo que ocorreu a mim – uma perspectiva imensa se abre para ele, uma nova possibilidade dele se apodera como um vertigem, toda espécie de desconfiança, suspeita e temor salta adiante , cambaleia a crença na moral, em toda moral (...)”. Nietzsche, Genealogia da Moral, Prólogo, §º6. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo refletir acerca da crítica feita pela filósofo alemão Friedrich Nietzsche aos conceitos ocidentais de castigo e responsabilidade, atentandoao conceitode reparação de danos rechaçado pelo autor em sua obra Genealogia da Moral, culminando finalmente no conceito de justiça proposto pelo filósofo, analisando especificamente a segunda dissertação da obra: “Culpa”, “Má Consciência” e Coisas Afins. Investigaremos ao longo do trabalho tanto a crítica quanto a proposta de Nietzsche sobre os valores morais, a proposta de transvaloração de todos os valores, e a ineficácia do conceito de reparação de danos que, conforme explica é apenas uma celebração do sentimento de vingança que não repara efetivamente o dano causado, apenas causa júbilo a quem o observa ou, mais ainda, a quem o causa. Além disso, objetivaremos responder, diante da interpretação das obras de Nietzsche,como o ser responsável proposto pelo autor, com sua tábua própria de valores, iria propor a compensação pelos danos causados por ele ou a ele e, em consequência, como poderíamos chegar a um novo significado para o conceito de justiça, e consequentemente à uma sociedade mais evoluída. Palavras-chave: Nietzsche, moral, responsabilidade, reparação de danos, justiça. ABSTRACT This workaims toreflect on thecriticism made by theGerman philosopherFriedrichNietzscheto western concepts of punishment and responsibility specifically analyzing the concept of repairing damages opposed by the author in his work Genealogy of Moralsfinally culminating in the concept of justice proposed by the philosopher, specifically analyzing the second chapter of his work: “Guilt”, “Bad Conscience”, and Related Matters.We will investigate throughout the work as much criticism as Nietzsche's proposal on moral values, the proposal of revaluation of all values, and the ineffectiveness of the concept of repairing damages, which explains that it‟s only a celebration of revenge‟s feelings which does not repair effectively damage, just causes joy to the beholder or, even more, to whom causes it . Furthermore, we will focus to answer through the interpretation of the works of Nietzsche, how the responsibles humans beingproposed by the author, with its own board of values, would propose the compensation for damage caused by him or to him and, in consequence, how we could reach a new meaning to the concept of justice, and consequently to a more evolved society. Keywords: Nietzsche, moral, responsibility, damage repairing, justice. SUMÁRIO CAPÍTULO 1 - A ORIGEM E A CRÍTICA DE NIETZSCHE À MORAL OCIDENTAL. A RELAÇÃO CREDOR-DEVEDOR E A POLÊMICA DA REPARAÇÃO DE DANOS. .......... 15 1.1A invenção dos juízos de valor “bom” e “mau” – o advento da moral ocidental. ............. 18 1.2Introdução à relação credor e devedor ............................................................................. 21 1.3 A relação credor-devedor e o nascimento do sentimento de culpa e da responsabilidade pessoal..................................................................................................................................... 22 1.4 A reparação de danos como castigo imposto ao devedor. ............................................... 26 1.5 O conceito de justiça até aqui ........................................................................................... 28 CAPÍTULO 2 - A EVOLUÇÃO DA JUSTIÇA E O SENTIMENTO DE VINGANÇA ........... 32 2.1 O sentimento de vingança disfarçadamente enraizado na justiça nos dias atuais. ......... 33 2.2 Crítica nietzschiana à ideia de equivalência entre o dano causado pelo infrator e o castigo imposto. ...................................................................................................................... 36 2.3 O castigo e a violência como modos de tornar o homem confiável: instrumentos de domesticação social. O enfraquecimento do homem. ........................................................... 39 CAPÍTULO 3 – A NÃO-RESPONSABILIDADE E A JUSTIÇA PREMIADORA ................. 42 3.1 A imposição de valores como fator gerador da não-responsabilidade moral. ................. 44 3.2 Crítica à justiça premiadora .............................................................................................. 46 CAPÍTULO 4 – O ESPÍRITO CRIADOR: O DEVIR DE UMA NOVA JUSTIÇA, DE UMA NOVA MORAL .......................................................................................................................... 48 4.1 A proposta nietzschiana à reparação de danos e ao castigo. A auto-supressão da justiça. ................................................................................................................................................. 49 4.2 A responsabilidade e a teoria do eterno retorno.............................................................. 52 4.3 Uma aurora de uma nova comunidade pautada por uma outra justiça. A transvaloração de todos os valores pelo espírito livre. ................................................................................... 55 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 62 12 INTRODUÇÃO O presente trabalho objetiva analisar a filosofia moral de Friedrich Wilhelm Nietzsche que é apresentada, principalmente, em sua obra Genealogia da Moral, mais precisamente na segunda dissertação: “Culpa”, “Má Consciência” e Coisa Afins, texto este que é influência central do presente trabalho. Friedrich Nietzsche continua praticamente desconhecido academicamente entre aqueles que estudam o direito e a filosofia do direito. Nietzsche analisou diversas questões relacionadas à ciência e à filosofia do direito, abordou questões jurídicas através de um viés filosófico e questões filosóficas através de uma visão jurídica, perfazendo críticas etransformaçõesde conceitos com a finalidade de efetuar uma crítica do direito na modernidade, dos valores morais dele decorrentes e também propor uma moral que se caracteriza pela transvaloração de todos valores ocidentais. Tendo os conceitos de castigo, reparação de danos e justiça como fios condutores, o presente trabalho tem por objetivo refletir acerca de uma nova filosofia do direito e mais ainda, uma nova forma de conceituação de justiça, diferente da já tradicional, baseada no pensamento nietzschiano. O tema da moral é um dos principais assuntos de toda a obra do filósofo, sendo recorrente em quase todos os seus escritos. A obra em evidência (Genealogia da Moral) instigou o questionamento e o aprofundamento de diversos aspectos da dita moral ocidental, e das noções de justiça, culpa, responsabilidade e castigo, as quais advieram de toda a construção e evolução da moral ocidental. O presente trabalho se desenvolve diante da seguinte problemática: a ideia ocidental de reparação de danos, advinda da relação credor-devedor, é realmente efetiva para castigar o homem quando este causa um dano ao particular ou ao Estado, ou narealidade é apenas um disfarce para a ideia de vingança? Como o ser responsável 13 proposto por Nietzsche, com sua tábua própria de valores, iria propor a compensação pelos danos causados por ele ou a ele? Os conhecimentos adquiridos através da reflexão diante da problemática acima, pretendem elucidar o conceito de responsabilidade proposto pelo filósofo diante da ideia ocidental de reparação de danos duramente criticada pelo autor em Genealogia da Moral. A reflexão visa entender e transmutar os sentidos ocidentais de culpa e de castigo que, de acordo com o filósofo, não são efetivos para uma real reparação de danos, que apenas troca-se o dano causado por um extraordinário prazer: o de ver-sofrer ou o de causarsofrer. Além disso,objetivaremos demonstrar,através do pensamento de Nietzsche, que o direito e a justiça são essencialmente mutáveis, que uma justiça evoluída é aquela que afasta as ideias deletérias de vingança que nela estão enraizadas, e quesão extremamente nocivas à uma sociedade pós-moderna, trazendo um imenso atraso à sociedade, ao direito e à justiça, cultivando uma forma ilusória desta, que apenas faz com que cada vez mais os mecanismos de controle sejam mais rígidos, mais complexos e mais numerosos, deformando a verdadeira finalidade do castigo, atribuindo a ele uma pluralidade de significados, todos eles, na prática, inefetivos - tal qual um remédio placebo receitado ao ignorante, à uma sociedade enganada. A reflexão passará por quatro capítulos. O primeiro conterá a explicação da moral vigente como criação demasiada humana, explicitando a sua origem nos valores ocidentais e relacionando-a com o conceito de credor-devedor, fundamentais para o entendimento da posterior conceituação de reparação de danos e sua evolução para os mais diversos tipos de castigos, bem como a explicação da maneira que tais conceitos se solidificaram durante a 14 história, bem como a análise de como esses valores se impuseram sobre determinados tiposde indivíduos. No segundo capítulo trataremos da evolução de tal reparação de danos advinda das relações obrigacionais que acaba por culminar no sentimento de vingança e que este se enraíza no conceito e na finalidade da justiça para a posteridade. Abordaremos também a crítica de Nietzsche à ideia de equivalência entre o dano causado e o castigo imposto, e como tais instrumentos foram utilizados ao longo dos tempos para domesticar o homem e enfraquecê-lo. A partir do terceiro capítulo trataremos da noçãode não-responsabilidade que o antigo conceito da responsabilidade ocidental acarreta de acordo com Nietzsche juntamente com sua crítica à tradicional ideia de justiça premiadora. E por fim, no último capítulo, estudaremos os argumentos de Nietzsche para os conceitos tão criticados por ele de castigo e reparação de danos, responsabilidade e justiça. Todos eles intimamente ligados a um novo tipo de ser humano essencialmente criador, como o filósofo nomeia: o espírito livre. Analisaremos o entendimento de Nietzsche acerca dosespíritos livres e a capacidade desses homens superiores de operar a transvaloração de todos os valores tão pregada pelo filósofo, primeiro em âmbito individual e, depois, exteriorizando para os outros seres e para a cultura, culminando posteriormente com o nascimento de uma nova comunidade pautada por um outro tipo de justiça, que acabará por cumprir a sua finalidade essencial, suprimindo a si mesma. 15 CAPÍTULO 1 -A ORIGEM E A CRÍTICA DE NIETZSCHE À MORAL OCIDENTAL. A RELAÇÃO CREDOR-DEVEDOR E A POLÊMICA DA REPARAÇÃO DE DANOS. A partir da análise que Nietzsche faz da criação e da evolução da moral ocidental que, em sua visão, seria exatamente essa moral a culpada pelo homem jamais conseguir alcançar uma maior grandeza de espírito, uma evolução da espécie humana,o filósofo tece duras críticas à essa forma de pensamento. As críticas estão espalhadas por toda a obra do autor, sendo citadas em praticamente todos os seus escritos. Neste capítulo, faremos um breve resumo do ponto central do motivo pelo qual Nietzsche repudia tanto a moral ocidental, ou a “moral do ressentimento”, o que servirá de base para entendermos também os motivos pelos quais Nietzsche desconstrói os outros conceitos de castigo, de reparação de danos, de responsabilidade e consequentemente o conceito de justiça, dando a eles novas interpretações, consideraras por ele mais evoluídas, totalmente divergentes das até então estabelecidas. Como dito, toda a obra de Nietzsche apresenta críticas à moral ocidental, moral essa imposta tanto pelas instituições religiosas quanto pelo Estado, mas, ao mesmo tempo, o autor reconhece que tais imposições de valores foram essenciais para manter as pessoas que fazem parte daquelas comunidades sob controle; como o próprio filósofo menciona: “domesticar os animais de rebanho para que possam viver os benefícios da sociedade”. Nietzsche sendo o criador do termo que designa um outro tipo de homem, o chamado espírito livre, como ele próprio os descreve e, em alguns momentos, também se 16 autodenominava1, rechaça toda moral que é imposta aos homens, todos os valores que são obrigatórios às pessoas, sendo que esses valores são impostos coercitivamente à elas, sem poderem sequer questioná-los ou ao menos escolhê-los. O espírito livre questiona internamente todos valores a ele impostos, de forma que Nietzsche descreve as dúvidas e incertezas que faz com que esse indivíduo duvide da moral imposta e comece inevitavelmente a questioná-la: “Não é possível revirar todos os valores? E o Bem não seria o Mal? E Deus apenas uma invenção e finura do Demônio? Seria tudo falso, afinal? E se todos somos enganados, por isso mesmo não somos também enganadores? Não temos de ser também enganadores?‟ – tais pensamentos o conduzem e seduzem, sempre mais além, sem mais à parte. A solidão o cerca e o abraça, sempre mais ameaçadora, asfixiante, opressiva, terrível deusa e mater saeva cupidinum [selvagem mãe das paixões] – mas quem sabe hoje o que é solidão?”2. De acordo com a concepção moral já formada, Nietzsche considera, conformeo seu ideal de um homem deespírito livre, que o ser humano e o mundo foram transformados em algo carente de sentido, um grande vazio. Utilizando-se os ideais dos sacerdotes religiosos, toda a realidade da vida esteve condenada à carência de valor e sentido. O pensamento da moral do ressentimento, explicada por Nietzsche, vê no outro um culpado pela sua desgraça e sofrimento, essa causa, quando se interioriza, faz com que o homem se considere, agora, um animal culpado. As correntes religiosas então, agregaram e confirmaram para toda essa massa de sofredores culpados um grande sentido para tudo isso, uma ilusão de sentido que conforta esses seres que se consideram sofredores. O modelo de valores ocidental é centrado no modelo sacerdotal-ascético, sendo que o sacerdote representa uma lei, uma força que impõe valores, ou em sua maior 1 Nietzsche, em sua obra Humano, demasiado humano alguma vezes menciona que os espíritos livres não existiriam até então, que ainda estariam por vir, e em outros escritos se inclui no grupo, mencionando: “a nós, espíritos livres”. O conceito do espírito livre nietzschiano será melhor esmiuçado no decorrer do trabalho. 2 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano. Tradução, notas e posfácio por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 10. 17 finalidade, ensina um fim e um sentido para a vida de seus seguidores. A base então para esse modelo criticado por Nietzsche se encontra resumida em quatro palavras: culpa, dívida, castigo, negação. Este homem pautado pelo ideal sacerdotal-ascético não possui inteireza, não consegue sentir em si o verdadeiro significado da vida, é um homem inferior vivendo em plena ilusão, é incapaz de enxergar ou de simplesmente buscar a verdade das coisas; tem a sua visão turva, e não conseguirá atingir uma superioridade humana, não chegará sequer perto do Super Homem proposto por Nietzsche3, muito menos do desenvolvimento de uma nova humanidade liberada da estrutura de culpabilidade do modelo sacerdotal-ascético. O “homem do ressentimento”4 é aquele que não reage; é passivo diante da vida. Essa passividade aparece como felicidade, e esta última como torpor, embriaguez, paz. É o ser humano que quer apenas benefícios e lucros, sem, efetivamente, agir para conquistálos. O homem do ressentimento carrega em si o espírito de vingança. Ele é impotente para amar, não respeita aos outros e nem a si mesmo. Por fim, distribui responsabilidades, imputa acusações; tem necessidade de que os outros sejam maus para que ele seja o único e absoluto bom. Conforme Gilles Deleuze menciona: “Tu és mau, portanto eu sou bom: essa é a fórmula fundamental do escravo, ela traduz o essencial do ressentimento do ponto de vista tipológico, resume e reúne todos os caracteres precedentes. Comparem essa fórmula com a do senhor: eu 3 O Super Homem (termo originado do alemão Übermensch) nietzschiano, é uma das mais famosas teses do filósofo. No livro Assim Falou Zaratustra, o autor descreve os passos que os homens devem seguir para evoluir para uma além do homem, ele propõe que através da transvaloração de todos os valores do indivíduo, da vontade de potência, e de um processo longo e contínuo de superação, um novo tipo de ser humano iria nascer, mudando todo a visão do ser humano sobre si mesmo e do mundo. 4 Nietzsche considera que há homens ativos e homens do ressentimento, os primeiros no tocante à moral concebem uma noção básica de “bom”, e a partir dela criam para si a sua definição do “mau”. O outro tipo de homem cria uma concepção de “mau” de acordo com os primeiros, ou seja, para eles, os “bons” da outra moral são os “maus” para a sua moral, acabam tendo as suas definições por reação. A esses homens Nietzsche dá diversas alcunhas, entre elas, homens do ressentimento e homens reativos. O filósofo caracteriza esse tipo de homem: é aquele que se vê altruísta, abnegado, sacrificado. É um homem passivo, fruto da ideia de compaixão cristã. 18 sou bom, portanto tu és mau. A diferença entre as duas é a medida da revolta do escravo e de seu triunfo: “Essa inversão do olhar apreciador pertence propriamente ao ressentimento; a moral dos escravos para nascer precisa sempre e antes de mais nada de um mundo oposto e exterior”. O escravo precisa, de início, colocar que o outro é mau”5. Nietzsche propõe, então, a partir de sua genealogia da moral, que se opere uma transvaloração de todos os valores existentes até o momento (Umwerthung aller Werthe), rompendo principalmente com a divinização do mundo, da vida e do homem, concedendo a este último o caráter de criador e não de mero seguidor dos valores morais. 1.1 A invenção dos juízos de valor “bom” e “mau” – o advento da moral ocidental. Nietzsche aborda, de maneira inovadora para a sua época e para o que havia sido produzido até então sobre o tema, o problema da atribuição de valor aos valores morais e, como consequência, os problemas de sua origem, de sua criação. Conforme explica Gilles Deleuze em sua obra Nietzsche e a Filosofia: “Genealogia quer dizer simultaneamente valor de origem e origem dos valores. Genealogia se opõe ao caráter absoluto dos valores tanto quanto o seu caráter relativo ou utilitário. Genealogia significa o elemento diferencial dos valores do qual decorre o valor destes. Genealogia quer dizer, portanto, origem ou nascimento, mas também diferença ou distância na origem. Genealogia quer dizer nobreza e baixeza, nobreza e vilania, nobreza e decadência na origem. O nobre e o vil, o alto e o baixo, este é o elemento propriamente genealógico ou crítico. Mas assim compreendida, a crítica é ao mesmo tempo o que há de mais positivo. O elemento diferencial não é a crítica de valor dos valores sem ser também o elemento positivo de uma criação. Por isso a crítica nunca é concebida por Nietzsche como uma reação, mas sim como uma ação. Nietzsche opõe a atividade da crítica à vingança, ao rancor ou ao ressentimento” 6. 5 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução por Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Editora Rio, 1976. p. 79. 6 Idem., p. 05. 19 O filósofo, já no prólogo do livro Genealogia da Moral, logo explicita sua problemática e a sua dúvida quanto a efetividade dos juízos de valor que o homem inventou para si, questão que responde durante as três dissertações que seguem: “[...] sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? e que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro?”7. O interesse do filósofo ao analisar o tema da moral se encontra na hierarquia de valores dessa moral e, mais especificamente, se essa moral é aliada à busca por um homem superior, aquele do seu vir-a-ser, ou ao contrário, se na realidade, ela é fruto e também é totalmente direcionada aos homens comuns, visando também frear uma possível evolução, prendendo esses homens na mediocridade. A origem e evolução da moral ocidental, tal como Nietzsche a apresenta em seu Genealogia da Moral se inicia com a análise da própria etimologia das palavras“bom” e “mau”. A palavra “bom”, inicialmente, era utilizada para se referir aos nobres, aos poderosos, superiores em posição e pensamento, aqueles que, sozinhos, sentiram e estabeleceram os seus atos como sendo os atos bons, os atos valorosos. Ao contrário, a palavra“mau” se referia a tudo que contrapunha aquela posição, ou seja, ao baixo, ao vulgar, ao plebeu. Os nobres, em sua posição privilegiada, eram os únicos capazes de dar ordens, de mandar, de controlar os submissos. Assim, eram as únicas pessoas da classe efetivamente 7 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Tradução, notas e posfácio por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 9. 20 livre, e por isso, criavam seus próprias valores, e mais, obrigavam as pessoas, de forma coercitiva, a adotá-los e asegui-los8. A evolução dos conceitos explicitados pelo autor passam por uma mutação a partir da qual ocorreria uma transvaloração de valores, proposta por ele. O filósofo expõe que a partir do advento de Jesus de Nazaré, “tudo de judaíza, se cristianiza, se plebeíza”, inclusive os valores morais. A partir desse momento a moral do homem comum vence a dos senhores, até então absolutos e ditadores da moral. Agora, o juízo sacerdotal dita a moral, os “homens do ressentimento” criam e geram valores. Nietzsche chama essa nova moral de “a moral escrava” ou ainda, como o termo já utilizado anteriormente “a moral do ressentimento”. Quem é o mau no sentido da “moral do ressentimento” é o bom da moral anteriormente explicada, ou seja, o nobre, o senhor, o poderoso, o dominador, e o contrário também é valido. O bom de uma moral é, quase sempre, o mau para a outra moral. A revolta dos, até então, “fracos da moral”, os ruins, os pobres, baixos, marcou, de acordo com Nietzsche, de forma irreparável, a história do Ocidente e de sua moral. Nietzsche explica que a moral do ressentimento prega que o bom é: “[...] todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos9”. Ou seja, exatamente o oposto do que aquele nobre senhor dominador, que vai a guerra, que age, que diz sim a si mesmo, e que, em sua posição privilegiada, tudo pode. Esses homens do ressentimento, denominados de “ovelhas” pelo filósofo, creem que são por sua própria natureza fracos, submissos, impotentes, altruístas; sempre 8 9 Criando também as primeiras noções do conceito de justiça que serão analisados mais à frente. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Op. cit., p. 33. 21 obedientes e temerosos ao seu Deus. Acreditam que toda a miséria sofrida por eles, será recompensada mais adiante. Que a vida terrena de sofrimento, é apenas uma prova para a felicidade além-vida, ao consolo por todo o sofrimento aturado em vida, dão a isso, o nome de “Juízo Final”, o advento do “Reino de Deus”, quando, por fim, ocorrerá sua salvação e o castigo eterno de todos aqueles que não são os considerados “bons” para a sua moral, um castigo divino aos “maus. Nota-se que mesmo esses homens, como todo ser humano, também querem e almejam serem poderosos, senhores, dominadores um dia. Certo é que essa moral do ressentimento é a preponderante no ocidente e Nietzsche lhe direciona duras críticas, visando a sua desconstrução, e propondo uma nova tábua de valores, desvinculada de tudo o que até agora foi postulado. Seguimos agora, apresentando as críticas do filósofo à chamada “moral do ressentimento” apresentada no presente subitem. 1.2 Introdução à relação credor e devedor Após toda a investigação histórica dos valores morais Nietzsche chega a conclusão, na segunda dissertação de Genealogia da Moral,de que as origens do sentimento de culpa e má-consciência surgem a partir do conceito material de dívida. Conceito este que deixa claro a obrigação de um sujeito (devedor) para com o outro (credor), e a partir dela as distinções das ideias de intencional, negligente, causal, responsável, e também, consequentemente, os seus opostos, começam a ser levados em conta na atribuição do castigo e no sentimento de culpa. A partir desse raciocínio Nietzsche também explica, mais à frente no mesmo texto, a ideia da responsabilização do delinquente pelo dano que causou, sendo, portanto o 22 criminoso, o causador de danos, também devedor perante a sociedade e o Estado que lesionou, estes últimos, portanto, ocupando o lugar de credores. Cria-se, então, a partir desse raciocínio comercial de crédito e débito, o senso comum de que qualquer dano encontra o seu equivalente e pode ser realmente compensado, o que é criticado e negado pelo autor, conforme será demonstrado nos próximos subitens. 1.3 A relação credor-devedor e o nascimento do sentimento de culpa e da responsabilidade pessoal. A teoria da responsabilidade nietzschiana é apresentada na obra Genealogia da Moral, em sua segunda dissertação. No segundo parágrafo do texto Nietzsche inicia uma narrativa explicando a origem histórica do conceito de responsabilidade. Conforme explica, a responsabilidade do homem nasce a partir do momento em que o homem pré-histórico evolui e se vê capaz de fazer promessas; “se torna um animal capaz de fazer promessas”10 como pontua o filósofo. O homem pré-histórico diante das experiências dolorosas e traumáticas pelas quais passava, acaba criando uma memória do que não quer para si. O sofrimento impõe uma memória da dor no bicho-homem e a partir desse momento desenvolve-se uma razão, e consequentemente regras de convivência entre os iguais posteriormente. O desenvolvimento da memória do homem o torna capaz de prometer, ou seja, se torna cada vez mais confiável e previsível, nas palavras de Nietzsche: “constante”.Esse 10 Idem, p. 44. 23 homem responsável que Nietzsche descreve não é responsável porque a sociedade lhe impõe um determinado modo de conduta, mas é porque o próprio homem reconhece que deve moralmente adotar certas condutas e, por isso, é responsável tanto pela realização, como pelas consequências, de sua ação, ou de sua omissão. “O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante” 11. A partir desse momento, o homem se considera responsável, livre, autônomo. Mas, para Nietzsche, este é o início do agrilhoamento do homem, este é o início da domesticação e auto-supressão necessárias de seus instintos para que ele viva em sociedade. “Mas como veio ao mundo aquela outra „coisa sombria‟ a consciência da culpa, a „má-consciência‟?”12.Com esse questionamento Nietzsche inicia sua explicação da relação contratual entre credor e devedor, e o nascimento destes conceitos em suaGenealogia da Moral. O autor explica que os antigos genealogistas da moral sequer chegaram perto de extrair conclusões semelhantes às suas sobre a origem destes conceitos; não possuíam o que ele denomina de “instinto histórico”:a esses pesquisadores faltava a vontade de conhecer as origens, de investigar o passado, para que conseguissem chegar a real gênese dos conceitos e não apenas na gênese aparente. Retornando, mais uma vez, aos primórdios da humanidade, Nietzsche considera que o advento e evolução da memória, foram indispensáveis para que os seres humanos pudessem ser capazes de fazer promessas, se tornando seres confiáveis e estáveis. 11 Id., ibid.. Idem, p. 48. 12 24 “Muito antes de se criarem leis e governos, a memória começou a ser exigida em relações pessoais mais simples, básicas e imediatas que estavam presentes no cotidiano daqueles seres rudimentares. As primeiras circunstâncias em que se começa a exigir que o bicho-homem se torne confiável são as relações pessoais de troca como compra, venda, comércio e tráfico, quando se criou, pela primeira vez, a relação entre credor e devedor”13. Para ganhar a confiança de seu credor, o devedor por meio de um contrato promete ao credor algo que ainda possua, algo que sobre o qual ainda tenha poder, infundindo confiança em sua promessa de restituição. Promete uma garantia, como o seu corpo, sua mulher, sua liberdade, sua vida, ou coisas menos materiais, como nos casos religiosos, a salvação de sua alma, sua bem-aventurança, e até a paz no túmulo. Havendo o descumprimento do que foi prometido inicialmente pelo devedor, a relação de confiança é quebrada e o credor poderia, como forma de reparaçãodos danos causados por aquele homem inferior, aquele que faz uma promessa e não a cumpre, castigá-lo proporcionalmente ao tamanho da dívida. Pois bem, nesse momento é que, pela primeira vez, a violência é utilizada como meio para fazer o homem um animal confiável, à força.Desta forma ocorreu o entrelaçamento das ideias das obrigações legais e da “culpa e sofrimento”, o culpado, aquele que promete e não cumpre, merece o sofrimento para reparar o dano que causou. Foi a partir desse momento também que, pela primeira vez,“mediu-se uma pessoa com outra”14. Era concedida uma espécie de satisfação íntima ao credor como reparação, a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, de quem pode punir os impotentes, de quem pode efetivar um direito reservado apenas aos senhores. Todos os graus de civilização conceberam, em algum momento, as ideias de estabelecer preços, medir valores e pensar em equivalências. Essas práticasdecorrentes das 13 CAMARGO, G.A. Relações entre justiça e moral no pensamento de Nietzsche. Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 79-97, jan./jun. 2011. 14 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Op. cit., p. 54 25 relações de comércio, como a compra e venda e a troca, constituíram totalmente o pensamento do homem, sendo que Nietzsche considera que este foi o primeiro impulso do orgulho humano, “seu sentimento de primazia diante dos outros animais”15. O filósofo apresenta até a hipótese de que seria possível correlacionar o substantivo homem (mensch, em alemão) com o verbo que significa medir (messen), caracterizando assim, de forma etimológica, o homem como animal que mede, que atribui valores e, por decorrência, o animal que estabelece equivalências e formas de reparação e de pagamento; Nietzsche considera o homem o“animal avaliador”16. Conforme o filósofo aponta, o pensamento do homem foi moldado pelas práticas mercantes e invadiu todosas estruturas sociais conforme a evolução do homem: “Comprar e vender, juntamente com seu aparato psicológico, são mais velhos inclusive do que os começos de qualquer forma de organização social ou aliança: foi apenas a partir da forma mais rudimentar de direito pessoal que o germinante sentimento de troca, contrato, débito [schuld], direito, obrigação, compensação, foi transposto para os mais toscos e incipientes complexos sociais (em sua relação com os complexos semelhantes), simultaneamente ao hábito de comparar, medir, calcular um poder e outro”. “(...) logo se chegou a grande generalização: “cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago” – o mais velho e ingênuo cânon moral da justiça, o começo de toda a “bondade”, toda “equidade”, toda “boa vontade”, toda “objetividade” que existe na terra”17. A pergunta que Nietzsche propõe em relação a esse tema, que também permeia o presente trabalho, se entrelaçando com os conceitos de justiça a serem investigados, é: “em que medida pode o sofrimento ser compensação para a dívida”? 15 Id., ibid.. Idem, p. 55. 16 26 1.4 A reparação de danos como castigo imposto ao devedor. Se houvesse o descumprimento da promessa feita por aquele que pediu pela confiança, ou um acordo desonrado, a dor do devedor, do causador do dano, serviria como equivalente pelo desprazer causado pela promessa não cumprida. Através da dor, buscou-se criar a memória de que as promessas sempre deveriam ser cumpridas. Através desse tipo de punição o credor participava de um direito de senhores, de um grupo seleto de homens poderosos. Ele trata o devedor como um homem inferior, e portanto experimenta um sentimento de distância entre ele e o causador do dano, agora já punido. A diferença que essa prática estabelecia entre esses dois homens (enquanto animais avaliadores) é que: enquanto um deles evolui ao ponto de se tornar um senhor poderoso, o outro precisa ser forçado a abandonar o seu estado de bicho-homem, de instabilidade, e se tornar um homem confiável, é forçado a aguçar sua memória para se estabilizar perante a sociedade que se formava, e portanto aproveitar os benefícios que ela lhe fornecia. O homem que tem consciência de sua capacidade de prometer e cumprir entende tal poder como algo que deve ser valorizado e desenvolvido, de forma que despreza aquele que é incapaz de tal atitude, considerando-o um homem inferior, sentindo-se um direito legítimo de castigá-lo, a fim de torná-lo um homem mais digno, mais parecido com ele. Desta forma, o credor podia infligir ao corpo do devedor todo os tipos de humilhações e torturas, como por exemplo,cortar os membros daqueleo quanto lhe parecesse proporcional ao tamanho da dívida. 27 Nietzsche também relata que o castigo “sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de qualquer suposição acerca da liberdade ou não-liberdade da vontade”18. Esse direito de castigo concedido ao credor, não se justificava graças à compreensão de que aquele que não cumpriu sua promessa poderia ter agido de forma diversa, como acontece atualmente. Na realidade não se pensava em punir um culpado, mas sim um causador de danos. O castigo tinha o sentido completo e único de reparação dos danos sofridos e a sensação de prazer ao causar sofrimentos ao devedor era o pagamento equivalente por tal dívida. A equivalência entre o dano causado pela promessa não cumprida e pelo castigo infligido ao devedor, de acordo com Nietzsche, se encontrava na substituição de uma vantagem relacionado ao dano por uma espécie de satisfação íntima concedida ao credor, como reparação e recompensa. Desse modo, graças à equivalência entre dano e castigo, a dor causada ao devedor e a satisfação concedida ao credor, Nietzsche conclui que a dor só poderia ser algo compensatório na reparação de um mal na medida em que o homem sentia extremo prazer em ver e fazer o outro homem sofrer, ainda mais quando aquele havia causado algum dano a ele. Prazer esse que de tão agradável a esse homem o fazia se sentir, efetivamente, satisfeito, com a ilusão do dano reparado. Assim, descarregar o sentimento de ódio pelo dano sofrido se mostrou uma ótima forma de reparação de danos.Nietzsche, então, revela duras críticas à essa primeira noção de reparação de danos e à ideia de justiça que ela remete. 18 Idem, p. 48. 28 Analisando o castigo como forma de punição e portanto visando a satisfação do credor por causar o sofrimento àquele que o deve, denota uma crueldade em que asatisfação do “faire le mal pour le plaisir de le faire”19 (fazer o mal pelo prazer de fazêlo) equivale todos os danos sofridos. Substituiu-se uma vantagem diretamente relacionada ao dano material, consistente em dinheiro e bens por uma espécie de satisfação íntima concedida ao credor como reparação e recompensa. E, em uma abordagem mais atual, nos casos em que o poder da execução passou para as autoridades, poder ao menos vê-lo desprezado, maltratado e encarcerado em uma cela, já equivale ao dano causado. O que mais intriga, é que na realidade, não há efetivamente qualquer reparação do dano causado nesses casos, há uma troca, como se o castigo fosse realmente equivalente ao dano causado pela quebra da promessa, o que não se mostra verdadeiro. Nietzsche então encontra a resposta para a pergunta formulada anteriormente neste capítulo. O sofrimento é compensação para a dívida porque “fazer sofrer era altamente gratificante, na medida em que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer pelo dano, por um extraordináriocontra-prazer: causar o sofrer”20.E termina: “Ver sofrer faz bem, fazer sofrer mais ainda – eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciam e como que “preludiam” o homem. Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo!”21. 1.5 O conceito de justiça até aqui 19 Idem, p. 50. Id., ibid.. 21 Idem, p. 51. 20 29 Diante desse raciocínio, Nietzsche acaba construindo um conceito que traduziria o sentimento de justiça advindo da relação credor e devedor analisada, e a consequente responsabilidade do devedor quando não cumpria com suas obrigações contratuais.De acordo com ele, os fundamentos sobre os quais se estrutura a justiça, tal como compreendida pela tradição são: “o altruísmo, o livre-arbítrio, com escopo de responsabilização do agente e de legitimação da intervenção social punitiva”22. Transcrevo, a conclusão do filósofo a respeito do conceito de justiça baseado na relação entre credor e devedor, retiradas de sua primeira obra Humano, Demasiado Humano: “Origem da justiça. – A justiça (equidade) tem origem entre homens de aproximadamente o mesmo poder, como Tucídides (no terrível diálogo entre os enviados atenienses e mélios) corretamente percebeu: quando não existe preponderância claramente reconhecível, e um combate resultaria em prejuízo inconsequente para os dois lados, surge a ideia de se entender e de negociar as pretensões de cada lado: a troca é o caráter inicial da justiça. Cada um satisfaz o outro, ao receber aquilo que estima mais que o outro. Um dá ao outro o que ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua vez recebe o desejado. A justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual: originalmente a vingança pertence ao domínio da justiça, ela é um intercâmbio. Do mesmo modo a gratidão. – A justiça remonta naturalmente ao ponto de vista de uma perspicaz autoconservação, isto é, ao egoísmo da reflexão que diz: “por que deveria eu prejudicar-me inutilmente e talvez não alcançar a minha meta?”. – Isso quanto à origem da justiça”23. Nietzsche identifica no início da formação do conceito e sentimento de justiça a presença do cânon “cada coisa tem um preço; tudo pode ser pago”24, demonstrando a importância da relação entre a justiça e as operações básicas do comércio. Segue uma outra conclusão acerca do conceito de justiça que o filósofo fez constar em sua Genealogia da Moral: “Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que 22 MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a Justiça: crítica e transvaloração. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 50. 23 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano. Op. cit., p. 65. 24 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Op. cit., p. 55. 30 apenas o culpado devia ser castigado – e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que desafoga em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor de seu causador. De onde retira sua força esta ideia antiquíssima, profundamente arraigada, agora talvez inerradicável, a ideia da equivalência entre dano e dor? Já revelei: na relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de “pessoas jurídicas”, e que por sua vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico”25. A justiça começa como um ajuste de forças entre os homens fortes que criam a existência de certos compromissos que entendem como necessários e forçam seu cumprimento aos demais. A justiça sempre aparece onde há um conflito de interesses entre pessoas ou grupos de força aproximadamente igual: a troca é o caráter inicial da justiça. De forma equivalente como a troca permeia todas as relações comerciais, sendo a forma mais primitiva de todas elas, na justiça a mesma ideia se repete.A justiça nasce da chamada “vontade de potência”. Nasce, portanto, a partir de uma valoração que visa a auto conservação. Nasce do egoísmo dos homens. Da vontade de não ser prejudicado nas relações com outros homens, de não sofrer prejuízo imotivado, “injusto”. Nietzsche refere que nos dias atuais, as ações altruístas é que são consideradas formas justas de ação, mas explica que isso se deve ao esquecimento dos homens, e que essa “nova” concepção não foi absoluta e nem originária, já que os valores do que é considerado, atualmente, “justo” e “bom” já possuíram diferentes considerações em cada período histórico. Mas, até aqui, o nosso conceito de justiça advêm das relações de direito pessoal, sendo que essas noções começaram a se transpor para as relações políticas dos homens. Desta forma, essas noções passam para a sociedade em seu todo, sendo que da mesma forma, cria-se uma relação de credor e devedor com seus membros devedores, 25 Idem, p. 48-9. 31 aqueles que não conseguiram respeitar o contrato que aceitaram para viver em sociedade, estão, portanto, em débito com ela. O indivíduo fez uma promessa: a de cumprir suas regras, e caso não cumpra será excluído da vida em sociedade e devolvido à vida selvagem, à vida sem segurança. A justiça até aqui, conforme Nietzsche explica, é a troca entre homens iguais de não sofrerem qualquer tipo de prejuízo, e entre os desiguais, é a possibilidade do mais poderoso infligir o sofrimento no corpo e na vida do menos poderoso, já que esse (sendo desigual, inferior) não tem possiblidade de trocar para se satisfazerem. 32 CAPÍTULO 2 - A EVOLUÇÃO DA JUSTIÇA E O SENTIMENTO DE VINGANÇA Nietzsche deixa claro durante a sua segunda dissertação em Genealogia da Moral que a primeira concepção mais complexa de justiça criada, após a pré-história era, na verdade, um simples poder de vingança concedido ao mais poderoso: o credor,para castigar aquele que com ele tem dívidas: o seu devedor. A justiça, para o autor, até aqui, como conceitua nas obras Genealogia da Moral e também em Aurora,seria um equilíbrio de forças mais ou menos iguais em contraposição, em luta, portanto fazendo-as ajustarem em termos de retribuição e intercâmbio pautadas por um perspicaz juízo de auto-conservação26. Como forma de reparação de danos o credor castigava o devedor, que pagava o preço de seu débito com o seu sofrimento. Nota-se que essa primeira definição e, por que não, sentimento de justiça, para Nietzsche, se confunde totalmente com a definição de vingança. O débito em si não é, de forma alguma, pago dessa maneira, há apenas um sentimento de justiça ilusório com o sofrimento infligido no devedor. Através de toda a construção filosófica de Nietzsche da questão dos valores morais e da relação entre credor e devedor pode-se depreender que a ideia de sofrimento ficou enraizada no imaginário das pessoas como sendo uma forma efetiva e infalível de reparação de danos, mas é certo que ela é, paralelamente,um instrumento de legitimar o “fazer sofrer”, o “causar o sofrer” como forma de satisfação íntima ao credor. 26 MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a Justiça: crítica e transvaloração. Op. cit., p. 48. 33 A definição de justiça que Nietzsche encontra a partir da análise histórica e da relação credor e devedor é, na verdade, a vingança propriamente dita, que causa prazer naquele que tem o poder de executá-la. Nietzsche, aborda, em toda a sua obra, nos pontos em que trata do tema Justiça, toda a discussão acerca do valor atribuído pela tradição à ela, como verdade absoluta, imutável, junto a isso questiona, também, a procura da vontade de uma justiça que se instale acima dos homens, como critério universal de julgamento, que dê conta das determinantes de toda conduta, de toda ação, desconsiderando a individualidade do ser humano. O filósofo entende que todo julgamento é injusto, até mesmo aquele de um homem sobre si mesmo. Não há algum tipo de medida que possa ser usada universalmente e nossas próprias medidas são totalmente fluidas e variáveis, desde o início dos tempos. Não existe um valor justo por si mesmo, essa seria uma compreensão metafísica que, como é característico desse modo de avaliar, não leva em conta a história daquilo que se propõe a pensar. 2.1 O sentimento de vingança disfarçadamente enraizado na justiça nos dias atuais. Esse sentimento de vingança disfarçado de justiça (nome divinizado pelo homem, no qual é aceito qualquer conceito, por mais cruel pareça;de acordo com Nietzsche o nome sutiliza o real ato), com o passar dos anos perdeu sua posição absoluta como reparação de danos. De acordo com o pensador, aos poucos,diante da evolução da justiça,o sentimento de altruísmo foi sendo cada vez mais considerado o “certo”, “o valoroso”, o “bom”, sendo que até hoje é considerado a expressão do justo. 34 Ocorre que, demonstraremos nessa parte do trabalho que esse espírito de vingança continua inevitavelmente enraizado em nossa sociedade, exercendo enorme influência na justiça, porém disfarçado de diversos nomes inofensivos. Como o próprio Nietzsche aponta, nos últimos tempos houve uma sublimação e sutilização na crueldade do castigo, apresentam nomes “tão inofensivos que não despertam nenhuma suspeita nem mesmo na mais delicada e hipócrita consciência”27. O castigo, tomando como exemplo a sua utilização na esfera penal, ainda guarda imensos resquícios desse sentimento de vingança proveniente da relação entre credor e devedor. Nietzsche analisa a relação de punição ao infrator da forma apresentada no capítulo anterior, ou seja, as sociedades mantém com seus membros essa importante relação básica, a do credor com os seus devedores. Vive-se e desfruta-se das vantagens que essa comunidade proporciona, como segurança, paz, confiança, sem preocupação com certos tipos de hostilidade e abusos que um homem desprotegido, fora dessa sociedade, estaria exposto. Assim, caso o indivíduo que se comprometeu com a sociedade falha em sua promessa e descumpre as obrigações firmadas anteriormente, esta exigirá pagamento, tal qual um credor enganado. O Estado, personificação dessa comunidade, então, pune esseinfrator, ou seja, o credor pune o devedor por não ter seguido o contrato estipulado, no caso, por ter infringido ou deixado de cumprir umadeterminada lei. Nessa esteira, porém, um fato chama a atenção, Nietzsche dá ênfase a esse aspecto: “o dano imediato é o que menos importa no caso: ainda sem considerar esse dano, o criminoso é sobretudo um infrator”28. A comunidade visa então punir o infrator, tendo a 27 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Op. cit., p. 53. Idem, p. 55-6. 28 35 seguinte visão: “O criminoso é um devedor que não só não paga os proveitos e adiantamentos que lhe foram concedidos, como inclusive atenta contra o seu credor”29 Assim, o credor prejudicado, exerce de igual forma ao credor-particular sua ira, seu ódio ao causador de danos, e impõe também um sofrimento ao infrator, porém diferente: a comunidade afasta-o de si. Exerce, como Nietzsche menciona, um “direito de guerra”, guerra esta que forneceu todas as formas sob as quais o castigo aparece na história. O castigo aparece então como cópia de um comportamento normal diante de um inimigo odiado, celebra-se nele um direito de guerra, do vencedor perante o vencido, novamente o mais forte perante o mais fraco. Esse castigo imposto pela comunidade, mesmo atualmente, também permanece se concentrando no sofrimento da figura docausador de danos, do infrator, a reparação por um roubo, por um furto, ou ainda por um homicídio ainda consiste essencialmente, se não unicamente,no sofrimento do indivíduo. Como Nietzsche menciona, esquece-se o dano imediato, concentra-se no infrator, concentra-se na punição deste. Celebra-se o sofrimento como reparação de danos, disfarçado de vingança e crueldade. Mas, o que é necessário analisar, é que esse modo de reparação de danos, e consequentemente, de castigo ainda guarda muitos sentidos primitivos disfarçados por nomes sutis, ainda se coloca o nome de justiça em uma declaração de guerra a um indivíduo e os forçamos a “pagar pelo que fez” como se sua responsabilidade fosse absoluta sobre o fato e ainda, como se houvesse algum tipo de equivalência entre o seu sofrimento e o dano que causou. Nesse momento, nos permitimos a discordar do filósofo. Nietzsche aponta que a justiça caminha para um sentido altruísta, da “moral do ressentimento”, mas a partir dessa 29 Idem, p. 56. 36 análise notamos que o sentimento de vingança, aquele mesmo que Nietzsche criticava e considerava ultrapassado no século XIX, ainda permanece enraizado em nossa justiça e direito em pleno século XXI. Se o sentimento fosse mesmo de altruísmo como alega Nietzsche, a justiça não teria caminhado nessa estrada onde a vingança sempre corre ao seu lado, e por algumas vezes ainda caminha à sua frente. Mas Nietzsche também deixa claro que a partir desse sentimento de vingança é que a moral altruísta, a moral do ressentimento nasce e cresce, ou seja a vingança está enraizada em todos os conceitos de justiça dela decorrentes, mesmo que disfarçada: “[...] não surpreende ver surgir, precisamente desses círculos, tentativas como já houve bastantes – ver acima, página 57 – de sacralizar a vingança sob o nome de justiça - como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido – e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos”30. 2.2 Crítica nietzschiana à ideia de equivalência entre o dano causado pelo infrator e o castigo imposto. Nietzsche apresenta na segunda dissertação de Genealogia da Moral,, a forma como o homem, a partir das obrigações pessoais, começa a medir uma pessoa com outra, a avaliar, a calcular um poder com o outro, e também apresenta sua conceituação de justiça advinda desses elementos das obrigações pessoais analisadas. Junto a isso, Nietzsche faz uma crítica à equivalência do dano causado pelo devedor e pela reparação de danos que esse conceito de justiça o obriga. O autor deixa claro que o pensamento de que “tudo pode ser pago”, de que há uma equivalência justa entre o castigo e o dano, é um imperativo totalmente equivocado e ultrapassado, que não tem mais espaço em uma sociedade moderna. 30 Idem, p. 57. 37 “[...] logo chegou-se à grande generalização: “cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago” – o mais velho e ingênuo cânon moral da justiça, o começo de toda “bondade”, toda “equidade”, toda “boa vontade”, toda “objetividade” que existe na terra. Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre homens de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de “entender-se mediante um compromisso –e , com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre si”31. O filósofo na dissertação de Genealogia da Moral não esmiúça muito mais além o tema, porém é certo que Nietzsche discorda desse tipo de pensamento por alguns motivos. Mais à frente, na mesma dissertação é abordado o direito como todo, já influenciado pelas ideias expostas previamente neste trabalho. Nietzsche discorre sobre a administração do direito, e consequentemente da justiça. Aponta que os homens fortes ou, em suas palavras, as “bestas louras”32, possuem o poder de impor acordos, eles exercem seu poder sobre os mais fracos, visam pôr fim aos conflitos criados. Impõe sua força aos compromissos firmados. “[...] a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável, assim como tivera início com um ato de violência, foi levada a termo somente com atos de violência – que o mais antigo “Estado”, em consequência, apareceu como uma terrível tirania, uma máquina esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semianimal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma. Utilizei a palavra “Estado”: está claro a que me refiro – algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força 31 Idem, p. 55. Quando Nietzsche se refere à besta loura utiliza uma metáfora que, em nossa interpretação não se remete à cor de pele, ou somente à besta loura germânica, Nietzsche descreve uma característica de um tipo de ser humano, que se organiza sempre em grupos considerados mais fortes, são os conquistadores, os dominadores, ou ainda, os homens ativos, criadores. Nietzsche considera que quando os homens reativos conhecem os “bons” como inimigos, não poderiam olhá-los de outra forma se não como inimigos “maus”, já que em contato com o estranho, essas bestas louras tão zelosas entre si, se tornam semelhantes a “animais de rapina deixados à solta”. Esse indivíduo, por sua natureza, nobre, se sintoniza ativamente com seus instintos mais belicosos. A crueldade dessa besta loura não é perversa, mas é na verdade um traço de seu caráter nobre e conquistador. Esse homem não reage à provocações, ele apenas age. Quando exerce sua violência não atua por vingança ou ressentimento, apenas libera a sua força plástica e criadora, o seu excesso de energia. Como menciona em Genealogia da Moral, sobre os instintos destes homens: “Ali desfrutam a liberdade de toda coerção social, na selva se recobram da tensão trazida por um longo cerceamento e confinamento na paz da comunidade, retornam à inocente consciência dos animais de rapina, como jubilosos monstros que deixam atrás de si, com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de assassínios, incêndios, violações e torturas”. 32 38 para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade”33. Ora, essa classe dos conquistadores e senhores, as bestas louras, vão gradativamente dominando e organizando as populações nômades menos organizadas, de modo a se tornarema classe que futuramente irá criar e consequentemente “administrar o direito”. Como poderia então, haver uma equivalência entre a classe opressora, que domina a manutenção da ordem social e a oprimida? É certo que os mais poderosos sempre irão impor sua vontade e buscar a sua justiça ideal, de modo que isso ocorreu e criou a justiça, do modo como a conhecemos hoje. Sendo que as partes consideradas mais fracas, aquelas menos organizadas, ficam a mercê da decisão desses homens, desses conquistadores e senhores. Ademais, Nietzsche retorna ao tema da moral, dos valores de “bem” e “mal” e afirma que o justo e o injusto decorrem sempre de uma lei. Lei esta que é posta por esses homens “administradores do direito”. Ou seja, eles têm o poder de estruturar a moral exemplar a ser seguida e também de mantê-la por meio da justiça e do direito. A lei também é posta pelo homem conquistador. A instituição da lei por esses homens representa “a declaração imperativa sobre o que a seus olhos é permitido, justo e proibido, injusto”34. Nesse ponto Nietzsche critica o filósofo Eugen Dühring o qual considera que o justo e o injusto nascem a partir de um ato ofensivo, para ele: “[...] em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo “injusto”, na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter”35. 33 Idem, p. 69. Idem, p. 59. 35 Id., ibid.. 34 39 Nietzsche considera que o certo e o errado apenas surgem decorrentes da lei, e essa é administrada por um tipo específico de homens, que impõem, inevitavelmente, aos outros, suas noções firmadas de justo e injusto. Outro motivo que o filósofo considera para enfraquecer o conceito da equivalência entre um dano e sua reparação, é que, para ele, o castigo criado serve na realidade apenas como utilidade: apenas para servir de exemplo aos outros indivíduos, para inibir ou incentivar um determinado ato, não visando nem o infrator, nem mesmo o ofendido, motivo pelo qual a reparação de danos apenas serviria para melhorar a sociedade como um todo e não reparar o dano ao indivíduo ou “reeducar” o infrator. 2.3 O castigo e a violência como modos de tornar o homem confiável: instrumentos de domesticação social. O enfraquecimento do homem. Como já foi demonstrado, Nietzsche considera que a justiça foi inventada e administrada pelos homens fortes e, em consequência,para eles o castigo tinha apenas uma finalidade: desencorajar outras ações futuramente, servir como um exemplo. Para isso utilizou-se também, no decorrer da história, da força do “tornar público”. Incentivou-se o clamor dos “homens de rebanho” no sentido de que o infrator pague o seu débito perante a sociedade; uma vontadepuramente cruel manifestada pela massa da população. Cruel e festiva. Esquece-se a real intenção de reparar o dano para mais uma vez celebrar a vingança, dessa vez, nas mãos dos legitimados para tais atos. “Toda a humanidade antiga é plena de terna consideração pelo “espectador”, sendo um mundo essencialmente público, essencialmente visível, que não sabia 40 imaginar a felicidade sem espetáculos e festas. – E, como já disse, também no grande castigo há muito de festivo!...”36. Esse incentivo da punição pública serviu essencialmente para que os homens senhores, pudessem ter o controle da massa populacional para que o castigo cumprisse realmente com a sua finalidade primordial. Além do mais, esses senhores (algumas vezes denominados de “bestas louras” por Nietzsche), possuíam ao seu lado um instinto violento natural, eram homens ativos, essencialmente dominadores. Utilizaram-se dessa violência para controlar uma população desorganizada e lhe dar forma, oferecendo os benefícios da proteção e segurança em troca da total submissão. Assim, conforme já explicitado no primeiro capítulo do presente trabalho, mediante esses castigos públicos e as obrigações decorrentes das leis impostas, o homem, diante de muita violência, castigo, e sofrimento, foi se tornando mais confiável, mais apto a viver plenamente em sociedade. Sendo que os comportamentos contrários a essa paz social foram sendo considerados, cada vez mais, exceções à regra. Ora, da mesma forma que nas relações comerciais já explicitadas, um castigo punia o homem que se comportava próximo ao seu ancestral pré-histórico, um homem inconstante.Diante disso, Nietzsche aponta que esses homens, senhores por natureza, fizeram nascer no mundo o pior tipo de sentimento, a má-consciência, é certo que eles não eram portadores de tal “doença” como afirma o filósofo, mas eles são, sim, os culpados por tal nascimento, impondo limites disfarçados de liberdade. Criaram um “bicho-homem interiorizado, aprisionado no “Estado”, para fins de domesticação”37. 36 Idem, p. 54. Idem, p. 75. 37 41 A desculpa utilizada para tal controle dos seres humanos com certeza seria que isso era necessário para melhorá-los para fazê-los evoluir. De uma perspectiva nãonietzschiana, o ser humano “melhorado” poderia agir em sociedade, cumprindo as expectativas dos demais seres humanos. Em uma perspectiva nietzschiana, esse ser humano “melhorado” pela sociedade foi, de fato e apenas, enfraquecido. Sua responsabilidade foi diminuída porque ele deixa de ser fonte de atribuição de valores morais. Ele apenas obedece. 42 CAPÍTULO 3 –A NÃO-RESPONSABILIDADE E A JUSTIÇA PREMIADORA Nietzsche apresenta emGenealogia da Moral, emprestando ideias totalmente novas ao tema, a tese da não-responsabilidade. Argumenta que nos moldes em que o conceito criado de responsabilidade se sedimentou não caberia o real sentimento de responsabilidade experimentado pelo indivíduo. Aliado a isso, em uma passagem da obra Humano, Demasiado Humano, Nietzsche aponta que essa não-responsabilidade proposta por ele, atua como fator enfraquecedor do homem e do próprio conceito de reponsabilidade. O filósofo busca, ao abordar o tema da justiça e da responsabilidade, refletir sobre a relação do indivíduo e sua cultura, busca romper com a concepção metafísica de justiça como sendo um valor eterno, inovando para a sua época, como se existisse uma única forma absoluta do homem exercer seu poder sobre o mundo, já que nosfalta medida ou grandeza inalterável que nos auxiliasse a realizar os julgamentos ditos “corretos”. Ele procura compreendê-la atravésde uma dimensão humana, demonstrando toda a mutabilidade existente em todas as relação do homem e da cultura ou, microcosmo e do macrocosmo38. 38 A justiça tradicional nos olhos de Nietzsche é aquela que nos “submete e rouba a capacidade de entendimento, aniquilando toda e qualquer possibilidade de mudança, de transformação, impedindo todo o crescimento, toda maturação da humanidade”. Por isso, ele procura, para formular uma nova conceituação de justiça, uma outra imagem de homem, intimamente ligada à liberdade. Desse modo, essa justiça, não pode ser pensada além da justificação da condição humana, singular e única, que ocupa com relação a todos os outros uma situação nova e original, como também da relação com o exterior, com a cultura. Ela se volta, assim, à relação entre o micro e o macrocosmo da civilização, ou seja, entre o indivíduo e a cultura, e é essa tensão que marca a liberdade. Essa individualidade é o que nos remete à imprevisibilidade, alheia a todo juízo de antevisão, abrindo-nos à liberdade. 43 Nietzsche propõe, como aponta Deleuze39, que a avaliação como elemento crítico e ao mesmo tempo criador, é na verdade um meio que permite colocar o próprio indivíduo no cerne das questões morais. É a vontade de potência. Vontade esta que é essencialmente criadora. E essa potência jamais pode ser representada, nunca é interpretada ou avaliada, ela é a interpretadora, avaliadora, ela é “quem” efetivamente quer. “Vontade! - assim se chama o libertador e o mensageiro da alegria: eis o que vos ensino, meus amigos; mas aprendei também isto: a própria vontade ainda é escrava. O querer liberta; mas como se chama o que aprisiona o libertador?”40 Essa avaliação, essa filosofia da vontade, de acordo com Nietzsche, substitui a antiga metafísica, bem mais que isso, ela a destrói e a ultrapassa. Dois princípios formam essa filosofia: querer (criar) e vontade (alegria).A vontade ainda é prisioneira do homem e o querer a liberta: “Mas assim o quer a minha vontade criadora, o meu destino. Ou, para o dizer mais francamente: esse destino quer ser minha vontade. Todos os meus sentimentos sofrem em mim e estão aprisionados; mas o meu querer chega sempre como libertador e mensageiro de alegria”. “„Querer é libertar‟: é essa a verdadeira natureza doutrina da vontade e da liberdade; tal é a que ensina Zaratustra”. “Não querer mais, não estimar mais e não criar mais! Oh! Fique sempre longe de mim esse grande desfalecimento”41. É assim que o indivíduo irá libertar-se dos conceitos definidos e irá através de sua própria avaliação crítica, criar novos valores essencialmente mutáveis para utilizá-los no exterior. De acordo com Deleuze essa é a grande missão de Nietzsche: introduzir na filosofia o conceito de valor.Passando tais valores do seu microcosmo para o macrocosmo onde vive. Esse crítico nega sob essa nova forma de filosofia: sua crítica é a negação e 39 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 57-8. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 126. 41 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra. Op. cit., p. 83-4. 40 44 também uma destruição agressiva profundamente ligada à afirmação. A crítica é destruição como agressividade do criador, que é simplesmente um destruidor e um crítico: crítico dos valores estabelecidos, crítico dos valores reativos, crítico da “moralidade do ressentimento”. “Apenas mediante esforço, com auxílio da história, o homem nobre pode considerar que desde tempos imemoriais, em todas as camadas de algum modo dependentes, o homem comum era somente aquilo pelo qual era tido – jamais habituado a estabelecer valores por si mesmo, tampouco se atribuía outro valor que não o atribuído por seus senhores (o autêntico direito senhorial é criar valores)”42. 3.1 A imposição de valores como fator gerador da não-responsabilidade moral. Nietzsche considera que o homem criado em meio à instituições morais externas do que é certo e errado, esse homem que apenas obedece o que é imposto pelos ditos senhores, na verdade, experimenta apenas uma responsabilidade ilusória. A imposição de valores acarreta um processo de não-responsabilização. Quem age de acordo com o estabelecido em ordenamentos jurídicos, sem agir de acordo com esses valores porque os toma como seus, mas por pura e simples imposição, age de maneira responsável, conforme essa formulação do agir responsável, isto é, conforme sua determinação externa, e por fim, se exime, indevidamente, de criar seus próprios valores. De acordo com Nietzsche essa exigência externa de conduta responsável, positivada apenas pela lei, cria um fator gerador de não-responsabilidade. O filósofo exige que o ser humano crie seus próprios valores, ou seja, tomar e seguir seus valores como 42 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. Tradução, notas e posfácio por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p. 159. 45 seus. Ele não propõe necessariamente criar todos os valores autonomamente, mas sim que cada um, individualmente, tome os valores para si, por meio da reflexão. Sem conhecimento das possibilidades e direções múltiplas de ação falta aos seres humanos liberdade para se sentir responsável. Esse homem que não avalia seus valores apela à justiça para estruturar o seu modo de vida, visa ocultar as fragilidades de sua convicção. É o oposto do espírito livre proposto por Nietzsche: é o homem comum que jamais estabelece valores por si mesmo, que não atribui outro valor que não o atribuído previamente por seus senhores, é o submisso, fraco, o dominado. E essa justiça, a mesma que obriga a responsabilidade, submete esses homens à ela, rouba as capacidades de entendimento, “aniquilando toda e qualquer possibilidade de mudança, de transformação, impedindo todo o crescimento, toda maturação da humanidade”43. Desta forma, Nietzsche acredita que essa imposição de valores torna o ser humano não-responsável perante si mesmo. Força um conceito de responsabilidade que na realidade é vago. Ninguém pode ser responsabilizado por algo que não credita como pertencente a sua cadeia de valores morais. A exigência de responsabilidade exclusivamente no âmbito jurídico, sem a exigência da prévia adesão aos valores morais positivados, acarreta, para o filósofo, a não-responsabilização moral de um indivíduo. As leis impostas por aqueles senhores mediante a violência, sofrimento, força e castigo gera ao contrário do pretendido uma não-responsabilidade desses indivíduos “domados”. 43 MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a Justiça: crítica e transvaloração. Op. cit., pág. 44. 46 “O que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna “melhor”44. Nietzsche em sua filosofia moral com esses argumentos não pretende melhorar a humanidade45, mas apenas despreza toda e qualquer moralidade que transforma os seres humanos em animais de rebanho. 3.2 Crítica à justiça premiadora Retornando ao tema da justiça, demonstraremos outra crítica do filósofo à justiça e aos valores de “bom” e “mal” vigentes no ocidente a partir da tese já apresentada da nãoresponsabilidade do indivíduo perante a imposição exclusivamente jurídica de imperativos. EmHumano, Demasiado Humano, Nietzsche tece algumas palavras em referência ao tema explicitado no capítulo anterior, sobre o castigo como arma da justiça e como 44 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Op. cit., p. 66. “A última coisa que eu prometeria seria „melhorar‟ a humanidade. Eu não construo novos ídolos (minha palavra para „ideais‟) – isto sim é o meu ofício. A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou o mundo ideal... o „mundo‟ verdadeiro‟ e o „mundo aparente‟ – leiase: o mundo forjada e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos – a ponto de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Prólogo, 2). E também, mais adiante: “ [...] o sagrado pretexto de „melhorar‟ a humanidade como ardil para sugar a própria vida, torna-la anêmica. [...] O conceito de „Deus‟ inventado como conceito-contrário à vida [...] Inventado o conceito de „além‟, „mundo verdadeiro‟, para desvalorizar o único mundo que existe – para não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim, nenhum razão, nenhuma tarefa! O conceito de „alma‟ , „espírito‟, por fim „alma imortal‟, inventado para desprezar o corpo, torna-lo doente – „santo‟ -, para tratar com terrível frivolidade todas as coisas que na vida merecem seriedade, as questões de alimentação, habitação, dieta espiritual, assistência à doentes, limpeza, clima! Em lugar da saúde a „salvação da alma‟ – isto é, uma folie circulaire [loucura circular] entre convulsões de penitencia e histeria de redenção! O conceito de „pecado‟ inventado juntamente com o seu instrumento de tortura, o conceito de „livre-arbítrio‟; para confundir os instintos, para fazer da desconfiança frente aos instintos uma segunda natureza! Na noção de „desinteressado‟, de „negador de si mesmo‟, a verdadeira marca de décadence, a sedução do nocivo, a incapacidade de encontrar o próprio proveito, a autodestruição, convertidos no signo de valor absolutamente, no „dever‟, „na santidade‟, no „divino‟, no homem! Por fim – é o mais terrível – o conceito do homem bom a defesa de tudo o que é fraco, doente, malogrado, que sofre de si mesmo, tudo o que deve perecer -, contrariada a lei de seleção, tornada um ideal a oposição ao homem orgulhoso, que vingou, que diz Sim, que está seguro, que dá garantia do futuro – este chama-se agora o mau... E nisso tudo acreditou-se como moral!”(NIETZSCHE, F. W. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Op. cit., Por que sou um destino, 8). 45 47 instrumento de domesticação utilizando agora a tese da não-responsabilidade para mostrar a inefetividade desse tipo de abordagem. Nietzsche denomina esse tipo de justiça como: “a justiça premiadora”. “A justiça premiadora. – Quem compreendeu plenamente a teoria da completa irresponsabilidade já não pode incluir a chamada justiça punitiva e premiadora no conceito de justiça; se esta consiste em dar a cada um o que é seu. Pois aquele que é punido não merece punição: é apenas usado como meio para desencorajar futuramente certas ações; também aquele que é premiado não merece o prêmio: ele não podia agir de outro modo. O prêmio tem apenas o sentido, portanto, de um encorajamento para ele e para outros, a fim de proporcionar um motivo para ações futuras; o louvor é dirigido àquele que corre na pista, não àquele que atingiu a meta. Nem o castigo nem o prêmio são algo devido a uma pessoa como seu; são-lhe dados por razões de utilidade, sem que ela possa reivindicá-lo justamente. Deve-se dizer que “o sábio não premia porque se agiu bem”, tal como já se disse que “o sábio não castiga porque se agiu mal, mas para que não se aja mal”. Se desaparecessem o castigo e o prêmio, acabariam os motivos mais fortes que nos afastam de certas ações e nos impelem a outras; o interesse dos homens requer a permanência dos dois; e, na medida em que o castigo e o prêmio, a censura e o louvor afetam sensivelmente a vaidade, o mesmo interesse requer também a permanência da vaidade”46. A partir do que é proposto por Nietzsche, quando é apresentada a teoria da nãoresponsabilidade, todo o conceito de justiça e moral também cai por terra, pois sabemos: as leis são impostas por minorias e já como costumeiramente se faz por séculos a sociedade as recebe, sem normalmente poder opinar inteiramente sobre a aceitação desses valores impostos. Nietzsche, então, diferentemente dos seus contemporâneos apresenta um fator gerador de não-responsabilidade advindo da mesma fonte de onde todos sempre procuraram encontrar a responsabilidade, e demonstra, que a justiça advinda desse conceito ultrapassado de responsabilidade é falha e precisa ser modificada. 46 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano. Op. cit., p. 75-6. 48 CAPÍTULO 4–O ESPÍRITO CRIADOR: O DEVIR DE UMA NOVA JUSTIÇA, DE UMA NOVA MORAL Nesse capítulo do trabalho organizaremos os pensamentos de Nietzsche procurando respostas às suas críticas com relação aos temas e valores morais já apresentados. Abordaremos as respostas e as soluções que Nietzsche propõe para alguns dos temas suscitados, na ordem que eles aparecem no trabalho e, ao final, traremos um resumo do ser humano que Nietzsche considera como espírito livree o que espera de uma sociedade futurista pautada pelos seus ideais. Objetivaremos aqui, através do pensamento de Nietzsche, demonstrar que o direito e a justiça são essencialmente mutáveis, que uma justiça evoluída é aquela que afasta as ideias deletérias de vingança que nela estão enraizadas; será demonstrado que a partir da tese da não-responsabilidade, Nietzsche nos apresenta uma outra formulaçãoque, aos seu olhar, legitima a responsabilidade individual, para que cada indivíduo encontre a sua real responsabilidade em cada ação que praticar: a teoria do eterno retorno. As propostas de uma nova justiça, de uma nova ideia de responsabilidade individual, de uma outra abordagem para o castigo, e principalmente de uma diferente valoração moral, de uma ruptura de todas as “verdades” já estabelecidas, permeiam todo o trabalho do filósofo. Iremos, aqui, nos centralizar na obra mais analisada durante o trabalho, a Genealogia da Moral, e, a partir dela trilhar os caminhos que Nietzsche constrói para realizar a sua transvaloração de todos os valores, que propõe durante algumas de suas obras. As ideias aqui apresentadas e as soluções para toda as críticas, para toda a desconstrução moral apresentada durante este trabalho, sempre giram em torno de um 49 homem evoluído, ou em desenfreada evolução, que Nietzsche denomina deespírito livre. Esse homem pensa de maneira diferente, objetiva criar uma nova tábua de valores morais própria, tal como Nietzsche anseia, sendo que a partir dele toda as ideias ocidentais já estabelecidas de moral, justiça, castigo e responsabilidade, sofrem uma transvaloração, evoluindo para uma sociedade do futuro, uma sociedade do além-do-homem. 4.1 A proposta nietzschiana à reparação de danos e ao castigo. A auto-supressão da justiça. As duras críticas de Nietzsche aos conceitos estabelecidos sobre reparação de danos e castigo podem soar, por vezes, rígidas demais. Porém o filósofo também apresenta os motivos de tais críticas eapresenta as suas possíveis crenças em um conceito diferente de ser humano, sempre visando um complexo social mais evoluído. Conforme explicado durante as considerações sobre o castigo, a violência que era exercida em grau pessoal, na relação mercante pura de credor e devedor, passa a ser exercida pelo legitimados a tais atos: o Estado. De acordo com ele o uso da força não é algo desejável e louvável, é algo pré-histórico e rudimentar, em se tratando de algo tão essencial para a sociedade. Quando afirma que o uso da violência e da força para reparar e compensar um dano sofrido só poderia ser consequência do prazer que o homem sente com a crueldade, ou quando aponta o surgimento do Estado a partir da violência, Nietzsche destaca o uso primitivo da violência. 50 O filósofo quando suscita a possibilidade de uma nova justiça, aponta que aumentando o poder da comunidade, esta não se preocupe tanto com as infrações cometidas contra ela, ela se dará o luxo até de não punir seus míseros infratores. Como a violência aparece como forma primitiva para forçar ao homem a abandonar seu estado de bicho-homem e manter obrigações na esfera social, com o posterior desenvolvimento deste homem, formas bem mais sutis de justiça irão aparecer. Aquela justiça descrita que nasce a partir do uso da violência e que cria uma série de castigos que infligem sofrimento ao infrator, irá terminar por suprimir-se, quando, finalmente, cumprir seu papel na formação do homem. “Aumentando o poder de uma comunidade, ela não mais atribui tanta importância aos desvios do indivíduo, porque eles já não podem ser considerados tão subversivos e perigosos para a existência do todo: o malfeitor não é mais “privado da paz” e expulso, a ira coletiva já não pode se descarregar livremente sobre ele – pelo contrário, a partir de então ele é cuidadosamente defendido e abrigado pelo todo, protegido em especial da cólera dos que prejudicou diretamente. O acerto com as vítimas imediatas da ofensa; o esforço de circunscrever o caso e evitar maior participação e inquietação; as tentativas de achar equivalentes e acomodar a questão (compositio); sobretudo a vontade cada vez mais firme de considerar toda infração resgatável de algum modo, e assim isolar, ao menos em certa medida, o criminoso de seu ato – estes são os traços que marcaram cada vez mais nitidamente a evolução posterior do direito penal”. “Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores. “Que me importam meus parasitas?”, diria ela. “Eles podem viver e prosperar – sou forte o bastante para isso!”47. Esse raciocínio consistiria em uma segunda etapa da evolução do homem, que Nietzsche acredita que é a que deveríamos estar enfrentando: o homem em direção ao Super Homem, e não o bicho-homem em direção ao homem. Quanto maior a consciência de uma comunidade, mais suave o direito penal tornase. Quanto menor essa consciência, e essa sociedade se vê constantemente violada por 47 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Op. cit., p. 56-7. 51 transgressores, formas mais duras voltam a se manifestar, formas violentas, rudimentares, que não contribuem em nada para os passos necessários da evolução que Nietzsche propõe. “Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade, e ela corre grave perigo, formas mais duras desses direito voltam a se manifestar”48. Essa ideia de justiça que nasce implacável, que impõe o pagamento, a reparação de danos a qualquer custo, que defende a equivalência entre o dano sofrido e o posterior sofrimento do causador de danos por meio do castigo termina, em uma forma evoluída quando ela realmente funciona - por se suprimir. Sua efetividade a tornará, inevitavelmente, descartável, e a própria justiça irá realizar tudo o oposto do que pregou durante séculos, fará vista grossa aos infratores, a consciência da comunidade não sentira os danos das transgressões, tornando-se desnecessários as formas até agora apregoadas de castigo e reparação de danos. “A justiça, que iniciou com “tudo é resgatável, tudo tem que ser pago”, termina por fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes – termina como toda coisa boa sobre a terra, suprimindo a si mesma. A autosupressão da justiça: sabemos com que belo nome ela se apresenta – graça; ela permanece, como é óbvio, privilégio do poderoso, ou melhor, o seu “além direito” 49. Além disso, sobre o castigo na forma em que é utilizado, ou seja, do modo que o conhecemos no ocidente, Nietzsche o considera totalmente ineficaz: uma medida puramente paliativa. Ele considera que a real importância é que se crie condições para que o homem não cometa infrações, um meio de direcionar o homem para superar a si mesmo, para buscar e atingir um estado além do homem; considera que a cultura, a educação e a valorização do homem são muito mais eficazes para a sociedade como um todo do que uma simples compensação de danos. 48 Id., ibid.. Id., ibid.. 49 52 Sobre o tema ensina o Professor Doutor Gustavo Arantes Camargo, que também ressalta a importância de uma mudança de objetivo na sociedade por inteiro: “O importante não é punir o infrator, e, sim criar condições para que os homens não se tornem infratores. Cabe à cultura, portanto, preparar o homem, construílo, cria-lo e direcioná-lo para a grandeza de espírito. É um processo histórico no qual o objetivo da sociedade se torna o de criar grandes homens. Ao invés de fazer como nossa cultura contemporânea, que despreza o homem e o faz trabalhar como uma máquina, além de negar seu lado ilógico e sentimental”50. É claro que essa “profecia” de Nietzsche para o futuro ainda depende de outros fatores que o filósofo considera indispensáveis para atingir uma comunidade com consciência elevada, fatores estes que demonstraremos a seguir. Apenas com os indivíduos participantes daquela sociedade com uma consciência extremamente elevada é que se chegaria a tal patamar, o de um futuro possível como Nietzsche aponta em Aurora, quando a justiça já tenha passado pelo processo de auto-supressão: “De um futuro possível. – É inconcebível um estado de coisas em que o malfeitor denuncie a si mesmo, que pronuncie publicamente seu castigo, com o sentimento orgulhoso de assim estar honrando a lei que ele mesmo criou, que exerça seu poder ao castigar-se, o poder do legislador? Ele pode cometer um delito, mas eleva-se, com sua pena voluntária, acima do delito, não só o apaga mediante a fraqueza, grandeza e serenidade: faz também um benefício público. – Este seria o criminoso de um possível futuro, com o pensamento básico. “Eu me curvo à lei que eu mesmo fiz, nas coisas pequenas e grandes”. Tantos experimentos ainda devem ser feitos! Tanto futuro ainda tem de vir à luz!” 51. 4.2 A responsabilidade e a teoria do eterno retorno. A partir da teoria da não-responsabilidade Nietzsche afirma categoricamente que a responsabilidade, tal como é atribuída pela moral comum, na realidade cria uma fator que exime o indivíduo de ser responsável. Os fatores externos impostos geram uma não- 50 51 CAMARGO, G. A.. Relações entre justiça e moral no pensamento de Nietzsche. Op. cit., p. 79-97. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 187. 53 responsabilidade, já que o indivíduo não os aceita para si mediante sua livre vontade, ele, na verdade, é obrigado a acatá-los como únicos, certos e soberanos. Com isso chegamos a uma prévia de uma das prescrições fundamentais da filosofia moral nietzschiana: devemos criar nossos próprios valores e nos tornarmos quem realmente somos. O conteúdo desses valores depende exclusivamente de seu ser criador. Chega-se, então a um problema, como esses indivíduos poderiam legitimar seus próprios valores? Se não há um bem e mal único e correto, quais seriam os filtros que essa pessoa que cria seus próprios valores poderia utilizar para se garantir a exatidão de sua moral? Para solucionar essa questão, Nietzsche nos oferece um critério individual de avaliação moral, que não é, e não pretende ser universal, ou seja possui vantagem sobre o modelo criticado, já que esse critério de avaliação moral não será o mesmo para todos os indivíduos, pelo contrário, cada um poderá utilizar o seu. Nietzsche apresenta a teoria do eterno retorno, a teoria não é muito comentada, são poucas as referências nos livros do filósofo, porém são encontradas em Assim Falou Zaratustra, Além do Bem e do Mal e em Gaia Ciência, que aqui transcrevo: "E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar 54 de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”52 O pensador propõeum método de avaliação moral de nossas ações conforme a autonomia e a não-universalidade. Ele sugere que cada um de nós avaliemos nossas ações tomando com critério para atribuição de valor moral às ações a suportabilidade da ideia de viver a mesma vida e, portanto, de realizar as mesmas ações infinitas vezes. A forma como cada um suporta a possibilidade de realização das próprias ações infinitas vezes é o que o filósofo adota como critério de avaliação moral das ações. Essa ideia se fundamenta também nas diferenças entre todos os seres humanos, ninguém é fundamentalmente igual a outro, não é possível que haja um critério de avaliação moral que sirva para todos igualmente, com vistas a obtenção dos mesmos resultados e dadas as mesmas circunstâncias. O critério que Nietzsche utiliza para avaliar os valores morais obriga os indivíduos a avaliarem constantemente suas ações e, mais ainda, de considerarem ter que reviverem eternamente essas ações. Se pensarmos que nossas ações serão eternamente refeitas por nós mesmos exatamente do mesmo modo, atribuímos a elas o peso da eternidade e da infinita recorrência. Assim, é possível pensar se desejamos efetivamente realizar uma ação, sem ter o critério comum para avaliá-las. Devemos pensar as ações não como boas ou más, certas ou erradas, mas porque realizaríamos elas infinitas vezes. Para avaliar o valor das ações o agente deve-se sempre se questionar: se vivesse a mesma vida exatamente do mesmo modo infinitas vezes, eu desejaria realizar esta ação? A cada escolha, poderia se atribuir o peso da possibilidade de 52 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 341. 55 ela ser revivida e refeita infinitas vezes. Se este indivíduo aceitar o peso que a ação o traria, ela passa pelo crivo do eterno retorno; gosta dessa ideia? Ou detesta? Escolha! O ciclo absoluto e infinitamente repetido de todas as coisas, deve ser tomado como um imperativo prático, se assim utilizado o conceito de responsabilidade, para Nietzsche, se fortalece, pois apenas desse modo seria possível avaliar o que é próprio de cada indivíduo. 4.3 Uma aurora de uma nova comunidade pautada por uma outrajustiça.A transvaloração de todos os valores pelo espírito livre. Nietzsche apresenta a justiça a partir de uma abordagem genealógica a qual o auxilia para realizar a desmistificação do conceito de justiça como verdade única e absoluta, ao apresentá-lo como fruto de um processo histórico de transformação do ser humano. Durante a sua obra Nietzsche objetiva a ruptura com a totalidade das verdades estabelecidas por meio única e exclusivamente da reflexão autônoma de cada indivíduo. Uma abordagem diferenciada para a sua época e para a filosofia moral contemporânea. O ponto principal das questões que o autor discorre é a moral. Ele desconstrói toda a tábua de valores vigentes demonstrando a sua criação como demasiada humana, e como tudo que é humano, historicamente, analisando a criação, a evolução e as mutações que esses conceitos sofrem. O principal alvo do filósofo é imutabilidade e universalidade desses valores morais. Nietzsche considera inaceitável que esses valores sejam considerados desse modo, e conforme desenvolve seu raciocínio em Genealogia da Moral demonstra o caráter mutável e autônomo de cada um deles: dos valores de bom e ruim, da responsabilidade, do 56 castigo, culminando na justiça, considerada pelos seres humanos como a deusa absoluta, a verdade entre todas as verdades. A nova justiça de Nietzsche conforme explicado na teoria da auto-supressão da justiça é na verdade um enfraquecimento e uma diminuição de sua efetividade entre os indivíduos, já que, após toda uma transvaloração dos valores, e à uma evolução dos homens como indivíduos únicos, ela se torna desnecessária, ela cumpre seu papel fundamental. Para chegar a esse ponto, Nietzsche por inúmeras vezes, em todas as suas obras, esclarece que precisamos de uma outra imagem de homem, e é isso que legitima suas reflexões sobre justiça, intimamente ligada à liberdade. A análise da moral e sua aceitação deve partir do ponto de partida individual de cada um. E toda essa proposta leva a reflexão autônoma e ao homem com o espírito livre. Esse homem evoluído desconstrói a moral comum. Reflete por si só e busca ultrapassar o homem como conhecemos, é um meio entre o homem e o Super Homem. Invade sua própria consciência e lá busca tornar quem realmente é; ele se interioriza para alterar sua realidade externa. “É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo”53. O espírito livre é o que Nietzsche propõe a todos os homens: que sejam autônomos, livres de ideais pré-estabelecidos, investigadores de seus motivos, desejos, instintos, que sejam verdadeiros consigo mesmo e que busquem dentro de si uma evolução, um passo além do bem e do mal, além de toda moral, um criador de valores. Um Super Homem. 53 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano. Op. cit., p. 143-4. 57 “Sirvam a vossa inteligência e a vossa virtude ao sentido da terra, meus irmãos, e o valor de todas as coisas será renovado por vós. Para isso deveis ser lutadores! Para isso deveis ser criadores!”54. A consequência dessa proposta de Nietzsche, de que os homens sejam criadores de sua própria moral, inevitavelmente, recai na própria crítica feita por Nietzsche a todo o conjunto moral: o homem deixa de agregar valores inconscientemente e passa a adotá-los conscientemente, ou ainda a criá-los por sua própria vontade e convicção: transformando a sociedade em que vive, de dentro para fora; revolucionando os valores internos e, após, toda a sua comunidade. 54 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra. Op. cit., p. 78. 58 CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da jornada empreendida para elaboração do presente trabalho foi possível analisar o pensamento nietzschiano, especificamente no tocante à evolução do conceito de justiça e à ideia de vingança, advinda do conceito de credor e devedor e da reparação de danos, vingança esta, que está profundamente enraizada no objetivo e no sentimento esperado da justiça das sociedades atuais. Algumas reflexões foram possíveis a partir das críticas nietzschianas estudadas, e a partir das soluções propostas pelo filósofo para sanar tais errôneas construções de conceitos morais tão importantes, que permeiam e moldam todas as comunidades. A análise operada teve em sua finalidade a crítica a tais conceitos repudiados pelo filósofo (responsabilidade, vingança e a consequente justiça), bem como a reflexão acerca das estruturas morais originárias desses conceitos, de modo que, da mesma maneira proposta por Nietzsche, a partir da análise feita, se faça a crítica e, a partir da crítica, seja criada outra maneira de pensar tais conceitos. Dessa forma, foi possível entender a evolução histórica da moralidade ocidental quanto aos quesitos analisados, tanto no passado como na forma em que se encontram atualmente, e também demonstrar como o sentimento de vingança, o prazer pelo ver e fazer sofrer, advindos das relações mais primitivas do direito obrigacional ainda permanecem completamente enraizados na justiça, trazendo evidente prejuízo e atraso à uma forma mais racional e evoluída de justiça e de sociedade. Passaremos agora à demonstração da lógica do caminho percorrido durante o trabalho. Iniciamos com uma breve síntese da origem e evolução da moral ocidental, demonstrando como os conceitos analisados se formaram e como foram sendo 59 transmutados através da história, principalmente no que tange às relações comerciais de compra e venda que, através da relação entre credor e devedor, forjou-se um conceito para a chamada reparação de danos, conceito este sempre repudiado por Nietzsche, que foi influenciando totalmente na gradativa evolução e construção dos conceitos de castigo e responsabilidade, concedendo, por fim, a base para uma justiça que irá abarcar todas essas ideias equivocadas e ilusórias de reparação de danos. Objetivamos demonstrar que essa reparação de danos inicial, do pagamento do débito ao credor por meio do castigo e do sofrimento, não se mostra, de forma alguma, equivalente ao dano efetivamente causado, há, na realidade, apenas um sentimento de vingança exteriorizado e legitimado, em que o credor possui o direito de exercê-lo e, portanto, o devedor merece sentir tal sofrimento, à essa prática foi dado o nome de justiça. Justiça esta que é, desde a sua concepção, uma vingança disfarçada, destinada apenas aos homens que possuem tal crédito, e que deve ser exercida contra aqueles outros:os devedores. Esse ideal acaba por enfraquecer o homem, já que quem possui essa justiça ao seu lado seriam apenas homens dominadores, homens conquistadores, homens que suprimem os outros, e que suprimiram para impor os seus valores, homens que criam valores e que agem, e não uma totalidade dos homens. Aqueles homens que não criam valores, os submissos, os mais fracos, apenas obedeceriam as leis e os valores criados por aquele outro tipo de homem; ou seja, Nietzsche considera que a criação de valores acabou por ficar reservada apenas aos homens ditos “fortes”, “conquistadores”, “dominadores”, mas, na realidade, deveria ser destinada a todos os homens. Em seguida, demonstramos que essa criação de valores por determinados tipos de homens, acaba por retirar a responsabilidade dos outros que não possuem tal possibilidade de “criação” de valores. Aqueles que acabam ingressando no sistema moral, sendo 60 submisso a ele, mas que não aceitaram esses valores como sendo os seus por espontânea vontade: eles foram impostos para estes homens. Nietzsche considera que valores impostos externamente, por terceiros, acabam gerando uma “não-responsabilidade”, já que para ele os valores devem ser exteriorizados a partir do interior de cada indivíduo. Na mesma esteira, apresentamos também a crítica efetiva de Nietzsche à justiça, denominada por ele de justiça premiadora (ou punitiva), depreendemos que se o indivíduo não possui realmente uma responsabilidade genuína sobre aquilo que não é aceito por sua livre apreciação, como poderia então ser punido por algo que não é relativo à sua essência, mas que é relativo ao que outros homens consideram como “bom” ou “mau”? O conceito desta responsabilidade e justiça se mostra falho. Aos olhos de Nietzsche, a própria forma de atribuir responsabilidade gera, ao contrário, uma não-responsabilidade do indivíduo perante seus atos. Diante dessa problemática, de uma responsabilidade que faz nascer irresponsabilidade nos seres humanos; de homens que não conseguem criar seus próprios valores, que foram domesticados de forma a apenas seguir o que outros homens mais fortes lhes impuseram; o último capítulo do trabalho visa apresentar teorias de Nietzsche que poderiam solucionar tais problemas apresentados. Começamos discorrendo acerca da reflexão de Nietzsche sobre o que ele denomina a auto-supressão da justiça, quando a justiça alcançará por fim o seu objetivo, ele inevitavelmente não será mais necessária, invertendo as suas práticas. Nietzsche acredita que quanto maior o poder de uma comunidade mais suave o direito penal se tornará e a ideia de reparação de danos, castigo e sofrimento desaparecerá aos poucos. Eventuais lesões sofridas não serão sequer sentidas por essa sociedade mais evoluída, 61 motivo pelo qual não será necessária qualquer punição aos infratores, tais transgressões serão relevadas. A seguir, respondendo a tese de Nietzsche de que a responsabilidade externa imposta gera uma não-responsabilidade àqueles que não adotaram os valores apregoadas como sendo seus, apresentamos a teoria do eterno retorno, como sendo uma forma do ser humano de validar sua moral internamente. Se for possível suportar suas próprias ações eternamente, em um eterno retorno, considerando que aquilo é realmente o “certo” a se fazer, o ser humano é, nesse caso, plenamente responsável por suas ações. Por fim, discorremos sobre a proposta de Nietzsche de uma outra comunidade, pautada por um outro tipo de ser humano, o espírito livre, um homem intensamente criador e consciente de sua individualidade que cria seus valores internamente e os transmite para o mundo externo, operando uma transformação social e em todos os conceitos apresentados neste trabalho. Objetivamos demonstrar no presente trabalho que a reflexão acerca das problemáticas e das soluçõespropostas pelo filósofo certamente nos faz ter uma outra visão sobre os valores que permeiam nossa cultura, e toda a cultura ocidental. A partir dessa reflexão é certo que nossa perspectiva diante de tais conceitos enxerga uma imensa gama de possibilidades para refletirmos acerca de uma nova filosofia do direito,de uma nova forma de conceituação de justiça, diferente da tradicional e, mais importante, de uma nova forma de ser humano livre e de uma sociedade mais justa, baseada no pensamento nietzschiano. 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENOIT, Blaise. Justice as a problem. Tradução de Vinícius de Andrade. Cadernos Nietzsche, n. 26, São Paulo, 2010. CAMARGO, Gustavo Arantes. Relações entre justiça e moral no pensamento de Nietzsche. Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 79-97, jan./jun. 2011. COSTA E FONSECA, Ana Carolina da. 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