Os poderes das organizações internacionais
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Os poderes das organizações internacionais
Os poderes das organizações internacionais Fernanda Sabah Gomes Soares Advogada; Especialista em Filosofia e Teoria Geral do Direito na ABDCons; Doutoranda em Direito Internacional na Universidad de Leon-España 1 INTRODUÇÃO A história recente revela que a análise das organizações internacionais é extremamente necessária para que se possa compreender a atual conjuntura internacional. É inegável que tais entidades exerçam uma forte influência tanto no âmbito interno, quanto no âmbito externo dos Estados. Para que se entenda o motivo da referida influência, perfaz-se indispensável a verificação de quais são os seus poderes e a partir de que momento os organismos internacionais, de fato, começaram a exercê-los na esfera mundial. Com base nesse contexto, o presente trabalho procura esclarecer quando, como e o porquê da criação dos organismos internacionais; quais são as suas competências; de que maneira é realizada a sua classificação; como são desenvolvidas as suas relações de poder; e quais são os poderes e as finalidades de algumas organizações, como o FMI, o Banco Mundial, o BID, a OCDE, a ONU e a Organização Comunitária. Enfim, essa pesquisa, de modo geral, evidencia aspectos das organizações internacionais, com o intuito de entender como e quando inicia-se o desenvolvimento de suas relações de poder em um panorama internacional cada vez mais globalizado. 2 A CRIAÇÃO DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS É indiscutível que o mundo é uma sociedade de Estados, na qual, ainda, não há uma interligação jurídica dos fatores políticos. Para se reconhecer um Estado, como pessoa jurídica de direito público, é essencial a comprovação de RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 133 sua soberania, assim, a referida sociedade política deve demonstrar as suas condições de assegurar o máximo de eficácia para a sua ordenação em um determinado território e que isso ocorra permanentemente. O que diferencia o Estado das demais pessoas jurídicas de direito internacional público é que só ele tem soberania. Logo, no âmbito interno a instituição estatal é uma afirmação de poder superior a todos os demais, já no externo é uma afirmação de independência. Realça-se que, de fato, é relativo o conceito de soberania no plano internacional e a sua regulação jurídica é aparente, pois os Estados mais fortes modificam o direito quando lhes convém. Mesmo assim, o reconhecimento jurídico da soberania ainda é importante, uma vez que a sua conseqüência qualifica como ilegítimo o uso arbitrário da força. A partir do século XIX, alguns Estados se convenceram de que, em razão da natureza dos interesses comuns que começavam a surgir, seria mais prática a constituição de órgãos internacionais permanentes, ao invés de se reunirem em conferências diplomáticas de maneira pontual e descontínua, como haviam feito até então. Diante desse novo panorama, surgiram as primeiras organizações internacionais, as quais tratavam das questões técnicas. Em 1815, foi criada uma comissão fluvial internacional para tratar da administração conjunta da navegação no Reno e, em 1856, criou-se a comissão do Danúbio. Na segunda metade do século XIX, em torno das questões administrativas, foram criados instrumentos de cooperação, tais como: a União Telegráfica (1865), a União Postal Universal (1874), a União para a Proteção da Propriedade Intelectual (1883) e a União das Ferrovias (1890).1 Nos anos de 1899 e 1907, as duas primeiras Conferências de Haia foram responsáveis pelo encontro entre as experiências multilaterais européias e americanas que tentaram, de forma inédita, estabelecer princípios jurídicos comuns para a organização internacional. Em 1900, em face das condições de trabalho e de vida dos operários das manufaturas, uma conferência diplomática, realizada em Paris, criou a Associação Internacional para a Proteção legal dos Trabalhadores (AIPLT). No início do século XX, as disputas entre as grandes potências provocaram a Primeira Guerra Mundial. Terminada a Guerra, surgiu a primeira tentativa para a constituição de uma organização mundial de Estados, que protegesse todos os entes estatais, opondo barreiras aos mais fortes. Essa tentativa fracassou e, posteriormente, ocorreu a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, com a aproximação dos Estados em decorrência da Guerra e devido ao temor, sob a estrutura do Estado de Bem-Estar Social2, multiplicaram1) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 31-35. 2) O Estado de Bem-Estar Social, segundo Jorge Reis Novaes, surge com a proposta de administrar e intervir na sociedade, prestando-lhe serviços, com o objetivo final de minorar a sua situação de miséria, assegurando-lhe um mínimo de susbsistência vital. (In: NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e Democrático de Direito. Coimbra: Suplemento ao Boletim da 134 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 se as organizações internacionais, dotadas de personalidade jurídica de direito das gentes, de aptidão para manifestar uma vontade distinta daquela de seus Estados-membros e que afirmavam a ilegitimidade da submissão de um povo a outro, culminando em um grande surto de novos Estados e de forças que se preocupavam com o equilíbrio mundial.3 A maior causa da inter-relação estatal se deu pelo fato de um Estado não poder mais defender uma política econômica isolacionista, já que a sua prosperidade econômica passou a estar em função dos demais Estados, sendo preciso a derrubada das barreiras aduaneiras levantadas pela política protecionista. Dessa forma, o motivo principal do surgimento das organizações internacionais foi a necessidade da manutenção da paz na comunidade internacional, evitando-se que os possíveis litígios entre dois ou mais Estados fossem solucionados por meio da força. Para se evitarem métodos violentos foram apresentados, inclusive, modos de soluções pacíficas (medidas diplomáticas, coercitivas e jurídicas).4 É verdade que o ingresso de qualquer Estado em uma organização internacional é um ato voluntário que a entidade estatal realiza quando o deseja, pois é imprescindível que no momento em que se proponha ao acordo renuncie a alguns de seus direitos em favor da organização, mas também é verdade que todos sentem a necessidade e mesmo a imperiosidade desse ingresso. Indubitavelmente, as entidades internacionais tendem ao concerto das civilizações e a sua existência e funcionamento são as provas mais concretas da própria existência do Direito Internacional. Ricardo Antônio Silva Seitenfus5 define as organizações internacionais como sendo uma sociedade entre Estados que se constitui por meio de um Tratado, cuja finalidade é o estabelecimento de interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus membros. É essencial destacar que os tratados cons- Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, p. 188-192). Conforme as observações de León Duguit, o Estado não poderia permanecer passivo diante dos problemas sociais. Para isso, seria preciso o crescimento do papel da instituição estatal, legitimando a sua intervenção na economia como fator de realização da igualdade e da solidariedade social, ao mesmo tempo em que seria garantida a liberdade da sociedade. (In: DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitucionnel. T.I. 3. ed. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie, 1923, p. 640). Para Juan Ramón Capella, isso foi possível devido ao compromisso firmado entre as classes sociais, em relação à base do crescimento econômico. Ou seja, de certa forma, as classes dominantes aceitaram a redistribuição do produto social por intermédio do Estado, o qual se comprometeu em instrumentalizar e aplicar políticas de redistribuição das rendas em favor de políticas fiscais coerentes com esse propósito, com o fim de se atingir uma paz social. (In: CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 92-93). Além disso, como destaca José Fernando de Castro Farias, o advento da Segunda Guerra Mundial iria estimular ainda mais o intervencionismo do Estado, pois novas necessidades precisavam ser suprimidas pela iniciativa estatal em relação a vários setores, o que fez com que essa entidade assumisse amplamente o encargo de assegurar a prestação dos serviços fundamentais a todos os indivíduos, ampliando ainda mais a sua esfera de ação. (In: FARIAS, José Fernando de Castro. A Teoria do Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999. p. 71-76). 3) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 263-274. 4) ARAUJO, Luis Ivani de Amorim. Das organizações Internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 03-13. 5) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 21. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 135 titutivos de uma organização internacional têm como objetivo a determinação de direitos e de obrigações entre os Estados-membros ou entre esses com as organizações internacionais. Por essa razão, os Estados mais débeis ingressam nas organizações em busca de legitimação e segurança. Ademais, as organizações introduzem o chamado multilateralismo que é a cooperação internacional de dois ou mais Estados com o intuito de atingir fins comuns e criam normas que os Estados soberanos obrigam-se a respeitar, para que possam integrá-las. Isso acontece porque os entes estatais, ao manterem suas prerrogativas tradicionais de exercício de poder, concordaram em criar mecanismos multilaterais dotados de instrumentos capazes de atuarem nos mais diversos campos, inclusive de forma preventiva, como, por exemplo, quando se trata da manutenção da paz e da segurança internacionais. No entanto, as funções das organizações internacionais são percebidas distintamente por cada Estado membro. Na prática, os Estados se integram em uma ordem jurídica, mas não existe nenhum órgão superior de poder a que todos se submetam. Devido a essa ausência é que, nos últimos tempos, têm sido criadas muitas organizações internacionais dotadas de um órgão de poder, modificando os termos de relacionamento entre as instituições estatais. 3 A CLASSIFICAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Ricardo Antônio Silva Seitenfus6 relata que, após a Segunda Guerra Mundial, identifica-se a seguinte classificação das organizações internacionais: pela natureza de seus propósitos, atividades e resultados; pelo tipo de funções que a elas se atribuem; pelos poderes ou estrutura decisória que elas dispõem; pela sua composição. A primeira classificação se estrutura, basicamente, em organizações internacionais de objetivos políticos ou em organizações que objetivam a cooperação técnica. Aquelas enfrentam questões essencialmente conflitivas com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais, já essas trabalham com assuntos vinculados à cooperação funcional, buscando a aproximação de posições e a tomada de iniciativas conjuntas em áreas específicas7. As organizações internacionais de natureza política podem pretender agregar todos os Estados do mundo (como a Organização das Nações Unidas – ONU) ou somente alguns deles (como a Organização dos Estados Americanos – OEA)8. Seu traço fundamental é o caráter político-diplomático de suas atividades, pois essas influenciam sobre questões vitais dos Estados-membros, tais como: a sua soberania e a sua independência nacional. Desse modo, para o Estado integrar-se à organização, terá, obrigatoriamente, que observar certas normas de convívio internacional, que tendem a impedir a tomada de decisões militares externas 6) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 35. 7) Ibid., p. 35-42. 8) Id. 136 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 ou mesmo de algumas decisões internas que venham a ferir os compromissos assumidos, sem a anuência prévia da organização internacional, sob pena do referido organismo agir de forma que o Estado-membro repare os seus atos lesivos. Em contrapartida, as organizações de cooperação técnica são delineadas pela natureza dos problemas que só podem ser enfrentados com a ação do coletivo internacional. Trata-se, por exemplo, do combate às epidemias (Organização Mundial da Saúde – OMS) ou a busca de melhoria da produtividade agrícola (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO). A outra classificação se estrutura nas funções das organizações internacionais que podem se estruturar: para aproximar posições dos Estados-membros, para que a tomada de decisões seja compatível com os interesses de todos (como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE); para adotar normas comuns de comportamento de seus membros (ocorre nas áreas de direitos humanos, da saúde pública internacional, dentre outras); para solucionar crises nacionais ou internacionais provindas de catástrofes naturais, conflitos internacionais, guerras civis através de ações operacionais; para prestar serviços aos Estados-membros, principalmente, no campo da cooperação financeira e do desenvolvimento (como o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – Banco Mundial)9. A terceira classificação se fundamenta na forma de tomada de decisões, para isso é necessário distinguir como o poder decisional é repartido entre os membros10. As regras do processo de tomada de decisões dividem-se entre aquelas que impõem a unanimidade para que um organismo tome uma decisão, a qual dificilmente será alcançada devido à diversidade entre os parceiros e a disparidade das suas expectativas e atuações, e as que estabelecem diferentes tipos de maioria para definir o resultado das votações, como a maioria quantitativa (considera-se cada Estado como um voto), a maioria qualitativa (a organização diferencia os membros segundo critérios próprios, atribuindo a cada Estado-membro um determinado coeficiente a ser computado após a sua votação) e o sistema misto (exige a dupla maioria, quantitativa e qualitativa). Assim como a observação das regras, a publicização dos debates é um procedimento de suma importância para a tomada de decisões, pois além de conceder transparência e respeito às posições diferenciadas, permite que o próprio processo decisório sofra a influência que a opinião pública nacional exerce sobre seus delegados, bem como revela a possibilidade de afirmar-se uma opinião pública internacional. Também cabe elucidar o papel dos órgãos permanentes das organizações internacionais, em particular do Secretariado que, de acordo com cada organismo, pode ser dotado de um substancial poder para direcionar a tomada de decisões e controlar a sua aplicação. Um exemplo é o Secretariado-Geral da ONU, porque possui o direito de iniciativa de reunir o Conselho de Segurança. Entre9) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 35-42. 10) Id. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 137 tanto, seu poder depende do perfil da organização. Através de tal prerrogativa, pode-se esboçar a autonomia da entidade, porque esse órgão permanente atua em nome da organização. A última classificação refere-se à composição da entidade internacional que pode ser: regional (a organização se estrutura pela proximidade geográfica dos seus Estados-membros, como a Associação das nações do Sudeste Asiático – ASEAN -, ou pelos interesses e objetivos comuns dos seus membros como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP); universal (não é feita qualquer discriminação para o ingresso dos Estados, dividindo-se em organizações com objetivos amplos, como a Organização das Nações Unidas – ONU -, ou com fins específicos, como a Organização Internacional dos Trabalhadores – OIT)11. Dalmo de Abreu Dallari12, distintamente, classifica as organizações internacionais somente em: organizações para fins específicos (podem agrupar Estados de uma região ou de todas as regiões do mundo, apresentando, sempre, como característica um objetivo limitado a determinado assunto); organizações regionais de fins amplos (sua característica principal é a circunstância de só agrupar Estados de determinadas regiões, tendo competência para conhecer de todos os assuntos que podem interessar aos Estados a ela pertencentes, em favor da convivência harmoniosa e do progresso uniforme daqueles); organizações de vocação universal (pretendem reunir todos os Estados do mundo e tratar de todos os assuntos que pode interessá-los). Celso D. de Albuquerque Mello13 acredita que as organizações internacionais podem ser classificadas de acordo com vários critérios. Quanto as suas finalidades, elas podem ter finalidades gerais (predominantemente políticas) ou especiais (podem ser políticas, econômicas, militares, científicas, sociais e técnicas).14 Quanto a seu âmbito territorial, elas podem ser parauniversais (não possuem qualquer limitação geográfica para que um Estado venha a ser seu membro), regionais (o tratado institutivo determina o seu campo de atuação), quase-regionais.15 Quanto à natureza dos poderes exercidos, elas podem ser intergovernamentais (os órgãos são constituídos por representantes das instituições estatais e os Estados executam as decisões dos órgãos) ou supranacionais (os titulares dos órgãos atuam em nome próprio, não como representantes dos Estados, e as decisões são diretamente aplicadas no interior dos Estados membros).16 Quanto aos poderes recebidos, elas podem ser de cooperação (procuram coordenar as atividades dos membros) ou de integração (efetiva comunicação 11) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 35-42. 12) DALLARI, Dalmo de Abreu, op. cit., p. 263-274. 13) MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 583-609. 14) Id. 15) Id. 16) Id. 138 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 entre os Estados de uma região, o que desenvolve o sentido de comunidade entre eles, com o intuito de manterem a paz, de aumentarem suas potencialidades, de realizarem determinados objetivos, de possuírem nova imagem e identidade).17 O que se conclui é que independentemente da classificação aplicada, é certo que cada organização possui estrutura e objetivos próprios. Logo, é imprescindível que cada uma delas seja dotada de poderes para alcançar seus fins. 4 AS COMPETÊNCIAS DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS A materialização jurídica de uma organização está condicionada à conclusão, à assinatura, à ratificação e à entrada em vigor de seu tratado constitutivo. O Estado para fazer parte da entidade internacional, deverá aceitar o seu tratado constitutivo a partir do processo de ratificação. Com o término desse processo e com a sua adesão ao organismo, o ente estatal não poderá mais concluir nenhum outro tratado que viole os preceitos estipulados no tratado institutivo da organização internacional da qual ele passou a fazer parte. O tratado constitutivo adquire o caráter de uma norma constitucional da organização, sendo que as demais normas a ela se subordinarão. As características do referido tratado são: o seu prazo de duração indeterminado; a sua execução realizada por vários atos; a sua interpretação feita pela própria organização; a sua primazia sobre os outros tratados; no silêncio do tratado, os Estados não podem denunciá-lo. Na concepção de Celso D. de Albuquerque Mello18, realmente, o Estado-membro não pode se retirar de uma organização, quando o seu tratado constitutivo não prevê o direito de retirada, já que o Estado limitara espontaneamente a sua vontade quando se aderiu ao organismo. Todavia, verificase, na prática, que a instituição estatal retira-se da organização quando quiser, porque ela não tem meios de obrigá-lo em sentido contrário. Enfim, o tratado constitutivo das entidades internacionais se apresenta como instrumento delineador de seus direitos e obrigações, além de outorgar suas competências. De modo geral, são atribuídas às organizações as seguintes competências: normativa, operacional, impositiva e de controle. A competência normativa das organizações internacionais pode ser dirigida ao exterior ou ao interior da própria entidade, objetivando a melhoria de seu funcionamento. A competência normativa dirigida ao exterior manifesta-se por meio das convenções (tratados firmados pelos Estados, membros ou não, ou com as outras organizações internacionais); das conferências diplomáticas que se realizam após a convocação dos Estados-membros pelo organismo; das convenções a serem aplicadas pelos Estados-membros, servindo, a organização, como guarda material e gestora dos tratados (como no caso do Conselho da Europa) e das recomendações (dirigem-se aos Estados-membros sob a forma de simples proposta, mas 17) Id. 18) MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 583-609. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 139 caso os Estados-membros não as acatem, deverão justificar as suas razões). As organizações que desempenham o papel de coordenação, em questões essencialmente técnicas do convívio internacional, possuem outra forma de exercício da competência normativa, a capacidade de editar regulamentos, destinados aos Estados-membros com o objetivo de uniformizar as condutas perante situações comuns. Um exemplo dessa competência normativa encontra-se na Organização Mundial da Saúde, a qual é responsável por editar regulamentos sanitários.19 Em relação à competência de controle, essa pode ser detectada com base tanto no tratado constitutivo quanto em convenções paralelas. A iniciativa do processo de controle por parte de uma organização contra um Estado que não cumpre suas obrigações, pode ser feita de três formas: um Estado pode acusar o suposto infrator; a própria organização pode fazê-lo por meio do seu direito de iniciativa, conforme relatório dos Estados, ou informações oriundas de órgãos privados ou através de inspeções regulares realizadas por funcionários internacionais ou agentes mandados pela organização; a iniciativa também pode partir do controle de pessoas ou de grupos. O controle pode exercer-se de maneira total em um território delimitado ou pode restringir-se à aplicação das normas originárias ou derivadas. Os seus efeitos dependerão, na maioria das vezes, de sua publicização como forma de pressão da opinião pública frente ao Estado, supostamente, infrator. É preciso elucidar que a criação da Organização Mundial do Comércio – OMC indica, em outro patamar, o controle das organizações internacionais sobre os compromissos dos Estados-membros, objetivando demonstrar as controvérsias comerciais entre os parceiros e permitindo-lhes a tomada de represálias, sob a proteção da Organização Internacional do Comércio, caso o Estado se considere lesado. Outra competência da organização internacional é a operacional que se desenvolve de maneira permanente ou pontual, junto a setores específicos e problemas concretos dos Estados-membros. A operação permanente, geralmente, se desenrola nos países em desenvolvimento através da ajuda à gestão técnica, econômica e social. Já a operação pontual auxilia na resolução de problemas circunstanciais, tais como catástrofes naturais, epidemias ou conflitos militares que afetem profundamente a população civil. Frisa-se que a organização dessas operações dependerá dos poderes, das competências e dos meios materiais que as entidades internacionais dispõem. Quanto à competência impositiva, essa se refere à possibilidade da organização internacional de impor suas decisões externamente, conforme o seu tratado constitutivo e sua natureza. A competência impositiva é natural quando se trata de organizações internacionais comunitárias ou de subordinação, como no caso das diretrizes da União Européia. Nas organizações de concertação, a imposição é uma exceção que dependerá de circunstâncias específicas e de interpretações dos direitos das entidades internacionais e dos compromissos assumidos pelos Estados-membros. 19) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 51-85. 140 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 Cabe enfatizar que a competência impositiva só poderá ser exercida contra os Estados mais débeis, inclusive, em se tratando da Organização das Nações Unidas, mas, por exemplo, não poderá ser aplicada aos membros permanentes do Conselho de Segurança. As decisões impositivas das organizações internacionais podem ser aplicadas, exclusivamente, para a manutenção da paz e da segurança internacionais. No entanto, as entidades internacionais capazes de assumi-las são somente as que mencionam, em seu tratado constitutivo, que tal objetivo esteve na origem de sua criação. O problema é que a imposição de uma decisão do coletivo internacional ao ente estatal que decide não acatá-la constitui ato violento que pode ser interpretado como uma ingerência indevida nos assuntos internos desse Estado. Definese a ingerência pelo seu caráter impositivo ou coercitivo, em que um organismo internacional ou um país impõe a um Estado determinada conduta ou situação que ele não desejaria por si, atacando a sua soberania. Uma importante maneira de intervir nos assuntos internos das instituições estatais é representada pela concessão de empréstimos de entidades internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, na medida em que os tomadores dos empréstimos adotem medidas internas impostas por referidas instituições. Assim, a negociação das dívidas externas de muitos Estados, o processo de privatização e o gerenciamento da máquina pública, o papel da instituição estatal, são assuntos que, ao vincularem-se com estratégias externas, fogem do domínio do Estado. Também é possível a identificação da competência impositiva da Organização das Nações Unidas, ao se analisarem os acontecimentos históricos, como a tomada de sanções econômicas em relação ao Iraque, desde 1990, e ao Haiti, a partir de 1993, em que ocorreu uma ruptura das relações diplomáticas e comerciais até um bloqueio, resultante na ruptura de todas as relações econômicas desses países com o resto do mundo; como a tomada de medidas coercitivas de caráter militar, representadas pela intervenção na Somália ou pela autorização concedida pela ONU à OTAN para intervir no conflito da ex-Iuguslávia; como a intervenção em um conflito interno de um Estado membro, por exemplo, quando a ONU interviu contra a Unita em Angola, no ano de 1993, dispondo-se a colocar um fim na situação de instabilidade política ou de guerra civil. A justificativa da ONU para essas ingerências se fundamenta na prerrogativa da manutenção da paz, mas, para isso, a entidade em questão envia forças de interposição e intervém nos assuntos internos do Estado com o objetivo de auxiliá-lo a exercer suas competências. 5 O DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE PODER DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Reinhold Zippelius20 enaltece que a multiplicação das organizações internaci20) ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. München: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 519. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 141 onais foi resultado da intensificação das relações e interdependências econômicas em nível mundial, da enorme aceleração dos transportes internacionais e da troca de informações de natureza econômica, militar, técnica, científica, dentre outras. Acabada a Segunda Grande Guerra, foram desenvolvidos sistemas intercontinentais de armamento suficientemente potente para aniquilar grande parte da humanidade, surgindo, como conseqüência, sistemas defensivos, como espécies de organizações internacionais, de grande alcance militar.21 Ricardo Antônio Silva Seintefus22 afirma que as organizações internacionais desfrutariam de limitada ou escassa autonomia. Por isso, se para os Estados débeis as organizações internacionais tendem a representar uma garantia de independência política e uma forma de buscar o desenvolvimento econômico, para os países poderosos elas significam, na maioria das vezes, tão-somente um terreno suplementar, no qual atua seu poder nacional. Para esse autor23, como decorrência desta situação, o meio internacional no qual a ação e o discurso das organizações internacionais se manifestam, indicam que a sua ideologia estaria intimamente vinculada à dos Estados-membros. A partir disso, a trajetória ideológica das organizações internacionais repousaria em cinco momentos distintos após o ano de 1945: o funcionalismo (baseada no princípio de que as organizações internacionais deveriam servir os interesses da sociedade, descartando a preponderância da influência dos Estados); o desenvolvimentismo (em plena oposição leste/oeste, as organizações precisariam atuar mais incisivamente na manutenção da paz e da segurança); o transnacionalismo (a incapacidade dos países pobres em dispor de divisas, inviabilizando, portanto, as importações de bens de capital, induziria a oferecer condições para a instalação em solo pátrio de filiais de empresas estrangeiras, assim, as organizações presumiriam que essas empresas seriam os elementos dinâmicos do processo de desenvolvimento); o globalismo (identificaria a escassez de matéria-prima no planeta e os efeitos perversos, do ponto de vista ecológico, da busca incessante pelo crescimento econômico); a globalização (em razão de suas características, a globalização enfraqueceria o papel do Estado e das organizações em benefício das transnacionais privadas). Logo, tanto o surgimento das organizações quanto a sua evolução, representariam o resultado de um processo de relações de forças, sem, contudo, colocar em risco o poder exercido pelos Estados mais fortes. Nesse sentido, as organizações internacionais formalizariam e institucionalizariam uma espécie de hegemonia consensual. Sem dúvida nenhuma, a organização internacional, de acordo com os seus interesses, trata distintamente um Estado membro do outro, conforme a sua relevância internacional e o seu poder de imposição. Porém, é inegável a autonomia e o poder que as organizações internacionais possuem em relação aos seus Estados-membros. 21) Ibid., p. 519-533. 22) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 43-49. 23) Id. 142 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 Acertadamente e sob outro viés, Reinhold Zippelius24 defende que as crescentes interdependências e interligações organizatórias entre os Estados contribuíram não só para facilitar a cooperação nos domínios das políticas externa, econômica e de segurança, como também para reforçar e equilibrar os controles internacionais e as relações de poder. Por meio dessa defesa, constata-se que as organizações internacionais, ideologicamente, foram criadas para harmonizar as relações entre os Estados, porém, sua atuação real é politicamente desenvolver relações de poder. Isso ocorre porque, mediante as tradicionais obrigações, derivadas de tratados de direito internacional, não era possível satisfazer ao enorme volume de tarefas de ordenamento e harmonização supranacionais, sendo indispensável à formulação de instituições que defendesse os interesses comuns, coordenasse os interesses divergentes e harmonizasse os interesses antagônicos cuja envergadura ultrapassava os Estados singulares. O renomado internacionalista Celso D. de Albuquerque Mello25 enfatiza que a proliferação das organizações internacionais aconteceu quando os Estados se encontravam debilitados, tanto por razões estruturais como por razões políticas, que os impossibilitavam na concretização de seus objetivos, por isso permitiram que as entidades internacionais os auxiliassem. Para ele26, as organizações internacionais, como uma espécie de superestrutura da sociedade internacional, constituem um reflexo das relações internacionais, entretanto, uma vez constituídas, elas passam a influenciar o meio social que lhes deu origem. Por isso, esse autor elenca uma série de funções e potencialidades das entidades internacionais, tais como: exercem influência nas decisões do Estado; desenvolvem meios para controlar conflitos; atuam contra o nacionalismo ao defenderem o internacionalismo; representam um canal de comunicação entre os Estados; constituem um mecanismo para a tomada de decisões; protegem os direitos humanos; garantem a segurança dos Estados; legitimam determinadas situações, bem como asseguram que as suas transformações sejam pacíficas e contribuam, de diversas maneiras, para a formação de normas internacionais. O célebre autor António Manuel Hespanha27 acredita que a criação de instâncias supra-estaduais de regulação, a um nível superior ao dos Estados, aconteceu para que esses organismos pudessem condicionar, decisivamente, as políticas estaduais. Assim, com esses enormes poderes em suas mãos, as organizações internacionais respondem à necessidade de especificação, promoção e concretização das finalidades comunitárias, ao mesmo tempo que equilibra os interesses federativos. Inclusive, a prática de negociar e regular, casuisticamente, questões individuais entre os Estados interessados foi abandonada, vez que as organizações 24) ZIPPELIUS, Reinhold, op. cit., p. 525-533. 25) MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 583. 26) Ibid., pp. 583-609. 27) HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Portugal: Tito Lyon de Castro, 2003. p. 35-40. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 143 internacionais passaram a ser as instituições responsáveis pelo planejamento e pela regulação dessa matéria, devendo realizar uma coordenação multilateral dos interesses de todos os Estados envolvidos.28 Como, para a consecução das finalidades fundamentais de uma organização internacional, exige-se a utilização de meios imprescindíveis, é necessário que essa entidade seja dotada de personalidade jurídica. Por causa dessa personalidade, as organizações internacionais possuem direitos e deveres que devem depender dos seus objetivos e funções, enunciados ou implícitos em seu ato constitutivo e desenvolvidos na prática. Os critérios essenciais de aferição da personalidade jurídica pelas organizações internacionais devem ser: a associação permanente de Estados, dotada de órgãos próprios e que pratica fins lícitos; a distinção, em termos de poderes e fins jurídicos, entre a organização e os seus Estados-membros; a existência de poderes jurídicos que possam ser exercidos no plano internacional, e não unicamente no âmbito dos sistemas nacionais de um ou mais Estados.29 Paul Reuter30 insiste em afirmar que a personalidade jurídica de direito das gentes não é a fonte da competência da organização, mas seu resultado. Se os Estados-membros projetam a organização internacional, conferindo-lhes prerrogativas próprias e autonomia em relação a cada Estado-membro, por óbvio, há a personalização desse ente internacional. Logo, o elemento mais indicativo e expressivo da personalidade jurídica de uma organização é a sua competência para celebrar tratados em seu próprio nome. No entanto, uma organização pode existir, mas não possuir os órgãos e objetivos necessários para ter personalidade jurídica. Entidades conjuntas de Estados podem ter competências restritas e independência limitada, não possuindo personalidade jurídica, como é o caso das agências e órgãos subsidiários das organizações, tais como: a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, o Alto Comissário para os Refugiados e o Departamento de Assistência Técnica em relação às Nações Unidas. Contudo, a maior parte das organizações são sujeitos de direito internacional, possuem a capacidade de serem titulares de direitos e deveres internacionais e possuem a prerrogativa de fazerem valer os seus direitos através de reclamações internacionais. Esses direitos que lhe são reconhecidos, muito embora não sejam estipulados ou homologados nos textos de suas regulamentações, são competências e obrigações que constam, de maneira implícita, no texto de seus estatutos, logo, não são taxativos, mas, sim, decorrência das atribuições que lhes são inerentes. As organizações internacionais têm poderes similares aos do Estado, fazendo com que a soberania deste seja diminuída. Os poderes das entidades in28) HESPANHA, António Manuel, op. cit., p. 35-40. 29) BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. Oxford: Oxford University Press, 1990. p. 707-733. 30) REUTER, Paul. Droit International Public. Paris: PUF, 1973, p. 126-127. 144 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 ternacionais são: o poder de concluir os tratados (o instrumento constituinte não confere, normalmente, a faculdade geral de concluir tratados, mas tal faculdade pode ser estabelecida pela interpretação do instrumento como um todo e pelo recurso aos poderes implícitos31); o poder de possuir privilégios e imunidades (para funcionarem com eficácia, as organizações exigem um mínimo de liberdade e segurança jurídica para os seus bens, suas sedes, seus funcionários, para os representantes dos Estados-membros acreditados junto das referidas organizações); o poder de patrocinar reclamações internacionais (que dependerá da existência de personalidade jurídica e da interpretação do seu instrumento constituinte, à luz dos fins e funções da organização); o poder de proteção funcional dos agentes e dos seus familiares (ainda é uma questão polêmica, sobretudo, em relação à determinação das prioridades entre o direito de proteção diplomática do Estado e o direito de proteção funcional da organização); o poder de missão (o instrumento constituinte de uma organização pode permitir expressa ou tacitamente o envio de representantes oficiais para os Estados e para outras organizações), dentre outros poderes.32 É importante ressaltar que a independência em termos jurídicos, a personalidade jurídica própria e a subjetividade própria de direito internacional público, permitem às organizações executarem o direito internacional com justiça, assumindo, inclusive, funções de arbitragem para resolverem imparcialmente as discordâncias entre os Estados. Aliás, a autonomia jurídica das organizações implica o fato de possuírem uma ordem jurídica própria, ou seja, o seu próprio direito comunitário interno. O direito interno das organizações internacionais provém da manifestação de vontade da própria entidade, representada por um estatuto que regulamenta o funcionamento dos seus órgãos, as suas relações com os Estados-membros e as suas relações com seus funcionários. O referido estatuto é originário, independente, autônomo e válido, conforme o parecer da Corte Internacional de Justiça.33 Através de sua autonomia jurídica, as organizações internacionais têm o direito de exigir dos Estados-membros o cumprimento das obrigações resultantes da relação comunitária, todavia, deve respeitar o domínio reservado da jurisdição interna de cada Estado.34 A regra geral é a de que só as partes de um tratado estejam vinculadas pelas obrigações que nele contêm. Uma exceção a essa regra aparece na Carta das Nações Unidas, a qual define que a organização assegurará, inclusive, que os 31) O Tribunal Internacional de Justiça acredita na possibilidade de aplicação da doutrina dos poderes implícitos, argumentando que os direitos e os deveres de uma organização devem depender do seu fim e funções, tal como se encontram especificados ou implícitos nos textos constitutivos e desenvolvidos na prática. Assim, nos termos do Direito Internacional, deve considerar-se que a organização possui os poderes que, embora não previstos expressamente na Carta, lhe são conferidos por interferência necessária como sendo essenciais para o desempenho dos seus deveres, logo, resultam de uma interpretação necessária extraída da Carta. 32) BROWNLIE, Ian, op. cit., p. 707-733. 33) MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 303-309. 34) ZIPPELIUS, Reinhold, op. cit., p. 519-533. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 145 Estados que não sejam membros das Nações Unidas atuem de acordo com os seus princípios, na medida em que tal seja necessário para a manutenção da paz e segurança internacionais. Dentro da organização, o órgão competente delibera sobre algum assunto e a sua eficácia será medida pelo sistema constitucional da organização. A força compulsiva dessa decisão eficaz obriga o Estado-membro a acolhê-la, pois a partir do momento que passou a ser membro da organização, estimou válidos os seus mecanismos jurídicos. Nesse contexto, o Estado estará vinculado àquilo que a decisão realmente é, um ato obrigatório, editado pela organização, de cujos estatutos provém sua legitimidade.35 Os meios técnicos que poderão ser utilizados para especificar e concretizar os fins dos organismos são: a convocação de conferências internacionais, a elaboração de projetos de tratados e de outras recomendações, a elaboração de uma estratégia de defesa, a adoção de decisões específicas juridicamente vinculativas e a adoção de disposições gerais vinculativas a nível interno dos Estados membros. Inclusive, em relação a determinadas questões, as organizações internacionais adotam normas jurídicas com aplicabilidade direta em nível interno dos Estados-membros, podendo, dessa forma, interferir no domínio funcional dos órgãos legislativos daqueles. Isso quer dizer que as organizações, ao exercerem os seus poderes, criam por meio de deliberações, normas internacionais, que, ora terão valor obrigatório, como as resoluções, os regulamentos e as decisões, ora não o terão, como as recomendações, os votos e os ditames. Quanto às sanções, as organizações internacionais dispõem de um vasto leque de instrumentos: a declaração de violação de obrigações contratuais por parte de um Estado-membro, a solicitação a um tribunal internacional para que formule um parecer sobre tais violações de obrigações, a suspensão dos direitos do Estado-membro transgressor, a suspensão dos pagamentos e de outras prestações ao membro transgressor e ainda a exclusão de um membro da organização. Além disso, em caso de ameaça ou ruptura da paz mundial, o Conselho de Segurança pode, por resolução própria, adotar medidas coercitivas não-militares, econômicas ou de outra natureza, e, em último recurso, medidas militares, até mesmo contra Estados que não são membros da ONU. No caso concreto, a aplicação de um ou outro instrumento, para a transposição das tarefas comunitárias, pela organização internacional, dependerá da sua própria legislação interna em relação à respectiva matéria. Em suma, constata-se que as organizações internacionais originaram-se com poder, no Estado de Bem-Estar Social, face à complexidade das relações entre os entes estatais, e não adquiriram tal poder ao longo do século XX. Essa afirmativa pode ser comprovada por meio da análise da justificativa do surgi35) REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 132-135. 146 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 mento de algumas organizações internacionais, assim como a observância das suas finalidades. Tais aspectos serão verificados à continuação. 6 ANÁLISE DOS PODERES DE ALGUMAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS 6.1 O FMI Os Estados Unidos, ainda durante a Guerra (1944), tiveram a iniciativa da realização da Conferência em New Hampshire Woods, EUA, que ficou conhecida como Conferência de Bretton Woods, contando com a presença das Nações Unidas e as associadas a ela na guerra, com o escopo de sedimentar a cooperação econômica internacional. Desse evento, foram criados o Fundo Monetário Internacional36 (FMI), o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento37 (conhecido como Banco Mundial) e o GATT38 (Acordo Geral para Comércio e Tarifas Aduaneiras).39 De modo geral, o propósito era o de fomentar o intercâmbio mundial pelo incentivo de práticas do livre-comércio, garantindo os fluxos globais de capitais de investimentos e de ajuda econômica aos países em desenvolvimento. As questões de ordenação dos fluxos financeiros e de ajuda ficaram a cargo de duas novas agências internacionais das Nações Unidas: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido como Banco Mundial. Porém, cabe realçar que essas duas organizações internacionais não desempenham as mesmas funções, vez que o Banco Mundial apresenta-se como uma típica instituição de auxílio ao desenvolvimento, enquanto o FMI restringe-se ao auxílio à administração monetária externa do Estado membro.40 É essencial destacar que no plano financeiro, o FMI serviu, inicialmente, aos interesses imediatos dos Estados Unidos, através da criação do sistema de paridades, em termos de ouro e de dólares, declaradas pelos associados do Fundo, resultando na vinculação da moeda americana ao metal. A referente conversibilidade moeda-metal funcionou entre governos, possibilitando a reintrodução 36 )No dia 22 de julho de 1994, em New Hampshire, EUA, realizou-se a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, que originou o FMI por meio do Acordo do Fundo Monetário Internacional, o qual entrou em vigor na data de 27 de dezembro de 1945. Esse acordo sofreu alterações em 28 de julho de 1969, concretizadas por meio da Resolução nº 23-5. No dia 1º de abril de 1978 ocorreram outras modificações pela Resolução nº 314 e outras aconteceram em 11 de novembro de 1992 pela Resolução nº 45-3. 37) O Banco Mundial proveio do Acordo do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento que foi assinado em Bretton Woods, EUA, em 1944. 38) O GATT surgiu em 1994 pelo Acordo de Marrakesh, estabelecendo a Organização Mundial do Comércio e parte dos Acordos da Rodada do Uruguai, assinados em Marrakesh. 39) Observa-se que o autor, em 1999, era advogado na Divisão para a América Latina e o Caribe do Departamento Legal do Banco Mundial. Cf. NINIO, A. “Banco Mundial e meio ambiente: perspectivas legais e institucionais”. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1999, pp. 1-5. 40) GRIECO, Francisco de Assis. A supremacia americana e a ALCA. São Paulo: Aduaneiras, 1998. p. 135-142. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 147 do “padrão-ouro” que foi o responsável pela regulamentação cambial. Assim, os Estados Unidos, donos de cerca de 40% do estoque mundial do ouro monetizado, veriam o dólar transformar-se na moeda universal.41 Em sua primeira etapa, o FMI procurou dar ênfase ao monitoramento e à regulamentação de medidas de recuperação econômica conseqüentes das crises de balanços de pagamento. O seu instrumento básico fora as políticas de câmbios flutuantes que deveriam ser adotadas nos programas de estabilização, juntamente com medidas de contenção orçamentárias e de equilíbrio na expansão monetária. No entanto, a imposição de critérios rígidos de recuperação econômica, com base em programas formais, passaram a ser aceitos pro forma pelos Estados, que a rigor estavam conscientes da impossibilidade de levá-los a termo. Os atrasos na concessão de ajuda do Fundo acabaram por conduzir às moratórias, seguidos de novas composições e negociações atrasadas. Na atualidade, o FMI tem a função de facilitar os pagamentos multilaterais, fixar as paridades monetárias e contribuir para a sua estabilização, bem como manter sob controle as restrições impostas às transferências de divisas.42 Enfim, cabe ao FMI auxiliar financeiramente países com dificuldades em suas balanças comerciais.43 A liberação de recursos é condicionada, pelo Fundo, à adoção de medidas de reforma estrutural dos países solicitantes da ajuda do FMI. As medidas em questão são conhecidas como programas de ajustes, as quais definem a política orçamentária, a emissão monetária, a taxa de câmbio, a política comercial e os pagamentos externos. Tais decisões são formalizadas por meio de uma carta de intenções, que o Estado entrega ao Fundo como compromisso que assegura o cumprimento das metas anuais. Assim, os recursos somente serão liberados se as metas estabelecidas na carta de intenções forem atingidas. Os conselhos do Fundo não são impositivos, pois um Estado que não aceita suas diretrizes tem liberdade de deixar a organização. Não se pode olvidar que, muitas vezes, o Fundo é obrigado, por motivos políticos, a integrar em seus critérios de recuperação econômica interesses de seus principais membros. Entretanto, com certeza, o aval do Fundo concedido a um Estado em desenvolvimento representa, também, um sinal à comunidade financeira internacional sobre a solidez da política financeira adotada por esse Estado, o que deflagra o poder de tal organismo internacional. 6.2 O BANCO MUNDIAL Desde o início, a função do Banco Mundial é prestar auxílio aos Estados necessitados. Porém, decorrida uma década de surgimento, de financiamento e com a criação da Corporação Financeira Internacional (1956) e da Associação Internacional do Desenvolvimento (1960), o Banco Mundial mudou sua ótica desen41) Id. 42) ZIPPELIUS, Reinhold, op. cit., p. 519-533. 43) NINIO, A., op. cit., p. 1-5. 148 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 volvimentista, passando a dar prioridade aos países com menor desenvolvimento. Nos dias de hoje, a função do Banco Mundial é promover o desenvolvimento estável, sustentável e eqüitativo dos Estados, auxiliando na diminuição da pobreza mundial. É formado de cinco instituições inter-relacionadas que desempenham prerrogativas específicas: BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento); AID (Associação Internacional de Desenvolvimento); IFC (Corporação Financeira Internacional); AMGI (Agência Multilateral de Garantia de Investimentos); CIADI (Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos).44 O Banco Internacional para a Reconstrução o Desenvolvimento (BIRD) e a sua organização filiada Corporação Financeira Internacional (IFC) concedem créditos de auxílio para o desenvolvimento produtivo e para a reparação de estragos de guerra. Os créditos concedidos pela Associação Internacional para o Desenvolvimento (AID) também se destinam ao auxílio dos Estados em vias de desenvolvimento. O Banco Mundial apresenta um caráter ambíguo de poder. Por um lado, utiliza técnicas de um banco comercial, pois fornece recursos financeiros aos Estados membros, cobrando juros e auferindo lucros que permitem a sua sustentação, também capta recursos no mercado de capitais e nas disponibilidades oferecidas pelos Estados membros. Por outro lado, em razão de seus objetivos, pode ser apresentado como sendo um serviço público internacional. Por fim, evidencia-se que o Banco Mundial, atualmente, desenvolve uma política de financiamento de projetos produtivos de longo prazo, como por exemplo, os na área da educação, da reforma agrária e do meio ambiente. Além disso, organizou programas para formar recursos humanos nos países em via de desenvolvimento e, sobretudo, aconselhou políticas públicas. Nessas circunstâncias o Banco que até então tentava apresentar-se como uma instituição absolutamente desvinculada de valores políticos e ideológicos, tem demonstrado uma posição sobre temas que deveriam ser de interesse restrito dos países em via de desenvolvimento. 6.3 O BID Em 1959, foi criado o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, voltado para o desenvolvimento da América Latina, cuja estrutura repousa na experiência do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – Banco Mundial. É de suma importância realçar que, paralelamente ao surgimento do BID, eclodiam problemas políticos e comoções sociais na América Latina. Logo, o surgimento do BID não foi despropositado, pois foi um instrumento de auxílio para que os Estados Unidos, preocupados com a perda do seu domínio na América Latina e buscando a “fidelização” cubana, instaurasse a sua “Aliança para o Progresso”. Em princípio, o BID só seria integrado por Estados da América Latina, no entanto, modificações foram feitas em seus estatutos, permitindo o ingresso do Canadá, do Japão e de Estados da Europa Ocidental. O principal objetivo do BID é estimular o crescimento econômico dos Estados-membros, através da concessão de empréstimos, tanto de recursos própriRAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 149 os quanto de capital de origem privada. O Banco, por meio de seus poderes, além de conceder empréstimos, supervisiona, aconselha o planejamento econômico e elabora estudos técnicos. 6.4 A OCDE A Europa encontrava-se devastada após a Segunda Guerra Mundial. Para reerguê-la os Estados Unidos ofereceram um auxílio econômico conhecido como Plano Marshall. Para coordenar este plano, foi criada, em 1948, a Organização Européia de Cooperação Econômica – OECE, cujo objetivo consistia em planejar o desenvolvimento econômico dos Estados-membros. Em 1960, representantes de vinte Estados-membros decidiram substituir a OECE por uma nova entidade internacional chamada Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE45, a qual possibilitou o ingresso de Estados que haviam atingido certo grau de desenvolvimento, independentemente de sua localização geográfica. Os objetivos da OCDE são: a melhoria do nível de vida dos povos dos Estados-membros; a ampliação o desempenho econômico, com o crescimento da oferta de emprego; a contribuição para o crescimento da economia mundial; a expansão do comércio internacional em bases multilaterais e não-discriminatórias.46 Enfim, a OCDE é um órgão internacional e intergovernamental que reúne os países mais industrializados para que, através de seu poder, estabeleçam políticas as quais potencializem seu crescimento econômico, e colaborem com o desenvolvimento dos Estados-membros. 6.5 A ONU Em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, na Paz de Versalhes, foi criada a Liga das Nações, primeira organização dotada de fins políticos e de um sistema de sanção incipiente, com poder regulamentar e personalidade internacional que almejava a paz entre os Estados. O Pacto da Liga das Nações era estruturado em três órgãos: o Conselho, cujos objetivos eram o desarmamento, o controle dos territórios sob mandato, o controle da proteção das minorias, a exclusão de membros; a Assembléia a qual admitia os novos membros, aprovava o orçamento, elegia os membros não permanentes; Secretariado que era a parte administrativa. A liga também possuía dois organismos autônomos, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, que fora criada no Tratado de Versalhes e a Corte Permanente de Justiça Internacional – CPJI, que teve o seu estatuto formulado em 1920. De fato, desde a declaração da Segunda Guerra Mundial a Sociedade da Liga das Nações parou de funcionar. Oficialmente, entretanto, ela existiu de 1920 a 1947, quando, na sua 21ª Sessão, foi dissolvida, ou seja, as suas contas foram encerradas e todos os seus bens foram transferidos para a Organização das Nações Unidas – ONU. Em 1945, diante do término da Segunda Guerra Mundial, aconteceu a Conferência de São Francisco, denominada de Conferência das Nações Unidas 150 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 para a Organização Internacional, na qual se originou as Nações Unidas, por meio da Carta da ONU. Destaca-se que no dia 10 de dezembro de 1948, a ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, texto de referência que estabelece os direitos naturais de todo ser humano, independentemente de nacionalidade, cor, sexo, religião, orientação política ou sexual. Não é uma lei, mas tem grande força moral e norteia boa parte das decisões tomadas pela comunidade internacional.47 A ONU é uma pessoa jurídica de direito internacional público, tendo a sua existência, organização, objeto e condições de funcionamento previstos no seu instrumento de constituição, que é a Carta das Nações Unidas. Apesar de sua vocação universal, a ONU resultou de um acordo de Estados, celebrado nos moldes de um tratado. Cabe salientar que cada Estado preservou a sua soberania, podendo retirar-se da Organização quando o desejar e também sendo possível o ingresso de novos Estados através da adesão, conforme processo previsto na Carta. Com o intuito de se estruturar um sistema global para a manutenção da segurança coletiva, com a liderança dos Estados Unidos e com mais o apoio de 50 nações, a Carta de São Francisco foi o instrumento que estabeleceu a criação de um órgão permanente, com autoridade, com poder efetivo e com discernimento para a preservação da paz mundial. A Carta, então, é a lei básica da ONU, formada de um preâmbulo e de 111 artigos, tendo como anexo o Estatuto da Corte Internacional de Justiça – CIJ, que é sua parte integrante.48 A ONU foi criada para concretizar as determinadas funções: ser a guardiã da paz e da esperança; desenvolver relações amistosas, entre os Estados, fundadas no respeito ao princípio da igualdade dos direitos e da autodeterminação dos povos; conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário; promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos e ser um centro destinado a harmonizar a ação dos Estados para a consecução desses objetivos. Para serem admitidos como membros, todos os Estados deverão aceitar as obrigações contidas na Carta, estando dispostos e aptos a cumprir tais determinações. No entanto, na realidade, considerações políticas têm exercido um papel importante na admissão de alguns membros, pois, em mais de uma oportunidade, os Estados membros, mais influentes, utilizaram o veto, abusivamente, para 44) SOBRE o Banco Mundial. Disponível em: www.bancomundial.org.br / index.php / content / view /6.html. Acesso em: 5 set. 2007. 45) A OCDE originou-se da Convenção para Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos, assinada em Paris, em 1960. 46) CORPORATE social responsability: partners for progress. Disponível em: www. oecd.org/ document/37/ 0,2340,em _2649 _201185 _2429925 _ 1 _1 _ 1_ 1,00.html. Acesso em: 10 set. 2007. 47) MORAES, Marcos Antonio de; FRANCO, Paulo Sérgio Silva. Geopolítica: apocalipse do século XX. Campinas: Átomo, 2006. p. 113-118. 48) SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 210-224. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 151 impedir o ingresso de Estados que possuem todos os elementos exigidos. Isso acontece porque a ONU consagrou, desde o início, a supremacia do Conselho de Segurança. Essa tutela firmou-se no direito de veto de seus cinco membros: China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e União Soviética livres, por conseguinte, para imporem ações diplomáticas ou militares. A igualdade dos Estados perdeu assim sua consistência mundial. Além do mais, os membros da ONU poderão ser suspensos do exercício dos seus direitos e dos seus privilégios, quando contra eles for levada a efeito qualquer ação preventiva ou coercitiva por parte do Conselho de Segurança, o qual, posteriormente, poderá restabelecê-los. Se violarem, persistentemente, os princípios da Carta, poderão ser expulsos pela Assembléia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança. É de extrema importância observar que a ONU apresenta falhas em sua estrutura e em seu funcionamento, tais como: o respeito à soberania dos Estados, pois implica tantas limitações que, praticamente, acabam por anular qualquer possibilidade de ação da ONU, no sentido de garantir a aplicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem; o direito de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança porque, na realidade, acentuou a discriminação entre os Estados (essa foi uma exigência dos Estados Unidos e da União Soviética para integrarem a organização, e como a sua constituição seria inviável sem a presença desses dois Estados, os demais tiveram que ceder); a falta de eficácia das decisões, pois sendo apenas uma confederação e não dispondo de meios concretos para impor a sua vontade, a ONU praticamente se limita a fazer recomendações, que muitas vezes não são atendidas, sem que nada possa ser feito; a falta de recursos próprios, dependendo de contribuição financeira de seus membros, muitos dos quais não efetuam regularmente os pagamentos devidos, mas, ainda que todos o fizessem, os recursos seriam insuficientes, fazendo com que a ONU dependa da ajuda especial dos grandes Estados para os empreendimentos mais importantes, o que reduz a sua eficiência e afeta a sua própria independência. Embora se declare baseada no princípio da igualdade de todos os seus membros, a ONU é, na realidade, dirigida por uma pentarquia, pelas cinco potências que dispõem do abusivo direito de veto no seio do Conselho de Segurança, detendo, por conseguinte, o comando da organização, decidindo, em última instância, sobre a paz ou a guerra no mundo. Além disso, examinando-se a Carta da Organização das Nações Unidas vê-se que a prática do veto impede que o Conselho de Segurança tome qualquer medida contra uma potência que nele tenha assento permanente, mesmo que essa potência ponha em perigo a paz e a segurança internacional. De tudo isso se conclui que o princípio da igualdade soberana de todos os membros, tão defendida na Carta da Organização das Nações Unidas, é uma fantasia. As cinco potências influenciam muito esse organismo, mesmo assim, a ONU é dotada de certo poder que faz dela uma organização respeitada pelos demais Estados-Nações. 152 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 6.6 A ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA Nos dias de hoje, as etapas de integração internacional deflagram organizações supranacionais (comunidades supranacionais) cujo principal exemplo se encontra na União Européia, que se legitima pela interdependência econômica, pela mobilidade de mão-de-obra, pelo Estado Democrático de Direito, pela política externa e por outros fatores que integram os Estados-membros. Uma característica específica e exata dessa organização comunitária é o fato de ela ter a faculdade de adotar disposições diretamente vinculativas em nível interno dos Estados-membros. Relevante não é só o fator do efeito das decisões adotadas pela organização comunitária, mas também o número, a importância e o prazo de atribuição de suas funções, assim como os meios de execução de que dispõe a organização, conforme o grau de sua autonomia jurídica em relação aos seus membros. Além desses, para uma avaliação da verdadeira força de integração e das tendências evolutivas de uma organização devem ser considerados ainda outras questões, como as relações de interdependência ao nível da economia, da política, da defesa, da afinidade cultural, das concepções ideológicas, da intensidade, da tendência auto-afirmativa nacional manifestada a nível interno dos Estados-membros. Considerando o grau de integração atingido com fundamento nos critérios acima mencionados, observa-se que os órgãos da União Européia podem adotar determinadas disposições com aplicabilidade direta em nível interno dos Estados-membros, sobretudo quanto à política econômica, à administração da economia e à política monetária. As decisões elegidas pela maioria dos órgãos comunitários são, em medida considerável, vinculativas para todos os Estados-membros, existindo órgãos importantes que estão independentes de quaisquer instruções dos Estados-membros. O quadro institucional da União Européia é formado pelo Parlamento Europeu; pelo Conselho da União Européia; pela Comissão das Comunidades Européias; pelo Tribunal de Contas e pelo Tribunal de Justiça. O direito reinante na União Européia é o comunitário, que se distingue tanto do interno (nasce da vontade do Estado e por ele pode ser modificado ou revogado, não impondo nenhuma obrigação para os demais) quanto do internacional (disciplina no âmbito internacional os direitos e os deveres das pessoas internacionais). O direito comunitário objetiva, através de imposições de normas elaboradas por seus órgãos institucionais, adotar preceitos obrigatórios não só para os Estadosmembros, mas, por igual, aos seus nacionais, exatamente porque ocorreu a renúncia expressa dos Estados-membros ao exercício dessas competências.49 No direito comunitário, os órgãos criados pelos Estados agem em nome da Comunidade e não dos Estados-membros, sendo, portanto, um direito autônomo, com peculiaridades próprias. Sua finalidade é promover a interação entre os componentes dos órgãos supranacionais, eliminando as controvérsias e estabelecendo uma supranacionalidade extensiva a todo nacional dos 49) LOBO, Maria Teresa do Cárcomo. Manual de Direito Comunitário: a ordem jurídica da União Européia. Curitiba: Juruá, 2004. p. 90-115. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 153 Estados integrantes da comunidade. Assim, os preceitos do direito comunitário se incorporam automaticamente no ordenamento jurídico doméstico de cada Estado-membro, sem necessidade de nenhuma norma de direito interno que as adote. Também cabe lembrar que o direito comunitário tem primazia sobre o direito interno, conforme prescrevem, implicitamente, os Tratados constituintes da Comunidade. É importante frisar que as organizações internacionais não dispõem de território, nem de população, porém a União Européia, em seus tratados, consideram os cidadãos dos Estados-membros do bloco como sujeitos a uma jurisdição supranacional, ao menos no que se refere a uma parte das competências estatais que são transferidas à ordem jurídica comunitária. Essa peculiaridade leva à construção de uma estrutura que propicia, em alguns casos, a demanda direta de um particular junto a organismos europeus, o quê inova toda uma perspectiva, já estruturada, entre a população e os organismos internacionais. Por tudo isso, afirma-se que a União Européia deflagra o poder de suas organizações supranacionais em relação aos Estados-membros que concordaram em se submeter a elas. 7 CONCLUSÃO Posteriormente à Segunda Guerra Mundial, com a aproximação dos Estados e devido ao temor, sob a estrutura do Estado de Bem-Estar Social, multiplicaramse as organizações internacionais, que pela primeira vez, foram dotadas de um sistema de sanção incipiente, com poder regulamentar e personalidade jurídica de direito internacional. Na realidade, a proliferação de organismos internacionais se deu pelo fato de não existir nenhum órgão superior de poder a que todos os entes estatais pudessem se submeter. Por causa disso, os Estados se integraram em uma ordem jurídica, formando as organizações internacionais as quais possuem um órgão de poder, resultando em uma modificação nos relacionamentos das instituições estatais. Ou seja, após a Segunda Guerra Mundial, devido à intensificação das relações entre os Estados, não era mais possível se satisfazer ao enorme volume de tarefas de ordenamento e harmonização supranacionais, sendo indispensável à formulação de instituições que defendessem os interesses comuns, coordenassem os interesses divergentes e harmonizassem os interesses antagônicos cuja envergadura ultrapassava os Estados singulares. A necessidade da manutenção da paz na comunidade internacional também foi um fator determinante para o surgimento das entidades internacionais, pois algumas delas evitam os possíveis litígios beliculosos entre dois ou mais Estados. O tratado institutivo das entidades internacionais atribui-lhes as seguintes competências: normativa, operacional, impositiva e de controle. Além disso, como para a consecução das finalidades fundamentais de uma organização internacional exige-se a utilização de meios imprescindíveis, é necessário que essa entidade seja dotada de personalidade jurídica. Por causa dessa personalidade, 154 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 as organizações internacionais possuem direitos e deveres que devem depender dos seus objetivos e funções, enunciados ou implícitos em seu ato constitutivo e desenvolvidos na prática. Certamente, os organismos internacionais possuem vários poderes que, ao serem exercidos, inclusive, criam por meio de deliberações normas internacionais que às vezes terão valor obrigatório e às vezes não o terão. Em suma, conforme os motivos que fundamentam o surgimento das organizações internacionais, constata-se que elas se originaram com poder político, face à complexidade das relações entre os Estados e não adquiriram tal poder ao longo do século XX. Para averiguar essa afirmação, foi essencial a análise de algumas entidades internacionais, como a Organização Comunitária, o FMI, o Banco Mundial, o BID, a ONU, a OCDE. A Organização Comunitária, como, por exemplo, a União Européia, é formada de organizações supranacionais. O que a diferencia é o fato de ela ter a faculdade de adotar disposições diretamente vinculativas em nível interno dos Estados-membros. Isso significa que tal organização deflagra o poder de seus organismos supranacionais em relação aos Estados-membros que concordaram em se submeter a eles. Já o FMI, o Banco Mundial, o BID, a ONU, a OCDE exercem, desde a sua origem e de várias maneiras, os seus poderes, influenciando os entes estatais. Ademais, verifica-se que, à exceção da ONU, que é dirigida pela pentarquia a qual forma o Conselho de Segurança, os outros organismos possuem autonomia, ou seja, não são controlados, nem totalmente manipulados pelos Estados mais fortes, mas são regidos pelos seus próprios interesses, ainda que, algumas vezes, deixam-se influenciar por aqueles. REFERÊNCIAS ARAUJO, Luis Ivani de Amorim. Das organizações internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2002. BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. Oxford: Oxford University Press, 1990. CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. CORPORATE social responsability: partners for progress. Disponível em: www. oecd.org/ document/37/0,2340,em _2649 _201185 _2429925 _ 1 _1 _ 1_ 1,00.html. Acesso em: 10 set. 2007. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitucionnel. T.I. 3. ed. 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