PAI CALVO, a aldeia fantasma a merecer outro destino!
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PAI CALVO, a aldeia fantasma a merecer outro destino!
10 • 02 DE SETEMBRO DE 2015 Armamar PAI CALVO, a aldeia fantasma a merecer outro destino! As pedras, os caminhos no seu silêncio contam histórias daqueles que as trabalharam, daqueles que os calcorrearam na labuta do seu dia-a-dia. Pai Calvo, aldeia de xisto, hoje,aldeia fantasma que aos poucos foi sendo abandonada, conservando dentro das suas paredes, grande parte em ruinas, uma parte importante da história do Douro. Terra de “vinho bom”, terra vermelha e de saibro amarelo onde o funcho manso cresce, sinais da existência de um terreno adequado a produzir um vinho de qualidade, segundo afirma Manuel Pinto Mendes. Terra dura, inóspita, de clima muito semelhante ao tropical, onde os jornaleiros sem grandes ferramentas para a desbravar, plantavam as videiras nas pilheiras ou pilheiros. Os pilheiros ou copeiras eram buracos feitos nas paredes que iam tampando com terra, onde plantavam videiras da vide nacional que não eram enxertadas, ou outras castas conforme o que havia na época. Ao descermos do Marmelal, terra pertencente à União de Freguesias Vila Seca Santo Adrião acompanhados por Manuel Pinto Mendes e José Pinto em direção à aldeia de Pai Calvo entramos no mundo do fantástico, onde a história e a fantasia como se interligam, verificamos que a aldeia de xisto já tem dificuldade em se diferenciar da paisagem, confundindo-se com ela, esperamos nós que não seja como um abraço mortal. A vegetação já estendeu os seus braços poderosos envolvendo algumas das construções, quando ninguém lhe faz frente, tomando por seu, aquilo que deveria ser do homem, da sua história, da sua memória. Pequena aldeia com qua- tro casas de habitação, seis lagares e cinco armazéns onde era guardado o vinho que se produzia em Pai Calvo. Manuel Mendes referiu que nos seis lagares eram produzidos cerca de setenta pipas de vinho fino, tendo o maior tonel a capacidade de sete mil e setecentos litros. As dificuldades do caminho de acesso à aldeia, estreito, bastante pedregoso obrigavam os jornaleiros,na altura das vindimas a ficarem a noite em Pai Calvo, a dormir em enxergas, com as condições possíveis da altura. Nessa altura do ano, numa autêntica romaria, aquela gente pobre, de mãos calejadas pelo trabalho com as suas crianças e poucos haveres conjuntamente com os animais deslocavam-se para Pai Calvo e acomodavam-se naquelas casas pejadas de histórias. Os trabalhos agrícolas prologavam-se pela noite fora com a pisa do vinho que poderia ocorrer num dos seis lagares da aldeia. Ao raiar do dia era hora de despertar. Lavava-se a cara com a pouca água existente que se ia buscar a uma mina, um pouco distante da aldeia. Então era hora do matabicho, ou de enganar o estomago com uns figos, aguardente ou um pouco de broa acompanhada de uma sardinha salgada, ou para outros bebericavam um pouco de café de cevada. A aldeia de Pai Calvo poderia ser o autêntico museu do Douro, do Douro real, o Douro agreste dos jornaleiros que o construíram e o moldaram. Eles sim, os autênticos obreiros deste Douro, hoje património mundial. Os jornaleiros, sem nada de seu, muitas vezes as suas posses resumiam-se a quase nada, e a única coisa que tinham para “vender” era o seu trabalho, o seu esforço, o seu suor pago à míngua com jornas miseráveis que pouco davam para comprar o pão para subsistir. A sua labuta começava cedo, desde o nascer do sol e prolongava-se até ao por do sol, situação que na altura das vindimas se podia prolongar pela noite dentro. Viviam em tugúrios sem grandes condições assemelhando-se aos animais, repousando os seus corpos cansados em tarimbas, tendo a palha por colchão, ou mesmo o chão coberto de palha a servir de aconchego, cobertos por mantas de burel. O trabalho nas jeiras começava ainda no dealbar da mocidade com 12 e 14 anos e prologava-se até a velhice, já curvados e em grande esforço e sofrimento iam cumprindo as suas funções para ganhar em troca buía as diferentes categorias nunca se tinham deslocado ao Douro, e sobretudo a Pai Calvo. A situação manteve-se nos anos seguintes com as classificações atribuídas, sempre contestadas, mas mesmo assim, esta distinção confirma a qualidade do vinho produzido. Porém, a filoxera deu-lhe o golpe mortal ao esvair das videiras a seiva que as sustentavam e as frutificavam tornando aqueles montes tristes, sem vida, transformando-os em mortórios. Pai Calvo tornou-se cada vez mais agreste, invadido pela morte, pela tristeza, pela dor de quem tudo perde, e vê ruir num simples inseto o seu sonho e ambi- Monteiro na sua obra “Armamar Terra e Gente”, o nome pai será derivado de Pelaio ou Paio e a evolução linguística explicaria o Pay ou o Pai. Enquanto a Calvo, é tido por consenso que durante o repovoamento, aquando da reconquista cristã estas terras foram desbravadas por pessoa oriundas da Galiza, e segundo Monteiro, dois irmãos galegos Martin e Ero Calvo desbravaram estes terrenos deixando a sua herança através do nome. Outra explicação é do local ser um lugar isolado e conforme outras terras do país que tem de nome pai. Será? A vida dura da aldeia, agravada pela sua exposi- “Pai Calvo ainda procurou enganar o destino, por altura dos anos noventa quando a possível gravação de um filme Herança de Pedra, tendo por base um dos livros de Alves Redol sobre o Douro deu nova vida a aldeia, mas a falência da produtora pôs fim ao sonho” uma retribuição de miséria. Que melhor que aldeia de Pai Calvo para mostrar a “verdade” da luta diária travada pelos jornaleiros que deram sentido ao Douro, dando “corpo e alma” a um dos melhores vinhos do mundo. De Pai Calvo encontramos, no século XVII referências à Quinta de Pai Calvo devido à sua qualidade dos vinhos produzidos. Nas demarcações pombalinas, a Quinta do Pai Calvo encontrava-se na zona de provável feitoria, na época era considerado o segundo grau na escala de qualidade, a seguir aos vinhos de feitoria. Classificação que mereceu, na altura, dos agricultores e proprietários do Marmelal reparos e veementes protestos, porque consideravam o vinho produzido merecedor de outra distinção. Queixavam-se os agricultores que quem atri- ção. Do vinho bom restavam memórias, e a partir dessa altura a Quinta de Pai Calvo entrou em declínio e como consequência a aldeia. Sem videiras, sem uvas, sem trabalho, a aldeia perdeu a sua alma, perdeu a razão da sua existência que era de apoio as vinhas da Quinta de Pai Calvo. A origem do nome de Pai Calvo não é muito clara. O povo, na sua simplicidade procura explicações simples e objetivas, desprovidas de grandes teorias. Para alguns, a origem do nome estaria na cabeça de um ancião que na sua calvície e a posse daqueles terrenos deram nome àquela terra. Seria assim muito simples explicar, e neste caso estaria o mistério desvendado. Mas pensamos que não! Pensamos que a explicação não é assim tão simples. Segundo Gonçalves ção solar virada a nascente e a sul era obra hercúlea, resistir ao verão, sobretudo quando implicava esforço físico. A água havia, mas era um pouco afastada da aldeia, proveniente de uma pequena mina, obrigando os homens e mulheres irem à sua procura para as suas lides. Num clima inóspito, mas favorável à produção de um vinho de excelente qualidade, os moradores da aldeia de Pai Calvo estavam como afastados do mundo, somente mantinham contato por um caminho estreito e pedregoso, por onde passavam os carros de bois que transportavam as pipas para o Douro, distante alguns quilómetros da aldeia. Isolados, viviam para o trabalho, onde os dias passavam repetitivos, bastantes duros. Antes de a vinha invadir aqueles terrenos, a terra destinava-se a culturas cerealíferas, no- meadamente o centeio e a cevada. Explica-se por isso que aquelas terras denominavam-se em primeiro lugar por eiras de Pai Calvo, onde os cereais se estendiam ao sol para depois serem debulhados. Domingos Alvão, por alturas dos anos trinta do século XX registou com a sua máquina fotográfica, o abandono da aldeia em consequência da filoxera, conforme já foi referenciado. Mais tarde entre as décadas de cinquenta a setenta do mesmo século, três famílias bastante pobres viveram nas casas da aldeia retirando daqueles terrenos algum sustento para sobreviverem. Vida de miséria, desabafou Manuel Mendes, porque quando tiveram oportunidade de emigrar, partiram sem nunca mais voltarem à aldeia. Pai Calvo ainda procurou enganar o destino, por altura dos anos noventa quando a possível gravação de um filme Herança de Pedra, tendo por base um dos livros de Alves Redol sobre o Douro deu nova vida a aldeia, mas a falência da produtora pôs fim ao sonho, deixando José Pinto sem umas centenas de contos de reis pelos investimentos realizados e sobretudo tomado pela desilusão de ver fechar mais uma porta de esperança na recuperação da aldeia. A aldeia de Pai Calvo merecia uma segunda oportunidade, talvez de índole museológica com a criação de um centro interpretativo do Douro, nomeadamente no que concerne ao retrato do trabalho dos jornaleiros, e do seu “sofrer” diário que moldou estas terras. As vinhas em redor da aldeia já ganharam vida, já produzem outra vez o melhor vinho do mundo, agora, só falta fazer reviver a aldeia de Pai Calvo. J. Calheiros