roseana cavalcanti da cunha - violência sexual infanto
Transcrição
roseana cavalcanti da cunha - violência sexual infanto
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ROSEANA CAVALCANTI DA CUNHA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: horror, indignação e enfrentamento João Pessoa-PB 2007 1 ROSEANA CAVALCANTI DA CUNHA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: horror, indignação e enfrentamento João Pessoa-PB 2007 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ROSEANA CAVALCANTI DA CUNHA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: horror, indignação e enfrentamento Dissertação apresentada ao Mestrado em Educação da UFPB, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. Charliton José dos Santos Machado. João Pessoa 2007 3 C 972v Cunha, Roseana Cavalcanti da Violência Sexual Infanto-Juvenil: horror, indignação e enfrentamento / Roseana Cavalcanti da Cunha. – João Pessoa, 2007. 129p. Orientador: Charliton José dos Santos Machado Dissertação (mestrado) – UFPB/CE 1. Direitos Humanos. 2. Violência Sexual infanto-juvenil. UFPB/BC CDU: 342.7 (043) 4 5 Dedicatória A todas as crianças e adolescentes violentadas sexualmente deste país, que precisam retirar de si, da forma mais visceral, num grito, o que sobrou de suas infâncias, sobreviverem para se implicarem na reinvenção do seu viver. 6 Agradecimentos À conspiração universal que na elegância e sutileza do seu movimento comunga com o meu desejo de saber, na busca incessante de ser gente; Aos meus pais Luis e Adelaide, pelo que sou; Aos meus irmãos Marcus, Marcelo, Rosana e Roseli, pelo esteio fraterno; Ao meu companheiro de vida Roberto, pelo apoio incondicional; Às minhas filhas Jessica e Raissa, razão do meu viver; Ao orientador Charliton pela leveza e respeito na condução da orientação; À professora Jordeana Davi pela valiosa contribuição nas dúvidas que lhes foram demandadas; Aos professores Alder Júlio e Adelaide Dias pelas orientações no processo de qualificação; À turma 24 do Doutorado pela acolhida carinhosa no PPGE; À minha turma de Mestrado que na hibridez de sua constituição proporcionou uma rica interlocução com a diversidade; Aos Professores do PPGE, pelos subsídios teórico-metodológico durante o curso de mestrado; Ao amigo Agostinho pela afinidade e preciosidade das nossas conversas nessa construção; À amiga Argentina pela partilha com a dor do tema no Filme Anjos do Sol; À amiga Neide Miele pela credibilidade e confiança que me depositou; Às escolas pesquisadas, lugares de saberes em construção; Ao Grupo de Estudos Paulo Freire (GESPAUF/Campina Grande/PB), pela valorosa construção do saber freireano; Ao Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisas-Recife/PE, pela relação afetiva com os contemporâneos de Paulo Freire e Paulo Rosas; Ao Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR), pela proximidade com a extensão popular e a função social da Universidade; À Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) - Delegação Paraíba, meu lugar de referência; Às pessoas não citadas e que contribuíram de forma indireta com os seus relatos, suas experiências e conversas para a constituição deste trabalho. 7 “A criança é o princípio sem fim, o fim da criança é o princípio do fim. Quando uma sociedade deixa matar as crianças é porque começou seu suicídio como sociedade. Quando não as ama é porque deixou de se reconhecer como humanidade. Afinal, a criança é o que fui em mim e em meus filhos, enquanto eu e humanidade. Ela como princípio é promessa de tudo. É minha obra livre de mim. Se não vejo na criança, uma criança, é porque alguém a violentou antes e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado. Mas essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida; essa que vive a solidão das noites sem gente por perto, é um grito, é um espanto. Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro, porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós”. Herbert de Souza (Betinho). In: “Criança é coisa séria”. Rio de Janeiro: AMAIS Livraria e Editora, 1991. 8 Resumo Esta dissertação analisa a violência sexual infanto-juvenil, tema contemporâneo, multifacetado, expressão histórico-social engendrada nas relações cotidianas. Considerado um fenômeno universal, como também, uma violação aos Direitos Humanos, possui raízes culturais, históricas, sociais e psíquicas. Neste sentido, o estudo fundamentou-se nas reflexões teóricas de Faleiros, Leal e Pilotti, particularmente, nas pesquisas desenvolvidas por estes estudiosos acerca da violência sexual infanto-juvenil na sociedade brasileira do século XX. Desenvolvido na abordagem metodológica qualitativa, analisou o lugar na educação no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, através de entrevistas realizadas com 22 educadores, em 3 escolas do município de Campina Grande-PB. Na pesquisa, buscou-se identificar as concepções e práticas dos educadores, a partir das categorias abuso e exploração sexual, fundamentais para a compreensão da violência sexual, da relação entre a política educacional e as ações cotidianas da escola com esta problemática e as maneiras dos educadores em lidar com tais questionamentos. Os resultados permitiram identificar na pesquisa, as dificuldades em relacionar as práticas educativas cotidianas com as questões macroestruturais que aparecem nas relações e desigualdades sociais. Como também, o próprio reconhecimento dos educadores entrevistados acerca da necessidade de formação para lidar com a questão, através de novas formas de intervenção. Embora reconhecendo que a escola deve ter um papel decisivo no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, os desafios para a construção de um processo educacional reflexivo, participativo e dialogado encontra limites que precisam ser enfrentados. A responsabilidade social da educação em relação à complexidade deste tema, faz emergir a reflexão sobre o caráter protetivo e interventivo na construção da cidadania de crianças e adolescentes em situação de violência sexual. Palavras-chave: Violência Sexual; Educação; Criança; Adolescente. 9 Abstract This dissertation analyses sexual violence among children and adolescents, which is a contemporary issue as well as a historic and social expression of nowadays relations. Considered as a universal phenomena and a violation of the Human Rights, it is influenced by cultural, historic, social and psychological factors. In this sense, this study was based on the theoretical reflections of Faleiros, Leal e Pilotti, especially on the researches developed by these authors about sexual violence among children and adolescents in the Brazilian society of the 20th century. Developed in a qualitative approach, this work analysed the role of education against sexual violence suffered by children and adolescents through interviews with 22 educators, in 3 schools of the city of Campina Grande-PB. The research aimed at identifying the conceptions and actions of such educators having as a starting point the categories of sexual abuse, being these fundamental toward the comprehension of sexual violence. Also, the relation between educational policies and the everyday actions at school facing this issue and the way the educators deal with it were considered. The results enabled the identification of the difficulties in relating the everyday educative actions with macro-structural issues, which are present in the relations of social inequalities, as well as the acknowledgement of the interviewed educators concerning the necessity of a formal instruction to deal with the issue, through new ways of intervention. Even admitting that school ought to play a definite role in cracking sexual violence against children and adolescents, the challenges in constructing a reflexive, participative and dialogued process encounters limits which have to be dealt with. The social responsibility of education in relation to the complexity of this theme arouses reflection on the protective and interventive feature in the formation of the citizenship of children and adolescents harassed by sexual violence. Key-words: Sexual violence; education; children; adolescent. 10 LISTA DE SIGLAS ABRAPIA Associação Brasileira de Apoio e Proteção à Infância e Adolescência ANDI Agência Nacional de Notícias da Infância CEAI Centro Educacional de Atividades Integradas CEARAS Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual CECRIA Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes CEDECA Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan CNAS Conselho Nacional de Assistência Social CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CPI Comissão Parlamentar de Inquérito CPMI Comissão Parlamentar Mista de Inquérito DOU Diário Oficial da União ECA Estatuto da Criança e do Adolescente ECPAT End Child Prostitution in Asian Tourism EJA Educação de Jovens e Adultos EMBRATUR Instituto Brasileiro de Turismo FEBEM Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor FÓRUM DCA Fórum da Criança e do Adolescente FUNABEM Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor FURNE Fundação Universitária de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INN Instituto Interamericano Del Niño INPS Instituto Nacional de Previdência Social LBA Legião Brasileira de Assistência LOAS Lei Orgânica da Assistência Social LOPS Lei Orgânica da Previdência Social MEC Ministério da Educação e Cultura NGO Grupo para a Convenção sobre os Direitos da Criança NUPECIJ Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-Juvenil OEA Organização dos Estados Americanos OIT Organização Internacional do Trabalho OMS Organização Mundial de Saúde OMT Organização Mundial de Turismo 11 ONGS Organizações Não-Governamentais ONU Organização das Nações Unidas PAIR Programa de Ações Integradas e Referenciais no Enfrentamento da Violência Sexual Infanto Juvenil no Território Brasileiro PESTRAF Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil PMCG Prefeitura Municipal de Campina Grande PNBEM Política Nacional de Bem-Estar do Menor PROAMA Programa de Assistência à Mãe Adolescente PROAMEV Pró-adolescente, mulher, espaço e vida RECRIA Rede de Informações sobre a Criança e o Adolescente SAM Serviço de Assistência ao Menor SEMAS Secretaria Municipal de Assistência Social SSP Secretaria de Segurança Pública UEPB Universidade Estadual da Paraíba UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância WCF World Childhood Foudation 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................ 14 CAPÍTULO I POLÍTICAS SOCIAIS PARA A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA.......................... 26 1.1 Notas introdutórias acerca das políticas sociais no contexto brasileiro................ 27 1.2 As Políticas Sociais voltadas para a infância no Brasil da repressão ao direito.......................................................................................................................... 36 1.3 A Política Educacional no contexto brasileiro...................................................... 41 1.4 As Políticas de combate a violência sexual contra crianças e adolescentes: processo de lutas e institucionalização....................................................................... 52 CAPÍTULO II VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: considerações histórica, ética e política............................................................................................................................... 60 2.1 Violência: conceito, história e categorização........................................................ 61 2.2 Violência............................................................................................................... 61 2.3 Sexualidade........................................................................................................... 64 2.4 Violência Sexual infanto-juvenil.......................................................................... 68 2.5 O Abuso sexual..................................................................................................... 71 2.6 A Exploração sexual.............................................................................................. 80 CAPÍTULO III ABUSO E EXPLORAÇAO SEXUAL: afinal de que se trata?................................... 91 3.1 O contexto de Campina Grande............................................................................ 92 3.2 O perfil dos Educadores........................................................................................ 98 3.3 Uma interpretação da concepção dos educadores do município de Campina Grande e sua interlocução com o diálogo freireano................................................... 105 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 122 REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 126 APÊNDICES ANEXOS 13 INTRODUÇÃO 14 Da construção do objeto aos passos iniciais da pesquisa A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno colocado em pauta na contemporaneidade; ocorre em escala mundial, sendo abordado nesta pesquisa no contexto da educação. Este tipo de violência, considerada um fenômeno universal como também uma violação aos Direitos Humanos, possui raízes culturais, históricas, sociais e psíquicas. Na sua dinâmica as relações são permeadas pela chantagem, sedução, objetalização de crianças e adolescentes, prevalecendo à assimetria como relações de poder. O interesse por este tema partiu da experiência profissional, bem como das inquietações mediante as respostas à problemática da infância e adolescência no tocante à violência sexual. A minha1 aproximação com a temática deu-se, através da inserção no Programa de Assistência Multiprofissional ao Adolescente (PROAMA), a partir dos anos 90, no município de Campina Grande-PB, desenvolvendo uma educação não formal, por conta de uma proposta de orientação específica e não convencional. O trabalho consistia no acompanhamento psicossocial às adolescentes no período da gravidez, parto e puerpério num enfoque social, incluindo a mãe, o bebê e a participação do pai nesse processo. Experiência marcante em minha vida na convivência com a imprevisibilidade, em que o inesperado das tensões, ansiedades, desinformação, medos e incertezas apareciam com o não dito e com a surpresa, mas também, com toda a herança cultural e transgeracional presentes nas falas por força dos mitos e preconceitos. Esta foi uma experiência profissional no campo dos Direitos Humanos, trabalhando com o direito à vida, e exercício de uma prática educativa problematizadora diante das contingências. Ainda nessa perspectiva, tive a oportunidade de trabalhar com a educação popular em 20 municípios do Estado da Paraíba, no período de 1991 a 1994, com grupos diversos: profissionais da saúde, grupos de mulheres, adolescentes, professores e alunos da rede pública de ensino na perspectiva de socialização dos direitos. Esta experiência despertou-me para a necessidade de construir o conhecimento, a partir do contexto, tendo o diálogo como instrumento de (des) construção da realidade. Fez-me aproximar do saber popular, 1 No decurso desta introdução, serão realizadas formas de exposição em dois tempos verbais, ora na primeira pessoa do singular, ora na terceira pessoa do singular. No primeiro caso, sempre que me referir às questões de caráter pessoal. No segundo caso, opto pela impessoalidade da terceira pessoa do singular resguardando o rigor acadêmico. 15 reconhecendo o seu valioso agalma2, construtor de um poder ético que poderá garantir o questionamento do instituído. Na educação formal, até o ano 2000, desenvolvia um trabalho de natureza pedagógica, com a questão da sexualidade, acreditando que a mesma estava posta a serviço da felicidade humana, desde que exercida com liberdade e responsabilidade. Tentava trazer a discussão da sexualidade para o campo da educação, trocando experiências com os educadores. A partir desse momento, percebi as dificuldades relacionadas ao preconceito, fazendo com que o ato educativo fosse denunciador da história singular de cada educador. No Programa de atendimento às vítimas de abuso e exploração sexual, no período de 2001 a 2005, um desafio se fazia presente, o enfrentamento da transgressão do direito à vida e ao desenvolvimento da sexualidade. Esse programa se constituiu numa das primeiras iniciativas do Estado, direcionada para esta problemática específica, que articula as áreas da justiça, educação, saúde e assistência social. Contudo, trata-se, ainda, de iniciativa tímida, considerando a gravidade da realidade brasileira nas suas características regionais. Estes desafios residem na articulação institucional do arcabouço de proteção integral, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesse sentido, a experiência vivenciada no atendimento à crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual, desde o acolhimento, a escuta, o acompanhamento até os encaminhamentos familiares, sociais e jurídicos, alertava-me para a possibilidade de suscitar um trabalho junto ao segmento de crianças e adolescentes que os orientassem no sentido de poder usar sua assertividade junto a um possível abusador ou explorador. Essas reflexões levaram-me a desenvolver um estudo monográfico acerca da relação entre o Programa de atendimento às vítimas de violência sexual contra crianças e adolescentes (Sentinela) e a escola, em 2002 na UFCG. Este estudo teve o objetivo de discutir as relações entre a escola e o programa de atendimento, tendo em vista o seu rebatimento na dinâmica escolar das crianças e adolescentes em sala de aula como meio formador de subjetividades. A realidade encontrada nas escolas com profissionais capacitados, inclusive, pósgraduados, era a dificuldade para discutir e enfrentar as questões complexas da sexualidade com crianças e adolescentes. A pesquisa apontou para a possibilidade da interação entre a escola e um programa social numa perspectiva de prevenção, para a necessidade de capacitação continuada não só dos profissionais que atuam diretamente no atendimento como médicos, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, professores, mas também, de 2 Termo usado por Alcibíades para designar o precioso que o ingrato envoltório de Sócrates encerra (LACAN, 1967, p.257). 16 educação para todos os cidadãos e para a reflexão no sentido de dar respostas para as situações decorrentes das mudanças na sociedade. No intuito de ampliar esse debate, com a preocupação em repensar as políticas públicas e as práticas educativas, propus esta pesquisa ao programa de pós-graduação em educação, na linha de pesquisa de Políticas Públicas e práticas educativas aprovada em 2005. Entendo que a formação do homem como uma tarefa social não se centraliza no estudante ou no professor, mas também, no seu meio social, na sua cultura. E apresentava uma questão: como a educação poderia contribuir para a discussão do enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes sendo um tema pertinente à sua realidade? A partir deste questionamento, esta investigação teve como objetivo geral analisar o lugar na educação no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, evidenciando o município de Campina Grande-PB. Tomou-se como eixo norteador para as reflexões e conseqüentes respostas às políticas existentes e a implicação da educação para confrontar a problemática da violência sexual contra crianças e adolescentes. Os objetivos específicos foram: 1) conhecer a concepção dos educadores acerca do conceito de abuso e exploração sexual; 2) discorrer sobre a intersetorialidade das propostas elaboradas para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes; 3) assinalar a importância da educação no processo de implicação com o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes; 4) relacionar a política educacional e às ações construídas no cotidiano da escola para o enfrentamento desta problemática; 5) examinar as dificuldades encontradas pelos educadores para a efetivação da política de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes no município. Diante disto, as questões que se apresentavam eram as seguintes: Qual é o lugar da educação no enfrentamento deste fenômeno? Que concepção os educadores têm a respeito das categorias fundamentais para a compreensão da violência sexual? Qual a relação entre as ações cotidianas da escola com esta problemática? Que dificuldades os educadores encontram em sua prática para lidar com esses questionamentos? Para tanto, tomou-se como referencial teórico autores brasileiros estudiosos da temática da violência sexual infanto-juvenil como Leal (2002), Faleiros (1998), Azevedo & Guerra (2000), Saffioti (1997), que apontam a preocupação com esta realidade, numa produção bibliográfica recente, surgindo na metade dos anos de 1980 e sendo intensificada no início dos anos de 1990, com a mobilização de setores da sociedade civil, através de algumas organizações não-governamentais. Também baseou-se nas reflexões de Volnovich (2005), 17 Gabel (1997), Rizzini & Pilotti (1995), Áries (1981), entre outros. Ainda valeu-se de documentos oficiais, como Leis, Decretos, Relatórios e Planos. Privilegiou-se estes autores por entender que trazem à tona a realidade brasileira. Na produção teórica de Faleiros, enfatizando o aspecto social, na ótica de Leal, abordou-se o mercado enquanto inferidor da exploração sexual, enquanto que Azevedo & Guerra tratam a questão numa dimensão mais psicológica e Saffioti apontando a questão de gênero. Os outros autores referidos apontam experiências interessantes como Volnovich, mostrando a importância da reflexão sobre as práticas institucionalizadas no Brasil e Argentina e sua interface entre o político-institucional, o jurídico, o psicológico e social nos casos de abuso sexual, Gabel com a experiência na França e sua interlocução com a escola, Áries na trajetória histórica sobre a infância, Rizzini e Pilloti com uma análise histórica das políticas sociais dirigidas à infância e adolescência na América Latina e no Brasil, desde o século XVI. Ao abordar o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes, colocou-se em evidência um processo de lutas ideológicas, cultural e econômica ao longo de todo o século XX. Chega-se até o início da década de 1990, quando “adentrou a agenda brasileira como resultado das CPIs do extermínio de meninos e meninas de rua em 1991; da violência contra a mulher em 1992; da CPI da prostituição infanto-juvenil em 1993” (LEAL, 2002, p. 17), trazendo uma visão de desconhecimento do fenômeno antes desse período. Leal (2002) aponta que o enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes pela sociedade, família e o Estado, requer o reconhecimento da hipocrisia das relações sociais marcadas pela violência histórico-estrutural e multicultural como seus fatores de expansão, da falência civilizatória e da dificuldade no caminho de cumprimento dos dispositivos legais propostos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA define com absoluta prioridade, a garantia de proteção integral à crianças e adolescentes, sendo legitimado após um processo de mobilização da sociedade civil. Conforme Rizzini (1995), os postulados da Declaração Universal dos Direitos da Criança e a inclusão na Constituição Federal de 1988, do artigo 227, versa sobre os direitos universais da pessoa humana com a seguinte redação: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 2000, art. 227). 18 Este artigo da Constituição Federal é referendado no ECA, em seu artigo 4o, instrumento legal que vem refletir as mudanças na contemporaneidade ao conceber crianças e adolescentes como sujeito de direitos. Segmento este com pouca visibilidade na produção acadêmica, em função do recente reconhecimento histórico da concepção de infância e a preocupação com a educação (século XV e XVI), conforme indica Áries (1981, p.171), “o colégio tornou-se então um instrumento para a educação da infância e da juventude em geral [...] uma instituição essencial da sociedade” Assim, a educação pública, assegurada no artigo 205 da Constituição Federal, é preconizada no artigo 53 do ECA, afirmando que a criança e o adolescente têm direito ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Este entendimento implica igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, mudança na relação educador-educando, direito de contestar critérios avaliativos, direito de organização e participação em entidades estudantis e acesso à escola pública e gratuita. De acordo com Ariés (1981), só a partir do século XVIII, a infância assume um lugar central dentro da família, sendo as crianças, motivo de preocupação. Mas a infância enquanto categoria de análise estrutural é considerada a-histórica por Pilotti (1995), quando aponta o interesse dos estudos sobre a infância do ponto de vista de seu desenvolvimento individual, descuidando dos aspectos históricos, sociais e culturais que exercem influência nas condições de vida e mudanças na sociedade. Já a adolescência passou a ser melhor distinguida, segundo Becker (1985), com a ascensão da burguesia como classe dominante, a mudança na estrutura escolar, com a formação primária e secundária, estabelecendo-se uma relação entre idade e classe escolar. Após a Segunda Guerra Mundial, passou a ser foco de atenção com a influência nos anos de 1960, do movimento da contracultura. Para dialogar com estes estudiosos, propôs-se, neste estudo, uma interlocução com a teoria freireana. Este tema, sobre o qual Paulo Freire não faz qualquer alusão, não invalida que sua base teórica e metodológica seja utilizada para pesquisá-lo. Um ponto importante tangenciado pelo autor encontra-se na mediação pela categoria dialógica, numa perspectiva de transformação social para o “ser mais” humano, na tentativa de superação das antinomias para a libertação da condição de opressão a que são submetidas crianças e adolescentes em situação de violência sexual, tendo em vista ser um fenômeno que envolve uma conspiração silenciosa na sociedade. 19 Tendo o diálogo como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos, que coloca a palavra como possibilidade de encontro, de anúncio e de denúncia, de desvelamento, do dizer de si mesmo, como elemento fundante na relação com o saber, abre-se a possibilidade de construção de uma postura democrática nas relações em detrimento de uma postura de poder que se concretiza nas relações assim caracterizadas. Neste sentido, a contribuição freireana (1996) vem na perspectiva crítica da percepção das situações de violência e injustiça que envolve a realidade concreta de quem sofre a violência, seja ela qual for, para a possibilidade do movimento de mudança na sociedade, tendo como premissa o diálogo que desafia a pessoa pensar-se como sujeito histórico social. A relevância desta pesquisa, que questiona problemas antigos da nossa sociedade, consistiu na reflexão acerca de um fenômeno imensurável pelas suas implicações subjetivas e o reconhecimento de que os lugares da educação não se restringem apenas à escola. Parte-se para um processo de democratização do conhecimento, podendo trazer contribuições na perspectiva de práticas educativas problematizadoras para o questionamento e a desconstrução do instituído, podendo mobilizar o sistema de garantia de direitos em prol de crianças e adolescentes para que se possa vislumbrar na sociedade contemporânea um movimento na busca incessante de políticas públicas universais e garantidoras de direitos. Nesse movimento pergunta-se pela escola cidadã, que para Gadotti (2000, p.48), passa pelo questionamento de “qual é o papel da educação, na formação para a cidadania e para o desenvolvimento”, quando ressalta as experiências concretas de renovação do ensino. Renovação que, originada no movimento de educação popular como uma alternativa ousada resulte numa escola de qualidade para todos. Sendo esta, “uma escola que, além de formar o aluno para o mercado de trabalho e para a vida em sociedade, seja capaz de formá-lo para o exercício pleno de seus direitos e deveres”, tendo como pressupostos o atendimento integral à criança e ao adolescente, a participação comunitária e gestão democrática e a ampliação da jornada escolar para alunos e professores de uma mesma escola. A escola cidadã seria a escola pública, estatal e democrática, tentando superar a crise paradigmática mundial com os desafios da universalização do ensino e de encontrar respostas teóricas para as transformações da contemporaneidade. Para tanto, tomou-se como concepção de cidadania o entendimento de Faleiros, quando aborda o imbricamento entre reprodução de força de trabalho e processo de acumulação inserida numa rede de cidadania: 20 A cidadania compreende o reconhecimento dos indivíduos e coletivos como sujeitos na construção da história, pela participação política, pelo exercício da autonomia e pela garantia que lhes é dada, num Estado de Direito, das condições e meios de vida tanto como direitos individuais (fruto do liberalismo), quanto como direitos políticos (liberalismo e democracia), e direitos sociais (socialismo e social-democracia), ao meio ambiente saudável e à bioética (FALEIROS, 2000, p. 43). Esta concepção permite perceber a necessidade de urgência, emergência e ampliação das políticas sociais, entre elas a educação, para que a sociedade tenha acesso à leitura de sua realidade, descobrindo caminhos nas escolhas para sua autonomia e liberdade. A contribuição deste estudo para o Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB dá-se pelo tema profundamente pertinente, trazendo a discussão sobre uma questão da contemporaneidade. Ainda, pela articulação da educação com um fenômeno que rebate na escola, mas, para o qual não há políticas públicas efetivas de formação para o seu enfrentamento, sendo as ações existentes recentes, incipientes e assistemáticas para um enfrentamento efetivo da problemática. Do ponto de vista social, aponta para a reflexão no desvendamento da realidade que, no contexto atual, insiste em negar os direitos sociais fundamentados como dever do Estado, especificamente do segmento da criança e do adolescente naturalizando posturas até então não consideradas atos de violência. Nesse sentido, entende-se como LEAL (2002, p. 28), ao afirmar que: A ousadia em denunciar este fenômeno ao Brasil e ao mundo não é apenas para demonstrar a crise da modernidade, da ética e da democracia, mas indicar que existe uma sociedade indignada com as respostas dos sistemas de produção e valores. Desenvolve-se, então, uma reflexão sobre a correlação de forças como forma de interferir no comprometimento da sociedade e do governo na busca de novas práticas políticas para superação deste problema. Considerações metodológicas Adotou-se, neste estudo, a abordagem qualitativa, entendendo a realidade de forma dinâmica, contraditória e sempre em movimento. Sem rechaçar os dados quantitativos que serviram de complementos para análise do real, potencializou-se uma análise mais abrangente do fenômeno, relacionando-o com os aspectos estruturais, buscando superar a dicotomia 21 epistemológica entre qualidade-quantidade. Como é sabido, “a pesquisa qualitativa rejeita a possibilidade de descoberta de leis sociais e está preocupada com a compreensão ou interpretação do fenômeno social, com base nas perspectivas dos atores por meio da participação em suas vidas” (TAYLOR & BOGDAN, 1984, apud SANTOS FILHO, 2002, p. 43). Minayo (2000, p. 22) indica que a metodologia “inclui as concepções teóricas de abordagem, o conjunto de técnicas que possibilitam a apreensão da realidade e também o potencial criativo do pesquisador”. O potencial criativo insubstituível que juntamente com a experiência poderão ter um papel fundamental na relativização dos instrumentais técnicos traz à tona a singularidade do trabalho, com a marca do autor, na perspectiva de correlacionar a realidade objetiva com a complexidade que o tema exige. Esta pesquisa se caracterizou como estudo de caso, que para Trivinos (1987) tem por objetivo aprofundar a análise de determinada realidade, dada à natureza e a abrangência do que é abordado, quanto pelo suporte teórico que serve de orientação para a observação do fenômeno e suas relações estruturais fundamentais. Ludke e André (1986, pp. 18-19) afirmam que: Os estudos de caso enfatizam a interpretação em contexto, em que a manifestação geral de um problema, as ações, as percepções, os comportamentos e as interações das pessoas devem ser relacionadas à situação específica onde ocorrem ou à problemática determinada a que estão ligados. O universo desta pesquisa foram escolas públicas do município de Campina GrandePB. Comumente, a pesquisa qualitativa não se baseia em critério numérico para garantir sua representatividade. Contudo, diante da amplitude de base investigativa, cento e trinta escolas, levou-se a definição de uma escolha de três escolas. O critério de eleição destas escolas deuse em função de terem sido planejadas com o objetivo de atenderem crianças e adolescentes em horário integral. Entende-se que a perspectiva do horário integral diminui o tempo de exposição de crianças e adolescentes aos riscos sociais impostos num contexto de vulnerabilidade numa sociedade violenta. Efetivamente, isto não vem ocorrendo, em função da grande demanda das comunidades, como também, a falta de recursos para manter este modelo de educação, em virtude da ausência de uma política educacional voltada para a perspectiva da integralidade. Assim, passam as mesmas a funcionarem com três turnos de alunos diferenciados, atendendo em média 600 alunos cada uma. O primeiro turno funciona 22 com o primeiro e segundo ciclo (1ª à 4ª série), o segundo turno com o terceiro e quarto ciclo (5ª à 8ª série), sendo o terceiro turno com as turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Localizadas em bairros distantes entre si, com três realidades diferenciadas, e uma estrutura física única que proporciona a socialização entre os alunos (refeitório, cozinha, pátio central para atividades coletivas, estruturado como um círculo facilitando a possibilidade de se trabalhar numa perspectiva dialogal com a comunidade escolar e salas de aula amplas). O prédio é circulado por uma área favorável a atividades recreativas, possuindo uma área coberta. Essas escolas são denominadas de Centro Educacional de Atividades Integradas (CEAI), sendo elas: 1) CENTRO EDUCACIONAL DE ATIVIDADES INTEGRADAS DR. JOÃO PEREIRA DE ASSIS, localizado no bairro do Catolé, considerado de classe média, atende aos alunos do bairro do Tambor, localidade próxima à escola, ocupada de forma desordenada e urbanizada recentemente pelo poder público municipal. 2) CENTRO EDUCACIONAL DE ATIVIDADES INTEGRADAS GOVERNADOR ANTONIO MARQUES DA SILVA MARIZ, localizado no antigo Velame, hoje, bairro Jardim Borborema, zona próxima ao distrito dos mecânicos, constituindo-se numa população exclusivamente de baixa renda ou sem nenhuma remuneração fixa, sendo o segmento social-alvo atendido crianças vivendo entre o viver da rua e na rua e oriundas de áreas circunvizinhas. 3) CENTRO EDUCACIONAL DE ATIVIDADES INTEGRADAS ELPÍDIO DE ALMEIDA, localizado no bairro da Ramadinha II, periferia do município, até bem pouco tempo conhecida como “Carandiru”, tendo suas salas de aulas numeradas pelos próprios alunos, como se fossem “celas”. A única das três, sem funcionamento no horário noturno, em função da impossibilidade de trabalho, com a crescente violência urbana, em especial o tráfico de drogas na comunidade. A escolha pela escola pública aconteceu, entre outras questões, em função da linha de pesquisa Políticas Públicas e Práticas Educativas vinculada ao PPGE/UFPB, entendendo que no âmbito das políticas educacionais, as mesmas são direcionadas para as escolas públicas como fins dos objetivos de atendimento à população. Esta vive a realidade da exclusão, evasão, repetência com a responsabilidade de formação dos “recursos humanos” para a estrutura de produção imposta pela lógica neoliberal. Um outro ponto importante nessa escolha é a gratuidade da escola pública, assumindo junto à população de baixa renda, seu papel político e social enquanto uma das mais importantes instituições produzidas pela sociedade, podendo assim, dentro do seu caráter contraditório, minar ou reproduzir o discurso 23 hegemônico, com a função estratégica de ser um dos agentes centrais de formação da pessoa humana e de atuação das ideologias. Os sujeitos desta pesquisa foram os educadores das escolas citadas, sendo escolhidos 22 educadores: 03 gestoras, 14 professores e 05 técnicos. Dentre os técnicos, 02 são orientadores educacionais, 02 são supervisoras e 01 é assistente social. Como instrumento e técnicas de coleta de dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada (apêndice A) conduzida por roteiro flexível, estabelecido anteriormente, com o uso do gravador, previamente autorizado e posteriormente transcritas. Segundo Triviños (1987, p.146), a técnica de entrevista: ao mesmo tempo que valoriza a presença do investigador, oferece todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação. Ainda recorreu-se aos documentos que normatizam os direitos da criança e do adolescente, tais como: Estatuto da Criança e do Adolescente; Plano Nacional, Estadual e Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual infanto juvenil (2000-2002); Plano Operativo de Enfrentamento à Exploração Sexual e Tráfico de Crianças e Adolescentes (2003); Guia Escolar do Ministério da Educação (2003), Plano Municipal de Educação, Relatórios do Programa Sentinela do município de Campina Grande-PB, Filmografia, dentre outros. O procedimento de tratamento e análise dos dados se respaldou na análise de conteúdo identificada na aproximação com o objeto de estudo, permitindo a interpretação das condutas, dos discursos e das práticas dos sujeitos envolvidos, inseridos num contexto social. Como afirma Bardin, apud Trivinos (1987, p. 160), trata-se de: um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, obterem indicadores quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens. Ainda conforme Bardin (1977, p.43) “a análise de conteúdo toma em consideração as significações”, trabalhando com a semântica, procurando conhecer o que está por trás das palavras. Assim, permite “na análise o contexto não só lingüístico, mas também histórico das expressões, conceitos etc” (TRIVINOS, 1987, p.163). A escolha por esse procedimento de análise deu-se pela complexidade da temática, entendendo que “do ponto de vista operacional, 24 a análise de conteúdo parte de uma literatura de primeiro plano para atingir um nível mais aprofundado: aquele que ultrapassa os significados manifestos” (MINAYO, 2000, p. 203). Considerações Éticas Esta pesquisa obedece às recomendações da Resolução no 196 do Conselho Nacional de Saúde, sendo submetida e aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba (CEP/CCS/UFPB), no dia 25/10/06, Termo de consentimento livre esclarecido dos sujeitos, mantendo o sigilo dos entrevistados, sendo identificados pela categoria profissional, que se encontra em (anexo B). Este trabalho está organizado em três capítulos e considerações finais. Sua construção foi pensada tendo como ponto de partida o problema da pesquisa no âmbito macro com as questões conjunturais e estruturais que regem as ações da educação no campo de ação micro, no cotidiano das práticas educativas. Expressa-se na compreensão do fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes sob a interpretação de educadores (sujeitos) no contexto de Campina Grande. O primeiro capítulo trata da contextualização do objeto enfatizando a política social na conjuntura mundial, latino americana e brasileira, destacando os aspectos históricos no reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e a política educacional voltada para a infância e adolescência. Trata-se de entender como foram construídas no Brasil as políticas para a infância e o entrelaçamento dessas questões com o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes. Ressalta o contexto social e o caráter político da educação. O segundo capítulo aborda a problemática violência sexual infanto-juvenil, considerando as perspectivas histórica, ética e política. Aponta diferenças entre as categorias de abuso e exploração sexual, nas diversas regiões do país, como fenômeno multifacetado, expressão histórico-social engendrada nas relações cotidianas. Discute as relações de poder, desigualdade de gênero e meios de coerção. Abrange o campo da moral, da proteção aos direitos humanos no círculo da violência sexual. O terceiro e último capítulo dedica-se à análise da concepção de violência sexual contra crianças e adolescentes extraídas das falas dos educadores, sujeitos desta pesquisa. Aponta para os desafios e dificuldades em relacionar as práticas educativas cotidianas com as questões macroestruturais no enfrentamento da questão, para o reconhecimento da necessidade de formação e do papel decisivo da escola nesta articulação com a temática. No 25 desvelamento da questão, a partir da fala dos educadores incluindo gestores, professores e técnicos da educação emerge a face da realidade das escolas no trato com questões subjetivas que fogem ao planejamento didático-pedagógico. Revela os desafios e limites para a construção de um processo educacional reflexivo, participativo e dialogado. As considerações finais apresentam lições aprendidas no descortinamento de novos estudos que possam contribuir para o avanço de um processo emancipatório humanizador. A responsabilidade social da educação mostra o caráter protetivo e interventivo na construção da cidadania de crianças e adolescentes em situação de violência sexual. 26 CAPÍTULO I POLÍTICAS SOCIAIS PARA A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 27 1.1 Notas introdutórias acerca das políticas sociais no contexto brasileiro Em geral, a literatura reconhece que a existência da política social é um fenômeno associado ao padrão de acumulação capitalista moderno, que desde os fins do século XIX, e, mais precisamente, depois da Segunda Guerra Mundial, foi distanciando-se do laissez-faire e do legado das leis contra a pobreza, como defendia o liberalismo clássico. A partir deste contexto econômico e social, a socialização da política e o reconhecimento da questão social no contexto europeu passam a determinar a política social, considerada um esquema de proteção social sob responsabilidade do Estado intervencionista. Assim, a origem da Política Social é comumente relacionada à dinâmica contraditória dos movimentos de massa social-democratas, ao estabelecimento dos Estados-Nação na Europa ocidental e as estratégias do capital. Nesse processo, o sociólogo britânico T. H. Marshall registra primeiro as conquistas pelos direitos civis no século XVIII. Os direitos civis, considerados por Coutinho (2000) como direitos históricos, dizem respeito ao direito à vida, à liberdade de pensamento e de movimento e o direito à propriedade. Também chamados de direitos naturais inalienáveis por Locke, principal teórico da Gloriosa Revolução de 1688. Esses direitos surgiram como demandas da luta contra o Estado absolutista, pela burguesia que se encontrava em ascensão. No século XIX, dá-se a conquista pelos direitos políticos e finalmente no século XX, pelos direitos sociais. Nessa seqüência, uma exceção é anotada por Marshal, considerada como pré-requisito para a expansão de outros direitos que é a educação popular, possibilitando a tomada de consciência em relação aos direitos e a organização pela luta dos mesmos. Para Coutinho (2000), os direitos sociais não interessam à burguesia. E a ampliação da cidadania, sendo um processo que entra em choque com a lógica do capital, incita o mesmo a resistir, recuar e fazer concessões, mas sem deixar de tentar suprimir os direitos conquistados. Essas tentativas resultam, na maioria das vezes, em imposições coercitivas tendo como principais recursos a violência e a opressão. Com a questão social aflorada em virtude da crise estrutural e mundial em 1929, sobretudo, na Europa (Inglaterra e Alemanha), o economista liberal Jonh Keynes propõe a intervenção do Estado, como uma política anti-cíclica, que adota uma economia do pleno emprego, o desenvolvimento do capitalismo através do consumo, universalização dos serviços sociais e extensão da cidadania (além da civil e política), compreendendo o período de 1940 a 1970. 28 Assim, o surgimento e o desenvolvimento da Política Social são determinados pela questão social e a crise econômica mundial, sendo identificada como: Um complexo político-institucional denominado seguridade social (inaugurado na Inglaterra, na década de 40), o qual por sua vez, constitui a base conceitual e política do Estado de Bem-Estar ou do Welfare State, como é internacionalmente conhecido (PEREIRA, 1998, p.61). Nos anos de 1970, o Estado de Bem-Estar entra em crise com a diminuição dos ganhos do capitalismo e com a crise do petróleo. A crítica dos neoliberais reside no paternalismo do Estado, ao Estado Keynesiano, surgindo o movimento político e econômico com uma nova roupagem do liberalismo clássico, ou seja, o neoliberalismo3. Este tem o objetivo de enxugar o Estado, ou seja, com a visão de um Estado fraco, mínimo, reduzindo os gastos sociais, focalizando as políticas sociais, privatizando as empresas estatais, fragilizando os sindicatos e flexibilizando os direitos trabalhistas através da reestruturação produtiva. Com o avanço tecnológico, resultando no fenômeno da globalização, tem-se como países expoentes os EUA com Reagan nos anos de 1980 e a Inglaterra com Thatcher nos anos de 1990 (ANDERSON, 1995). O modelo inglês, dentre todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado, considerado por Perry Anderson (2003), como o mais sistemático e ambicioso pacote de medidas, chegou ao seu apogeu com um amplo programa de privatização. Diferentemente, o modelo norte-americano centra seu alvo na competição militar, lançando-se numa corrida armamentista, deixando o país com o maior déficit público da sua história. A onda neoliberal acaba sendo hegemônica, sobretudo, nos países do ocidente, favorecendo a acumulação rentista, através do capitalismo especulativo, a fragmentação social, o desemprego maciço e a dissolução dos laços sociais. Durante a segunda recessão nos anos de 1990, no ocidente, do outro lado do mundo, acontecia a queda do Socialismo real na Europa oriental e na União Soviética, ganhando novo fôlego e vitalidade o projeto neoliberal. A América Latina, “terceira grande cena de experimentações neoliberais” (ANDERSON, 2003, p. 19), passou a ser considerada a primeira experiência neoliberal sistemática do mundo com os resultados nos anos de 1980, do Chile, abolindo a democracia, vivendo uma ditadura e da Bolívia para deter a hiperinflação. Diante das experiências vividas por esses dois países, os anos de 1990 são marcados pelas vivências no México, Argentina e Peru, obtendo êxito em curto prazo, diante do 3 Conjunto particular de receitas econômicas e programas políticos que começaram a ser propostos nos anos 70. 29 fracasso da Venezuela, sendo o único país da América do Sul a escapar da ditadura militar. O fenômeno hegemônico do neoliberalismo numa avaliação provisória realizada por Anderson (2003), por ser um movimento ideológico inacabado, fracassou economicamente, por não conseguir a revitalização do capitalismo avançado. Contudo, do ponto de vista social, político e ideológico conseguiu mais desigualdades, disseminando a idéia de que não há saídas, submetendo à adaptação às suas normas, como alternativa para a sobrevivência. Assim, os sucessos ideológicos e políticos se sobressaem aos econômicos, mas ao mesmo tempo, a crise econômica propicia o controle inflacionário reforçando os efeitos ideológicos e políticos. Em relação à proteção social, o processo de globalização e desregulação da economia, conforme Pereira (1998), indicou uma outra forma de divisão de responsabilidades entre o Estado, mercado e sociedade, evidenciando-se um recrudescimento na proteção social dos cidadãos rejeitados pelo mercado de trabalho. Esses princípios de desregulação estatal estão presentes no Consenso de Washington4 no final dos anos de 1980 e deixa a impressão amarga de que a América Latina possa haver se convertido, com a anuência das suas elites, em um laboratório onde a burocracia internacional baseada em Washington – integrada por economistas descompromissados com a realidade política, econômica e social da região – busca pôr em prática, em nome de uma pretensa modernidade, teorias e doutrinas temerárias para as quais não há eco nos próprios países desenvolvidos onde alegadamente procura inspiração (BATISTA, 2001, p. 48). Na análise de Fernandes (2003 apud SADER e GENTILI, 2003), os pilares fundamentais do neoliberalismo são três: a acelerada reversão das nacionalizações, com as privatizações; a desregulamentação das atividades econômicas e sociais pelo Estado; a reversão de padrões universais de proteção social. Destaca duas conseqüências negativas deste projeto: a primeira, no ordenamento democrático das sociedades e a segunda, na capacidade soberana de desenvolvimento dos países por seus povos. As posições sustentadas por Anderson (2003), Pereira (1998), Batista (2001), e Fernandes (2003 apud SADER e GENTILI, 2003), parecem complementares em suas análises, destacando a realidade do desmonte dos direitos sociais. Neste sentido, as questões 4 Encontro realizado em Washington (EUA), com formato acadêmico e sem caráter deliberativo, entre funcionários do governo americano e organismos financeiros (FMI, Banco Mundial e BID), especializados em assuntos latino-americanos com o objetivo de proceder uma avaliação das reformas econômicas empreendidas nos países da região (BATISTA, 1994). 30 sociais como educação, saúde, distribuição de renda, redução da pobreza, ficaram de fora das discussões, nos poucos espaços remanescentes para formulação de políticas públicas, diante da avassaladora onda neoliberal. No quadro de transformações por que passa o mundo, contextualizar as políticas sociais num país, com características complexas e particulares como o Brasil, sugere a retomada da realidade do continente latino-americano, para compreensão da dinâmica das relações internacionais de poder que estão em jogo no atual contexto de desregulamentação dos Estados nacionais, de ênfase na pauperização do capital e promoção de tecnologias poupadoras de mão-de-obra. Para refletir o surgimento e desenvolvimento da política social no Brasil, faz-se necessário destacar a formação do capitalismo neste país. Sabe-se que o caminho para o capitalismo se deu numa via não clássica, pois, aqui, não fomos o berço da Revolução Industrial. Behring e Bochetti (2006) chamam a atenção para as marcas históricas do nosso país como: colonização, subordinação e dependência ao mercado mundial, peso do escravismo – último país do mundo a abolir o trabalho escravo e uma economia agrária exportadora. Tomando como ponto de partida para essa discussão o contexto latino-americano, esse quadro é agravado pelo empobrecimento de amplos setores da sociedade, diante da “onerosa hegemonia evidenciada pelo pensamento econômico neoliberal das classes dominantes” (TORRES, 2001, p.160). Também, sofre os efeitos do ajuste estrutural, trazendo conseqüências nefastas, como o aumento da violência e a marginalização das massas. Paralelamente, setores da sociedade civil se empenham em mobilizar as forças de resistência contra o expansionismo imperialista avassalador, reivindicando políticas públicas na direção da garantia dos direitos sociais. Candau (2000) aponta que é nesse contexto de mobilização social e afirmação da sociedade civil5, da preocupação com a construção de uma cidadania e de uma nova cultura política que a atenção para a questão dos direitos humanos toma relevância, sobretudo, no que se refere à educação em direitos humanos, que é “chamada a contribuir para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática”. É importante a análise de alguns elementos para entender a reprodução da pobreza no contexto latino-americano, na visão de Pilotti (1995), tais como: a dinâmica demográfica, que 5 Lugar de movimento, de contradições e forma de articulação social onde se revelam as possibilidades de construção de hegemonia das classes subalternas e “a elevação intelectual, moral e política dos dominados” (AMARAL, 2006, p.84). 31 favorece a transmissão da pobreza entre as gerações; o processo de urbanização, concentrando grande parte da pobreza nas áreas urbanas; o número muito alto de lares sem a presença do pai e com pouco espaço e o clima educacional baixo. Somadas a estes elementos, ainda incidem nesta realidade a incapacidade estrutural de geração de emprego na economia, com um contingente populacional fora da qualificação formal. O desemprego estrutural causa a exposição no mercado da informalidade, sem possibilidades de competitividade no mercado, pela fragilidade e vulnerabilidade dos cidadãos. Abordando a situação da infância na América Latina, Pilotti (1995, p.15) nos adverte sobre o contexto de miséria e pobreza que agrava as profundas desigualdades existentes nas sociedades latino-americanas. Afirma que “a maioria das crianças é pobre e a maioria dos pobres é criança”, outorgando a pobreza um caráter estrutural, agravada pelas crises mundiais periódicas e as políticas de ajuste para resistência à crise da dívida. Esta situação ocasiona a diminuição do orçamento social, trazendo como conseqüência mais grave, o debilitamento na transformação social entre as sociedades latino-americanas. Há também o aumento do risco para a infância com a deterioração da escola pública, o corte de subsídios etc, mudando assim, o cenário social com características de uma conjuntura em crise, através das múltiplas manifestações de violência. E adverte: “a preocupação com a situação da infância começa a se afastar de seu enfoque tradicional, caritativo e assistencial, para elevar-se à categoria de urgência social com evidentes repercussões políticas”. (PILOTTI, 1995, p.15). Na América Latina quase todos os países ratificaram a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1989, numa realidade onde quase 100 milhões de crianças vivem privações. Este quadro presente nas cenas públicas e privadas do contexto latino-americano como conseqüência da extrema pobreza de caráter estrutural foi agravado pelas crises mundiais. A Convenção conjuga num só documento legal, direitos civis, políticos e sociais com direitos econômicos, considerados imprescindíveis à proteção integral da criança e do adolescente. Neste sentido, cria o Comitê dos Direitos da Criança como meio de colocar em prática os preceitos da Convenção pelos Estados participantes. Portanto, a convenção é considerada como passo decisivo de novo paradigma para as políticas em relação à infância, coincidindo com a volta dos processos democráticos na América Latina. Concretamente, esses rebatimentos foram construídos com a interferência dos movimentos da sociedade, influenciando a definição dos conteúdos educativos, na história da América Latina, através de diversos mecanismos, resultando em reformas nos sistemas 32 educativos sem uma proposta transformadora e hegemônica. Estas reformas que provocaram uma inegável significação cultural com a ampliação quantitativa das políticas educacionais, fazendo com que a população freqüentasse a escola, não foi suficiente para mantê-la no ciclo de educação elementar. Borón e Torres (1996) chamam a atenção para o paradoxo na relação direta, entre a pobreza e a democracia, na contemporaneidade. O primeiro, de natureza ética, representada pelas políticas neoliberais impostas, com os custos da estabilização e do ajuste estrutural; o segundo, de natureza econômica, com a necessidade de melhorar a “racionalidade” macroeconômica do capitalismo latino-americano; e o terceiro os efeitos do ajuste (estrutural), fundamentada na ideologia das novas democracias. Sendo consideradas como tendências ameaçadoras a liberdade, redundando num aumento da desigualdade social, da miséria, entrando num círculo vicioso e sem perspectivas de saída. Para Borón (1994, p. 38) as demandas sociais de setores da sociedade civil aumentam com as injustiças provocadas pelo ajuste e recomposição da crise capitalista, expondo a vulnerabilidade e fragilidade de uma “democracia reduzida a uma fria gramática do poder e purgada de seus conteúdos éticos”. Essa vulnerabilidade se apresenta no perigo do esgotamento de seus conteúdos e propósitos, com o aumento da violência e criminalidade, a decomposição social e a anomia, a crise e a fragmentação dos partidos políticos, a prepotência burocrática do executivo, a capitulação da justiça a corrupção do aparato estatal e da sociedade civil, a ineficácia do Estado o isolamento da classe política, a impunidade para os grandes criminosos e “mão dura” para os “pequenos delinqüentes” (Grifos do autor e nosso, BORÓN, 1994, p. 38). Por outro lado, ainda na visão de Bóron (1994), as características das novas democracias latino-americanas como a liberdade, a tolerância e o pluralismo possibilitando a avalanche de reivindicações da sociedade civil, rebatem na capacidade Estatal de produção e sustentação de políticas que venham superar os efeitos da crise, com suas contradições e antagonismos sociais. Neste sentido, vislumbra uma tendência deslegitimadora de uma democracia que ainda não se firmou, podendo correr riscos de desestabilização. Na visão de Cohn (1999), o enfrentamento à pobreza vem sendo disputada pelas diferentes forças políticas, enquanto a desigualdade aumenta, condenando as políticas sociais aos limites estreitos de alívio e não superação da pobreza. Portanto, a construção das políticas sociais na América Latina vem acompanhada, particularmente por uma cultura política centralizada, clientelista, autoritária, tornando-se 33 urgente a preservação da democracia em processo de construção e enfretamento das dificuldades postas para o exercício dos direitos e deveres próprios a uma sociedade democrática. Traz-se para esse contexto, a afirmação de um estudioso dos processos democráticos da América Latina, ao analisar a situação da América Latina hoje, “a democracia latino americana envelheceu precocemente porque não teve uma alma social”6. Pode-se dizer que Torres (1996), Borón (1994) e Cohn (1999) apontam em suas análises o agravamento da questão social provocada pela política macroeconômica adotada, a partir dos anos 90, distanciando a necessidade de valorização social do cidadão no acesso ao capital cultural, científico e político. No Brasil, o processo histórico de implantação dos direitos sociais precedeu, segundo Carvalho (2003, p.24), os direitos civis e políticos. Até ao final da primeira república, “os direitos civis beneficiavam a poucos, os direitos políticos a pouquíssimos, dos direitos sociais ainda não se falava, pois o acesso aos serviços públicos estava a cargo da Igreja e de particulares”, se caracterizando por ações filantrópicas, de ajuda e caritativas. Assim, a política social, definida por Faleiros (2000, p. 43) distancia-se destas ações e consiste em um “processo de reprodução da força de trabalho através de serviços e benefícios financiados por fundos a eles destinados”. Sendo, ainda, um mecanismo de distribuição de renda, transformado em forma de benefícios, proteção e serviços numa dimensão legitimadora da relação Estado e sociedade civil, que não afetam de forma direta as relações de produção capitalista. Ainda na análise de Faleiros (2000), essa construção no Brasil foi mediada por um eixo articulador na sua relação Estado, sociedade e economia e assinalada por vários momentos distintos no seu processo histórico. O primeiro momento dos anos 1930 aos de 1960, modelo getulista de proteção social, foi enfatizado na divisão das categorias, em troca do controle social das classes trabalhadoras. Caracterizou-se pela sua fragmentação, limitação, pela desigualdade, pelo corporativismo, pelas relações personalizadas entre presidente, ministro e dirigentes sindicais, prejudicando as relações de garantia da cidadania e a implementação dos benefícios. Estes benefícios foram criados pelo Ministério do Trabalho em 1930, extensivos aos trabalhadores marítimos, estivadores, bancários e industriários, deixando a grande maioria da população de trabalhadores rurais fora do sistema estatal de previdência até 1970. No ano de 1942, com a 6 Fala de Emir Sader no I Seminário Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de crianças e adolescentes na América Latina Hoje, no Rio de Janeiro, em outubro de 2006, na Conferência “A gestão da Miséria e a Questão da Cidadania na Contemporaneidade”. 34 criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA), para atendimento às famílias dos pracinhas, anos depois à maternidade e a infância, busca-se a legitimidade junto aos pobres. Em 1960, foi aprovada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), definindo a unificação dos benefícios dos vários Institutos de Aposentadorias e Pensões, regulamentando a aposentadoria para mulheres e homens. Esse contexto político populista, com uma ideologia difusa, predomina até o golpe militar de 1964, passando do nacionalismo de Vargas, ao desenvolvimentismo de Kubitschek, ao moralismo em Quadros e ao reformismo em Goulart. O segundo momento, os anos de 1964 até 1980, compreendeu o período da ditadura militar, caracterizado pela forte censura, ausência de eleições, repressão com uso da violência e controle do Congresso Nacional pelo poder militar. Em 1966, com uma política centralizadora, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Este Instituto era administrado pela tecnocracia e buscava legitimar e modernizar o modelo getulista na ampliação da previdência durante os anos da década de 1970. Com a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social, o benefício é estendido aos trabalhadores rurais, empregados domésticos, jogadores de futebol, ambulantes e idosos pobres com mais de 70 anos. Considerado um modelo repressivo, centralizado, autoritário, desigual, que dava continuidade ao favorecimento de pequenos grupos, contraditoriamente, neste contexto, como forma de legitimação do modelo, registra-se uma expansão das políticas sociais, na perspectiva da modernização conservadora. O terceiro momento – abertura do regime militar, é marcado pela anistia em 1979, pela eleição para governadores em 1982 e a luta pelas eleições diretas para a Presidência da República. As políticas referentes à Previdência, a assistência social e a saúde são incluídas na Seguridade Social, passando a ser direitos do cidadão e dever do Estado. Este contexto se apresenta contraditoriamente com o Congresso definindo o conceito de cidadania, incorporando direitos sociais e o governo promovendo o desmonte das políticas sociais e direitos garantidos, para se manter no poder, após a morte de Tancredo Neves. Considerado como um momento progressista, assinalado pelo processo constituinte, com a promulgação da Constituição de 1988, assegura postulados para o ECA, constituindo-se num rompimento lento e gradual com a ditadura militar. A saúde e a assistência social passam a ser direitos do cidadão e dever do Estado. Portanto, na concepção de Faleiros (2000), este momento foi vivenciado no conflito entre uma política clientelista, cooptadora e fragmentada, com um modelo de garantia de direitos, descentralizado e participativo. No quarto momento das reformas neoliberais dos anos de 1990, o país elege o primeiro Presidente da República, após a ditadura militar, Fernando Collor. Neste governo, a 35 estratégia governamental para as políticas sociais foi marcada pela formulação de uma agenda de reformas, visando à revisão constitucional, no sentido de obstruir a consumação dos novos direitos garantidos naquela Carta. Este mesmo governo contribui com a abertura econômica, aceleração do processo de privatização, demissão de funcionários, ocasionando a volta da inflação e do esquema de corrupção, levando-o ao seu impeachment. Em 1993, tardiamente é aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), tornando a assistência social como um dever do Estado e um direito do cidadão. Em 1994, com a adoção da nova moeda, o Real, consegue-se estabelecer o controle inflacionário, mas, por outro lado, mantêm-se estagnada a desigualdade de renda no país, caracterizando o período como de contra-reforma do Estado brasileiro. Eleito novo presidente, que mantém maior abertura da economia aos capitais internacionais, privatização do patrimônio público, a redução dos direitos sociais e desregulamentação das leis trabalhistas. Neste processo, o modelo político de favorecimento do mercado e redução do Estado favorece a reeleição, submete o país ao Fundo Monetário Internacional, comprometendo a sua autonomia. Assim, com a priorização da especulação em detrimento do trabalho e a crise instalada, o modelo neoliberal prevê que a garantia do Estado de direito é sabotada pelo bemestar individual. Diante dessas considerações e da constatação de que os interesses da classe dominante se sobrepõem historicamente, se contrapondo ao que legalmente foi conquistado, revela-se uma práxis contraditória no que diz respeito às políticas sociais básicas. Então, pergunta-se: como conviver com a carência cidadã para a maioria, ficando esse direito como privilégio de poucos? Constata-se na visão de Coutinho (2000), que a presença e o reconhecimento legal dos direitos nas Constituições não dão garantias da efetivação e materialização dos mesmos, como é o caso do Brasil. Mas, considera a importância desse reconhecimento como facilitador na luta para transformá-los um dever do Estado. Na opinião de Dias (1996, p.134), “herdando um país acostumado a obedecer, cheio de súditos e vazio de cidadãos, a burguesia não vê por que levar a sério a lei e a cidadania”, faz-se necessário tomar o campo da cidadania como espaço de luta nas contradições inseridas no jogo democrático. O movimento social quando colocado no centro da luta social tomou forma de articulação, mostrando a força real da sociedade civil. Mesmo com a imposição do mercado, aceitar a desigualdade como natural implica na aceitação da “redução da democracia à obediência às regras do jogo” (DIAS, 1996, p.137). 36 Retomando Pilotti (1995, p. 45), quando articula o quadro social que interfere nos alicerces da convivência democrática, e apoiando-se nas palavras de Sader, questiona-se: “Democracia é coisa de gente grande?”. Assim, pergunta pela prioridade da infância brasileira, quando aponta que, “A democracia só perdura quando é efetivamente socializada como valor cultural fundamental para jovens e crianças”. Destaca que numa sociedade democrática, os cidadãos que sofreram violência na infância terão indubitavelmente dificuldades para exercer seus direitos e deveres. Na análise de Coutinho (2000), Dias (1996) e Pilotti (1995), a democracia e a cidadania aparecem como eixo comum no contexto da contradição, como a via possível de mudança desse quadro desolador. Dando continuidade a essa lógica histórica, faz-se necessário trazer para o debate a contextualização das políticas sociais brasileiras para o segmento infanto-juvenil. 1.1 As Políticas Sociais voltadas para a infância no Brasil: da repressão ao direito No Brasil, a história das políticas para a infância e a adolescência foi marcada pelo controle e repressão numa perspectiva saneadora, ou seja, a infância foi constituída nas práticas discursivas e institucionais como objeto de intervenção higiênica e disciplinar. Este eixo saneador que tinha como prática constante o recolhimento de crianças na rua, atinge seu nível trágico na década de 1980 com a organização dos grupos de extermínio, com a anuência da sociedade civil. Inserida hoje num outro contexto, sendo considerada objeto da política, enquanto Política Social Especial – Criança e Adolescente baseiam-se no paradigma da proteção integral e da defesa de direitos. Implica em estratégias de intervenção do Estado diferenciadas, sobretudo na política educacional, no que diz respeito ao controle, repressão, proteção, legitimação, mobilização e preparação escolar. O Estado brasileiro foi se constituindo num processo histórico de descaso para com a infância, condenando-a ao trabalho precoce e a um futuro subalterno. Dessa forma, repassando através das gerações, a submissão e a contradição de um discurso legitimado e uma prática de ignorar as leis em relação à proteção de crianças e adolescentes. Nesse sentido, fica clara a separação de classes ou da exclusão ao exercício da cidadania para muitos quando nomeia pivetes e menores para os pobres e crianças para os ricos. Há uma dificuldade na construção de novos sujeitos sociais, pelo grau de miséria e orfandade da massa de pobres no Brasil. Os cidadãos estão sem cobertura social, sem 37 capacidade de organização e legitimidade, rebatendo diretamente nas políticas para a infância. As iniciativas, ainda com teor assistencialista, causam um vácuo entre os modelos de sociedade existente e em construção, num momento, que Sader (2006) chama de “gestão da miséria”. Esta herança cultural encontra eco no processo histórico quando tardiamente, no final do século XVIII, foi tomada a primeira medida pelo poder público e privado relacionada à infância, com a Roda dos Expostos, em função da alta taxa de mortalidade infantil. No Brasil colônia foi instalada a Roda dos Expostos pela Irmandade da Misericórdia, por designação do império português. De acordo com Marcílio (2006) a Roda dos Expostos inventada na Europa Medieval, como assistência caritativa e missionária, foi o meio encontrado para preservar o anonimato do expositor e enfrentar o fenômeno do abandono de crianças. Considerada uma das instituições brasileiras que teve vida longa, pois atravessa três regimes da história do Brasil. Criada na Colônia quando foram implantadas em Salvador, Rio de Janeiro e Recife, multiplica-se no Império para São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Santa Catarina com a Lei dos Municípios7. Perde o caráter caritativo e passa a filantropia, modelo assistencial fundamentado na ciência, substituindo a caridade. Mantêm-se na República até a década de 1950, sendo “as últimas do gênero existentes nessa época em todo o mundo ocidental” (MARCÍLIO, 2006, p. 68). Foram fechadas as do Rio de Janeiro em 1938, a de Porto Alegre em 1940 e as de São Paulo e de Salvador em 1950. Segundo Rizzini (1995), estudiosa da história da infância no Brasil, a preocupação com a infância no Brasil aparece na postura jesuítica de valorização das crianças, reproduzindo o movimento europeu sobre a concepção de infância. No período da independência, a questão dos indivíduos menores de idade, aparece associada à primeira lei penal do Império, o Código Criminal de 1830, considerada avançada para a época, quando até então vigorava medidas punitivas bárbaras. Na passagem para a República, surge uma crescente preocupação com a infância com o enfoque religioso e caritativo, passando por um período importante do ponto de vista legislativo para infância, adquirindo uma dimensão política no sentido da urgência de intervenção. No que diz respeito às políticas direcionadas especificamente à infância, Carvalho (2000) ressalta a transição da assistência e da filantropia à política social, quando a Igreja assistia às crianças e adolescentes abandonadas pelas suas famílias ainda no século XII, por toda a Europa, onde aconteciam a proliferação dos asilos e a constante transferência para 7 Coleção das Leis do Império do Brasil de 1828. Parte I. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878, p.85-6 (MARCÍLIO, 2006, p. 62). 38 conventos e hospitais das crianças que nasciam na pobreza, até as primeiras medidas do Estado numa articulação entre a ação social e a manutenção da ordem nas cidades. No Brasil, a partir dos anos de 1930, Carvalho (2000) destaca que as questões relativas à infância tornam-se uma preocupação pública. Após a criação do Código de Menores de 1927, pelo juiz de menores da Capital da República, Mello de Mattos, por força do Decreto no 17.943-A, inicia-se um sistema público de atenção a este segmento sob a proteção do Estado. Vigente a partir do governo militar, fundado num corpo doutrinário da situação irregular, ancora-se numa lógica política e de produção do direito, simbolizando o reconhecimento do problema como uma questão social. Ao mesmo tempo, segrega setores da sociedade estigmatizando-os numa cultura que justifica a negação de direitos. Desde o início do século XX, a assistência à infância foi pensada como alega Rizzini (1995) por uma elite incomodada com a expansão do problema. Mesmo sem o abandono das práticas anteriores, a criação de instituições visando à formação profissional de crianças e adolescentes recolhidos, rompe com a forma de concepção repressiva para uma visão educativa e recuperativa. Este parâmetro norteou as tentativas que não obtiveram sucesso pela concepção arraigada na nossa sociedade onde “o menor” na rua, fora da escola e no ambiente de trabalho representava perigo, reforçando a cisão entre menor e criança. Com a criação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), ligado ao Ministério da Justiça e do Interior, em 1941, preconiza-se uma assistência social em todo o território nacional, numa perspectiva corretiva, protecionista, repressora, com assistência psicopedagógica aos “menores considerados carentes e delinqüentes”. Contudo, os recursos financeiros não se materializaram, sendo seu objetivo restrito à questão da ordem social que da assistência. Assim, “as escolas de reeducação aplicavam como instrumento de correção a coerção, a disciplina e os maus tratos” (CARVALHO, 2000, p.186), contribuindo para a sua extinção em 1964, após críticas da sociedade civil e do próprio Estado. Considerado como fábrica de delinqüentes, escolas do crime, lugares inadequados, o SAM com uma implicação mais próxima da ordem social do que da assistência era articulado às Delegacias de Menores e ao Juizado. Os castigos corporais bárbaros, a venda de menores às organizações criminosas, o envio de meninas a prostíbulos, as denúncias de violência sexual impostas às meninas e meninos, a exploração do trabalho doméstico efetuada por funcionários são alguns dos aspectos do sistema perverso que se institucionalizou com o SAM (RIZZINI, 1995). A condução dada à política da infância na concepção de Faleiros (1995), considerada como “política do menor”, teve longa e profunda influência na vida de crianças e adolescentes 39 pobres, tornando-se uma questão nacional, com uma ligação entre repressão, assistência e defesa da raça, refletida nas instituições de atendimento a este segmento. Não foi diferente com a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), em 1965, com vistas à formulação e implantação da Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM). Baseada na influência da ideologia de Segurança Nacional, assume um caráter assistencialista e repressor, visando à integração à comunidade e colocação em famílias substitutas, moldando-se, também, à tecnocracia e ao autoritarismo. Sua estratégia de controle social e de um modelo verticalizado de ação suscita a continuidade de uma política repressiva articulada ao sistema de controle social e político vigente. Nos Estados, os órgãos executores recebiam a denominação de Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Com o fracasso da FUNABEM tornou-se mais transparente a inabilidade da ditadura para a infância e o despontar do paradigma corretivo para o educativo. A política de assistência ao “Menor” pós-1964, centralizada na decisão e orientação da política e em instituições de caráter normativo descentralizadas, é refletida por Carvalho (2000, p.186-187), como um “modelo de gestão tecnocrático e centralizador do regime político autoritário”, inviabilizando projetos adequados às realidades regionais. Em 1975, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do “Menor Abandonado”, torna nacional a questão da infância. Divulga um número de “1.909.570 abandonados e 13.542.508 carentes” (FALEIROS, 1995, apud PILOTTI & RIZZINI, 1995, p.79) em 87,17% dos municípios brasileiros, tendo como justificativa situação de extrema pobreza. Essa estratégia denunciadora incita um movimento de discussão no arcabouço jurídico, tendo como resultado o novo Código de Menores de 1979, adotando a doutrina da situação irregular, tornando a questão num processo reducionista mais jurídico e assistencial não alterando a situação da criança brasileira. A mortalidade infantil atinge um índice de 67,3% e o número de crianças fora da escola chega a 26% (Centro de Defesa da Qualidade de Vida, 1979, apud FALEIROS, p. 81). O código de menores de 1979 trazia em seu cerne uma política de segurança, com uma prática institucional de reintegração, fortalecendo a relação entre abandono, pobreza e marginalidade, comenta Sá (2006). Com a doutrina da situação irregular, as condições sociais reduzidas à ação dos pais, dando-se ao juiz o poder de decisão sobre a assistência, proteção ou vigilância sobre o “menor”. O período da transição democrática constituiu-se num movimento em favor da criança e do adolescente nos anos de 1980, com o processo constituinte, com a participação de setores da sociedade civil, exercendo importante contribuição, através dos movimentos 40 sociais, redundando na aprovação do ECA. Mas, encontra como entrave, conforme destaca Carvalho (2000, p.187), “os mesmos dispositivos operacionais do período autoritário”, atravessando o contexto da chamada transição democrática. Há uma mudança radical no discurso com a Constituição Federal de 1988, o ECA e o reordenamento institucional preconizado pelo mesmo. Com a regulamentação do Artigo 227 da Constituição Federal pelo ECA, Lei Federal n.º 8.069 de 1990, baseado no paradigma da proteção integral e da defesa de direitos, surgiu uma nova forma de conceber a criança e o adolescente no Brasil. Esse novo paradigma considera este segmento como sujeitos de direitos e não mais como objetos de intervenção, controle social e repressão. Destaca-se o ECA, seu Artigo 5º, quando garante: Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (BRASIL, 2002, art. 5°). Reconhecida como prioridade absoluta, “crianças e adolescentes passaram a ser considerados seres humanos que deveriam ter prioridade absoluta da família, da sociedade e do Estado” (CARVALHO, 2000, p.189). Na análise de Carvalho (2000), as mudanças decorrentes desta concepção tiveram um rebatimento nos métodos de intervenção e na gestão da política da criança e do adolescente. Em relação aos métodos de intervenção, estes não devem ter mais a conotação punitiva e corretiva dos antigos Códigos de Menores, sendo consideradas as fases de desenvolvimento biopsicossocial, numa postura de respeito. Na gestão da política, a mudança acontece no reordenamento institucional da relação entre a União, os Estados e os Municípios, eliminando a prática das políticas verticalizadas, centralizadoras e que não correspondem as realidades locais. Neste sentido, a construção do regime de co-gestão com representações do Estado e Sociedade Civil, nos Conselhos Paritários e deliberativos em todos os níveis (municipal, estadual e federal), dá o tom da configuração do sistema de garantia de direitos no que se referia à política de atendimento na sua formulação, vigilância e controle como na defesa e responsabilização. A operacionalização dos novos parâmetros, na relação entre Estado e Sociedade na gestão dessa política específica, presentifica-se nos meios legais e institucionais. Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente responsáveis pela formulação, zelo, 41 orçamento e avaliação, nos Fóruns de Defesa e outras organizações por parte da sociedade civil, exercem a sua função de vigilância e controle dessas políticas. O Ministério Público, os Centros de Defesa, a Defensoria pública, a Segurança Pública e o Conselho Tutelar constituem-se órgãos públicos de defesa da criança e do adolescente, na perspectiva da defesa e responsabilização das violações e omissões da sociedade civil e do Estado. Uma cisão, que apesar dos avanços significativos com o ECA, ainda se vive na prática, é discutida por Rizzini (1995), como categorias distintas: o menor e a criança. O menor na esfera policial-jurídica sob o controle do Ministério da Justiça e a criança na esfera médico-educacional sob a coordenação do Ministério da Educação e Saúde. Portanto, apesar de todos esses aparatos legais constituídos, os direitos da criança e do adolescente vêm sendo constantemente violados no Brasil, revelendo uma distância muito grande entre a lei e a realidade. O entendimento e a exposição desse quadro inserido na história de uma conjuntura social que proporciona a continuidade e o agravamento da condição de opressão no mundo inteiro constitui-se fundamento para a discussão das raízes históricas e os seus reflexos no contexto educacional. 1.2 A política educacional no contexto brasileiro A história da educação no Brasil está associada à chegada dos jesuítas, trazendo consigo o sentimento de infância em desenvolvimento na Europa pós-medieval. Azevedo & Guerra (2001) apontam para a fundamentação do projeto pedagógico catequético, orientação que servia aos interesses colonizadores, com vistas à educação da criança índia. Projeto este, que trazia em seu âmago, a modalidade da Pedagogia Tradicional, consolidando-se enquanto pedagogia de ascese moral e do medo, onde incluía a punição corporal, adaptando-se as várias situações da infância, dando ênfase no valor da disciplina, “ordem, castigos e ameaças com um gosto de sangue” (AZEVEDO & GUERRA, 2001, p. 57), marca registrada importada para o Brasil Colonial, pelos primeiros padres da Companhia de Jesus, em 1549. Sendo considerados os primeiros educadores oficiais em terras brasileiras, os jesuítas iniciaram a intervenção pedagógico-doutrinária, muito mais no sentido do processo de aculturação, catequização do que de escolarização. Os curumins não eram reconhecidos como sujeitos com capacidade intelectual na construção do conhecimento, mas sim como modeláveis na intermediação com os índios adultos. 42 A trajetória do sistema educacional jesuítico estava ancorada num plano geral de estudos denominado Ratio Studiorum8, baseado “na meditação, a concentração, a disciplina do espírito e a subjugação dos sentidos” (PRIORE, 1991, apud AZEVEDO; GUERRA, 2001, p.57), revelando pontos comuns com a severa pedagogia de Santo Agostinho9. O Ratio Studiorum trouxe para o Brasil a inovação dos colégios, que se estendeu por todo o território brasileiro como indica Farias (2005), de Salvador até São Vicente (século XVI) e de Pernambuco ao Pará (século XVII). A orientação do Ratio ia além dos cursos elementares estendendo-se ao ensino médio no Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia. O ensino superior destinava-se ao clero, ficando os jovens com a única possibilidade de continuidade dos estudos na Universidade de Coimbra, em Portugal. A infância pobre ficava destinada ao não acesso à escola, juntamente com os negros e as mulheres. Só a partir do século XVI, autorizado pelo rei de Portugal, os mulatos tiveram direito à educação escolar. Do século XVI ao fim do século XVIII, as necessidades especiais inerentes à infância como alimentação, higiene e educação eram indiferentes à sociedade brasileira. Com a expulsão dos jesuítas, depois de dois séculos de monopólio da educação, em 1759, houve um retrocesso no campo educacional brasileiro, sendo ignorado todo o sistema estruturado, com o objetivo de apagar as marcas históricas que incomodava a metrópole portuguesa, terminando praticamente a história da educação colonial. Confrontando a história da educação no Brasil com a história da infância brasileira, alguns pontos em comum são colocados como “o abandono no qual foi deixada a educação elementar, comprometendo, dessa forma, a real expansão e universalização desse nível de instrução para toda a população” (FARIAS, 2005, p.47). Assim, deixados em segundo plano ao longo da história, a infância e a educação para este segmento, contribuiu para que muitos ficassem fora do processo de escolarização. Não há dados, na avaliação de Carvalho (2003), sobre a alfabetização ao final do período colonial, apenas 16% da população era alfabetizada, meio século após a independência, em 187210, dificultando “o desenvolvimento de uma consciência de direitos” com “o descaso pela educação primária” (CARVALHO, 2003, p. 22), pois, não havia interesse em difundir essa “arma cívica” (CARVALHO, 2003, p. 23). 8 Regras pedagógicas de Santo Inácio de Loyola e as experiências no campo da educação, publicado em 1599, pelo Pe. Geral Cláudio Aquaviva (AZEVEDO, 1996). 9 Santo Agostinho (354-430), considerado como um dos “Pais da Igreja” adotou a necessidade dos dogmas e da disciplina na nova religião (GADOTTI, 2002). 10 Em termos quantitativos havia 107.483 matrículas no ensino primário em todas as províncias para uma população livre de 8.830.000 pessoas, com 1.200.000, aproximadamente, em idade para receber instrução escolar, segundo dados de 1867 (AZEVEDO, 1963, p. 574 ). 43 No período que corresponde de 1850-1930, “o sistema educacional cresce, mas cresce lento, sem alterações qualitativas planejadas, reproduzindo, assim, as velhas relações com solução de continuidade” (SÁ, 1979, p. 51). A busca por um novo projeto educacional continuava, acontecendo o movimento denominado “entusiasmo educacional”, “para preparar cidadãos para uma sociedade democrática e igualitária” e outro movimento “preconizava o aprimoramento técnico e interno do sistema” (SÁ, 1979, p. 51), propondo alterações administrativas, didáticas e no currículo. Mesmo assim, a educação continuava seletiva, intelectualista, representando os interesses das classes sociais urbanas, deixando fora à grande massa do sistema escolar, dando continuidade às antinomias presentes no sistema educacional11. Azevedo e Guerra (2001) numa análise da educação sob uma perspectiva da violência cultivada em todo percurso histórico brasileiro ao longo dos cinco séculos, traz em períodos distintos como a violência foi culturalmente internalizada como legitimamente educativa. Segundo os autores, nos séculos XVI e XVII, a pedagogia do amor correcional, mais voltada para a infância de faces índias, primeiras crianças brasileiras, percebidas pelos jesuítas como ainda não contaminadas com os costumes pecaminosos de sua cultura em função da tenra idade. Momento oportuno para a catequese, para a submissão e também para a iluminação, sendo, portanto, os pequenos indígenas alvos de catequização do que a própria instrução. Nos séculos XVI à XVIII, a pedagogia da palmatória12 teve suas raízes nas senzalas, afirmando-se dentro da dialética do nosso processo colonizador escravocrata e na esteira da tradição grego romana, e centrando sua atenção na infância de faces negras, trazendo a mesma concepção da pedagogia correcional, somada a um detalhe para deixar clara a condição de subalternidade, a humilhação. A palmatória foi utilizada nas salas de aula brasileiras pelo menos até a década de 1960. A partir de fins do século XIX, a pedagogia da palmada, baseada nas teorias psicológicas da infância, visando à modelagem do comportamento, muda a estratégia punitiva com um castigo corporal menos ostensivo, tendo como destinatários crianças de faces brancas. 11 Tínhamos em 1900, 9.750.000 habitantes de mais de 15 anos, dos quais 3.380.000 eram alfabetizados e 6.370.000 analfabetos. Em 1950, 14.900.000 eram alfabetizados e 15.350.00 analfabetos (ANÍSIO TEIXEIRA, 1957, p. 28-29) 12 Objeto feito de madeira pesada com cerca de 10 cm de diâmetro e 3 cm de altura, para corrigir as escravas e os moleques. 44 Nessa perspectiva, as políticas educacionais brasileiras carregam um fardo histórico de negligência, violência e mortalidade. Propondo uma reflexão nada animadora para o período atual indaga-se: será que houve tanta mudança na contemporaneidade? A questão da violência na escola é um fenômeno preocupante hoje no contexto educacional. Que políticas estão sendo gestadas para o balizamento dessas especificidades na educação? Coraggio (2003 apud TOMMASI, 2003) aponta que os sentidos da política social no contexto das políticas educativas podem ser interpretados de três formas, sendo a primeira, no propósito de orientar a continuidade do processo de desenvolvimento humano com o aumento da expectativa de vida, mas, por outro lado, deixando os setores médios urbanos mais pobres. A segunda tem a intenção de compensar os efeitos da globalização, focalizada nos mais pobres, como complemento de garantia da continuidade do ajuste estrutural, que se convertem em políticas econômicas e sociais ineficientes, favorecendo o clientelismo político, diminuindo, portanto, a luta democrática pela cidadania. A terceira como instrumentalização da política econômica, na reestruturação, descentralização e redução do governo, transferindo competências estatais para a sociedade civil e a internalização dos critérios e valores do mercado nas funções públicas, favorecendo a mercadorização da educação. O entrelaçamento desses sentidos confunde os agentes educativos no que diz respeito ao senso comum, ao campo de ação e no discurso técnico, tornando as políticas sociais numa iniciativa avassaladora, não encontrando resistência no contexto do mercado global. Nesse sentido, as receitas impostas pelas agências internacionais de crédito quase sempre fogem do controle e da responsabilidade democrática. Tem-se como exemplo o impacto das ações do Banco Mundial, no mundo em desenvolvimento, impondo políticas homogêneas para a educação com as reformas educativas e subordinando as políticas sociais ao objetivo econômico da competitividade. As reformas têm seu movimento inicial nos debates políticos em que as questões educacionais ganhavam interesse pelo papel ideológico que assumia diante da modernização do país, no período entre 1910-1920 como indica Shiroma (2000). O momento político colocava a reforma da educação e do ensino como condição salvacionista da reforma social. Com a Revolução de 1930 e a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, a União passa a exercer diretrizes gerais aos sistemas estaduais de ensino, com uma política nacional de educação até então inexistente. Travava-se de uma disputa entre os intelectuais e educadores “renovadores” e o conservadorismo da Igreja Católica, através do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932. Por conseguinte, demarcava-se a 45 finalidade da educação como lugar de ordenação moral e cívica e submissa aos desígnios do Estado. Dessa forma, “o debate educacional foi caracterizado por reduzida circulação de idéias” (SHIROMA, 2000, p. 26) na década seguinte. Com a promulgação da nova Constituição em 1946 fica assegurada a educação em todos os níveis como direito de todos. Entre a elaboração de uma proposta em que a consolidação desse direito foi apresentada, até a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1961, depois de longos treze anos. Mesmo assim, os equívocos se fazem presentes em função dos interesses da elite. O Movimento da geração de 1930 volta-se em defesa da escola pública priorizando os aspectos sociais da educação. Ainda conforme Shiroma (2000), os “movimentos de educação popular” surpreenderam pela repercussão na sociedade com a participação de militantes e intelectuais envolvidos com as questões educativas. Destacaram-se os Movimentos de Cultura Popular com Paulo Freire, que tinham como foco a alfabetização como meio da “conscientização política” e como mediação diante da dominação social. Com o golpe militar e a extinção desses movimentos pela via da repressão, a reforma dos anos de 1960-1970, adequou-se ao novo regime, vinculando a formação ao mercado de trabalho e controlando política e ideológica à vida intelectual do país. Há uma diminuição dos recursos para a educação, atingindo os mais baixos índices na história recente. Constata-se a dasarticulação da escola pública de 2° grau já precária, com sua função profissionalizante. Os dados de meados da década de 1980 do quadro educacional brasileiro colocado por Shiroma (2000, p. 44) eram: 50% das crianças repetiam ou eram excluídas ao longo da 1ª série do 1° grau; 30% da população eram analfabetos, 23% dos professores eram leigos e 30% das crianças estavam fora da escola. [...] 8 milhões de crianças no 1° grau tinham mais de 14 anos, 60% de suas matrículas concentravam-se nas três primeiras séries que reuniam 73% das reprovações. [...] 60% da população brasileira viviam abaixo da linha da pobreza. A “Nova República” mantém o modelo herdado do regime militar. As bandeiras de luta se ampliam recorrentes à proposta de 1930, com a erradicação do analfabetismo, universalização da escola pública e a formação de um aluno crítico que ao ser incorporadas foram mudadas em seu sentido original Nos anos de 1990, atribui-se à educação a perspectiva de sustentação da competitividade na dominação dos códigos presentes na modernidade. Por outro lado, a política educacional dispersou-se em reformas do sistema educacional brasileiro com a 46 formação de instâncias tripartites para discutir os caminhos da educação. A educação infantil é incorporada à educação básica e a separação formal entre o ensino médio e técnico foi estabelecida. Na concepção de Shiroma (2000) observa-se uma redução dos gastos públicos para a educação, reafirmando a questão da educação enquanto pública mas não estatal, ficando o Estado no lugar de avaliador e articulador de políticas e não como o Estado promotor de bemestar social. Nessa analogia, entre “sistema de mercado e sistema educativo”, Coraggio (2003, apud TOMMASI, 2003, p.102) chama a atenção sobre o enfoque mercadorizável dado pelo Banco Mundial à educação, deixando a atividade educacional dependente do mercado, da concorrência, da negociação entre fornecedores e consumidores dos serviços educacionais. Define assim, conteúdos, pedagogias, formas de estruturação, quantidade, áreas e preços referentes à educação, fazendo uma varredura na realidade histórica da sociedade, correndo o risco de aceitação de uma política externa sem nenhuma discussão dessas propostas. Sendo “a educação considerada um bem semi-público” Coraggio (apud TOMMASI,2003, p.104), a oferta não poderia ser determinada pelo mercado, mesmo sabendo que a mesma pode aumentar a produtividade dos trabalhadores, mas as negociações no mercado de trabalho, na maioria das vezes, acontecem em situações ou condições desfavoráveis em relação à produtividade. Essas questões encontraram eco na história, tomando como foco a transição democrática no Brasil considerada por Ciavatta (2002 apud FÁVERO; SEMERARO, 2002) como a mais longa que se conhece. Esta transição tem efeitos mais demorados na educação do que na política institucional dos anos 80. Registram-se dois movimentos que refletem momentos diferentes na conjuntura histórica que se dá em sentido contrário e se entrecruzam. Um primeiro de ações pouco efetivas que parte das elites, intelectuais e governantes com os recursos destinados à educação para os problemas emergentes como “analfabetismo, exclusão, repetência, más condições do aparelho escolar, baixos salários, desqualificação do magistério” (CIAVATTA, 2002 apud FÁVERO; SEMERARO, 2002, p.). Um outro vindo das demandas sociais que reivindicam nos anos de 1910 uma educação diferente da escola burguesa, nos anos de 1920 e 1930 uma educação elementar, nos anos de 1940 e 1950 as escolas secundárias e nos anos 1960 e 1970, o ensino superior. Demandas que, ampliadas nos anos de 1980, para todos os níveis educacionais, estendem-se para creches, acesso à profissionalização e melhoria nas condições das escolas. 47 As demandas pela educação básica voltam nos anos de 1990 com a cobrança pelo ensino superior público e gratuito. Ainda conforme Ciavatta (2002), as políticas e planos educacionais não incorporaram os setores populares ao seu projeto, não consolidando uma sociedade democrática. As políticas educacionais acompanham as diferentes conjunturas históricas dos movimentos da sociedade e os processos sociais pelos quais tem orientado a educação brasileira em que três movimentos são destacados: as políticas e planos educacionais que expressam as questões educacionais como um todo, em que aconteceram as reformas educacionais dos anos 1920, numa tentativa de mudar as estruturas sociais vigentes até então; as políticas educacionais que refletem a relação educação e desenvolvimento econômico, caracterizando-se por um projeto de educação direcionado para a preparação da força de trabalho; as políticas mais fragmentárias que se inserem progressivamente nas políticas sociais executadas nos anos 1990, dando ênfase no resgate da educação fundamental na essência das políticas educacionais. Reconhece-se nas políticas sociais o caráter anti-social das políticas econômicas, que não consolida benefícios para a população. Restringe-se o entendimento de políticas sociais e educacionais, resultando em programas descontínuos, descomprometidos com as questões educacionais, através de ações pontuais que não têm o propósito da mudança, mas sim, uma perspectiva adaptativa às leis do mercado. Neste sentido, a dimensão política realizada nas práticas sociais é considerada educativa por Ciavatta (2002), por entender que: A democracia deve ser o norte da política educacional. A educação pode não ser democrática, mas a prática da democracia é, em si, educativa. A prática social tem de se converter numa prática democrática, e esse movimento é um movimento pedagógico na sociedade e da sociedade (CIAVATTA, 2002, p. 102.) Para Ciavatta (2002), Shiroma (2000) e Coraggio (2003), a educação deveria ter como eixo central a democracia, com experiências que trabalhem o contexto escolar, articulada com a realidade social, trazendo avanços políticos para a sociedade com a participação coletiva. Em se tratando da relação entre democracia e educação nas sociedades ocidentais, Torres (2001, p.179-180) aborda a noção de democracia como representação política, e apoiado na reflexão de Bobbio, mostra como torna-se complexa esta conexão. Segundo ele, 48 há quatro fatores que devem ser considerados, ao fazer estas considerações: primeiro, “as condições objetivas do capitalismo moderno são cada vez menos democráticas, e as grandes organizações [...] acham mais difícil respeitar as regras do jogo democrático”; segundo, o Estado, encarregado de prover e supervisionar estas regras, “cresceu em tamanho, tornando-se mais hierarquizado e, certamente, menos democrático”, inviabilizando a participação dos cidadãos; terceiro, “as sociedades capitalistas adquiriram um tão alto grau de complexidade que os problemas exigem cada vez mais soluções técnicas, as quais por sua vez só podem ser satisfeitas apelando-se para uma tecnocracia especializada”. O autor chama a atenção para a importância deste item para a educação e faz um paralelo entre democracia e conhecimento especializado. Destaca que “o protagonista da sociedade industrial é o cientista, o especialista, o perito; o protagonista da sociedade democrática é o cidadão comum, o homem da rua, o quisque e populo”. Por último, resgata uma preocupação de Paulo Freire quando sugere que “a democracia (e a educação democrática) pressupõe o pleno e livre desenvolvimento das faculdades humanas”, de forma que o efeito da massificação diminui o sentido da responsabilidade individual, fulcro fundamental para a implicação subjetiva, a tomada de decisões e da educação democrática. Neste sentido, Torres (2001) chama a atenção para a contribuição de Freire, enquanto “uma antropologia política da educação”, que reflete sobre a educação democrática em dois níveis: primeiro, aborda o dilema da democracia, a constituição do cidadão democrático; segundo, a questão de cruzar as fronteiras em educação, assumindo a natureza política da educação. Será que as políticas educacionais são pensadas com o objetivo de proporcionar conhecimento crítico, reflexivo, questionador? Ou ainda são direcionadas para o uso da força de trabalho como mercadoria? As inquietações provocadas por esses questionamentos levam a destacar as contribuições de Freire, colocadas em pauta por Torres (2001, p.184), indo de encontro à idéia neoliberal de massificação dos cidadãos, vindo Freire contradizer em Pedagogia do Oprimido, quando convida a refletir sobre a singularidade do ser, ao dizer que “os sujeitos pedagógicos do processo educacional não são cidadãos homogêneos, mas sim indivíduos culturalmente diferenciados”. Dando continuidade ao pensamento freireano, as formas de teorizar sobre a educação “enfatizam as implicações políticas do trabalho pedagógico”, considerando que na relação pedagógica haverá as noções de opressão e dominação como parte integrante dos cenários das salas de aulas. Mostra como é importante incorporar a sabedoria popular, fazendo um convite ao diálogo, como [...] “instrumento democrático para abordar os 49 complexos conflitos culturais no contexto do desenvolvimento desigual e combinado da educação latino-americana”. Freire ainda considera que “as conexões entre educação e política não podem ser teorizadas unicamente em termos das interseções entre poder e educação, nem exclusivamente em termos das relações entre poder e conhecimento”, mesmo esclarecendo “o caráter político da educação”, chama a atenção para as relações entre educação e capacitação cidadã [...] “enfatizando, sobretudo, os fundamentos históricos, normativos e ontológicos da educação democrática e dos direitos e responsabilidades da cidadania”. (TORRES, 2001, p.185-186). Torres (2001, p.187) continua a discussão com Freire sobre educação e democracia revelando uma nuance significativa que é a da utopia, implicada numa dupla função: anunciar e denunciar. Nesse prisma, a educação “é vista como um fator instrumental para ajudar o homem e a mulher a refletirem sobre sua vocação ontológica de sujeito, para ajudar a construir uma consciência crítica de sua realidade”. Considerando que, não existe uma revolução educacional sem uma revolução política, para a possibilidade de o povo começar a pronunciar a palavra, o mundo, diversificado e multicultural. Nas relações entre o Estado e a educação a noção de democracia suscita a discussão sobre a cidadania no sentido da responsabilização na construção de um “sujeito pedagógico”, apontando para a reflexão que: O processo de construção do sujeito pedagógico democrático é um processo de educação cultural, que envolve também a manipulação de princípios de socialização pedagógica e democrática em sujeitos que nem são tabula rasa em termos cognitivos ou éticos, nem estão plenamente equipados para o exercício de seus deveres e obrigações democráticas (TORRES, 2001, p.23). Contudo, essa construção é baseada em princípios de cidadania, formação de competência e colaboração, formadores de uma cultura política tendo em vista uma política de solidariedade nacional. Conforme afirma Faleiros (2000), “a cidadania compreende o reconhecimento dos indivíduos e coletivos como sujeitos na construção da história, pela participação política, pelo exercício da autonomia e pela garantia que lhes é dada, num Estado de Direito, das condições e meios de vida, tanto como direitos individuais (fruto do liberalismo), quanto como direitos políticos (liberalismo e democracia) e direitos sociais (socialismo e social-democracia), ao meio ambiente saudável e a bioética, que no contexto atual estão sendo desmontadas em nome do ajuste fiscal impostos aos Estados dependentes. 50 O campo educacional, considerado um lócus privilegiado para ser utilizado como regulação, controle e técnica de governo, não pode ser compreendido deslocado de uma dinâmica internacional. As políticas direcionadas para a educação dependem da estrutura política, econômica, social e cultural da sociedade. Para direcionar na sociedade um processo de mudança cultural em longo prazo faz-se necessário uma abertura democrática capaz de construir e propor ações educativas emancipatórias. Propiciando a continuidade não só de formação como também inovações, aprendizagens contínuas num movimento de criatividade, elaboração do pensamento crítico, responsabilidade, implicação com o seu viver, na sua reinvenção, independência e cooperação. Elementos que inseridos na natureza histórica de cada ser humano, mantém o desafio de não desvinculá-lo da sua realidade. Traz-se novamente aqui as reflexões freireanas, quando da sua epistemologia da curiosidade, mostrando a necessidade de explorar as relações entre educação, política e poder, para poder compreender e agir sobre os dilemas educacionais do nosso tempo. Porém, ainda coloca a importância da subjetividade, em que pode-se localizar as discussões em torno da violência sexual contra crianças e adolescentes, quando diz que “a subjetividade joga um papel importante na luta histórica” (FREIRE, 2003, p. 98). Em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes, algumas medidas foram adotadas pelo MEC, na tentativa de trazer à tona a discussão sobre o tema para o âmbito escolar. Essas medidas baseiam-se nas propostas existentes no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil, que aponta para a importância da prevenção e sensibilização no que se refere à educação. Entre essas medidas estão o Guia Escolar: Métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual em crianças e adolescentes, editado em parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, em 2003 (Anexo B), como meio de favorecer as ações de prevenção, envolvendo a escola para participação na rede de proteção da infância e juventude, como também a participação ativa e qualificada dos professores na quebra do ciclo da violência, envolvendo a família e a comunidade na construção de uma ação eficiente na escola. Esse Guia pode ser utilizado para orientação técnica, como também, instrumento de sensibilização e mobilização da comunidade escolar. Com um número de exemplares reduzidos esse Guia não chegou às mãos da maioria dos professores do país, encontrando-se no momento sob a perspectiva de uma revisão e reedição. Uma outra iniciativa é o Programa Escola que Protege, em 2006, que tem a intenção de dar conta, a partir do cotidiano escolar, das múltiplas formas de violência que se observa 51 no interior da escola e da sociedade, criando uma nova institucionalidade, dialogando com outras áreas e focando a formação de professores. Percebe-se nessas iniciativas ações pontuais que não podem ser caracterizadas ainda como políticas públicas da educação para todo o país. Neste sentido, Libório (2004, p. 30), indica que “dentro da instituição escolar, a violência pode estar sendo expressa pelos altos índices de analfabetismo entre adultos e adolescentes com mais de 14 anos [...] e pelo fenômeno do fracasso escolar [...] demonstrando o fracasso dos processos de produção junto a crianças e adolescentes”. Com esta preocupação cabe indagar: será que é possível a aplicabilidade de tais iniciativas sem levar em consideração as diferentes realidades nas diversas regiões de nosso país? Esta indagação faz refletir as práticas educativas, em que Freire (2003, p. 96) vem discutir que, “não há prática educativa, como de resto nenhuma prática, que escape a limites. Limites ideológicos, epistemológicos, políticos, econômicos, culturais”, não negando a importância da educação, nem tampouco a solução mágica para os problemas sociais. Aponta para a responsabilidade que a prática educativa progressista, libertadora, exige de seus sujeitos “a ética ou a qualidade ética da prática educativa libertadora vem das entranhas mesmas do fenômeno humano, da natureza humana constituindo-se na história, como vocação para o ser mais” (FREIRE, 2003, p. 91). As políticas educacionais encontram-se inseridas no contexto da implementação das políticas sociais realizadas pelo Estado. Por essa leitura questiona-se: qual o papel do Estado nesse processo? Numa compreensão histórica mais ampla, é possível identificar a lenta desresponsabilização do Estado terceirizando a execução da educação para a sociedade civil como aponta Shiroma (2000). Alguns aspectos são colocados por esta autora como reforçadores da gestão empresarial na gestão educacional e do “apartheid educacional” na expressão de Roberto Leher (2001). Ainda na concepção de Shiroma (2000), o Estado busca uma flexibilidade administrativa quando descentraliza decisões operacionais específicas e controla decisões estratégicas. Também propõe autonomia, mas a delimita à autonomia financeira. Há uma política de mercantilização do ensino que encontra eco no arrocho salarial favorecendo o mercado capitalista que encontra na educação um de seus nichos. Portanto, o caráter contraditório da educação num sistema social neoliberal exprime os seus limites, mas não pode negar a oportunidade de se aprender a reconhecer os direitos, a 52 subjetividade, o pensamento crítico e a autonomia. No movimento das lutas sociais pode-se acompanhar a proposição de políticas e seu processo de institucionalização. 1.4 As políticas de combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes: processo de lutas e institucionalização no Brasil O longo processo para implantação de ações de combate à violência sexual no país tem o seu marco histórico em 1993, com a instalação da CPI da Prostituição Infanto-Juvenil na Câmara Federal, denunciando a realidade da exploração sexual de crianças e adolescentes em diversos estados. Esta CPI revelou que 50% dos estupros são incestuosos, o que implica uma transgressão do dever de proteção que se inscreve na família como instituição. Desde então, tem sido formada e fortalecida uma rede nacional e internacional para o enfrentamento do fenômeno. Dois anos depois, em 1995, foi realizada a 1ª Campanha Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, a partir da Campanha Estadual desenvolvida pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (CEDECA), no Estado da Bahia. Ainda neste mesmo ano, o Brasil é representado por uma delegação composta dos segmentos de defesa da criança no Encontro Mundial de Mulheres, realizado em BeijingChina, onde foi aprovada a realização de um Congresso Mundial, em Estocolmo/Suécia, que discutisse o fenômeno da exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes. Constituiu a comissão organizadora do evento, o governo de Estocolmo, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o End Child Prostitution in Asian Tourism (ECPAT) e Grupo para a Convenção sobre os Direitos da Criança (NGO), marcando o início da mobilização global contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. O Brasil realiza em março de 1995, no Distrito Federal, o Seminário Nacional sobre Exploração Sexual Infanto-Juvenil, com o objetivo de mostrar a real situação sobre o fenômeno por meio de depoimentos de organismos governamentais e não-governamentais atuantes na área e elaborar propostas concretas na luta contra a exploração sexual de crianças e adolescentes (UNESCO/CECRIA, 1995). Este seminário, preparatório ao Seminário LatinoAmericano, além de um espaço de denúncia, abriu um diálogo com vários setores da sociedade civil e política brasileiras trazendo o debate para o âmbito internacional, com vistas à prevenção, ao atendimento e à capacitação de recursos humanos para o enfrentamento do problema. 53 Assim, a comissão organizadora do Congresso Mundial propõe que o Seminário Latino-Americano se transformasse na Consulta Regional das Américas, preparatória para o Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Nesse contexto, ocorre no Brasil o Seminário Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes das Américas, tendo como eixos fundamentais a discussão e a proposição de políticas públicas para o enfrentamento do fenômeno da violência sexual, o intercâmbio de experiências e a articulação de ações governamentais e não-governamentais em âmbito nacional e internacional. Suas conclusões foram apresentadas na “Carta de Brasília”, sendo encaminhadas ao Congresso Mundial como produto da Consulta Regional das Américas. No Congresso Mundial na Suécia, em 1996, primeiro encontro desta natureza no mundo, contribuiu na construção de uma Declaração e uma agenda de Ação, ratificadas pelo Brasil, às quais reafirmam, como princípios e como instrumentos, a aplicação da “Convenção sobre os Direitos da Criança” no combate à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e estabelecem como eixos de atuação a prevenção, a articulação e a mobilização, o atendimento, a defesa e a responsabilização e o protagonismo juvenil(SENAI – DF, 2002, p.5). Este documento reafirma o respeito à construção da autonomia para que o jovem pudesse desempenhá-la de forma crítica e criativa o que será exercitada na vida adulta. Em 1997, a pedido da ECPAT Internacional, o CEDECA-BA realiza em Salvador, o I Encontro do ECPAT no Brasil, para inserção do Programa no país, constituindo o Grupo ECPAT, composto de nove instituições13. Logo em seguida, o CEDECA-BA, representante da ECPAT no Brasil, realiza o II Encontro do ECPAT em Salvador. Neste Encontro foi sistematizado, pelas representações governamentais e não-governamentais, o documento que serviu de base para a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Neste mesmo período o Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR) executa a Campanha de Combate ao Turismo Sexual Infanto-Juvenil. Resultado desse processo de denúncia, luta e demandas, a Política Nacional de Assistência Social, aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), por meio da Resolução n.º 207, de 16 de dezembro de 1998 e publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 16 de abril de 1999, reconhece que entre os destinatários da Política de Assistência 13 ABRAPIA, ANDI, Campanha Nacional pelo Fim da Exploração/DF, CEDECA-BA, CEDECA EMAÚS/PA, INESC, INTERPOL, Pacto da Cidade de Fortaleza/CE, Rede de Pernambuco. 54 Social encontram-se vários indivíduos ou segmentos sociais em situações conjunturais ou circunstanciais de vulnerabilidade, exclusão ou de risco social. Nesse sentido, estão inseridas as crianças e os adolescentes submetidos ao abuso e à exploração sexual comercial, bem como suas famílias. A partir deste marco, o Ministério da Previdência e Assistência Social, intensificou o enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, por meio de campanhas, projetos, programas, estudos, capacitações, da implantação de serviços especializados nos setores de saúde, assistência social, segurança, educação, das varas e promotorias da infância e da juventude, da ação do legislativo e da mídia. Foi neste contexto, que em 2000, foi instituído o Plano Plurianual do Governo Federal-FHC (2000-2003) Avança Brasil. Neste Plano é proposto o Programa Brasil Criança Cidadã, entendido como um conjunto de ações de atendimento às crianças e aos adolescentes vitimados sexualmente, coordenado pela Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS), executado através das Agendas Sociais apresentadas por 21 Estados da Federação, atingindo 242 municípios brasileiros. É, também, estabelecido o convênio entre a EMBRATUR e a Associação Brasileira de Apoio e Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA). A ABRAPIA disponibiliza em seu site14 dados sobre denúncias de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, registradas no período de janeiro a dezembro de 2002, num universo de 1.793 denúncias. Destas, 799 foram de exploração sexual, correspondendo a 44,56% e 994 de abuso sexual, sendo 55,44%. No Nordeste, esse número correspondeu a 26,09%, com 401 denúncias, 16 delas na Paraíba, equivalente a 1,04%. A criação de banco de dados e sistemas de informação como a Rede de Informações sobre Violência Sexual de Crianças e Adolescentes (RECRIA), constitui-se em uma web site que, sob a responsabilidade de uma organização não-governamental, disponibiliza as informações que revelam a ocorrência desses fenômenos no Brasil. Fica a cargo do Ministério da Justiça/ Secretaria de Estado de Direitos Humanos/Departamento da Criança e Adolescente e Ministério do Esporte e Turismo/EMBRATUR, a entrada oficial do governo tardiamente nas ações de prevenção e combate, após longos 10 anos de aprovação do ECA. Segundo a Recria o número de crianças e adolescentes no Brasil é de 57.624.291, equivalente a 35,9% da população, sendo 18.837.527 no Nordeste, correspondendo a 40,6% deste total (IBGE/PNAD, 1999). Ainda, segundo a Recria, o mapa da violência sexual no 14 Atualmente desativado e transferido para o observatoriodainfancia.com.br. 55 Nordeste Brasileiro é caracterizado pelo turismo sexual, exploração sexual comercial em prostíbulos, pornoturismo, prostituição de meninas e meninos de rua, prostituição nas estradas e aliciamento de meninas nas áreas rurais. A mobilização de setores da sociedade civil pressionou o país com denúncias realizadas tardiamente, levando o Estado a reconhecer a existência do trabalho infantil e da violência sexual contra crianças e adolescentes. Este movimento culmina com a elaboração de ações e políticas a serem executadas, demonstrando mais uma vez como as questões da infância foram secundarizadas ao longo da história. O Brasil ratificou em 2000, junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Convenção 182, sobre “As Piores Formas de Trabalho Infantil”. Esse instrumento normativo teve em seu foco, práticas tais como a escravidão infantil, o trabalho forçado, o tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, a prostituição, a pornografia e diversas formas de trabalho perigoso e explorador. Esta Convenção convoca a adoção de medidas imediatas e eficazes para assegurar com toda urgência a proibição e a eliminação dessas formas abomináveis de exploração infantil. Outra conseqüência da mobilização da sociedade civil, neste mesmo ano, foi a elaboração do Plano Nacional de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil. Este Plano aponta para uma política a ser executada pelo Programa de Combate ao Abuso e Exploração sexual de crianças e adolescentes (Sentinela), vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social. A sua execução seria de forma descentralizada pelos municípios, sendo necessária a apresentação de dados que justificassem sua implantação. A elaboração do Plano ocorreu em junho de 2000, na cidade de Natal-RN, no Encontro para discussão do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual InfantoJuvenil, com a participação de representantes dos poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público, órgãos dos Executivos Federal, Estadual e Municipal, e organizações não governamentais nacionais e internacionais. Este documento, o PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL, a partir de iniciativa da sociedade civil é validado por 160 instituições sociais. O Plano constitui-se num instrumento de denúncia, levantamento da situação, de garantia e defesa de direitos de crianças e adolescentes. Também pretende “criar, fortalecer e implementar um conjunto articulado de ações e metas fundamentais para assegurar a proteção integral à criança e ao adolescente em situação ou risco de violência sexual” (BRASIL, 2001, p.13). 56 A partir desse contexto, a política de atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, passa a ter mais uma referência junto ao ECA, Ambos construídos com a participação efetiva da sociedade civil organizada em parceria com o governo, sendo estes os instrumentos norteadores para os avanços sociais referentes à infância e adolescência na implantação de políticas públicas descentralizadas, nas quais os municípios aparecem indicando práticas políticas inovadoras(MALLAK; VASCONCELOS, 2002, p.11). O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-juvenil estrutura-se em torno de seis eixos estratégicos, sendo definidos em cada um deles os objetivos e metas a serem alcançadas, as ações a serem executadas, os prazos e as parcerias. É importante ressaltar que o Plano é orgânico e integrado, o que significa que sua operacionalização implica, obrigatoriamente, em ações articuladas dos diferentes eixos: Tabela 1 – Eixos de operacionalização do Plano Nacional Diagnóstico e sistematização de dados sobre a Análise da situação violência sexual. Arcabouço jurídico e serviços de notificação Defesa e Responsabilização integrados Promoção e fortalecimento da articulação entre Mobilização/Articulação governo e sociedade Educação para o fortalecimento da auto-defesa Prevenção Estimular e garantir a participação de c/a na Protagonismo defesa de seus direitos. Implementação de serviços especializados infanto juvenil Atendimento Fonte: (BRASIL, 2001). O Plano Nacional está fundamentado na exigibilidade do dever da família, da comunidade e do Estado, como prevê a Constituição Federal de 1988 no seu Artigo 227, § 4o e a Lei no 8.069/90. Sustenta-se pela junção de forças e atores governamentais, nãogovernamentais e organismos internacionais que, mediante manifesta vontade política, operacionaliza o enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, por meio de metodologias e estratégias adequadas, construídas sobre bases de consenso entre todos. Sendo assim, trata-se de um documento legitimado e de referência para as políticas públicas nos níveis federal, estadual e municipal. Foi deliberado pelo Conselho Nacional dos 57 Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), na assembléia ordinária de 12 de julho de 2000, constituindo-se uma diretriz nacional no âmbito das políticas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Foi revisado em 2006, em Encontro organizado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual, em Brasília/DF. Após a aprovação do Plano Nacional, ocorreram várias mobilizações e articulações para que o Estado implementasse uma Política de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. Em 2001, como uma deliberação concreta do Plano, articulando assistência social, educação, saúde e justiça, foram implantados em 26 estados da Federação, com cobertura inicial em 315 municípios, 324 Centros ou Serviços de Referência com vistas ao atendimento social especializado de crianças, adolescentes e famílias envolvidos em situações de violência sexual. Trata-se de um conjunto de ações no âmbito da política de assistência social, tendo como finalidade oferecer um atendimento técnico, multiprofissional ao seu público alvo e fazer os encaminhamentos adequados à realidade constatada pelas instâncias legais. Necessitando, portanto, de uma rede articulada de serviços para garantir a proteção integral às crianças e adolescentes vítimas da violência. No ano de 2001, no âmbito da EMBRATUR, foi criado o Comitê Executivo da Campanha Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, para as ações de mobilização e articulação socioinstitucional. A ECPAT Internacional cria, também, o Código Mundial de Conduta para Operadores de Turismo e membro da Secretaria Executiva da Task Force/OMT, em 2002, sendo a EMBRATUR escolhida pelo OMT como gerente Internacional do Código. O referido código foi representado por governos, organizações não-governamentais, setor privado além de outras instituições. Teve o objetivo de regular ações mundiais em torno da adoção de parâmetro de comportamentos pró-ativos voltados ao Combate à Exploração Sexual InfantoJuvenil, além de privilegiar ações no combate ao turismo sexual. Ainda é renovado o convênio entre a EMBRATUR e a ABRAPIA para manutenção do serviço telefônico 0800, através do disque-denúncia e executado o convênio entre a EMBRATUR e a Agência Nacional de Notícia para a Infância (ANDI), prevendo a divulgação de notícias, por meio de boletins diários de notícias sobre crianças e adolescentes (programas, projetos) sendo selecionadas notícias de 10 revistas e mais de 72 jornais de todo o país dando visibilidade aos problemas vivenciados pelo segmento infanto-juvenil. Neste mesmo ano, o Plano Nacional dos Direitos Humanos, inclui em seu Art. 142, o direito da criança e do adolescente ao desenvolvimento integral da sexualidade como Direito Humano. Outra medida importante diz respeito ao lançamento do Relatório da Pesquisa sobre 58 Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF). Este relatório resulta de pesquisa realizada por organizações sociais e universidades em todo o território nacional, apontando os fatores que incidem no tráfico de crianças para fins de exploração sexual, bem como mapeando as rotas de tráfico interno e contrabando para outros países, lançado pelo Ministério da Justiça. O referido relatório aponta a realização de Encontro Internacional entre o Brasil e a República Bolivariana da Venezuela, para a definição de um Plano Regional de Enfrentamento ao Tráfico e Contrabando de Crianças e Adolescentes para fins de exploração sexual. Ainda no ano de 2002 foi assinado um convênio entre a Secretaria de Estado de Assistência Social, Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Agência Americana para o Desenvolvimento (USAID), visando ao desenvolvimento de Ações Integradas de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro. A prioridade no fortalecimento das ações desenvolvidas pelo Programa de enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes e pelos Conselhos Tutelares foi realizada em sete cidades brasileiras, apontadas no relatório da PESTRAF como integrantes das rotas de tráfico e contrabando de crianças para fins de exploração sexual. Na posse do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, (2003-2006), que em seu discurso declara a questão da violência contra crianças e adolescentes prioridade absoluta de seu governo, é instaurada, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI). Esta comissão investigou as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no país. Em mais de um ano de trabalho visitou 22 Estados, realizou 34 reuniões e audiências públicas, promoveu 20 diligências, ouviu 285 pessoas, recebeu 832 denúncias e analisou 958 documentos, revelando que “a exploração sexual é um fenômeno muito mais complexo do que imaginávamos. Um problema que está disseminado por todo o país, desde as grandes cidades até os municípios mais longínquos” (SABOYA, 2004, p. 8). A importância desta CPMI consiste, em dar visibilidade ao tema, chamando a “atenção da sociedade para uma questão que ainda está cercada de tabus, preconceitos e silêncio”, como também assume o papel de “instância estimuladora da mobilização social” (SABOYA, 2004, p.8). O relatório final apresenta propostas para a mudança na atual legislação sobre a temática com as seguintes recomendações: sugestões para o aperfeiçoamento das políticas públicas de prevenção e de atendimentos às vítimas de violência sexual e aos seus familiares e o encaminhamento às autoridades competentes das investigações. 59 A partir desta contextualização macro estrutural, passa-se a focalizar o fenômeno da violência sexual infanto-juvenil, objeto de pesquisa deste estudo, como estratégia de conhecimento na aproximação com a natureza complexa do problema. 60 CAPÍTULO II VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: considerações histórica, ética e política 61 2.1 Violência: conceito, história e categorização Diante da reconfiguração global hegemonizada por valores neoliberais, os dilemas humanos se complexificaram, deixando a sociedade impactada perante fenômenos que causam indignação e perplexidade. Nessa conjuntura contemporânea, a violência tem-se apresentado numa dimensão estrutural, pelas mediações materiais e culturais, apoiadas do ponto de vista socioeconômico e político na derrocada dos paradigmas clássicos, a partir de um conhecimento e de uma política mundial centrada no mercado, propondo o enfraquecimento do Estado, a diminuição do interesse da sociedade em aprovar à ordem civilizada associada aos ganhos e na crise das relações sociais referenciais. As implicações históricas da violência passaram a encontrar eco na dominação econômica, política, cultural e simbólica. Presentes na dominação do adulto sobre a criança e adolescente, na dominação de gênero, geralmente da raça branca sobre a criança, a mulher e o negro no processo de socialização. Assim, a violência perpassa as classes sociais, ligando-as às condições sócioeconômica e cultural, o que faz comportar uma variedade de definições. No caso em estudo desta dissertação, o recorte do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil envolve temas polêmicos, tais como a violência, a sexualidade e a especificidade do segmento infantojuvenil. Dessa forma, para apreender a questão necessita-se inicialmente, percorrer o caminho de cada um desses temas como meio de aproximar-se da sua complexidade. 2.2 Violência A palavra violência oriunda do latim vis, que tem o sentido de violência, de força e de vigor, pode ser considerada como a natureza, a substância e a essência. Para Couto (2005), a violência poderia ser tomada como algo natural enquanto essência da humanidade para justificar os seus fenômenos que se explicitam na violência política, psicológica ou de gênero. Neste sentido, a concepção de violência como independente do domínio humano foi interpretada pela religião em sua ortodoxia como um mal externo ao sujeito, manifestando-se através de fenômenos de possessão e pecado. Também interpretada sob considerações medievais relacionadas ao psicopatológico, resultante de acesso de loucura, desvinculando-se do bom senso e da racionalidade. 62 Ainda conforme Couto (2005), a discussão sobre a violência em termos jurídicos atuais, baseada no Código Penal Brasileiro, em seu art.224, alínea c, suscita o seguinte entendimento: A violência pode ser considerada como constrangimento moral exercido sobre alguém através de ameaça ou como ofensa à integridade corporal e à saúde de outrem, podendo disso decorrer lesões corporais de maior ou de menor gravidade. Presume-se a violência se a vítima não pode oferecer resistência (COUTO, 2005, p.22). Na concepção de Arendt (1985), a violência é desvinculada do mal e relacionada ao seu oposto, o poder. Desvincula-os, ainda, da condição de fenômenos naturais, como parte do processo vital e associa-os à política, aos negócios humanos e as relações intersubjetivas. Afirma que nas relações sociais e intersubjetivas a diminuição do poder leva à violência. Na visão desta autora: A violência, sendo instrumental por natureza, é racional até o ponto de ser eficaz em alcançar a finalidade que deve justificá-la. E já quando agimos, jamais saberemos com certeza quais serão as eventuais conseqüências, a violência só pode manter-se racional se buscar objetivos a curto prazo. A violência não promove causas, nem a história nem a revolução, nem o progresso, nem a reação, mas pode servir para dramatizar reclamações trazendo-as à atenção do público (ARENDT, 1985, p.44). Arendt (1985) destaca que ninguém se mantém ignorante sobre o papel da violência nas atividades humanas na história e na política e que existe uma vasta literatura sobre os conflitos armados, sobre os instrumentos da violência, mas não à violência enquanto fenômeno. Menciona um elemento adicional de arbitrariedade no seio da violência que é a intromissão do inesperado que a tudo permeia ao aproximar-se dos seus domínios, considerado, do ponto de vista científico, suspeito e não podendo ser eliminado por simulações, teorias ou nenhum outro artifício. “A prática da violência como toda ação, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento” (ARENDT, 1985, p.45). Para Chauí (1985, apud COUTO, 2005, p.24) a violência “é a ação que trata o ser humano não como sujeito, mas como objeto, culminado com a violência perfeita”. Sendo o que caracteriza a violência perfeita é a interiorização da vontade e da ação alheia passando despercebida o reconhecimento e a perda da autonomia. Diante desta abertura do que seja a violência, passa-se à articulação de uma forma 63 mais ampla com os contextos macro histórico-político e social para melhor entendimento com o micro, ou seja, com aquilo que acontece nas relações sociais e a violência que se vasculariza nas relações interpessoais. Por essa compreensão, na avaliação de Libório (2003), as categorias explicativas para o entendimento da violência são: a violência estrutural, estando presentes a exclusão social, a globalização e as leis do mercado; a violência social, aparecendo de forma mais expressiva nas dimensões de gênero, raça/etnia e geracional; a violência interpessoal, presentificada nas relações interpessoais, intra e extrafamiliares e os aspectos psicológicos. A violência estrutural é entendida como “a violência inerente à própria forma de organização socioeconômica e política de uma determinada sociedade, em condições sociais e históricas definidas” (LIBÓRIO, 2004, p. 26), sendo essenciais na sua compreensão a exclusão social e as contradições entre mercado e Estado. Na concepção de Leal (2001), existe uma relação estreita entre a violência estrutural e a globalização, aumentando as desigualdades sociais, promovendo o desemprego, novas pobrezas, exclusão social, resultantes das políticas de crescimento econômico desigual nas regiões brasileiras. Assim, o acirramento entre capital e trabalho, provoca a busca pela sobrevivência criando e recriando formas de relações trabalhistas precárias no capitalismo, em atendimento as exigências dos organismos internacionais (Banco Mundial e FMI), que historicamente promovem políticas que favorecem ainda mais o capital em prejuízo para os ganhos históricos do trabalho. Nesse contexto, a exclusão se configura no processo de privação dos direitos fundamentais numa estrutura social injusta, levando a população com baixa escolaridade ao mercado de trabalho informal, deixando homens, mulheres e jovens em situação de pobreza absoluta de sobrevivência e em situação de vulnerabilidades. A violência social, inserida no contexto da violência estrutural, é apontada por Libório (2004. p. 28), como “aquela violência dirigida especificamente a determinados grupos sociais considerados como detentores de menor poder político, econômico e social no seio da sociedade”. Para Leal (2002), a violência social constitui-se tanto em nível local como global, numa violência contra as diferenças, referindo-se a gênero, raça/etnia, geração e outros. Faleiros (2000) concebe este tipo de violência, através da leitura histórica, referindo-se ao desenvolvimento econômico social e cultural marcados pela colonização e escravidão, resultado de uma herança social imaginária da dominação e exploração das categorias sociais marginalizadas pela raça/etnia, gênero e idade. 64 A violência interpessoal “se concretiza no interior das relações interpessoais mais diretas, e pode ser de caráter intra e extrafamiliar” (LIBÓRIO, 2004, p. 30). Estando vinculada diretamente à violência estrutural e social, a violência interpessoal vulnerabiliza mulheres, crianças e adolescentes, num processo de fragilização e desproteção às suas necessidades básicas, podendo estar associada às conseqüências do que ocorre nas relações macro com a exclusão social e as desigualdades, que envolvem questões de poder, tornandose mais suscetível quem menos exerce o poder. Por outro lado, pode-se pensar a gênese da violência nas micro-relações e no seu caráter cíclico, ou seja, o sujeito e o seu contexto encontram-se imbricados nos laços culturais e nas práticas sociais. Os aspectos psicológicos enfatizados por Libório (2003), dizem respeito à formação da identidade pessoal e social, ao processo de estigmatização, a formação de auto-imagem e auto-estima, o processo de vulnerabilização e situação de risco. Levando-se em consideração que crianças e adolescentes são pessoas em processo de formação, de crescimento e desenvolvimento, as questões emocionais não poderão estar desvinculadas das estruturais e sociais, tendo em vista as vivências com o ambiente em que estão inseridas e a dificuldade de discernimento em função da imaturidade diante de situações diversas e confusas. Em sintonia com Faleiros (1998) e articulando com as concepções de Leal (2002) e Libório (2004), entende-se aqui que a violência atravessa um fio condutor nessa problematização com os modelos de sociedade, não sendo possível separar da história, da cultura e dos modos de produção. Violência, aqui não é entendida como ato isolado, psicologizado pelo descontrole, pela doença, pela patologia, mas como um desencadear de relações que envolvem a cultura, o imaginário, as normas, o processo civilizatório de um povo (FALEIROS, E, 2000, p. 8, apud FALEIROS, V, 1998). Neste quadro, marcado pela antinomia entre o processo de democratização e as aspirações e expectativas de mobilidade social como garantia de direitos para o exercício da cidadania, a violência cresce em sua banalização, desrespeitando crianças e adolescentes, deixando em aberto uma ferida social na perda dos referenciais éticos. 2.3 Sexualidade Quanto à sexualidade, toma-se aqui na dimensão histórica, posto que, numa 65 dimensão mais social, no apagar das luzes do século XIX, a teoria freudiana já propunha a discussão da sua existência e manifestação, ainda que, de forma diferente, durante toda a vida humana. Freud mostra que a anatomia não determina a sexualidade do sujeito, mas, que ela tem conseqüências psíquicas para cada um de maneira particular e não de uma forma universal. O estudioso surpreendeu o mundo acadêmico e científico da sua época ao afirmar a existência da sexualidade infantil, rompendo com o paradigma de sua inocência. Seu texto sobre a teoria sexual infantil, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, lançado em 1905, chocou a sociedade científica, causando um corte epistemológico no pensamento reinante sobre a sexualidade na infância. Esta obra aponta para o discurso sobre a pulsão15 sexual e a descoberta do Édipo16. Esse processo precedido pela curiosidade primária, pulsão de conhecer, tanto epistemologicamente, como pelas outras buscas de saber, não é diferente daquela que mantém o pesquisador no laboratório tentando o desvendamento de enigmas. Desse trabalho epistêmico procedem as elaborações de saber com um viés simbólico, inconsciente e imaginário que procura recobrir o real ao qual se refere. Ressalte-se que as idéias pedagógicas da época, ainda concebiam a criança na visão de Rousseau, com uma natureza infantil ingênua. A infância era exaltada apenas como período da manifestação da essência humana. Portanto, poderia ser modelada, cumprindo o processo educativo sua função adaptativa. Caminhando na contramão dessas idéias, a noção de pulsão em Freud, como algo que sempre escapa ao controle, descarta a possibilidade plástica e adaptativa da educação, ou seja, entende a construção do saber como algo em constante transformação, na perspectiva do vir-a-ser. Nesse sentido, pode-se dizer que Freud rompeu também com a teoria da hereditariedade-degenerescência17, convocando “em torno do desejo toda a antiga ordem do poder” (ROUDINESCO, 2003, p.93), que pretendia controlar e gerar o cotidiano da sexualidade. Com isso, houve um movimento na sociedade na tentativa de libertar o sexo das coerções corporais e penais impostas nos séculos anteriores, passando a sexualidade de socialmente reprimida para uma sexualidade admitida, mas sempre cercada pela culpa. Portanto, a psicanálise foi “ao mesmo tempo o sintoma de um mal-estar da sociedade 15 Satisfação acéfala no real. “Representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente” (FREUD, 1915, Vol. XIV, p 142). 16 Constitui o momento estrutural fundamental da história de um sujeito, drama inconsciente, determinando suas escolhas, tornando-o sujeito societário, entrando no registro simbólico da Cultura e da Linguagem, mediado pela interiorização das regras sociais. 17 Oriunda do darwinismo social, foi uma referência importante para todos os saberes do final do século XIX, que pretendia submeter a análise dos fenômenos patológicos ao exame dos estigmas, tendo como conseqüência a decadência da civilização. 66 burguesa [...] e o remédio para esse mal-estar” (ROUDINESCO, 2003, p.93). Em Lacan, a sexualidade vai sendo construída através do processo de “sexuação”, em que cada sujeito subjetiva seu sexo levando em conta as identificações do sujeito e o falo18, disposto na dialética da demanda de amor, da experiência do desejo, relacionado com a ordem do logos, visto que é perpassada pela linguagem e pela mesma subvertida. No reconhecimento de um conceito de sexualidade legitimado na segunda metade do século XX, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), entende-se sexualidade como algo que transcende a divisão, que se estrutura subjetivamente numa dialética ética e cultural que se inscreve na civilização, deixando em aberto outros campos do saber, como indica a OMS. A sexualidade humana forma parte integral da personalidade de cada um. É uma necessidade básica e um aspecto do ser humano que não pode ser separado de outros aspectos da vida. Sexualidade não é sinônimo de coito, e não se limita à presença ou não do orgasmo. Sexualidade é muito mais do que isto. É energia que motiva encontrar o amor, contato e intimidade e se expressa na forma de sentir, nos movimentos das pessoas e como estas tocam e são tocadas. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e integrações e, portanto, a saúde física e mental. Se saúde é um direito humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada como direito humano básico. A saúde mental é a integração dos aspectos sociais, somáticos, intelectuais e emocionais de maneira tal que influenciem positivamente a personalidade, a capacidade de comunicação com outras pessoas e o amor (OMS- 1975). Contudo, as discussões acerca da sexualidade nos espaços educativos ainda são cercadas de uma censura muito sutil, num discurso considerado da ordem da indecência, num campo que durante muito tempo se pretendia assexuado e imune a qualquer forma de manifestação da sensualidade. Em se tratando dessa questão, certamente, a sociedade ocidental ainda nega a sexualidade da criança e do adolescente e não admite discuti-la, sobretudo, quando se trata da violência sexual contra crianças e adolescentes em que a sexualidade é publicizada e o processo de angelificação da criança internalizado pela maioria se transforma em processo de demonização. Nesse cenário, a sociedade coloca os conflitos de natureza sexual a partir do direito de exercer plenamente a sua sexualidade e de suas diferentes formas de vivenciá-la. Assim, a idéia da sexualidade vinculada ao âmbito do privado é reforçado pelos discursos institucionais, dificultando a compreensão da liberdade de expressão de crianças e adolescentes protegidos das situações de violência. 18 Ordenador significante para os dois sexos. 67 O combate à violência e a preocupação com a criança e adolescente toma uma importância fundamental conforme coloca Fuks (2005), tanto pela gravidade como pelas questões sociais e políticas que se articulam, numa perspectiva assistencial e sua incorporação na luta pelos direitos humanos. Destarte, a violência apresenta-se como obstáculo à efetivação do ECA em face da violação dos direitos, preconizada em seu artigo 5°. Dentre as formas de violências praticadas contra crianças e adolescentes em nosso país, Carvalho (2000) destaca: 1- a violência social que viola os direitos fundamentais de não satisfação das necessidades vitais: saúde, educação, lazer, cultura, convivência familiar e comunitária; 2- a violência doméstica ou intrafamiliar, que se apresenta numa desigualdade de poder, negando o valor da liberdade num processo de vitimização; 3- a violência da exploração sexual contra crianças e adolescentes, uma das mais perversas faces da violência contra crianças e adolescentes; 4- a violência institucional contra adolescentes autores de ato infracional nas instituições de internamento, a qual predomina a política da vigilância e punição em detrimento ao direito fundamental de estudar e a integridade física e mental; 5- a violência contra as crianças e adolescentes em situação de rua; 6- a violência da exploração do trabalho infantil: submete crianças e adolescentes ao mercado de trabalho no país inserido no capitalismo globalizado, com o trabalho precoce para assegurar a sobrevivência do grupo familiar. Nessa perspectiva de Carvalho (2000), a abordagem neste estudo enfatizará a violência doméstica ou intrafamiliar e a violência da exploração sexual contra crianças e adolescentes. Por se tratar de uma violência considerada intersubjetiva, de natureza interpessoal e que perpassa todas as classes sociais, a violência doméstica na visão de Guerra (2005, p.31) “apresenta uma relação com a violência estrutural”. Pertence à esfera do privado e se reveste na caracterização do sigilo. Sendo assim, para esta autora, a violência doméstica comporta quatro tipos reconhecidos: violência física, violência sexual, violência psicológica e negligência. A violência física sendo considerada aquela em que o uso da força física e do poder disciplinador por parte dos pais ou responsáveis contra os filhos, no âmbito familiar, esteve sempre presente de forma endêmica na nossa sociedade e foi incorporada como método de educação e controle sobre as crianças. A violência psicológica ou tortura psicológica acontece com a depreciação ou ameaças de abandono pelo adulto em que a criança pode se tornar medrosa, ansiosa com dificuldades de auto-aceitação trazendo-lhe sofrimento mental, representando formas de sofrimento psicológico. Carvalho (2000) destaca a interferência negativa sobre a criança e sua 68 competência social, num comportamento destrutivo, estando muitas vezes associada a outros tipos de violência. A negligência aparece em forma de omissão no provimento das necessidades físicas e emocionais de crianças e adolescentes. Portanto, para Guerra (2005) e Carvalho (2000) a negligência configura-se na falha dos pais ou responsáveis em termos de alimentação, vestuário, medicação, educação e acidentes. A violência sexual toma forma como uma violência praticada geralmente por adultos da confiança da criança ou do adolescente, utilizando-se da sedução ou ameaça para atingir seus objetivos, pode ser em sua maioria uma relação incestuosa. É comum a prática de atos libidinosos que não deixam marcas físicas, mas podem trazer graves conseqüências emocionais às suas vítimas. Esta última, a violência sexual contra crianças e adolescentes, priorizada neste estudo e ampliada a sua compreensão com a concepção de outros teóricos, incorpora a discussão sobre a exploração sexual no segmento infanto-juvenil por ser uma categoria pertinente ao estudo da violência sexual. 2.4 Violência Sexual Infanto-juvenil A violência sexual infanto-juvenil é um fenômeno complexo e para compreendê-la é necessário contextualizá-la em suas múltiplas dimensões histórica, econômica, cultural, psicossocial, política e ética. Neste sentido, a visibilidade dada hoje ao tema, sobretudo ao abuso sexual, acontece em função de uma tentativa de ruptura do pacto silencioso construído ao longo dos séculos e, lentamente derrubado, respaldado pelas mudanças de procedimentos na jurisprudência. Estas, por sua vez, refletindo novas relações sociais, resguardando não só as mulheres, como também as crianças e adolescentes. Para Gonçalves (1999, apud TORRACA, 1999), a violência contra a criança esteve sempre presente na história da humanidade desde tempos imemoriais, como a matança de crianças ordenada por Herodes, registrada em livros religiosos como a Bíblia e o infanticídio relativamente comum na Roma Antiga e na Grécia, onde os gregos eliminavam sumariamente recém-nascidos portadores de deficiência física. Segundo Áriès (1978) a descoberta da infância enquanto sujeito social começou no século XIII e sua evolução pode ser percebida na história da arte e da iconografia dos séculos XV e XVI, mas, foi só a partir do final do século XVI e durante o século XVII que os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se numerosos e significativos. 69 Ainda no final do século XVI e início do século XVII, com a reforma moral e religiosa, houve uma mudança na concepção da infância, sobretudo, em relação à sua sexualidade. Destaca-se, neste contexto, a ausência de um sentimento de infância, surgindo então à noção da inocência, fragilidade e debilidade infantil. Portanto, o “sentimento de infância” (ÁRIES,1978) foi seguido, no século XVIII, pelo sentimento familiar, favorecendo o aparecimento de sentimentos novos dentro do grupo, uma afetividade exarcebada que passava a representar as cenas de família. Como afirma Gonçalves (1999, p.135), “no século XIX, milhares de crianças francesas morreram em decorrência do filicídio (AZEVEDO; GUERRA, 1997); ainda hoje, em algumas tribos africanas, meninas são iniciadas sexualmente por familiares (LEVETT, 1989), e recém-nascidos são vendidos como escravos para tribos vizinhas (RADBILL, 1988)”. Considera ainda que, na segunda metade do século XX, a violência foi qualificada como o “mal do século” e apontada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um “fenômeno endêmico”, despertando à atenção da opinião pública e dos pesquisadores sobre as várias formas pelas quais ela se manifesta. Neste sentido, a infância, concebida como período de educação e formação, é um dado social relativamente novo e contemporâneo do século XX. A concepção da infância é resultado de um processo histórico construído socialmente em categorias etárias, de posição e inserção social. No caso do Brasil, a história social da infância revelou-se num quadro de negligência baseado no pátrio poder autoritário, em concepções socializadoras e educativas, por meio dos castigos físicos; na impunidade dos vitimizadores de crianças e adolescentes e na omissão das políticas públicas destinadas às crianças e adolescentes. Assim, problemas que mesmo perpassando todas às classes sociais, se incidiram nas classes sociais econômicoculturalmente menos favorecidas. Somente a partir da última década do século XX, com a pressão de normativas internacionais, a exemplo da Convenção Internacional dos direitos da criança e com o ECA/90, que compreende a criança como sujeito de direitos inserida num contexto cultural de poder, dominação, discriminação e exploração com elementos sociais de pobreza/miséria, iniqüidade, disparidade geográfica, degradação rural, desorganização urbana e desestruturação familiar, dificultando a possibilidade do exercício da cidadania e a garantia de seus direitos. A violência sexual contra crianças e adolescentes, segundo Passeti (2004, p. 374), “deixou de ser vista como uma característica inerente a pais pobres e famílias desestruturadas quando as estatísticas revelaram que são os pais em todos os níveis sociais, os principais 70 violentadores físicos e sexuais de seus filhos, tanto em países ricos como em países pobres”. Segundo dados do Relatório UNICEF-Situação da Infância Brasileira 2006, estimase que 20% das mulheres e 10% dos homens de todo o mundo tenham sofrido violência sexual na infância, chegando a apenas 6% a estimativa de agressores punidos. Ainda segundo o referido Relatório, o número de Delegacias de Proteção à criança e ao adolescente (DPCA) até o ano de 2003, era de vinte e quatro em dezesseis Estados e no Distrito Federal e o número de Varas Especializadas em todo o país era apenas quatro. Só a partir de 1988, a violência passou a ser considerada uma questão de saúde pública e o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Violência e Acidentes, criando em 2004 os Núcleos de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde, sendo instalados 65 núcleos em todo o Brasil. Essas mudanças se justificam pela evidência na visibilidade que a violência sexual contra crianças e adolescentes tem tomado a partir das duas últimas décadas do século XX, como aponta Landini (2005), ao afirmar que esta questão não era desconhecida para os especialistas nem para o público leigo durante as décadas anteriores. Dentre as mudanças, uma das mais significativas ocorridas ao longo deste século, argumentadas por esta autora, refere-se às atenções que antes eram voltadas para os danos morais por causa da honra, passando a ser vista como repressão, atraso moral ou expressão do patriarcalismo, voltando-se para os danos psicológicos. A escola positivista que sustentava a defesa dos “crimes contra a honra” vê-se diante do inesperado fomento ao debate da sexualidade e das questões ligadas a juventude. Por conseguinte, perderam espaço os crimes “morais” e ganharam as manchetes o abuso sexual e a pedofilia, vinculadas à própria estrutura da sociedade brasileira. Além do que, alguns fatores interferem na dinâmica social como o deslocamento do discurso científico para dentro dos movimentos sociais e da mídia de massa e uma reação à liberdade sexual. Do ponto de vista da sociologia Landini (2005) sinaliza para a teoria processual de Elias como a abordagem que proporciona uma leitura da mudança conceitual em relação à violência sexual, havendo uma variação histórica na definição dos conceitos de violência sexual que pode ser relacionada à própria estrutura da sociedade. Essas mudanças relacionadas aos tipos de violência consideradas inaceitáveis, aparecem no exemplo da criminalização da pornografia infantil a partir de 1990, na substituição do termo defloramento do Código Penal de 1890 pela sedução e pelo atentado ao pudor mediante fraude, figuras jurídicas do Código Penal de 1940. Entretanto, esse lento movimento na jurisprudência, aponta para o fortalecimento da medicina legal, proporcionando maior assistência à vítima. 71 A abordagem da psicologia colocada por Landini (2005) afasta-se das questões morais e justifica suas conclusões, a partir de teorias e dados empíricos sistematizados priorizando as conseqüências psicológicas e, portanto, individuais desses crimes. Assim, a questão da violência sexual deixou de ser um problema moral para ser uma discussão médica, jurídica e psicológica. Sendo assim, os campos profissionais passaram a intervir na realidade a partir de seus conhecimentos, engendrando outras questões como o crescimento da sensibilidade em torno dos crimes contra crianças e adolescentes. Após a legitimação da criança enquanto sujeito de direitos, instituído na Constituição Federal em 1988, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em 1989 e no ECA, em 1990, foi recente a inclusão dessa questão na agenda pública, exigindo do Estado políticas públicas, recursos e instalação de capacidade técnico-política para atender às vítimas da violência sexual, a fim de libertarem estas vozes sufocadas pela coação e fazerem valer os seus direitos. O ECA em seu art. 2° considera “criança para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente a pessoa até doze anos e dezoito anos de idade”. A violência sexual fere diretamente o Artigo 17° do ECA, que garante: O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Mesmo com essa prerrogativa, no Brasil não há uma legislação específica sobre “crimes sexuais contra crianças e adolescentes”, sendo a vigente, limitada e desatualizada, que juntamente com a impunidade, a cumplicidade da família e da sociedade, a lentidão no processo judicial e a concepção de repressão da Polícia dificultam a garantia dos direitos. A violência sexual encontra-se assim, desmembrada em duas dimensões de um mesmo fenômeno, constituindo-se em categorias diferentes que devem ser compreendidas no contexto da violência sexual, como o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e adolescentes. 2.5 O abuso sexual Em relação a esta categoria, existe uma literatura incipiente por se tratar de uma das mais difíceis de ser notificada, em função do silêncio que a cerca. Trata-se de uma relação de 72 força imposta pelos pactos de silêncio mantidos por familiares, amigos, vizinhos, comunidades e profissionais que negam as evidências e sinais em nome de interesses de diversas ordens, servindo para ocultar a extensão do fenômeno do abuso sexual. É importante ressaltar conforme Guerra (2005), o primeiro estudo científico nessa área, a partir da observação de casos de violência física, realizado pelo professor de medicina legal Tardieu em 1860, na França. Por referir-se a práticas sexuais inadequadas para a idade e desenvolvimento psicossexual da criança, esse fenômeno chamava sua atenção, nos quais ele colocava a força da negação à sexualidade e ao abuso de poder em relação aos mais fracos. Os estudos de Tardieu foram gestados num momento de grande conservadorismo em relação às idéias sobre a infância e a família. Seu trabalho não teve repercussão, pois indicava a possibilidade da associação da violência doméstica com problemas sociais, revelando a crueldade da família, num governo autoritário, sendo prioridade ocultar as mazelas sociais e preservar a família. Em sua análise sobre a questão do abuso sexual, Gabel (1997, p. 10)) destaca que etimologicamente o termo abuso sexual “indica a separação, o afastamento do uso [...] normal, sendo ao mesmo tempo um uso errado e um uso excessivo”. O que não significa que houvesse um uso permitido. Atenta para a noção da ultrapassagem de limites, transgressão, abuso de poder, abuso de confiança e intencionalidade. Supõe ainda uma disfunção em três níveis: o poder exercido pelo grande (forte) sobre o pequeno (fraco); a confiança que o pequeno (dependente) tem no grande (protetor); o uso delinqüente da sexualidade, ou seja, o atentado ao direito que todo indivíduo tem de propriedade sobre o seu corpo. Corroborando com essa questão, Faleiros (2000, p. 7) entende que o abuso sexual é uma: Situação de uso excessivo, de ultrapassagem de limites: dos direitos humanos, legais, de poder,de papéis, de regras sociais e familiares. Ocorre num contexto de dominação, no qual o violentado encontra-se subjugado ao violentador, sem condições de opor-se. Abordando um assunto tão delicado e complexo, é indispensável colocá-lo em sua real dimensão, enquanto manifestação de uma violência contra o ser humano. O abuso sexual “é uma das formas de maus-tratos que mais se ocultam: a criança tem medo de falar e quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-la” (GABEL, 1997, p. 11). A etiologia e os fatores que determinam o abuso sexual contra a criança e o adolescente envolvem questões culturais, de relacionamento, como também questões da sexualidade que dificultam a notificação e 73 perpetuam o silêncio na complexa dinâmica familiar. Leal (2002, p. 38) indica que o abuso sexual de crianças e adolescentes é considerado pela Agência Nacional de Notícias da Infância (ANDI), (op.cit., p.44), como “ato ou jogo sexual em que o adulto submete a criança ou o adolescente (relação de poder desigual) para se estimular ou satisfazer sexualmente, impondo-se pela força física, pela ameaça ou pela sedução, com palavras ou com a oferta de presentes” e pelo (UNICEF, 2002, p. 7), como fenômeno que “não tem implicações comerciais, na medida que não intervém nas forças de mercado nem se produz nenhum benefício secundário, do ponto de vista material”. No abuso sexual, não é o toque, nem a violência física e nem a falta do consentimento que vão defini-lo satisfatoriamente, mas todo o processo no qual se manifesta. A sexualidade estaria vinculada ao desrespeito ao indivíduo e aos seus limites, à troca de sua postura de sujeito a uma de objeto. O outro é destituído do seu lugar de ser desejante e forçado a ser objeto de um jogo perverso. É inegável que o abuso sexual pode ocorrer sem deixar seqüelas visíveis, mas as seqüelas afetivas são mais difíceis de identificar e não são por este motivo, de menor gravidade. Esta violência deixa marcas profundas no psiquismo das vítimas, o que se agrava pela conotação sensacionalista que é dada aos casos que chegam a público. A esse respeito Gabel (1997, p. 9) aponta que: Quando o abuso sexual contra crianças e adolescentes é seguido de violência física, há seqüelas visíveis: equimoses, lacerações, infecções, mas as seqüelas mais graves e difíceis de avaliar são as afetivas: sentimento de culpa, angústia, depressão, dificuldades de relacionamento e sexuais , etc. Talvez a gravidade do traumatismo esteja fundamentada em torno da vulnerabilidade, da idade da criança, da repetição, do tipo do abuso ou do silêncio em torno da criança, que tem que lidar com a dor de ter sido violentada em seu corpo e suas emoções. Para Azevedo; Guerra (2000), a gravidade para a vítima, a curto e longo prazo, pode chegar à gravidez precoce, suicídio etc. O abuso sexual afeta, ao mesmo tempo, a saúde física e mental e o direito individual de se dispor da própria sexualidade e privacidade. O abuso sexual pode ser considerado em duas manifestações do fenômeno: intrafamiliar e extra-familiar. O intra-familiar acontece quando o violentador faz parte do grupo familiar, considerando-se não apenas a família consangüínea, mas também as famílias adotivas e substitutas, ou ainda amigo da família. Por serem conhecidos da criança ou da família aproveitam-se da confiança, do lugar privilegiado para exercer seu poder de sedução. A maioria está numa posição de poder sobre as crianças e adolescentes em conseqüência da 74 idade, da autoridade ou de ambas e, aproveitam-se da incapacidade de tomar decisões em relação à sexualidade. Entende-se que não há consentimento porque a criança ainda não desenvolveu a compreensão que lhes permita uma reação livre e consciente em relação ao comportamento do adulto. O extra-familiar geralmente ocorre com uma pessoa estranha ao relacionamento familiar da criança ou adolescente, como nos casos de estupro, com conseqüências tão graves quanto o abuso intra-familiar. A noção de abuso sexual revelada na contemporaneidade não se vincula a uma discussão estática, pois não é uma realidade só de meninas, há meninos envolvidos, inclusive crianças hermafroditas, mas as pesquisas não avançaram o suficiente. A subnotificação ainda é uma realidade frente às dificuldades culturais e sociais em relação à denúncia quando se trata de crianças do sexo masculino. Butler (1979) em sua pesquisa e escuta às crianças vítimas de abuso sexual intrafamiliar, nos Estados Unidos, mais particularmente os casos de incesto, coloca o sentimento de se sentirem traídas pelos adultos em suas famílias, que lhes negam a segurança emocional, física e sexual. Sufocam os seus verdadeiros sentimentos de profunda insegurança e confusão, desconfiam de suas percepções, negam sua própria realidade, sentem-se humilhadas, num estado de descrença e incapazes de livrarem-se da situação. Muitas sentiam que o adulto fazia algo errado, sendo em muitos casos a única forma de amor, afeição e atenção que obtinham. Essa situação somada ao sentimento de culpa e ao medo de não acreditarem no que dizem deixam-nas sentirem-se sem saída, condenadas à prisão do abuso. E quando a atividade sexual prolonga-se durante anos a criança sente o peso da responsabilidade de ocultar a verdade de todos, o que proporciona ao abusador a liberdade de aumentar o grau de intimidade. Dessa forma, sustentam o segredo da família e mantêm o círculo da impunidade: Se essas vítimas têm medo de ser punidas por um ou por ambos os pais, medo das repercussões sobre o sistema familiar se contarem, medo de que não lhes dêem crédito, medo de perder o único amor e atenção que recebem, por maiores que sejam as preocupações que isso causa, ou se atribuem a culpa a si mesmas pelo que aconteceu, o segredo continua a salvo com elas, e a família se fecha ainda mais sobre si mesma (BUTLER, 1979, p. 38). A autora acima citada chama a atenção sobre o silêncio nos casos de abuso sexual com a negação virtual sobre a sua existência, maneira pela qual as famílias tentam enfrentar o impacto do horror de saber sobre algo tão terrível que não pode ser dito. Ao que é precedido na maioria das famílias pela incomunicabilidade e o constrangimento que cercam as questões 75 da sexualidade e intimidade. Essas atitudes negativas em relação à sexualidade continuam sendo perpetuadas sutilmente pela cultura com expectativas culposas e irrealistas. No momento em que se vivencia a questão da violência sexual, esconder de si mesmas a verdade sobre o abuso sexual funciona como uma tentativa de se manterem intactas para não ameaçarem a unidade da família e sua base econômica. Na análise de Faiman (2004), que reflete sobre os aspectos do funcionamento mental envolvidos em situações de abuso sexual intrafamiliar, em sua experiência no atendimento no Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, indica que o atendimento deve ser dirigido a toda família. Trabalha com a base conceitual da psicanálise que coloca a interdição dos impulsos incestuosos como: Importância central no desenvolvimento psicológico, sendo considerada como o paradigma da possibilidade de reconhecimento, pelo sujeito, de que existem limites para a realização de seus desejos, para sua conduta, e que balizam seu reconhecimento de si (FAIMAN, 2004, p. 19). Nessa ordem, a psicanálise coloca que a “interdição ativa pelas figuras parentais asseguraria à criança as condições de um desenvolvimento psíquico saudável e a sua integração à comunidade cultural humana” (FAIMAN, 2004, p. 11) e reflete sobre a responsabilidade dos pais ao apresentar para os filhos a Lei que rege a cultura humana, entendida como o paradigma de limite, diferenciando a ordem do caos. A consumação do incesto exerce um efeito nocivo sobre a capacidade da criança de fantasiar, sendo vivido como um desnudamento da fantasia e uma invasão no mundo mental, ou seja, pode-se pensar nas manifestações desse tipo de dificuldade, no empobrecimento da fantasia e da atividade reflexiva presentes nos distúrbios do sono onde a criança manifesta angústia e agitação. Ainda na análise de Faiman (2004) a ocorrência do incesto traduz uma falha no que diz respeito às normas sociais, caminho percorrido por Freud, na construção da teoria psicanalítica, entendida como uma renúncia necessária à civilização envolvendo representações mentais e o processo de simbolização. Para essa compreensão, na origem da estruturação psíquica o paralelo entre o desenvolvimento ontogenético e filogenético reproduz o trajeto percorrido pela espécie humana, propondo elucidar as origens das organizações sociais e suas regras de convívio. Para isso, as limitações impostas à satisfação sexual e aos impulsos agressivos, entre eles, a proibição do incesto e do assassinato, são considerados a base de estruturação de uma comunidade. 76 Sendo assim, a compreensão do incesto como uma situação anticivilizatória por natureza, encontra ancoramento na antropologia, nos estudos de Lévi-Strauss, que entende a questão do interdito ou o estudo das bases da interdição do incesto, como a passagem do homem de um registro natural para o registro da cultura, marcando o homem como um ser de cultura, da civilização. A partir das análises de Guerra (2005), Gabel (1997), Faleiros (2000), Leal(2002), Azevedo e Guerra (2000), Butler (1979) e Faiman (2004), pode-se depreender a gravidade do abuso sexual de crianças e adolescentes e a imprevisibilidade das conseqüências em suas vidas. Para Fucks (2005, p.15), o “abuso sexual no contexto familiar [...] é hoje objeto de investimento significativo em diversos lugares do mundo”. Associado ao combate à violência e à preocupação com a criança, a mulher e a família, adquire significação fundamental pela articulação com as questões sociais e políticas. Fucks (2005) traz à tona dois processos fundamentais de produção de crianças vítimas, bastante discutidos no Brasil: o processo de vitimação e vitimização. No primeiro, considera-se que as crianças são vítimas da violência estrutural que caracteriza as sociedades marcadas não só pela dominação de classe como também pela extrema desigualdade distributiva, colocando-as em situação de alto risco. Já no segundo, evidencia-se numa dimensão mais pessoal ou interpessoal, exercida em todas as classes sociais, vitimizando crianças pobres, mas, também, de classe média e alta não deixando de responsabilizar toda a engrenagem social. Na visão desta autora, esses processos se sobrepõem e se combinam, mas estão atravessados por relações sociais de poder. Sendo assim, a vítima passa a ser cúmplice de um pacto silencioso, em que sua palavra passa a ser censurada sob o medo da coerção, revelação e das punições. A esse respeito, muito ainda precisa ser feito, haja vista a ausência de serviços de família acolhedora no Brasil, comprometendo o processo de atendimento, uma vez que o agressor geralmente faz parte da família. Nesse caso, em relação à denúncia, o ECA em seus artigos 245, 13 e 136, inciso IV, indica o fluxo a ser seguido na revelação de maus-tratos contra crianças e adolescentes entre os quais se inclui o abuso sexual. Por exemplo, o artigo 245 determina que profissionais e gestores de estabelecimentos de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola e creche devem comunicar à autoridade competente as situações de maus-tratos de que tenham conhecimento ou suspeita. Já o artigo 13 define como obrigatória a comunicação ao Conselho Tutelar dos casos de maus-tratos. Um dos maiores desafios a ser enfrentado pela vítima de abuso sexual constitui-se na 77 sua revelação. Torna-se então o primeiro e o mais decisivo passo para romper com o pacto de silêncio imposto pela situação de abuso sexual e para o seu enfrentamento. O segredo de família mais bem guardado esconde “um fenômeno coberto por um pesado e espesso véu” [...] em que a vergonha e a culpa que o acompanham “tornam seu desvelamento extremamente penoso e, por esta razão, frequentemente postergado” (SAFFIOTI, 1997, p. 170). O desvelamento de uma situação de abuso sexual, ou seja, o momento de romper com uma situação de silêncio, de desocultamento, pode ser constituída por dois fatos na concepção de Faleiros (2003), a revelação e a notificação e por dois momentos, o privado e o público. A revelação é concebida num primeiro momento como privada, ou seja, feita para alguém de quem se espera ajuda e ações. Num segundo momento, a revelação é pública onde se concretiza a denúncia e o registro da mesma em instituição governamental ou não governamental. Em seguida, a denúncia entra no processo de notificação, no registro policial, em Boletim de Ocorrência e em imediata instauração do Inquérito Policial. Ainda segundo esta autora, existem dois tipos de porta de entrada que fazem parte do percurso da denúncia: as da queixa e as da notificação do crime. As portas de entrada da queixa são de acesso público, conhecidas da população, têm a função de ouvir a queixa, fazer o acolhimento, dar apoio e informação sobre as providências a serem seguidas, fazer o encaminhamento, servindo de trânsito entre a queixa e a notificação. Assim, recebe a revelação pública da situação de abuso sexual. Enquanto que, as portas de entrada da notificação investigam a queixa, indiciam ou não o acusado, encaminham o Inquérito Policial ao judiciário como também encaminham as pessoas envolvidas na situação para o atendimento e notificam aos órgãos de Defesa de Direitos como o Ministério Público, Conselho Tutelar e Vara da Infância e da Juventude. Portanto, registram oficialmente a notícia de crime. Doravante, perante a complexidade do fenômeno, faz-se necessária para o seu enfrentamento uma articulação denominada por Eva e Vicente Faleiros (2001) “em rede”. Sendo uma perspectiva de trabalho recente, as redes são entendidas como organizadas “a partir da articulação de atores/organizações/forças existentes no território, para uma ação conjunta multidimensional, com responsabilidade compartilhada (parcerias) e negociada” (FALEIROS, E, 2003. p.24). A partir desse entendimento, surge como resultado da pesquisa realizada por Eva Faleiros e Vicente Faleiros (2001) no Distrito Federal, os distintos caminhos percorridos pela denúncia: 1- O Fluxo da Defesa de Direitos que se ocupa com a garantia da cidadania, sendo composto por Conselhos Tutelares, Varas da Infância e da Juventude, Ministério Público, 78 Defensoria Pública e Centros de Defesa e que têm como função central a defesa e a garantia dos direitos dos envolvidos na situação de abuso sexual notificada e a proteção de violações a esses direitos. Portanto, determina com força de lei, ações de atendimento e de responsabilização; 2- O Fluxo de Responsabilização dedica-se ao processo legal, da sanção tendo como funções a responsabilização judicial dos autores de violações de direitos e proteção da sociedade. As instâncias são: Delegacias de Polícia, Delegacias Especializadas (de Proteção à Criança e ao Adolescente), Instituto Médico Legal, Varas Criminais, Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente, Delegacia da Criança e do Adolescente e Vara da Infância e da Juventude (quando o abusador é menor de idade); 3- O Fluxo de Atendimento trata das pessoas e dos danos sofridos, inclusive as dores subjetivas. Tem a função de dar acesso a políticas sociais e a direitos de proteção, prestar serviços, cuidar e proteger, como também, prestar informações e cumprir as determinações dos fluxos de defesa de direitos e de responsabilização. No entanto, a pesquisa realizada por Eva Faleiros no período 2001-2002, ampliada para o Brasil envolvendo as cidades de Belém-PA, Recife-PE, Vitória-ES, Goiânia-GO e Porto Alegre-RS, correspondendo a cada macro-região brasileira, aponta como resultados a evidência das relações de poder. Dentre elas, a relação de poder de idade entre abusador e vítima, onde 70% das vítimas são crianças, com idade abaixo de 12 anos, com incidência maior na faixa etária de 7 a 9 anos, correspondendo a 25,4%. Muitos dos abusos sexuais ocorrem durante anos, sendo a idade das vítimas notificadas quando ocorre a denúncia. A relação de poder de gênero aparece com 95,7% dos abusadores do sexo masculino, confirmando pesquisas nacionais e internacionais sobre abuso sexual. A relação existente entre abusadores e vítimas aponta para 60,4% de abusadores familiares das vítimas) (13 pais, 6 padrastos, 2 avôs, 2 irmãos, 1 madrasta, 1 tio, 1 cunhado e 1 tio-avô). Outro fator importante apontado nesta pesquisa foram os entraves à resolubilidade, entre os quais se destacam: os dificultadores contextuais, que aparecem nas questões legais, de princípio/estruturais, culturais e comunicacionais; e os obstáculos operacionais, presentes nas questões financeiras, materiais e metodológicas. Os dificultadores contextuais são considerados: os de princípio/estruturais com o não cumprimento do preceito constitucional e do ECA da prioridade absoluta para crianças e adolescentes, revelada na ausência de políticas públicas efetivas voltadas para o atendimento das famílias, vítimas e abusadores, na insuficiência orçamentária na área da criança e do adolescente; os socioculturais que dificultam as denúncias, fortalecendo o pacto de silêncio, a cultura do medo e da impunidade e a não credibilidade nas leis e nas instituições; os 79 comunicacionais com o desconhecimento de leis, serviços, dados, pesquisas, a desarticulação das ações e a falta de responsabilidade social sobre um crime endêmico. Enquanto que os obstáculos operacionais são identificados como: financeiros e materiais, com a insuficiência de recursos financeiros dificultando o funcionamento da rede de serviços, com uma infra-estrutura inadequada e desatualizada; os metodológicos na descontinuidade e fragmentação das ações, carência de rotinas definidas de referência e contra-referência, burocratização dos serviços, insuficiência de recursos humanos especializados e ineficiência dos serviços do sistema de garantias, previsto no ECA. Os resultados dos descaminhos da denúncia realizada por Eva Faleiros (op.cit.) expõe a dura realidade brasileira com sua fragilidade de articulação. Ficando evidenciado a hegemonia do Fluxo de Responsabilização como o mais atuante na prevalência da concepção criminológica e punitiva, a desmobilização do Fluxo de Atendimento com menos recursos deixando em situação crítica o seu reconhecimento e o comprometimento do Fluxo de Defesa de Direitos pela não integração plena dos instrumentos definidos e preconizados pelo ECA, comprometendo o exercício de suas funções. Segundo dados da ABRAPIA no observatório da infância (2007), as denúncias efetuadas no período de fevereiro de 1997 a fevereiro de 2003 em todo o Brasil correspondem a 1.547 casos. Desse número 378 (24,42%) são referentes ao Nordeste, 91 (5,8%) no Centro Oeste, 109 (7,04%) na região Norte, 795 (51,36%) no Sudeste e 174 (11,24%) na região Sul. O Estado da Paraíba aparece com 15 casos correspondendo a 0,97%. Dentre os primeiros municípios do Nordeste que se destacam no número de denúncias são o Recife (PE) com 24 denúncias (1,55%) e Fortaleza (CE) com 67 denúncias (4,33%). Com efeito, “O saber sobre o abuso sexual deve ser acompanhado por um compromisso político em defesa das crianças e adolescentes, patente na Convenção de Direitos da Criança, assim como no ECA” (VOLNOVICH, 2005, p. 54). O abuso sexual é incluso na legislação penal brasileira na categoria dos crimes contra os costumes, sendo considerado como atentado violento ao pudor (arts. 213 e 214 do Cód. Penal). Em suas disposições gerais a hipótese do agente causador ser pai adotivo, padrasto, irmão, tutor, curador ou empregador da vítima (art. 266 do Código Penal) leva ao aumento da pena. Na Parte Geral do Código, editada com a lei 7.209/84, o art. 61 n° II, letras e e f estabelece como circunstância agravante a condição de parentesco. Nos crimes sexuais essa relação é causa de aumento de punição. 80 2.6 A exploração sexual A exploração sexual de crianças e adolescentes tem sido um tema que causa indignação e mobilização na atualidade em função da sua complexidade e da preocupação com a cidadania de um segmento que atinge o status de sujeito de direitos do ponto de vista legal. Constitui-se em um dos graves problemas reconhecido pela sociedade. No entendimento de Faleiros, a exploração sexual configura-se em: Uma relação de poder e de sexualidade mercantilizada, que visa a obtenção de proveitos por adultos, que causa danos bio-psico-sociais aos explorados, que são pessoas em processo de desenvolvimento. Implica o envolvimento de crianças e adolescentes em práticas sexuais coercitivas ou persuasivas, o que configura uma transgressão legal e a violação de direitos à liberdade individual da população infanto-juvenil( FALEIROS, 2000, p. 72). Conforme dados da Pesquisa Nacional da DIEST/CBIA sobre a Exploração Sexual de Meninas Adolescentes realizada nos anos de 1990 e no período mais recente, já apontava dados preocupantes. “A exploração sexual infanto-juvenil se apresenta em todas as unidades federadas do País”, (PINTO, 1995, p. 37). A faixa etária mais visível estava entre 12 e 16 anos, mas encontrava-se a presença de meninas entre quatro e sete anos usadas sexualmente das mais diversas formas. Considerado um fenômeno de conhecimento público, ou seja, de todos, porém não alcança visibilidade institucional por se tratar da esfera privada do mercado. Existe um comércio vendendo o corpo de crianças e adolescentes para uma demanda consumidora, em sua grande maioria masculina, utilizando os serviços sexuais de crianças e adolescentes. Ou seja, há uma mercantilização da relação de trabalho de meninas, meninos, jovens travestis nesse processo. A exploração sexual de crianças e adolescentes: Vem se caracterizando como uma das mais perversas faces da exclusão social, por envolver um segmento da população que menos condições tem de se defender e cujos direitos, previstos pela Constituição Federal e pelo ECA, deveriam estar sendo prioritariamente assegurados (PAIVA, 1996, apud BRAZ, 1996, p. 227). Este problema se constitui em uma questão histórica mundial, existente desde os primórdios da humanidade. Mesmo sendo um problema de extensão mundial, essencialmente 81 característico do capitalismo, pois está fundamentado no lucro, que, também, vem marcando a realidade brasileira, sendo aí incluídos a prostituição infantil, o turismo sexual, a pornografia e o tráfico para fins sexuais. Segundo Leal (2002, p. 38) “O Instituto Interamericano del Nino/Organização dos Estados Americanos (IIN/OEA), classificou em 1998 a exploração sexual comercial em quatro modalidades: tráfico para fins sexuais, prostituição, turismo sexual e pornografia, sendo essa classificação incorporada nas agendas internacionais relativas à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes”. O tráfico e venda de crianças para propósitos sexuais é o tráfico que consiste em todos os atos envolvendo o recrutamento ou transporte de pessoas entre ou através de fronteiras e implicam em engano, coerção, alojamento ou fraude com o propósito de colocar as pessoas em situações de exploração, como a prostituição forçada, práticas similares à escravização, trabalhos forçados ou serviços domésticos exploradores, com uso de extrema crueldade. A prostituição infantil é o uso de uma criança em atividades sexuais em troca de remuneração ou outras formas de consideração. O turismo sexual é a exploração sexual comercial de crianças por pessoas que saem de seus países para outros, geralmente países em desenvolvimento, para ter atos sexuais com crianças. A pornografia infantil é qualquer representação através de quaisquer meios de uma criança engajada em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas ou qualquer exibição impudica de seus genitais com a finalidade de oferecer gratificação sexual ao usuário, e envolve a produção distribuição e/ou uso de tal material (ECPAT, 2002). Essas categorias se entrecruzam, alimentando uma rede e um círculo vicioso difícil de ser interrompido, podendo ter conseqüências no que diz respeito ao aumento da prostituição. Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 1996), cerca de 2 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos estão prostituídos no mundo, ficando assim a prostituição em terceiro lugar como um grande negócio no mundo em termos de volume de dinheiro, perdendo somente para o comércio de armas e para o tráfico de drogas. A exploração sexual de crianças e adolescentes tem características diferentes de um país para outro, conforme levantamento realizado por Paiva; Pereira (1996), tendo sua incidência mais forte no Terceiro Mundo (América Latina, América Central, Ásia, África) e, até mesmo, de alguns países do Leste Europeu, mas quase sempre com laços orgânicos de pessoas e grupos dos países ricos onde se localizam poderosas redes de tráfico humano. Na América Latina, de acordo com estas autoras, o Brasil, o Chile e a Venezuela são os países onde a situação é mais grave, predominando o comércio do sexo originado da 82 exploração de crianças que precisam tirar das ruas sua sobrevivência. No Brasil, as regiões Sul e Nordeste vivenciam a gravidade do sexo-turismo. Na Europa, o comércio de sexo tem como base as redes de tráfico internacional, vindas da América Latina, África do Oeste, englobando Europa do Norte, Ocidental e Leste Europeu como Ucrânia e Bósnia, onde o crescimento do problema é alarmante. Na África, a exploração sexual acontece via serviços domésticos em hotéis, restaurantes e bordéis. Os campos de refugiados e suas comunidades vizinhas são demandas em potencial, originários das guerras em Moçambique, Sudão, Libéria, Ruanda, Somália, Angola e Zâmbia, em grande parte ligadas ao caráter colonialista de suas relações com as exmetrópolis. No Oriente Médio, além do “trabalho doméstico”, materializa-se e “legitima-se” a exploração de crianças e adolescentes através do casamento precoce, prática comum naquela região. Já na Ásia o fenômeno é ainda mais grave, por sua extensão territorial, sendo segundo várias ONGs, a Tailândia (colonizada pela França), a primeira no ranking mundial com os maiores números em termos de prostituição. O quadro é o mesmo em todo o mundo, onde o determinante em qualquer instância é sempre o interesse comercial e o lucro. O Brasil também enfrenta esta realidade da exploração sexual de crianças e adolescentes, diferenciado pela particularidade regional. Um estudo feito pelo CECRIA, em março de 1996, conferiu uma análise qualitativa às conclusões da CPI da Prostituição InfantoJuvenil, em 1993, que investigou os casos de prostituição infantil em nosso território, dando visibilidade ao fenômeno. A partir daí as instituições que lutam contra a exploração sexual passaram a atuar na formulação de políticas públicas. Nas regiões Norte e Nordeste, o fenômeno acontece de várias formas. No Amazonas em função da Floresta Amazônica, tão cobiçada pelas grandes potências e multinacionais, o turismo é a principal via de exploração sexual. No Pará, a situação é extremamente grave nos garimpos e áreas de mineração, nos quais a venda de crianças e adolescentes a garimpeiros pelos próprios pais ou responsáveis é freqüente e comum. Em Rondônia, o número de prostíbulos que usam o cárcere privado é alto e há também o tráfico para os garimpos. Em Belém e nos Estados do Rio Grande do Norte e Ceará, as meninas moram nas ruas e têm no consumo de drogas uma de suas principais causas. No Recife e em Salvador, predomina o sexo-turismo. Em Sergipe, meninas analfabetas, em sua grande maioria, são mantidas em prostíbulos em regime de escravidão. Na região Centro-Oeste, não é muito diferente das demais regiões do país, 83 especialmente, em Brasília, onde os pontos de prostituição são muito acessíveis e com anúncios em classificados de jornais oferecendo todos os tipos de “serviços”. Nas regiões Sul e Sudeste, a rede de comércio de sexo também conta com a participação de policiais, agências de viagens, hotéis e caminhoneiros, sobretudo, em São Paulo, onde as vítimas, em sua maioria, vêm de outros Estados, com a ilusão de conseguirem empregos e terminam sendo aliciadas por agenciadores e cafetões. Na Paraíba, as meninas e adolescentes são usadas na exploração sexual pelos próprios pais como forma de sustento da família, nas ruas ou em programas a bordo de navios de carga e barcos de pesca. Segundo o Jornal da Paraíba (2007), na série Infância em Risco, exibida entre os dias 12 e 20 de novembro, a exploração sexual de crianças e adolescentes no Nordeste conforme pesquisa da Universidade de Brasília (UNB) e apoio do UNICEF corresponde a 32% dos casos de violência no Brasil, em 298 municípios da região Nordeste. Na Bahia, os números de ocorrências dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes para cada 100.000 habitantes são mais altos nas seguintes cidades: segundo fonte da Polícia Civil do Estado, Itaberaba 27,3; Barreiras 17,2; Salvador 16,8; Ilhéus 16,1. Em Fortaleza (CE), o que antes se limitava aos pontos turísticos e ao contato com estrangeiros, hoje se espalha por toda a cidade. A proximidade das crianças e adolescentes junto aos exploradores, que se encontram inseridos numa rede constituída por pessoas da vizinhança, bares, taxistas, inibe as denúncias e dificulta a penalidade. Há quatro anos o registro de casos era 12 por mês, hoje chega a cinco vezes mais. O perfil das meninas é parecido: são pobres, de famílias desestruturadas e muitas vezes, usuárias de drogas. Em Sergipe, 73% das crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual têm renda familiar entre 0 a 1 salário mínimo, estando a pobreza como ponto de partida para a entrada na rede de exploração sexual e comercial. Aparecendo a orla da capital como principal ponto da exploração sexual de crianças e adolescentes. No ano de 2006, foram denunciados 55 casos e em 2007, até o mês de setembro, 16 casos, segundo fonte do Ministério Público do Estado. Em Alagoas, o limite entre o abandono e a pobreza é alto, por conseguinte, no interior do Estado o número de denúncias de abuso sexual também acompanha dados preocupantes. A maioria dos agressores são os pais e padrastos. Só em São Luiz do Quitunde, no litoral norte do Estado, 40 casos foram registrados. Segundo o Ministério Público Estadual as vítimas não recebem assistência das instituições responsáveis pela defesa da criança e do adolescente. Existem grupos organizados para explorar as meninas que migram constantemente para a capital do Estado. 84 O Rio Grande do Norte possui uma única Delegacia Especializada na apuração de crimes contra crianças e adolescentes, localizada na capital, com uma estrutura deficiente para apurar todas as denúncias do Estado. Em 2006, das 790 ocorrências registradas, 154 eram de exploração sexual e, em 2007, até o mês de setembro, das 697 ocorrências, 133 foram casos de corrupção, aliciamento e exploração sexual. Do total de casos a prostituição infanto-juvenil ocupa o segundo lugar no Estado só perdendo para o atentado violento ao pudor. Ressalte-se que o Estado possui um código de conduta para combater o turismo sexual com um trabalho realizado junto às empresas. No Recife (PE) a exploração sexual de crianças e adolescentes anda lado a lado com o tráfico de drogas. Alguns locais são destacados como a central de abastecimento de Pernambuco, freqüentado por comerciantes e caminhoneiros, onde crianças e adolescentes circulam no local ainda de madrugada, muitas vezes trazidas pelas mães, acontecem cenas de assédio sexual que são testemunhadas e silenciadas. Na Avenida Artur de Lima Cavalcanti que corta a cidade, considerado local de venda de drogas e também de prostituição, a oferta é feita abertamente. Na favela João de Barros em Santo Amaro, área central do Recife, onde funciona um dos principais pontos de tráfico de drogas da cidade, as negociações para exploração sexual são feitas diretamente com as mães. Segundo a Gerência de Proteção à criança e adolescente, 14% das queixas que chegam dizem respeito à exploração sexual. Este ano de 2007, já foram registrados 480 casos. A Secretaria de Defesa Social do Estado admite que a situação seja sistêmica, tem ligação com o tráfico de drogas e a polícia sozinha não consegue resolver, sendo necessárias ações públicas integradas para resolver a questão. No Maranhão, conforme mapeamento realizado pela Polícia Rodoviária Federal, em todas as rodovias do país, constatou-se como áreas de risco para a infância a BR-135, a BR222 e a BR-316, com muitos casos de exploração sexual. Estimulada pela pobreza, o aliciamento acontece geralmente nos horários noturnos, nos postos de combustível, com a conivência dos caminhoneiros. A OIT que evidencia a existência de dois milhões e quatrocentos mil vítimas de exploração sexual no mundo, revelou que 35% dos casos são de crianças e adolescentes e propôs um pacto com os municípios brasileiros para combater os crimes de exploração sexual na infância. A Paraíba atualmente ocupa o primeiro lugar no Brasil em número de casos arquivados, com 27 municípios fazendo parte da rota da exploração sexual contra crianças e adolescentes. Em Sapé, situada a 55 Km da capital, foi descoberto um esquema de aliciamento envolvendo vereadores e empresários do município. Em 2006, o Programa Sentinela de João Pessoa recebeu 148 denúncias e, em 2007, foram 77 denúncias até o mês de 85 setembro. A praia de Cabo Branco foi identificada pelo Ministério Público como uma das 11 áreas de risco, de forma tão concreta, que existe, inclusive, uma tabela de preços identificada pelo Conselho Tutelar. Dos 80 crimes denunciados pela CPMI, 10 estão na Paraíba. Uma das conseqüências da exploração sexual apontada na série Infância em Risco, é exatamente, o afastamento da sala de aula, com um histórico de faltas, notas baixas e repetência. Uma escola pública de João Pessoa resolveu enfrentar o problema. Na fala da diretora Lúcia Maria Teixeira, a escola passou a fazer visita à família, tentando trazer a criança de volta à escola e acompanhá-la durante todo o processo da violência. Com esta reportagem, a mídia coloca em evidência uma problemática nacional, a possibilidade de resgate de crianças e adolescentes da exploração sexual pela educação. E por que não tornar esse espaço, lugar de uma política pública para uma cidadania possível para as próximas gerações? Conforme a publicação da Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, publicada pelo site caminhos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, são 927 municípios no Brasil citados como rotas de tráfico e exploração sexual de crianças e adolescentes. No Estado da Paraíba, os municípios citados neste documento foram Alhandra, Areia, Bayeux, Cabedelo, Cachoeira dos Indios, Cajazeiras, Campina Grande, Catingueira, Conceição, Conde, Coremas, Desterro, Guarabira, Itabaiana, João Pessoa, Mamanguape, Monteiro, Patos, Pirpirituba, Pombal e Princesa Isabel. O Relatório da CPMI de 2000 apresentou dados da Paraíba indicando a publicação de pessoas indiciadas, porém não havendo por parte da justiça, a devida apuração dos fatos pelo Ministério Público Estadual. Muitos dos indiciados, foram, inclusive eleitos para prefeitos, vice-prefeitos, deputados e vereadores nas últimas eleições. A contradição da sociedade entre a aceitação da existência do fenômeno e a sua omissão revela, conforme LEAL (2003), que o mercado do sexo infanto-juvenil atende uma demanda consumidora que não reconhece a sexualidade como direito, posto no ECA. Foi identificada na BR-230 (Paraíba) uma nova rota de prostituição infantil que inclui Patos, Campina Grande e João Pessoa. Foi surpresa encontrar no rol de seletos clientes inúmeros políticos, juízes e comerciantes de Patos e das redondezas. Pior: o envolvimento dessas “autoridades”, que deveriam criar políticas juvenis, é um dos maiores entraves para o andamento das investigações (LEAL, 2003, p. 13). O segmento infanto-juvenil vê-se submetido a uma sociedade que historicamente reafirma 86 práticas vitimizadoras, fortalece o discurso institucional de que a sexualidade pertence ao âmbito do privado, tratando a mercantilização de corpos de crianças e adolescentes entre o legal e o ilegal nas esferas de poder. A participação da sociedade civil tem sido muito importante para a formação de uma rede integrada de ações, sobretudo, na perspectiva de denúncias, cobranças e acompanhamentos dos casos. Nesse campo, são emblemáticas as atuações de algumas ONGs, em função do compromisso com a questão: A CASA DE PASSAGEM em Recife-PE, nasceu nas ruas do centro do Recife, no final dos anos de 1980, sendo pioneira no trabalho com as meninas que ali viviam, promovendo o acesso aos direitos sociais e políticos, articulando seu trabalho com o protagonismo infanto-juvenil no âmbito comunitário. O COLETIVO MULHER VIDA em Olinda-PE, desde a sua fundação em 1991, vem desenvolvendo um trabalho de educação popular junto às mulheres adultas da periferia do grande Recife, com o objetivo de prevenir e propor políticas públicas de combate à violência doméstica e sexual contra a mulher, levando a questão a ser tratada como caso social e não particular. O CECRIA em Brasília-DF, criado em 1993, constituindo-se em um centro de pesquisa, capacitação, promoção, formação e articulação de ações governamentais e não governamentais, em nível nacional e internacional para a defesa dos direitos da mulher, da criança e do adolescente, orientado pela concepção dos direitos humanos definido na legislação nacional e normas internacionais. O Projeto AXÉ em Salvador-BA, criado em 1990, quando iniciou suas atividades vinculado ao MNMMR, prestando serviços de educação e defesa de direitos às crianças e adolescentes em circunstâncias especialmente difíceis. O Projeto MENINAS DE SANTOS em Santos-SP, iniciado em 1993, que tem oferecido assistência às meninas vítimas de exploração sexual, freqüentemente usadas para o repasse de drogas, sem moradia ou vínculo familiar. O projeto CASA ROSA MULHER em Rio Branco-AC, oferece assistência a mulheres e adolescentes vítimas de violência doméstica, prostituição e risco pessoal e social. Primeira experiência de política pública direcionada para este fim, no Estado do Acre, iniciando suas atividades desde 1994 e se consolidando como referência no Estado. Tem como um dos importantes parceiros o Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular do Acre. No entanto, toda essa mobilização ainda se trata de iniciativas tópicas, longe de 87 combater a rede existente que está articulada com as macro-políticas nacionais e internacionais, mas constituem-se espaços de denúncia, mobilização e cobrança do papel do Estado na sua função de proteção a crianças e adolescentes. O papel dos Movimentos Sociais no empenho pelos direitos da criança e do adolescente que toma para si a prerrogativa na luta contra a violência sexual torna-os responsáveis pelo crescimento de sua visibilidade, sobretudo, nas últimas décadas do século XX. As transformações ocorridas a partir deles são conseqüências da ofensiva civilizatória no enfrentamento da violência sexual que sai do seu papel secundário e alcança autonomia no ponto de encontro com os movimentos sociais internacionais. Atualmente tem havido uma intensificação das ações e fortalecimento dos movimentos já existentes que no embate de idéias e forças engendram mudanças. Mais recentemente, conforme a Revista do Terceiro Setor (RETS, dezembro/2006), em 28 de novembro, foi lançada em todo o Brasil pela World Childhood Foundation Brasil (WCF – Brasil), uma campanha intitulada “Na mão certa”, com o objetivo de combater a exploração sexual infantil nas rodovias brasileiras. Esta campanha tinha como objetivo mobilizar os setores públicos, privado e a sociedade civil nessa luta, informando aos caminhoneiros a importância de suas ações como segmento que pode ser sensibilizado como agentes de transformação dessa realidade nas estradas brasileiras. De acordo com a OIT, mais de 100 mil crianças e adolescentes são exploradas sexualmente no Brasil. A polícia federal revelou em seus dados recentes a existência de 1.222 pontos de exploração nas rodovias federais brasileiras, alguns localizados em regiões fronteiriças, onde acontece o tráfico internacional de drogas e de pessoas. A SEDH realizou uma pesquisa registrando a ocorrência de exploração sexual comercial em 937 municípios brasileiros, em sua grande maioria, localizados nas regiões Nordeste e Sudeste. De uma forma geral, em todo o Brasil, o fenômeno é acompanhado pelo consumo de drogas e, para manter o vício, crianças e adolescentes, suportam a violência e a degradação humana inerentes à prostituição. Uma das estratégias de denúncia e discussão desta problemática tem sido a filmografia, instrumento de utilidade pública para ampliação do debate. Tendo como exemplo, o Filme “Anjos do Sol”, um filme impactante, com cenas de faroeste, trazendo a sensação de nunca ter-se saído da barbárie, mesmo estando em pleno século XXI. Gravado no ano de 2006, baseado nas pesquisas realizadas no Brasil, inclusive nos relatos da CPMI, revela a engrenagem do universo da prostituição infantil no Brasil. As cenas de coerção, de impedimento da fala, da impossibilidade de escolha, da ausência de liberdade, da negação da 88 cidadania são presentes no desenrolar do mesmo. O cerceamento de crianças e adolescentes, sendo leiloadas contradiz o lema de prioridade absoluta neste país, legitimada pela Constituição Federal de 1998. O que esperar de um pai e uma mãe que não cumpre seu papel de proteção? Como desistir de uma filha tão cedo? Desistir emocionalmente, libidinalmente, entregando-a ao próprio desamparo, ao desamparo estrutural, à própria sorte. A nobreza dos sentimentos, o respeito ao outro, a sacralidade do corpo, a descoberta do desejo, a escolha, o jogo de sedução, esse direito é roubado sem permissão. O que esperar de um país que trata as suas crianças como objeto, mercadoria? Não há registro das pessoas, não há a construção de uma identidade, é como se essa identidade não tivesse uma referência, fosse fluida, podendo ser mudada a qualquer momento. E o transporte de pessoas é feito como se fossem coisas, objetos, mercadorias, animais. Sendo assim, podem ser vendidas, trocadas, negociadas, usadas, não tem dono e ao mesmo tempo é de todos. Parafraseando a música do Tribalistas, no álbum de 2002, “não é de ninguém”. Não sendo de ninguém, qualquer um pode se apropriar, ou seja, é de quem dá mais nos leilões, sendo um produto altamente rentável, pois, comparado com o material concreto do narcotráfico e do comércio de armas no mundo inteiro o corpo é exposto a uma carga de trabalho de até 16 horas/dia ininterruptamente. E para manter a hegemonia do capital, os corpos de crianças adolescentes são mercantilizados como coisas ou objetos valiosos. O corpo é tocado sem permissão, nem autorização, como se fosse uma coisa insensível, que não sente dor, podendo ser invadido a qualquer momento por qualquer um. E aí há a possibilidade e a facilidade de entrada no circuito da rede internacional do tráfico de seres humanos, de onde não há saída, ou seja, as saídas podem ser fatais: o suicídio, a loucura e a doença. Observa-se neste filme, as formas de desumanização para a manutenção do sistema capitalista, contrariando as referências de valores sociais internalizados para a convivência em uma sociedade justa. A ausência do Estado na implementação, execução e fiscalização de políticas públicas para a infância e adolescência, bem como, a cumplicidade da sociedade. As políticas implementadas para o enfrentamento dessa questão ainda são tímidas, ineficientes e ineficazes, indo na contramão de uma rede poderosa de interesses econômicos. Será que só essas crianças e adolescentes encontram-se abandonadas? Onde está o Estado que coloca no papel um documento modelo para o mundo, o ECA e não o faz cumprir? Faleiros (1995, apud BONTEMPO et. al., 1995), quando aborda o papel do Estado no enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes, critica a ausência de 89 política social para a infância no contexto histórico brasileiro e a inexistência da criança nesse mesmo contexto. Justifica esta afirmativa com a posição de objeto em que a criança era colocada em função das grandes linhas políticas. Considera como a primeira linha política a de manutenção da ordem, pela repressão quando a criança era vista como ameaça no período Republicano sendo chamada de menor. Nesse momento histórico, a formulação de juizados, instituições, reformatórios, usando o isolamento, a contenção e a presença da polícia para reprimir “o menor” sob suspeita tinha como objetivo de proteção não da criança, mas da ordem social. A segunda proposta política era a proteção à indústria e ao capital com o encaminhamento da criança pobre ao trabalho precoce e subalterno existindo enquanto mão-de-obra, enquanto objeto de trabalho. A terceira política é a de preservação da raça, da higiene e da saúde pública sendo a criança objeto de controle como se através dela se propagasse as doenças. Dessa forma, evitam-se perigos à segurança nacional e a criança, mais uma vez, fica no imaginário da sociedade como objeto de controle para tornar a vida das elites suportável. Entretanto, o papel do Estado no enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes na visão de Faleiros (1995), na garantia de direitos e da prevenção, se dá da seguinte forma: 1- ‘Política de Negociação’ inserida na dimensão cultural e social em que a criança possa assumir seu lugar de sujeito de direitos. Na sua visão não podemos ser donos da criança, que não é propriedade, mas precisa ser protegida e ouvida. 2- ‘oferecer chances’ com uma política de possiblidades de lazer, cultura, expressão, de identidade, como processo civilizatório. 3- considerada como ‘prevenção’ com participação, mudando as relações antes que elas aconteçam. 4- ‘vigiar e punir’ os traficantes, os exploradores, o narcotráfico, tornando um instrumento constante de acompanhamento das violações e negligência em relação à criança. 5- proteção especial como ser em desenvolvimento. 6- a educação, a escolarização porque na escola “a criança tem a possibilidade de transformar o seu conhecimento e a sua relação com o mundo. É o lugar da aprendizagem” (FALEIROS, 1995, p. 102). Nesse sentido, cabe indagar: como o sistema jurídico brasileiro aborda a questão da exploração sexual de crianças e adolescentes? A atual legislação penal consegue atender esse preceito constitucional? Encontra-se assegurada na Constituição Federal de 1988, inciso VII, parágrafo 4°: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. No que se refere à exploração sexual o Código Penal trata deste assunto praticamente 90 nos crimes contra os costumes. Veronesi (1995) indica como primeiro tipo penal a relação com a prostituição infantil, sendo o estupro considerado pelo código como um crime contra a liberdade sexual, colocado em seus artigo 213. Critica o arcaísmo do mesmo ao se referir só à mulher e não à pessoa. Outro crime relacionado com a exploração sexual é o denominado corrupção de menores, exposto em seu artigo 218, que a seu ver trata da moral sexual dos maiores de 14 e menores de 18 anos, porém não há crime. O código penal ao tratar as questões relativas à prostituição não dá a devida importância à prostituição masculina nem tampouco à prostituição infantil. Prescreve a violência presumida quando a idade é menor de 14 anos, deixando a faixa etária entre 14 e 18 anos fora dessa leitura. Portanto, na leitura de Veronesi (op.cit) a negligência de nosso País em relação à prostituição infantil constitui-se um desrespeito à Constituição Federal e a negação aos direitos fundamentais da pessoa humana. A negativa da cidadania imposta aqueles que são merecedores de proteção especial e integral por estarem em processo de desenvolvimento. Os desafios colocam a sociedade diante do horror do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes enquanto tentativa de afastamento da barbárie e aproximação do processo civilizatório. As relações de violência sexual postas na sociedade podem ser transformadas em relações sociais democráticas, na construção de uma cidadania que respeite o direito a uma sexualidade, protegidos da violência sexual como reconhecimento do direito de crianças e adolescentes. No entanto, os meios democráticos para essa transformação pela via das políticas públicas encontram um descompasso entre o Estado de Direito e o fortalecimento do neoliberalismo. Esta tensão tem resultado no aumento da tensão e contradição entre as políticas públicas e as medidas repressivas visando o controle social. Feitas estas considerações acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes, abordaremos no terceiro capítulo, a concepção dos educadores acerca da violência sexual, das categorias do abuso e exploração sexual e a importância da educação no enfrentamento desse problema. 91 CAPÍTULO III ABUSO E EXPLORAÇÃO SEXUAL: afinal do que se trata? 92 3.1 O contexto de Campina Grande O município de Campina Grande tem uma população de crianças e adolescentes estimada em 2004 pelo IBGE, de 73.354, na faixa etária entre 5 e 14 anos, o equivalente a 20% da população. É uma cidade pólo, congregando todo o compartimento da Borborema com trinta e seis municípios em sua circunvizinhança (PLANO MUNICIPAL, 2001/Anexo A). Referência para os mesmos e municípios de estados vizinhos, tem experimentado nos últimos dez anos, incremento na área do turismo de eventos, a exemplo do Encontro da Nova Consciência; a Micarande (carnaval fora de época); o Maior São João do Mundo e o Festival de Inverno, com repercussão nacional e conseqüentemente, o aumento do afluxo de turistas ao município. Neste município, o sistema de garantia de Direitos constitui-se de três Conselhos Tutelares implantados, restando dois para ser implantados, uma Delegacia Especializada, a Curadoria da Infância e um Juizado da Infância. Além das entidades governamentais de atendimento, existem ONGs que trabalham com o atendimento ao público de crianças e adolescentes vitimados sexualmente, tais como a “Menina Feliz” e a “Pró-adolescente, mulher espaço e vida (PROAMEV)”. A Rede de Atendimento à criança e ao adolescente constitui-se num fórum de discussões com as entidades que atendem crianças e adolescentes no município sejam governamentais ou não-governamentais, para socializar e pensar as ações para esse segmento. São instituições de todas as instâncias (educação, saúde, justiça, assistência social), incluindo o sistema de garantia de direitos. Entre a legitimação do ECA, em 1990, e a proposta de uma política pública direcionada para o problema da violência sexual contra crianças e adolescentes em 2000, com a construção do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-juvenil, uma década é atravessada pelo agravamento do problema e o Brasil faz uma tentativa de implementação desta política de atendimento nos primeiros municípios. Estando inserida nesse rol, Campina Grande, na Paraíba, por ter chamado a atenção na mídia nacional para o grave problema. Conforme o relatório elaborado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados (PB) [...] a Paraíba ganhou destaque por sediar um comércio sexual que explora crianças de até cinco anos de idade (PLANO MUNICIPAL, p.14). 93 No município de Campina Grande-PB, lócus empírico da investigação desta pesquisa, o programa de atendimento às vítimas de violência foi implantado em 2001, sendo administrado pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS), órgão gestor da Política de Assistência Social. Em seus atendimentos durante o ano de 2006, consta um número de 36 casos de abuso sexual e 07 casos de exploração sexual. Em 2007, até 29 de novembro, foram registrados 22 casos de abuso sexual e 07 casos de exploração sexual. Durante o período de implantação, execução e acompanhamento da primeira experiência em política pública nesta temática específica, Campina Grande foi indicada para fazer parte de um Programa piloto no país, envolvendo apenas sete municípios. Trata-se do Programa de Ações Integradas e Referenciais no Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil no Território Brasileiro (PAIR), com o objetivo de integrar políticas para a construção de uma agenda comum de trabalho, entre Governo, Sociedade Civil e Organismos Internacionais, visando ao desenvolvimento de ações de prevenção e atendimento a crianças e adolescentes vulneráveis ou vítimas da exploração sexual e tráfico para esses fins. Tendo como suporte técnico o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-BA) e a Escola de Conselhos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS-MS), o programa conta com uma assessoria técnica das Ongs que desenvolvem um trabalho de referência na América Latina como: Aldeia Juvenil/UCG/GO, ASPPE-Santos-SP, CECRIA-DF, Fundação Orsa-SP e Projeto Camará-São Vicente-SP. O PAIR tem como referência metodológica o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil e um marco conceitual baseado no art. 86 do ECA: A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Este programa tem como metas estratégicas desenvolver ações referenciais de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes de forma a estimular a reaplicação das experiências produzidas em outras regiões do país, tendo como modelos os Planos de Ação desenvolvidos em sete municípios, considerados estratégicos por sua posição geográfica e/ou pelos índices de violência sexual infanto-juvenil, tráfico de seres humanos e transmissão do HIV/AIDS que apresentam; criar e/ou fortalecer redes de prevenção, proteção e defesa jurídica para crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual e tráfico, despertando uma consciência da sociedade e dos formadores de opinião. 94 Os Estados atendidos foram: Acre – Rio Branco, Amazonas – Manaus, Bahia - Feira de Santana, Mato Grosso do Sul – Corumbá, Paraíba - Campina Grande, Roraima – Pacaraima e São Paulo – São Paulo, como mostra a figura abaixo. Figura 1 – Mapa dos Estados contemplados pelo PAIR Fonte: PAIR (2004). Em 2005, foram acrescidos alguns municípios, como é o caso de Belo Horizonte – MG substituindo São Paulo, que já contava com uma articulação fortalecida e um trabalho em todo o Estado realizado pelo movimento social Pacto São Paulo com apoio da Fundação Orsa e do Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância do ABCD (CRAMI). Também por não poder atender a toda a cidade devido a sua complexa dimensão geográfica. Posteriormete Fortaleza – CE e São Luiz – MA por apresentaram indicadores de violência sexual, apontando para a necessidade de maior atenção pública, em face da localização geográfica e a dimensão que representou, por exemplo, internacionalmente, o caso dos meninos emasculados19 em São Luiz no Maranhão, em que a Organização das Nações Unidas (ONU) condena o Estado Brasileiro por essa conduta. Através de convênio celebrado entre a Administração Municipal e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, o município se comprometeu, desde 2001, a implantar e desenvolver um programa que assegurasse o enfrentamento das inúmeras questões relativas à violência sexual contra crianças e adolescentes. 19 Caso acontecido no Brasil nos Estados do Maranhão e Pará onde crianças e adolescentes do sexo masculino foram mortas e tiveram a genitália externa extirpada. 95 A constituição do Plano Municipal foi iniciada em agosto de 2001, tendo como referencial teórico o Plano Nacional e o Estatuto da Criança e do Adolescente-Lei n° 8.069/90; tomando forma definitiva em setembro de 2003, quando se concluiu o Diagnóstico Participativo e o Relatório da Sondagem que apresentaram subsídios mais fundamentados para a sua consolidação. Com a realização do Seminário de Construção do Plano Operativo, de 09 a 11 de setembro de 2003, houve a escolha (eleição) dos membros da Comissão Municipal do PAIR, nomeada, através de portaria do Executivo Municipal e sendo composta por uma executiva e a comissão geral com componentes indicados, por meio dos eixos do Plano Operativo, a saber: análise da situação, defesa e responsabilização, atendimento, prevenção, mobilização, articulação e protagonismo infanto-juvenil. Em março de 2004, quando da realização do Curso de Capacitação para o Enfrentamento da Violência Sexual contra crianças e adolescentes promovido pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, pelo Ministério da Assistência Social, pelo POMMAR/USAID-Partners of the America e OIT e outros parceiros, houve a participação efetiva de aproximadamente 250 representantes de todos os segmentos envolvidos com esta problemática, representando um marco histórico para a cidade. No entanto, cabe uma reflexão acerca da participação dos educadores que não foram liberados pela Secretaria de Educação para participarem da Oficina de Educação para o trabalho com o Guia Escolar. Segundo o depoimento do Secretário de Educação, naquela ocasião, “o aluno precisaria apenas aprender a ler, escrever e contar”, indicando uma concepção restritiva da educação nesse processo. Por esta compreensão que advêm do dirigente educacional, cabe questionar: quais as conseqüências no processo de aprendizagem de uma criança que está sendo violentada sexualmente? Será que isso passa despercebido no cenário da educação? Na ocasião ocorreu a realização de aulas teóricas, oficinas com temas específicos, apresentações culturais, a construção do Plano Operativo e a elaboração do Pacto de Campina Grande (não enviado até o momento pela Comissão Nacional) para o enfrentamento ao abuso, exploração sexual e tráfico de crianças e adolescentes que foi assinado por várias autoridades, firmando o compromisso e a responsabilidade com as ações que possibilitassem o enfrentamento da violência sexual neste município; além de ter estabelecido um conjunto de recomendações para os distintos atores que compartilhavam esta importante parceria. Concomitantemente, tramitou no Congresso Nacional a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-CPMI, cujo objetivo foi a de identificar as pessoas envolvidas com o abuso, a exploração sexual e o tráfico de crianças e adolescentes no território nacional; concluindo seu 96 trabalho na identificação de 250 nomes com envolvimento em distintas formas de violência sexual contra crianças e adolescentes. Em particular, a Paraíba conta com um considerável número de pessoas supostamente envolvidas, recaindo o maior contingente sobre o município de Campina Grande. Seguindo orientação conclusiva da CPMI, a Comissão Municipal, ao término dos trabalhos daquela Comissão Parlamentar, solicitou providências junto ao Ministério Público Estadual, para investigação e providências cabíveis em relação aos envolvidos. As providências foram solicitadas via Fórum da Criança e do Adolescente (Fórum DCA-PB), que encaminhou solicitação ao Ministério Público Estadual e até a presente data não obteve resposta. Em função do PAIR, o município foi contemplado com alguns programas na área do enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, a seguir: - PROJETO EDUCAR (Instituto Companheiros das Américas) em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, tendo como objetivo assegurar a inclusão de crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual na escola de referência. Este projeto vem sendo gradativamente implantado na Escola Municipal Roberto Simonsen, no populoso bairro São José, com a participação de educadores sociais dos programas governamentais, através das Secretarias de Educação e Assistência Social do município. O programa EDUCAR contou com uma Comissão Articuladora Interinstitucional que teve como objetivo realizar o acompanhamento do mesmo no sentido de que a criança e o adolescente fossem atendidos na sua integralidade. No momento o projeto encerrou seu prazo de execução e o município não deu continuidade. - PROJETO OIT (Organização Internacional do Trabalho) em parceria com a Universidade Estadual da Paraíba UEPB/Fundação Universitária de Apoio ao Ensino e a Pesquisa (FURNe) e o Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-juvenil (NUPECIJ/UEPB), para o enfrentamento da violência sexual enquanto uma das piores formas de trabalho infantil, visando assegurar a inserção de jovens no mercado de trabalho e a capacitação/qualificação de agentes sociais. Este projeto foi concluído, sendo realizado alguns Seminários de Inclusão Social e Políticas Públicas tendo como tema central a exploração sexual infanto-juvenil. Foi realizado, também, um diagnóstico sobre a situação de crianças e adolescentes exploradas sexualmente, com metodologia desenvolvida pela OIT e UNICEF, sendo o seu resultado divulgado no Relatório Final de Campo e numa cartilha referente à problemática da exploração sexual no município: “QUERO MINHA CIDADE LIVRE DA EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MENINAS, MENINOS E ADOLESCENTES”. Além de iniciar um processo de articulação com a mídia para sensibilização de profissionais de 97 comunicação com a temática, haja vista haver no município um Plano de Comunicação que pretendia fortalecer as relações na área de comunicação e engajar os profissionais nas atividades de enfrentamento. Tanto o diagnóstico como a referida cartilha foram distribuídos com todos os veículos de comunicação existentes no município. - EQUIPAMENTOS DOS CONSELHOS TUTELARES NORTE E SUL - Dos três Conselhos Tutelares no município, os dois acima, foram contemplados com computadores e assessórios, máquina fotográfica digital, fax e veículos concedidos pelo Projeto Escola de Conselhos da UFMS/FADEMS, através de parceria e convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. - PROJETO DOS NÚCLEOS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA em convênio com o Ministério da Saúde e em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde para implementação de cinco núcleos preventivos da violência com os profissionais de saúde nos distritos de saúde do Município, onde já ocorreram a sensibilização e o processo de capacitação, tendo em vista a implantação dos núcleos. Este convênio permitiu a impressão de 1000 exemplares do ECA, que foram distribuídos com as escolas, através da Secretaria de Educação, com o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente e os Conselhos Tutelares. Além disso, o ECA também foi distribuído para a SEMAS, para as Associações Comunitárias, Clube de Mães e entidades não-governamentais. Recentemente, o PROGRAMA ESCOLA QUE PROTEGE, através da SECAD/MEC e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFCS), se articularam com o objetivo de focar a formação de professores para trabalhar com as questões associadas às violências, antecipando-se a elas, numa relação mais próxima escola-comunidade, numa parceria com a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Observou-se na implantação desse programa a desmotivação por parte dos educadores na participação do processo de formação que envolvia representações das escolas estaduais e municipais de Campina Grande e de municípios vizinhos. Fato notório foi o esvaziamento entre o início e a conclusão do curso, apontando, também, a dificuldade de liberação dos professores de suas atividades de sala de aula. Nesse caso, cabe ressaltar que o público alvo, tendo o professor como ator principal no processo de enfrentamento, geralmente encontra barreiras para ausentar-se de sala de aula por não haver prioridade política para tal questão, em função do comprometimento com os conteúdos obrigatórios a serem cumpridos no ano letivo. Os objetivos construídos no Plano Operativo no eixo prevenção, relativos à educação foram: favorecer no processo educativo crianças/adolescentes e suas respectivas famílias sobre seus direitos, visando ao fortalecimento da sua auto-estima e a defesa contra a violência 98 sexual; enfrentar os fatores de risco da violência sexual; promover o fortalecimento das redes familiares e comunitárias para a defesa de crianças e adolescentes contra a situação de violência sexual; implantar uma política de formação continuada, junto aos diferentes atores sociais envolvidos com a temática na prevenção da violência sexual; promover a prevenção à violência sexual na mídia e em espaço cibernético. Estes objetivos foram construídos tomando como base o Plano Nacional e o Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual infanto-juvenil. O Plano Municipal de Educação do município não contempla os objetivos do Plano Operativo de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, haja vista não prever nenhuma ação nessa perspectiva e no momento encontrar-se em processo de revisão. Sendo assim, as ações no âmbito da educação não encontram respaldo legal nos documentos que legitima a educação no município, deixando transparecer o hiato entre o legal e as propostas políticas para a educação pela via da articulação entre os Conselhos Tutelares e o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, a intersetorialidade na Rede de Atendimento a Criança e o Adolescente e as parcerias. 3.2 O perfil dos educadores: Quanto ao tempo de serviço dos educadores20 na rede municipal de ensino, pode-se apontar, segundo os depoimentos dos sujeitos, o seguinte perfil: 13,63% possuem tempo de serviço correspondente ao período de 0 a 10 anos, 50% de 10 a 20 anos de serviço, enquanto que 36,36% têm o correspondente ao período de 20 a 30 anos de serviço. Em relação à função que exerce na escola, 4,54% equivalente à função de gestora, 9,09% na função de orientadora educacional, 4,54% de assistente social, 9,09% como supervisora educacional e 72,72% como professores, sendo que no momento uma educadora está ocupando o cargo de gestora, revelando a predominância dessa categoria profissional. Há uma predominância do sexo feminino, sendo 82% do universo dos sujeitos, revelando a permanência de uma cultura de gênero, em que, historicamente, se convencionou que a tarefa de educar crianças e adolescentes é “naturalmente” feminina. Quanto à formação, foi constatado que todos são do nível superior e um encontra-se no processo de formação doutoral na UFPE. 20 Ainda prevalece a concepção de que o profissional da educação é o professor. Compõem a equipe de educadores da Rede Municipal de Ensino do Município de Campina Grande os seguintes profissionais: psicólogo, assistente social, orientador educacional, supervisor educacional e professor. 99 Faz-se necessário destacar as condições de trabalho e salário enfrentados por estes trabalhadores. Sabe-se que historicamente o investimento na educação é muito pouco, submetendo os seus trabalhadores a péssimas condições de trabalho, baixíssimos salários, baixo investimento em capacitação continuada, inseridos num sistema de transmissão bancária e sem um aparato instrumental pedagógico para exercerem a função social que as contingências lhes demandam. 3.3 Uma interpretação da concepção dos educadores do município de Campina Grande e sua interlocução com o diálogo freireano O conhecimento do ECA Em se tratando do ECA, apenas uma pequena parte dos educadores afirma não conhecer o Estatuto, enquanto a maioria dos educadores diz conhecer em parte, destacando apenas as questões consideradas fundamentais. No caso dos que dizem conhecer o ECA, destacam as questões específicas dos direitos, como pode se constatar nos depoimentos a seguir: “eles estão muito eufóricos de direitos” (Entrevista n° 16), ou então que “ele promoveu mais a delinqüência porque deu muitos direitos e a liberdade sem limites [...] acho que aumentou o número de meninos de rua, saem de casa, não respeitam pai e mãe e se sentem os donos do mundo” (Entrevista n° 07). Ou ainda: “essa lei de ‘menor’ fazer as coisas e não pagar por aquilo, eu acho que deveria ter uma punição” (Entrevista n° 12). Como se pode observar, em sua maioria, os entrevistados apesar de afirmarem conhecer o ECA, demonstram em suas falas ter uma visão incipiente das suas diretrizes, revelando opiniões fortalecidas pelo conservadorismo, ou seja, uma leitura incompatível com os fundamentos legais do estatuto. Poucos são os que pensam ser um documento necessário, mas, mesmo assim, concordam com os demais sobre a interpretação dos direitos: Um documento amplo, maravilhoso, bem embasado, do ponto de vista da proteção. O que me chama mais atenção é esta garantia plena, e nos encontros com a curadoria ele diz que a escola tem condições de a partir do documento ter seus pontos de decisão, mas acho que o educador fica desarmado, se a escola já fizesse um trabalho nesse sentido seria mais fácil, teria mais embasamento para se defender, mas concordo com a afirmação que é também um documento que só dá direitos. O Estado realmente deve garantir através da lei, é uma questão jurídica, ele é embasado de pontos técnicos. O lado educacional, o lado da formação educativa, de metodologia 100 educativa é que é mais solta, deixa vago, ficando a escola sem defesa. (Entrevista n° 14, grifos nossos). Pode-se perceber nestes depoimentos o desconhecimento dos educadores em relação ao conteúdo da legislação vigente, particularmente, no que diz respeito diretamente ao segmento infanto-juvenil, público alvo dessas escolas. Relacionando com o tempo de serviço dos educadores na educação, observa-se que a maioria está inserida na educação num período anterior à implementação do ECA, posto que o mesmo já completou 17 anos de vigência. A implicação dessa reflexão remete, significativamente, ao fato de haver uma grave lacuna na diretriz curricular dos cursos de formação, haja vista não conter uma problematização dessa política, em função do lento processo de incorporação das leis que vão sendo legitimadas sem a cultura institucional do devido aprofundamento, isso sem contar, ainda, com a internalização dos novos paradigmas na vida social das pessoas. Outros depoimentos são relevantes, na medida em que refletem sobre a compreensão dos entrevistados acerca da lei como elemento que se impõe à sociedade apenas por uma direção, uma ordem: “os direitos são importantes [...] acho que o que está lá e não é conhecido, são os deveres, o que vem aumentar a violência” (Entrevista n° 09), “os adolescentes acham que só têm direitos e deixam de cumprir os deveres” (Entrevista n° 08). Cabe aqui analisar que o ECA prevê responsabilizações que são internalizadas pelas regras sociais, sendo dever dos pais orientá-los. Além de definir direitos e deveres, determina formas e instrumentos que poderão ser utilizados no cumprimento de suas regras. Ao transgredi-las, as medidas sócio-educativas levam em consideração o ser em desenvolvimento e em formação, bem como o seu caráter educativo das repreensões, não perdendo de vista a possibilidade de continuidade na convivência social. Todavia, sabe-se que a realidade brasileira não é essa, legitimando a dificuldade de assimilá-las nos atos cotidianos, predominando o senso comum na herança transgeracional, no processo histórico de uma cultura de violência, como se faz refletir na fala da entrevistada a seguir: “a gente sabe que a lei está no papel, mas praticamente não é cumprida” (Entrevista n° 18). Nesta fala, contraditoriamente, o ECA é considerado um avanço jurídico e social legitimando a cidadania como um direito e a sua promoção como dever do Estado e da sociedade. No entanto, aponta para os preconceitos, a marginalização e o descaso com que são tratadas historicamente as leis no país, tendo na sociedade arraigada a cultura do absoluto descrédito quanto a sua concreta funcionalidade institucional. Neste debate, “a premência da 101 problemática infanto-juvenil e a disponibilidade de uma legislação avançada [...] não bastam para que se desencadeie ‘a grande mutação’ pretendida” (VOGEL, 1995, p.327). A ampliação da cidadania de crianças e adolescentes garantida a partir do ECA, altera a relação Estado-sociedade-familia na definição e divisão de responsabilidades. Portanto, a garantia dos direitos e o cumprimento dos deveres exige compromisso partilhado na efetivação das políticas, exigindo do profissional da educação o conhecimento do ECA, para colocar-se frente às contingências cotidianas. Estas mudanças como lembra Carvalho (2000) rebatem nos métodos de intervenção passando da postura punitiva, que marca historicamente a abordagem na educação, para uma postura de respeito. Capacitação acerca da Violação dos direitos da criança e adolescente Quanto à capacitação docente, a maioria dos entrevistados afirmou nunca haver participado desse processo relacionado às questões temáticas de violação dos direitos da criança e do adolescente. No caso da minoria, que afirma ter participado, declarou que a condução temática foi “muito superficial, nada muito concreto”. A participação na capacitação geralmente é condicionada ao repasse das informações para os demais educadores que não tiveram a oportunidade de se ausentar da escola. Esse repasse nem sempre é realizado com a mesma qualidade por se tratar de temas ainda recentes na formação do educador. Neste caso, remetem à especificidade da violência sexual que não é trabalhada nas capacitações, alguns se referem à dificuldade ao afirmarem “eu não sei lidar com isso”, outros colocam a necessidade de trazer para cena das discussões na escola, outros citam a atividade realizada pelo programa de atendimento às vítimas de violência sexual como pequenas apresentações com “os bonequinhos de fantoches” nas visitas às escolas. Nas Jornadas Pedagógicas, evento promovido pela Secretaria de Educação do Município, na primeira semana que antecede o ano letivo, segundo o entrevistado a seguir, são abordadas questões mínimas, de forma tópica, pontual: “uma capacitação direcionada a isto mesmo não, mas sempre se toca nisso nas semanas pedagógicas” (Entrevista n° 19). Ainda não faz parte do calendário o trabalho a respeito do tema em momentos de campanhas nacionais, nem como tentativa de um processo contínuo de prevenção com a comunidade escolar. O descompromisso institucional é observado na seguinte fala: A secretaria deveria se preocupar mais com essa questão, dar mais ênfase, oferecer mais condições aos profissionais da própria escola, orientando e 102 subsidiando também, porque as vezes diante de uma situação dessa, a escola deixa passar porque não tem orientação, não sabe nem como agir. Nós precisamos de orientação (Entrevista n° 17). Observa-se o distanciamento da escola com as questões contemporâneas deixando em aberto um fosso que aumenta com a rapidez dos fatos e acontecimentos sociais que não fizeram parte da formação acadêmica dos educadores nem de sua formação permanente. A importância do conhecimento do tema pelos educadores não se dá pela acumulação de competências ou como mais uma atribuição, mas para que conheçam, compreendam, saibam identificar seus sinais e possam fazer um encaminhamento e uma denúncia para os órgãos especializados de forma consciente e levando em consideração a proteção de crianças e adolescentes. O conhecimento acerca da violência sexual infanto-juvenil poderia viabilizar um trabalho na escola com possibilidades de prevenção, como sugere o Plano Nacional de Enfrentamento da violência sexual Infanto-juvenil que coloca a Educação como instância articuladora no eixo Prevenção e referendada no Plano Municipal de Enfrentamento da Violência sexual infanto-juvenil e no Plano Operativo. A necessidade do cumprimento dos conteúdos na política nacional como forma de continuidade de acesso aos fomentos internacionais pressiona para que se delegue a um segundo plano questões inerentes à vida de crianças e adolescentes que interferem na assimilação do processo de aprendizagem e impedindo o educador de participar de oportunidades que proporcionam a preparação para o enfrentamento dessas situações, sobretudo em sala de aula. O que se expressa no seguinte depoimento: Ou por falta de oportunidade de ir, porque quando a gente está em sala de aula, não pode participar de tudo, né? Mas aqui não, só assim por alto, estudar mesmo, fazer curso, não. Sei que tem um trabalho, né? Questões de sexualidade, a gente tem aqui o grupo, como trabalhar a sexualidade, tem um GT sobre sexualidade, mas as questões de violência sexual não, de qualquer forma ele é pautado também, porque muitas questões de sala de aula, esse tema permeia (Entrevista n° 13). Como se percebe no depoimento acima, apesar de preocupados com as questões que a escola e o profissional educador deve enfrentar nesse processo, os entrevistados deixam 103 antever o descaso institucional à referida problemática, algo que reforça a compreensão de que a política neoliberal tem, cada vez mais, negado à escola e aos educadores, o papel educativo na mediação e atualização dos problemas históricos, negando, também, a singularidade do trabalho pedagógico. As capacitações, na maioria das vezes, terminam sendo momentos pontuais no processo formativo do educador com cursos, palestras, conferências etc., que são concebidas na perspectiva de informações acumulativas de saber diante de uma questão social. Perde-se a construção de uma reflexão sobre as suas próprias práticas num movimento permanente de ação-reflexão-ação como sugere Freire, de transformação no projeto societário da escola. Nesse contexto o profissional da educação não pode ser excluído de seu lugar político na alternativa da formação como uma das estratégias no campo da educação para o enfrentamento do problema. Entendimento sobre violência sexual contra crianças e adolescentes No que diz respeito ao entendimento sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes, a pesquisa revela que a minoria dos sujeitos entrevistados destacou o ato sexual violento, o desrespeito, o assédio, a agressividade consideradas uma das faces da violência que, muitas vezes, precede a violência sexual ou faz parte do seu contexto. Enquanto que a maioria dos educadores, além dessa concepção, atribui alguns aspectos que contribuem para a caracterização da violência sexual, tais como: as condições de moradia, a exemplo da fala a seguir: “a criança convive num ambiente muito pequeno onde é um quarto pra toda família, onde os pais têm uma vida sexual ativa que a criança presencia” (Entrevista n° 02). Nesta fala a dimensão econômica e psicossocial é vista como um dos aspectos pertinentes a forma complexa como se apresenta o fenômeno num lugar onde a criança estaria resguardada de qualquer ameaça. A questão da subjetividade através do olhar, das palavras ditas, das situações de constrangimento a que são submetidas às crianças e adolescentes, aparecem nas falas de alguns entrevistados. Destaca-se, ainda, nos depoimentos a falta de informação, as conseqüências psíquicas que a criança leva para o resto da vida, as situações que lhes são impostas na tentativa de conseguir emprego, a situação de não permissão por parte da criança ou adolescente, os gestos obscenos que lhes são dirigidos por parte dos adultos e a influência da mídia: “é o incentivo que é dado de forma pejorativa pelos meios de comunicação” (Entrevista n° 21) e “até mesmo um programa de televisão considero uma violência sexual 104 para uma criança” (Entrevista n° 22). Dos entrevistados, apenas 10% dos sujeitos conseguem articular a violência sexual com a questão social e a estrutural familiar, a falta de políticas públicas e de acompanhamento social das crianças, a partir do seu nascimento e a responsabilização do Estado como declara a entrevistada: A princípio eu acho que é de um diagnóstico cultural, você tem um tipo de violência que é produzida pelo próprio Estado, que é a falta de moradia, de saneamento, o desemprego, as questões relacionadas mais de gênero [...] são produzidas pelo próprio Estado, eu acho que isso é o que mais contribui para que isto venha a se efetivar, essa violência com as crianças, esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é a questão da família, a família vive desestruturada, na maioria das vezes desagregada [...] E o terceiro ponto é a educação, trabalhando a educação em parceria com a família e a sociedade, essa sociedade com um Estado que tem que começar a dar a sua contribuição. Acho que essas ações estão dissociadas, não estão interligadas e se isso acontecer temos como mudar esse quadro (Entrevista n° 11). A partir desta fala consegue-se articular a questão da violência com a discussão macroestrutural como nos lembra Libório (2004) ao se referir à organização socioeconômica e política da sociedade. No primeiro momento, a fala da educadora indica a responsabilização estatal ampliando sua análise sobre o fenômeno, denotando uma visão que vai além dos muros da escola. Num segundo momento, aponta a família como ponto de referência para o educando no seu processo de socialização e por último, considera a educação como articuladora de um movimento transformador entre Estado, família e sociedade. Trata-se de uma posição questionadora que coloca o educador enquanto ator responsável pelo processo de mudança social lembrado por Freire (2003) quando se refere ao caráter político da educação e seu papel reprodutor ou contraditório diante do sistema. Somente um educador, apesar de atribuir a violência sexual como “qualquer ato que venha a desrespeitar a idoneidade da criança e do adolescente”, aponta, também, as vítimas como sendo em parte responsáveis pelo ato em si, particularmente, pela forma de vestir-se e expressar-se. E ainda questiona: “quase sempre o adulto recebe toda a carga de culpa quando o ato sexual chega a se completar, mas será que o adolescente não contribui para que isso aconteça?” (Entrevista n° 21). Observa-se neste questionamento, ainda, uma concepção histórica de culpabilização de um ser em formação que ainda não dispõe de conhecimento ideológico para uma postura de maturidade que é esperada do adulto. Assim, a posição que lhe é atribuída expõe uma ambigüidade enquanto vítima e culpada. Na condição da expectativa que poderia ter do educador, pode se entrever o distanciamento da escola com a vida da criança e do adolescente 105 e a reprodução de um discurso moralista e repressor. Com essa concepção estigmatizante perpetua-se a responsabilização de crianças e adolescentes pela sua própria condição de explorados, contribuindo para a manutenção da violência sexual contra eles. De modo geral, observa-se que neste tipo de argumento há um conservadorismo histórico preservado ao longo do século XX. Esta justificativa encontra-se destacada por Landini (2005) sustentada na expressão patriarcal, no atraso moral e na repressão vinculada à realidade social do período. A partir do entrelaçamento de diversos campos do saber, que passam a intervenção nos mais diversos espaços públicos proporcionando uma mudança conceitual em relação à violência sexual, este processo vem sendo lentamente alterado. Concepção acerca do abuso sexual e exploração sexual Quanto às concepções a respeito das categorias abuso sexual e exploração sexual, deparou-se na pesquisa com posicionamentos diversos denotando uma marca histórica de distanciamento em relação a temas considerados tabus em nossa sociedade. A maioria dos sujeitos apresentou um entendimento que o abuso sexual se expressa como forma de contato físico no âmbito da vida privada “o abuso começa dentro de casa, no seio familiar”(Entrevista n° 05) trazendo a desacralização da família como lugar seguro para as crianças e adolescentes. Outras concepções expressam ainda a noção do contato físico “o abuso sexual acho que é quando é pra satisfazer as necessidades” (Entrevista n° 02), “o abuso é todo ato em relação ao corpo da criança” (Entrevista n° 06), e “o abuso sexual a meu ver é quando você faz uso de uma criança ou adolescente de forma violenta para sentir prazer” (Entrevista n° 21) mostrando de certa forma uma sensibilização para a questão enquanto ponto de partida para a discussão ou informação sobre o mesmo. Numa definição mais ampla aparece o componente da opressão na seguinte fala: é quando a criança ou jovem é abusada na sua inocência, na maioria das vezes em casa ou por alguém conhecido e é uma coisa que acontece às vezes com a própria família e é coagido a não denunciar por medo, por vergonha (Entrevista n° 03). É importante ressaltar nesta fala a possibilidade da denúncia e como a mesma é induzida ao não dito pela pressão da própria família. Na pesquisa de Butler (1979) e Faiman (2004) constata-se a perspectiva da impunidade diante do silêncio e a perpetuação do abuso 106 pelo constrangimento. Revelando-se para Saffioti (1997) como um dos maiores desafios para o rompimento dos segredos de famílias que mantém o abuso sexual guardado no registro do privado. Noutra fala percebe-se o componente da sedução como fator que pode preceder o abuso sexual “o abuso é aquela maneira de estar usando a pessoa de forma psicológica, induzindo” (Entrevista n° 15). Enquanto que uma minoria tem dúvidas quanto a este conceito “[...] difícil, é parecido. É como o roubo e o furto”. (Entrevista n° 12); outro não sabe explicar e outro diz que: “o abuso é quando algum sujeito ameaça a criança através de violência física ou psicológica para obter benefício próprio” (Entrevista n° 11). Observa-se nestas falas, mais uma vez, a força que exerce o senso comum nas concepções dos entrevistados, demonstrando a falta de políticas públicas e a deficiência na formação permanente do educador para lidar com questões específicas, mas que se expressam com gravidade na estrutura da sociedade na contemporaneidade. Também presente a noção de assimetria nas relações de poder destacada por Gabel (1997) no poder exercido pelo adulto sobre a criança, na confiança que a criança ou adolescente deposita no adulto e no atentado à propriedade sobre o corpo como direito de todo indivíduo. Mesmo diante de dúvidas conceituais, as falas revelam um saber, ainda que incipente sobre o abuso sexual que se aproxima dos conceitos e abordagens realizadas pelos estudiosos da temática. Em relação à exploração sexual, a maioria entende que há uma articulação com os interesses financeiros e mercantilistas, o que demonstra um conhecimento que diferencia do abuso sexual revelado em alguns depoimentos: “a exploração é quando ele comercializa essa criança, ou vende o corpo dela ou trafica para outro tipo de ponto de encontro” (Entrevista n° 11), ou ainda “exploração é quando o adolescente usa o corpo como se fosse um meio de vida” (Entrevista n° 17). Alguns aspectos são abordados como a conivência familiar “exploração sexual já envolve dinheiro [...] às vezes até com a conivência da família”(Entrevista n° 01), problema que passa a tratar a pobreza no cenário familiar como justificativa para a entrega ou incentivo dos filhos à exploração sexual. Enquanto uma minoria aponta indefinições em relação a este conceito, indicando o espaço da casa como referência de segurança e a exploração como o que vai além dela: “a exploração transpassa, sai de dentro de casa” (Entrevista n° 05), o que mostra a contradição 107 do fenômeno em relação ao aspecto abordado no parágrafo anterior. Deste modo há uma explicitação da própria natureza contraditória deste fenômeno. Uma outra fala traduz a relação determinante entre o abuso e a exploração sexual expondo uma vinculação de causa e conseqüência entre as duas categorias: A exploração é uma decorrência da criança abusada, por não ter instrução, uma pessoa ou órgão que a defenda, caindo na prostituição. São explorados a partir daí por conta de um abuso na infância que não foi atendida com respeito, não foi socorrida a tempo e aí ela pode achar que não tem mais retorno. E tem a exploração sexual que permite o jovem ou adolescente fazer aquilo porque quer, ou por dinheiro, ou por ajudar a família ou por não ter outro método de sobrevivência. Por todas as questões já colocadas, as vezes o pai ou a mãe joga na rua e são explorados por isso. Sabemos que tem um órgão que acolhe, que encaminha, mas é um processo lento, mas para o jovem eles querem tudo rápido e por não terem paciência acabam voltando, rescindindo e fazendo a mesma coisa, é como as drogas. A questão da exploração sexual acho que é essa, ou fazem por consciência ou inconscientemente por conta da questão social (Entrevista n° 03). Este depoimento remete a Libório (2003) que aponta para a discussão teórica da década de 1980, quando autores canadenses utilizaram o início da pesquisa, a partir desse pressuposto da relação direta abuso-prostituição. Brannigan e Van Brunschot relatam num estudo nacional no Canadá um resultado de 20 a 70% de adolescentes prostituídas que vivenciaram o abuso sexual. Outros trabalhos realizados pelos mesmos autores demonstram a discordância na significância do abuso sexual com preditor da exploração sexual. Chegam à conclusão que o abuso sexual pode contribuir para que a exploração sexual aconteça, porém, não com exclusividade. A pesquisa realizada no Brasil por Leal (2003, p. 53) sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial revela que as adolescentes em situação de tráfico trazem “na sua história de vida, algum tipo de experiência relacionada com o trabalho doméstico, com o comércio, com a exploração e o abuso sexual, com a gravidez precoce e com o uso de drogas”. Estando as violências sexuais como um dos fatores que vulnerabilizam sóciopedagogicamente crianças e adolescentes no âmbito da família e da sociedade. Relacionar a exploração sexual de crianças e adolescentes ao mercado financeiro coloca os educadores diante da realidade social perversa imposta pelo capital, pelo avanço das forças do mercado, pelo crescente contingente populacionail, a exemplo das crianças e adolescentes. A imposição aparece de forma sutil e a maioria não consegue articular essa concepção com a questão social multidimensional, que envolve uma conjuntura mundial marcada pela diminuição da presença do Estado na promoção das políticas sociais. Recorre-se a Leal (2001) para justificar tal constatação considerada na contradição entre mercado e Estado. 108 De modo geral, as concepções em torno das categorias principais da violência sexual infanto-juvenil encontram-se no imaginário dos educadores como algo a ser enfrentado no cenário educacional de forma institucional. Fato que respalda o educador enquanto ator importante neste processo de construção histórica da transformação social. Para que isso aconteça faz-se necessário a sua inserção e compreensão nesta realidade para transformá-la na mediação dentro de uma dimensão política. Situações vivenciadas pelos educadores e as diversas formas de enfrentamento Quanto à vivência no cotidiano escolar, experienciada pelos educadores que se depararam com a situação de violência sexual vivida pelos alunos, chegam a um número de 31,81%. É o exemplo da fala a seguir: “tive uma aluna que estava mostrando os seios e disse aos coleguinhas que por um real mostrava mais do que os seios” (Entrevista n° 19). A escola perde a oportunidade de trabalhar questões do dia-a-dia da sala de aula pela via do diálogo baseada em valores sociais que possam balizar as relações humanas como respeito, solidariedade etc. Que instrumentos faltam a essa organização social enquanto responsável pela normatização de valores imprescindíveis para a convivência em sociedade? Como ajustar as propostas pedagógicas às necessidades da comunidade escolar no seu fazer diário de transmissão cultural? Questões que precisam ser pensadas a partir destes estudos que trazem a face da realidade escolar diante do imensurável da subjetividade de uma coletividade. Outros depoimentos também são sintomáticos quanto às dificuldades do enfrentamento do educador e da escola: Uma aluna foi violentada pelo cunhado, mas ela diz que, antes ninguém tivesse sabido, porque a família toda ficou contra ela. Ninguém acreditou nela. Acho que o que mais chocou aquela criança foi a passagem de vítima a ré, e isso aconteceu ela tinha 9 anos, ela foi minha aluna com 11 anos. A mãe chegou a óbito de tanta pressão familiar (Entrevista n° 04). Nesta situação, o educador se depara com uma criança e um adolescente, que além da violência sexual sofrida, enfrenta as conseqüências daí advindas como o desmoronamento familiar e a culpa que lhes é imposta pelos próprios familiares. O sentimento de traição e negação à segurança lhes aprisionam a situação e ao silêncio, como lembra Butler (1979) trazendo-lhes seqüelas imprevisíveis. A legitimidade de sua palavra lhes sendo negada, também é negada a sua condição de cidadania, restando-lhes, apenas, a condição de coisa 109 indicada por Freire na coisificação do sujeito num processo de submissão na relação de poder vivida. Na experiência de um colega, em outra escola, era normal os pais abusarem das filhas, eram crianças assustadas o tempo inteiro, quando os pais vinham buscá-las na escola ficavam ansiosas e toda a comunidade sabia que os pais abusavam das filhas (Entrevista n° 22). Neste caso específico, a omissão da comunidade escolar constitui-se de exposição à violência, sendo inaceitável deixar crianças e adolescentes à mercê da violência sem considerar seus direitos sociais. Na minha convivência na escola aconteceu um caso onde percebemos a mudança de comportamento de uma adolescente que estava sendo violentada sexualmente pelo padrasto, ela com medo não dizia a ninguém, a professora com muito jeito conseguiu detectar que a mudança de comportamento bruscamente da menina era por isso (Entrevista n° 16). A referência do professor para o educando aparece neste caso como a pessoa em quem a criança confia. Fato que exige deste profissional uma postura competente, humanitária e protetora, sem ser assistencialista, mas enquanto atitude imprescindível no cotidiano social. Tivemos um caso em que duas alunas se insinuavam para os caminhoneiros em troca de dinheiro, não acontecia o ato sexual, mais a mãe acompanhava e ficava com o dinheiro. A escola chamou a mãe que negou e ameaçou levar para o Conselho Tutelar, mas o depoimento das alunas era firme e depois de algum tempo elas deixaram a escola e não tivemos mais notícias (Entrevista n° 18). A exploração sexual com a conivência da família traz um quadro de dificuldades em que a escola passa a ser vista como instância que pode impedir um processo de vulnerabilização e conivência. Observa-se nestes depoimentos a vulnerabilidade em que as crianças se encontram no seio da família, a negligência com que são tratadas essas questões, haja vista se conceber que no âmbito intra-familiar e na companhia dos pais, a criança estaria resguardada da violência na sociedade. Faz-se necessário ressaltar as observações elaboradas por Gabel (1997), Butler (1979) e Faiman (2004) no que se refere às conseqüências emocionais na vida de crianças e adolescentes vítimas da violência sexual que não podem ser mensuradas pela subjetividade e complexidade com que se concretizam. 110 No que diz respeito à omissão nos casos de denúncia aos órgãos competentes, de acordo com a legislação vigente considera-se infração administrativa com penalização de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência aos profissionais que se abstém de fazê-la: Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente (art. 245, ECA). Considera-se a importância do rompimento do ciclo de violência e do silêncio através dos atores sociais que convivem com crianças e adolescentes, na perspectiva da denúncia institucional e não pessoal. Portanto, a necessidade de implantação de uma política institucional que possa dar condições dos educadores lidarem com essas questões urgentes que precisam de ações imediatas para o seu enfrentamento e prevenção aparecem como inadiáveis. No entanto, a maioria dos educadores entrevistados nunca experienciou essa situação. Alguns revelavam uma experiência não diretamente, mas com insinuações do tipo: “fulano tá fazendo enxerimento” (Entrevista n° 15), “o que existe é que os meninos pegam nos seios, na bunda, na vulva das meninas e elas pegam no pênis dos meninos, depois vêm reclamar. A gente não sabe nem como agir, eu sinto dificuldade” (Entrevista n° 08). As atitudes tomadas pelos educadores no contexto da escola, ao lidar com essas situações em sala de aula ou em outros lugares da escola, são, por via de regra, buscar ajuda na direção da escola, para que a mesma possa tomar medidas enérgicas, no sentido de convocar a família da criança ou adolescente e apoio, com a perspectiva de conter o problema identificado no cotidiano escolar. Percebe-se nas falas, por um lado, uma perplexidade dos educadores, que impactados não encontram bases relacionais para o enfrentamento do problema. Por outro, identifica-se a ausência e, ao mesmo tempo, a necessidade do diálogo diante de situações em que o silêncio é quase uma regra. Ou seja, o diálogo como condição essencial, seria a forma de romper com a conspiração silenciosa imposta pelos adultos sobre as crianças, como se elas fossem propriedades dos pais ou dos responsáveis. Em outras palavras, a partir do diálogo poderia se interromper um ciclo de poder simbólico instituído. 111 Freire (1992), com a pedagogia do diálogo, oferece uma contribuição eminentemente política ao que considera não só um encontro que se realiza na práxis, mas um diálogo que possa ser estabelecido nas relações sociais. Preocupado com as práticas educativas e o diálogo estabelecido entre a escola e as famílias no Estado de Pernambuco, ainda nos anos de 1950, realizou uma pesquisa que teve como pano de fundo a violência e sua repercussão no contexto da escola. Desenvolvida sobre a convivência familiar dos alunos apontava para “a questão dos castigos, dos prêmios, as modalidades mais usadas de castigo, os seus motivos mais freqüentes, a reação das crianças aos castigos, sua mudança ou não de comportamento no sentido desejado por quem castigava etc.” (FREIRE, 1992, p. 21). Assustou-se com “a ênfase nos castigos físicos realmente violentos, na área urbana do Recife, na Zona da Mata, no Agreste e no Sertão” (FREIRE, 1992, p. 21), desenvolvendo uma reflexão sobre as conseqüências políticas dessas relações que se alongam nas vivências escolares, reproduzindo uma ideologia autoritária, num contexto democrático frágil, subjugado ao contexto da sociedade global. Na perspectiva de mudança da posição de objeto oprimido diante do mundo, Freire aponta em Educação como Prática da Liberdade, a reflexão ao que considera uma das maiores tragédias do homem moderno, o seu rebaixamento da condição de sujeito a “puro objeto, coisifica-se” (FREIRE, 2003, p. 51). Em Pedagogia do Oprimido discute o lugar que o oprimido ocupa nas relações sociais e sinaliza que, “os oprimidos, como objetos, como quase ‘coisas’, não têm finalidades” (FREIRE, 1981, p. 50). Referencial este baseado numa ética que para Freire é a “ética universal do ser humano” [...] “enquanto marca da natureza humana” e na “sua vocação ontológica para o ser mais” (FREIRE, 1996, p.18), discutida em Pedagogia da Autonomia, enquanto gestada socialmente na História e inseparável da prática educativa. Portanto, a mudança se faz necessária num sentido muito mais amplo no que se refere as responsabilidades sociais, envolvendo a participação conjunta da rede de atendimento a criança e adolescente. Diante de situações complexas, multifacetadas, a postura profissional cuidadosa dos atores sociais envolve atenção, sensibilidade e ética. Neste sentido, a mensagem da prática teórica freireana é lembrada por Rosas (2002, p. 336) apontando para o educador enquanto sujeito de transformação, “desde os primeiros tempos, implicava o objetivo político da transformação social como condição para o agir do educador”. No entanto, algumas questões precisam ser colocadas para reflexão no sentido de entender por que essa transformação é difícil de acontecer? Quais são as condições de trabalho dos educadores? Qual é o lugar dos educadores enquanto sujeitos na construção histórica dessa 112 transformação social? Como mudar esta realidade sem compreendê-la? Como entender a criança e o adolescente enquanto sujeitos de direitos se o reconhecimento do profissional da educação no meio social ainda encontra resistências pela própria conjuntura de desvalorização de suas funções? Encaminhamentos realizados pela escola Quanto aos encaminhamentos realizados pela escola na identificação do abuso sexual, são destacados os seguintes procedimentos: assistência da equipe técnica, contato com a família, contato com o GT Violência da Secretaria de Educação e o Conselho Tutelar como revela esta educadora entrevistada: “a primeira coisa que a escola faz é chamar a família, conversar e trabalhar junto com o Conselho Tutelar” (Entrevista n° 02). Os encaminhamentos partem de uma ação anterior que requer uma articulação da rede de atendimento à criança e ao adolescente em sua função protetiva de agilizar eficazmente o sistema de garantia de direitos. Nas entrevistas a seguir, algumas iniciativas são observadas: Ligamos pra coordenadora do GT Violência, entramos em contato com a mãe ela veio na escola e as negociações foram feitas na Secretaria [...] parece que a família quando vê que a escola está se intrometendo demais, eles procuram um jeitinho de se afastar. A mãe tirou a menina da escola dizendo que a menina tinha que estudar em outro lugar (Entrevista n° 01). Nesta ação constata-se a articulação que transcende os muros da escola na tentativa de apreender o que escapa ao seu espaço de interlocução interna dialogando com outras instâncias na perspectiva do trabalho em rede. O diálogo com a escola foi sendo construído e procura-se contato com o pai, com a mãe, e tentamos trabalhar no dia a dia algumas questões. Às vezes há uma dificuldade com a própria família ou com a comunidade ou com a própria adolescente e você percebe no comportamento do dia-a-dia algo estranho. Que a criança está um pouco triste, isolada, cai o rendimento, não interage com a escola, ou tem atitudes violentas. Às vezes a gente não consegue saber exatamente, porque não responde, mas percebemos que o objetivo maior é fazer com que os pais compreendam que ajudar o filho é o mais importante [...] a gente tem que estar trocando estas experiências em comunhão com outros professores e perguntar: Você está percebendo o comportamento de fulano? Com o professor de matemática ou com outro. E a gente sai fazendo essa ponte na procura de ajuda” (Entrevista n° 11). 113 Ressaltam-se nestes depoimentos a importância da escola como espaço de identificação e denúncia e a mediação realizada entre os educadores e a família, tendo o diálogo como elemento necessário de superação das históricas lacunas que existem entre a escola e a sociedade. Todavia, existem situações que fogem da perspectiva relacional entre escola/família/sociedade, como demonstra a entrevistada a seguir: “tivemos um caso na escola em que o esposo tinha relações com a esposa, com a enteada e com a prima. E o papel da educação é só a gente ficar sabendo e ficar por isso mesmo?” (Entrevista n° 06), “o caso foi repassado para a direção da escola e não foi dado nenhum encaminhamento por medo. A família era violenta, tinha envolvimento com drogas e a escola recuou” (Entrevista n° 17). E na entrevista seguinte: “não foi tomada nenhuma iniciativa. É um tema pouco explorado na escola, não temos onde buscar uma ajuda. A diretora e os professores sabiam, todos ficavam horrorizados, mas havia um temor, era um bairro perigoso” (Entrevista n° 22). Neste sentido, a negligência, a omissão, as relações de poder e o autoritarismo instituído nas famílias, por absoluto descontrole social, aprofundam as condições de violência da sociedade para com as crianças e adolescentes. Somado a isso, o profundo desconhecimento dos educadores sobre os instrumentos legais que deveriam ser acionados para enfrentar os problemas dessa natureza social, levando-os a entrar em contato com o “horror” sem um firme posicionamento de consciência de seu papel e do papel da escola. Nesta perspectiva, retoma-se em Freire (1986) uma reflexão sobre os temores da transformação que ronda a sala de aula: Quando falamos do medo, devemos estar absolutamente seguros de que estamos falando sobre algo muito concreto [...] não posso permitir é que meu medo seja injustificado, e que me imobilize [...] o medo pode estar voltado para as forças da sociedade que estão lutando contra o status quo (FREIRE, 1986, p. 70). A dificuldade entre o horror e o enfrentamento do fenômeno da violência passa por um movimento que se localiza no meio social, desses dois movimentos que transparece na indignação diante da violência e, em reconhecer esse medo, reconhecer a humanidade de ser gente. Para que o medo não seja um impedimento, Freire destaca que: 114 Em vez de racionalizar o medo, você o entende criticamente. Então, o reconhecimento do medo que limita sua ação permite que você chegue a uma posição muito crítica, na qual você começa a atuar conforme as relações dialéticas entre táticas e estratégias (FREIRE, 1986, p. 71). Pela leitura que sugere Freire, percebe-se na atual conjuntura da escola, a exemplo do que foi verificado nesta pesquisa, que o medo é um fenômeno cultural e histórico, que contribui para o poder dominante reforçar o abandono, o imobilismo e a omissão. Ao reconhecê-lo encontra-se o seu contraponto no diálogo, enquanto posição epistemológica, que implica na tensão entre autoridade e liberdade. Um diálogo que priorize o desenvolvimento de relações respeitosas e democráticas na comunidade escolar. Dificuldades encontradas no cotidiano profissional Quanto às dificuldades destacadas no cotidiano profissional, ao deparar-se com essa temática da violência sexual contra crianças e adolescentes, a maioria dos sujeitos evidenciou falta de formação permanente dos profissionais da educação, sobretudo, o professor que se depara com mais freqüência com o aluno em sala de aula. No depoimento a seguir, esta questão é ressaltada: Dentro dessa área, estudar mais, saber o que diz com relação à literatura, ter mais respaldo teórico, porque até então só tenho o conhecimento de mundo, o que leio em jornal, em revista, o que escuto [...] acho que dentro da educação precisamos ter a informação primeiro, preciso saber qual a função da escola e saber encaminhar para o órgão especializado (Entrevista n° 03). A evidência de distanciamento da formação para este desafio analisado aparece, também, em outras falas: “nós temos muita dificuldade, não temos profissional que tenha formação pra isso e, infelizmente, aqui não temos preparação” (Entrevista n° 05); “tem momento que não sei como fazer, nem o que dizer [...] a maneira de chegar até eles” (Entrevista n° 12). Observa-se nas falas a carência e o despreparo do professor para a reflexão e os desafios a enfrentar. Dessa forma, por absoluta ausência do Estado, o conhecimento, a experiência de vida e as informações dispersas são as únicas possibilidades que dispõe o educador para enfrentar no trabalho pedagógico o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes. 115 Será a formação a única alternativa no campo da educação para o enfrentamento dessa questão? Entendida como uma das possibilidades diante da complexidade estrutural e macrossocial pergunta-se: Como estão sendo efetuadas as capacitações na educação? Num modelo bancário? Neste sentido, mais uma vez se recorre aqui a Freire (1982), quando este considera a formação de professores como um eixo central na escola, refletindo sobre a necessidade dos encontros, sobre a prática de todos, sobre a necessidade de se conhecerem, sobre a troca de experiências, sobre a necessidade de estudos: “os professores poderiam se reunir por disciplinas, por problemas gerais, e ao mesmo tempo tentar uma vinculação da escola, não apenas com as famílias, mas com as instituições da área, discutindo a problemática políticopedagógica dessa área” (FREIRE, 1982, p. 48). O autor continua sua reflexão sobre a função social e política da escola e destaca que “um trabalho como esse estimula uma criatividade, estimula uma curiosidade, e estimula, sobretudo, o direito das massas populares dizerem ‘porque’?” (FREIRE, 1982, p. 48.). As dificuldades aparecem, ainda mais, em outros depoimentos direcionados para a relação da escola com as famílias, por considerarem essas questões difíceis de serem construídas, pois, ainda é em nossa cultura, um elemento considerado tabu. Nesse território, que distancia o mundo público e privado, prevalece o discurso da omissão como regra, sob o repetido argumento dos riscos que pesam sobre o profissional da educação que revela ou denuncia a violência originada no espaço doméstico, como se percebe na fala seguinte: “que segurança nós temos? Como o Estado dá cobertura a gente ao denunciar um caso de violência sexual?” (Entrevista n° 06). No sentido crítico do debate entre o real e o legal, cabe ressaltar o artigo 227 da Constituição e do próprio ECA, quando se refere a função e o dever da família, da sociedade e do Estado a esse respeito. Todavia, se percebe no depoimento a seguir, a crítica e a angústia do entrevistado para com a demora na tomada de iniciativas consideradas necessárias no enfrentamento da questão: Não há um comprometimento maior por parte da Secretaria. Não adianta a escola ter alguns pontos de partida e não haver um apoio necessário, porque os encaminhamentos geralmente são feitos para o Conselho Tutelar, mas não há um projeto específico para esse problema. Deveria ter uma atenção mais específica. Seria interessante um programa preventivo construído pela própria Secretaria de Educação, existe um GT Violência, mas, até agora eu não vi uma ação efetiva nas escolas. Deveria ter um direcionamento com relação a isso e não ficar apenas nos seminários ou palestras pontuais (Entrevista n° 11). 116 O Grupo de Trabalho sobre violência (GT Violência) da Secretaria de Educação do Município de Campina Grande foi criado em 2004, fruto de reivindicação das escolas e a partir de um diagnóstico realizado pelos educadores acerca das dificuldades emergentes encontradas nas escolas. Foram elencadas algumas dificuldades consideradas por educadores como sendo prioritárias, tais como: sexualidade, relações interpessoais e violência. A partir daí foram criados grupos de trabalho para as temáticas específicas, sendo um deles o GT Violência. O grupo iniciou com um trabalho de visita às escolas onde o índice de violência era de maior constatação, mantendo um primeiro contato com a comunidade escolar (pais, professores técnicos e alunos), na tentativa de refletir sobre o entendimento desses sujeitos sobre violência, no sentido de pensar estratégias conjuntas para os problemas identificados na escola. Nessa conjuntura, surgiram discussões coletivas e depoimentos relacionados às formas diversas de violência vivenciadas pela comunidade, desde a violência doméstica na relação com os filhos, com companheiras e companheiros, à violência estrutural e sistêmica. Ainda no que diz respeito a estas questões, aparece nos depoimentos o problema da insuficiência de profissionais para as escolas no acompanhamento ao fenômeno social pesquisado, pois, a escola não possui uma equipe técnica permanente (Assistente Social, Psicólogo, Orientador e Supervisor Escolar), em função do reduzido contingente na Secretaria de Educação do Município, visto que, os mesmos são responsáveis por várias escolas ao mesmo tempo. Sabemos que esta redução de profissionais é determinado pela reforma do Estado, implantada a partir dos anos 90 no Brasil, como um dos requisitos do capitalismo contemporâneo de redução de seu papel. Assim, os educadores constatam que é necessário e urgente, mediante o papel social que a escola deve exercer, de uma equipe profissional de apoio permanente e capacitada para atender exclusivamente cada escola, como forma de se colocar na agenda dos acontecimentos da sociedade e que tem seus rebatimentos no cotidiano escolar. Com esse compromisso, segundo os educadores, poderia a escola se aproximar mais da comunidade, no trabalho contínuo junto às famílias, na identificação da rede de atendimento à criança e ao adolescente, fazendo uma ponte de apoio entre sociedade e escola. No caso dos CEAIS, escolas que atendem em média 600 alunos diariamente, foram constatados pelos entrevistados que os casos de violência contra crianças e adolescentes tomam uma dimensão que impossibilita o trabalho e a eficácia do enfrentamento. Havendo uma concepção restrita quanto à centralização do profissional da educação no professor, quando ele precisa assumir os conteúdos e a sala de aula. O contato com as famílias, a articulação da escola com outras instituições, a mobilização na comunidade e o 117 acompanhamento dos casos surgidos na escola são competências além do professor, também da equipe técnica, como demonstra o entrevistado seguinte: Existe uma barreira muito grande, principalmente com relação a família [...] a própria falta de politização da sociedade, por outro lado existe uma distância muito grande entre a comunidade e a escola, penso que se essa distância não fosse tão grande, a escola poderia fazer primeiro um trabalho com os pais e a comunidade e o corpo discente (Entrevista n° 21). Este espaço de relação entre escola e comunidade remete às posições colocadas por Anderson (2003), Pereira (1998) e Batista (2001) que apontam para o desmonte dos direitos sociais, sendo a educação incluída nesse rol de estratégias de diminuição do Estado. A desvalorização do cidadão como partícipe da construção e transformação do seu espaço social redunda em outras expressões da violência como a depredação do patrimônio público, fato constatado, inclusive, pelo abandono das escolas onde os filhos estudam. O sentido de vencer o saber pelos atos de violência, distanciam, ainda mais, o acesso ao conhecimento formal e elaborado, por absoluta falta do diálogo. Em Educação e Mudança FREIRE enfatiza (1979, p.28) a questão do saber popular como algo que deva ser colocado na condição do sentido da mudança: “o homem deve ser o sujeito de sua própria educação” e pelo viés do desejo, a vontade de saber aponta para a implicação subjetiva intransferível para cada um, refletindo também no compromisso do profissional com a sociedade, sua responsabilidade no seu fazer diário construindo e vivendo um processo de transformação. Importância da educação no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes Na reflexão a respeito da importância da educação no enfrentamento da problemática da violência sexual contra crianças e adolescentes, é unânime a compreensão de que a educação se constitui no melhor meio de conhecimento para este enfrentamento. Neste sentido, a contribuição para a transformação da sociedade pela educação é lembrada por Rosas (2002, p.336) quando se refere a uma frase de Freire “a educação sozinha não transforma a sociedade; mas, sem ela, a transformação não acontece”, e ainda reforça “não nos satisfazia a proposta de ‘promoção social’, pois ainda que pudesse beneficiar indivíduos, 118 não mudaria a estrutura responsável pelo poder dos opressores sobre os oprimidos” (ROSAS, 2002, p. 335). É o que se percebe na fala da entrevistada seguinte: Acho que é de suma importância. Desde que eu me entendo, que a gente estuda se diz que a educação vai transformar e eu creio que não é a educação que as pessoas tem como objetivo de alcançar algo, mas eu creio na educação enquanto humanização, enquanto você se tornar uma pessoa mais humana, uma pessoa mais sensível, uma pessoa que lê, que estuda com o intuito de transformar aquele meio social, então eu creio que a educação pode funcionar [...] Eu acho que a educação seria transformar, sensibilizar, mas, não dessa educação formal, mas uma educação que humanize, uma transformação de consciência, que eles tenham consciência e saibam quem eles são, dos direitos e deveres que eles tem. Então, ao se identificar mais como pessoas e se respeitar, o maior passo da educação é esse, se reconhecer enquanto pessoa que são gente, que pensam e aí vão respeitar o outro. (Entrevista n° 03). Ao analisar esta fala de conteúdo humanista, que enfatiza o caráter social da aprendizagem, sem perder de vista o aspecto individual, percebe-se a preocupação com o ser do educando inserido num contexto existencial que não pode ser separado do seu momento de aprendizagem formal. Remete-se ainda mais uma vez às reflexões teóricas de Freire (1982), quando associa o ato do conhecimento ao ato social: Mas numa sociedade que fosse diferente, ou que pretendesse ser diferente; numa sociedade que encarnasse um outro sonho, um sonho em que as relações sociais, por exemplo, fossem relações não de competição, mas de solidariedade, de companheirismo, então necessariamente a educação seria diferente. Não digo isso de forma mecânica, mas se supõe que, na medida em que uma sociedade vai fazendo girar a sua produção de tal maneira que as relações sociais de produção – ou em torno dessa produção – se dêem em termos de solidariedade e não de competição, espera-se que, dentro das escolas, a produção do conhecimento e o exercício de conhecer o conhecimento que já existe se dêem não em termos competitivos, mas sim de solidariedade (Freire, 1982, p. 104). Partindo dessa reflexão de Freire, encontram-se aqui outras falas que apontam também como sendo a escola o lugar da educação no processo de reflexão na sociedade: A educação é um lugar de formação de opinião, você está formando indivíduos. Também de criar um ambiente de qualidade de vida, acho que a educação tem esse papel, não só de viver e aprender, mas, também, construir junto com o aluno quem ele é dentro desse processo e, segundo, é a ação preventiva também (Entrevista n° 11). 119 Ressalta-se a dimensão política deste argumento, como instrumento da aprendizagem no movimento do conhecimento, reconhecendo que a transformação pode ser considerada um acontecimento educativo. Sendo a escola um espaço privilegiado por ser lugar de construção de subjetividades, observa-se neste depoimento a preocupação com o trabalho de prevenção nos espaços educativos, sendo uma estratégia fundamental que pode se utilizar o Estado, como reforça Gabel (1997): A ação preventiva promove uma sensibilização nas escolas, junto das crianças, de pais e profissionais da infância; vemos o interesse de uma reflexão coletiva em torno de um apoio fílmico; a informação didática parece, portanto adquirir crescente interesse ante o olhar social que ela obriga a dirigir-se para uma área até então proibida e secreta (GABEL, 1997, p. 200). Nessa interlocução com os espaços educativos através do diálogo, da sensibilização das escolas, Gabel apontou que na França houve um aumento considerável das denúncias, mostrando, sem dúvida, o resultado de crianças com maior liberdade de expressão, fazendo uso da sua assertividade e de adultos mais dispostos a ouvi-las, contraditoriamente na diminuição do número de casos e na construção coletiva do fortalecimento de uma rede local de proteção às crianças e adolescentes violentados sexualmente. Numa outra perspectiva, a escola aparece como o lugar de formação para a vida: A educação não é só o ato de aprender, mas no sentido amplo, de dar cidadania ao indivíduo, de abranger não só a documentação, mas toda uma aprendizagem para a vida do indivíduo, além da educação formal, além dos conteúdos, essa formação de socialização, do melhoramento da pessoa, do desenvolvimento do indivíduo (Entrevista n° 14). Ressalta-se no conteúdo desta fala a preocupação com a construção do sujeito para a vida na coletividade não esquecendo a sua singularidade enquanto ser na mediação com a realidade. Para Freire, a questão educacional tem como fulcro fundamental à consciência social no sentido de uma opção política. Sair da condição de objeto de manipulação para o exercício constante da crítica e da transformação do sujeito da ação social, ou seja, protagonista da sua história. Aponta em Pedagogia do Oprimido que: A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica (FREIRE, 1981, p. 3). 120 Nesse sentido, Freire (1981) quando atenta para a concepção de educação “bancária” como o ato de depositar e transferir valores e conhecimentos aos educandos, coloca-os numa dimensão que denomina de “cultura do silêncio”, deixando de ser construção de saber, ou “experiência feito”, para ser experiência transmitida. Acho que o processo de educação é primordial em tudo [...] como não temos nenhuma política séria que viabilize o trabalho em sala de aula questões como essa, não vejo saídas a curto prazo [...] já que não se trabalha na base, e a base é a educação (Entrevista n° 21). A partir desta colocação denota-se a necessidade da contribuição da escola inserida numa rede de proteção à infância e adolescência com uma participação qualificada e eficiente. Ação que se configura numa ação conjunta com os diversos segmentos sociais na difícil intervenção do problema para a demanda de políticas específicas nesta área. As falas dos educadores são reveladoras da importância da educação no resgate de crianças e adolescentes da violência sexual como instituição responsável dentro de um sistema macro pela cidadania e rompimento do pacto de silêncio imposto pela sociedade no espaço escolar. Material educativo para auxílio instrumental do educador Quanto ao material disponível na escola para que possa servir de consulta ou orientação para os educadores trabalharem com o tema, é quase unânime o desconhecimento a esse respeito. A grande maioria afirma não haver nenhum livro ou qualquer material didático de orientação dessa natureza crítica: “nós não temos na escola nenhum material que nos ajude” (Entrevista n° 17), “não temos o Guia Escolar nem no núcleo, nem na escola” (Entrevista n° 14), “aqui a gente tem uns documentos como o Estatuto, mas em relação à violência sexual não” (Entrevista n° 05). Diante disso, percebe-se que além do reconhecimento de suas limitações em relação à temática da violência sexual contra crianças e adolescentes, não há instrumentos didáticos que possam auxiliar o educador nessa discussão eminentemente ética e que lhes confronta com seu papel social. Na constatação da carência de material didático, instrumento pelo qual pode ser realizado um trabalho de prevenção, orientação técnica, sensibilização e mobilização de 121 alunos, educadores e comunidade, pergunta-se: Como quebrar o ciclo de violência na escola? Como ser agente de defesa dos direitos dos educandos? Após essa análise, pode-se dizer que pensar e refletir a ausência do papel da escola no enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes é algo inevitável, fato que impõe impactos negativos no êxito educacional de crianças e jovens que não estudam nem trabalham, tornando-se marginais do mercado de trabalho, realizando em sua grande maioria atividades nas ruas para sobrevivência pessoal e o sustento familiar, inclusive, a exploração sexual. Portanto, esta pesquisa se colocou como ponto de partida, propondo-se a contribuir e reivindicar políticas de Estado para o âmbito da escola, em especial, que se fortaleçam os instrumentos intelectuais para reflexão e formação dos profissionais da educação, fortalecendo o caráter público e democrático e a perspectiva de inclusão do crescente contingente populacional, em especial, das crianças e adolescentes, abandonadas e exploradas pela força do mercado. 122 CONSIDERAÇÕES FINAIS A contribuição deste trabalho aponta para a discussão de um fenômeno que toma uma dimensão de cunho social nas últimas décadas. Tomando como eixo norteador a educação e o seu lugar no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, reconhece o seu papel decisivo na construção da subjetividade de crianças e adolescentes. Embora se constatem iniciativas governamentais e da sociedade, o atendimento e o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, ainda é incipiente e frágil, considerando a descontinuidade das ações, a ineficácia das políticas públicas e o reduzido investimento financeiro. O perfil dos trabalhadores e a incipiente capacitação dos profissionais que trabalham na área ainda é um problema que dificulta a implantação de uma Política pública efetiva de combate à violência sexual. Há um hiato entre a legitimação do direito e sua aplicabilidade, constituindo-se num grande desafio a ser concretizado. Trata-se de uma questão que necessita de Políticas públicas efetivas em todas as áreas: educação, justiça, assistência social, saúde etc, em que há limites neste contexto de desmonte dos direitos, de contra reforma do Estado. Ação política esta, que não pode estar desvinculada de uma articulação estadual, nacional e internacional. Contudo, a fluidez de informações, a ousadia na investigação, o acionamento do sistema de proteção, os encaminhamentos a serem realizados visando à proteção da criança e do adolescente carecem de sistema operante rápido e competente, num imbricamento global com perspectivas de construção de uma rede de proteção à criança e ao adolescente no mundo inteiro. Outro fator importante na dificuldade do enfrentamento desta problemática é a impunidade e o desrespeito à infância brasileira, já retratada em seu percurso histórico e presente também nas políticas educacionais. Constata-se a diversidade dos desafios no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, desde a formação dos educadores concernente à concepção das categorias inerentes à violência sexual com seus equívocos conceituais até a relação das práticas cotidianas com as questões macroestruturais que incidem sobre as mesmas. A educação nesse contexto, considerada como uma das possibilidades de sensibilização, transformação e humanização, pode exercer a reflexão e o enfrentamento através da especificidade do trabalho pedagógico. O resultados encontrados mostram que o fenômeno acontece com características locais não perdendo de vista a política internacional que capilariza sua intervenção para todos os 123 lugares do mundo pela via da globalização, rebatendo na vida de todos os cidadãos, mesmo que estes não tenham consciência desta articulação e sua forma invisível de envolvimento. O contexto local mostra o caminho percorrido no Brasil para a manutenção do modelo neoliberal, numa ótica do workfare, incidindo sobre a política educacional, com índices de evasão e repetência, afastamento da escola em função da violência sexual sofrida, contribuindo para a instalação da barbárie com a mundialização do capital. Várias são as estratégias encontradas ou que poderão ser criadas para o enfrentamento dessa questão nas diversas áreas. Uma das quais considera-se prioritária como porta de entrada para o acesso aos direitos é a educação como instrumento de transformação, envolvendo a Rede de Atendimento à Criança e Adolescente existente no município. Trabalho este que se estende e se articula num processo educacional, construído junto às escolas, organizações não governamentais, programas de saúde e instituições outras, situando a ética como um dos valores axiais do ser humano, como nos lembra Paulo Freire, referenciado na “ética universal do ser” e na “vocação ontológica para o ser mais”. Por que associar a violência sexual ao contexto da educação em escolas? É necessário ouvir a fala dos professores? O que a educação tem a ver com isto? Que diálogo poderá acontecer na escola ou outras instituições, ou espaços educativos para a construção de um processo de interdição da violência sexual? Será possível? Que práticas educativas poderão ser utilizadas numa política pública de prevenção? Para a subjetivação acontecer do ponto de vista educacional é necessário se trabalhar numa perspectiva de educação baseada numa concepção crítica, dialógica, humanista e aberta às questões da realidade de seus educandos. A educação popular definida por Paulo Freire é democrática, não separa o conteúdo da realidade, respeita os educandos, levando em consideração seu saber, trabalha a boa qualidade do ensino, aproxima a comunidade e os movimentos populares para com eles aprender e ensinar, capacitar os (as) professores(as), na superação dos preconceitos, estimulando a presença organizada das classes populares, enfim, realizando-se como prática eminentemente política. É ainda aquela que oportuniza aos educandos identificar no próprio meio onde vivem a sabedoria de sua força, na qualidade do saber popular que se expressa de forma ativa, no sentido de legitimá-la, desmitificando a relação entre saber popular e as expressões que trazem a conotação de passividade. Neste sentido, em tempos de expectativas e perplexidade, o educador se depara com as mais inusitadas situações, nos variados espaços educativos, situações decorrentes do 124 cotidiano de crianças, adolescentes e suas famílias que vivem em condições de exploração e de dominação no capitalismo, sob suas múltiplas formas. Ou ainda em situações em que as regras sociais e familiares não são claras, refletindo na escola ou nos espaços não formais a falta de limites e a perda de referenciais valorativos de solidariedade, respeito e amorosidade. Qual a contribuição da educação popular para a reflexão acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes? As crianças e adolescentes estão nos espaços educativos sejam nas escolas ou fora delas, portanto, a violência sexual sofrida por elas as acompanham mesmo que em silêncio, mas escapando pelo não dito, seja no comportamento, ou na construção do processo de aprendizagem, ou na sua forma de estar no mundo. Assim, a educação popular, através de práticas e mediações educativas democráticas, possibilita a liberdade de informação, participação, busca de alternativas para colocar em pauta este tema da atualidade como expressão de uma cultura onde crianças e adolescentes convivem com a violência, mas são impedidas de falar sobre ela pelo muro de silêncio que lhes é imposto simbolicamente. O grande desafio é entender que esta não é uma questão isolada, o entrelaçamento das questões, o enfrentamento do problema passa pela garantia de políticas sociais. Assim, ainda que a violência sexual seja um fenômeno histórico-social imiscuído nas relações cotidianas, revelando a existência das relações de poder, da desigualdade de gênero e de meios de coerção, abrange o campo da moral e da proteção aos direitos humanos e sexuais, comprometendo o crescimento e o desenvolvimento de crianças e adolescentes, produzindo seqüelas e uma matriz reprodutora que insere futuros agressores no círculo da violência. Como sugere Freire, para o sujeito irromper é preciso acontecer rupturas epistemológicas, desequilibrar certezas e convicções, fazendo com que cada um descubra diante da contingência sua capacidade criadora e a esperança crítica que move para a transformação. Diante das contradições em que o objeto deste estudo está posto, defende-se a alternativa do diálogo para mediação dos conflitos existentes. Nesse processo, o educador é ator fundamental enquanto ser social de mudança. Este estudo mostra a possibilidade da construção de uma trabalho pedagógico com interlocução, reflexão, participação e proposição, para desconstruir uma escola que reproduz a violência e construir uma escola de direitos que possa descortinar a realidade e ampliar sua participação na sociedade, enquanto formadora de valores. Acredita-se ser este um ponto fundamental para este estudo, ainda em construção, de caráter propositivo na perspectiva de uma contribuição diante de um tema pouco discutido na 125 academia. Coloca-se, desde já, a iniciativa de continuidade deste estudo, com teorização mais fecunda a respeito da violência sexual contra crianças e adolescentes, através da interlocução com outros saberes. 126 REFERÊNCIAS ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (org.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ARAUJO, Braz. Crianças e adolescentes no Brasil: diagnósticos, políticas e participação da Sociedade. Campinas: Fundação Cargill, 1996. ARIÉS, Philippe. História Social da criança e da família. Rio de janeiro: Zahar, 1978. AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A.(org.) Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2000. ______ Mania de Bater: a punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. São Paulo: Iglu, 2001. BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington. São Paulo: Consulta Popular, 2001. BECKER, Daniel. O que é Adolescência. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. BEHRING, E. R.; BOSCHETTI. Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2006. V. 2. (Biblioteca básica de Serviço Social). BIANCHETTI, Roberto G. O Modelo Neoliberal e as Políticas Educacionais. São Paulo: Cortez, 1999. V.56. Coleção Questões da Nossa Época. BORÓN, Atílio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,DF: Senado Federal, 2000. BRASIL. Ministério da Justica. SEDH/DCA. Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Brasília,DF: 1990. BRASIL. Ministério da Justiça. SEDH/DCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. 2. ed. Brasília,DF: 2001. PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINA GRANDE. Plano Municipal Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Campina Grande, 2003. De CANDAU, Vera Maria; SACAVINO, Susana (Org.) Educar em direitos humanos: construir democracia. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. CARVALHO, Denise Bomtempo Birche de. Políticas Sociais Setoriais por segmento: Criança e Adolescente. In: UNB. Capacitação em Serviço Social e Política Social. 127 Brasília,DF: 2000. P. 185-202. Módulo 3, CFESS/ABEPSS/CEAD/NED/UNB. Centro de Educação Aberta, Continuada a Distância. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CIAVATTA, Maria. A construção da democracia pós-ditadura militar: Políticas e planos educacionais no Brasil. In: FÁVERO, Osmar; SEMERARO, Giovanni. Democracia e construção do público no pensamento educacional brasileiro. Petrópolis: Vozes, 2002. COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social. Revista Sociologia, São Paulo, 17set.2000. Editorial. COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a Corrente – ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000. DAMASCENO, Maria Nobre; SALES, Celecina de Maria Veras (coord.) O caminho se faz ao caminhar: elementos teóricos e práticas na pesquisa qualitativa. Fortaleza: UFC, 2005. Coleção Diálogos Intempestivos, 25. DIAS, Edmundo Fernandes. Cidadania e racionalidade de classe. Revista Universidade e Sociedade, Ano 6, n. 11, junho, 1996. FALEIROS, Vicente de Paula. Redes de Exploração e Abuso Sexual e redes de Proteção. Brasília: Anais do IX Congresso Nacional de Assistentes Sociais, 1998. _____ Natureza e desenvolvimento das políticas sociais no Brasil. In: UNB. Capacitação em Serviço Social e Política Social. Brasília, DF: 2000. p. 43-56. Módulo 3, CFESS/ABEPSS/CEAD/NED/UNB. Centro de Educação Aberta Continuada a Distância. FALEIROS, Eva T. Silveira. Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes. Brasília,DF: Thesaurus, 2000. FARIAS, Mabel. Infância e Educação no Brasil Nascente. In: VASCONCELOS, Vera Maria Ramos de (org.) Educação da Infância: história e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 27. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. ______ Pedagogia do Oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. ______ Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ______ Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Coleção Leitura. ______ Política e Educação: ensaios. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2003. FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 128 FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Sobre Educação: diálogos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. GABEL, Marceline. Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Sum rius, 1997. GADOTTI, Moacir. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 10. ed. São Paulo: Cortez, 1997. ______ Perspectivas Atuais da Educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. Ed. São Paulo: Atlas, 1999. GIUSTINA, Joacir Della. Crianças, adolescentes e a violência. Cadernos ABONG, São Paulo, n. 29, 2001. GOMES, Patrícia Saboya. Esperança para as crianças do Brasil: A CPMI da Exploração Sexual apresenta seus resultados . Brasília,DF: Senado Federal, 2004. GONÇALVES, Hebe Signorini. Infância e Violência Doméstica: Um tema da Modernidade. In: BRITO, Leila Maria Torraca (org.) Temas de Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Relune-Dumaré, 1999. IPPOLITO, Rita (org.) GUIA Escolar – Métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual em crianças e adolescentes. Brasília, DF: PR/SEDH, 2003. LEAL, Maria Lúcia (org.) Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial - PESTRAF: Relatório Nacional. Brasil. Brasília, DF: CECRIA, 2002. LEAL, Maria Lúcia Pinto. Globalização e Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes. Brasília-DF: Universidade e Sociedade (ANDES), 2003. v.1 LEAL, Maria Lúcia Pinto; LEAL, Maria de Fátima Pinto; LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra. Tráfico de Pessoas e Violência Sexual. Brasília, DF: VIOLES/SER/Universidade de Brasília, 2007. LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra; SOUSA, Sônia M. Gomes. A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil: reflexões teóricas, relatos de pesquisas e intervenções psicossociais. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MALLAK, Linda Simone; VASCONCELOS, Maria Gorete O. M. (org.) Compreendendo a violência sexual em uma perspectiva multidisciplinar. Carapicuíba: Fundação Orsa Criança e Vida, 2002. 129 MARCILIO, Maria Luiza. A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 1726-1950. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). História Social da Infância no Brasil. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006. MINAYO, Maria Cecília de Sousa (org.) Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. ______ O desafio do Conhecimento. 7. ed. São Paulo: HUCITEC, 2000. PARO, Vitor Henrique (org.) A teoria do valor em Marx e a educação. São Paulo: Cortez, 2006. PEREIRA, Potyara A. P. A política social no contexto da seguridade social e do Welfare State: a particularidade da assistência social. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 56, p. 61-69, mar. 1998. PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995. PRIORI, Mary Del (org.) História das crianças no Brasil. 4. Ed. São Paulo: Contexto, 2004. ROSAS, Paulo (org.) Paulo Freire: Educação e Transformação Social. Recife: Ed. Universitária/UFPE, 2002. SÁ, Nicanor Palhares. Política educacional e populismo no Brasil. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. (Coleção Educação Universitária) SANTOS FILHO, José Camilo dos; GAMBOA, Silvio Sánchez (org.) Pesquisa Educacional: quantidade-qualidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2002. SANTOS, José Vicente Tavares dos. A violência na escola: conflitualidade social e ações civilizatórias. Revista da Faculdade de Educação da USP, São Paulo, v. 27, n. 1, 2001. TOMMASI, Lívia de; WARDE, Mirian Jorge; HADDAD, Sérgio (org.) O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003. TORRES, Carlos Alberto. Democracia, educação e multiculturalismo: dilemas da cidadania em um mundo globalizado. Petrópolis: Vozes, 2001. TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. VIGARELLO, Georges. História do Estupro: Violência sexual nos séculos XVI – XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. VOLNOVICH, Jorge R. (org.) Abuso Sexual na Infância. Rio de Janeiro: Lacerda, 2005. 130 APÊNDICES 131 APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista Semi-Estruturada 1. Há quanto tempo você trabalha na educação? 2. Qual a função que você exerce nesta escola? 3. Você conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente? 4. Voçê já participou de alguma capacitação sobre violação dos direitos da criança e do adolescente? 5. Nessa capacitação a temática da violência sexual contra criança e adolescente foi abordada? 6. O que você entende por violência sexual contra crianças e adolescentes? 7. Que entende por abuso e exploração sexual? 8. Na sua experiência no magistério algum aluno(a) já passou por essa situação? 9. Como você lidou ou lidaria com essa questão? 10. Que encaminhamentos foram dados diante desta problemática? 11. Quais as dificuldades que voçê destacaria no cotidiano profissional para trabalhar com esta temática? 12. Como você avalia a importância da educação para o enfrentamento da problemática da violência sexual contra crianças e adolescentes? 13. Quais são os documentos/ orientações/ referências que vocês possuem para trabalhar com esta temática? 14. Você gostaria de acrescentar mais alguma informação? 132 APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Título do Projeto: Violência Sexual Infanto Juvenil e Educação Pesquisador Responsável: Roseana Cavalcanti da Cunha TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Prezado (a) Senhor (a) A pesquisa que tem como objetivo Analisar o papel da educação no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no município de Campina Grande-PB, justifica-se pela importância do tema na contemporaneidade questionando problemas antigos que tem tomado visibilidade na última década e para a educação com a perspectiva de repensar as políticas públicas, partindo para um processo de democratização do conhecimento com práticas educativas problematizadoras para a transformação social. Neste sentido, estamos solicitando a vossa senhoria consentimento e colaboração, de forma voluntária, para conceder-nos esta entrevista garantindo o vosso anonimato; podendo vossa senhoria, sem qualquer censura ou advertência, recusar-se a fazê-lo. Ao mesmo tempo, colocamo-nos à inteira disposição para a qualquer momento, oferecer esclarecimentos e informações sobre a pesquisa, através do telefone 9312-3608, email: [email protected] (Roseana Cavalcanti da Cunha- Pesquisadora – Mestranda em Educação/PPGE/UFPB). Esperamos contar com o seu apoio, desde já agradecemos a sua colaboração. Campina Grande, ______ de ________________ de 2006. Entrevistado (a) Roseana Cavalcanti da Cunha Pesquisadora Responsável 133 ANEXOS 134 ANEXO A - Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil do município de Campina Grande-PB 135 136 ANEXO B – Guia Escolar – Métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual em crianças e adolescentes 137 138 ANEXO C – PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL 139 140 141 142