Edio de Exposio Digital IFCS
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TEATRO DISPERSO, PONTOS DE ENCONTRO: PEQUENA ETNOGRAFIA DRAMÁTICA Bernardo Curvelano Freire Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Orientador: Marco Antônio Gonçalves Rio de Janeiro Abril de 2008 TEATRO DISPERSO, PONTOS DE ENCONTRO: PEQUENA ETNOGRAFIA DRAMÁTICA Bernardo Curvelano Freire Marco Antônio Gonçalves Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Marco Antônio Gonçalves _______________________________ Prof. Luiz Fernando Dias Duarte _______________________________ Prof. Emerson Giumbelli _______________________________ Profa. Dra. Elsje Lagrou (suplente) _______________________________ Prof.. Dr. Amir Geiger (suplente) Rio de Janeiro Abril de 2008 2 Freire, Bernardo Curvelano Teatro disperso, pontos de encontro: pequena etnografia dramática/Bernardo Curvelano Freire. - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2008. xxi, 260f.: il.; 31 cm. Orientador: Marco Antônio Gonçalves Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2008. Referências Bibliográficas: f. 182-191. 1. Antropologia da Arte. 2. Teatro. 3. Etnografia do teatro. 4. Agência. 5. Encontro 6. Dispersão 7. Autoria. I.Gonçalves, Marco Antonio II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação de Sociologia e Antropologia. III. Mestrado. 3 RESUMO TEATRO DISPERSO, PONTOS DE ENCONTRO: PEQUENA ETNOGRAFIA DRAMÁTICA Bernardo Curvelano Freire Orientador: Marco Antônio Gonçalves Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) Partindo do pressuposto teórico da dispersão dos índices de agência que articulam a localização implícita dos encontros próprios da produção teatral profissional, a presente dissertação tem como objetivo formular problemas da ordem da descrição etnográfica de uma prática artística. Não partindo de conceitos estáveis sobre a definição das práticas pesquisadas, o presente esforço se deteve em acompanhar a especificação formal de diversas modalidades de encontro até que, seguindo as mediações pertinentes, uma montagem de uma peça pudesse ser devidamente registrada. Palavras-chave: teatro, agência, noção de pessoa, dispersão, encontro, sincronia e sintopia. Rio de Janeiro Abril de 2008 4 ABSTRACT DISPERSED THEATRE AND ITS ENCOUNTER POINTS: A SMALL DRAMATIC ETHNOGRAPHY Bernardo Curvelano Freire Orientador: Marco Antônio Gonçalves Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) Starting by the theoretical presupposition of the agency´s indexes dispersion that articulates the implicit localization of encounters that are proper of professional theatrical production, the present work has as a goal to formulate problems of ethnographical description of an artistic practice. Refusing to accept any stable concept about the definition of the researched practices, the present effort detained itself in the observation of formal specifications of different modalities of encounter following pertinent mediations until a play´s production could be properly registered. Kew-words: theatre, agency, notion of person, dispersion, encounter, synchrony, syntopy. Rio de Janeiro Abril de 2008 5 Índice__________________________________________________________ Índice__________________________________________________________0 _______________________________06 TAKE DE UMA INTRODUCCIÓN SIN HOLD ON!........................................ ........................................09 .............................09 I. ENCONTRAR O TEATRO, ENCONTRAR COM O TEATRO; ENCONTRARENCONTRAR-SE: O TEATRO.............................. TEATRO..................................................................... ................................................................................. .............................................................................28 ......................................28 1.1. O que procurar.............................................................................................. procurar..............................................................................................28 ..............................28 1.2. Como procurar: excursão teórica.................................. teórica.................................................................. ...............................................34 ................................34 1.3. Como procurar: método................................................................................ método................................................................................40 ...............................40 1.4. Os primeiros passos e algumas situações..................................................... situações...................................................... ................................46 ....................... ................................ 1.5. O sujeito da ação, problemas de agência ..................... ................................53 ..............................53 1.6 O primeiro encontro: coordenadas................................................................ coordenadas................................................................56 ................................56 1.7. Obstáculo perspectivo..................................................... perspectivo.................................................................................... ..............................................................69 ...............................69 1.8. O sujeito da ação: sobre a noção de papel..................................................... papel.....................................................72 .................................72 1.9. Notas de história da fixação do teatro brasileiro................................... brasileiro........................................... ..................................82 ........82 atores..................................................... .................................86 1.10. Personagem, autoria e pessoa dos atores.................... .................................86 1.11. Ator, autor, técnica de fazer........................................... fazer......................................................................... ................................95 ..............................95 INTERVALO: Preleção contra a personagem.................... personagem...................................................... onagem......................................................98 ..................................98 II. CONVERGÊNCIA............................................................................................ CONVERGÊNCIA............................................................................................125 ................................125 2.1. Teatro disperso e encontrado................................................ encontrado......................................................................... ...............................1 .........................125 III. O BÊBADO E O ILUMINISTA: ALGUNS MODOS DO OBJETO “EU” .................................................................. ..................................................................157 .............................157 3.1. Passado ascendente e alianças fortuitas......................... fortuitas......................................................... rtuitas.........................................................1 ................................157 gambá............................................................ ...............................1 3.2. A galhofa do gambá.......................................................... ...............................160 .............................160 Diderot....................... ................................ 3.3. Dignidade e humanismo: logo antes de Diderot............ ................................1 .....................163 3.4. Homem microcosmo....................................................................................... microcosmo........................................................................................ ...............................165 3.5 O sistema lá, nós aqui, o mundo mais adiante................... adiante................................................1 .................................171 .............................171 3.6. Verdade experimental experimental e ficção........................................................................ ficção........................................................................1 ................................184 3.7. A interdição do Teatro Laboratório.................................... Laboratório.................................................................1 ..................................187 .............................187 3.8. Por fim.................................................................................. fim...............................................................................................................1 ....................................................................194 .............................194 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................1 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................196 .............................196 6 Ilustrações: Planta baixa da sala Heitor VillaVilla-Lobos............. Lobos.................................... .................................................................. .....................................................52 ..............................52 Teatro Heitor VillaLobos........................................................................................ ..............................55 Villa-Lobos.......................................................... ..............................55 Sala Rogério Cardoso.................................................................. Cardoso................................................................................................ ................................67 ..............................67 Filipeta distribuída digitalmente de O que nos resta é o silêncio..........................126 ..........................126 Anexos........................................................................................ Anexos....................................................................................................................... .......................................................................................................................206 ...............................206 7 DER TAG DER GESICHTER Morgen ist der Tag der Gesichter. Sie werden sich erheben wie Staub und in Gelächter ausbrechen. Morgen ist der Tag der Gesichter, die in die Kartoffelerde gefallen sind. Ich kann nicht leugnen, daß ich an diesem Sterben der Triebe schuldig bin. Ich bin schuldig! Morgen ist der Tag der Gesichter, die meine Qual auf der Stirn tragen, die mein Tagwerk besitzen. Morgen ist der tag der Gesichter, die wie Fleisch auf der Kirchhofsmauer tanzen und mir die Hölle zeigen. Warum muß ich die Hölle sehen? Gibt es keinen anderen Weg Zu Gott? Eine Stimme: Es gibt keinen anderen Weg! Und dieser Weg führt über den Tag der Gesichter, er führt durch die Hölle. Thomas Bernhard 8 TAKE DE UNA INTRODUCCIÓN SIN “HOLD ON!” Um camponês sabe-se-lá de onde, e é por isso que é uma fábula, tinha seus filhos a sua volta no leito de morte. Este mesmo camponês, além de dedicado à família, gastou o que tinha de pontas dos dedos para fazer a terra frutificar. No fim de sua vida via o fim de si, dos dedos e dos frutos. Diante da comoção ao redor de sua morte ainda não vinda, mas eminente, o velho revela aos filhos haver escondido um tesouro em suas terras. Dito isso morre sem direito à apelação. Abraçados ao corpo do pai e receosos com o futuro no mesmo abraço os rapazes munidos de pá e enxada reviram a terra em buracos em uma busca que, por dias, não revelou qualquer arca, peça ou documento que viesse à tona. Fez-se a herança do pai. Sem ter idéia de como começar um texto voltado a tantas responsabilidades em um tempo de maturação tão precário, o que é certamente um dos infernos de Thomas Bernard, não me vi com qualquer alternativa senão assumir minha precariedade, esta tão rigorosa em seu inverno quanto é vigoroso o esforço em revirar a terra. Sem querer explicar uma fábula já remediada, a pequena narrativa tão posta assim, na abertura, marca a presença de duas outras fontes, dois fundos de recursos, fundações as quais este resultado um tanto malfadado tem o privilégio de reclamar herança: Georg Simmel e Denis Diderot, ambos mestres do inacabado e que, em momentos diferentes deste trabalho de escrita surgiram como verdadeiros problemas no horizonte de tudo o que pretendia e que, de alguma forma, na lida com o terreno herdado, nada vi além de terra. A herança disciplinar do que apresento é tão difusa quanto a que pôde ser afirmada, numa mistura de investigações bibliográficas e incursões em pesquisas de campo, assim como violentas discussões entre ramais diferentes de pensamento. Aqui estão envolvidos amigos sexagenários, professores honrados, desafetos importantes, contentores da filosofia, peladeiros esclarecidos e, como não poderia deixar de ser, livreiros e atores, estas duas classes de oficiantes às quais pertenci e ainda pertenço, mesmo que de forma ainda amadora demais. E, como na seleção de meus parceiros de campo que me serviram de objeto – num sentido semiótico não-pejorativo -, apresento a dissertação como work in process. 9 Certamente esse não é um pedido de desculpas. É assim, sem culpa, que me entrego às palavras de Júlio Cortázar: “(…)El disco definitivo incluye el mejor take de cada uno de los trozos, y los otros se archivan y a veces se destruyen; cuando muere un gran jazzman las compañías de discos se lanzan a imprimir los takes archivados de un Bud Powell o de un Eric Dolphy. Ya en sí es una gran maravilla escuchar cuatro o cinco takes de un tema del que sólo se tenía la versión definitiva (que no siempre es la mejor, pero aquí se abre un problema diferente); más admirable todavía es asomarse, écouter en el sentido que los franceses dicen voyeur, al laboratorio central del jazz y desde ahí comprender mejor algunas cosas. (…)Cuantos takes habrá del mundo? El editado, éste, no tiene por qué ser el mejor; en su escala, la bomba atómica podría equivaler un día Hold on! Del Bird, al gran silencio. ¿Pero quedarán otros takes aprovechables, después? Diferencia entre “ensayo” y take. El ensayo va llevando paulatinamente a la perfección, no cuenta como producto, es presente en función de futuro. Y el take la creación incluye su propia crítica y por eso se interrumpe muchas veces para recomenzar; la insuficiencia o el fracaso de un take vale como un ensayo para el siguiente, pero el siguiente no es nunca el anterior en mejor, sino que es siempre otra cosa si realmente bueno.” Julio Cortázar – Melancolia de las Maletas * * * A palavra ensaio é aqui razão de comoção. A cada vez que ensaiava seu uso percebia que seu peso se multiplicava, podendo quase ser utilizada como contraponto de uma alavanca que poderia mover o mundo sem que eu tivesse o peso necessário para acioná-la. Isso só aumenta a frustração de sabê-lo. O mau acabamento deste trabalho, fruto tanto de limitações do pesquisador quanto da pressa das instituições de pesquisa, me obriga a evocar uma história recente em minha vida, e longeva o suficiente para sugerir que o que redigi pode ser um ensaio. A longa passagem de Cortázar chama atenção para um outro ensaio, o teatral. Eu evoco uma certa tradição que, com o passar do tempo, veio a se chamar ensaística e que, por vezes, veio a ser acusada de inimizade em relação à verdade e, por outras, apontou sua intimidade com a humanidade e suas 10 relações horizontais, isto é, da humanidade antropológica. Não dispensando o enorme guarda-chuva que as figuras de Montaigne até Clifford Geertz poderiam me dar, o que aparecerá aqui é justamente a confirmação de uma precariedade que, aí sim sem me remeter aos mortos desde já inocentados, é responsabilidade minha. Ensaiar aqui é a proposta de um teste de averiguação. Não é ainda um relatório laboratorial conclusivo. Ensaiar pode significar que escrevi algo como Blurred Genres em Local Knowledge ou Philosophie des Geldes e, na soltura que uma exposição permite, a demonstração assume ares de uma parada conceitual em que os termos se apresentam em sua rede, com pouca remissão a outra autoridade que não a relação escrever-ler, ainda que sem abandonar a exigência da prova. Ensaiar pode ser considerado igualmente um encontro sistemático entre atores que, na tentativa de ver “o que é que há conosco”, culmine em novos encontros talvez mais conclusivos, nem sempre quanto ao que há para fazer, mas também quanto ao que houve de ser feito, o que é o objeto e tema desta dissertação. Músicos, vestibulandos e pais de primeira viagem em cursos de preparação podem participar do termo. Ensaiar sobre os ensaios e apontar relações entre si, das diversas formas de ensaiar: escrevendo, encenando ou, num caso mais à forma de histórias que prezam a duração das relações, nos remetendo aos tubos de ensaio quando pertinente. Não me parece justo, exatamente pela falta de conclusões e pelo passeio intensivo do qual a dissertação é fruto e alvo, apresentar qualquer fórmula sintética que permita com que se diga numa frase o que foi feito nesse trabalho. Esconderia demais o jogo ou cometeria uma forma injusta de soberba. Desde meses de leitura e escrita até quase decepar a ponta de meu dedo indicador na desmontagem dos aparelhos de cena no último dia da peça O que nos resta é o silêncio, cujos trabalhos de montagem me ocupo em descrever aqui, detalhes demais exigem franjas que nem sempre pude justificar e há uma multidão de afirmações que soam duvidosas mesmo que promissoras caso sejam lidas com a alma generosa. Esta é uma etnografia da vida que pude assumir ao lado da vida teatral e ponto. Suas bases objetivas e considerações seguem fundamentalmente necessidades descritivas, objetivo maior desta dissertação que, além de tudo, espera ter cumprido seu papel como elaboração de uma teoria, o relato de um representante enviado à cidade vizinha na mesma República das Letras que, ao ir ver, volta e conta. Mas que nenhuma das palavras acima sirva para camuflar qualquer deficiência mais grave, decerto existente. 11 * * * Pois bem. Faz-se a pesquisa de campo. Escreve-se uma etnografia. Invariavelmente a comparação se dá, articulada como método. Se não no que diz respeito a outras culturas, ao menos apontando diferentes graus de uma mesma realidade: compara-se a disciplina do etnógrafo com o que apresenta uma pequena região do mundo. É no balanço delicado das forças em questão que se apresenta a dificuldade da proporção. A alteração de escalas, a definição de tópicos e a articulação dos exemplos em casos narrados em termos de lugar e dimensão do quadro disciplinar geral, todos são movimentos que geram desdobramentos, novas conexões de campos de e para pesquisa que culminam num efeito multiplicador de objetos: “Então alguém pode se imaginar escolhendo dois ou três elementos de práticas de iniciação para considerações teóricas, sabendo que para nenhum caso específico veio a atingir o caráter natural do fenômeno inteiro. Outras perspectivas permanecem. Esta é uma versão dos problemas há muito familiar à classificação das espécies.” (Strathern, 1991:xvi) Daí, alternar considerações econômicas com rituais ou com a generalização de eventos-caso revela séries de perspectivas parciais. Se parcial, há a implicação multiplicadora da objetividade, uma vez que há sempre uma comunicação/conexão inédita e inaudita, ou mesmo maldita. Algumas conseqüências podem aparecer deste estado de coisas parciais, três delas em destaque: 1- Das conexões entre entidades a partir de novas configurações entre domínio e pesquisa. 2- Das novas magnitudes das entidades (ou entes) considerados, revelando novos detalhes, ampliando o escopo dos entes considerados. 12 3- Da possibilidade de convergir diferentes escalas em um mesmo tempo de abordagem de forma a: “(...) mover das ações individuais para o rito, ou da comparação de muitos rituais para a exemplificação dos elementos que têm em comum, ou das instituições individuais para a configuração que deveras faz as relações entre fenômenos parecerem “complexas”. Complexidade é culturalmente indicada no ordenamento ou composição dos elementos que podem também ser apreendidos a partir da perspectiva dos outros.” (id.ibid.:xv) Ao acionar a figura das proporções relativas, é importante perseguir o desenho, efetivamente cartográfico, da elaboração do problema da multiplicação de entes e da perda de informação que gera parcialidade e institui a perspectiva como singularidade da singularização. Assim, num infinito relativo de conceitos que operam generalizações, os mesmos se designam como fronteiras geolingüísticas que dispõe as distâncias em termos de proximidade. Mas qual é a parte do afastamento que a proximidade evoca? Ora, lidar com o teatro implica em por em aliança o que custa muito para manter-se separado. Não obstante a história recente do teatro no meio universitário ter elaborado uma antropologia teatral com o apoio integral de Victor Turner, cujo livro From ritual to theatre (1982) consta na série de publicações sobre artes performáticas da Johns Hopkins University, as ressonâncias se ampliam quando se percebem as semelhanças dramáticas entre Sandombu da vila Ndembu (Turner,1996 cap. X) e Shylock de O mercador de Veneza, de autoria de William Shakespeare. Na mirada do suporte mútuo que as disciplinas se oferecem, e o fazem em parte ao distinguirem-se, a estratégia tomada tem como fundamento a pouca precisão de seus primeiros passos. Trocando em miúdos, se me perguntassem o que é isto, o teatro, diria que não sei. Mas sei chegar num ou noutro. Visando suportar a decisão de lidar com objetos parciais e suas conexões, mesmo não me atendo a uma pesquisa ortodoxamente semiótica, a definição de 13 Charles Sanders Peirce me parece fornecer a abrangência e a maleabilidade necessárias para este começo nebuloso: “Os Objetos – pois um signo pode ter qualquer número deles – podem ser uma coisa singular existente e conhecida ou coisa que se acredita ter anteriormente existido ou coisa que se espera venha a existir ou uma coleção dessas coisas ou uma qualidade ou relação ou fato conhecido cujo Objeto singular pode ser uma coleção ou conjunto de partes ou pode revestir algum outro modo de ser, tal como algum ato permitido, cujo ser não impede sua negação seja igualmente verdadeira ou algo de natureza geral, desejado, exigido ou invariavelmente encontrado sob circunstâncias comuns.” (Peirce, 1972, 97) Assim, teatro pode ter existido ou existir atualmente; pode ser objeto de crença ou uma coleção de fatos, um conjunto de partes de teatro, não importa. A evidente frouxidão desta definição tem como lastro a tríade que opera por sobredeterminação, cujos termos são signo-objeto-interpretante, fazendo valer à definição do objeto a situação da tríade em todo momento. Resguardando menor rigor na aplicação e no prosseguimento do sistema lógico de Peirce, o que deixo claro é que esta dissertação escolhe uma palavra como objeto, sabendo que a mesma é inscrita ao trafegar em sucessivas formas relacionais, modificando-se a cada atualização entre objeto-signo-interpretante. Esta abertura tem como pressuposto não me dispor ao exercício totalitário de querer esgotar as séries infinitas do real, tão caras a Georg Simmel (1987:109), cujo fundamento é o flerte com as situações inacabadas específicas do balanço entre o virtual e o atual: “(...) nascendo assim da total reciprocidade em virtude da qual cada segmento deste ciclo determina o lugar de todo um outro – à diferença dessas linhas que se voltam sobre elas mesmas, de onde cada ponto não se submete à mesma determinação interativa de todos os pontos-de-vista imanentes.” 14 * * * Se esta é uma pesquisa sobre o teatro no Rio de Janeiro, isto é, sobre algumas das formas que o teatro (tradição) assume para viver, para manter-se ativo ou em agência, é uma etnografia sobre algumas atualizações que o teatro sofreu durante a pesquisa de campo (em andamento) nos anos de 2006-2007. Contudo não se trata de um trabalho sobre o teatro carioca, dado que apresentações e publicações de outras zonas administrativas, como as de Campinas, São Paulo e Oslo (Noruega) também são referências, mesmo que implícitas. Além do que, é muito difícil cerrar as portas de um município, mesmo com as proporções da cidade do Rio de Janeiro, devido ao fato de políticas de financiamento, relações de mercado (editorial, em especial) e a administração de cursos universitários de teatro caírem em espectros mais diversos de relação e poder. Fora neste emaranhado que vim a me envolver ao pesquisar o teatro que, de uma forma ou de outra, pôde acontecer na cidade do Rio de Janeiro, o qual vim a me encontrar por um ou outro meio de forma dele participar, o que apresentado em um só parágrafo soa como uma grande confusão. Certamente não há como lidar diretamente ou mencionar tudo o que vim saber ser um evento teatral neste período. O objetivo maior é o de apontar algumas práticas e experiências que constituem a vida teatral e quais são alguns de seus desdobramentos sobre como saber o teatro e como isto pode ser pensado por via de uma ou outra matriz disciplinar das ciências sociais. Dispondo-me a pensar o teatro segundo a convivência estabelecida, talvez valha à pena fazê-lo a partir de um detalhe que, de uma só vez, apresenta alguns agentes teatrais importantes assim como algumas das formas pelas quais a tradição que aponta para a persistência do teatro se mantém. O teatro possui seus próprios intelectuais, especialistas geradores de discurso, teses dirigidas e diretoras de diversas formas teatrais, seus cânones. Enfim, é uma tradição que ao mesmo tempo em que respeita nacionalidades impõe às nações suas formas próprias de vigência; que se presta a atividades culturais da mesma forma que exige disciplina das mesmas; que expressa valores sociais desde que a sociedade se faça no teatro ao acontecer. Descrever qualquer período de aprendizado significa sujeição a alguns dos termos dessa tradição. Em meio a esta situação só duas alternativas parecem compactuar com alguma honestidade nesta pesquisa. A primeira é a resignação. Ela pode ocorrer por via da desistência, uma vez que, nos termos postos pelos teatrólogos, pouco ou nada teria a 15 oferecer. Assim, encarar os desdobramentos do método de Stanilawski, ponderar sobre a tensão entre o Teatro Oficina e o Teatro de Arena na São Paulo dos anos 60, decidir entre o teatro de rua e a estrutura de palco italiano ou falar sobre a pregnância da poética aristotélica e o desafio brechtiano, etc.; todos são tópicos desenvolvidos por especialistas e seria desonesto encará-los sem a devida deferência e sem a competência exigida. Após algumas conversas em situações diversas, não sei bem o que é um especialista em teatro. Alguns são responsáveis por sucessivos atentados aos estatutos da arte em questão, outros são seus defensores ardorosos e eu mesmo corro o risco de me transformar em um. Ao mesmo tempo é difícil saber quem está fazendo teatro, dado que a estabilidade deste apontamento é igualmente vacilante. Algumas apresentações são em teatros, com atores e peça, mas ouvi dizerem que “isto não é teatro”, o que vez por outra sugere a emergência do estatuto da performance ou de uma outra prática de apresentação que ignoro. Ainda como precaução, é preciso também diferenciar o teatro quando se põe como adjetivo e como substantivo, dado que há eventos que são teatrais sem serem propriamente o teatro que me vi pesquisando1. É importante dizer que até mesmo uma antropologia teatral (e não uma antropologia do teatro) vem se desenvolvendo nos últimos vinte anos (vide Barba & Savarese, 1984; Pavis 1990), cuja pesquisa e performance em teatro vêm caminhando em comunhão (Jackson, 2004), o que exigiria de mim algo mais do que a redação de uma dissertação. A esta altura eu deveria estar às voltas com os ensaios que culminam na estréia de meus resultados de pesquisa2. Uma segunda alternativa, mais sintonizada com os objetivos de um pesquisador prestes a recorrer a uma etnografia, é a de ir até aqueles que fazem teatro, que produzem peças e perguntar como fazem o que fazem, o que fazem e como sabem o que fazem (e vice-versa) constituindo uma abordagem dos processos formativos de uma atividade teatral de teor fundamentalmente tecnológico, que é tanto o ato de apontar às práticas de cultura em seus objetos de atividade produtiva quanto uma disciplina que põe em relevo estes afazeres e seu sentido, digamos, mais astuto. Mas em qual medida os próprios especialistas em teatro já não o fazem? E o fazem com qual medida? 1 Exemplos deste problema são explorados em Burns (1972) e em Williams (1969). 2 Sem pretender apontar uma bibliografia extensiva da relação entre titulação universitária e constituição de um acervo performático pro espetáculo, vale à pena apontar o percurso das publicações do grupo LUME, de base no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp que em diferentes momentos de suas atividades aliaram à formação de repertório todo um programa de pesquisas; vide Burnier (2001), Ferracini (2001, 2006, org. 2006), Colla (2006), Hirson (2006). 16 Não bastando citar casos como os de Stanislawski, Boal ou Goethe, que são autores que versam sobre os afazeres teatrais, é importante ter em vista a profusão de pesquisas sobre elementos como linguagem cênica3, sistemas de ensaio4 e variações modais do ofício, do ensino e da produção dos atores5. O que pareceria, em um primeiro momento, ser um excesso de tráfego ou uma agremiação intimidante, me parece na verdade a profusão de interlocutores, de informantes mesmo. São guias no processo de aprendizagem que indicam pontos importantes acerca de como dar forma ao presente trabalho, em especial no que tange o que difere o teatro das demais atividades profissionais que, dado seu número incontável, exige a precaução de me remeter sobre um de cada vez. São todos um pouco Beatriz. Não fui suficientemente incisivo quanto a este ponto. As dificuldades que aponto no desenvolvimento de uma etnografia do teatro não são exclusivas do campo de forças no qual me envolvi. Parece-me mais ser uma especificação de problemas gerais, formas de produção que deve, em qualquer modelo desenvolvido, apresentar com cautela as formas e as produções que compõem o que é concreto em sua atividade mais rotineira assim como na mais espetacular. Esta generalidade é um pouco aquela que permite que se possa adentrar nos problemas do teatro a partir das condições da vida em geral e, inversamente, absorver a vida em geral tal como é modelada à partir da influência do teatro. Esta que é a corruptela de uma passagem da Filosofia do dinheiro de Simmel (2002:15) deixa claro um pouco da orientação geral deste trabalho, mesmo que não absorva inteiramente algumas das suas implicações, em especial no que tange às essências objetivas dos fenômenos, problema ao qual me reservo o direito do silêncio respeitoso. Mas nem por isso poderia me furtar de enfrentar alguns dos pontos nodais deste ensaio exemplar, em especial sobre a configuração das formas de liberdade e 3 Vide Jean-Jacques Roubine, (1998); José Teixeira Coelho Netto, (1980); Gilles Girard e Réal Ouellet, (1980). 4 Shomit Mitter, (1992) apresenta um manual sintético pouco profundo, mas se define pela gramática obrigatória do teatro de pesquisa, com remissão aos diretores (encenadores) Stanislawski, Brecht, Grotowski e Brook. Barba & Savarese (1990), Burnier (2001) por sua vez sugerem um sistema de treinamento próprio e a partir da herança marcada pelas figuras presentes no livro de Mitter. O sistema de ascendência que possa ligar os programas de Stanislawski e Burnier, por exemplo, dependem de mediações diversas e não participam simplesmente de um ofício de leitura e comentário, dado que é necessário encenar, encenação esta que remeta ao horizonte formal da herança dos encenadores considerados maiores, os ombros a subir. De qualquer forma, qualquer lista está longe de ser exaustiva. 5 No caso, ator como compositor em Matteo Bonfitto (2002) ou o ator como xamã de Gilberto Icle, (2006) dispondo ao ator ser algo como se fosse outra coisa, de forma igualmente disjuntiva>conjuntiva. 17 alguns dos sentidos objetivos da produção criativa e da dinâmica dos valores de troca que, mesmo não sendo meu objeto de pesquisa, sugerem implicações quanto à aplicação em requisitos formais de produção definidoras de termos de relação e horizontes de relação que implicam formas de subjetividade nas formas de objetividade e vice-versa. Uma vez que me preocupo em acompanhar a manifestação precisa de agenciamentos, o que pode ser apontado como sujeito da ação assume papel central, especialmente na concretização da complexa rede de imperativos entre vontade e determinação que fazem das artes modernas um de seus campos de operação fundamentais, especialmente em formas pragmáticas em que a determinação aparece como vontade inabalável ou quando a vontade irrompe determinada em formas de acusação de alienação. Este jogo entre vontade e determinação encaminha o problema para a correlação entre estados de arte e liberdade que, dado certo horizonte agonístico, não devem ser tomados como uma frente de luta qualquer, pois como se pode discutir quanto a alguns dilemas da cidadania, assim como é necessário apontar para cidadãos de segunda classe (ou daqueles cuja vida não merece ser vivida6), é possível formular enunciados partindo de noções de desenvolvimento e progresso que apontem para os cidadãos de ponta, partindo do território no qual as artes se alinham com as técnicas e se tornam ambas formas de vanguarda, seu nome de guerra. Isso me leva a coisa mais sintomática. Levame a perguntar, diante o universo das coisas que se faz enquanto se é moderno qual é a diferença, isto é, o que uma disciplina artística produz? Nos anos de ditadura no Brasil, isto é, a partir de 1964, ano do golpe militar, vários grupos teatrais praticaram o que o Estado maior acusava ser subversão e que, no ponto de vista de muitos de seus agentes, não era outra coisa senão vanguarda. O Show Opinião, o Teatro Oficina, o Teatro de Arena e os CPC’s da UNE7 são somente os exemplos mais famosos. No que consta esta subversão e em que termos ela é perigosa – de que forma específica ela difere e desafia poderes? Grosso modo, o subversivo está em espetáculos apresentados que veiculam palavras, frases e estados de pessoas censurados pelo regime dado que desafiariam algumas disposições então vigentes no Estado de direito. Desde a interrupção da periodicidade da escolha do governante por via do sufrágio universal até o desafio aos bons costumes dos agentes de censura, a 6 vide Agamben, 2007:143-150 7 Sigla para Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes. 18 evocação das liberdades civis e dos direitos humanos se encadeia em séries objetivas de expressão (Michalski, 1979:34-42,). Conta-se assim apresentações como Arena conta Zumbi, que narrava histórias de resistência a formas de opressão que tanto dão forma à trajetória dos quilombos; o teatro Oficina e o esforço imoral do dionisíaco e do teatro da crueldade artaudiano; a montagem de Roda-Viva; todas situações que ameaçavam seus integrantes, então sob a mira violenta da polícia política, que os acusava de serem igualmente uma ameaça. Não exatamente pelo que eram, mas pelo que faziam, o que não impede qualquer classificação. Afinal, há de se ter uma evidência, mesmo que forjada, da subversão praticada. Num primeiro momento o que chama a atenção são questões relativas à arte e liberdade, temas concernentes à cultura popular, ao teatro épico, aos aparelhos de repressão e ideologia do Estado, e cada um destes temas geraria questões próprias de seu campo problemático. Neste trabalho, contudo, o que me conduz é outra mirada na atividade subversiva8 de certo teatro que me faz perguntar por que não prender personagens ao invés de deter os atores, que em si não são um problema político9? Vale lembrar que o teatro como atividade não fora proibido. Arriscando uma resposta possível, poderia dizer que personagens – os papéis – não podem ser presas por que não existem. São de ficção. Mas então, por que proibir o que não existe? Como seria possível fazê-lo? Disposta numa indefinição desagradável, em muito semelhante ao paradoxo sobre as crenças descrito por Latour (2002)10 que vacila entre a existência material e a forma simbólica como campos disjuntos que articula um como epifenômeno do outro, a ficção enquanto problema de existência vige como aporia. 8 Que, vale notar, não é nada óbvia e se uso a palavra assim, de passagem, é por questões de espaço e economia. O controle de atividades consideradas imaginárias tem longo percurso e vem sendo investigado por uma quantidade grande de pesquisas, dentre as quais destacam-se as de Luiz Costa Lima (1996, 1998, 2000) e Wolfgang Iser (1996). Por outra linha, mais cronológica, os trabalhos que visam abordar o teatro como desafio à ordem política tem igual valor na configuração deste problema (Garcia, 1997; Poggioli, 1996) 9 O que não significa que o teatro subversivo será aqui objeto de trabalho. Não será. Mas sua periculosidade histórica apresenta um problema, que é tanto ontológico, lógico quanto epistemológico (Cândido, 1976) acerca da existência e das possibilidades de seres ficcionais, cujo estatuto é vacilante, mas não menos real do que outros seres. A atividade de censura a estes seres aponta ao mesmo tempo para sua existência e para seu estatuto fortemente diferenciado. 10 “Quando denunciam a crença ingênua dos atores nos fetiches, os modernos se servem da ação humana livre, centrada no sujeito. Mas quando denunciam a crença ingênua dos atores na sua própria liberdade subjetiva, os pensadores críticos se servem dos objetos tal como são conhecidos pelas ciências objetivas que eles estabeleceram e nas quais confiam plenamente. Eles alternam então, os objetos-encantados e os objetos-feitos, a fim de tornarem a se mostrar duplamente superiores aos ingênuos comuns.”(op.cit.:32). 19 Parece-me que o que se deve perguntar em contraponto a este impasse é: como é um papel-personagem-de-ficção? Como é possível diferenciá-lo de um papel real? Um papel de teatro é um ser humano11? Qual é a diferença entre censurar e prender? E então se faz requerida uma descrição de uma cosmologia e dos seres então constituintes, e para sua cosmografia me faço valer de todos os elementos que se num primeiro momento me seriam um empecilho devido à pretensa humildade do pesquisador, passam a ser elementos constituintes do cosmos e dos processos do teatro investigado, mesmo que seja uma agenda, um endereço ou um mapa, uma vez que cumprem seu papel na dinâmica dos encontros em ensejo teatral. O valor dado a elementos dotados de obviedade, como os que efetivam encontros, no final das contas, não é gratuito, dada sua condição imprescindível na operação das variantes implicadas que por fim respondem a algumas preocupações específicas deste trabalho. Mas antes de seguirmos estas linhas determinantes da coordenação de agências, que é o nome do problema que levanto, vale chamar a atenção para um outro tópico, que é o da elaboração de papéis sociais. Na tradição do pensamento sociológico esta discussão parece ter ao menos dois pressupostos importantes: o da divisão social do trabalho e o da ação social como fenômeno particularmente significativo12, ambos com implicações para o estudo do teatro em geral, dado que abordo papéis de atores. Contudo, quando aplicados ao teatro estes conceitos perdem parte de seu poder positivo 11 “Le personnage de la pièce, tel qu´il est dans le texte, n´est pas un être humain complet, pourrait-ont dire, ce n´est pas um être humain comme le perçoivent nos sens – c´est l´ensemble complexe que la littérature peut saisir d´un être humain. (...) Toutefois il a déposé le destin, l´apparence physique, l´âme de ce personage dans le cours seulement unidimensionnel de ce qui ne relève que de l´esprit.” (Simmel, 2001). Ora, apontar para um fenômeno empírico unidimensional, sem tocar no tema da alienação – nossa visão conta com uma elaboração tridimensinal, informa a ótica -, deve nos chamar a atenção para algumas qualidades e desdobramentos da escrita como nexo de uma série de atividades. Vale notar que da escrita se desdobram considerações sobre inscrição e outras formas de sentido que operam em silêncio, ou seja, sem a presença de uma pessoa falante e dos encontros que a requisitam, como abordo mais adiante. Mas a figuração do unidimensional já aponta para impossibilidade de prendê-lo. A prisão, de alguma forma, é somente para tridimensionais encontráveis. 12 Vide Simmel in La differéntiation sociale; Durkheim in A divisão do trabalho social; Morgan in A sociedade primitiva, Merton in Sociologia: teoria e estrutura , sobre a formulação da objetividade dos papéis e sua relevância funcional, assim como variações quanto ao uso de noções de estrutura e função; vide Weber in Economia y sociedad, Schutz in Fenomenologia e relações sociais; Becker in Uma teoria da ação coletiva, Simmel in Philosophie de l’argent, Parsons in The structure of social action para a abordagem da organização e orientação da sociedade pelo ponto de vista da ação. Este esquema não é preciso e tampouco a citação dos autores indica uma cisão real, vide pelo fato de Simmel estar presente em ambas as listas, assim como alguns autores citados somente em uma lista dialogam intensamente com os que se dedicam a um outro foco. Contudo esta divisão remete a uma outra, mais recente, que põe sob foco a diferença entre abordagens de caráter estrutural e outras propriamente voltadas à práxis ou à pragmática. Não me parece necessário apontar para a interpenetração entre os esquemas, assim como para meu desacordo com qualquer formulação que defina formas puras e impuras. 20 de referência e diferenciação, dado que são próprios de boa parte da realidade práticovocabular teatral, enquanto que na sociologia os papéis normalmente são remetidos a questões de morfologia social e os atores sociais são considerados segundo sua relativa racionalidade de escolha e conduta caracterizando as duas questões como diferentes domínios da vida social. Mas a aplicação do conceito de papel social, assim como o campo semântico que o envolve, que pode ser exemplificado pela noção de ação, apresenta algo que merece atenção. Se há muito que dizer sociologicamente acerca dos papéis, é aí que a metáfora teatral abunda. O campo teatral apresenta suas variações acerca do tema, diferindo sobremaneira na forma de lidar com o que é um papel e como desempenhá-lo. A diferença no trato, junto a outras diferenças, está em questão na pesquisa e na pessoa realizadas. Neste entrecruzamento de muitas mãos que não põe em questão somente dois pólos, mas a evolução de um mundo, não cabe aqui apontar um começo de maior positividade, como se fosse possível por via de um acervo metodológico pôr fim a indefinição que gera o campo de metáforas teatrais presente na sociologia ou na etnologia. A bem da verdade, na já referida multiplicação dos teatros possíveis, este trabalho é mais uma contribuição do gênero. Isso não significa que será uma contribuição caótica. Ela se dá segundo o problema das práticas de censura que, numa lógica de policiamento, perseguição e caça (não confundir com predação), precisa ter métodos (Méthôdos, caminhos) para encontrar sua presa e levar a termo sua busca, fazendo o possível para não confundir dois Ferreiras Gullar: um deles, usuário de um pseudônimo. Um quase nome. Um nome artístico. Um nome falso. Acabou que a polícia política prendeu o “Ferreira Gullar” verdadeiro, justamente aquele a quem não caçavam13. * * * 13 Se levarmos a sério os problemas cosmológicos relativos aos nomes próprios em etnologia, que vão desde os fundamentos de especificação e individuação de um operador totêmico (Lévi-Strauss, 1998) até os problemas de ambigüidade-limite de um sistema taxonômico específico (Gonçalves, 1993), como lidar com as variações de um “nome falso”: pseudônimo, nome artístico e, no caso de uma situação limite, o evento falsidade ideológica? Embora a presente dissertação se dedique a algumas formas de encontrar ostensões que possam se encaixar aos nomes falsos, e não aos nomes falsos propriamente ditos, a remissão é importante dado o fundo problemático da ordem da classificação de identidades verdadeiras e o regime de controle de corpos que ele implica. 21 Com o que se parece um Ferreira Gullar? O que é um Ferreira Gullar? Assumo que se tratam de questões de tipo non-sense, uma vez que indica que há pelo menos dois entes aos quais se aplica o mesmo nome e, no entanto, Ferreira Gullar não é uma espécie e tampouco uma classe de seres, mas um nome próprio. Não é assim que se pergunta por ele. Numa situação imperativa do tipo “encontre e me traga Ferreira Gullar” num contexto urbano de multidão (Rio de Janeiro), o nome próprio, assim sozinho, torna-se uma mediação insuficiente, especialmente no caso de uma pessoa vir a se esconder com um nome falso. É quando a coisa fica interessante de verdade. Em 1970 foi expedido um mandato de prisão para Ferreira Gullar, o poeta, devido suas atividades consideradas como subversivas. No mandato constam um endereço e possivelmente as acusações, na suposição que, de fato, essas premissas burocráticas tenham sido levadas em conta. Os policiais não portavam nenhuma foto do subversivo. Batem à porta e perguntam, se é que perguntaram: “Ferreira Gullar?”; “Sim.”; “Está preso por violar as determinações do Ato Institucional número 05”. Pedissem antes para Ferreira Gullar discutir os conceitos de vanguarda e subdesenvolvimento ou que elucidasse alguma passagem de A luta corporal; ou se simplesmente portassem uma fotografia sua, é certo que descobririam que estavam diante do Ferreira Gullar errado. Aquele que fora preso era o verdadeiro. O falso Ferreira Gullar, o de fato subversivo, também se chama José Ribamar Ferreira, nome oficioso e não de ofício, e se encontrava em outro endereço. O infortúnio da missão policial lhe permitiu a fuga que, de outra forma, seria impossível. O jogo dos nomes falsos, pseudônimo e heterônimo incluídos, é fonte de extensos embaraços e histórias formidáveis, e implica na enorme dificuldade da identificação dos seres humanos pela nomeação, pois como empreender uma taxinomia rigorosa dos próprios taxinomistas, estes sujeitos que criam novos nomes para si e os distribuem por aí? Afinal, fora José Ribamar que escolhera ser Ferreira Gullar. É o que diz a lenda. Como já disse, há pelo menos dois Ferreiras Gullar, um deles inventado. Um deles porta um nome fictício. 22 Mas a história não pára por aqui. O tempo pelo qual Ferreira Gullar fora preso permitiu a Ferreira Gullar fugir para o exílio onde, no ofício de poeta e escritor de artigos por correspondência para o falecido Pasquim, apresenta-se por escrito como Frederico Marques – nome este mais propício à hermenêutica, só por provocação aos iniciados em comunismo aplicado. Independente de seu estatuto de exilado, o então Frederico Marques poderia seguir em novos nomes que levassem ao mesmo sujeito não fosse quase impossível rastrear uma pessoa somente por seu nome. Especialmente diante a massa de nomes nas grandes cidades. Poderia assinar novos escritos também como Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos. Estes, então nomes de autor, poderiam escrever belos artigos em defesa de Ferreira Gullar (qualquer um dos dois), repetindo a manobra utilizada pelo filósofo escocês David Hume no século XVIII, ou de Garcilaso de la Vega, el Inca, no século XVI. Não obstante o engano cometido pelo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social - é importante pinçar alguns detalhes que permitem que se aborde as mediações que dão forma às inferências acerca da identidade de uma pessoa. Basta recorrermos ao Registro Geral que portamos em nossas bolsas e carteiras para observarmos o cruzamento de referências de impressão: tipográfica, fotográfica e digital (digo, dos dedos), promovendo uma convergência de meios que garantem de alguma forma a veracidade específica e oficial do nome de seu portador. Um papel somente marcado com tipos alfabéticos com uma ordem de prisão não consegue sozinho determinar a quem a ordem se refere. Isso é importante, pois define o engodo do DOPS. Entre os papéis sociais, o de celulose e o de carne e osso da performance, há um universo de mediações a ser observado. Esta introdução me é importante porque a dissertação que segue daqui parte de uma incerteza que me serviu de hipótese. Ao eleger o teatro como objeto de pesquisa, assim como pretendia registrar a montagem de uma peça, não pretendia escolher tal ou qual grupo. Um tanto à moda do DOPS, mas sem culminar em tropeços e torturas (espero), me dispus a circular entre teatros e a conversar com as pessoas com as quais vim a me encontrar de forma a conseguir dizer o que 23 pesquisava. Ao dizer TEATRO, assim, no singular, as especificações sobre quem pesquisar ou qual grupo, me eram requeridas. Mas eu não me importava tanto com essas perguntas. O que eu queria era um convite. Foi o que me aconteceu a certa altura no encontro com Carmen Zanatta, que após ouvir as idéias de um pesquisador dando seus primeiros passos, convidou-me para uma apresentação da peça O que nos resta é o silêncio, do grupo Dragão Voador teatro contemporâneo que, segundo ela, aceitaria me abrigar como pesquisador residente. Este movimento, o de me dispor a circular entre teatros, peças e pessoas parte de uma desconfiança quanto à estabilidade de meu objeto de pesquisa. Assim como é permitido inventar vários nomes para uma só pessoa, cujo modo do apelido me é a mais cara, é possível sob o mesmo signo variar seu significado. É o caso da palavra teatro, tão polissêmica e multiplicada em formas quanto disputada. Há teatros que não ocorrem como teatro, como é o caso do teatro de operações em uma guerra, ou o teatrinho de jogador de futebol ao não sofrer uma falta ou do drama diante a uma situação fraca de sofrimento. Há também quem acuse o colega de profissão de não fazer teatro verdadeiramente, num tipo de querela muito apropriada ao discurso de algumas vanguardas artísticas contrapostas aos delatores conservadores. Afinal, é claro que isso que faz Miguel Falabela não é teatro, assim como funk não é música. Não, não é claro. O que é claro é que algumas palavras circulam no profundo desacordo entre seus enunciadores quanto ao seu significado. Não poderia ignorar este fato. Seria o mesmo que não levar em conta que um certo subversivo poderia ter um nome suficientemente pouco singular. Assim, minha dissertação é fruto de um esforço em etnografar o complexo de mediações que permitem que, em primeiro lugar, uma pessoa como eu consiga encontrar algo como o teatro na paisagem urbana conturbada da cidade do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, descrever o veículo da persistência que encaminhasse este que vos fala até uma forma específica de lida com as práticas teatrais, meu encontro com o teatro. Em terceiro lugar, registrar as formas de operação que o grupo pesquisado articulou para que, na seqüência dos trabalhos e dos dias, viessem a 24 se reunir repetidas vezes até que, diante a economia que é própria da vida artística burguesa, chegasse a se encontrar com seu público. Nesta forma ampliada de circulação de pessoas por mapas e endereços que permitem a um pesquisador conduzir sua pesquisa tal como descrito, é importante notar que o teatro como significante e evento deve estar por aí. Disperso. E isso, eu imagino, fornece o sentido do título deste trabalho. Pondo em questão este complexo de dispersão e encontros, aliados a uma convivência próxima e intensiva registrada em um diário de campo, em fotografias, filmagens e gravações sonoras de conversas, uma série de temas e problemas, assim como sua resolução por parte das decisões tomadas por Joelson (diretor), Carmen, Léo, Junior, Ângela, Candice, Luciano e Zé Geraldo me permitiram desdobrar o tema inicial em alguns horizontes específicos condensados em conceitos como os de autoria, agência, saber-fazer, poder-fazer e, como não poderia deixar de ser, a noção de pessoa, aqui problematizada quanto ao seu modo de ficção: as personagens. * * * Por fim, e para por fim começar, renovo a confissão. Esta dissertação é fruto de uma pesquisa devotada à antropologia como profissional tanto quanto a uma atividade amadora no teatro e como livreiro. Espero que estas marcas determinantes daquilo que penso e de certa herança que trago comigo, façam-se visíveis no correr da leitura. É minha forma de homenagem. Homenagem aos antropólogos, como Luiz Fernando Dias Duarte, professor e amigo, com quem nunca tive que concordar, e que abriu suas portas nesta cidade tão cheia de tapas nas costas, cujos temas, de forma distorcida, se apresentam aos poucos em muito do que escrevo; ou Peter Henry Fry, cujas perguntas certas acabaram por dar forma à parte substantiva deste trabalho, mesmo sem saber; Celso Azzan Jr., sempre atento a este indisciplinado irredutível e testemunha aurículo-ocular dos dez anos de amizade e acidez, para quem ainda devo uma leitura; aos amigos indescritíveis do grupo Naturata: em especial, Ivone Manzali, Neide Eisele, Naara Luna, Rogério Azize, Jayme Aranha Filho, Rachel Aisengart Meneses, Patrícia Reinheimmer, Nicolas Viotti pela 25 amizade que excede em muito os muros do castelo que, bem ou mal, ajudamos na manutenção; aos colegas de pós-graduação, em especial os de Jornada e da revista Enfoques; a Marco Antônio Gonçalves, que aceitou uma orientação de alto risco sem vacilar, até o fim; e mais adiante aqueles que, aparecendo um a um, contribuíram com o desenvolvimento caótico de algo que imagino ser agora um vivente do mundo dos textos legíveis: Leonardo Campoy, Thiago Carminati, Heloísa Helena de Oliveira Santos, Bruno Marques, Bianca Arruda e Eduardo Dullo, este cuja dissertação pode ser considerada irmã da presente, mesmo que as mesmas não se dêem lá muito bem. À banca, Luiz Fernando Dias Duarte e Emerson Giumbelli, assim como outros debatedores em outras ocasiões (Amir Geiger, Patrícia Birman e Miriam Goldemberg), que exigiram, em maior ou menor medida, profissionalismo de um novo antropólogo. Cabem aqui os amigos da filosofia, que em definição recente fariam antropologia sem pessoas dentro, e que, sem sombra de dúvida, figuram nas cenas de maior desafio, bom humor e maior rigor na generosidade com aquele que assina esta dissertação: Fábio Antônio da Costa, Gabriel Leitão, Rommel Luz e Taís Pereira. Homenagem aos livreiros como Daniel e Silvia Chomski, que receberam um desconhecido vindo de São Carlos na livraria que respira por si e que abrigou tantos outros perdidos da Avenida Rio Branco como Henry, Mauro, Pedro, Rafael, Rodrigo, e Eduardo que, bem ou mal, e sob a severa vigilância de Nora, me apresentaram uma outra versão para algumas práticas de família; aos que fazem do território da livraria Berinjela um solo sagrado cujo bom humor e inteligência não cedem à implicância dos termos neutros e que obrigaram mais uma vez o pensamento silogístico a ceder às paixões do vernáculo: Zílio, Nonato, Marecha, Zé Antônio, Hilda Machado (à sua memória, vida sem fim), Carlito, Mauro Trindade, Stênnio (e Sabrina mais a recémchegada Ana Clara), Rubinho, Rodrigo, Emílio, etc. Homenagem aos atores de antes, de quando pisava no palco sob a regência de José Tonezzi e na companhia de Javier, Cecília, Thiago Barral, Juliana e etc., que ainda fornecem a memória de um fim de espetáculo extenuante e de certa extenuação espetacular; aos atores de então, cuja confiança e generosidade só me fazem querer voltar aos tempos de campo para o triunfal retorno à convivência: Joelson, Ângela, Candice, Carmen, Lucas, Leonardo e Luciano, acrescidos pela luz de Zé Geraldo. O último capítulo, em grande parte, é minha dedicação ao risco assumido por eles ao acolherem um estranho e lhe dar casa, comida e roupa lavada por tanto tempo. 26 Homenagem ao multimídia Paulo Camacho, determinante mesmo para esta pesquisa, uma vez que fora membro ativo da expedição rumo ao mundo especificado no teatro além de testemunha privilegiada de outras tantas venturas, parceiro em efeito mesmo quando ausente. Homenagem aos alunos dos idos tempos de Cinemaneiro. Homenagem aos amigos sempre presentes nas mesas fartas que ofereço ou nas quais me oferecem: Lia, Luana, Zulma, Zaíra, Indira, Bruno, Helô, Suzanna, Ivone, Neide, Nonato, família Berinjela. Tanta homenagem e tão pouco para reforçar o vôo cego que a paternidade e a maternidade implicam, especialmente quando diz respeito a um filho que se muda de cidade para cidade em busca de uma conexão privilegiada que não sabe dizer qual seria. Não consigo imaginar como prestar graças a meus pais que me acompanham com tamanho zelo apesar da distância e por fazerem o mesmo com meus irmãos. Não sei dizer, mais uma vez, o amor de vó que temos com tanta força e com igual freqüência, digo, o tempo todo. E o que dizer de minha mulher, esposa, parceira e cúmplice da mais eficiente célula subversiva da história, que nos momentos chave do mundo contemporâneo, deixa o mundo contemporâneo se lascar quando ficamos de abraço e beijo. Esta pesquisa foi realizada com o financiamento do CNPq, dos meus pais, da minha avó Clodomira, e minha esposa Cláudia sem os quais esta pesquisa jamais teria ocorrido. 27 I - ENCONTRAR O TEATRO, ENCONTRAR COM O TEATRO; ENCONTRAR-SE: O TEATRO. 1.1. O que procurar. Saber o teatro, qualquer teatro que me for apresentado, aprender com ele a partir da relação estabelecida com seus agentes e escrever sobre esta experiência. Considerando ser este o rumo da escrita desta dissertação cabe em primeiro lugar apresentar um problema de fundamento reiterado insistentemente no percurso que antecede a pesquisa de campo: quem pesquisar? Sobre quem vim escrever? Esta preocupação, bastante legítima, tomou forma e cor durante a banca de seleção de mestrado, nas conversas de orientação e de amigos, nas reuniões de discussão em disciplinas de metodologia. Enfim, era este o foco dialético. A pressão de elaborar algo que pudesse ser chamado de sujeito da pesquisa destoava muito do que eu pretendia gerando um desconforto que só aumentava ao lado dos colegas, já articulados com alguma sorte de informantes. É preciso recortar, selecionar o objeto, o que significaria escolher quem será objeto de estudo (quem, e não o quê). Mas eu não tinha quem, e isto por uma razão muito forte. Para um primeiro momento de definição, não importava. Eu tinha o que pesquisar. Esta disposição simples e arbitrária num primeiro momento se desdobrou em uma série possibilidades importantes para este trabalho. A principal delas é a de que o objeto desta pesquisa, nem de perto, a pertence, embora a participe. Este é um trabalho sobre o teatro. No singular. As razões para esta forma de aproximação são várias e a mera enumeração não ajudaria a estabelecer critérios razoáveis, tampouco suficientes, para tal. O fundamental neste primeiro momento é que a aplicação substantiva da palavra é de uso coloquial, circulante durante pesquisa de campo entre os pesquisados, e esta invariante locucionária é suficiente para acionar relações que encaminhem aquele que fala sobre o teatro a alguma de suas modalidades. É o que me leva a considerar que este teatro substantivo, no singular, é ao mesmo tempo central para esta pesquisa e inabordável caso haja pretensão de uma definição igualmente substantiva. Tal como é possível observar, o teatro opera um sistema de alterações que fundam diferenças que são sempre casos específicos que não impedem sua inteligibilidade e prática assim como sua dêixis mais dispersa, tornando possível encontrá-lo em qualquer um dos teatros disponíveis; em uma ou outra cidade (ou no quintal em uma festa), falar sobre o teatro de rua, assinar um documento político 28 contrário (ou endossando) critérios de financiamento público das atividades teatrais, participar das guerras de estética que negam as alternativas de ofício ou a fazem derivar de si, trabalhar na construção civil ao erigir edificações de fins teatrais, assim como assistir a um velho ator falar sobre sua arte teatral em um teatro. Tudo no singular e ao mesmo tempo um conjunto de diferenças que multiplicam, indicando uma tradição e um coletivo de agências discerníveis. A partir da indeterminação inicial, este capítulo se deterá em abordar as formas que garantem que o teatro seja um caminho possível lhe proporcionando meios de dispersão sem que as formas de agenciamentos que carregam o substantivo no singular teatro percam serventia. Esta estratégia segue de perto os desdobramentos da própria pesquisa de campo que parte de territórios pouco específicos no que concerne a atualização de formas teatrais, visando elucidar os problemas que fazem de um evento teatral algo com o que se possa encontrar sem que um morador da cidade do Rio de Janeiro tenha que efetivamente mudar de mundo ou, num sentido igualmente grave, seja obrigado a abandonar qualquer forma específica de imagem de mundo, sendo acometido de loucura, extradição ou abandono. Algumas definições possíveis do objeto em questão • Recorrendo ao Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis (1999), pude encontrar 41 definições de teatro (substantivo singular) que, longe de ser exaustiva, dado que contempla uma historiografia européia (nele não constam o Teatro do Oprimido, que há muito não é só uma coisa de um certo Augusto Boal, e tampouco o Teatro da Natureza, que atingiu certa popularidade no Brasil dos anos da primeira república e na Europa do XIX), oferece um contorno interessante ao problema. Realizado segundo diretrizes de pesquisa histórico-científica em semiótica – o autor é professor na Universidade Paris-VIII – os 41 verbetes apresentados na letra “T” sob o signo do teatro estabelecem algumas fontes do teatro histórico moderno (experimental, antropológico, burguês, da crueldade, agit-prop, etc.) articuladas a verbetes que apresentam gêneros, desenhos e intencionalidades que reconhecem ao pendor artístico da atividade a sua capacidade e missão de mirar objetos e constituí-los por via da criação. Motivação, intencionalidade e interesse articulados dão base para a forma final dos verbetes, não excedendo sequer aqueles que apontam para planos arquitetônicos, como é o caso do TEATRO DE ARENA (op.cit.:380): “Teatro no qual os espectadores 29 são dispostos em torno da área de atuação, como no circo ou numa manifestação esportiva. Já usado na Idade Média para representação dos mistérios, este tipo de cenografia é novamente privilegiado no século XX (M. Reinhardt, A. Villiers, 1958 – bibiografia citada) não só para unificar a visão do público, mas sobretudo, para fazer os espectadores comungarem na participação de um rito em que todos estão emocionalmente envolvidos.” . A referência ao plano da intencionalidade como ambiente privilegiado teatral aponta para sua causa. O teatro assim definido é efeito de humanidade. O interessante é que a possibilidade de o teatro ser arte é reificada ou, seguindo a pista a qual pretendo aprofundar, é componente de uma sorte de agência cósmicocaótica própria. Comparado a um dicionário da língua portuguesa, as acepções mudam drasticamente, respondendo muito menos a um tipo qualquer de o que fazer e muito mais satisfazendo as possibilidades de nominar ações que possam cair sob o juízo assinalado “teatro”, suprindo o leitor de dêiticos possíveis. O Dicionário da Língua Portuguesa organizado por Almeida Costa e Sampaio Melo (1986:1594) apresenta doze definições as mais diversas, muito menos pontuais: “Substantivo masculino: Lugar ou casa onde se representam comédias, farsas, revistas, etc.; arte de representar; literatura dramática; a arte dramática; coleção das obras dramáticas de um autor ou de uma nação; profissão de actor ou actriz; Figurado: lugar onde se deu um acontecimento; ilusão; fingimento; hipocrisia; anatômico: sala própria para dissecação de cadáveres (nas Escolas Médicas); - de guerra: divisão geográfica militar que abrange o território, mar e espaço aéreo dentro dos quais decorrem operações correspondentes a um dos objectivos da estratégia; - de operações: parte de um teatro de guerra no qual se desenrolam operações tácticas e as atividades logísticas correspondentes. (Do grego Thèatron, “lugar donde se vê um espetáculo”, pelo latim Theatru, id.).” A diferença primeira que destaco é exatamente que o teatro definido pelo dicionário da língua portuguesa citado não implica somente no significado do significante, apresentando em detalhes o que é que alguém pode emitir como significado ao apresentar a palavra teatro. A divisão interna do verbete é significativa ao definir uma raiz (cujo conceito operador é drama) e uma figuração derivada, quase que estabelecendo um teatro que é para valer, sério, verdadeiro, e um outro figurado, cuja 30 sintaxe que determina seu sentido escorrega ao apontar para um tipo de situação na qual pouca gente vai e volta para contar o que houve – caso seja necessário retomar a theoria grega cuja ação é a de ir ver-ouvir, voltar e contar – que é o caso da guerra. O fundamental, contudo, é que o dicionário Pavis é voltado para profissionais de teatro e seus afins, enquanto o segundo é um dicionário para leitores de uma língua e por isso determinam diferentes fontes, formas e desdobramentos de sentidos, levando mais ou menos a sério alguns aspectos conotativos da palavra que, no primeiro caso, é o próprio horizonte de reificação dada sua especificidade disciplinar. Assim, não só qualquer consideração sobre um teatro de operações inexiste, como dentre os 41 verbetes constituídos pela palavra teatro, o mais próximo de qualquer acepção militar é o teatro de guerrilha: “teatro militante e engajado na vida política ou na luta de libertação de um povo ou de um grupo.”(Pavis, op.cit.:382). Mas de qualquer forma, o horizonte no qual o teatro é já uma arte está definido, mesmo que o significado de arte não esteja. Aquele que busca um dicionário sobre teatro já deveria estar informado disso, deve assumir este grau de reificação. Caso contrário, como lidar com o editorial do Caderno Especial 2 da Revista Civilização Brasileira (1968) sobre Teatro e Realidade Brasileira, no qual se destaca exatamente um plano polêmico de outro grau em que especificações sugerem não só a imediata constatação do teatral no campo de definições de um Dicionário Pavis como apresentam as polêmicas nacionais que só fazem sentido a partir de uma noção presumida de teatro? O último parágrafo segue como transcrito: “Vamos do otimismo de Nelson Werneck Sodré ao negativismo de Tite de Lemos, da “abertura pessedista” de Oduvaldo Vianna Filho ao radicalismo de Luiz Carlos Maciel; Anatol Rosenfeld faz sérias restrições aos conceitos estéticos de Augusto Boal, enquanto Cacilda Becker nega a existência da dramaturgia brasileira que Flávio Rangel afirma ser de extraordinária vitalidade. Mas “a verdade é a totalidade”. E a polêmica é oxigênio indispensável à sobrevivência da liberdade, sem a qual qualquer verdade humana se esvazia do movimento dialético que a definia como tal e adquire a feição mortuária das estruturas dogmáticas.” Esta singular multiplicação de relações de significado não é, certamente, uma maldição que o teatro destina ao seu pesquisador. Na verdade, me parece uma instabilidade mais ou menos distribuída no campo de pesquisas no qual este trabalho se 31 situa cujo horizonte é o da própria inscrição de objetos e suas conexões, nem sempre contempláveis pelo esforço de classificação num léxico preciso e que, por sua vez, raramente é contemplado pelas forças de contingência das histórias que se contam. Nem sempre aquilo que fora teatro ontem é necessariamente teatro hoje e, se deixou de sê-lo, não impede que venha a ser amanhã ou hoje mesmo, fazendo da vida teatral um entrar e sair de fase. Parece impossível eliminar a controvérsia do horizonte de qualquer definição. Mas não percebo este movimento sozinho. Uma história das vanguardas amplia isto que ora se põe como um desejo pelo novo e pela mudança a ser feita e que, na trajetória da arte no ocidente acompanha sem ser um agente descolado, a constituição de diferentes formas de viver em sociedade fazendo as vezes do que se chama desenvolvimento, evolução ou progresso, sem serem sinônimos (Poggioli, 1996). Há teatros antinômicos em nome do tempo que evocam, o de mudanças, mudanças estas operadas pelos recursos de apresentação teatral, mesmo que sabidamente pouco disseminados numa sociedade de massas. Há também vezes nas quais algumas atividades teatrais se encontram com o difícil projeto de evitar fazer cenas de forma que sejam “muito teatro” – isto é, demasiado formais; pro forma – exatamente na finalidade de manter a precisão da atividade teatral, recorrendo a uma necessidade de inovação ou aprimoramento cuja finalidade estética parece cair tão bem no conceito de ostranenie14 próprio das linguagens da arte moderna. Mas não é preciso ir tão longe. Atento à vida teatral, um ator pode vir a se perguntar como foi que realizou determinada cena ainda ontem, apresentando um aspecto de fuga da forma estável e precisa. O ator, neste aparte, é tanto aquele que muda como aquele que deve se estabilizar. E aqui está muito bem localizado no mundo ao qual pertence, acompanhando as fases de apresentação próprios do objeto em questão. E é nesse sentido que a pesquisa com atores é amparada por um aspecto específico: é no percurso de trabalhos de atores que pude ver o teatro em suas etapas de 14 Do russo. Significa estranhamento. Pedra de toque dos estudos sobre literatura da geração de pesquisadores chamados de formalistas russos, círculo que germina logo antes da Revolução Russa e que tem em suas fileiras nomes como os de Vladmir Maiakovski, Roman Jakobson, Boris Tomachévski, Vladmir Propp e Iuri Tyiniánov fileiras nomes. O signo do estranhamento fundante da experiência poética e artística do modernismo sugere que formalmente a expressão do campo apresente elementos diferenciais e especificadores do fenômeno lingüístico, que passa a não ser mais o de uma comunicação ordinária, mas sim poética. Para uma síntese desse problema, vide Eikhenbaum (1976), onde a faculdade lingüística da literariedade é definida. Em Bourdieu (2007) o estranhamento operado pelas artes modernas surge como elemento de distinção de campo das classes artísticas. As duas referências constituem uma leitura ampla de um dos problemas importantes desta dissertação, a saber, o da especificação convergente das diferenças que são tanto do plano da experiência vivida do sentido (no caso organicista do formalismo) quanto de uma dinâmica social das classificações (no caso das formas de distinção de Pierre Bourdieu). 32 produção, migrando entre momentos específicos da atividade de pôr o teatro em circuito. Em outras palavras, apresentá-lo ao mundo mais uma vez. Tanto cuidado ao definir o eixo entre objetos de pesquisa, de problemas a serem postos, diz respeito à circulação do teatro como significante vulgar e impreciso. A recorrência do problema da escolha de quem pesquisar, mesmo quando mediada por relativos e afins, apresentava uma mesma complicação. O teatro é auto-evidente e, como sugeriu Emerson Giumbelli acerca da religião (2002), todos tinham algo a dizer a respeito. Mas nenhum deles realmente fazia teatro. Nem com tijolos. O objeto se encontra disponível aos mais diversos interesses, se dá ao desfrute, permite controvérsia. As cautelas quanto aos objetos auto-evidentes merece alguns cuidados exatamente por isso. Uma vez que, tanto a antropologia da arte como a antropologia urbana, lidam com um campo de objetos dotados de familiaridade com o público leitor, trabalhos que falam sobre o futebol, o casamento, uma procissão, ou outro caso de encontro de grupos, tomam como fato já formulado a delicada prática de encontrar o objeto de pesquisa. O teatro... todos sabem o que é isto, dado que lá está. Todos podem dizer algo sobre o mesmo sem precisar manifestar qualquer cuidado especial quanto aos termos que aplica ou aos aspectos que elege serem relevantes e suas práticas implicadas. Posso fazer o mesmo. Mas basta perguntar o que é isto, o teatro, e logo a definição escapa, como o tempo de Santo Agostinho. Multiplica-se em possíveis alternativas, como pôde ser mostrado: um prédio, um endereço, uma arte, uma abordagem, um rumo, uma faculdade humana, uma birra infantil (lembrando que os gêneros teatrais são igualmente polissêmicos: comédia, drama, tragédia, igualmente abundantes em alternativas de significado), um curso de ensino técnico ou universitário. Ora, a definição da pesquisa deveria, tendo em vista não me deixar levar pela possível obviedade do objeto, apresentar uma ordenação dos dados de experiência de campo que me permitissem mostrar como encontrar o teatro em sua multiplicação e no caso desta pesquisa, como se encontrar com o teatro multiplicado até que, em alguma linha de condução, venha a se especificar. Afinal, sem acionar os dispositivos corretos, esta pesquisa culmina em uma impossibilidade tal como a prática teatral como constituída, cujas formas e linhas de conduta culminam em alguns dos encontros que lhe são característicos. 33 1.2. Como procurar? - excursão teórica Se algo pode ser utilizado em uma etnografia de meios urbanos a partir das leituras de registros etnográficos de populações viventes em topografias outras, como a do Alto Xingu, do Vaupés, da Alta Birmânia ou das populações nilotas no sudeste africano, é o hábito saudável de localizar, por escrito, as tais populações por via de referência a mapas ou outras modalidades de coordenação da navegação (latitude, longitude), visando apontar as formas então utilizadas para encontrar esta ou aquela população. A validade destes registros tem valor imprescindível para a configuração de dados de pesquisa, e na recente etnologia tem se abordado este tipo de referência enfaticamente ao apontar relações entre deslocamentos coordenados em perspectiva comparada, do ponto de vista simbólico sobretudo. O primeiro volume das Mitológicas de Claude Lévi-Strauss, O cru e o cozido, constitui referência suficiente, em especial sobre a constelação das plêiades e a configuração de um tempo simbólico de longa duração articulada nos mitos ameríndios presente no segundo capítulo da quarta parte (Duplo cânon invertido) que revelam traços de uma economia de pensamento que abrange uma enorme quantidade de povos e relações localizadas e articuladas em pares de oposição de uma simbologia que orbita em torno do par de constelações Corvo:Órion e seus outros nomes que, por fim, responderiam a uma constante. Segundo Lévi-Strauss “a astronomia fornece a verificação externa dos argumentos de ordem interna (...) De fato, resulta de todos esses dados que, se Órion pode ser associado à estação seca, então o Corvo poderá sê-lo à estação das chuvas” (1992:227) conferindo validade comparativa à seqüência mítica água celeste:água proveniente de baixo que caracteriza a contraposição da estação das chuvas e das secas relacionadas a agentes míticos homônimos às constelações. O aspecto externo do mapeamento astronômico permite que se avalie a validade sincrônica e diacrônica de comparações, como no exemplo da relação das constelações com as estações a partir de relatos tão desiguais quanto são as fontes de Lévi-Strauss, permitindo articular diferenças do tipo ali:antes::ali:agora ali:antes::ali:agora do tempo dos sistemas de transformações, mesmo quando este tipo 34 de avaliação não é imediatamente apreensível no conteúdo de um ou outro mito de um ou outro povo. Os mapas articulam as mesmas invariâncias – podemos chamar de constantes coordenadas – que o antropólogo belgo-francês procura dispor: “Perguntamos apenas qual a relação entre a marcha de uma constelação a num hemisfério e a da constelação b no outro. Essa relação é constante, qualquer que seja o período a que decidamos nos referir. Para que nossa pergunta tenha sentido, basta, portanto, admitir, em conformidade com verossimilhança, que conhecimentos astronômicos elementares, e sua utilização para a determinação das estações, remontam a uma época muito antiga na vida da humanidade, que deve ter sido aproximadamente para todas as suas frações.” (id.ibid.:226) Mais do que cortejar o texto de Lévi-Strauss que, por si só mereceria toda minha atenção numa lógica de esforços equiparáveis, o que é decisivo é a atenção dada ao nexo de coordenadas, sua diferença e seu padrão de diferenciação que permitem estabelecer o nexo de um tempo simbólico tão esquecido quando se faz remissão às teorias estruturais da história em etnologia. Este padrão, assim como o seu limite de aplicação me chamam a atenção exatamente porque é ele um dos problemas da presente dissertação. Não almejando qualquer esboço de comparação com sociedades amazônicas, ou melanésias, o que me chama a atenção são os mecanismos de disposição em localizações. Parte decisiva da argumentação de LéviStrauss no capítulo mencionado de O cru e o cozido dizia respeito à abrangência da mitologia enquanto teoria, versando sobre a ordem das águas e seu correlato com constantes de constelação que apresentam ao pesquisador uma medida estável de profundidade temporal. A remissão ao mito de Apolo como protótipo, ou diagrama, da constatação de constantes astronômico-meteorológicas assume a universalidade e a concretude das formas de orientação cosmológicas, isto é, que se remetem à definição das diferenças entre os termos e forças constituintes do mundo. 35 Este problema das investigações em antropologia assume um outro caráter quando se põem os olhos na seqüência de artigos sobre mapas e wayfinding, e que tem em Alfred Gell o foco da discussão. Se os mapas são pontos de partida em formas de mediação entre culturas, permitindo estabelecer por fim qual seria a referência astronômica precisa dos mitos analisados por Lévi-Strauss, o que entra em questão no debate Frake/Gell/Ingold é a universalidade objetiva do mapa como forma presente em diversos estilos cognitivos culturais. A elaboração do problema parte da necessidade de Charles O. Frake (1985) em defender a tão atacada racionalidade medieval (you shall not forget the dark ages), em especial dos navegadores que, deparando-se com uma realidade tecnológica que alia funcionalidade de utensílios com os demais seres com os quais o sujeito cognitivo se depara, precisa resolver problemas importantes. Sem usufruir o complexo de mapeamento dos navegadores modernos, abordar os métodos de aplicação da rosa dos ventos na orientação espaço-temporal é uma ótima oportunidade de defender a universalidade do sistema cognitivo, assim como a resposta positiva e funcional das tecnologias de orientação. O que caracteriza a orientação medieval, já que os mapas precisam ser interpretados mais pelas suas lacunas do que por sua precisão e ostensividade, é a capacidade do navegador de ir além da informação dada, o que Frake considera ser a essência da cognição (id.ibid.:260). Assim, mais do que mapas propriamente ditos, o que há disponível para o navegador medieval é um mapa cognitivo, ou mental map. Na mesma edição da revista Man, Alfred Gell (1985) não só responde a Frake, como formula uma teoria acerca dos mapas, fazendo-os quase uma faculdade cognitiva de orientação segundo a fórmula de wayfinding. Sua preocupação, especificamente no que diz respeito ao cognitivismo professado por Frake, é a excepcionalidade da navegação, critério delicado de prova da racionalidade do homem medieval comum. Afirmar esta universalidade com bases em práticas excepcionais significa dizer que o primitivo é primitivo, exceto quando faz coisas excepcionais. Diante da barreira posta por Frake, Gell se pergunta sobre como este 36 sujeito, cognitivo em todo momento, encontra os caminhos mais banais, num tipo de maestria prática que o faz se aproximar de Pierre Bourdieu quanto ao significado de a palavra “cultura”, por vezes descrita como se fosse um mapa. O que ora interessa, assim como para o prosseguimento da polêmica, é que há de se considerar a diferença entre mapas tomados como artefato e mapas segundo sua variação mental maps. A dessemelhança não pode ser ignorada. Afinal, é dela que partimos, de forma a contornar algum tipo de diferença intrínseca, a saber, daquilo que pensam os nativos e daquilo que se utiliza para, por fim, aproximar-se daquilo que os nativos pensam. Mas para tanto é preciso fazer muita coisa: “Nem mapas mentais são tão dessemelhantes de mapas artefactuais para ser falha a qualificação como mapas absolutamente, ou se os mapas mentais são realmente como mapas, não podem ser invocados na explanação de performances de wayfinding reconhecíveis espacialmente que, por definição, ocorrem sem a assistência de mapas.” (Gell, id.ibid.:274) O que desponta do tipo de mapa artefactual para o qual Lévi-Strauss chama a atenção nas mitológicas como médium comparativo é que, mais do que operar alguma razão representativa entre desenho, figura e referência, também estabelece uma lógica de coordenadas cuja relação entre termos, como a idéia de pontos A e B e uma trajetória presumida, define como operam as unidades de localização em conjunto. Estas coordenadas implicam não somente na organização em um ordenamento específico em cujo sistema de ordem lógica opera imanentemente em grau psicológico, como os termos de relação apontam proporções categoriais de caráter de co-ordenação. Toda sua reflexão a respeito de artefatos (1992, 1998) visa apontar para esta diferença fundamental entre as razões pelas quais algo é feito e sua relação com qualquer entidade de representação figurativa que, como se pode perceber, fica em segundo plano. O que é fundamental no desvendamento de formas profundas de 37 abordagem do reconhecimento das práticas é o sistema que permitem proposições indutivas do tipo que leva ao conceito de índice de agência. agência Dada a preeminência da lógica na elaboração de uma teoria de mental maping, que aproximaria os gregos do mito de Apolo, os índios americanos da seqüência mitológica ao astrônomo Jean Claude Pecker, Gell propõe três tópicos de entendimento que definem 3 graus de wayfinding: a) o território, b) o mapa do território e c) imagens do território, que levam-no a inferir sobre a coordenação entre imagens e termos de praxiologia. O que permeia tanto argumentação de Gell quanto de Frake é a orientação fundamental de navegação nas práticas de encontrar caminhos decisivas na orientação agentiva. Dada uma correlação entre dois pontos não-figurativos encontrados na paisagem, é possível partir da abstração para então figurar, por via de gerações de imagens, as propriedades figurativas da relação ver-paisagem. Ponderando sobre este conjunto problemático no qual o mapa mental é a origem ideativa do artefato, Tim Ingold (2005:77) pondera: “(...) habitantes nativos podem não conseguir determinar seu lugar no espaço de acordo com algum sistema independente de coordenadas, insistindo todavia, com razão, que sabem onde estão. Isso, como mostrarei, ocorre porque os lugares não têm posições e sim histórias.” Aliando os modos de trajetória de um mapa, que prevê a relação entre uma posição e outra ao de wayfinding (de um lugar a outro em uma região), Ingold define não somente a tópica dos graus de abstração [(-)região::espaço(+)] como esta relação estabelece uma assimetria propriamente tecnológica: mapear (no infinitivo) e conhecer são distintos de um mapa. É esta distinção ressaltada que ora interessa, dado que ajuda a definir sobre quem e com quem se argumenta. Assim, a afirmação de que descobrir um caminho não significa que o caminhante opera a confecção de qualquer mapa mental exige de Ingold um passo decisivo que é o da depuração tecnológica daquilo que funciona como uma figura de 38 linguagem infeliz do ponto de vista pragmático (Austin, 1975:14): o mapa não é uma transcrição, mas uma inscrição que ocorre numa esfera disciplinar de confecções de objeto-mapa. Contudo, se este tipo de organização de dados é relevante, no caso da etnografia urbana a coisa se dá conforme um outro registro: os mapas fazem parte da lógica de endereçamento pesquisado, isto é, são dados constituintes do espaço e do manejo de trânsito em pesquisa centrais, do tipo que permite remontar as reformas urbanas de um Haussman ou de Pereira Passos ou de fundamentar a correlação entre modernismo, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, arquitetura, urbanismo, nacionalismo e Brasília num eixo de conexões e feitorias que culminam na efetiva construção de uma paisagem. Uma rua, antes de posta em rua, passa pela inscrição numa série de outras superfícies que operam ao seu lado como referência de uma rua a ser feita, inscrita no corpo da terra. As forças do tipo que constituem o mapa como utensílio e objeto enunciado apontam para a diferença profunda que determina um mapa, e seu sistema, utilizado à Lévi-Strauss e tal como o requisita uma pesquisa em uma cidade. Nos termos de Peter Gow é possível absorver um pouco do que significa, em primeiro lugar, haver antonímia entre landscapes e matas fechadas (de onde não há escapatória visual), assim como o que significa a complexidade das formas de diferença na localização que, possivelmente, prescindem dos mapas tal como seria possível universalizar segundo uma orientação cognitivista: “Mirando uma paisagem amazônica desflorestada, estamos olhando para um ambiente visual construído a partir de mapas e de um simulacro do ambiente temperado do norte. Muito da recente colonização da Amazônia procedeu ao longo de estradas que, elas mesmas, tiveram sua primeira existência como linhas desenhadas através de espaços vazios dos mapas.”(1995:43) 39 A landscape em muito tem a ver com linhas que se impõem, especialmente nas regras de sua figuração em pinturas15 e em sua projeção urbanística e regiões extensas, que servem de local da participação do teatro no Rio de Janeiro num sistema mais abrangente de encontros que articulam a agenda e os endereços segundo uma forma peculiar da articulação de tempo e espaço que, como se verá, pode incluir mapas como objetos referentes de objetividades outras e pessoas como foco da mesma articulação. Esta será analisada partindo dos mecanismos agenciados para que eu, como pesquisador-ainda-não-especialista e transeunte, pudesse encontrar o teatro para então seguir os mecanismos que o teatro-encontrado efetiva de forma que venha a ser encontrado especificamente a partir dos elementos em agência, para que atores teatrais venham a se encontrar. 1.3. Como procurar: método Dado o emaranhado próprio à dificuldade de formular a disposição de locais e o desenvolvimento de trajetórias, assim como sua orientação imediata, não soa arriscado dizer que saber encontrar algo é uma arte. Propriamente reificados, os métodos de busca que operam correspondências concretizam forças de intensidade e extensão, atualizando modos de relação entre caminho, caminhar, lugar e espaço, assim como horizontes de medida para cálculo de tempo de tráfego. As variáveis de medida dos métodos disponíveis, contudo, rivalizam com o plano incomensurável da diferença imediata, isto é, entre a norma e o evento. Afinal, há sempre a perspectiva de se perder ou, desempenhando alguma forma de rapidez, pode-se perder alguma coisa ou encontrar algo imprevisto. Mas, e é no que me fio, uma vez perdido, é possível se encontrar/é possível encontrar. O que dizer da arte de se encontrar, ou de encontrar algo na arte, como por exemplo, uma personagem, fruto de ação (δραµα)? Há que se considerar o tipo de interrupção que a relação de encontro propicia, especialmente para a presente dissertação. O momento de uma apresentação teatral impõe aos presentes uma série de ações que submetem os participantes a uma série de 15 Vide Panofsky (1993), Baxandall (1991, 2006) e Alpers (1983) sobre a história da elaboração lenta e complexa da figuração como forma de descrição de constantes e coordenadas e sua intrínseca relação com alguns eventos da Renascença. 40 obrigações que definem o caráter de sua participação, submetendo-se a agências, assim como impondo outras tantas das quais é fonte. Valer-me aqui de um sistema de tempoespaço, que é para onde segue o argumento, tem como prioridade exatamente pôr em perspectiva o fundamento da experiência teatral normal (modal?) a partir de algumas evidências importantes de sua constituição. Apresentar uma peça de conteúdo narrativo, por exemplo, significa apresentar personagens e uma seqüência de ações que possam não somente ser assistidos, mas compreendidos, postos em um sentido localizado na própria apresentação experimentada. Não há uma vida inteira para apresentar a história da vida de, por exemplo, Romeu Montecchio. Mas é claro, como venho tentando sugerir, o que há para ser encontrado nem sempre se reduz a esse quadro. Principalmente porque, tal como é de se esperar num argumento de matriz etnográfica, as atividades de encontrar não se restringem a um plano solipsista de agência de localização. Para critério de entendimento ampliado e distribuído das competências de encontrar, vale acrescentar que as atividades de localização entre as quais insiro o teatro, é tanto encontrar algo quanto encontrar-se-com. Daí o valor de um aparte sobre Erving Goffman (Encounters, 1961). Na abertura do referido livro, Goffman procura apresentar uma investigação sobre interações16 sob foco e fora de foco entre pessoas, cuja diferença é a atenção e a convergência das ações entre os envolvidos em uma dada situação. Num primeiro momento, Goffman recusa a distinção analítica entre unidades de organização e processos de interação, preferindo distinguir tipos de unidades, elementos e processos abrangendo situações corriqueiras da forma pela qual elas se ordenam em processo – processo e organização seriam então uma só e mesma coisa e não um o reflexo da outra; não há traduções nomotéticas ou abordagens de funções latentes. Doing is being (op.cit.:77) – ou então, fazendo e sendo. Não por acaso, a primeira forma conceitual forte e de particular relevância na abertura de Frame analysis (1986) são as unidades naturais, inefáveis, das interações sob foco (focused gathering, encounter, situated activity system) características dos enquadramentos primários, que são interações praticadas como tais, em seus próprios termos e limites, e em-si objetivadas no enquadramento (framework). Assim, os envolvidos se deparam com problemas do 16 Longe de ser um lobo solitário, ao sugerir que agir é inter-agir, isto é, que se age com alguém ou algo, Goffman escreve sobre ação social de maneira bastante afastada das considerações mais calculistas do individualismo metodológico. Não bastando a sugestão que são os momentos que possuem seus homens, e não ao contrário, os desdobramentos de sua teoria da ação possuem fundamentos lastrados numa perspectiva porosa de presença e pensamento humanos. 41 sistema, que são os próprios limites da ação tímica (euforia e disforia) e, diante destas fronteiras, a demarcação de a partir de quando/onde ocorre de se fazer uma e outra coisa. É neste contexto que o capítulo sobre a diversão em jogos (1961:17-72) aborda, entre outras coisas, dois pontos centrais para este trabalho. Em primeiro lugar, de como pensar um modelo segundo a lógica de um sistema de atividades situado, o que configura a diferença entre play e gaming (jogo/jogar e jogando). Em segundo lugar, como o regime de modificações de roles (convencionalmente traduzidos como “papéis representados”) próprio aos jogos em muito nos aproxima de uma certa abordagem do ficcional. A principal razão para a evocação do trabalho de Erving Goffman advém da possibilidade de alterar certas preocupações acerca do teatro, em especial as dedicadas à análise do espetáculo. Alguns trabalhos famosos de semiologia teatral fazem uma minuciosa incursão nas formas significativas teatrais, elaborando intensos programas de pesquisa, como são os casos exemplares de Bogatyrev (2003) e Honzl (2003). Contudo, suas análises têm como objetivo abordar o espetáculo, isto é, aquilo que já se apresenta como teatro a ser visto (ou o ser-visto), pago e julgado, como um produto final já assistido. Os eventos com os quais esta pesquisa se depara são de outra ordem. A ênfase na contribuição de Goffman diz respeito à propriedade conferida ao fenômeno do encontro, que é uma das formas possíveis de se reduzir o teatro (um encontro entre pessoas – e papéis, objetos, cenas...) cuja repetição com envolvidos pode culminar, como no caso, em práticas de ensaio e outras reuniões que são procedimentos pelos quais o teatro vem a ocorrer, ocasiões em que as peças e personagens são feitos, como se fossem jogos, que embora não traduzam o que “na verdade” acontece na cena final – como se qualquer cena não fosse suficientemente verdadeira -, revela as outras cenas que convivem com as cenas da peça em sua estréia, mas são disjuntivas cronologicamente. Isso significa que aponto para as extensões do teatro para além do espetáculo, embora ainda relativas ao teatro, procurando reforçar as atividades que fazem do trabalho coletivo um objeto comum e que leva pessoas à sua confecção a partir do manejo de seu encontro. Seguindo a abordagem de Goffman, detenho-me num primeiro momento em relatar a montagem do teatro como reunião de envolvidos focados considerando cada um dos ensaios segundo a proposta de Julio 42 Cortazar (1968): takes com vistas a um futuro em prol do qual há de se aprimorar o que se faz17. Assumir esta referência significa abordar o encontro (focused reunion) como: a) foco de atenção visual18 e cognitiva singular, b) com abertura mútua e preferencial entre os participantes, c) culminando na ampliação mútua da relevância das ações e d) na aglomeração ecológica vis-à-vis que maximiza a oportunidade de cada participante perceber o monitoramento que o outro participante faz de si, evocando um princípio que Goffman chama de we rationale, que é um “fazemos ao mesmo tempo – e sabemos disso” que possui suas regras e modalidades. E é aí que a diferença entre play e gaming toma força, uma vez que “a play of game has players; a gaming encounter has participants”. 19 Contudo, esta lógica do encontro que Goffman tanto se esforça para preservar como índice de interação sofre aqui uma alteração sutil de perspectiva, uma vez que o encaminhamento ao encontro (isto é, a ordenação dos vários encontros e seus fins) é tão constituinte dos problemas quanto o plano interativo face-a-face. Este que é o plano do método (méthôdos; caminho, encaminhamento) prontifica os elementos estruturantes que são próprios à pergunta que faz Ingold (2005:98): “o que significa saber onde se está?” sobre mapas e que aqui, de outra forma, faço sobre os endereços para encontros. Isto porque, tal como é possível sugerir (Duarte, 1999), há uma ambigüidade dos sentidos que gostaria de reforçar, que versa sobre a articulação do sentido/sensibilidade e sobre a configuração do sentido/significado próprios ao simbólico que, na dinâmica da articulação topográfica de tempo e espaço, sugerem peculiaridades dos encontros 17 Contudo, vale apresentar o desajuste que a perspectiva do “melhoramento” apresenta. Espero poder apresentar a oscilação das formas de apresentação que melhoram as cenas, assim como a idéia de melhoria pode estar atrelada com uma outra noção, que é a de momento, isto é, que as práticas de aperfeiçoamento não estão necessariamente ligadas com critérios de perfectibilidade mas de plasticidade adaptativa e contingente. 18 No caso, prefiro substituir visual por imagética, uma vez que, como vemos logo a seguir, estão em questão outros modos de imagem, como a acústico-auditiva. 19 É importante notar que os participantes envolvidos nem sempre são envolvidos como corpos presentes. Citações, críticas de jornal, restrições orçamentárias, limites de tempo para ensaio, apoio cultural, são entes e formas de envolvimento que atuam na ausência por via de formas as mais diversas de mediação. Boa parte do esforço da pesquisa deve se focar em compreender o fluxo de relações que importam ao teatro. Não é respeitoso esquecer também que a temática da participação possui sua história na antropologia, compondo parte do cenário do pensamento sobre a magia e o pensamento primitivo que, incapaz das conexões propriamente lógicas, sugere participações das coisas nos eventos, alienando as relações de causa e efeito, por exemplo, da ordenação sucessiva dos eventos entre si. O nome de Lucien Lévy-Bruhl deve bastar como referência. 43 realizados em cidades, em especial na cidade do Rio de Janeiro e seus caminhos que conduzem a encontros teatrais. Considerando que há uma grande variedade de encontros, e basta passear para tanto – e é isto que busco desenvolver, é disso que trato – não é qualquer encontro que gera teatro. Basta investigarmos o que acontece em uma mesa cirúrgica, num laboratório de genética, num tiroteio no morro São Carlos (Estácio, Rio de Janeiro) e os diferentes regimes de censura e sanções, assim como de suas conseqüências. Aquilo que é peculiar de uma prática qualquer parece vincular-se às formas de co-presença (Giddens, 2003:47-190) entre os participantes e, de alguma forma, participá-las do encontro, como enfatizamos acima. Elaborações como as de Huizinga (2000) ou de Lévi-Strauss (1997) que sugerem ser o jogo um espaço-tempo descolado do quotidiano cujas regras de desempenho são livremente consentidas, no primeiro caso, ou uma aplicação de formas simbólicas de disjunção (isto é, aprofundamento das diferenças entre os participantes), no segundo caso, complementam a cena de preocupações sobre a atividade teatral figurar como um momento. Mas estas apropriações do lúdico são muito semelhantes ao que chamo “recorte do espetáculo”, presente na antropologia e na sociologia, que ou o definem como momento de efervescência (ou fusão das consciências), de matriz durkheimniana e que tem seu epicentro nos trabalhos de Jean Duvignaud (1966, 1972), ou como relações de liminaridade controlada segundo momentos discretos do fluxo do quotidiano, como é o caso dos escritos de Victor Turner (1982). Este corte tem o mesmo tipo de dificuldade que têm as abordagens de Bogatyrev (op.cit) e Honzl (op.cit), que mesmo que façam menção às fontes de significado e estruturas geradoras do espetáculo (como a estrutura social, que é o caso de Turner, por exemplo), acabam por ocultar o técnico-jogador e as técnicas de fazer (Gell, 1992). Não se trata, contudo, de abordar as etapas de montagem, isto é, os ensaios de teatro, como fenômeno indiferente ao quotidiano. Mas jogo bem jogado, e aqui seguimos os apontamentos de Goffman, lista e atenta para aquilo que importa20 ao encontro dos participantes a partir de dispositivos já operados fora de enquadramento do jogo, mas com sua diferença demarcada – que é o que permite, inclusive, que o jogo seja identificado e que seus participantes sejam encontrados. A manutenção dos procedimentos se daria pela incorporação das regras, pela regeneração da agência 20 O que é importado, o que é gerado por correspondência e implicação. 44 possível e pelo afastamento do irrelevante para a ação. Atenta para o que funciona e o que não funciona como conexão. Esta fórmula que pensa mecanismos via-jogo diferencia os objetivos de jogo em termos de interesse e em termos de agência, dado que se da primeira forma o interesse é pensado como jogar o jogo e então “ganhar ou perder”, no segundo caso (gaming) o jogar é pressuposto (o que sugere a inefabilidade, a naturalidade do teatro-jogo a partir da constatação da existência do ambiente teatral, no caso) e as considerações são da ordem do gerúndio: jogando. Trato o jogador como objetividade de jogo – está entre jogadores que igualmente jogam - diante objetividades de jogar (subjetividade incluída), isto é, é um participante. Contudo, como um encontro qualquer, o jogo pode acabar de diversas formas: algumas a partir do término formal, outras por via de um acidente ou mal sucedidos (seqüências desagregadoras) etc., nem sempre previsíveis ao play, mas sensíveis no gaming. Enfocar a produção de papéis, todavia, põe em cheque qualquer definição apressada relativa à autenticidade lastrada numa divisão social do trabalho. E no caso, como já vimos, trata-se de abordar a construção de papéis ficcionais segundo sua técnica, cuja conseqüência ulterior é a de que não seja necessariamente “de verdade”, o que em nada significa que a verdade e suas formas não lhe participam. A evocação deste aspecto do ficcional em muito tem a ver com apressada definição do lúdico sugerida21, que são duas formas de fazer coisas como se fossem outras, apresentando formas transitórias de atuação que são elaboradas visando configurações conjuntivas singularizadas22. O que ora interessa, portanto, são as técnicas pelas quais estes papéis, que são como se fossem outros, são feitos e diferenciados dos demais – lembrando que objetos de cena também “cumprem um papel”, que pode ser cenográfico, por exemplo – 21 Wolfgang Iser (1996), em um artigo de considerações sobre o fingir do ficcional chama a atenção para os fatos de ficção, que apresenta analogias importantes para a configuração deste trabalho. Ao dissertar acerca da relação entre o que é e o que não é ficção, nos diz: “cada relação estabelecida não só altera a facticidade dos elementos, mas ainda converte em posições que obtêm sua estabilidade através do que excluem. O que é excluído se matiza na relação realizada e lhe dá o seu contorno; desta maneira o que se ausenta ganha presença.” (op.cit.:20). Ora, a definição que o sistema de atividades situadas põe sob foco e enquadramento é uma forma de atestar a relevância daquilo que está e deve estar fora de quadro no momento de jogo. Caso contrário, as fronteiras do que é feito neste ambiente de diferença têm sua diferença rarefeita. Ao mesmo tempo põem em jogo os desdobramentos técnicos que permitem que ao mesmo tempo se operem distinções importantes e uma condução que leva o não-praticante a encontrar os objetos de arte como tais, que é o que se depreende do conceito de “convention”, de Howard Becker (1982). 22 É então que a conjunção como se põe com se pronominal (como a si). O fato de se conjugar com o pretérito imperfeito – de um tempo de outrora que não bem se concretiza; como se fosse – só reforça o horizonte transitivo do problema. 45 e, tão importante quanto, quais os recursos utilizáveis para que possamos encontrá-los o que exige que se dê voz ao que é feito das luzes, da direção, dos endereços, dos números telefônicos, do calendário, etc. Não que se vá constatar que “uma bola amarela pintada num fundo azul-bebê é um sol pintado na parede com os traços de Van Gogh e as cores de Edward Munch” (como me foi informado ter ocorrido), mas de presenciar e descrever os procedimentos – conversas, experiências, leituras, repetições, anotações – pelos quais se chegam até ela e como é que esta forma é considerada suficiente para a montagem de um certo espetáculo teatral, cenas que geram e regeneram cenas. É óbvio que o objetivo é montar a peça, mas este objetivo em nada revela sobre como se dará o procedimento tomado como suficiente. Não se fará qualquer genealogia filológica da personagem Hamlet, mas sim como o corpo de um ou mais atores chega a uma presença que é um Hamlet, ao mesmo tempo em que é um ator com outro nome e isto se possa saber. 1.4. Os primeiros passos e algumas situações Sou morador da cidade do Rio de Janeiro desde 2003. Não surpreendente, meu local de nascimento e as demais cidades onde morei não impediram nenhum contato com o teatro desde cedo. Não sou carioca. A primeira vez que assisti a uma peça de teatro eu tinha por volta de 4 anos, se não me engano, quando ainda era morador de Campinas. Fui levado pela mão de minha mãe para assistir no Teatro Castro Mendes a uma adaptação infantil de Alice no país das maravilhas protagonizada por Myriam Rios num espetáculo, segundo lembro, no qual tudo era prateado. Minha mãe, na época, soube da chegada da peça à cidade por via de jornais, me informou por telefone e, como tantas outras pessoas, considerava este tipo de iniciação infantil às artes algo importante – quanta diferença com tanto do que se passou com a relação entre o teatro e seu público não muito tempo antes. O teatro pode ser parte da educação infantil, o que está longe de ser uma realidade perene. Daí por diante, minha convivência com o teatro ocorreu por aulas, condução escolar para novos espetáculos, cursos e atividades como ator amador que, no caso de serem somados, fazem a monta de uns 10 anos de atividade pedagógica. Minha prática como morador do Rio de Janeiro é bastante mais recente, mas muito mais intensa e que teve como colégio preparatório viver em outras cidades que 46 pouco me preveniram, por sua vez, sobre a experiência das muitas dimensões da Avenida Rio Branco. Embora soubesse da máxima de “olhar para os dois lados antes de atravessar”, vi que a Av. Rio Branco tinha mais lados que um número dois pudesse agüentar. Mas o fato geométrico de a rua ter ao menos dois lados sem dúvida me permite novas deduções. Ressoavam, ao mesmo tempo, as palavras sobre a vida mental nas grandes cidades, tornadas um risco sensível logo após a saída da estação de metrô do Largo da Carioca, que está no mapa, mas ainda não fazia sentido como lugar. Era um ponto num risco num mapa cujo único preparo fornecido era a de um percurso possível. Diante destas peculiaridades posso dizer que sou qualificado como nativo. Há condições de eu ser meu próprio informante. Desde os mecanismos de encontro até as formas práticas de saber o teatro tem aqui representação. Bastaria, portanto, eu decidir o que fazer, isto é, finalmente escolher com quem e quando realizar uma pesquisa de campo, ou simplesmente recorrer a minha biografia. Contudo, além do já apontado sobre as dificuldades da segurança ontológica das etnografias em meio próprio, há mais algumas dificuldades que considero importantes, como: a) dada minha proposta de pesquisa original, eu deveria acompanhar um trabalho qualquer do começo ao fim que como veremos, não é bem um estudo de caso, o que deve coincidir entre um tempo hábil meu e um tempo próprio para o trabalho dos atores; b) as várias alterações que o teatro realiza acerca de sua definição – e aqui surge uma nova aporia, pois há problemas conceituais e de transmissão de imagens – que dificultam basear qualquer foco de trabalho em uma escolha pessoal, mesmo que objetiva; c) a definição por sua vez é, hipoteticamente, resultado da própria rede de encontros e fazeres que eu me proponho a descrever, o que evoca permitir que as tensões constituintes me guiem sobre os problemas que se reservam a quem faz teatro. Diante disso, e munido com o que muitos amigos, colegas e professores tinham conhecimento adquirido de uma ou outra faceta do teatro, me permiti ouvir propostas sobre o que fazer e a quem procurar, como já relatado. Por falta de disponibilidade – cumpria quantidade considerável de créditos das disciplinas obrigatórias – não poderia simplesmente dispor de uma quantidade enorme e inconstante de tempo para uma pesquisa de campo. Assim, me permiti simplesmente assistir e tentar conhecer algumas pessoas que constituem o que é chamado meio teatral – o que me leva mais uma vez a supor que neste meio vivem seres suficientemente singulares, mas profundamente integrados ao tráfego que gera caminhos os mais diversos que perfazem as cenas urbanas da cidade do Rio de Janeiro. 47 Ao invés de perguntar sobre quem pesquisar, pedi informações sobre quais peças eu deveria assistir antes que viesse a escolher. O tempo despendido nesta operação de sorteio sugere algo como um banho-maria necessário para acompanhar alguns ritmos diferentes, como o da espera antes dos espetáculos, as diferentes recepções em cada sala, e da composição do público tal como ela se dava aos olhos. Desde o princípio todos estes informantes, aqui um tanto sem nome, apontavam peças e endereços que se firmaram aos poucos como referências de campo. A visita repetida às peças, eventos e debates, culminaria hipoteticamente em encontros igualmente repetidos propiciando uma ou outra conversa. Mas ao contrário do que vi acontecer, a variedade de pessoas era suficientemente constrangedora a esta abordagem, dada a combinatória necessária para que houvesse qualquer coincidência razoável. Fiz valer qualquer evento fortuito seguindo somente uma restrição e regra, a única que minha agenda permitia: seguir rumo ao teatro. Mas não só quando havia peças de teatro em exibição no exato momento em que eu estivesse presente. Um problema que escapa às considerações usuais sobre a vida teatral, com exceção do registro de alguns diários autobiográficos, é que estes edifícios possuem uma vida administrativa operante mesmo em dias em que não há espetáculo e que, ao mesmo tempo, há espetáculos que ocorrem em teatros que não são teatro, como é o caso do teatro de rua. O teatro João Caetano (Praça Tiradentes, s/ nO., Centro), localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, a menos de um quarteirão da instituição que me selecionara para uma vaga de seu Programa de Pós-Graduação, tem como programação de atividades shows musicais populares, isto é, acessíveis até para quem não pode se comprometer a gastar dinheiro nenhum com espetáculos, muito divulgada como atividade cultural, sugerindo que qualquer evento neste nexo espaço-tempo, acontece como forma de cultura o que, às vezes, soa à palavra indistinta. O teatro Cacilda Becker, no Largo do Machado, tem boa parte de sua programação devotada à dança, apesar de Cacilda Becker. Ligar nome e evento específico dificilmente me permitiria atravessar parte da cidade após uma aula qualquer, e atingir a esmo qualquer evento que coincidisse com o que buscava. É necessário saber coincidir tempo, espaço e ocasião na busca, coisa que não fiz sozinho. É articulando todo um sistema de referências que se permite este tipo de encontro entre pessoas que não se conhecem, mas se coordenam em prol da assistência, uma forma específica de gaming. Assistir na atual prática de espectadores disseminada denota uma certa atenção visual-auditiva, isto é, da prática de ir-ver algo ou de se por diante uma tela de projeções 48 audio-visuais, como o cinema e a televisão, com fins de experiência do tipo we rationale. Ter assistido algo evoca esta modalidade. Contudo, conota uma operação sutil, mas nada invisível, e que é da gênese do problema da arte burguesa: a assistência a qual o público devota ao artista ao pagar a entrada, por exemplo. Se esta relação pode parecer espúria, deixa de sê-lo quando remontamos a história da arte até a fundação do público burguês. A biografia sociológica de um Mozart que envelheceu pobre na falta de público pagante, por Elias (1995), a configuração histórica do ofício do ator e a dissolução das regras de corte descritas por Jean Duvignaud (1972) e a gênese histórica do que Bourdieu chama de campo artístico de consumo circular (2003) – além do fato de “assistir” e “assister” (em francês) serem cognatos, inclusive em sua polissemia, e de em inglês “to assist” ser referente somente à piedade, isto é, à ajuda – apontam elementos suficientemente fortes para sustentar esta hipótese, que fica um pouco menos fraca. Isso porque se estabelece ao ato físico-auditivo uma forma de compleição moral que destina ao que se assiste uma gama complexa de agências que situam as relações partícipes de formas como a piedade e compaixão que, no limite, definem uma modalidade de circulação de valores e produtos, assim como os horizontes de futuro e de sociabilidade se entrelaçam no simples ato de se impor um espetáculo digno de pagamento, isto é, de assistência23. Assim sendo, passei o ano de 2006 e o de 2007 assistindo peças de teatro, buscando sempre comprar ingressos antecipadamente e chegando com uma ou duas horas de antecedência para ver o que se passa; fui a debates e participei de eventos nos quais chegava igualmente cedo. Assisti por volta de 20 espetáculos diferentes, alguns destes mais de uma vez, com o intuito de não somente aprender a participar dos encontros, mas também entender como acompanhar uma temporada coisa que, confesso, ainda não sei fazer. Uma temporada é tanto um ano quanto um período de apresentação de um mesmo grupo num mesmo lugar com uma mesma peça com prorrogações e encerramentos que se alternam, sendo a base da alternância o previsto em programações. Há ao menos dois calendários: o da instituição das vias de teatro e o da apresentação de espetáculos. Ao mesmo tempo, a identificação dos nomes e do que se faz especificamente apresenta critérios de distinção próprios do conhecer pessoas que 23 Para a investigação do extrato moral das formas de relação espetaculares e suas conexões entre justiça e piedade, vide Boltanski (1993); para uma revisão histórico-sociológica das formas de relação entre dignidade, comunidade e pagamento, vide Castel (1998); para um ensaio sobre as conseqüências objetivas do entrelaçamento entre pagamento, ethos e liberdade, vide Simmel (1987:345-373). 49 fazem teatro (Silva, 2004) e, ainda que posto num prisma exclusivamente dedicado a uma abordagem sobre formas de hierarquia social (Bourdieu, 2007), não deixa de imprimir outras zonas de efeito que permitem a correspondência entre pessoa e evento específico. A maior parte dos teatros/edifícios que freqüentei durante a pesquisa se localizava ou no Centro da cidade ou na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Esta circunferência tem por critério uma economia de tempo e comodidade concernente à relação moradia-compromissos obrigatória para com o Programa de Pós-Graduação com o qual tenho vínculos, e que ainda assim me permitiu à prática de assistência uma gama razoável de escolha de espetáculos a serem contemplados24. Assim, o SESC de Copacabana e o teatro Villa-Lobos (Av. Princesa Isabel, 440, Copacabana – Zona Sul), o teatro do Leblon (Rua Conde Bernadotte, 26, Leblon – Zona Sul), o teatro Poeira (Rua São João Batista, 104, Botafogo – Zona Sul), Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes – Centro), a Casa de Cultura Laura Alvim (Av. Vieira Souto, 176, Ipanema – Zona Sul), o Centro Cultural Telemar – hoje Oi Futuro – (Rua dois de Dezembro, Flamengo – Zona Sul/Centro), o Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66, Centro) e o Teatro Nelson Rodrigues do Caixa Cultural (Av. República do Chile, 230, Centro) foram locais privilegiados por apresentarem espetáculos que ora satisfaziam minha curiosidade como espectador, ora satisfaziam os critérios de indicação, oral ou impressa. Essas indicações participam de um regime de sentidos muito extenso e que valeria, por si só, todo um investimento de pesquisa, dado que não se trata somente de uma relação linear de um telégrafo eficiente que consegue, absolutamente, dar seu recado. Há uma série de problemas importantes acerca da possibilidade de levar adiante uma indicação que evoca momento, reputação do indicador, o conhecimento de quem ouve sobre os movimentos e endereços, a fidelidade da informação transmitida, etc. Ao mesmo tempo, este jogo que soa absolutamente contingente tem uma outra parcela 24 O Guia OFF de Teatro, que é distribuído gratuitamente todos os meses nos teatros e é editado pela OFF Produções culturais, lista 68 teatros na cidade do Rio de Janeiro, dos quais 58 se localizam no eixo Zona Sul – Centro (o que não é bem um eixo). Independentemente da formação teatral ter se dado em escolas diferentes que opõe lógicas de formação diante o mercado de trabalho a partir do binômio Casa de Artes de Laranjeiras/Martins Penna, como bem marca a argumentação de Silva (op.cit.), a convergência para locais diante o ofício teatral é clara, excetuando trabalhos que se dão fora de casas de espetáculo, que é um dos problemas que orientam esta monografia. Certamente esta diferenciação Zona Sul – Centro está longe de ser suficiente, mas também está longe de ser irrelevante, como veremos mais adiante. Vale notar que os dados do guia OFF de espetáculos é numericamente discrepante dos oferecidos por Silva (2003:228) a partir do Centro Técnico de Artes Cênicas/FUNARTE, que só para a região considerada contabiliza 85 teatros. Ignoro as razões desta discrepância. 50 importante que excede os movimentos de conversa que são os artifícios de saber articular e corrigir informações, de confirmar dados, de retransmitir os elementos na situação adequada, que são problemas relativos à memória, aos endereços e às extensões temporais (dos ciclos repetidos das semanas, dos anos que seguem, do tempo de espetáculo). Esta gama de coordenadas e implicações também participa do ato de conhecer pessoas25, que sugere, inclusive, que haja uma curiosa relação entre assistência, vizinhança e o conhecimento de pessoas que dá forma, jurídica inclusive, ao processo histórico das relações de produção, isto é, do trabalho. Não seria diferente com o teatro, principalmente a partir do momento em que atuar é também um tipo de atuação profissional (Castel:1998). Um segundo ponto é de suma importância aqui, pois do assistir desdobram-se problemas de visibilidade e acústica: é sobre perspectiva linear e das formas de apelo que tornam a relação de pagamento profundamente complexa, inclusive no que diz respeito ao financiamento das atividades por pessoas (físicas e jurídicas) em suas mais diversas formas: do apoio cultural ao patrocínio, dos ingressos pagos aos convidados. Visibilidade e assistência constituem um par importante a esta altura, pois culminam em algumas das instituições teatrais propriamente fenomenotécnicas e, por conseqüência, alguns dos desafios que a criatividade artística deve confrontar. Os nomes de teatro, índice de endereçamento, por sua vez, são importantes para que possamos perceber dois elementos centrais para que algo da vida teatral emerja. Em primeiro lugar, a presença de nomes próprios como forma de gerar referência própria do batismo de prédios é um duplo modificador, pois dá nome a edificações e forma homenagens ou aponta condutas ético-estéticas, como o fazem também nos nomes de condomínios, parques, praças e palácios. Os atos de nome, forma de gerar referência, fazem tanto pela possibilidade de emitir coordenadas num mapa, como quando se procura um endereço, quanto nos permite relatar uma história que repita o nome dado. Há também localidades que têm como nomes uma referência a uma segunda coisa, a uma instituição que faz do estabelecimento que visito para assistir uma peça um ente beneficiado. O SESC, o Banco do Brasil, a Telemar (propriedade da Oi, de telefonia celular) e a Caixa Econômica Federal não são público-espectadores, mas prestam assistência. O fazem, antes de qualquer interesse ou dever (são duas estatais, uma agremiação comerciária e uma empresa privada), por que podem. Fazem parte do 25 Para uma investigação da moral implicada no ato de compartilhar e indicar situações de assistência, vide Boltanski (1999:cap. 03) 51 regime de possibilidades das pessoas: pessoas podem fazer coisas e pessoas com coisas e pessoas. No caso são todas pessoas jurídicas, agências que fazem o mapa das artes, como veremos. São, fundamentalmente, efeito de agência impessoal. O que os nomes de teatro/edifício oferecem neste momento é a diferenciação de nomes próprios, de nomes de pessoas, ou de nomes artísticos, não diferenciados por qualquer plano jurídico, mas pela constituição da relação fama/anonimato. É possível ser anônimo mesmo tendo um nome. E o nome anônimo é um problema aos que querem ser assistidos, uma vez que se não é um nome importante é irrelevante, indiferenciado, por quem se há de manifestar assistência, isto é, quem é digno? Qual é a diferença entre Heitor e Villa-Lobos? Não imagino qualquer medida para esta pergunta, que é absurda, mas um edifício grande que comporta três salas de espetáculo (uma delas de dimensões suficientes para comportar uma quantidade de pessoas contabilizadas como uma das melhores bilheterias de 2006; vide figura 01) e uma bela escadaria em endereço nobre, a dois quarteirões da praia de Copacabana permite afirmar que uma diferença possível, além da composição alfabética, é o batizado de um teatro/edifício. Ao que parece, VillaLobos é mais diferente (distinto?) do que Heitor. Mesmo morto, há poder de ação por via de seu nome, que classifica o endereço em um plano de relações. Fig. 01. Planta Baixa da sala Heitor Villa-Lobos (463 lugares); Fonte: site FUNARJ 52 1.5. O sujeito da ação, problemas de agência. No capítulo 5 de O pensamento selvagem, Lévi-Strauss se pergunta, após haver demonstrado a impossibilidade de qualquer constante substantiva entre grupos sociais e grupos naturais na confecção dos totens, sobre os recursos de analogias possíveis num sistema global de referência que possam operar contrastes que, no caso, definem séries naturais e séries culturais. Considerando o sistema classificatório uma forma de mediação lingüística, a diferenciação entre categorias abstratas e categorias nominais oferece o horizonte desafiador que é o de aproximar o abstrato ao cultural e a contraponto, o nominal oferece a vertente natural. No entremeio semiológico, o programa lévi-straussiano segue: “O fato significativo é menos a presença, ou ausência, deste ou daquele nível que a existência de uma classificação “de passo variável” que fornece ao grupo que a adota, sem mudar de instrumento intelectual, o meio de se colocar “no ponto” em todos os planos, do mais abstrato ao mais concreto e do mais cultural ao mais natural.” (1997:156) Se por um lado os problemas de totemismo soam profundamente distantes da realidade etnográfica que investigo, e o são, por outro, figura num dos dilemas da especificação por nomenclatura que apontam ao endereço de perspectiva wayfinding o tipo de operação que permite “passar da unidade de uma multiplicidade à diversidade de uma unidade.”(id.ibid.:157) que, no conjunto das especificações faz dos utensílios de encontro uma apresentação de suas linhas constituintes, algumas delas forças de distinção social, manifestação das descontinuidades do real tão expressivos na obra do antropólogo. Mas é difícil identificar sob quais séries um nome próprio aplicado a uma classe de edificações permite distinguir nos sistemas de diferenciação entre análogos das séries de natureza e de cultura. Sabendo que natureza e cultura não dormem em noite tranqüila, o que me importa aqui é o valor operatório dos nomes próprios como definidores de locais que, seguindo ainda Lévi- 53 Strauss, destotaliza a espécie classificatória e levanta aspectos parciais do indivíduo lógico que evoca, não precisando muito para sugerir formas dinâmicas de conexões parciais (Strathern, 1991). O caso de um teatro como o Cacilda Becker ou o Villa-Lobos traz à tona uma dificuldade e uma constante a respeito das variações sobre os nomes próprios que, por fim, parecem articular categorias as quais não pertencem e que são subordinados aos sistemas que articulam. O teatro, na forma de edifício, não é a pessoa que evoca, mas na manutenção da função de apresentação, sendo a primeira o próprio edifício a ser explorado em suas linhas arquitetônicas ou em sua beleza relativa, há de se erguer uma analogia de efeito característico de uma homenagem. Nomear, caso algum sentido da palavra consagração faça sentido efetivo, em algo tem a ver com o tipo de correlação metonimizante que faz do teatro nomeado mais próximo ou mais afastado do cânone evocado. “Quando uma personalidade morre, o que desaparece consiste numa síntese de idéias e de comportamentos tão exclusiva e insubstituível quanto a operada por uma espécie floral a partir de corpos químicos simples usados por todas as espécies. A perda de um parente ou de uma personagem pública – a homem político, escritor ou artista – quando nos atinge o faz, portanto, da mesma maneira com que sentiríamos a irreparável privação de um perfume, se a Rosa centifolia fenecesse. Desse ponto de vista, não seria falso dizer que certas formas de classificação arbitrariamente isoladas sob o rótulo do totemismo conhecem um uso universal: entre nós, esse totemismo apenas se humanizou. Tudo se passa como se, em nossa civilização, cada indivíduo tivesse como totem sua própria personalidade: ela é o significante de seu significado.” (Lévi-Strauss, op.cit:239) Esta passagem evidencia dois problemas sobre os nomes de salas de espetáculos próprios de artistas falecidos de vulto. O primeiro é da ordem da aliança ascendente que designa formas arquetípicas, ou fontes privilegiadas, de agência 54 artística fundada na elaboração de pureza artística do tipo “Villa-Lobos, o grande compositor modernista brasileiro” que, a despeito dessa face, parece ser irrelevante ter sofrido de gota ou apresentar qualquer traço desprezível, o que pode ser central para uma história entre o sofrimento físico e as artes. Vale mais ser modernista ao deixar com que as linhas do edifício correspondam com a sua fonte pessoal, pessoa esta o relativo Heitor Villa-Lobos. A pessoa se torna um tipo, isto é, se apresenta em parte de si, somente se correspondente ao arquétipo. Mas a relação é mais complexa e diz respeito aos artistas que têm acesso efetivo a casa, ao montante do financiamento necessário e ao tamanho mínimo de espetáculo no que tange à platéia esperada. Assumir um espetáculo num teatro como o Villa-Lobos significa se alinhar com necessidades de divulgação, formas de linguagem próprias a encontros de grande porte, enfim, cumprir uma série de obrigações pragmáticas que apresentam que parte de Villa-Lobos o teatro que segue existindo continua a portar. Possivelmente, permite a aplicação do adjetivo “grande”. O desrespeito ao complexo espaçotemporal, especialmente se há vínculo entre venda de ingressos e tentativa de lucro, culmina em fracasso. Há de se produzir grandezas compatíveis. (Figura 02.Teatro Heitor Villa-Lobos, Av. Princesa Isabel, Copacabana, 440; “Construção de arquitetura moderna, assinado pelo arquiteto Rafael Perez, realçando a linguagem do purismo (anos 60 e 70), com uso do concreto armado aparente” – texto e imagem: site da FUNARJ) O segundo problema apontado é o da humanização totêmica, que abre espaço para que linhagens de trabalho, ou ascendências da ordem da afinidade ou aliança, possam ser pensadas, tanto nos termos de uma influência fantasmagórica no sentido aplicado por um Harold Bloom (2002) e seu “Shakespeare demiurgo da humanidade”, 55 até no que diz respeito a mecanismos privilegiados para e na mediação, que operam situações de negociação que convergem diferentes momentos na constituição de modos de tempo futuro, como do tipo de evocação de autores e dramaturgos que dão base a orientações quanto aos trabalhos em realização: as produções. 1.6. O primeiro encontro: coordenadas Dos dias 3 a 27 de agosto de 2006 o teatro Nelson Rodrigues hospedou, em curta temporada, a peça Avenida Dropsie, cuja montagem a Sutil Companhia de Teatro realizou, dirigida por Felipe Hirsch, fora razão de alvoroço na imprensa especializada, o que culminou em uma série de apresentações com a casa cheia. Alguns elementos eram destacados: tratava-se de uma adaptação26 de uma graphic novel27 de Will Eisner. O cenário era grandioso, o elenco conduzia o ritmo das cenas com precisão e tranqüilidade e a cenógrafa Daniela Thomas fazia, literalmente, chover no palco28. Como muitos 26 Se o presente esforço em apresentar a abrangência da linguagem das técnicas soa a exagero, a palavra “adaptação” carrega uma história particularmente sugestiva dado que ela marca profundamente o debate sobre a evolução das espécies – em especial sobre vulgatas do darwinismo – além de apontar para a recente reformulação eletro-eletrônica dos recursos de hardware, que já denotou simplesmente ferramentas, e hoje participa do tipo de recurso de validade adaptativa dos plugs, da voltagem e dos tipos de mecanismos de junção/conexão. Se isto ainda soa um problema falso, basta retomarmos a história do teatro moderno para percebermos que adaptar não é uma atividade que se valha por si só, sequer como recurso. As poéticas que antecedem a modernidade não fazem menção expressiva deste tipo de atividade (vide Carlson; 1997) tanto porque não faria sentido. Contudo, apontarmos para o jogo adaptativo que o ofício teatral se permite, que se caracteriza por um enredo das extensões possíveis, a presente caracterização de procedimentos teatrais tem mais chance de credibilidade. Afinal, parece que uma revista em quadirnhos, unidimensional pousada num tablado, mesmo que no proscênio, não sobreviveria. Como segundo desdobramento, vale apontar a suscetibilidade das artes a serem submetidas a análises organicistas e vitalistas. A manifestação do simbólico não se encontra divorciado das fontes orgânicas de energia e movimento, lembra-nos a psicanálise, o formalismo, o bergsonismo, o idealismo, o romantismo. 27 Revista em quadrinhos de temática considerada literária. Esta modalidade, cujo criador é exatamente Will Eisner (autor de Avenida dropsie), é considerada a fundação de uma nova linguagem no mundo dos quadrinhos pelo teor de suas histórias, matéria de meninotes até o pós-guerra. 28 Todas estas informações estão presentes na filipeta publicitária da peça, objeto sempre distribuído aos que a assistem. Este papel, nem sempre dobrado, contém inúmeras informações que sugerem a circulação dos seres que constituem a paisagem teatral. No caso, uma fotomontagem com os atores devidamente caracterizados e em cena postos juntos ao título da peça. Dentro da dobradura um extenso texto sobre Eisner escrito por Felipe Hirsch (o diretor), além de 14 parágrafos copiados de 14 diferentes fontes jornalísticas enaltecendo as qualidades da presente montagem. Nas costas da dobradura consta a ficha técnica (quem fez e responde pelo quê), o apoio cultural (que também é um apoio financeiro, mesmo quando não envolve dinheiro; pode ser uma refeição gratuita que implica no adiamento de gastos) e detalhes para contato caso algum leitor queira mais informações concernentes ao trabalho ou aos trabalhadores envolvidos. 56 consideravam o evento importante, e eu sou admirador de Will Eisner, assisti-os. Foi meu primeiro encontro com minha primeira informante. Carmen era então aluna da graduação da UNIRIO. A conheci na fila da bilheteria do teatro Nelson Rodrigues. Bem a tinha percebido e ouvi sua conversa com a bilheteira. Perguntou quais bons lugares permaneciam disponíveis, uma vez que a peça vinha de divulgação importante sugerindo haver concorrência pelos assentos. Pediu esta informação por não conhecer a sala, condição a qual compartilhava. É via de regra que um dos valores constitutivos da ida ao teatro de palco italiano é a visibilidade do que se apresenta, o que transforma um bom lugar em um problema geométrico. O esquema reproduzido nas salas de espetáculo que segue a cena italiana o faz repetindo as constantes cúbicas de elaboração de profundidade do palco e do cone projetado para seu lento estreitamento, permitindo à cenografia alguns artifícios de illusio, isto é, formalizar distâncias entre objetos como se os objetos estivessem separados pela mesma distância. Mesmo não usufruindo as possibilidades de atualização desse jogo de armar, ele se encontra disponível. Bastaria, como sugeriu Diderot (1986[1758]), dispor as peças e formar um quadro. Considerando a relação privilegiada entre fileiras de cadeiras distribuídas uniformemente e um ponto de fuga que contemple igualmente as extremidades do bloco de assentos, o ponto de fuga se situa ao centro da razão bloco de cadeiras:palco29, caso se considere o proscênio como a hipotenusa de um triângulo retângulo isósceles, figura plana do cone tridimensional. A referência ao sistema que coordena a definição do espaço representativo segundo formas geométricas precisas que define o campo de visão segundo universais de profundidade e afastamento, assim como em sua disposição e proporção adequadas à posição do observador que induz a distância real entre os objetos a partir destas coordenadas constantes é melhor contemplada na seguinte passagem de Panofsky (1993:54): “A descoberta do ponto de fuga, enquanto “imagem dos pontos infinitamente distantes de todas as ortogonais”, constitui, num determinado sentido, o símbolo concreto da descoberta do próprio infinito. Porém, outro aspecto relevante desta 29 Para uma história da absorção da cena à italiana na arquitetura do teatro, vide Duvignaud (1966:216232) e Kernodle (1936). O livro dirigido por Daniel Couty e Alain Rey (1981) apresenta uma iconografia rica e indispensável. Para uma absorção das proporções e coordenadas, basta um exercício com a figura 01. 57 quadro reside no sentido totalmente novo que confere ao plano de fundo enquanto tal. Este plano deixa de ser apenas a superfície inferior de uma “caixa espacial”, fechada à direita e à esquerda, cujos limites são definidos pelos cantos do quadro. Torna-se a superfície do fundo de uma faixa de espaço que, embora esteja delimitada atrás pelo tradicional fundo dourado e, na parte, pelo plano do quadro, se pode considerar como um prolongamento arbitrário para qualquer dos lados.”(...) “O quadro transformou-se numa simples “fatia da realidade”, no sentido em que esse espaço imaginado se propaga em todas as direções, ultrapassa o espaço representado, sendo, exactamente, o caráter finito do quadro a chamar a atenção para a infinitude e continuidade do espaço.” (id,ibid.:57). Poltronas numeradas permitem toda uma ordem de decisões e antecipações de espaço e zonas de interesse, perspectivas do inédito – ou da repetição, quando se assiste duas vezes ou mais na mesma sala, em um registro que liga número, letra (coluna e linha, respetivamente) à ambiência fora de lugar por via de quadrantes. Comprar o ingresso numerado pode se transformar em um exercício de memória do geômetra, que no caso se faz simultâneo ao/à comprador(a) ou ao (à) bilheteiro(a), mas sempre operando pela regra dos quadrantes, tão comum na indexação cartográfica. Não por acaso a bilheteira, quando diante do hiato de decisão de Carmen, mostrou um mapa das cadeiras disponíveis (as não disponíveis tem seus números destacados e colados no bilhete do comprador se fazendo ausentes no mapa, dado que já atualizados na posse temporária do comprador) apontando para as posições de melhor visibilidade. As cadeiras numeradas são eixos de ordenadas e abcissas nem sempre correspondentes para o comprador do bilhete, que pode não dominar o acervo técnico necessário (é enorme a quantidade de pessoas que se perdem ao procurar seus lugares, que são alugados, isto é, de posse temporária), mas é instrumento sempre disponível à compra. Os lados pares e ímpares informam por sua vez que o teatro possui uma metade – no caso da sala Nelson Rodrigues –, uma divisão simétrica de colunas (ímpares à direita, pares à esquerda) cuja convergência do 1 e do 2 culminam na coluna do centro de qualquer linha alfabética, a precisa convergência que situa os bons lugares, próximos da representação simétrica do infinito. Uma vez memorizado, é possível decidir o lugar que se quer à distância, sem vizinhança, como por telefone, por exemplo. Mas nem Carmen nem eu conhecíamos a sala. De quê adianta um mapa se ele não corresponde a qualquer trajetória conhecida? A bilheteira nos serviu de guia. Há de saber a visibilidade 58 que um quadrante oferece, especialmente quando todos os lugares centrais – os melhores segundo a regra da perspectiva linear, fundamento das salas modernas de teatro – estão ocupados pela seleta ocupação de espectadores convidados, como fora o caso de Antônio Fagundes, que é tanto um ator quanto um endereço; Teatro Antônio Fagundes. Esta cena é quase uma matryoshka. Quase. Carmen comprou o ingresso segundo a indicação da bilheteira. Eu havia visto a numeração. Pedi o ingresso ao lado, dada a garantia reservada à Carmen. Paguei metade do valor devido à carteira de estudante, o que me permite despender metade do sacrifício de um cidadão ordinário – esta é uma daquelas situações em que há o cidadão extra-ordinário. Saí da bilheteria com o ingresso da poltrona J19 nas mãos, que me custou R$15,00 (pouco mais que 1% do que disponho mensalmente para a pesquisa via CNPq), e me encaminhei para a Avenida Chile. Logo na saída do teatro, recostada na parede, estava Carmen, com um mapa na mão. Rodava-o estendido diante os olhos. Ao responder minha oferta de ajuda, disse estar procurando o caminho para o Centro Cultural Banco do Brasil e encontrava dificuldades. É moradora de Niterói. Não sabia encontrar o caminho. O mapa em questão é de distribuição gratuita. Porta o título Mapa das artes Rio de Janeiro, editado em São Paulo com tiragem de 30.000 exemplares (10.000 em inglês). Não obstante, este mapa datado de 2004 teve uso em 2006. Esta informação é relevante exatamente porque o objetivo fundamental deste instrumento não é de simplesmente apontar caminhos possíveis na cidade do Rio de Janeiro – lembrando que, em geral, mapas urbanos apontam caminhos rodoviários e linhas ferroviárias, e não para pedestres, o que geraria um tipo de registro um tanto diferente; para ir do Largo São Francisco de Paula até o teatro Nelson Rodrigues existem atalhos, coisa que mapa algum se esforçaria por... mapear. O mapa em questão buscava também apresentar ao usuário caminhos específicos para: a) museus e centros culturais (identificados por pontos azuis), b) galerias e escritórios de artes (pontos cor-de-rosa), c) espaços institucionais (pontos verdes) e d) ateliês, serviços e outros (pontos cor-de-laranja), embora registre somente vias de médio e grande porte, salvo os detalhes de ampliação30. Cada um dos itens é acompanhado por um texto descritivo sobre as instalações, serviços prestados e exposições em cartaz. Estas que são categorias impressas no mapa 30 Há disponível uma versão on-line do mapa: www.ferstman.com . É sugestivo que a apresentação de um sistema de endereçamento que é um mapa de uma cidade, ou de parte dela, esteja disponível num sistema de endereços ausentes da necessidade de vizinhança. É tanto o caso dos mapas quanto o acesso eletrônico de rede. 59 com códigos de cores que apontam analógica e criteriosamente em pontos (a menor unidade geométrica euclidiana) o lugar mapeado referente à classe de lugar apresentam um mecanismo muito usual; os quadrantes, tal como nas cadeiras cativas do teatro Nelson Rodrigues, para o caso de não haver um guia sequer, wayfinder. Colunas em alfabeto, linhas em números, apresentando o Centro da cidade (composto também pela Lapa, Santa Teresa, Glória e a Saúde) em um outro mapa ampliado no canto superior esquerdo. O mapa ampliado (classificado como DETALHE, em vermelho) seria uma repetição perfeita não fosse a ausência do código de cores que caracteriza o mapa integrado da cidade, ausência suprida pela ampliação. É com um mapa de 2004, que tem como ênfase topográfica o circuito das artes plásticas, que Carmen procurava o Centro Cultural Banco do Brasil (localizável em D1, 69). Retomando: Centro Cultural Banco do Brasil, rua Primeiro de Março, 66, Centro, D1/69. Sem procurar induzir qualquer raciocínio de Carmen, não é possível encontrar qualquer marca específica do tipo VOCÊ ESTÁ AQUI que tanto fora possível ver nos mapas fixados em tripés nos shopping centers, hoje extintos em prol da lógica da circulação de consumidores. Diante de um mapa é preciso saber tanto de onde se parte quanto para onde se vai e por qual caminho, assim como por quais meios se cumpre o trajeto, dado que estes meios constrangem ou impedem caminhos possíveis. Os riscos do caminho também são adequados, mas riscos não se fixam. Como disse, o mapa das artes é um mapa das vias de automóveis, metrô, bonde e trem. Carmen se encontrava a pé. É impossível conseguir diferenciar, a partir do mapa exclusivamente, uma praça menor (como a do Buraco do Lume) de um conjunto de edifícios. É preciso que o usuário esteja apto a articular, se pôr em correspondência, com as atividades de localização que impõem, inclusive, saber articular o sem número de pontos cegos que fazem do mapa um mapa, e não o próprio caminho. Dir-se-ia se tratar de uma representação, mas representação de quê? O mapa está no lugar do caminho ou de algo distinto? O que o mapa representa e, talvez tão importante quanto isso, quem ele representa? E mesmo sabendo quais são as regras de funcionamento do mapa, como Carmen pôde se perder nele? Não fora nele que se perdeu, mas no meio do caminho entre mapa e paisagem. Não seria absurdo dizer que o mapa é um objeto com funções identificatórias, propiciando ao usuário a possibilidade de encontrar lugares sem nunca ter se deparado com ele. Isto significa que, diante critérios comuns de referência e proporções, nele se vêem fixas relações de lugares sem serem a configuração mesma de espaços em regime 60 de co-presença, sem os lugares mesmos estarem de forma alguma figurados, como a ressalva de Gell (1985) aponta. Mas a complicação se aprofunda quando análogos mapeados não se encontram no espaço de trânsito, como sói acontecer, o que impõe ao usuário uma série de atitudes, lembrando que se o agente é um usuário potencial significa que ele detém recursos que o habilitam a recorrer a este artefato. Michael Baxandall, em seu trabalho sobre o olhar renascentista sugere o conceito de estilo cognitivo, caro para Alfred Gell, para definir a relação das relações que se fazem ao definir as propriedades representativas de um desenho específico. Olhando uma planta baixa de uma torre, cuja definição gráfica se dá na sobreposição de um círculo sobre um retângulo; nesta sobreposição o círculo está centralizado na figura, o retângulo tem nas linhas laterais de extremidade direita e esquerda uma pequena descontinuidade regular aos dois lados; o círculo por sua vez é descontínuo no ponto extremo direito e, nesta descontinuidade, se liga a um retângulo interno igualmente descontínuo. “A percepção que possamos ter dessa configuração dependerá de muitos fatores – em particular do contexto da configuração, que no momento se encontra voluntariamente suprimido - , mas não menos das capacidades interpretativas de cada um, das categorias, dos modelos e dos hábitos de dedução e analogia” (1991:38) O que, por sua vez, constituem disciplinas, formas de obediência às formas. Afinal, as linhas brancas grosseiras sobrepostas aos polígonos acinzentados no mapa das artes não é outra coisa senão uma variante deste problema no qual, como sugere Gell (op.cit.), nenhuma representação figurativa toma lugar. Isso vale para o mapa das artes na medida em que, na apresentação de proporções de uma vista aérea, sugere por fim um sistema de perspectiva presumido, isto é, não-apresentado. A perspectiva já é uma coisa-do-mapa. Há de se respeitar o objeto e as conexões que promove, especialmente se sua objetividade é fruto exatamente de seu plano conectivo31. É nesta atitude diante do mapa que delineamos dois problemas importantes para a presente pesquisa que dão justificativa deste longo trecho sobre orientação, encontros e endereços. Em primeiro lugar ela dá ensejo a uma abordagem particular sobre o desencantamento do mundo, tal como Certeau (1994) nos apresenta. Em segundo lugar, 31 Sobre a conectividade da escrita e os desdobramentos propriamente dispersivos das práticas que promovem o registro de formas da racionalidade moderna, ver Latour (1986). 61 porque nos permite ligar código e performance a partir de zonas indeterminadas de apreciação semântica que fazem do encontro um exercício de autonomia próprio das ações individuais, isto é, que só poderiam ser articuladas por um certo ponto de vista, como o de Carmen perdida e o meu, oferecendo informações por via da conversa interessada. Se o desencantamento do mundo opera uma desarticulação entre práticas de conhecimento científico e um sentido teleológico professado pelo mundo, tal como a ciência como vocação em Max Weber (1993) – tese a qual não pretendo rebater - a oferta de Michel de Certeau é de outra ordem, dado que performática. Num longo trecho de seu livro em que versa sobre a configuração dos mapas como objetos solitários e silenciosos – instrumentos estáveis (op.cit:235) - , afastados dos percursos (poderia dizer purificados, no sentido empregado por Bruno Latour [1997]), Certeau culmina numa reflexão sobre a escrita e a transformação dos espaços de locução que sua disseminação implica. No alvorecer da modernidade, datado entre os séculos XVIXVII, a escrita ainda teria como centro a sagrada Escritura que amarra ao mesmo tempo letra e voz, do cântico dos cânticos até a voz mediadora que faz dos “usuários” ouvintes de uma voz habilitada para ler, própria do sacerdote. Há pouco tempo que se lê em silêncio32: “Ora, por razões analisadas em outra instância, a “modernidade” se forma descobrindo aos poucos que essa Palavra não se ouve mais, que ela foi alterada nas corrupções dos textos e nos avatares da história. Não se pode ouvi-la. A “verdade” não depende mais da atenção de um destinatário que se assimila com uma grandiosa mensagem identificatória. Será o resultado de um trabalho – histórico, crítico, econômico. Depende de um querer-fazer. A voz hoje alterada ou extinta é em primeiro lugar esta grandiosa Palavra cosmológica, que se percebe não vir mais: ela não atravessa a distância das eras. Desapareceram os lugares fundados por uma palavra, perderam-se as identidades que se julgava que elas recebiam de uma palavra. É preciso guardar o luto. Agora, a identidade depende de uma produção, de uma 32 Esta que é uma afirmação de Certeau, “ler sem pronunciar em voz alta ou meia-voz é uma experiência “moderna”, desconhecida durante milênios” (op.cit.:271), pode ser confirmada em trabalhos como os de Roger Chartier (1998, 2001, 2003), Marshall Macluhan (1972) e Carlo Ginzburg (1987), e sugerem tanto uma mudança complexa da concretização da ação oral, assim como no aprofundamento reificador, tal como produção de objetividade, do horizonte da escrita. 62 iniciativa interminável (ou do desapego e do corte) que essa perda torna necessárias. Mede-se o ser pelo fazer.”(op.cit.:228) Não busco medir a profundidade desta citação, mas ater-me no sutil apontamento da evidência dos fazeres necessários para a localização que Carmen não cumpria apesar de ser versada nos métodos de aplicação dos meios necessários, evidente pela sua educação formal. Um mapa não é um objeto utilizável sem que se possa fazer uma leitura dele, em especial do tipo que se inscreve na forma de nomes de ruas, fundamento chave de sua decodificação, além de ser necessária uma articulação de relações básicas alfanuméricas e perspectiva fundando uma vista aérea simulada. Sem isso Carmen jamais poderia abstrair qualquer noção de VOCÊ ESTÁ AQUI, no caso evidenciado pela repetição: Av. República do Chile, tanto no mapa quanto em uma placa de rua. Nem pensaria em fazê-lo, dado que é uma requisição do objeto (imagine que você está voando...). Sem essa repetição o mapa seria um absoluto desperdício utilitário diante sua lógica dedutiva. Mas ainda assim este mapa é um instrumento razoável uma vez que ele é portador de um número de agências que inscrevem nele somente convenções (Becker, op.cit.) de lugar: nomes de ruas, encontros de esquinas, nomes de bairros, monumentos públicos e, obviamente, a localização precisa de galerias e outros endereços importantes para as artes plásticas por referências a quadrantes. É um mapa das artes, afinal. O sistema apontado do mapa (pontos codificados por cor, tipologias de lugares com listagem dos nomes específicos destes, desenho geométrico do entroncamento das ruas segundo a repetição de seus nomes e esquinas, quadrantes que referendam partes de bairro com os nomes específicos de lugares) exige que se faça leitura coordenada, permitindo que se diga que ele representa o mesmo sistema de ruas e entroncamentos que ajudam a gerar, quando em projetos (protótipos) arquitetônico-urbanísticos articulam, em diferentes graus de detalhe, um mesmo princípio de coordenadas que propiciam ruas e endereços. A diferença entre um mapa e uma rua é de grau, e não de natureza, dado que um mapa pode ser, pode ter sido, ou ainda é, uma rua, ainda que virtualmente. Como não se trata de um mapa da cidade, mas um mapa das artes na cidade, é possível pensar que em sua confecção haja o interesse em acompanhar as mudanças de temporadas que, tal como no teatro, caracteriza o ir e vir das exposições, a abertura e o fechamento de espaços. Isto implica em falarmos de, e com, um mapa que é também um 63 periódico, inscrito no agendamento de atividades, operação que propicia sincronia em âmbito massivo. Ora, o que tenho em mãos é a segunda edição, a de dezembro de 2004. No editorial o jornalista (e não geógrafo ou urbanista) Celso Fioravante assina um pequeno texto anunciando a mudança de alguns anunciantes – que não são apoio cultural; muito pelo contrário - , todos galerias de arte (com exceção de uma casa de leilões e da agência de design gráfico que é responsável tanto pelo mapa carioca como paulistano), que são a fonte de recursos financeiros, uma vez que se trata de um objeto de distribuição, e não de confecção, gratuita. Além de Fioravante e dos anunciantes, vemos citados, como colaboradores, mais seis pessoas, ocupando funções como redação, revisão, consultoria, assistência e fotografia de capa. Fioravante tem seu nome repetido em três funções: edição, redação e a curiosa marca de jornalista responsável cujo MTB é 18015 (sic), lembrando que esta locução destacada resolve ao mesmo tempo um problema jurídico de um objeto sob tutela (autoria e autoridade; autorictas) e permite falar sobre a qualidade da conduta do jornalista Celso Fioravante. Além destes envolvidos são citados o provedor de e-mail UOL, a Fonte Design, a Festman que publica o mapa na Internet, e a Gráfica Ipsis (que tem seu nome ao lado do tipo de papel e do montante de impressão). Considerando que se trata de um objeto final que busca atender orientações e valores de todos estes agentes mais os possíveis 30.000 da tiragem que ninguém sabe exatamente quem são (10.000 deveriam saber ler em inglês), não é absurdo sugerir que este é um mapa para todos e para ninguém, cuja imprecisão de remetente não deixa a dever a nenhum Zaratustra33. Seguindo alguns critérios acerca da pureza dos objetos (Latour, 1997) e da distribuição da pessoa (Gell, 1998), um mapa tem tanta agência, tantas pessoas envolvidas em sua purificação, que os critérios de máxima objetividade perpassam às formações coletivas que impedem a identificação cosmológica de um “quem fez”, o que é próprio do âmbito da pessoa jurídica, que implica em responsáveis, representantes de autoria – qualquer semelhança com o estatuto da autoria da encenação teatral (Roubine, op.cit), ou sobre a autoria cinematográfica não é mera coincidência. Mas isto diz respeito ao objeto enquanto coisa feita, e não como um elemento de relação então posto em relação, pois me parece que todo usuário de mapa deve ter consigo não 33 Na edição de maio de 2007 algumas alterações substantivas foram anotadas, como o acréscimo de 7 endereços considerados relevantes e uma redução de cinco mil exemplares, não sobrando qualquer tiragem para as edições em inglês. 64 somente um mapa, mas um corpo correspondente. Caso contrário, fica impossível superar o fosso de um instrumento silencioso, uma vez que: “(...) elaborar um mapa elimina, ou “extrai”, os movimentos de pessoas enquanto vão ou vêm entre lugares (descobrir-caminho), e também a recapitulação desses movimentos ou gestos de inscrição (mapear). Cria, desse modo, a aparência de que a estrutura do mapa surge diretamente da estrutura do mundo, como se o mapeador servisse meramente para mediar uma transcrição para outra. Chamo isso ilusão cartográfica. Um aspecto dessa ilusão reside na suposição de que a estrutura do mundo, tanto quanto a do mapa que pretende representá-la, esteja fixa, sem considerar o movimento dos seus habitantes. Como um palco de teatro, do qual todos os atores misteriosamente desapareceram, o mundo – como é representado no mapa – parece deserto, destituído de vida.” (Ingold, 2005:96) Encontrar um caminho, que abrange o sentido do método de fazer, ou uma forma de saber-fazer, não isola os objetos de orientação. Não se pode esquecer que os mesmos objetos, como os de propriedades cartográficas, não são a própria atividade de orientação, esta definida pelas matrizes de movimento, formas de tráfego e sua lógica, seu sentido, suas histórias. Para a definição da objetividade dos objetos problemáticos é possível voltarmos à prática da purificação que dá forma fenomenotécnica34 a este tipo de objeto a partir do que nos descreve Latour sobre enunciados tomados e vividos como fatos adquiridos (1997:77) tão apropriados à definição de Foucault (1997:89): “ (...) função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação.” 34 Latour chama atenção para a técnica reificada, absorvendo alguns critérios classificatórios de Gaston Bachelard. Este aporte visa dar conta da imediaticidade do recurso técnico dos aparelhos de laboratório. Imaginando que qualquer cidadão jovem é um cientista em potencial (lembrando que eu mesmo fora ator e hoje trilho as sendas do mundo científico sem qualquer salto ontológico mais profundo), qualquer purificação científica soa a elemento técnico potencial. Bem podemos arriscar sobre como o mapa das artes é resultado de toda a história da cartografia transformado em não-cartografia, mas em um acervo técnico público legível em alfa-numéricos de um jornalista. 65 Se o mapa em questão é um índice tanto de caminhos possíveis (e não dos caminhos mesmos) quanto de um enorme conjunto de índices de agência que apontam para uma generalidade, e não para qualquer especificidade, é razoável se perder uma vez que o sentido de um mapa como este é exatamente o de não apontar nenhuma trajetória específica para Carmen, a começar por não portar nenhuma inscrição do tipo VOCÊ ESTÁ AQUI, e nem poderia. O que não significa que ela não pudesse articular elementos do mapa de forma a vir a se encontrar diante dele estabelecendo as analogias necessárias para caminhar do teatro Nelson Rodrigues (Av. República do Chile, 230) até o Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66) em tempo hábil. Eram por volta das 15 horas e ela deveria voltar, assim como eu, até as 19 horas, horário do espetáculo. Sintopia e sincronia. Contudo, uma vez de volta ao teatro Nelson Rodrigues, o ingresso indica exatamente onde se deve estar: J19. A clareza do posicionamento de uma sala de cena italiana, cujo desenho respeita a ordem das coordenadas de visibilidade, aos poucos fora chocada com outras perspectivas, estas bem menos estáveis, apresentando coordenadas bastante menos definidas. Não bastando o libelo do teatro de rua, que pude tanto ler a respeito quanto ouvir, que vê no palco italiano a morte do teatro, outras situações se mostraram igualmente desafiadoras para esta descrição, como a do grupo que me aceitou como antropólogo residente, atividade posteriormente batizada como a de assessor teórico. Após o espetáculo no teatro Nelson Rodrigues no dia 17 de agosto de 2006, no qual fui convidado a assistir a um outro espetáculo pela mesma Carmen a qual guiei até a metade do caminho ao Centro Cultural Banco do Brasil, apresentava-se a possibilidade de uma pesquisa de campo pra valer. Joelson Gusson, diretor da peça, poderia abraçar a realização da presente pesquisa. Não fora de outra maneira. No dia 14 de agosto de 2006 fui à casa de cultura Laura Alvim assistir O que nos resta é o silêncio. A promessa de Carmen é a de que seria uma apresentação de um trabalho experimental, sem narrativa linear, isto é, qualquer tipo de encadeamento que ordenasse o começo, o meio e fim – o que, em outros termos, deixa a hermenêutica um pouco sem base para estabelecer a gênese, as mediações e a finalidade da ação dramática. Fica-se esperando Godot. Dispondo já do ingresso, mapa de apontamento de onde se está, localizando o assento, desaparece. O aluguel do assento na sala Rogério Cardoso não apresenta numeração nenhuma. Somente o dia e a hora do espetáculo, além da indicação do nome o qual se deveria buscar entre os vários cômodos batizados existentes na edificação. As ruas se estendem porta adentro em forma de corredores e as 66 placas de endereço admitem a identificação pela repetição. A sala Rogério Cardoso é um endereço dentro do endereço e isto se pode deduzir. Figura 03. Sala Rogério Cardoso; palco preparado para espetáculo musical; Fonte: site FUNARJ. A clareza das regras, estas do tipo dedutivo no qual há de se encontrar aquilo que se espera, evanesceu quando entrei para assistir o espetáculo. Uma saleta de paredes negras, com teto baixo e pouco mais de dez metros de cumprimento em pouco correspondia com a paisagem escondida dentro de um teatro como o Nelson Rodrigues. Quase sem espaço e luz, bastante asfixiante, e cadeiras ao redor do proscênio, e não à frente, esboçando um confronto entre pagantes e assistidos. O programa distribuído na entrada da Casa Laura Alvim cumpria a requisição de apresentar a apresentação futura. A rede de agências de financiamento e apoio cumpria a demanda por publicidade. O Governo do Estado do Rio de Janeiro e sua Secretaria do Estado de Cultura, pela ação da FUNARJ, recebem destaque no evidenciamento das forças que suportam a apresentação deste espetáculo para maiores de 18 anos. Focando na articulação das regras formais de localização em situação de movimento, o programa apresenta o quê? Apresenta algo mais do que um mapa ou um ingresso? Especifica onde se está, gerando outra sorte de sentidos que não somente o topográfico ou administrativo. Considerando que o ingresso para a sala Rogério Cardoso não oferece lá grandes garantias de localização, uma leitura mais detida do texto informativo do programa da segunda temporada de O que nos resta é o silêncio oferece indícios mais específicos quanto a que se passa: 67 “Eu tinha algumas questões. Queria falar sobre escolhas, e como podemos influenciar a nossa vida e as de outros com pequenos atos. É um pensamento quase budista: de que nós somos feitos de simples escolhas cotidianas. Um outro ponto que eu queria tocar era o silêncio.” “...o silêncio que pretendo aqui delimitar não é aquele que antecede qualquer palavra um querer dizer mas, antes disso, é aquele que se situa depois da palavra quando não só as respostas, mas também as questões vêm a faltar. Falo do silêncio como impossibilidade real de representação, como discurso detido... É a falência da ilusão, a corrosão de um discurso levado à ultimas conseqüências, à maneira do ponto de fuga nas perspectivas.” (Do ensaio “Espiral do silêncio: a clínica do real” de Graziela Ribeiro dos Santos Costa Pinto)” “No início de 2005 propus aos atores desse trabalho no qual cada um deveria criar um personagem que lhe possibilitasse falar de questões relevantes para ele mesmo. Durante quatro meses nenhum dos atores sabia o que o outro estava construindo e a única informação comum era que determinada noite essas personagens estariam juntas num fim de festa. Criei então algumas conexões entre elas e ensaiamos por seis meses sem que essas personagens se expusessem abertamente. A vida não é assim? Quem nós conhecemos realmente?” “O resultado cênico aparece como um flash dessas relações, sem a problematização nem o desenvolvimento de um conflito ou estória central. É como se o espectador, através desse flash, pudesse intuir todo o resto e criar a sua própria versão da estória. - Joelson Gusson” Mas o texto não oferece muito para a prática de deduções, ao menos no que tange os objetivos de descrição do encontro teatral. Daqui por diante outra espécie de raciocínio me fora exigido. 68 1.7. Obstáculo perspectivo. Casa da Glória, dia 19 de abril de 2007. Pela primeira vez entro no casarão que abrigaria o grupo nos próximos dois meses e meio. Subo a pé pela ladeira da Glória. Solando em paralelepípedos, desacostumado dos caminhos íngremes, passo pelo número 98. Joelson avisa por e-mail que a primeira entrada à vista seguindo a mão da rua não serviria aos membros do grupo. Tanto pior. Todos os dias de trabalho, nas quartas, quintas e sextas, ver o Outeiro da Glória pela manhã após uma caminhada pelos bairros do Flamengo e Catete, isto é, subia-se a ladeira visando contornar o casarão e após a escadaria da igreja cercada pela visão da baía de Guanabara, utilizar a entrada de serviço. A caminhada já me era um tanto quanto íntima pelo percurso realizado para freqüentar o centro da cidade. A ladeira da Glória, nesta primeira vez, me deixou desconfortável. E são duas as razões. Antes do alvorecer efetivo, há pouca circulação de pessoas na referida ladeira. Pode-se contar nos dedos. A maior parte, dormindo ao chão ou pulando as cercas do pequeno jardim em frente ao Outeiro. Há uma estreita relação entre caminhar e invadir. A segunda razão fora o cansaço. No primeiro dia, subi a pé, passei pela entrada do Outeiro e não entendi. Não deduzi por onde entrar. Seguindo o caminho três alternativas razoáveis se apresentavam. Contornar o Outeiro à direita, seguir em frente ou descer pelo elevador. Considerando que a entrada de serviço do casarão se localizava após o Outeiro, não poderia ser na descida da ladeira. O elevador do Plano Inclinado, fora de questão. Contudo, a ruela à direita é, por fim, um beco sem saída que acaba numa garagem de portão marrom. À sua direita, uma pequena escada que culmina numa outra porta. À esquerda, a administração do Outeiro. Não consegui presumir onde terminava o monumento. Como o combinado era o de esperar, não arrisquei nenhuma campainha. Tampouco esperava encontrar ninguém, dado o vazio da rua e as portas ainda fechadas de tudo por lá. Só não sabia onde esperar. A lógica na numeração se perdeu no momento em que não havia um 98 gravado ao lado da garagem ao fim do beco. Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que vejo é o beco. A bem da verdade, ciscava de um lado para outro tentando estar às vistas caso qualquer mal entendido tivesse ocorrido. Dei a volta na igreja e desci a ladeira algumas vezes até avistar o primeiro ator que aparecesse. O dia seguiu na apresentação do casarão. Entramos todos pela portinha ao lado da garagem. Passada a primeira sala, que guarda material de cena de outros grupos 69 envolvidos com a Fomenta Produções, chegamos a um corredor bifurcado. De um lado, seu prosseguimento. Do outro, uma escada à esquerda, de fundo escuro mesmo à luz elétrica. Finda a escada e chegamos na sala onde deveria ocorrer o ensaio. Grande e espaçosa. Cinco portas enormes, envidraçadas, que dão para a para a piscina. Uma sexta para uma escadaria. Uma sétima por onde entramos. Duas janelas enormes à esquerda desta porta. Pé direito alto e paredes pintadas em creme. Havia lâmpadas fluorescentes penduradas por todo lado, frutos de ensaio de um grupo de dança do qual participa Gustavo, namorado de Joelson. Piso dividido arquimedianamente entre taco e azulejo hidráulico. E no meio de tudo isso, ao centro, uma pilastra com pouco mais de um metro de largura e 50 cm de profundidade. No meio. O programa da temporada de O que nos resta é o silêncio na Casa de Cultura Laura Alvim (temporada ocorrida um ano antes) não me ajudou a entender muita coisa, não apresentou um sentido mais preciso de tudo o que eu viria. Contudo, antecipa algumas fórmulas sobre a obstrução da visibilidade preponderante no espetáculo e que sugere algumas chaves de entendimento quanto aos caminhos tomados para a expressão de sentido. Um movimento de cena em especial, esta que descortina as criações individuais dos atores, criações as quais o texto do programa faz menção, trouxe numa só vaga uma série de problemas relativos a um espetáculo que se dedica a esconder cenas dos espectadores. Em dado momento o pequeno espaço de cena era cortado em cinco, a partir da divisória imposta por cortinas tão pretas quanto as paredes, deixando com que cada divisão comportasse uma parte do público e somente um ator, ator este que desempenha uma performance particular. No meu caso, ficara junto a mais dois espectadores, estes na parede do outro lado da sala, e Ângela Delphim. Sua cena individual constava em cantar enquanto trocava de roupas, substituindo um vestido de festa bronze-dourado por um outro preto, acompanhado por uma meia de seda posta na cabeça fazendo as vezes de máscara. Enquanto prosseguia, pediu para que eu ajudasse com o zíper. Distribuiu cartas de tarot aos espectadores. Perguntava sobre o medo de cada de saber sobre o que poderia acontecer no futuro. Não havia como, contudo, me desligar dos sons oriundos das outras divisórias, que participavam insistentemente do que acontecia diante dos olhos. O artifício de perguntar se os assistentes gostariam de mudar de assento, procurando talvez um outro ponto de vista, logo antes o fechamento das cortinas só acentuava a tensão. Não imaginei roubar no jogo, isto é, não tentei assistir o que acontecia para além do cortinado, mesmo que diante de uma situação na qual o 70 obstáculo parecia fornecer algum tipo de conexão específica. O mesmo tipo de obstrução que uma peça sem linearidade narrativa oferece, pois a cadeia de causas e efeitos sofre de interrupção abrupta. Assim como, quase um ano mais tarde, na casa da Glória, uma pilastra no meio do salão, sempre impediria que alguém assistisse algum ponto de fuga presumido. Quando perguntavam a Joelson sobre o que tratava o espetáculo, ele me disse, respondia que era sobre a escolha. Caso insistam em saber mais, manda assistir o espetáculo. Mas o espetáculo, tal como se pode desenhar, não é exatamente assistível. Numa lógica de valor de ingresso, paga-se para ver a todos e termina-se por assistir a um só ator enquanto os outros ainda estão em cena. Não foram poucas as vezes em que ouvi queixas no momento de fechamento das cortinas, murmúrios declamando um pálido “não vale” numa nítida referência à privação dos sentidos. Assim, como informar em campos sem dedução possível? Especialmente se a oferta de orientação cruza regimes e opera a indicação do impresso para o movimento gestual? Não é esta uma forma de antecipação da crítica, apontando ao público as bases do entendimento mínimo ao expor temas e intenções? O programa é um objeto que marca o passo que se dá rumo ao divórcio da dedução da localização de endereços visando outras espécies de raciocínio igualmente devotadas à orientação dos sentidos. Não é mais um mapa. O conjunto de impressos de relativa autonomia que orientam a assistência teatral passa a ser de outra ordem. Veicula imagens, tipografia menos estável, intencionalidade da apresentação a ser presenciada. A relação entre o antes do espetáculo e o depois assume uma feição específica, singular. Mas essa singularidade não ocorre gratuitamente, e presenciá-la tampouco. O percurso descrito nas páginas acima visa identificar, mesmo que de forma pouco detida, o grau de dispersão em redes de circulação no qual o teatro se insere, algumas delas constituintes igualmente do espaço cênico, compondo um suporte técnico cuja extensão é difícil medir, mesmo sendo este o mesmo que fornece o conjunto de medidas utilizadas na elaboração do ambiente cênico pesquisado. Ter um ente bem distribuído (dispositivos) a todos e que, como qualquer técnica requerida pelos afazeres, acarretam em responsabilidades individuais que me suprem de uma linha de condução, esta que se faz necessária para aprender saber alguns elementos obrigatórios do teatro, mesmo que não sejam absolutamente teatrais. Todas as referências indicadas sem exceção exigiam que, ou eu soubesse ler ou soubesse chegar em algum endereço numa certa data e horário. Este que é o papel dos instrumentos que 71 posicionam lugares e sincronizam temporalidades são como regras do jogo sem que este precise ser jogado por ninguém em específico. A atividade teatral a ser etnografada constaria exatamente em transformar este eixo de relações em algo singular sem deixar de participar desta zona de referências codificadas e importantes, dado que o artista burguês precisa de assistência. Articular estes encontros, que surgem como práticas de sincronia e sintopia exigem dos agentes responsabilidades individuais, responsabilidades estas que no encaminhamento da pesquisa performatiza a primeira alteração, pois é tomando o ator como porta-voz de um teatro/endereço e de um sistema de referências para encontros (wayfinder) que talvez haja forma de articular algumas propriedades de evocação e provocação características de diferenciações, tal como na série teleológica simmeliana (Simmel,1981) na qual os afazeres implicam em aprofundamento das diferenças entre os termos de relação. A extensa rede de conexões para as quais eu chamo a atenção em muito tem a ver com dois movimentos importantes, que são características de dois movimentos determinantes para o prosseguimento desta dissertação. O primeiro é o de botar o teatro no mapa, o que significa inscrever o teatro no papel, cujas conseqüências de ordem técnica são várias. O segundo movimento diz respeito à seqüência serial que funda o sentido de tirar as coisas do papel. 1.8. O sujeito da ação : sobre a noção de papel 35 A língua portuguesa, vez por outra, oferece frutos suculentos. Para este trabalho, por exemplo, a ambigüidade da palavra papel, caso me detenha ao que aqui interessa, se flexiona designando tanto uma superfície opaca e muito fina derivada de celulose ao mesmo tempo em que vem a significar, diante os esforços do pensamento das ciências sociais, o que em inglês se expressa como role. Meio que evidenciando uma historiografia que carece de algumas demonstrações importantes, este item de capítulo se dedica à investigação desta ambigüidade assim como de sua relevância central para as discussões que procuro apresentar. Correlacionar os dois graus de 35 Considerável número de conceitos e temas desenvolvidos neste item encontra ressonâncias, mesmo que nem sempre harmoniosas, com os trabalhos publicados por Duarte (1983, 1986) e Duarte & Giumbelli (1994), cuja remissão é, aqui, fundamental. 72 realidade da palavra papel culmina aqui num problema que é da ordem histórica dada sua própria estrutura como suporte físico da mesma. Numa forma de conexão que revela entranhas de relações imprescindíveis, o interesse destas notas de caráter histórico de pequeno porte visa não somente formular alguns problemas relativos aos atores como especificidade própria da burocracia de sua apresentação, como permite que se faça o que é próprio de um trabalho etnográfico e apresente um tipo de comparação valiosa, pois, pensando com as palavras de Hans Ulrich Gumbrecht (1998:11): “(...) não deveria ser nosso interesse dispensar o passado, controlando-o em conceitos eficientes, mas somente pôr a nós mesmos e ao nosso presente em confronto com as imagens as mais ricas possíveis da alteridade histórica.” Independentemente de qualquer alinhamento mais aguerrido ao programa de pesquisas que Gumbrecht defende, a evocação da diferença histórica como alteração de formas cultivadas e manutenção de fontes de força de sua realização tem grande valor. O trabalho do historiador citado é uma história da literatura que parte da materialidade do suporte de comunicação de forma a redistribuir algumas questões acerca da fundação de relações que culminem em estruturas de poder e possibilidades estéticas (leia-se doutrina da experiência afectiva). Meu gancho, o que utilizo para recrutar a pesquisa de Gumbrecht, atrela-se ainda à noção de pessoa e das modalidades menos artístico-distintivas de sua distribuição, como os curricula, e sua estreita relação com outros registros dos feitos e efeitos de inscrever agências no papel. Se por um lado os traços constituintes das personagens enquanto escritura se dão como registros do que se entende na relação literatura/belles lettres e sua relação com as filosofias de então, dos poderes de soberania, dos casais ilustres, todos presos e distribuídos pela impressão que fica (tipográfica), por outro lado, na apresentação de si é o se escrever como pessoa que aparece num ato que assume dimensões formais 73 próprias, participando daquilo que é uma variante discursiva moderna por excelência: a confissão laica. Seguir a historiografia de Gumbrecht significa evocar um esquema importante de sua condução desta relação com o passado historiográfico, a saber, a alteração do estatuto do observador do mundo e sua inscrição no mundo enquanto tal a partir da idéia de cascatas de modernidade36. Assim, a distinção entre observador de primeiro grau e de segundo grau, sendo este que observa a observação que se faz, serve de gancho para as propriedades mais específicas de sua análise. A imprecisão do aporte que realizo ao buscar abrangência dispersiva do suporte técnico constituinte do universo teatral é adequada quando referida aos modos de reforma bastante relevante nas regras das artes (plásticas, principalmente) e no sistema de ordenamento do trabalho social que, por sinal, se distribuem com eficácia em diversas extensões de confecção de mecanismos de comunicação. Identificar esta ruptura com o alvorecer da Renascença, longo trajeto, implica em apontar para a fundação do humanismo enquanto conjunto de enunciados que fundam outras ordens de diferença em relação à cristandade. Para começar, as leis de perspectiva. Acompanhando o raciocínio de Reinhart Koselleck: “(...)A gênese do Estado absoluto autônomo foi acompanhada de uma luta incessante contra profecias políticas e religiosas de todo tipo. Ao reprimir as previsões apocalípticas e astrológicas, o Estado apropriou-se à força do monopólio da manipulação do futuro. Com isso, levado certamente por um objetivo anticlerical, tomou para si também uma tarefa que pertencia à velha igreja. (...) De maneira geral, pode-se dizer que uma política severa tinha sido capaz de eliminar lentamente, do campo da formação e da decisão da vontade política, as renitentes esperanças 36 Se no trabalho de Gumbrecht esta noção é acompanhada de um prelúdio a uma teoria da pósmodernidade, sugerindo um fundo caótico que faz da reflexão da modernidade muito mais um movimento browniano do que a uma sucessão de efeitos encadeados que operam numa freqüência de coerência de relações, em Latour (1986) a relação é a da sucessiva constituição de problemas que, uma vez vinculados a um acervo técnico, um novo acervo técnico deve ser processado para suprir as deficiências experimental-constatativas dos primeiros. Ambos os campos efeituais interessam a este trabalho, especialmente porque concernem aos problemas de adaptação e especificação. 74 religiosas para o futuro, que então grassavam, depois da desagregação da igreja.” (2006:29) A constituição das formas monopolistas, como a da violência legítima que tanto vexa o poder soberano, implica em formas de policiamento e administração que exigem do centro de poder um sistema de manutenção por via de tributação e amplo controle militar daquilo que, outrora, se dispunha a uma rede de prestações de vassalagem e atividade de mercenários que, um pouco à forma de artistas-ciganos, deveriam receber por serviços prestados sem maiores vínculos de fidelidade (Elias, 1993). Ao mesmo tempo em que os poderes humanos assumem uma configuração específica, propriamente humanista, as relações com o cosmos idem. O hermetismo que subjuga a escala universal da hierarquia dos corpos celestes ao sugerir que “aquilo que está em cima é como aquilo que está embaixo”, propiciando à astronomia realizar comparações entre astros iguais não importando sua magnitude, e não astros postos ao céu em ordem de próxima perfeição em escala ascendente (Koyré,1979); as regras de confecção do sistema de perspectiva as quais a lógica da perfeição se encontra na geometria dos corpos e seus sistemas de proporção representativa, representação esta de lugares ocupados no espaço relativamente, cuja perfeição é a da aplicação da imitatio figurativa (Panofsky, 1993; Baxandall, 1991; Costa Lima, 1995) que, por sua vez, funda a necessidade de academias de arte com vistas no ensino não só do ofício, mas do sistema de representação do mundo por via da disseminação da lógica de proporcionalidade calculada (Baxandall, op.cit.; Pevsner, 2003)37; a sutil alteração do significado de nobreza nas peças teatrais que, da 37 “A partir do momento em que a produção do texto deixou de ser atribuída à irrupção espontânea do mundo sagrado, ela começou a depender da aplicação correta e da imitação das regras. É por isso que, segundo a Poética de Aristóteles, ou pelo menos segundo alguns de seus comentadores, uma tragédia não deve ser julgada por meio de sua representação, mas de sua leitura, que dá a medida de sua conformidade com as regras.” (Chartier, 2002:21). Esta marca, própria do panóptico do século XVII europeu não exerce outra coisa senão um profundo contraste com a representação dos autos e com sua fórmula simbólica de apresentação, cuja relação com cortejos e desfile de símbolos sagrados é indissociável de sua vida estética “como se pela simples representação da lenda fora de seu marco sagrado, a intervenção dos públicos e, mais geralmente, da cidade, se manifestara por expor o juízo da inevitabilidade do milagre ou da salida teológica” (Duvignaud, 1966:74) e que tem nos escritos uma manifestação alienada da vida dos palcos e da palavra pública, cujo significado neste contexto é outro. 75 encenação de personagens nobres culmina na figuração de atos nobres em cena (Duvignaud, 1972; Szondi, 1994); todos são movimentos de fundação da ordem de observar as observações e de generalizar o ato reflexivo. Não posso deixar de sugerir uma imagem tão gasta quanto eficiente quanto é a imagem de um espelho diante de outro espelho que se por um momento soa abusiva, logo adiante retoma sua lucidez. Desdobra-se a autoridade crítica numa espécie de semiose infinita cuja força de aglomeração se dá exatamente no reforço do privado, na figuração de uma intimidade dotada de poderes e deveres de discrição (Habermas, 1984; Koselleck, 1999; Elias, 1993). O problema nos joga, no caso deste trabalho, diretamente no território da autoria, autoria cuja relação com a auctoritas deve ser posta em questão, uma vez que, diante os atos públicos, quem é o agente, o sujeito da ação? Qual sua autoridade? Numa breve filologia do termo: “(...) a palavra auctor do latim medieval conseguiu assumir tantos papéis: auctor era, antes de tudo, Deus, provedor de toda significação; mas auctor era também o patrono que patrocinava um manuscrito; mas auct auctor or era, provavelmente, também o “inventor” do conteúdo de um texto (embora a questão dificilmente fosse levantada); auctor era a pessoa que copiava o texto no pergaminho; finalmente, era também a pessoa que emprestava sua voz ao texto recitando-o.” (Gumbrecht, op.cit.:74)38 O movimento de deflagração da leitura que dissemina a atividade intelectual cujo valor transcendente o neo-platonismo não cessa de evidenciar, exige uma massa de esforços técnicos e pedagógicos, assim como numa profunda alteração da ordem 38 Tampouco vale à pena destacar, em primeiro lugar, a diferença entre auctoritas e potestas que num sistema marcado pelo princípio da plenitude, articula um horizonte central da diferença entre poderes dotados de complementaridade de hierarquias (Dumont, 2000:55), definindo os papéis do sacerdote e do rei a partir da divina providência. Contudo, e é onde o argumento não apresenta maior interesse aqui, é o da relação de implicação entre poder soberano e a esfera do sagrado rearticulada convergentemente na figura absoluta do rei (Agamben, 2007; Benjamim, 1984, Duvignaud, 1955), assim como a sucessiva dispersão destes poderes e convergências (Gumbrecht, 1998; Latour, 1986 – ambos sobre as cascata de modernidade; Chartier, 1998) que culminam nas importantes ponderações sobre o poder disciplinar contemporâneo e das formas privadas de controle, tal como evidente no artigo de Duarte (2006), que conta com a fundação do humanismo como forma importante de disseminação. 76 política (o Brasil, enquanto colônia, nunca teve imprensa permitida pela Coroa Portuguesa) nos permite apontar para outras transformações. O que Gumbrecht chama atenção no trabalho que ora utilizo como base é que os canais de impressão tiveram um percurso longo e diverso na sua consolidação como forma quotidiana de comunicação. Escrever e ler como atividade de vocação, para atingir a proporção e centralidade das mediações que ora possuem, deveria deixar de ser marcada por uma divisão do trabalho social e deveria passar a assunção da dignidade humana na conversão futura à cidadania que deveria ser transmitida a todos cumprindo o ideário moderno de republicanismo e civilidade. Vale lembrar que os sinais gráficos que constituem o alfabeto romano possuem uma história escrita pelos próprios signos antes de quaisquer convenções relativas ao registro do vernáculo. A fala e a escrita, até certo ponto, possuem caminhos distintos. Assumindo a escrita como mídia de interação entre ausentes – fórmula que impõe uma metafísica própria cujo limite é a incomensurabilidade psicológica entre entes comunicantes e autorais, e que se define pela impossibilidade de reajuste do rumo do já escrito incitando a antecipação de futuros possíveis por parte do autor da escrita –, há muito o que considerar quanto ao respaldo performático da fala na comunicação presencial, em especial de sua alteração comparada: “Definitivamente, o corpo humano não era mais o veículo de constituição do sentido; o corpo fora visivelmente separado do veículo do sentido, o livro, pela introdução de uma máquina, a prensa de impressão. (...)O corpo fora separado da consciência da comunicação.” (op.cit.:75 – grifo meu) O divórcio que caracteriza o momento de emancipação do leitor é o mesmo que emancipa o autor, ao mesmo tempo em que se inaugura uma lida com o tempo das ações que destoa das formas anteriores exatamente porque a escrita, dada seus efeitos inumeráveis, sujeitando o escritor à censura alheia (que lhe é alienada) exige do mesmo um tipo de postura política prognóstica na qual seja “capaz de inscrever o 77 passado no futuro” (Koselleck, 2006:36) posto no eixo da única forma de consciência possível: a do presente imediato, a própria definição estrita de moderno (hodierno). Projetar o passado no futuro, isto é, situar o futuro como presente porvir, evoca uma série de mecanismos de justificação que permitem implicar o passado no presente a partir de um futuro passado que pode ser retro-ativado. Diferindo de uma ordem de estabilidade astrológica que permite aos elementos mais distantes se dobrarem reforçando sua similitude emulativa, a fórmula prognóstica refaz o campo e põe em jogo os poderes de confecção textual-expressiva, e não somente as regras de semelhança cósmica. Assim, ao escrever uma confissão que revele quem sou eu e qual o sentido de minhas ações, junto aos cuidados de legibilidade, devo articular os eventos do passado obstante ao presente das ações narradas, cuja via de acesso é a retrodução39 de um momento pretérito que se projeta no futuro inscrito em seus termos: “O prognóstico implica um diagnóstico capaz de inscrever o passado no futuro. Por essa qualidade futura continuamente garantida ao passado é possível tanto assegurar quanto limitar o espaço de manobra do Estado.” (Koselleck, op.cit.:36) Escrever entre leitores anônimos significa se dispor às regras ao mesmo tempo em que a estratégia de escrever numa situação de inconsciência corporal da comunicação evoca um prognóstico da escrita presente a sua repercussão, pois é neste tipo de correlação que traça diretrizes da autonomia objetiva do inscrito a partir da autonomia entre leitores e escritores, não por acaso, provocada por uma variante de poder disciplinar igualmente provocadora da administração de recursos. A relação entre este sentido prognóstico da escrita com os objetivos gerais destas notas concerne à disponibilidade a qual um papel permite a inscrição de um papel 39 “(...) é a adoção provisória de uma hipótese em virtude de serem passíveis de verificação experimental todas suas possíveis conseqüências, de tal modo que se pode esperar que a persistência na aplicação do mesmo método acabe por revelar seu desacordo com os fatos, se desacordo houver.” (Peirce, 1977:06) 78 (role), algo como casos de pessoa cujas obrigações de relação fazem convergir a atividade burocrática, a vida das belles lettres e a possibilidade generalizada da leitura dos mesmos. Como estudo de caso, que só é um caso por poder se limitar à forma do conteúdo, Gumbrecht apresenta a vida de Garcilaso de la Vega (El Inca), nascido Gómez Suárez de Figueroa, em Cuzco em 1539 e morto em Córdoba em 1616. Sujeito marcado profundamente pela administração da Coroa Espanhola viveu exatamente no centro da fundação burocrática do reinado de Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Quando em Madrid, Garcilaso vive a centralização da vida administrativa da cidade onde a administração estatal recai nas figuras de consejeros, necessários para conquistar sua nobreza, já na formação de quadros de especialistas, e que tinham como atividade primordial lidar com direitos de propriedades cuja comprovação por parte do requerente deveriam ser cumpridas por escrito. Com esta finalidade, aprofundando os mecanismos prognósticos de escrita, a documentação apresentada deveria absorver os padrões de conteúdo e forma exigindo: genealogia, um nobre intercessor e o respeito ao tempo de investigação da veracidade, provavelmente inaugurando a experiência biográfica do tempo profundo, este o da espera. A abrangência da ocorrência neste grau de mediação está no ato de contrição confessional, antes uma forma de sujeição expiatória diante o Deus católico, e então diante de um agente do Estado; antes em voz alta no confessionário, aqui por escrito e em silêncio, sem qualquer fundamento subjetivo de expressão; se antes por expiação, aqui por demanda. Também é digno de nota o fato de esta modalidade de confissão estar longe de ser exatamente novidade em atividades de baixo teor sacro: “As confissões de vida dos místicos e as autobiografias dos pícaros, mas também inúmeros romances pastoris, eram encenados como projetos de identidade pessoal, que remetiam a perguntas ou dúvidas de destinatários mais ou menos anônimos, e freqüentemente eram dedicados a mecenas nobres (a burocracia corresponde ao destinatário anônimo, enquanto o papel discursivo do mecenas 79 lembra o do intercessor jurídico). Algo análogo acontece, no plano coletivo, com as crônicas contemporâneas, que se tornaram fontes para a história colonial espanhola.” (Gumbrecht, op.cit.:121)40 No sentido de sua consolidação como modalidade de escrita, a confissão se torna, portanto uma especificação de si. Esta forma de astúcia de apresentação pode articular jogos de nomes próprios, como o de Garcilaso que, nascido Gómez Suárez de Figueroa, assume o nome do pai espanhol, da mesma forma que, ao divulgar como complemento de seu nome autoral em seus Cometários Reales de los Incas, El Inca, manipula informações genealógicas, reclamando uma ascendência patrilinear que não tinha. Seu pai era espanhol. Mas mais do que autenticidade, forma essencialista que passa ao largo das questões apresentadas, o que funda a modificação da forma confessional e a distribuição das competências de escrita e leitura são as requisições da comunicação compacta (Gumbrecht, id,ibid.:132), definida nas técnicas de escrita que devem fazer o papel (role) caber no papel. Mas esta não é a única dimensão da dispersão técnica da confissão laica41. Michel Foucault (1988:62-69) chama a atenção para a relação entre confissão e o que se transformou numa pedra de toque sobre as questões em torno da sexualidade: o dispositivo de sexualidade, em outros termos, como a repressão ao sexo se desdobra na proliferação de discursos e saberes sobre sexualidade42. Partindo do momento chave das scientia sexualis, Foucault chama a atenção para uma noção de forma do discurso verdadeiro, especialmente daquele que fala sobre si – no modo de observar a observação da modernização dos sentidos à Gumbrecht – própria da confissão. O ato confessional elucidativo não diz somente o que foi feito. Deve reconstituir ao dizer seus arredores, as imagens, os modelos e modos. Se “Pela primeira vez, sem dúvida, 40 Sobre os romances pastoris aos quais Gumbrecht se refere, vide Iser (1996, cap.2) 41 Para uma abordagem alternativa a presente, que faz menção à Bildung romântica de sujeito, tal como no prosseguimento de dimensões terapêuticas da ordem confessional, vide Duarte (1983). 42 O que serve de chave para entendermos a relação entre a ficção e a censura. Vide Costa Lima (1986, 1988, 1989). 80 uma sociedade se inclinou a solicitar e a ouvir a própria confidência dos prazeres individuais” (Foucault, op.cit.:63) o que se impõe na relação entre saber a si e sua expressão (saber de si) é o domínio formal de se dispor, isto é, saber SE apresentar em planos formais delimitados com vistas inclusive a causar prazer, como no caso dos livros que se lêem com uma só mão que, não bastando o divertimento proporcionado por sua leitura – o que implica numa geometria das proporções entre livro e corpo sensível – é capaz de afastar a “meditação e o autodomínio” segundo artifícios os mais sutis de grafismo alfabético, tão sucintamente descritos por Jean-Marie Goulemot (2000). A utilização da confissão como instrumento não deixa de requisitá-la formalmente, e ao mesmo tempo em que estabelece o que Foucault chama de classificação dos prazeres impõe ao mesmo tempo os métodos (méthôdos) pelos qual os prazeres se permitem classificar: “É a “economia” dos discursos, ou seja, sua tecnologia intrínseca, as necessidades de seu funcionamento, as táticas que instauram, os efeitos de poder que os sustêm e que veiculam, - é isso, e não um sistema de representações, o que determina as características do que eles dizem.” (1988:67) Visando uma aproximação desta tecnologia intrínseca da economia dos discursos que faz da confissão uma modalidade e do sentido prognóstico da ordem da escrita difundida, sinalizar em direção à constância requerida aos termos de administração (seja governamental ou rumo ao auto-controle civilizado) ou às especificações técnicas de formas utilitárias de escrita definem alguns dos problemas próprios do teatro. O primeiro diz respeito a como pôr o teatro no papel, na forma de mapeamento e estabilização, significando controle. No segundo, mais próximo das questões de minha pesquisa de campo, como tirá-lo então do papel para pô-lo em cena. 81 1.9. Notas de história da fixação do teatro brasileiro Todos os atores são nômades. Antes de me comprometer apressadamente com qualquer juízo sobre os caminhos da teoria antropológica contemporânea, este é um marco jurídico vigente no Brasil até por volta de 1740, quando a profissão do ator, se considerada como tal, apontava para um ofício de terceira classe, uma vez classificada como atividade infame. As implicações contam: direitos castrados, proibição de exercícios de cargos públicos e residência, quando permitida, em bairros isolados (Guinsburg, Faria & Lima, 2006:170). O nomadismo fica por conta dos direitos de cidadania e renda referidos por Simmel (2001:260) « Já que o indivíduo privado de direito em qualquer sentido não pode se ver interditar o domínio dos interesses monetários puros, uma associação se estabelece entre estas duas determinações e começa a jogar em direções múltiplas: assim, por um lado, o homem pura e simplesmente de dinheiro é imediatamente ameaçado de desclassificação social, no sentimento de que não escapará freqüentemente senão por seu poder e seu role indispensável, enquanto que, de outro lado, a justiça é restituída imparcialmente aos nômades da Idade Média nas relações financeiras, tanto quanto mal foram reconhecidos, em todo lugar, seus direitos.” Se é possível reconhecer na figura de relação puramente monetária uma entidade de circulação por excelência, como é um dos fundamentos do dinheiro e seu papel nas formas de associação modernas, aquele que vive de dinheiro ganho em relações de fundamento exclusivamente mercantil se põe nu diante as contingências da circulação de valores. A assistência financeira, o pagamento, o salário, em qualquer situação de circulação reduzida, colore o comércio com tons de risco. Não bastando o exemplo complexo e trágico da sociologia do gênio (Elias, 1995), na qual o artista que se arrisca à autenticidade numa sociedade de corte se entrega à circulação restrita, ao vínculo empregatício da corte e aos limites morais diante sua posição, o vínculo entre arte e público apresenta a fragilidade deste vínculo exatamente diante situações em que o público é tão restrito quanto a circulação monetária. Nas fronteiras da modernidade, que não são exatamente cronológicas, a ausência da corte na economia das artes impõe ao artista a situação de nomadismo do tipo que 82 exige de um artista renovar seu público na medida da extensão do repertório de apresentações decerto limitada, cultivando o trânsito freqüente entre as cidades que vem a servir de base para o exercício do descontrole diante a ordem política, a mesma ordem com a qual um Mozart se indispõe. Mas o caso do teatro no interior do Brasil do século XIX não oferecia nenhum arcebispo de Salzbourg para apelação. O teatro escapava do regime de controle que o situaria no mapa. A historiografia de Regina Horta Duarte (1995) é muito clara nesse respeito. Vivendo um hiato entre a divulgação forte da vida da corte no Rio de Janeiro que parecia ser uma Paris dos trópicos para os leitores de jornais, as cidades de Minas Gerais assistiam aos espetáculos de circo e teatro com uma série de dificuldades quanto sua estabilização ao seguir os ditames de ordem pública e alastramento dos instrumentos de civilização do Estado. O elenco realizado pela historiadora não poderia ser mais significativo para os propósitos deste trabalho. Sugerindo toda uma seção de esquadrinhamentos das variáveis significativas da disposição das forças de controle estatal, Duarte elenca: espaços, mapas, quantidades, limites, disciplinas, sedentarismos e catequeses. Localizando o problema nos anos 30 e 40 do século XIX, proclamada segundo o diagnóstico de caos insustentável no interior do país, a expansão dos poderes administrativos via como meta formas as mais diversas de contenção dos distúrbios à paz nacional, “Muito mais que a estatização da sociedade, o movimento é direcionado para a governamentalização do Estado, com a criação de práticas voltadas para o controle da população em seus menores detalhes.” (op.cit.) Entendendo o desafio proporcionado por populações ciganas, escravos fugidios e fronteiras índias, a classe artística órfã de uma corte que lhe atenda, como é sabido ter ocorrido com o grande ator do período, João Caetano, na cidade do Rio de Janeiro na mesma época, o horizonte do controle não passa simplesmente pelo impulso moralizador do espaço público no qual hábitos impudicos impróprios para uma boa educação infantil abundavam, mas também pela incorporação aos instrumentos de controle dos meios desta população ainda sem código de endereçamento postal. “Paralelamente às tentativas de impedir a ocupação desordenada dos espaços vários movimentos podem ser identificados. O mapeamento desses territórios os 83 dividiriam, tornando-os visíveis e incorporando-os ao ideal de uma integridade territorial. A análise das estratégias em conflito, no período oitocentista, deixa transparecer o enfrentamento em torno da demarcação de um território estriado, que torna as populações sedentárias, em contraposição a uma ocupação nômade dos espaços.” (op.cit.48) Contudo, se os atores se aproximam dos vagabundos e larápios como a legislação de 1740 indicava, em 1843 a instalação do Conservatório Dramático culmina em uma outra ordem de controle sobre a classe artística que, mesmo que não incorporada aos serviços da corte como um todo, passava a sofrer fiscalização cujos limites de atuação restringidos eram regidos pelo império da lei. Já sob a inspeção de uma inspetoria um código de boas maneiras identificava o papel do ator diante seu público: o de conter seus rompantes diante a platéia. Ofender ao público, desobedecer à inspetoria, apresentar somente o que for anunciado, realizar o espetáculo na hora marcada e não estender o espetáculo além de um mínimo necessário (Guinsburg, Faria & Lima, op.cit:170-171). Contudo a criação do Conservatório gerava o debate sobre as diretrizes estéticas de um espetáculo adequado aos propósitos tanto da nação quanto dos bons costumes, o que se seguiu de uma disputa ferrenha entre Machado de Assis e José de Alencar (Duarte, op.cit.:126:133). Não por acaso, o ideário formador de uma nova platéia se fazia presente nas novas regras de conduta, fazendo do espetáculo igualmente, aos poucos, um lugar de exercício obrigatório de boas maneiras de civilidade. A pontualidade certamente não obriga somente aos atores, mas ao público. As demais restrições, como a proibição gradual da utilização de chapéus e do fumo não designa outra coisa. As leis que se fazem sobre o teatro, acompanhando sempre algumas diretrizes indispensáveis para a instauração da ordem pública segundo os dispositivos do Estado, não faz outra coisa senão estabelecer uma invariante comunicativa que não dependa de um decreto lido em praça pública. O formato da lei prevê os delitos e as penas, assim como alguns atenuantes e destrincha, aos poucos, as nuanças do sujeito de direitos. O que quero destacar é que, uma vez registrado quanto ao local, a data, a hora e o teor do espetáculo, o teatro passa a ter um papel diante a nação estatizada e situada em um eixo ordenal. E este papel, tal como registrado na convenção do Conservatório fundado em 1843, é o de ““melhoramento da cena Brasileira por modo que esta se torne a escola dos bons costumes e da língua” no sentido de “animar e excitar o talento nacional para assuntos 84 dramáticos”, além de corrigir os vícios da cena brasileira” e “interpor o seu juízo sobre as obras”” (Guisburg, Faria & Lima, op.cit.:172). Cabia a correlação de forças tirar este teatro do papel e estabelecê-lo em vias de fato. As delicadas relações de financiamento do teatro por órgãos do Estado não faz outra coisa senão levar adiante as dimensões do controle, estabelecendo diversas modalidades de teatro nacional, sempre adaptadas à irradiação dos poderes, mesmo em 1968. É importante notar que a implantação de uma cena teatral brasileira parte do tipo de correlação que entende a agência contraventora segundo os termos de reconhecimento estatal do teatro. Nisso não somente a variante moderna de autoria do ato transgressor é reconhecida, como toda uma aura de mistério, sedução e poderes carismáticos são reputados aos mestres desta arte de apresentação. O controle não é senão o entranhamento gradual do poder de verossimilhança que o teatro promove cuja extremidade é a formação de repertórios pedagógicos no teatro infantil. Mas que não se leia qualquer relação entre entranhamento dos poderes civilizadores possíveis do teatro com qualquer estabilidade conquistada à atividade como profissão. O que procuro apontar na verdade é uma rede de conexões que precipitam a programação de uma rotina de trabalhos que promovam a antecipação relativa de um tempo futuro, como sói a administração da produção de um espetáculo, e que tem nas formas de registro móveis imutáveis (Latour, 1986:07) o sistema de orientações necessário para o controle de variáveis, sendo as personagens e a criação autoral seu centro problemático. É nesta zona de definição que os mapas de espaços de cena, seu distanciamento, e os elementos mais importantes, assim como sua eliminação e a disposição do público, servem como instrumento de fixação dos termos indispensáveis, inclusive para Joelson Gusson. O salão da Casa da Glória fora colocado no mapa (vide anexo). Recuperando a fábula contada por Jorge Luis Borges, o mapa não pode ser a repetição do território mapeado. Ao cabo e ao rabo, nele há seleção, combinação e autoindicação coordenada (Iser, 1996). Assim, na distribuição do espaço geométrico de um retângulo, cabe definir as formas a serem combinadas e como, independente de onde o mapa seja acessado, ele tenha informações o suficiente para que a referência aos entes em relação seja repetida. O mapa é igualmente uma das formas de comunicação compacta que aponta onde é que estão os entes regulares ou, ao menos, onde deveriam estar. 85 1.10. Personagem, autoria e pessoa dos atores A enorme distância temporal entre Garcilaso de la Vega, a querela da fundação do Teatro nacional e minha relação com os trabalhos do grupo Dragão Voador teatro contemporâneo precisa aqui de uma costura. E ela não custa muito. Ela se põe na complexa divisão da competência entre as artes, o que negaria ao teatro sua especificidade ao mesmo tempo em que aprofunda as conexões de reconhecimento estatal da profissão atuante, altamente formalizada na circulação de curricula. Cabe aqui formular em que, e como se concretiza, a relação entre autoria e os atores relativos. Em uma dada altura desta pesquisa, quando os trabalhos na Casa da Glória atingiam certo grau de desenvolvimento, acompanhei Candice e Joelson até a UNIRIO, onde ambos estudavam43. Meu objetivo fora o de pesquisar na biblioteca da universidade em questão, enquanto os dois a quem eu acompanhava rumavam para suas respectivas salas de aula. Na caminhada entre o fim do almoço e a chegada ao campus, Joelson me indicou leituras obrigatórias, cuja autoria seriam determinantes para que eu entendesse o que se passa. A leitura me serviria de guia. Da mesma forma Celina Sodré, diretora de teatro e professora de Joelson, Leonardo Corajo e de Lucas Gouvêa, fora taxativa em me indicar leitura de textos que permitem a compreensão daquilo com o que eu viria a me deparar. Foi quando os nomes de Stanislawski e Grotowski apareceram com a força de definição, isto é, permitiriam elaborar uma imagem mais precisa dos eventos concernentes ao teatro na figura de ancestrais e figuras de escrita na forma de sinédoques/arquétipos. Chamo a atenção para esta relação pois, no caso do teatro (e não só no seu caso) a ascendência autoral por via de textos dotados de ancestralidade designam forças de atuação que remetem à própria ordem do valor inscrito. O caso em questão é que os autores-atores evocados, e sua citação é tanto uma evocação quanto uma filiação que reclama uma herança, presentificam uma dobra de autoria. É tanto um quanto outro que falam. Trabalhar ou definir um trabalho segundo as diretrizes dos trabalhos de Grotowski, por exemplo, significa defender uma especificidade da performance teatral. A despeito da indistinção com a qual há o hábito de desenhar o que determina a forma teatral de expressão situando sua derivação de outros ramos artísticos (música, dança, 43 Joelson deve concluir este ano, 2008, seu bacharelado. Candice, por sua vez, é aluna do mestrado do departamento de artes cênicas. 86 pintura ou o caso de síntese romântica do kunstwerk), o ator, dramaturgo e ancestral Jerzy Grotowski registrara: o teatro é a arte de ator. O ator, mais do que agente, é conditio sine qua non é possível apresentar uma peça: “Em primeiro lugar, tentamos evitar o ecletismo, resistir ao pensamento de que o teatro é uma combinação de matérias. Estamos tentando definir o que significa o teatro distintamente, o que separa esta atividade das outras categorias de espetáculo. Em segundo lugar, nossas produções são investigações do relacionamento entre ator e platéia. Isto é, consideramos a técnica cênica e pessoal do ator a essência da arte teatral.” (Grotowski, 1992:14) Sem me dedicar a aprofundar nesta passagem ou em seguir num comentário à obra de Grotowski, o que me interessa no presente momento é o fato de ter transcrito esta passagem de um livro de Joelson, Joelson este que escreveu o texto do programa de O que nos resta é o silêncio que, entre outras coisas, declara: “(...) propus aos atores desse trabalho no qual cada um deveria criar um personagem que lhe possibilitasse falar de questões relevantes para ele mesmo. Durante quatro meses nenhum dos atores sabia o que o outro estava construindo e a única informação comum era que determinada noite essas personagens estariam juntas num fim de festa. Criei então algumas conexões entre elas e ensaiamos por seis meses sem que essas personagens se expusessem abertamente. A vida não é assim? Quem nós conhecemos realmente?” Antes de sugerir um processo criativo no sentido em que criação assume alguma conotação de ato demiúrgico, que sem dúvida é importante para a fórmula do artista moderno que inova, que é original, o sentido de criação aqui pode despontar como recurso pecuário, da manutenção doméstica de uma propriedade e dos seres vivos que conferem à propriedade seu suprimento. Joelson aqui se alinha a uma reação importante do teatro que, na busca de assumir sua autonomia e o controle de seu processo criativo na figura dos atores, culmina no combate ao textocentrismo. Contudo este combate não significa estabelecer um teatro analfabeto. Jean-Jacques Roubine, intelectual da vida teatral, define o problema da seguinte forma: 87 “O que alguns definiram como a utopia de Craig44 caracteriza-se pela supressão não tanto do texto dramático mas sim do autor, do predomínio e da autonomia que ele exige, em vez de conformar-se em ser apenas um dos elementos do espetáculo. Pois se o texto não é uma obra-prima, essa exigência do autor é presunçosa. E se ele é uma obra-prima, comporta o inconveniente de bastar-se a si mesmo. Confrontados com ele, os recursos do espetáculo reduzem-se a irrisórios simulacros. E, uma vez levado à cena, ele permanece sendo uma espécie de corpo estranho que o teatro não consegue integrar.” (1998:59) O que serve de obstáculo é a pessoa que o texto traz consigo, sempre estranho ao teatro exatamente porque a dignidade da escrita autoral se encontra na comunicação com ausência de consciência, elimina-se a co-presença por via de mediação. A luta contra o textocentrismo é mais uma escada da cascata de modernidade pela qual se dissemina a autoria e, consigo, a auctoritas. Faz-se, dessa forma, uma linhagem própria do teatro de ator que, nas ressonâncias entre propostas de espetáculo a definição do espaço oferecido e o campo de negociações e circulação que os sentidos articulados pela produção do espetáculo estabelecem45. Daí a legitimidade da proposta de montagem de O que nos resta é o silêncio, cuja atitude confessional é ao mesmo tempo uma demonstração dos poderes outorgados aos atores, então sujeitos de criação e não encenadores de textos de outrem, e figuras que carregam consigo uma rede de transmissões de competências cuja forma de treinamento e formação estabelece este duplo vínculo entre autonomia criadora e herança. A cena individual que assisti em minha primeira assistência de O que nos resta 44 Edward Gordon Craig (1872-19666): “Craig foi muito marcado pela teoria wagneriana do “drama musical do futuro”, que preconiza uma nova arquitetura teatral como local e instrumento da fusão dos diferentes elementos que integram o espetáculo: poesia, música, pintura, arte do ator. Entretanto, aos olhos de Craig essa fusão exige não apenas um espaço adequado mas um condutor capaz e realizá-la; o régisseur, que deve poder intervir em todos os níveis e a qualquer momento do espetáculo. Coerente com esse enfoque, Craig preconiza um certo número de arranjos técnicos entre os quais a instalação de uma cabine de comando e de um sistema de intercomunicação com o palco, a fim de permitir ao régisseur dirigir o espetáculo enquanto este se desenrola.” (Roubine, op.cit.:138). Na seqüência disgnóstica do papel de Craig e os componentes da encenação teatral, Roubine define a multiplicação dos palcos possíveis a partir das novas fontes de intervenção e interação. Para uma avaliação mais detida do papel desempenhado por Craig na história do teatro moderno, vide Aslan (1994:96-104) e Carlson (1997). 45 Esta é a razão pela qual algumas práticas teatrais assumem a não-representação, pois não estão lá representando qualquer outra coisa, ou ninguém. Estão, como sói à sua profissão, assumindo os riscos de uma apresentação. 88 é o silêncio é criação de Ângela, sob a direção de Joelson Gusson. A utilização de objetos, os recursos de voz, a elaboração de um texto com regras de composição sugeridas pela atriz visando a criação de uma personagem, enfim, a manutenção da relação entre tempo, espaço, movimento e sentido faz da cena apresentada entre as cortinas resultado de sua criação. Ângela, aqui, é demiurga. Entendendo que o primeiro impulso deste trabalho seria o de investigar como é uma personagem de ficção tal como se dá na apresentação teatral, a elaboração da comunicação compacta de um curso de vida, tradução literal de curriculum vitae, permite que se faça conexões importantes entre confissão, autoria, personagem e ficção. Não é outra coisa que o seguinte documento apresenta. ______________________________________________________________________ CURRICULO DADOS PESSOAIS: NOME: Angela Maria de Figueiredo; NOME ARTÍSCICO: Angela Delphim; FUNÇÃO: Atriz; REGISTRO PROF: - DRT nº. XXXX Liv.XXX Fls.X3v data 01/11/00; IDENTIDADE: X.XXX.XXX - SSP-SP CPF : XXX.XXX.XXX-XX; LOCAL E DATA DE NASC.: Rio de Janeiro, 24/12/1947; ENDEREÇO: Rua XXXXXXXXXXX, XX ap/XXX - XXXXXX -RJ Cep.XXXXX-XXX TEL: (0XX) (21)XXXX-XXXX ou cel. (0XX) (21) XXXXX-XXXXX E-MAIL: [email protected] GRAU DE INSTRUÇÃO: superior CURSOS - Curso de Formação de Ator - CAL Casa das Artes de Laranjeiras - Mar/98 a Ago/00; - Formação teatral com Luiz Carlos de Vasconcelos, na UNIRIO, - 19/10 a 31/10/98; - Canto - com Raul Serrador- outubro/98 até dezembro/02; - Interpretação para TV - com Ignácio Coqueiro - Stúdio Barrozo Netto - 19/03 até 12/04/01 – 24horas; 89 - Oficina de Teatro, com Ana Kfouri – módulos I e II - Espaço III Teatro Villa Lobos 08 a 29/04 e 07 a 27/05/02, 24horas; - Interpretação para Vídeo, TV e Cinema com Valter Lima Junior – Fundição Progresso - Nov e Dez/02; - A Poética do Ator Criativo Escritor de Si com Cacá Carvalho – Espaço SESC 13 a 24/09/04, 40 horas; - Curso Técnico de Bailarino Contemporâneo, Escola Angel Vianna – março/03 a julho/05; - Proc. Criativo da Cia. Dos Atores – com a Cia. Dos Atores, Espaço SESC - 01/07 a 31/08/05; - O Teatro Nô _ com Daniela Visco, no Espaço SESC – 03/11 a 24/11/05; - A Comédia como Visão do Mundo – com Clarice Niskier, Espaço SESC – 10/01 a 07/02/06; - Hata Yoga – Mestre Orlando Cani a partir de 21/03/2006 até sempre; - Preparação para a Criação – com Fabiana de Mello e Souza, Espaço SESC 23/10 a 10/11/2006; - O Prazer da Dança – com Soraia Bastos, Espaço SESC – 03/01 a 27/02/2007 PRINCIPAIS TRABALHOS: I - Montagem O DIBUK de Sch-An-Ski - direção d/e Ana Teixeira e Stephane Brodt, a Teatro Nelson Rodrigues em 07/00; personagens - mendiga e juiz ; II - Montagem Bonitinha, mas Ordinária de Nelson Rodrigues - Direção Ivan Sugahara - Cia. Os Dezequilibrados – na Casa da Matriz de 06/2001 a set/2002 Personagens: Todas as mães e Grã- Fina; III – Televisão - participações: A Grande Família, episódio, Explode Coração; Linha Direta – episódios: Caso Patrícia, Caso Antony, Ed. Joelma, Ginecologista; O Golpe do Baú, novelas Da Cor do Pecado, O Profeta com o personagem Enny, Minissérie JK personagem D. Rita - TV GLOBO; IV – Dança Contemporânea - “Por um Fio” –– direção Toni Rodrigues -Teatro do Jockey Proj. Terça Jovem 07 e 14/06/05 e Centro Coreográfico do RJ – de 01 a 03/07/05 realização e projeto da Escola Angel Vianna.; 90 V _6º Riocenacontemporânea – Performance “O QUE NOS RESTA É O SILÊNCIO” –direção Joelson Gusson na Estação da Leopoldina 10/2005. (Projeto em andamento). VI _ Montagem e temporada da peça “O QUE NOS RESTA É O SILÊNCIO” – ESPAÇO SESC de 8/6 a 18/6/06 e Casa de Cultura Laura Alvim de 27/07 a 24/9/06 - Direção Joelson Gusson com a Cia Dragão Voador Teatro Contemporâneo – PRÊMIO MYRIAM MUNIZ DO CONVÊNIO PETROBRÁS/ FUNARTE com temporada na Casa da Gloria de 01/06/07 a 17/6/07 personagem Beatriz Brchner; VII _ Filme - participação no Longa “SETE VEZES DINDI” direção Bruno Safadi, Produção Roberto Talma, previsto para ser lançado em 2007; VIII - 7º Riocenacontemporânea – participação em video na montagem “QUERO SER ROMEU E JULIETA” da Cia OS DEZEQUILIBRADOS – Direção Ivan Sugahara com estéia no dia 9/10/06 no Teatro Nelson Rodrigues RJ. IX – Montagem e temporada da peça “HEDDA GABLER” de Ibsen - ESPAÇO SESC de 21/6 a 12/08/2007 com direção de Floriano Peixoto e Michel Bercovitch – personagem criada. _____________________________________________________________________ Segundo um prisma de organização temporal registrado na listagem de tópicos de habilitação, estão contidos aqui algo em torno de dez anos de história de formação e trabalhos de alguém que ocupa a função de atriz. Ler este currículo implica em absorver a síntese em listas e classes de eventos relevantes, eventos que definem entre si o nexo de agências que o papel apresenta, inclusive justificando, no campo pragmático de circulação, a apresentação de um nome artístico. A história presumida a partir dos tópicos deve justificar como Ângela funciona como atriz. Nascida em 1947 se inicia nas artes cênicas no ano de 98. A partir do ano 2000 consegue ser escalada para trabalhos como atriz profissional para os quais há requisição de um número na Delegacia Regional do Trabalho, igualmente presente em seu curriculum. De uma forma geral delimita o espaço de tempo durante o qual uma história pode ser contada. Uma série de eventos culmina por determinar a especificidade de Ângela como atriz segundo as implicações concernentes ao que a ficha permite narrar, mesmo que não narre. 91 Seguindo a fórmula de Alfred Gell (1998), não somente há a distribuição de componentes da pessoa física da atriz em sua manifestação burocrática em cada cópia do currículo como são isolados índices de agência de outrem sobre ela, o que de alguma forma serve de fiança quanto a um fato: a singularidade de sua apresentação por via de representação burocrática não especifica sua autonomia absoluta, mas ao complexo de forças que se impõem como disciplina. A consolidação de cada tópico implica em uma relação de tempo de dedicação, desenhando no espaço do papel um espectro numérico temporal. O valor do isolamento destas variáveis permite modificações sobre o pensamento acerca da divisão do trabalho social segundo um eixo tridimensional da crono-geografia (Giddens ,2003; Gell, 1992a) na qual o tempo dedicado ao trabalho é também fundamento da divisão social do trabalho, apontando para a multiplicação de papéis de um só ente referente. Não obstante a divisão social do trabalho em papéis num mapa sincrônicofuncional, o que procede para a análise formal é a divisão temporal de cada agente em vários papeís-funções possíveis à jornada individual. No que tange o currículo de uma pessoa, vale perguntar quanto tempo é preciso fazer algo para que seja dela a habilidade de fazer, isto é, para que assuma a autonomia necessária para formas específicas de demiurgia, de criatividade legítima. Afinal, como ressalta Silva (2003), faz toda diferença ser formada na CAL e não na Martins Penna. Mas esta diferença não é só de local, mas de intensidade e intenções dispostos no tempo hábil, que é também o tempo de habilitação. O efeito distintivo não concerne somente às causas que determinam a carga classificatória de um diploma, mas também ao conjunto de pessoas que marcam as produções de Ângela com técnicas de produção. Faz diferença ser formado pela CAL. Mas seu corpo docente varia muito. Faz diferença igualmente ter a formação num determinado período no qual um quadro de professores específico esteve por lá. Como fora o caso de Celina Sodré, ascendente em relação a Joelson Gusson e Lucas Gouvêa. O caso é que a relação implica em uma disciplina, implicadas no que se chama de relações pessoais. Refletindo sobre sua trajetória, Ângela confessa: “sou muito corporal”. Sua constância diária nos ensaios que pude acompanhar deixa claro o teor de sua disciplina. Exercícios lentos e cuidadosos, em repetição metódica, a dança praticada antes de cada apresentação, a sutileza dos aquecimentos coletivos que coordenava. Se sua confissão é verdadeira, ela dá acesso à verdade da pessoa, mesmo que em parte (parte esta medida e fornecida em tempo de experiência). Parece ser o caso da atriz em questão. A 92 confirmação se encontra nas razões que ela manifesta serem decisivas para o convite de Joelson. Segundo Ângela, fora convidada para fazer O que nos resta é o silêncio porque canta. Está em seu curriculum: é efeito da ação de Raul Serrador. Mesmo que não fizesse o curso com Cacá Carvalho, Ângela seria escritora de si só por redigir seu currículo. Contudo, um ponto é particularmente nebuloso no caso em questão. Há menção de um curso superior. Curso este não identificável na listagem apresentada. Considerando este passado como irrelevante para sua apresentação burocrática como atriz, Ângela decidiu excluir sua formação universitária e sua carreira que definiria sua função nos idos tempos de antes de 1998. Não obstante, esta estratégia fecha um círculo importante quanto à personagem de ficção, caso lembremos da definição de Wolfgang Iser para os atos de fingir ficcionais: “(...) cada relação estabelecida não só altera a faticidade dos elementos, mas ainda que os converte em posições que obtêm sua estabilidade através do que excluem. O que é excluído se matiza na relação realizada e lhe dá seu contorno; desta maneira o que se ausenta ganha presença.” (1996:20) Compondo a tríade seleção/combinação/auto-indicação distintiva da pragmática da comunicação em ficção, a omissão presente não significa outra coisa senão a convergência para um grau objetivado da relação definindo de antemão que o procedimento incorporado ao texto opera os dispositivos básicos de compreensão de sua manifestação. Se o teatro se situa num sistema de circulações nos quais deve se fixar em formas administrativas de maior estabilidade que vem a caracterizá-lo como uma profissão, dispondo responsabilidades como a regularidade e o respeito ao calendário das atividades e obrigações para com as taxas de impostos aos quais se acrescentam anuidades de sindicatos (como o SATED46), o ator deve circular segundo as formas disponíveis nesta rede enorme. Sua forma privilegiada não deixa de ser o móvel imutável (Latour, op.cit.) característico da lógica dos impressos. Não só o é como esta dissertação acaba por desempenhar uma atividade complementar: distribuir a pequena ficção de Ângela Delphim que revela se chamar Ângela Maria de Figueiredo que leva o título impessoal de “currículo”. 46 SATED é sigla de Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões cuja história vincula assistência da Casa dos Artistas e representação profissional nos canais competentes. A fundação do SATED data de 1964, ano místico. 93 A forma curricular não deixa de se multiplicar. Leonardo Corajo, na composição de Fernando, desempenha o papel de autoria. Um manuscrito em caderno de capa dura e verde serve de suporte para a vida pregressa de sua personagem. Aquilo que informa o programa do espetáculo O que nos resta é o silêncio marca o cume e o desfecho do relato autobiográfico em forma de diário: a festa que serve ao drama. Não seria impossível retomar alguns pontos da vida da personagem e compor um curriculum vitae que, mesmo não contribuindo a favor de seu emprego numa empresa de respeito, permite que tenha fundamento seu emprego na peça. Mas não houve menção a nenhum fato de personagem. Suas motivações, o campo intencional, fora abandonado aos poucos para que as cenas coletivas, sob a batuta de Joelson, viessem a tomar forma em detrimento de cada uma das composições. A história da personagem, tal como uma pessoa qualquer, serviria até o momento preciso do ensemble que daria seqüência à vida das personagens. Seria possível escrever dali por diante. É possível ampliar o curriculum. E isto se chama atualização. Esse documento, no momento preciso em que desenvolvo esta passagem, serve de ligação entre o inespecífico e o específico, entre o dedutível e o indedutível no teatro. Os dispositivos para os quais tento chamar a atenção e que amarram o sistema de endereços, a lógica da localização por dedução e a relação entre as táticas de circulação e as formas absolutas dos meios de circulação, têm o compromisso de situar a extensão que faz do teatro um evento participável por quem não o faz de forma a qualquer um que, por menos que venha a participar, tenha algo a dizer sobre ele. Não somente porque todo sujeito de direito em uma burocracia é um autor potencial (mesmo que tenha o direito de ficar calado diante de uma acusação; mas não há problema uma vez que a burocracia opera tecnologias silenciosas) mas porque os limites de sentido na articulação espaço-temporal próprias à encenação aprofundam os modos de atualização dos dispositivos. Cada atualização é um modo. Modifica. A modalidade confessional com a qual nos deparamos ao ler esta história curricular em tópicos evidencia um diferenciador da personagem Ângela Figueiredo: apresenta indícios de acervo técnico de produção de efeitos. Cantar, dançar e escrever exige recursos específicos que não podem ser ignorados, assim como sua aprendizagem não pode ser reduzida a um quadro de alteração de classificação do sujeito. Não que isso não ocorra, mas devem implicar, mesmo que não impliquem efetivamente, na apresentação de níveis de auto-controle cuja fundação é o paralelo de um conhecimento específico de si. As técnicas corporais são objeto de reflexão do curriculum assim como 94 desta pesquisa etnográfica: o artigo célebre de Mauss se encontra tanto em manuais de sociologia e antropologia quanto no livro-referência de Eugenio Barba e Nicolau Savarese A arte secreta do ator (1990). Não obstante o registro dos trabalhos anteriores dá vez à relação de futuro do passado assim como sugere a convergência com o presente no ato de leitura. Apresentar predicados aceitáveis passa pela lógica de apresentar alianças passadas que informam quais novas alianças de produção este currículo predispõe a personagem. Vale notar que o curriculum vale como apresentação entre pessoas que não se conhecem (visando mais uma vez a categoria levantada mas pouco trabalhada de Silva [2003]) e, posto que se dá entre pessoas ausentes, participa de convenções que não pertencem a nenhuma delas. Vinca conexões impessoais. O ator Jésser de Souza, do Lume de Campinas47, junto aos seus colegas, ofereceu uma demonstração pública dos trabalhos de mímesis corpórea desenvolvidos há vinte e um anos no mesmo grupo, fundado por Luis Octávio Burnier, ao lado de outros dois atores-pesquisadores: Ricardo Puccetti e Carlos Simioni. Não me detendo aqui na categoria de atores e pesquisadores, suficientemente sugestiva para uma série de sugestões problemáticas, a demonstração pública de Jesser me permite pensar dois movimentos ao mesmo tempo. Enquanto apresenta os efeitos do domínio da técnica apresentada, as ressonâncias do que fala e apresenta nos encaminha para um segundo momento desta dissertação, que é o da rede de participações da elaboração das situações do teatro testemunhados na montagem de O que nos resta é o silêncio. 1.11. Ator, autor, técnica de fazer. Enquanto as atividades de ensaio de O que nos resta é o silêncio não assumiam corpo e forma, mantive-me disposto a coletar relatos e experiências junto ao cenário de atividades do extenso calendário oferecido à cidade do Rio de Janeiro na época. Dentre as possibilidades os dois meses de apresentações e cursos oferecidos pelo Lume figuravam como uma possibilidade. Tentei me inscrever em atividades mais regulares (até mesmo para colocar em meu curriculum) para os quais fui prontamente recusado. Não tinha curriculum de ator, mas de mestrando em sociologia e antropologia. Satisfiz- 47 Grupo de pesquisa em artes cênicas de departamento homônio da Unicamp, com sede própria em endereço emplacado com as mesmas placas da universidade. 95 me com as demonstrações abertas ao público. No dia 16 de março de 2006 fui à demonstração do ator Jésser de Souza. No momento não me detive muito no que uma demonstração implica e em como isto articulava uma das palavras mais repetidas em ensaios por Joelson e os demais atores: funcionar. Uma demonstração é uma prova, apresenta uma correlação verificável, dado que posta diante dos olhos sujeita à repetição. No caso, o que estava em questão era a estrutura do treinamento do ator, fundada nas relações que remetem a Grotowski e ao método de mímesis corpórea. Evidenciando as formas de transmissão, no caso por escrito, de técnicas corporais, a fonte Grotowski define muito bem do que se trata a situação de demonstração. “O treinamento consiste em exercícios elaborados pelos atores e adotados de outros sistemas. Mesmo os que não resultaram de uma pesquisa pessoal do ator foram desenvolvidos e elaborados a fim de satisfazer os objetivos precisos de método. A terminologia pertinente aos exercícios escolhidos foi posteriormente alterada. Uma vez que os atores adotem um dado exercício, estabelecem um nome para ele, com base em suas idéias e associações pessoais. Conscientemente, tendemos a usar uma gíria especial, desde que isto atue de forma estimulante sobre a nossa imaginação. (...) O que se segue é um esboço inacabado de um dia de treinamento.” (1990:108) Ao mesmo tempo em que estas palavras que eu cito não foram proferidas por Jésser na ocasião vão me servir para definir algumas das situações presenciadas, dado que apresentam algumas determinantes de a-presenciais para que o encontro seja convergente. O prisma autoral que define que os atores possuem sua própria forma de conectividade e que elaboram suas idiossincrasias significativas aprofundam as marcas de um campo teatral na medida em que realizam demonstrações públicas de saber fazer. O dia de treinamento com Jésser, sua demonstração versara sobre um tema caro aos componentes do Lume, desde a publicação do doutorado em semiótica de Luís Octávio Burnier (1994)48: as relações entre método, pessoalidade e memória muscular, matriz de movimento. Deitado no chão do palco enquanto os demais observam, Jésser 48 O dado de ser um doutorado em semiótica e não em artes cênicas é significativo, uma vez que diz respeito a matrizes departamentais, correlações da burocracia do conhecimento científico, que entram em questão. Mas não aqui. 96 falava de focar em si e esquecer o que há fora para gerar um dentro. Aos poucos então, despertar a musculatura: rasgar a musculatura, torcer a toalha, relacionar-se com o chão e empurrá-lo e, “como o planeta é maior, quem sai sou eu”, de forma a se levantar os poucos. É preciso vazar a energia parasita e fortalecer uma relação autônoma com o mundo maior. É neste sentido que o exercício de enraizamento se dá: forçar as pontas dos pés no chão, uma a uma, fazendo com que a articulação do tornozelo ceda aos poucos: “- Se minha raiz tá firme, eu posso voar.” E o vôo se dá da cintura para cima, enquanto o chão indispensável, é firmemente incorporado em cada movimento. É preciso ceder ao chão. Reconhecer a assimetria de forças que, aos poucos, significa público. No reconhecimento das forças do solo, Jésser aumenta a amplitude e a velocidade dos movimentos, deixando que aos poucos sua coluna ceda. A coluna é sua, a decisão de ceder é dele, não da coluna. Há de se deixar a coluna fazer. Na variação de formas que seu corpo assumia, Jésser insistia na figura do solo maior: “- Em nenhum momento eu estou interpretando. O que eu faço é empurrar o chão e procurar o equilíbrio”. O que vale é ser aquilo que se esta fazendo, promover uma figura corporal. E esta figura deve visar uma forma de ressonância energética que vai além da superfície visível. É um modo de ação, cuja amplitude fica mais clara na apresentação do valor de definir posições de performance, mais do que incômodas, desconfortáveis, visando novas formas de atenção que não almejem qualquer repouso. Atentar em como manter uma posição desconfortável exige a decodificação dos relaxamentos. Nesse momento Jésser se deita no chão novamente. Contrai o abdômen, torce o pescoço e levanta uma das pernas. Sua voz soa engasgada, rouca e mais grossa. Fala, como artifício da voz engasgada, onde estão os pontos de tensão que condicionam o aparelho fonador a emitir este grau de voz. Aos poucos, relaxa as partes da posição, mas mantém a voz em seus pontos de tensão fundamentais. Levanta-se e começa a dançar um misto de frevo e outras formas um tanto quanto acrobáticas. Emitia a mesma voz sem alteração sonora, apesar da enorme variação postural. Mas o que mais importa para este trabalho é que, em nenhum momento, apresentou-se qualquer reflexão, qualquer exercício, concernente a personagens. Intervalo. 97 PRELEÇÃO CONTRA A PERSONAGEM O SEGUNDO DIA EM UM ATO: pequeno drama que versa sobre as dificuldades dos afazeres teatrais, em especial no que diz respeito ao papel de ator e os perigos que o rondam. Joelson Gusson: diretor Carmen Zanatta: assistente de direção Lucas Gouvêa: ator, Vicente Costa Lourenço, Júnior Leonardo Corajo: ator, Fernando César Moraes Ângela Delphim: atriz, Beatriz Bruchner, Bruchner, Ângela Maria de Figeueiredo, Chimbica Candice Abreu Moraes: atriz, Leda Luciano Moreira: ator, Ricardo Bruchner Paulo Camacho: câmera Bernardo Curvelano Freire: assessor teórico, teórico, autor da presente dissertação Marcão: caseiro Crisitine: atriz ausente Dia 01/08/2007, segundo dia de apresentação de O que nos resta é o silêncio. Esqueci o caderno de campo em casa. O que que segue é fruto das filmagens e da memória de seis meses depois. A estréia ocorreu com a insegurança e a expectativa normais. O engasgo de Leonardo Corajo antes de soltar a primeira fala da peça é suficiente para dar o tom. A conversa a seguir tem como mote o fantasma do segundo dia de um espetáculo. Algumas considerações de Joelson sobre o que se espera deste grupo, em especial do grau de naturalismo esperado nas cenas, servem de enquadramento mais geral do tipo de problema levantado. Por volta das seis e meia, já com o breu da noite dando as caras, Joelson resolve chamar todos os atores, mais Paulo Camacho (que me ajudou na filmagem, com as fotos e mais suporte técnico) e eu, para pontuar ou, como se convencionou na lida com o diretor em questão, passar algumas notas. Seu caderno amarelo, contudo, não se encontrava presente. Falaria de improviso. Sentados ao lado da piscina da Casa da Glória, num pequeno pátio, ao redor de uma mesa de plástico branco, estão todos presentes com exceção de Carmen. O território é arborizado com mangueiras já grandes. Os andares do casarão e as escadarias expostas servem de fundo. Partindo da pausa que rememora, a véspera serviu de anteparo. A estréia, que balizou todos os movimentos na articulação do ritmo de trabalho e seus horizontes de atualização de formas, começou bem. Logo os erros de sincronia e seqüência foram descritos, e diziam respeito ao cerrar de uma porta cuja responsabilidade era de Lucas. Os atores foram responsáveis pela descrição e Ângela foi a responsável por chamar a 98 atenção ao problema. Considerando o nervosismo imanente à estréia, e cabe falar de super-agitação dos nervos, o segundo dia traz uma carga oposta. A de relaxamento e de, segundo o mesmo Joelson, tal como me disse alguns meses depois, durante o Riocenacontemporânea, ressaca dos sentidos após o estresse e da superprodução fisiológica relativa ao dia anterior. O prejuízo de um comportamento como este é incalculável. O primeiro deles é o próprio relaxamento, que leva ao tipo de desleixo que considera que o pior já passou. JOELSON É por isso que eu resolvi modificar algumas coisas na peça e vocês não vão ter tempo de ensaiar Só pra vocês ficarem desesperados. (risos) Devido a descompassos a serem desvelados mais adiante, Ângela declara não se assustar com mais nada, conduta neste momento contornada. Candice se lembra ter feito uma marca que nunca havia ensaiado. A distância posta na cena do trenzinho, na qual somente Lucas e ela estão em cena, é logo posta em ação, exatamente sem o intuito de contornar o que seria o assunto do dia. Mas um pequeno desvio aconteceu. Aproveitando o ensejo, Joelson retoma algumas notas que considera importantes para a correção no segundo dia: 1- Luciano, em sua cena individual, fala “você está feliz por que?” muito tarde, o que compromete as sincronias sonoras entre os nichos e a trilha sonora. Fora engolido pela música de Mahler. Mas a marca de acionamento da música se deu de forma igualmente imprevista. Esta marca deveria ser a tosse de Lucas. Uma vez que as cortinas já se encontravam fechadas e a mesa de som fica restrita ao nicho de Leonardo na parede sul49, estas marcas de sincronia entre a técnica (corpo de acionamento de aparelhos) e os atores ficam ao sabor do vento e da voz. Voltando à vaca fria, Joelson retoma o ritmo da estréia, cujo início promissor revelou certa afobação que culminou na perda de uma coisa, um elemento, pelo qual se lutou durante os ensaios: tirar o excesso de representação, excesso este fruto da tentativa de recuperar um ritmo de cena que, pela calma parecia lenta.. JOELSON É muito doido porque... tem um nível, um lugar assim que a gente tem que andar assim, um fio sabe?... que você escorrega um pouquinho assim, um pouquinho pra lá um pouquinho pra cá e dançou o negócio. E às vezes pode ser uma coisa muito exagerada e que não fica exagerado, como é a hora da dança do Luciano, quando vocês entram gritando e começam a dançar, brigar e não sei o quê, a hora das cenas individuais, né, que tem um certo exagero e a gente tem que lembrar de concertar a cortina que quebrou ontem. LEONARDO 49 Vide mapa em anexo. 99 Ai meu Deus do céu, que pânico... JOELSON É. E tem ou outro lado que assim, uma... uma... uma maneira de estar ali muito quotidiana, muito quotidiana, que como a gente infelizmente é treinado para não ser quotidiano no teatro, ... CANDICE Pra representar. JOELSON ... pra representar, esse é o lugar mais difícil de se estar. A não-representação. Né? Mas... essa coisa... (tosse) ... eu acordei de noite pensando isso assim e eu não consegui dormir mais... acordei às cinco horas da manhã, pensando assim: ai, eu tenho que falar isso, tenho que falar aquilo, e aí eu não conseguia dormir. E fui dormir eram umas oito horas, assim. E... que eu fiquei pensando assim: como eu posso falar, é... não é no sentido de fazer entender. É... Mas no sentido de... de eu conseguir instigar vocês a buscar um lugar que sai da instância do representacional que a gente tá sempre agarrado nela, né?. Por que... o que eu já acabei de falar, né? Vou repetir. A gente é treinado pra fazer teatro no palco italiano, né, e nas escolas que são uma bosta, né, isso aí é uma verdade, são péssimas as escolas... E a gente fica... fica com muito ranço, e mesmo com a gente fazendo, fazendo, fazendo coisas, a gente acaba arrastando essas coisas atrás da gente. Eu tô sendo chato? (murmúrios) Incomodando vocês com isso? Que eu fico me... (pequeno grunhido) CANDICE (ri) JOELSON Eu fico sem graça de ficar falando as coisas e parece que eu to falando coisas que todo mundo já sabe, que é o óbvio ululante do negócio, entendeu, e eu não quero ser... LEONARDO Por isso mesmo JOELSON Não quero ser esse chato. Né? Mas ao mesmo tempo... CANDICE Você é a única pessoa que tá de fora que pode fazer isso. 100 JOELSON Exatamente. (pausa para limpar os óculos) CANDICE Sinto muito, né gente? JOELSON É isso mesmo. CANDICE Na próxima vez, na próxima estréia, você dorme com um gravador do lado. Aí você acorda de manhã e blu-lulululum. Pronto. Aí pega e bota a fita... JOELSON É... Existem vários níveis. Disso. Dentro do trabalho de... com relação às pessoas. Né? Não existe nenhum juízo de valor a respeito disso. O que você faz tá muito bom, você é ótima. O outro já não é bom, nada disso, entendeu? (consentimento) É que existem níveis... LUCAS (murmúrio) JOELSON ... diferentes dessa percepção. E que vão muito de acordo também... (campainha, de volume alto; sineta) ... já chegou gente aí? LEONARDO Pode ser a Carmen. CANDICE Que horas são? Sete? (murmúrios de investigação oral) LUCAS Sete e vinte. JOELSON Sete e vinte já. Vai ser rápida a conversa. Né? E... esses níveis eles é... eles vão variar pra cada pessoa e também pra cada personagem que tiver fazendo, pra cada lugar que tiver fazendo, então é uma coisa muito sutil... 101 CANDICE Então tá numa cena e vai pra outra... JOELSON Isso. CANDICE O texto que vai falar... aí muda de lugar e fala de outro... porque a gente também varia dentro disso. Exatamente porque esse lugar tá muito tênue, e tá difícil de manter. JOELSON Por isso que o que eu acho mais importante de estar aqui, ou de qualquer outro lugar, é... da gente encontrar... são duas coisas. São duas coisas, duas coisas. Uma é a verdade daquilo que está sendo feito. Tá? Essa verdade ela não depende do que está sendo feito. Não depende se tá fazendo teatro de rua, gritando no meio da rua, ou se você tá fazendo uma coisa completamente intimista, essa verdade, ela fica num lugar de que é assim,... ai, eu me sinto tão péssimo (risos discretos) Que é um lugar assim... Quem está ali.? Naquele momento. O que me fez pensar muito foi aquela conversa que nós tivemos ali no bar... que você falou da personagem.... CANDICE Falei da personagem. JOELSON E que... É uma coisa que a gente ... pára muito poucas vezes pra conversar a respeito, e que eu devia fazer isso mais, que afinal de contas eu fico exigindo, querendo fazer uma coisa e eu devia falar mais sobre isso, esse pensamento que eu tenho sobre o que que eu acho que é interessante no resultado da coisa. O que é muito importante, é... pra mim, pode não ser pras outras pessoas, é a gente esquecer, abolir, totalmente, falei muito disso na época d´As Criadas50, eu lembro que eu falei muito disso, abolir completamente a instância de personagem. Vamos esquecer essa coisa. Vamos apagar esse lugar de personagem. Essa pessoa que existe e que tá fora, nós vamos agora nos concentrar nessa pessoa..., que a concentração, ela é inimiga da gente, a concentração, ela fecha a nossa percepção. A gente não tem que ter concentração. A gente tem que ter atenção. É o contrário. O que a gente tem que fazer é pra fora, não pra dentro. Né? Quando uma pessoa concentra muito, está muito concentrado, na personagem, que é diferente, é diferente da pessoa estar... CANDICE Alerta JOELSON ... alerta.... E...e...e..e... E ao mesmo tempo concentrada...é.... Concentrada... não queria usar essa palavra. Dela estar ali, alerta para fora e alerta para dentro, entendeu? Por que essa concentração fecha, ela fecha a percepção, e você fica só num lugar. E esse lugar 50 Peça de Jean Genet que Joelson, Lucas e Leonardo montaram em 2005. A direção fora de Joelson. 102 da... esse lugar da personagem é um lugar muito perigoso. Muito perigoso, porque você não tem o domínio disso, entendeu? É... tem uma coisa que eu queria que todo mundo lesse... Candice já leu esse texto, acho que o Bernardo já leu que ele já comentou... Pra gente conversar sobre isso depois ... que é um texto que foi escrito, isso eu acho a coisa mais incrível do mundo, em 1758, 7, 8...? Mil setecentos e cinqüenta e alguma coisa, se for 1757 tem duzentos e cinqüenta anos que foi escrito, né? Eu não sei se vocês já leram, que é o Paradoxo do comediante (sic) do... Diderot. Diderot foi um daqueles franceses que foi um dos enciclopedistas e tal, né? E ele escreveu esse texto, o Paradoxo do comediante, na época lá, falando o quanto o teatro dramático, trágico, representativo, e tal, o que é que ele achava que o ator tinha que fazer, né? E tem uma frase nesse texto que eu acho muito clara, muito clara, que ele fala assim, é mais ou menos assim, ele falando, que é um diálogo, né, é... é uma pessoa falando com outra discutindo o que que é o papel do ator... do comediante, do ator, e ele fala assim: o cara; quando termina o espetáculo, o ator, ele está cansado, elétrico, cansado, e o espectador tá triste, digamos num drama, né, e o espectador tá triste, por que? Porque o ator se agitou muito sem sentir nada e o espectador não se agitou e sentiu todas as coisas. Eu acho isso de uma clareza enorme, sabe... GENTE, O TAMANHO DAQUELE GAMBÁ!!! CARMEN Nossa!!! (comoção de todos) LEONARDO (chamando o animal) Diderot!!! CANDICE Ontem eu mostrei pro Lucas e o Lucas ficou meio que: não, cadê, cadê... (comoção) JOELSON É DESTE TAMANHO!!! LEONARDO Diderot! Diderot! CANDICE A gente tava ensaiando aqui fora, e ele apareceu ontem... LEONARDO Faz o ninho em cima da árvore a árvore. (comoção; fala-se de capivaras que Bernardo reclama ser sua área; Diderot ainda é chamado como animal doméstico) 103 CANDICE Vocês viram ontem os morcegos bebendo água na piscina? JOELSON É... CANDICE Você acha isso de uma clareza... JOELSON Eu acho isso de uma clareza muito grande pra gente entender desse... qual é o lugar, que que é esse negócio de personagem? Entendeu? Porque assim, é... (pausa) ...nossa... (pausa maior) (risos tímidos) ...ééé´... Eu entendo assim, que eu tô falando isso, o que eu entendo como eu faço quando eu estou fazendo alguma coisa, quando eu tô num lugar de atuação, né.? No lugar de ator. É... Existe um lugar que é: quem tá ali. Quem tá ali é a Ângela, Luciano, Léo, Júnior, ali Candice. Quem tá ali. Agora, eu vou ver uma outra pessoa. E essa outra pessoa ela vai... me vai ser mostrada a partir das pequenas coisas que essa pessoa faz. Né? Pequenas coisas que essa pessoa faz, que a pessoa diz, né? Pequenas atitudes, mas quem tá dizendo, quem tá fazendo, é o seu corpo e é a sua voz que tá fazendo. Entendeu? CANDICE É que ontem, quando eu falei pra ele, pro Jô lá no bar, que a minha amiga, o marido dela falou pra mim assim, que as pessoas ficam tentando conversar comigo como se fosse eu, né, mas aí já tá durante a peça. Então sou eu, mas também não sou. Eu não vou ficar falando, que foi isso que o Joelson orientou, ficar falando de coisas quotidianas, aí eu falava, mas eu falava do jeito que eu tava falando, né?... Aí o André falou assim: ih, ela já ta incorporando, aí fiquei calada. Não Falei nada. Eu já tenho uma resposta pra isso na próxima vez. Aí, toda hora tem que ficar criando texto. Fazendo isso você tem que criar o texto na hora. Aí eu vou ter que falar que eu não sou mais de santo de macumba não, que agora eu sou budista. (ri) LEONARDO Pomba-Gira. CANDICE Agora eu sou budista. 104 (ri) Leda agora é budista. É...e aí ela falou assim: já é a perso... meio que já é a personagem. Aí eu olhei pra ela e falei assim: eu sou eu, mas todos nós somos vários. Aí ela... ficou olhando assim pra mim... Aí foi isso que eu tava falando pro Jô ontem, nesse papo, só pra eu falar pra ele (murmúrio) JOELSON Tá muito abstrato isso que eu tô falando? LUCAS Nem um pouco. JOELSON Nem um pouco? É..., então eu falei isso tudo porque eu quero voltar no assunto anterior, que é a coisa da, do... desse lugar de verdade. Né? É... mas antes eu falei que tinha duas coisas. Uma era essa coisa da representação e a outra coisa é que tá meio metido nisso tudo que é a coisa da materialidade, palavra que eu gosto de usar e que eu já falei algumas vezes, é... que é da gente entender que o lugar que a gente tá falando.. entendeu? É de uma mulher que senta na banheira e penteia o cabelo. Né? CANDICE É concreto. JOELSON É concreto. É concreto. Não tá em outro lugar. Não tá, não tá. Tá ali. Tá numa mulher que usa um vestido horroroso com uns colares de pérolas, um negócio no cabelo e uma luva só na mão (sic), tá nisso, entendeu? Tá nessa coisa, já tá ali, a gente, quando a pessoa entra e vê a Ângela vestida daquele jeito, vamos supor, ela recebeu trocentas informações na cabeça dela. Né? Já é muita coisa. Você não precisa de mostrar e fazer e não sei o quê, não, ela já tá ali, aquela pessoa tá na frente dela, dentro daquela sala pequenininha ali! Sabe? CARMEN Não é nem que ela já recebeu trocentas informações, mas ela já processou as informações que ela faz também,que ela já tem. JOELSON Sim. Exatamente. CARMEN Ela faz as relações dela. Então, na verdade ela que... ela que faz, ela que processa as informações... JOELSON É. E aí a gente... cabe à gente a esperteza de dar, de ir dando essas informações pras pessoas. Mas através daqui, da, que é que é isso aqui, o meu braço, então eu sento e eu falo: Léo, não põe o braço assim, isso é uma informação da materialidade do Césa... do 105 Fernando, naquele momento, né, que ali te coloca num lugar de mais fragilidade e que você não coloca o braço aqui. Você coloca o braço aqui. É... voltando então à coisa de, da verdade. É... (pigarro) Que é uma coisa assim. Todo mundo atinge isso. Entendeu? Todo mundo no trabalho atinge isso. Em alguma instância. Né? É... mas algumas vezes foge, outras vezes fica muito presente pra todo mundo, outras vezes não tem nada, né...? que é muito simples, eu, eu penso assim, que é uma coisa muito simples, no final das contas. Muito simples. Pra quem eu estou falando. Só isso. Pra quem eu to falando. Eu, eu, eu, esse corpo aqui, e essa voz aqui, ta falando pra quem? Né? Então, eu não estou querendo dizer assim: eu estou falando para este público de determinado assunto, eu tô falando da cena mesmo. Né? Então, é... Um exemplo de uma cena que funciona muito bem. Que é a cena que é Leda e Vicente. Né? Só conversando. Pra quem que eles estão falando? Eles estão falando... um pro outro. Eles tão falando, conversando. Né? Funciona. Né? É que são duas pessoas que tão conversando. Né? Pra quem? Né? Tá falando pra quem? Entendeu? É... A Ângela tá com uma cara tão séria...! O que que é? ÂNGELA Por que eu não consigo atingir isso que você quer e eu tô preocupada. JOELSON Mas olha só. ÂNGELA Eu acho, assim, uma responsabilidade muito grande. Agora que você em dizer isso? Agora depois que o espetáculo já tá... JOELSON Mas eu já falei... ÂNGELA Não... Você sempre lutou por isso, mas você tá falando de uma forma, pra mim, eu tô com a carapuça lá no meu dedinho mindinho. Por que eu sei que eu faço tudo isso. JOELSON Mas a questão não é essa. ÂNGELA É péssimo. JOELSON Mas a questão não é essa. Esse assunto, ele tem que ser pensado e colocado, sempre, pra qualquer pessoa. Entendeu? Hoje de manhã... eu vou dar um exemplo. Hoje de manhã, por acaso, eu acabei que dei uma carona para a Denise, a Denise que veio aqui ontem, a Denise Stutz, a Denise Stutz, ela tem uns cinqüenta anos de idade, ela foi fundadora do grupo Corpo e ela é aplaudida pra dançar, quando ela entra as pessoas aplaudem ela. Né? Aí ela veio me contar essa história, que ela deu um workshop lá do Piolim, só aqueles atores fodas, bem mais velhos e tal, né? Ficou dez dias com eles, não sei o quê e 106 tal, e no final do workshop um cara falou assim: você podia fazer uma demonstração do seu trabalho pra gente. Ela fez. Mas ela falou: foi um horror. Ela fez tudo o que ela tinha falado pra ninguém fazer durante dez dias (risos) ... ela fez. E ela tem consciência disso! E eu... ela falou: Joelson, foi horrível, ela falou assim: gente, eu fiz tudo errado! E eles falaram: é, você fez tudo errado. NÉ? Que é um lugar que a gente tem que pensar em se colocar nesse lugar sempre. Agora, não adianta ficar se pensando assim: ah, porque eu vesti a carapuça até o pé. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Entendeu? Não tem nada a ver. Uma coisa vai se ganhar agora, e vai se perder daqui à pouco, e vai se ganhar de novo daqui à pouco. Né? A gente tem que ter essa, essa maleabilidade de, de, de boa vontade com a gente mesmo, entendeu? Porque é muito difícil a gente fazer uma coisa boa. No teatro. É muito difícil você fazer... faz um minuto de cena aí, agora... Não faz. Faz? Não faz. Ninguém faz. Faz aí um minuto, inventa agora uma coisa. Não faz, gente. Não faz, porque é uma coisa muito difícil de fazer. Né? Então é um ganho diário. Você pode fazer uma coisa linda, agora, e depois fazer uma coisa e: gente, que horror que eu tô fazendo, que é que é isso, por que que eu tô fazendo isso? (risos) Né? É assim. É assim, você vê os grandes atores, incríveis, não sei o quê... Não entendi! Por que essa pessoa tá fazendo isso? Entendeu? Então é uma coisa pra... o nosso pensamento do dia-a-dia. Vou voltar de novo na mesma coisa. Quando eu falo dessa, dessa, dessa verdade é: você tá ali. Dentro daquela sala. Quando você fala uma coisa, você olha pra uma pessoa, é muito simples. Você olha pra uma pessoa, você fala uma coisa pra ela. Eu tô falando aqui, por exemplo: Candice, vê só, tô te falando isso aqui. Né? Mas se eu tô te falando isso você vai... eu tô falando com você.! Pápápápápá. Entendeu? Quem eu tô fazendo agora? Eu tô fazendo o papel do diretor. Né? Mas eu poderia tá fazendo a mesma coisa que você do mesmo jeito, se tivesse em uma outra situação em outra posição. Né? E eu taria direto, aqui, falando com você, chegando em você, olho-no-olho, entrando ali, né, com a distância que tem... entre a gente. Quando a gente alcança esse lugar, não importa se o espetáculo tem esse histrionismo muito grande, como era no caso d`as Criadas, como era no caso de vocês dois fazendo o começo do Dissocia. Que era de morrer de rir, era super engraçado e tinha uma verdade tão grande, o que vocês tavam fazendo, e era uma coisa que não tinha nada de naturalismo, de todo mundo numa sala. Era palco italiano, de frente, vocês estão ali, assisitindo a gente fazendo essa coisa e a gente ta aqui, pum-pá-pum-pá-pum-pá, um com o outro, um com o outro, um com o outro, exageros, Luciano cai no chão e... (choro farsante) ...sabe? Mas tem um lugar de verdade muito grande. Né? Naquela coisa. E essa verdade, ela aparece quando você tem a noção de pra onde você tá falando. Pra quem você tá falando. Né? Aí peguei o Léo outro dia na cena individual dele...é...O Léo foi e fechou a cortina, escorou na pilastra; e entrou numa coisa entronizada. Aí eu falei com ele: Léo, você fechou a cortina, você ta com um monte de gente em volta de você te olhando, você tá aqui. Entendeu? Você tá aqui. Você, Leonardo, você tá aqui, nesta sala. Então, olha pra essas pessoas, fala alguma coisa com elas, sorri pra elas. Entendeu? Fala pra 107 ela, chega na pessoa, pega nela: olha só, eu descobri que a felicidade acaba, quando ela acaba (murmúrio) ... Fala pra essa pessoa aqui. Entendeu? Se a gente consegue encontrar esse lugar a gente consegue fazer qualquer coisa. Seja uma coisa toda pra fora, uma coisa muito pequena, uma coisa no meio da rua, né? Esse ponto é um... é uma... é uma chave. Muito... muito boa. Ontem tinha a questão de estar todo mundo muito nervoso. Né? Eu tava muito nervoso, eu tava gelado. LUCAS É, a gente também tava muito nervoso. JOELSON Então tinha uma, uma coisa assim de Ah! E o Léo não conseguia começar a falar, não saía a primeira fala... CANDICE Não, se o Léo não fosse trazer aquela cachaça ontem... Porque eu tava com um frio, tava nervosa, gelada e com muito frio. Pô, ontem tava muito frio. Aí eu tum! Na cachaça. (ri) LEONARDO É, ela deu uma deitada... (risos) CANDICE Não, salvou. Valeu. Salvou mesmo. JOELSON Uma outra coisa... tem um outro pon... um outro ponto. São só... são só esses dois pontos que eu quero falar. A coisa da verdade do, do que... pra quem que eu tô falando, que que eu tô fazendo aqui... CANDICE Da materialidade JOELSON ...agora nesse lugar, onde que eu tô, essa sala, essa sala tem uma coluna no meio, tem... é muito importante isso, sabe? Essa sala tem uma coluna no meio, tem quatro portas do lado de cá, tem duas do lado de lá, duas janelas aqui, tem uma porta que vai pra lá, toda essa noção... CANDICE É verdade isso... 108 JOELSON ...entendeu? Do... CANDICE Do espaço JOELSON ... Do espaço, de saber onde que eu tô, isso tudo te coloca num lugar. Te dá um ponto de... CANDICE É a materialidade que você tava falando. JOELSON Exatamente. CANDICE Mas sabe por que que eu queria falar do negócio do espaço? Porque todas as pessoas que falaram comigo, todas, me falaram do lugar. Todas as pessoas. Assim: gente, esse lugar em que vocês tão fazendo o neg... aí eu... eu fiquei em casa lembrando do lugar. Aí eu pensei: realmente, a gente tá fazendo a peça num lugar, numa sala comprida, com uma pilastra no meio, com uma cores super-interessantes, uns sofás, toda uma ambientação, umas portas maravilhosas, essas portas são uma coisa maravilhosa, tem uma ambienta... a gente não tá numa...eu falei isso hoje pra uma amiga minha, eu falei pra ela que é atriz e coisa e tal: a gente não tem um cenário, a gente tem uma locação, é quase como se a gente tivesse fazendo um filme. JOELSON É... CANDICE É como se fosse, por isso que eu foquei brincando que a gente podia fazer o dogma, botar uma câmera na mão e fazer o filme d´O que nos resta, porque é praticamente como se fosse um filme, isso aqui. Assim, o ambiente... JOELSON Essa, essa, essa coisa que eu tô falando da representação CANDICE Ela... JOELSON No cinema ela é muito... CANDICE É, não tem. JOELSON Não tem... 109 CANDICE Não tem representação. LUCAS É. CANDICE Não tem cenário. É locação. JOELSON Você tá ali, são duas pessoas conversando, são duas pessoas sentadas, são duas pessoas brigando, discutindo, gritando uma com a outra, né? Elas tão ali, essas duas pessoas. LUCIANO Quanto menos fizer... JOELSON Quanto menos fizer... LUCIANO Por que fica grande. Na tela fica enorme... JOELSON Pois é. LUCIANO Aí fala: ai caralho, eu não devia ter feito isso. JOELSON Mas então deixa entrar no... na última coisa que eu queria falar, que era a...ai meu Deus... (pausa) Nossa, gente! Me perdi. Ah, lembrei! É... tomando o exemplo do que aconteceu com a cortina ontem. A cortina deu um... trec lá e que... não abriu, né? É... É mais uma coisa assim de tomar um... tomar cuidado com, pensar o seguinte: nós estamos dentro dessa sala, os expectadores estão dentro dessa mesma sala, a cortina quebrou, nós estamos em tempo real, todo mundo viu que deu um problema, entendeu...? Então a gente não tem que resolver aquela coisa com desespero. Entendeu? Quebrô! Vai lá... concerta... do jeito que consegue concertar. Precisava da cortina aberta, é só um exemplo, ta Leó? Não tô falando mal não, tá? LEONARDO (murmúrio de aceitação) JOELSON Pronto. Abriu a cortina. Entendeu? Caiu, quebrou. Um monte de caco de vidro, todo mundo descalço. Não tem como fazer. Né? Vai lá, faz o negócio, limpa, aí tem que ter 110 esse savoir faire de... de que as pessoas sabem que a gente tá fazendo uma peça. Não é? Sabe! As pessoas sabem! Parô! Ó, não tem como continuar. Esse é um caso extremo. Um caso extremo. Mas eu tô querendo falar de uma coisa um pouquinho diferente. Que é assim... É... as ações, que elas têm que ser executadas, é... elas tem que simplesmente ser executadas. Então... eu vou voltar no exemplo de fechar as cortinas. Fechou a cortina. Fechou? Fechou a cortina. Verifica se tá fechada. Tá bom, não tá atrapalhando ninguém? Vai lá e fecha a outra cortina. Entendeu? Não tem que ter uma eficiência no sentido que: a peça está bombando, nós temos que fechar essas cortinas, vamos agora abrir as corinas, entendeu? Aí o que aconteceu? No caso da cortina. Tô falando isso do Léo por que o Léo tem um punch muito forte. Ele tem uma coisa muito vigorosa, de energia, e de um não sei o quê, e tal que atrapalha pra cacete, né, que ele se perde nessa coisa, né? E aí, a cortina, a última cortina, ficou a parte da frente assim, fechando, e as pessoas não viam nada, da peça. Né? Aí eu fui lá, enrolei a cortina dá licença, deixa eu, passa pra cá, passei a cortina por trás, e tal, até uma menina falou assim: você não precisava vir aqui, tá tudo bem. Tudo bem não, gente, tá péssimo. Vocês não tão vendo nada. Vou deixar essa cortina desse jeito? Né? Mas, é... esse lugar de de que, estamos aqui, no... LEONARDO Nós estamos no controle, também. JOELSON Controle, controle! Tá na mão, isso mesmo, tá na mão... LEONARDO Acontece. JOELSON ... tá na mão. Né? Quem...você falou isso e eu lembrei de uma coisa muito importante na minha vida, mas muito importante mesmo. Quando eu tinha assim, uns dezessete anos, eu, acho que eu tinha uns dezessete ou uns dezoito anos, a Miriam Pires... E já contei isso pra você... A Miriam Pires... ela já morreu, né? A Miriam Pires, aquela senhora, ela foi dar uma palestra lá em Vitória. Eu morava lá em Colatina, no interior do Espírito Santo e queria ser ator, era foda, e aí eu dei um jeito e fui lá em Vitória e vi a palestra da Miriam Pires. Aí ela falou uma coisa que eu nunca esqueci na minha vida e que eu achei o máximo. Ela falou assim: gente, o espectador não sabe nada. É você quem sabe tudo. Ele tá lá... CANDICE Eu digo isso pros meus alunos, que engraçado... JOELSON Ele ta lá e ele vai fazer o que você quiser. CANDICE Você fala isso de um jeito. JOELSON Ele vai acreditar no que você quiser, entendeu? Ele não vai... ele sabe que quem tá com a faca e o queijo na mão é você! Não é o espectador. Entendeu? Então, se a cortina 111 enganchou, tá na sua, entendeu? É você. Enganchou! Vira pra mim: Joelson, me ajuda aqui. Não é? Não tô conseguindo... abrir. Tá na mão. Tá na sua mão! As pessoas vão olhar e falar: ah, bacana. Não tem problema nenhum. Não tem problema nenhum... LUCAS É... Acho que fora isso também, a coisa do de acidente vem também a coisa de não deixar se intimidar pela platéia. Porque às vezes a gente se deixa entrar numa onda errada, numa onda errada de que: ah, o espetáculo não está funcionando, e o público está com uma cara assim ou assado, não sei o quê, é que às vezes há públicos e públicos... (mumúrio) , mas o controle é nosso. A gente tá ali, né? JOELSON (murmúrio que confirme a tese) LUCAS Tá na nossa mão. CANDICE Acho que isso aconteceu um pouco ontem, né. Porque a gente ficou muito assim,...o público todo de amigo, todo mundo ator, todo mundo conhecido... LUCAS Eu não sei... eu não tenho a menor... a gente tava conversando sobre isso, eu a Candice e o Léo. Aí eu falei que eu tava muito nervoso ontem e ela: ah, eu também; e o Léo: ah, eu também. Aí o Léo falou assim: ah, eu nunca fiquei tão nervoso assim. Nem no SESC nem no Laura Alvim. Aí a Candice: nem no Laura Alvim. Engraçado, nem eu. (murmúrio) (risos) CANDICE Aí a gente segurou as mãos, cara, a gente tava gelado. LUCAS Aí a gente pen... CANDICE Um negócio horroroso. LUCAS ... ficou conversando assim, do por quê desse nervosismo todo, ontem aqui, né? Aí o Léo falou uma coisa legal que eu acho que é, assim, porque... o foi que você falou? Acho que foi, né? Do quê mesmo? O qual, qual foi... 112 (risos) LEONARDO Foi tão marcante! LUCAS Não! Eu sei o que é, mas você falou de uma maneira... LEONARDO Eu gosto disso. Ser fundamental na vida das pessoas. LUCAS Não, não... é que você falou de uma maneira bacana, assim... é, é... como é que é? Da qualidade, como é que é o negócio? LEONARDO Eu não lembro também... (risos) LUCAS Foi uma coisa muito importante. CANDICE Não... LUCAS Não, não... O que é que é? Aí o Léo falou assim: não, eu acho que a gente tá se sentindo assim... LEONARDO Da nossa responsabilidade. LUCAS É que dessa vez, é... existe realmente uma, uma... uma vontade muito grande de fazer e uma (incompreensível) do trabalho... da qualidade do, do trabalho. Né? O... CANDICE O trabalho foi ganhando. LUCAS Foi ganhando, ao longo dessas temporadas, e tal. Então, e tem a coisa do local, também, o local perfeito pra fazer o espetáculo, tem isso tudo. Então, assim, a coisa mesmo de, de... De tá... de tá.... LEONARDO E eu me senti ontem com a responsabilidade... 113 CANDICE Você tá acreditando... LUCAS Acreditando muito, né, e orgulhoso. Então, assim, é uma coisa de que aqui, né, pode funcionar, pode dar muito certo e, e tá tudo certo, e os problemas todos que a gente passou durante todas essas temporadas, né? Aqui as coisas são favoráveis, aí o Léo foi nisso, né... então, enfim. Acho que rolou uma histeria mesmo, assim. Isso descontrola por que o nervosismo também te leva pro lugar onde você se sente confortável, né? Que é esse lugar da... CANDICE Da histeria. (risos) LUCAS Da representação, talvez. CANDICE É, que mais... LUCAS A gente aprendeu isso... CANDICE É mais seguro... LUCAS Que é mais seguro, é óbvio! É óbvio! CANDICE O nervosismo é um descontrole. Gera um descontrole. Então você vai pra onde tem controle. Na... LUCAS Exatamente. Então você vai pra onde tem controle. Pra onde você tem controle? Aonde você tá acostumado a sua vida inteira vê... é ali! CANDICE ...representação. É que você vai ter que se colocar de uma maneira muito mais exposta. LUCAS Muito mais. JOELSON Sim... LUCAS Muito mais. Total. Totalmente. Você se expõe através de... é. 114 LEONARDO E tem outra coisa. O descontrole requer uma solução. LUCAS Dessa interpretação... dessa personagem, essa coisa LEONARDO A gente conversou ali fora. E todo mundo se sente responsável em dar uma solução. Então a gente se encontrou ali, no meio, e falou: tá sem ritmo, né... (risos) ... Aí todo mundo desembesta a correr. LUCAS É... Aí eu entrei pra fazer o monólogo, né... e fiz o monólogo em dois minutos! LEONARDO Tá na sua mão, tá na minha, tá na dele... LUCAS Não tinha a imagem, não tinha nada, (murmúrio) ... foi completamente jogado fora. Até a hora em que eu me sento na cadeira. Pelo menos eu achei assim. JOELSON Não foi tão assim também não... LUCAS Tá. Não, tudo bem, tá... Beleza, mas, assim, poderia ser melhor. CANDICE Menos imagem, menos... LUCAS Mas por isso, né... pra parar com essas bobagens, é... No final das contas, também... sei lá... não foi isso tudo... ÂNGELA É pertinente isso que você tá falando. Porque eu acho que aqui a gente, nós cinco aqui, eu acho que tá todo mundo super empenhado em fazer o melhor. Eu, por exemplo, sei que eu sou a rainha de fazer tudo isso que o Joelson tá falando. Mas eu... eu não... ontem eu até falei com o... com você... que, pra mim, é a maior dificuldade. É exatamente chegar no natural. Eu acho que é a grande complexidade, e agora você diz assim: ah, é muito fácil, você olha e faz... Pra mim, é exatamente o mais difícil, é o que 115 eu estou buscando, pra mim. Entendeu? Então, é... Aí eu vario. Às vezes eu faço, às vezes não faço, mas eu tenho consciência da merda toda que eu fiz. CARMEN Mas eu acho não que é porque é fácil. É por que é simples, é porque às vezes a gente complica... ÂNGELA É. Eu acho que a grande beleza do ator é quando a gente chega... CARMEN Chegar na simplicidade é que é difícil. ÂNGELA ...na total folga, é que também eu não posso chegar num palco do jeito que eu tô aqui, sentada assim, o pessoal batendo papo... LUCAS Tão batendo ali? ÂNGELA O Joelson tá dizendo que é assim... BERNARDO MARCÃO!!! ÂNGELA Eu acho que não é assim. Eu acho que você tem que ter alguma energia que você precisa como ator. Eu entendo assim. Eu acho que o ator não pode ser a mesma coisa que eu me levantando na minha casa, da minha cama. Eu acho que não é isso. Então, esse, essa... esse pequeno fio que separa isso que você almeja, que eu também almejo, do vir a conseguir, eu acho a grande, a grande sacada. Que eu, às vezes consigo, às vezes eu não consigo. Mas eu tenho a consciência de quando eu não consigo. Entendeu? Quando eu consigo eu nem tenho a consciência, mas quando eu não consigo, eu tenho plena consciência... mas aí já rolou, já rolou, já... entendeu? Então, acho que isso tem que ficar muito claro, porque a gente, todos aqui, estamos tentando. Então...Acho que isso é importante. Pra mim, é importante... JOELSON É, mas eu não tô falando nesse... oi! MARCÃO Pode abrir já? JOELSON Não. LEONARDO Que isso? 116 JOELSON É gente pra ver a peça? MARCÃO Acho que é... LUCIANO Caralho! JOELSON O quê... são quinze pras oito. A peça é nove horas. CANDICE Vai fazer esperar lá embaixo? LUCAS Toma um chope. CANDICE Esse pessoal não pode esperar aqui dentro não... ÂNGELA O povo tá querendo a senha, né? LUCAS Eu tô achando que é a senha. JOELSON Gente... Eles nem fizeram esses papéis ainda pra eu entregar. ÂNGELA O que é isso...! JOELSON Eles não me entregaram. LEONARDO Fala que abre oito e meio então? CARMEN Pega um programa, pega um programa... CANDICE Ah, é... Boa. CARMEN E entrega o programa. CANDICE Acho melhor deixar as pessoas entrarem, gente... elas vão ficar esperando? 117 ÂNGELA Eu acho... CANDICE Não tem onde ficar. JOELSON (se levanta) Deixa eu ir lá ver. (Joelson se levanta do círculo que havia se formado ao lado da piscina. Entra e sai do salão a fim de pegar os programas, levando à cabo a estratégia de Carmen.) Fala pro Marcão pra ele prender o cachorro. (Joelson desce a escadaria que serve de entrada para o público, na primeira porta onde consta o número 98.) PÚBLICO Eu vim através do jornal. É... eu queria ver se eu pegava a senha e dez minutos antes do horário eu voltaria aqui. JOELSON É que.. Ah, sim. Você volta aqui depois... PÚBLICO Sim. Quinze minutos antes. JOELSON É que... o... o... rapaz que tá preparando as senhas pra mim, ele não trouxe ainda. Então eu vou te dar o programa do espetáculo. PÚBLICO Ele é válido como senha. JOELSON Sim. Você chega aqui, você fala: eu cheguei aqui, eu peguei esse programa... PÚBLICO Como é o seu nome? JOELSON Joelson. PÚBLICO Tá bom então. Obrigado. 118 JOELSON É pra uma pessoa só? PÚBLICO É. (resolvida a crise, Joelson retorna ao círculo formado ao lado da piscina. Na ausência do diretor a conversa continuava) BERNARDO Cresceu quando tinha que crescer... LEONARDO Foi ótimo. BERNARDO Foi ótimo. LUCAS Se for pra São Paulo, né? Então eu acho, né, que a gente tem que... CANDICE Por que é uma pesquisa de linguagem, né? LUCAS Claro! A gente tem essa chance, né? Enfim, foi uma coisa que eu falei quando a gente se reuniu quando... da, na... a gente veio fazer depois do prêmio Myriam Muniz, a gente tem essa oportunidade na mão, né? Quem é que tem isso, né? Quem que tem? Geralmente se faz um trabalho, faz uma temporadinha e acabou, né? É a terceira temporada. Sabe? Como cresceu! CANDICE Re-elaborado, né? LUCAS Exatamente. Quantas coisas a gente descobre diariamente, né? E eu acho que esse tipo de discussão tem que circular sempre. Sempre. JOELSON Por que essa busca, essa busca pela coisa... pela coisa mais simplificada, né...? Ela é a busca mais difícil. LUCAS Exatamente. ÂNGELA Pois é. Exatamente. LUCAS E a gente tem um material completo pra fazer isso. 119 JOELSON E isso... LUCAS Pra esse tipo de discussão não ficar na teoria, entendeu? ÂNGELA E eu mesmo não me sinto à altura pra aprender isso, assim, de fazer do início ao fim. Eu tenho uma forma de concentração, eu tenho. É a minha maneira de trabalhar. Eu tenho isso, eu gosto de fazer meu trabalho de corpo, eu gosto de puxar... até tô querendo ir lá pra fazer... JOELSON Mas o que eu tô falando... ÂNGELA É um caminho que é meu. JOELSON ... não é nada contra isso. O que eu tô falando não é nada contra isso. É muito pelo contrário. É a favor disso. É a favor de você estar ligado. Eu só queria trocar o termo concentração pelo termo: atenção. Que a concentração é uma coisa que fecha a pessoa, ela fica ensimesmada, fica muito concentrada: não posso sair dessa coisa, que eu tô agora. Eu chego num lugar... e não é isso. É o contrário. É: estar alerta. Estado de alerta. O tempo inteiro. Entendeu? Encontrar essa, essa... essa coisa alerta. Se acontece uma coisa, se você está muito concentrado na sua coisa, e acontece um problema, você não sabe resolver o problema. Você não sabe falar uma coisa... e, e... resolver aquela situação. Agora, se você tá alerta, pro que tá acontecendo em volta... de você, aconteceu um negócio, você resolve na hora. Né? Eu vou dar um exemplo. Eu vou contar uma história muito legal que aconteceu com a gente, né? A gente tava fazendo Crime e Castigo... LUCAS Crime e castigo, tem várias histórias. JOELSON É. A gente fazia isso: a história da batata... todo mundo conhece a história da batata? CANDICE Não sei essa. Conta! JOELSON A gente fazia isso... CANDICE Tá gravando... JOELSON A gente tinha surpresas. A gente se preparava surpresas. 120 LUCAS Durante a temporada. JOELSON Durante a temporada. LUCAS Que é um outro espetáculo como esse. Né? Nós trabalhamos muito. Então... então... quando...quando a gente tem esse material na mão, que a gente pode tra... trabalhar, e usar todas essas coisas que a gente busca, né? É uma oportunidade maravilhosa. JOELSON E aí... LUCAS ... não fica na teoria. É na prática, né? Não fica só no nível da... CANDICE É legal... LUCAS ... de... da discussão. Entendeu? A gente discute, pensa e... e... leva, né? JOELSON E aí a gente tinha essa coisa do, ... que a gente tava achando que a gente tava mecanizando o trabalho. Repetindo o trabalho. Então a gente começou a preparar surpresas uns pros outros durante a peça, pra pessoa levar um susto na hora e ter que resolver aquele problema. E a maior surpresa, a mais complicada de todas que aconteceu, e que... o personagem do Júnior, ele chegava na casa, ele dava um dinheiro pra família enterrar o morto. Não tinha dinheiro pra enterrar o morto. LUCAS Que era o Joelson. JOELSON Que era eu. LUCAS Que ficava lá... JOELSON E aí, um dia o Júnior me chega, no meio da hora de ele me dar o dinheiro, ele vira pra gente e fala assim: (murmúrios)... por que eu trouxe aqui essas batatas. LUCAS Por que eu passei no... JOELSON No supermercado... 121 LUCAS Eu passei na feira. JOELSON Na feira... e eu trouxe aqui essas batatas. Aí, eu, a Cristine e a Ângela, a gente ficou em pânico, porque eu era o morto mas eu ficava em pé, andando pela cena conversando com as pessoas. E a gente ficou em pânico! Era um desespero, assim. Vamos nos salvar, pelo amor de Deus!!! Como é que a gente vai sair dessa? Era assim! Um olhava pro outro assim! E era muito bom, sabe por que? Sabe, gente, fica um negócio assim... LUCAS Fica viva. Fica viva, viva. JOELSON Muito real! Era um desespero muito real! LUCAS É. Em meio segundo... JOELSON Aí a gente ficou assim: Ah, batatas! A gente vai fazer uma ceia! E aí... CANDICE Uma sopa, com as batatas... JOELSON E aí a Cristine: É, uma ceia! Vamos fazer uma ceia! Uma ceia, sabe? Mas um desespero tão grande! CANDICE Mas como é que resolveu? JOELSON Ficou nisso, na verdade. Fazer uma ceia. LUCAS Ficou nisso. Mas o desespero ficou ótimo, entendeu? Ficou super-vivo! Por que era isso, uma pobreza absoluta, uma miséria... terrível, né cara. E o cara dá as batatas... E ficou tão, né,? JOELSON É. LUCAS ...verdadeiro, aquilo, né? E aquela mulher recebendo aquelas batatas... JOELSON E o bacana é que... 122 LUCAS ... e ao meso tempo o cara, era a única coisa que o cara podia dar... CANDICE A salvação que eles tinham era isso. LUCAS Enfim. Ficou cheio de significado. Foi muito legal, né? JOELSON E o bacana que eu acho desse exemplo, é, assim, a gente pensar esse, esse... como que a gente tem que tá ligado no, no, no... na hora que a gente tá fazendo, no outro, nas outras coisas que tão acontecendo em volta, em tudo que tá ali. Né? LUCAS Em tempo real. JOELSON Quando eu falo: essa sala, essas portas, essas par... essas pilastra, esse chão que é diferente de um lado e do outro, vou ver como que eu piso, né? Tudo isso, né? E aí, você, se acontecer uma coisa que dá uma, um problema, tem... imediantamente aí aparecer uma solução, que tá todo mundo, né, pá! Né? Se, as... segurando ali o negócio. Né? Ó... só mais uma coisinha. É... Essa é a última, tá? Rapidinho. É, é... Existe sim, isso que você falou, dum estado diferenciado do ator em cena e da vida da pessoa que tá fora de cena. Lógico. Ele existe. Não é o lugar absolutamente quotidiano, ali dentro. Não é. É, tem lá... aqui é muito sutil, a diferença é muito pequenininha mesmo, né? Mas esse lugar, ele existe. E eu percebo, é... que a, é... a existência desse lugar, ela, ela passa muito numa, na questão da consciência... É... dessa coisa da consciência: de onde eu estou, que que eu estou fazendo agora, né? Do... dessa capacidade do ator estar fazendo, estar vendo o que ele está fazendo, ao mesmo tempo. Por que a gente faz isso. Né? A gente sabe que se a gente faz assim com a mão... LEONARDO A mão tá colocada aí. JOELSON ... a mão tá colocada aqui e ela tem determinado efeito. A gente sabe disso. A gente faz isso. Né? E isso não tem nada a ver com quotidiano, que no quotidiano a gente não fica pensando no que a gente tá fazendo. Né? E a gente em cena a gente pensa o tempo inteiro. Eu tô pensando, a gente tá pensando, né? Onde que tá meu pé, onde que tá minha, minha... pra que lado que eu tô virado, nesse momento, né? Existe um engajamento de, de, de.... digamos assim, de energia, que não é o,o,o,... que a gente tá fazendo aqui, agora. Batendo papo, e volta da mesa. Né? Por que, pode ser que do outro lado também, que é a gente querer encontrar alguma coisa absolutamente quotidiana, e ficar representando a gente mesmo. Né? Que é o que eu acho que eles fazem, por exemplo, lá na (Nome Suprimido). Lá na (Nome Suprimido), querendo encontrar um quotidiano, como eu conheço bem aquelas pessoas, eu fico olhando assim pensando: ai, que saco! Que eu vejo que eles tão representando eles mesmos. Né? Que eles sabem fazer melhor, mais bacana, mais bonito. Né? Ridículo. Mas... esse não é o nosso caso. 123 Nosso caso é só essa... estar ali. Estar presente. Né? Eu vou dar uma gargalhada: eu vou dar uma gargalhada. É só isso. Entendeu? Falou uma coisa: (ri) Ri da sua cara. Entendeu? Né? Mas aí, a gente entra no lugar da representação. Eu vou dar uma gargalhada: (ri, tal um farsante) (risos) Entendeu? É muito... é um lugar muito pequenininho, né? Muito simples, né? Eu vou bater na mesa. Puta que o pariu, Candice... (bate na mesa) ... eu vou bater na mesa. (marcando a fala) Puta que o pariu, Candice! Já coloquei uma entonação: estou batendo na mesa! Entendeu? CANDICE É fake. JOELSON É. LEONARDO Olha como eu bato! JOELSON Olha como eu bato na mesa muito bem! (risos) JOELSON Tá? Podemos... LUCAS Devemos. Saem de cena para entrar em cena. 124 II – CONVERGÊNCIA. “A tecnicidade do objeto é, portanto, mais que uma qualidade de uso; ela é o que, em si, se ajusta a uma primeira determinação dada por uma relação de forma e matéria; ela é como o intermediário entre forma e matéria(...). A tecnicidade é o grau de concretização do objeto.” (Simondon, 1969:72) 2.1. Teatro disperso e encontrado Todos para dentro. É o que acontece quando Lucas Gouvêa, no papel de Vicente Costa Lourenço, pergunta ríspida e impacientemente “se não vão entrar”, dirigindo-se ao público. Enquanto isso não ocorria, o público esperava do lado de fora do casarão, circulando num pátio que emoldura uma piscina, servidos de água e refrigerante pela assistente de direção, Carmen Zanatta. Com as janelas do salão abertas era possível ver os atores do lado de dentro e, do lado de fora Candice Abreu, no papel de Leda, recebia um ou outro espectador. Ela já estava “meio assim”, disse um de seus amigos presente em uma das apresentações, como que incorporando sabe se lá o quê. Havia música ambiente e não se fazia idéia precisa acerca do momento no qual a peça começaria. A expectativa indica, contudo, que a situação deste encontro há muito tempo vinha sendo preparada. Desde a divulgação da data e hora de cada apresentação que inscreve o espetáculo no que há disponível como trajeto e experiência na cidade do Rio de Janeiro, e quem sabe mesmo antes, os elementos técnicos de apresentar e assistir são cuidadosamente inventados e inventariados. É quase como se a diferença deste momento com algum outro qualquer fosse de intensidade, orquestrada desde o recebimento dos convites pelo público alguns dias atrás, conduzindo-se pela entrada marcada com o cartaz da peça. O mesmo cartaz que marca a entrada é uma réplica do frontispício do convite distribuído, permitindo a repetição exigida para a confirmação dedutiva de um endereço. O texto, contudo, já impõe outro horizonte, mais desafiador. Repetindo o já utilizado no programa distribuído no ano anterior, na Casa de Cultura Laura Alvim, alguns pontos apresentam sentidos do que virá a ser mostrado, que vão desde o preto e branco da fotografia parcial de Leonardo em suas asas de anjo (na pele de Fernando) até um certo pessimismo existencial detida na última frase do segundo do texto assinado por Joelson: quem nós conhecemos realmente? 125 (fig. 04, Filipeta digital do espetáculo que não contém as mesmas informações que a filipeta impressa. Todos os leitores assistentes devem se adequar ao mesmo tempo)51 51 O texto encaminhado por Joelson Gusson via e-mail é o seguinte: “Queridos amigos, “O Que Nos Resta é o Silêncio”, meu último trabalho e que agora está reestreando, foi apresentado pela primeira vez como Work in Process no Festival Riocenacontemporânea de 2005, estreou em junho de 2006 na arena do Espaço Sesc em Copacabana e logo depois cumpriu temporada na Casa de Cultura Laura Alvim. Além disso, foi contemplado com o Prêmio Miriam Muniz de Teatro concedido pela 126 Pontuar um processo criativo no qual cada um dos atores cria uma personagem de forma a encenar questões relevantes para si, além de apresentar importantes desdobramentos sobre a autoria do espetáculo, permite que se possa procurar algo em especial: as personagens sugeridas, avaliadas como aprimoramento dos atores. Praticando qualquer paralelo entre o real e o ficcional, onde reside a verossimilhança na apresentação de auto-representações, que recebe o nome de mise em abyme52? Visando a fórmula da observação de segundo grau própria da autoria moderna (Gumbrecht, 1998), criar personagens que representam as questões de si-mesmo, este o agente da cena, faz com que a situação da representação como aparato diplomático de um sentido outro, como o de um texto de Ibsen, seja um complicador, dado que embaralha os índices de agência. Ao entrar no salão onde se deu a apresentação, o mesmo público se depara com o jogo de iluminação, a disposição de móveis e locais de assento que constituem o que Funarte/Petrobrás. Ficaremos em cartaz de 31 de maio a 17 de junho (dia 31 é apenas para patrocinadores, apoiadores e convidados do elenco). São poucos lugares então não podemos nos dar ao luxo de chamar todos a quem gostaríamos para a estréia. Como este espetáculo ganhou o Prêmio Miriam Muniz de Teatro nós resolvemos fazer as apresentações com entrada franca. É só chegar uma meia hora antes pra retirar a sua senha. Eu estou enviando em anexo o convite virtual. Não é necessário imprimir. Basta ir assistir. Aí segue o serviço: O Que Nos Resta é o Silêncio de 31 de maio a 17 de junho Local: Casa da Glória (Ladeira da Glória, 98, Glória, RJ) sextas e sábados 21 horas e domingo às 20 horas ENTRADA FRANCA Como chegar: De metrô, saltar na estação Glória, sair sentido Outeiro e subir a ladeirinha ao lado do Amarelinho da Glória. De ônibus, saltar no mesmo lugar que de metrô. Se for de carro fique tranqüilo pois tem muito lugar pra estacionar lá.Abraços a todos. Estou esperando por vocês lá. Ass: Joelson Gusson”. É evidente que, muito mais do que apresentar quaisquer credenciais dos significados que servem de propósito à peça, sua maior preocupação está em fazer com que as pessoas tenham suporte técnico para encontrar o local da peça na hora certa, em tempo hábil inclusive para encontrar o salão suficientemente vazio para que caiba ao menos mais uma pessoa. Não deixa, contudo de fornecer alguns dos sentidos absolutamente indispensáveis para o encontro teatral em orquestração. 52 “(Do francês, sem correspondente em português.)(...) A auto-representação (que também se chama auto-referenciação quando o texto remete a si mesmo, e não ao mundo) é um caso particular de mise em abyme (...) A auto-representação teatral diz respeito, na maioria das vezes, a uma representação desdobrada, o que remete à forma bastante conhecida do teatro dentro do teatro.(...) O teatro tem muita dificuldade em falar do teatro em termos teatrais, a saber, não literários e lingüísticos, mas cênicos e lúdicos: até mesmo PIRANDELLO é um teórico muito falante.” (Pavis, 1999:245) 127 há para ser assistido, fazendo da casa e do salão sujeitos da experiência proporcionada. As cadeiras e sofás que vieram a alojar o público não oferecem o confortável afastamento entre atores e platéia dos palcos italianos, deixando indistinto o desenho informador da boca de cena. A boca era igualmente garganta. Todos para dentro. “Todos” quem?53 Antes de seguir com a identificação deste coletivo, cabe uma digressão metodológica. O que ora apresento é circunscrito aos problemas desta pesquisa de campo, segundo algumas possibilidades de descrição e articulações teóricas sugestivas ao problema levantado em meu projeto de pesquisa, como já registrado, o da descrição de como é um papel papel-personagempersonagem-dede-ficção. ficção É com o intuito de desenvolver tal descrição que recorro à figura da dispersão, própria ao andamento do trabalho do ator, que modifica seus papéis de forma significativa segundo a geração de sincronias cuja coreografia coletiva amplia em extensão progressivamente, partindo dos trabalhos individuais para atingir uma outra marca, a de um agenciamento propriamente coletivo do evento teatral. É neste complexo de expansão que a multiplicação de papéis assumidos por um ator durante o período pesquisado aponta uma relação importante entre linhas de definição temporais, montagem de papéis de ficção e de cenas teatrais, uma vez que as modificações implicadas nesta relação culminam em desdobramentos da comunicação autoral compacta segundo linhas de condução próprias da passagem entre segmentos ambientais. Se no começo do caminho houve maior dedicação às deduções e algumas das implicações das técnicas de encontro, aqui o processo é fundamentalmente outro. Considerando que lido com formas mais específicas de encontro, e que de alguma forma definem a experiência mais própria aos trabalhos dos quais fui antropólogo residente e assessor teórico, as articulações necessárias para promoção do evento são de montante igualmente específico e se afastam, em certo sentido, das formas corriqueiras de wayfinding, exatamente por haver o rompimento com a premissa de 53 Vide anexos. 128 que se está diante de uma landscape. Assim, visando o recurso da especificação como objetivo de orientação dos atores em questão, me dedico a compor um quadro a partir de séries teleológicas definidas por espécie. Numa aliança orquestrada entre Simmel (1987), que move o pensamento por via de finalidades e valores, e Peirce (1972, 1977) que articula formas diagramáticas de simbolismo e uma teoria dispersa do sentido dos objetos, me preocupo em apresentar alguns eixos de relação do sentido comum do testemunho teatral – mesmo que este sentido não seja propriamente substantivo. Assim, se parti da relação dos endereços e mapas que, dada a relação constituinte da elaboração de diagramas de coordenação que preside a confecção da compatibilidade entre cada uma destas formas de orientação, imagino ser razoável inferir à especificidade do mapa, enquanto tal, agenciador de deduções no sentido em que: “Dedução é o modo de raciocínio que examina o estado de coisas colocado nas premissas, que elabora um diagrama desse estado de coisas, que percebe, nas partes desse diagrama, relações não explicitamente mencionadas, que se assegura, através de elaborações mentais sobre o diagrama, de que essas relações sempre subsistiram, ou pelo menos subsistiriam num certo número de casos, e que conclui pela necessária, ou provável, verdade dessas relações.”(Peirce, 1977:05) Isto nos leva à pergunta freqüentemente ouvida na porta de um casarão transformado, provisoriamente, em casa de espetáculo: é aqui mesmo? Não só conjuga-se nesse ato a repetição entre tipos gráficos e os pontos focais da paisagem urbana em cartazes que nos últimos quatro séculos desempenham uma história própria dos termos públicos de negociação e importância de temas (Chartier, 2004:91-129), como encontrar o cartaz e o endereço estabelece uma situação limite, no qual o termo médio que garante a correspondência entre premissas e elaborações subsistentes, cessa ou rarefaz, seu efeito. Salvo no método de encontrar poltronas 129 numeradas, o que não é o caso abaixo descrito, as coordenadas imanentes próprias do recurso ao mapa deixam de ser requeridos pelas relações que se disporão. A especificação dos termos de relação da situação do teatro exige outras formas de diferenciação, outras espécies de raciocínio. Começo com um dia de ensaio. 09 de maio de 2007, 22 dias antes da re-estréia do espetáculo O que nos resta é o silêncio a ser apresentado pelo grupo Dragão Voador teatro contemporâneo. O endereço - tanto dos ensaios54 quanto da apresentação - tem um nome: Casa da Glória, localizada na Ladeira da Glória, número 98. Era um dia de chuva e frio, daqueles que, como dissera Candice de Abreu (atriz), “faz com que cariocas queiram pedir licença à sociedade”. Já freqüentávamos o endereço havia quase um mês. Não entrávamos mais pelo acesso de serviço. Marcão, o caseiro, já se dispunha a nos poupar da ladeira do endereço de forma a chegarmos diretamente ao salão um a um, cada qual vindo de um lugar, com diferentes razões para atrasos e cronogramas pessoais. É uma quarta-feira, 9:30 da manhã. Na meia hora após o combinado para a chegada, os trabalhos de organização do espaço de ensaio se deram quase que inteiramente, mesmo com o grupo desfalcado. O básico da organização do salão no qual se ensaiava constava em varrer, especialmente no primeiro ensaio da semana; trocar de roupa, prezando o conforto, em detrimento da beleza, e a praticidade, em detrimento do asseio; e dispor os móveis no salão, mas 54 A referência direta à palavra ensaio possui um campo semântico vasto e particularmente interessante, dado que abrange campos da experiência moderna muito diferentes entre si, mas que se permitem reconhecer. Podemos lembrar, por exemplo, de Galileu Galilei, Il signatori, o ensaiador, em algumas das fórmulas da ciência experimental, assim como o tipo de cuidado da confecção laboratorial by Boyle´s way que opera isolamento de elementos pertinentes tal como uma sala de teatro moderna. Contudo, se esta aproximação soa um tanto a improviso, cabe lembrarmos da fundação do drama burguês como gênero de teatro moderno que, na pena de Denis Diderot (Paradoxo sobre o comediante, Discurso sobre a poesia dramática, Da interpretação da natureza), é tratado em homologia às ciências experimentais, dando à química especial relevância em sua elaboração do novo esforço do pensamento de revelar os fingimentos os quais os eventos naturais se prestam ao lidar com os órgãos dos sentidos. O dicionário Pavis de teatro (Pavis, 2003) é especialmente enfático no registro de que este momento, o ensaio, é mais de tentativas do que de repetições, tal como no francês répétition. Reforça-se freqüentemente seu caráter de criação, em oposição a qualquer forma mecânica de atividade, e daí a ênfase no que funciona, no que cumpre função, no que gera organicidade, presentes na locução, tantas vezes acionada: isto funciona, isto não funciona. A extensão da pregnância laboratorial é reforçada pelo já extinto Teatro Laboratório polonês, de Jerzy Grotowski, e pelo Laboratório do Ator da cidade de Campinas, São Paulo, duas articulações bastante contemporâneas, permitindo-me até formular alguma associação epistemológica entre formas ficcionais e experimentação laboratorial, em especial no que tangem os conceitos formulados por Wolfgang Iser: seleção, combinação e auto-indicação (1996). Volto a isso mais adiante. 130 somente quando os braços necessários estavam presentes. Conversa-se. São realizados os aquecimentos. As conversas passeiam pelos trabalhos e os dias, o cansaço da dupla ou tripla jornada de trabalho (duas peças, aula e, num caso específico, a venda de doces mineiros), além do relatório sobre um espetáculo ou fofoquinhas que dizem respeito a uma ou outra pessoa as quais eu quase nunca sabia quem eram. Contudo, o que compõe um quadro informativo do começo de um dia de trabalho a partir de relatos pessoais é também prática significativa do que se faz em teatro, cujo ofício, em parte, é o de conversar repetidamente as mesmas conversas, por pelo menos duas horas, como se fosse uma primeira vez, até que ocorram a contento. É o que se pode chamar de ensaiar as falas. Afinal, é disto que se trata significativamente o que é próprio do ensaio na montagem das cenas e das ações das personagens. Mas não é tudo. Antes de atingirmos este ponto tão teatral, a conversa é também a geração de exposições formais que, assim como nas formas exploradas de dispor os móveis e demais objetos, dispõe pessoas. Não servindo exatamente como apresentação de credenciais, é um dos vários atos de memorização que o trabalho teatral obriga ao praticante, no sentido de saber com quem se está falando, além de como se faz ou como deveria fazê-lo. Até a primeira meia hora, nada dos meninos. Com exceção de Joelson Gusson, diretor, Leonardo Corajo, Lucas Gouvêa e Luciano Moreira estavam atrasados. Quanto a mim, não era um dos meninos. Era o antropólogo que veio a se tornar o assessor teórico do grupo tal como registrado no programa da peça, participando de tudo de acordo com o que me fora possível. Minha atuação, que até a presente data vem se prorrogando, diz respeito à tarefa de pesquisa, de sugestão de leituras e de levantamento de bibliografias comentada. Uma vez constatada a relevância da leitura correta: “Tem que ler Grotowski”, me disse Celina Sodré; “Você tem que se preparar. Tem que ler coisas como Stanislawski e Grotowski” me disseram Candice e Joelson; uma vez constatada a relevância, saber indicar a bibliografia significa ampliar o acervo de frases disponíveis, assim como referências para justificativa de decisões tomadas, entre outras coisas. Há algo na evocação de um autor, de uma pessoa que não é um qualquer, que permite dizer mais do que se o locutor não fosse apenas o médium, se falasse somente por si. E o médium qualificado há de saber se diferenciar. De alguma forma este regime de locuções de outrem pairava. Já no nono dia de ensaio de uma peça que iria re-estrear, todos manifestavam a clara intenção de esperar a cada um dos componentes para iniciar o aquecimento, 131 resguardados os limites de tolerância. A meia hora de atraso de ao menos um dos atores se tornara uma regra. Mas a partir do dia 09 era o calendário, ao invés do ritmo interno das cenas e do desejo pessoal, que povoaria o cenário das diretrizes de trabalho. Esta data, estranhamente exata, me serve de marca da diferença de tempos e, conseqüentemente, de ênfase em cada uma das atividades diárias. Ao ouvir a pergunta de Candice sobre esperar um pouco mais a chegada dos meninos, Joelson fora seco: “Não. A gente já está perdendo muito tempo”. A referência ao coletivo é clara, compondo um tipo de ação que não cabe a cada um e ao que faz individualmente, uma vez que o que se faz e o que se deixa de fazer, cada vez mais, é um problema do grupo tomado como coletivo, e não da pessoa e suas idiossincrasias. A remissão ao coletivo impessoal55 a gente, que é sujeito da frase substituindo sempre o nome próprio do grupo56, encaro como índice de agência – no sentido proposto por Gell (1998) -, afirmando que se alguns membros individuais estavam atrasados, no plano impessoal o que ocorria era a falta de otimização do uso do tempo disponível. Neste grau o tempo não é o de um sentimento íntimo da diferença somente ou uma fonte de fluxo imanente, mas também uma unidade de medida posta em quantidades como, por exemplo, 18 parafusos que, ou se têm à disposição, ou não. No caso, a gente já perdeu parafusos demais. É preciso economizar. O sentido é um pouco este. O tempo a ser articulado para a agência da gente não pertence a ninguém em específico, afetando a todos, mesmo que não por igual. Nessa economia o administrador da propriedade (tanto no sentido de οικοσ57 quanto das propriedades de elementos cênicos, tal como numa química dos acertos) é Joelson, agente das agendas de trabalho que precisa fazer dos dias úteis, úteis. Esta redundância é tão constituinte quanto o tipo de descompasso entre os acordos que o grupo Dragão Voador, o qual passo a chamar de a gente, tem entre si e com a produtora envolvida no processo. A configuração das relações dispostas no dia-a-dia faz com que 55 Sobre a noção de impessoalidade, além do comentário final sobre a noção de pessoa no presente trabalho, vide Schérer (2000). 56 O nome Dragão Voador teatro contemporâneo eu não ouvi ser pronunciado em momento algum durante os ensaios ou em qualquer outra situação em que eu estivesse presente. 57 “Casa, habitação; quarto, sala; templo; bens, família.” (Dicionário Grego-Português e PortuguêsGrego, Isidro Pereira, 1969) 132 diretor-agente-da-agenda componha um registro escrito de todos objetos a serem postos em cena (como cadeados, bolas de gude, ternos, batons, bolas de soprar) ou para a cena (extensões elétricas, abajures, lustres, caixas de som, cartazes, convites eletrônicos, lista de convidados, lanches), cuja relação demanda nexos indissociáveis para a composição das mesmas, incluindo a convocação do público: as datas e horas certas, lista de convidados pessoais, carga e descarga do que é trazido ou levado embora, a responsabilidade pelo transporte e preço do serviço (atores do grupo o fizeram sem acréscimo do pagamento regular previamente acertado); programação visual etc. Este trabalho, que é distribuído entre diversas pessoas, regularmente seria gerenciado pela produção58. No caso a Fomenta Produções, produtora envolvida, seria responsável pela mediação entre transportes de coisas por via das pessoas contratadas para trazer e fazer elementos de cena, assim como distribuir pagamentos. Contudo, a forma de constituição de a gente que pude presenciar não se fez por esta via. Privilegiando a economia de recursos financeiros, bastante restritos por sinal, fez com que o ônus das atividades de produção recaísse no próprio grupo, em especial no colo do agente da agenda, Joelson Gusson. Sua prioridade neste quesito fora o de regularizar a sincronização da ação externa em prol das necessidades internas de montagem de cenas e personagens, o que nem sempre ocorreu a contento. Diante do peso de produzir e encenar, a chegada dos meninos com meia-hora de atraso gerou uma pequena preleção sobre o tempo disponível, tal como sua alocação viável, e a distribuição de responsabilidades. Esta não foi, contudo, a única vez que uma conversa geradora de mal-estar se deu, e tampouco seu conteúdo ético, digamos, fora novidade, como a Preleção contra a personagem deixa bem claro. O que este tipo de intervenção da parte de Joelson estabelece são eixos de assimetria de responsabilidades 58 “PRODUÇÃO TEATRAL: O inglês production tomado como encenação, realização cênica, sugere bem o caráter construído e concreto do trabalho teatral que precede a realização do espetáculo. Às vezes se fala de produção do sentido ou de produtividade da cena para indicar a atividade conjunta dos artesãos ou executores do espetáculo (do autor ao ator) e do público (recepção). A produção do sentido não termina, de modo algum, com o final da peça; prolonga-se na consciência do espectador e sofre transformações e interpretações que a evolução de seu ponto de vista dentro da realidade social exige e produz. [No Brasil, o termo produção teatral engloba todos os procedimentos adotados para o levantamento material do espetáculo, abrangendo custos (a produção propriamente dita) e a operacionalização da encenação (contratação e administração de pessoal artístico e técnico, aquisição de materiais etc.(nota do tradutor)]” (Pavis, op.cit:307). Se muito das formulações sobre a arte, em especial sobre estética, abordam problemas da produção de produções que as artes assumem, neste caso a fórmula não é uma figura de linguagem ou um outro arranjo, pois uma das situações a serem resolvidas (aqui um tanto no sentido musical) é a das relações de gênese da produção que produz o espetáculo. Este tipo de problema pode ser desdobrado para outros campos, como o do cinema que não somente produz produções como as des-produz também. 133 situadas com diferentes graus de importância e, por conseqüência, de agência, na incorporação (embodiment) dos papéis. Durante o correr dos vários dias em que se deram os ensaios, Joelson se queixou de uma série de situações: do excesso de evocação de seu nome nas vésperas da re-estréia, do desequilíbrio entre sua oferta de soluções e a apresentação de problemas por parte dos atores, do tom ríspido ao ouvir sobre as tarefas delegadas enquanto que, ao prestar contas do que fez, o faz com polidez; todos momentos nos quais se situa, marcando sua posição em diferença da posição dos demais. Diante da agenda, o papel de diretor, tal como Joelson o faz, se dispõe em assimetria. Primeira diferença posta, e feitas algumas requisições sobre o que há de ser feito, o dia 09 de maio pôde prosseguir. O aquecimento que sucede as conversas preliminares situa outras diferenças de papel, ornamentando momentos que evocam habilidades e propósitos particulares. Dada a falta de sincronia na hora de chegar à Casa da Glória, cada um começou seu aquecimento tal como fora conveniente, mas sempre individualmente, isto é, levando em consideração somente a si. Assim, os exercícios de postura que participam dos trabalhos de Ângela Delphim (atriz), como habilitada em balé contemporâneo (técnica corporal) pela escola Angel Vianna, não só lhe davam recurso de enorme regularidade como veio a se tornar referência na sugestão de aquecimentos coletivos. Candice Abreu, por sua vez, buscava apresentar novidades (o avesso do regular) como bolas de massagem, escovas de chão para a ativação da circulação sangüínea59 e passos de capoeira na qual era iniciante. Os meninos mantinham uma rotina de alongamentos, vez por outra incorporando uma ou outra fórmula apresentada pelos demais ou mesmo sugerindo algo. Esta que é uma disposição freqüente em outras montagens de teatro, como pude investigar um tanto por alto, com 59 Da discussão da agência dos objetos há muito a ser formulado. Contudo, há algo que pode ser apresentado como nota etnográfica. Se Candice apresenta a escova como objeto de aquecimento, propiciando a ativação da circulação, pude ver em outro trabalho que corria paralelo ao O que nos resta é o silêncio a utilização de um mesmo objeto como instrumento de limpeza e dor. Tive a sorte de poder acompanhar a montagem de dois trabalhos do Dragão Voador. A segunda fora a que veio se chamar Manifesto Ciborgue. A comparação revela tanto um método de trabalho como a ampliação das regras consentidas de composição de cena. Tanto um trabalho quanto outro são oriundos da composição individual, e solo, de partituras de ação física (vide Pavis, 2003; Bonfitto, 2002). No caso de Manifesto Ciborgue cada ator deveria compor sua partitura privilegiando alguns objetos. Rodrigo Maia, que não veio a permanecer neste trabalho, utilizou-se de uma escova de chão que, tal como Candice, a esfregava pelo corpo. Fazia isso com tal força que sua pele enrubescia. Não o fazia para aquecimento, dado que já estava ensaiando, mas sim para, de alguma forma, gerar sentido, estabelecer possibilidades, enfim, fazer cena. Permito-me sugerir que considerar esta linha de condução evoca tanto perguntar o que se quis fazer com a escova quanto perguntar o que é que a escova permite que se faça com ela. 134 a gente se desdobram em outras formas de preparação, coisa igualmente freqüente em outros grupos, em especial os que se mantém durante mais de um projeto de montagem. Se, em um primeiro momento, as ações se mostraram explicitamente individuais, a despeito de quaisquer imitações, o aquecimento coletivo propiciava um segundo momento no qual a gente é o sujeito da ação, quase que numa prévia da geração de formas de sincronia que tanto caracteriza a marcação do tempo em cena, em especial quanto às entradas e saídas da mesma, propósito das deixas60. Com o andar da carruagem, o tempo despendido com o aquecimento individual, assim como na elaboração de ritmo próprio, mostrava sinais de aceleração e perda de centralidade. O dia 09 de maio marca esta diferença. Pela primeira vez não se esperou a chegada da maioria dos atores. A gente estava perdendo tempo. Não é grande coisa constatar que parte significativa do que é feito antes de se passar às cenas em ensaio diz muito a respeito do que se faz fora do tempo dedicado ao mesmo; e tanto o aquecimento coletivo quanto o sucessivo incremento da arrumação do salão para a montagem das cenas servem de índice de agência externa e sua convergência no coletivo a gente. Minha simples presença é indicativa deste tráfego característico da ordem das diferenças que dá ao grupo sua composição específica, da mesma maneira que diferentes elementos técnicos compõem um espetáculo. É este tráfego que indica também que o acúmulo de encargos por desdobramento de funções não é privilégio de Joelson. Tentando me apresentar tão discretamente quanto possível durante os meses de pesquisa de campo, tomando cuidado em não ser intrometido demais, mesmo apesar de meus encargos adquiridos, dado que visava preservar o andamento regular das atividades em cooperação com a agenda, senti-me obrigado a acumular responsabilidades me desdobrando em papéis que não somente o de antropólogo. Tinha em mente a manutenção dos procedimentos que me propus a registrar. Queria tanto quanto qualquer um que a peça estreasse. Desta forma assumi um cargo de assessor teórico, ocupação batizada pelo próprio Joelson Gusson. Trocando em miúdos resolvi 60 “DEIXA: Palavra ou gesto de um ator* que sinaliza o momento de seu interlocutor entrar em cena ou falar. Também indica aos técnicos nos bastidores (iluminador, encarregado do som) o momento em que devem intervir. Atualmente, os atores são treinados a não ficar estreitamente ligados às deixas, mas sim ao sentido da frase. No teatro brasileiro do passado, havia inclusive o costume de se entregar aos atores, responsáveis por papéis* menos importantes, apenas a parte da peça em que atuavam, acompanhada das deixas que deviam memorizar. Isso criava a estranha situação de alguns artistas só tomarem pleno conhecimento da totalidade da peça nos ensaios corridos.” (Guinsburg, Faria & Lima, 2006:108) – grifo meu. 135 facilitar quando pude, a vida da gente e acabei incorporado ao coletivo ao me desdobrar em outras funções, como a de assessor teórico, cargo que descobrir ser mais comum do que imaginava. Meu primeiro acúmulo de encargos tomou lugar logo na primeira reunião do grupo onde a gente discutiu a remontagem da peça que, após sua segunda temporada na Casa de Cultura Laura Alvim (a primeira fora no SESC Copacabana), sagrou-se merecedora do Prêmio FUNARTE Myriam Muniz que confere ao premiado dinheiro para uma nova produção (qualificado por módulos de inscrição diferenciados pelo valor concedido), alguma notoriedade, e uma obrigação póstuma ao prêmio. É obrigatório agendar e efetivar novas apresentações do espetáculo mencionado em edital estabelecendo, inclusive, um limite máximo quanto ao preço do convite61. A gente coletivo do qual eu ainda não participara em momento algum - se encontrou na UNIRIO, no dia 13 de abril de 2007, onde estudavam Joelson e Candice. Para esta reunião Joelson havia preparado duas alterações importantes em sua concepção da peça. Em primeiro lugar, desta vez seria somente o diretor, deixando a personagem Ricardo para outra pessoa fazer62, pessoa esta que viria a ser Luciano Moreira. Joelson, em conversa, me disse ser muito difícil dirigir enquanto atua, pois há uma cisão irremediável entre assistir e fazer a ação planejada. Não podendo estar em dois lugares ao mesmo tempo, a dupla função de atuar e dirigir exigia um segundo olhar, o de um outro ator, que por fim, regulava suas próprias ações. O diretor é alguém de fora que pode falar a respeito do que se faz em cena. Sendo muito ruim e muito difícil controlar as etapas de direção, optou por não mais, coincidi-la com atuação. Isso aponta mais uma vez para a assimetria do papel do diretor, que é o que olha e ajuda a montar ao mesmo tempo em que prepara o terreno do tempo futuro, tanto da produção quanto da disposição cenográfica e das sincronias de cena que permitem que o 61 As sessões de O que nos resta é o silêncio na Casa da Glória foram gratuitas para o público. 62 Aqui, criar uma personagem, é tanto um trabalho de montagem que vige no plano da invenção de gestos e melodias vocais numa seqüência-partitura quanto de um tipo de pecuária da memória, na qual marcas e intenções são geradas de forma a manter a personagem dentro dos limites de propriedade, isto é, do que é apropriado segundo acordo de ensaio e sob domínio do ator. É no duplo regime desta relação que é possível dizer que um dado ator é ator de tal personagem e que opera uma forma de posse/possessão cuja agência precisa ser visitada. É particularmente significativo apontar este rumo de formulação pois neste debate sobre as formas de possessão, é indispensável perguntar quem é o sujeito da posse e quem é possuído. Neste sentido, o drama burguês diderotiano, ou a teoria das marionetes de Kleist aplicam formulações sobre posse, como o das faculdades da razão no caso de Diderot. O mesmo Diderot, porém, reconhece a possibilidade da insurreição dos órgãos contra a unidade central de controle, a memória, como veremos. No dilema que tonifica formas rituais de possessão e formas de auto-controle, o que me parece estar em questão é, em qual ser culmina o privilégio de agência possuidora dos outros modos de ser e quais modificações ocorrem ao possuído. 136 espectador encontre o eixo de condução da peça. Para os atores o diretor é o público, meses antes do público chegar. Para tanto, o diretor deve se encontrar com os elementos de montagem antes dos demais assistentes. Um a um, se possível. A segunda alteração portava mudanças no texto que implicavam desde a reconstrução completa de Ricardo, visando atuação de Luciano Moreira, até a abertura para novas idéias de fala e sentido de cena. O que foi significativo é que a entrada de Luciano gerou problemas que vão além do tempo e das dificuldades implícitas do ofício teatral. Luciano é muito baixo e qualquer cena mais intensa, como algumas presentes no repertório de Joelson quando de sua apresentação como Ricardo, soariam ridículas. Sua propensão à comédia, seu timing, exigia certa atenção dobrada: sobre o texto e sobre suas ações. O desafio maior, contudo, se dava na proposta de montagem original. Cada ator montou, isolado dos demais, uma cena pessoal (uma partitura) utilizando-se de objetos significativos no que diz respeito às personagens e a si mesmos: Lucas trouxe para sua cena fotos pessoais que, dado o fato de o corpo dele e de Vicente serem o mesmo, apresentava certa ambigüidade, fazendo das fotos da vida do mesmo referente plástico a apresentação de trechos de dois entes possíveis; Ângela utiliza, junto às cartas de tarot distribuídas, uma chapa de raio-x que, de um diagnóstico de sua sinusite, se transforma na apresentação de uma doença terminal da qual não se quer saber (ninguém no público, à meia luz, saberia fazer qualquer diagnóstico; fica valendo o desespero de Beatriz Bruchner). A peça fora construída ao redor destas cenas que continuaram um segredo entre os atores por muito tempo. Mesmo durante as apresentações do espetáculo as cenas pessoais se davam isoladas umas das outras por cortinas. Dado este estado de relações, Luciano precisava, além de tudo, inventar sua cena, compor sua personagem, sua pessoa de ficção, como o fizeram os demais. Estou falando, por fim, da importação em procedimento de Luciano Moreira e da ampliação do tráfego de enunciações. Luciano Moreira já trabalhava com Lucas Gouvêa em uma outra montagem – O fantástico mundo de Dissocia -, o mesmo Lucas que faltara na primeira reunião para participar de uma gravação no PROJAC, da rede Globo. Sua falta, além de indisposição, gerou uma lacuna para os trabalhos do dia 13 de abril. O que nos resta é o silêncio é uma peça de cinco personagens para cinco atores. Sem Luciano (ainda) e sem Lucas, Joelson e eu atuamos como atores step, do tipo que ensaia na certeza de que não vai estrear, fazendo da fala da personagem que lê mais uma deixa para a fala seguinte do que uma fala propriamente dita. Diante a leitura pude dar voz a Vicente Costa Lourenço, personagem a ser levado adiante, tal como já vinha ocorrendo, por Lucas 137 Gouvêa. Na leitura da qual participei fui por pouco tempo um tanto a gente como agente provisório. A chegada de Luciano Moreira algumas semanas depois e a presença regular dos demais atores articularam um outro tipo de esforço: o de gerar um tipo de situação de cena na qual os atores consigam prestar atenção entre si, atitude esta tomada como oposta ao da concentração, uma variação da atitude de ensimesmados ou de egocentrismo. A palavra de ordem, atenção, é característica do modo de trabalho conseqüente ao problema básico, já resolvido, de se encontrar cinco atores para cinco papéis. Os ensaios, a partir deste ponto, deveriam assimilar a presença dos novos elementos e reconstituir a dinâmica de trabalhos vigente no ano anterior. Com este objetivo, os primeiros dias de trabalho tomariam a forma de exercícios. A ausência de Lucas (que viajou na primeira semana de atividades na Casa da Glória) exigiu que o ensaio de cenas tivesse seu início adiado e permitiu, dado o caráter dos exercícios, que eu também participasse como a gente um pouco mais. No quadro em que Joelson propôs jogos de cena que absorvessem o tempo de ausência de Lucas, ao mesmo tempo culminou por gerar tempos de sincronia propiciando discursos sobre as dificuldades da vida contemporânea, em especial no que tange a atenção: as pessoas já não prestam atenção entre si, não ouvem, não conversam. Os exercícios deveriam minar, mesmo que parcialmente, este estado de coisas vividas pelos próprios atores a partir de formas peculiares de sincronização que, mais adiante, deram base para a gente trabalhar em articulação com uma razão de ser, quase que apontando para uma utopia comunicativo-comunitária. É preciso, a cada dia, algo mais que aquecimentos individuais. Diagnosticados e re-mediados os problemas centrais das relações enunciadas entre teatro e vida, dois exercícios propostos por Joelson tinham como meta gerar soluções contingentes para situações de cena aplicados aos recursos de importância: flow (fluxo) e raia, realizados sempre após o aquecimento individual. E aí já estávamos na Casa da Glória, em seu salão de festas, nos aquecendo como a gente deve fazer, respeitando a divisão interna do trabalho e, ainda mais, do assoalho. Seu piso é dividido rigorosamente ao meio, cuja composição se dá por dois materiais diferentes, situando em sua fronteira uma coluna retangular espessa no centro diagonal do retângulo da planta baixa da sala. De um lado, azulejo hidráulico. Do outro, tábua corrida envernizada. Por ser mais quente ao tato, e estamos falando de aquecimento da gente, a duração dos jogos se encerrava no aconchego da madeira. 138 O flow consiste em simplesmente caminhar pelo espaço já delimitado, caminhar este multiplicado em modos por apêndices de regra. Uma das restrições a este caminhar fora o de fazê-lo em linha reta. Cada participante deveria traçar uma linha reta imaginária no espaço e caminhar somente neste sentido. Na eminência de colisão, parar e, então, absorver à caminhada outro segmento de reta projetado num diagrama mental – o que, a esta altura, é muito familiar. Como complemento em outro momento tivemos que, ao caminhar, nos dispormos a derrubar ou sermos derrubados suavemente. Se A é derrubado, o que derruba, B, se deita sobre seu corpo e caso B seja derrubado, o oposto. A diferença entre quem derruba e quem é derrubado se dá num contrato entre velocidades, por exemplo, A é o que se projeta sobre B com maior velocidade. O jogo de raia tem maiores extensões e variáveis. Ainda restritos ao piso de taco, três atores se dispõem em três raias imaginárias de áreas equivalentes e regulares. O exercício começa com o os três atores na mesma extremidade da faixa. O objetivo é gerar ações simples sem interpretações gestuais ou maneirismos (sem esboçar intenções) buscando somente reagir ao que fora feito ao lado, de forma a propor um desdobramento. Nada de caretas, olhares e gestos preparatórios, nada de manutenção de andamentos pares ou composição de ritmos regulares. Sem gracinha. Nesse esquema, regras sobressalentes podem ser acrescentadas. No primeiro dia desse exercício (02/05/2007), só foi permitido andar para frente, para trás, agachar, deitar, levantar e saltar (para frente e para trás), sendo que diante qualquer deslize na observância das regras Joelson intervinha. Mas no que isso importa? Sem levarmos em conta que Luciano e eu começávamos a nos encontrar como a gente(s), que outra agência operava? O meu afastamento destes exercícios logo mais definia que, desempenhando qualquer papel que eu pudesse assumir, não seria como participante da gente, o exato oposto do que fora exigido dos demais situando mais uma assimetria. Na configuração da relação atores/papéis, uma rede se faz por via do procedimento de concretização do trabalho coletivo de extensões impessoais. Todos os atores ao mesmo tempo em que participavam da montagem de O que nos resta é o silêncio, também traziam consigo outros compromissos. Leonardo, na época aluno do curso de letras da Universidade Gama Filho, era professor de português e teatro em Miguel Pereira e freqüentava o Estrela Matutina, terreiro de umbanda. Luciano Moreira por sua vez é também músico, o que o habilita a trabalhar como diretor musical, além de se desdobrar em duas outras produções, sendo uma delas um trabalho sobre o Marquês de Tamandaré apresentado no Museu Naval do Rio de Janeiro. 139 Luciano e Lucas trabalhavam juntos em O fantástico mundo de dissocia. Lucas dava aulas de teatro em Niterói, enquanto buscava conciliar um e outro trabalho que vieram e se concretizar em novos projetos – dentre os atores em questão, foi o que em mais estréias veio a atuar no ano de 2007. Ângela Delphim trabalhava na montagem de Hedda Gabler (peça de Enrik Ibsen), dirigida por Floriano Peixoto. Candice encerrava sua graduação em teatro pela UNIRIO e se preparava para a pós-graduação, ao mesmo tempo em que também dava aulas de teatro. Joelson, além de dirigir e produzir O que nos resta é o silêncio levava adiante sua graduação em teoria do teatro na mesma UNIRIO e trabalhava como ator do Coletivo Improviso sob a direção de Henrique Diaz e Mariana Lima. Não suficiente, é preciso ressaltar os anos de trabalho e formação como atores, o que faz de cada qual uma rede não só de relações sociais, mas de articulações que abrangem técnicas de fazer e desfazer específicas das atividades no teatro em que são participantes, e que incluem desde noções precisas de ocupação de espaço, rudimentos em instalação de luz e som e táticas de evocação de público, em grande parte envolvidos na mesma rede de afazeres do teatro. Exercícios como os de flow e raia são assimilados de outros trabalhos e atividades, desde que constatadas sua funcionalidade, sua razão de ser, que pode ser simplesmente inventada. O caso dos exemplos descritos é oriundo da experiência de Joelson com o Coletivo Improviso, no espetáculo Não olhe agora. Sendo um espetáculo de improviso teatral, o que os exemplos supradescritos apresentam como procedimentos funcionais para um outro trabalho tão diferente, que pelas simples presença de um texto e de uma partitura cênica mais rigorosa faziam, de um e de outro, duas formas bastante diferentes de encenação? Não posso oferecer um caminho certo para desenvolver este problema, em especial da analogia de inferências sobre a eficácia de exercícios iguais para trabalhos tão diferentes, mas nas oportunidades que tive de participar, ao ser um pouco a gente, a dificuldade performática era candente. Olhar e fazer sem que se esboce qualquer duplo sentido, qualquer profundidade ou sequer alguma tentativa de dizer algo mais a quem assiste senão simplesmente o movimento que se faz, sem qualquer sofisticação. Pude ouvir algumas vezes, assim como ler a respeito, sobre não somente a aplicação de cada um dos exercícios mas também do conflito em atuar de uma forma tão contraditória em relação ao que se aprende, em geral, nas escolas de formação de ator – como explícito na Preleção contra personagem. A dificuldade em simplesmente fazer a cena num somente agir, sem buscar interpretar intenções em cena, evitando as sendas da 140 motivação profunda da psicologia da personagem do jovem Stanislavski (1984; 1993), por exemplo. Ângela, como é possível lembrar, confessou ter muita dificuldade com este tipo de desenvolvimento, a saber, da busca de uma linguagem supernaturalista para a encenação sem proscênio, que faria com que qualquer marca de intencionalidade profunda se transformasse em caricatura da ação, e não simplesmente a ação propriamente dita. A busca da motivação da personagem a cada movimento sugere um aparato gestual-expressivo que define um preparo de composição gerador de verossimilhança que é a do trabalho de compor em profundidade, carregando cada marca da personagem de um horizonte biográfico; dando ao movimento, à voz e à dicção um trabalho de interpretação do ator. Ora, me disse Joelson em um dos primeiros ensaios, não é o ator quem deve interpretar, mas o público. O ator deve agir e só. É neste núcleo problemático que os exercícios propostos trabalham, fazendo com que a gente somente faça a cena no mesmo tom e registro, um tanto à maneira das regras da raia onde deve ser mantido o esforço de analogias entre movimentos que ocorrem ao lado compondo aos poucos um sistema a ser expandido até, quem sabe, o público. É este o plano de agência impessoal do coletivo? De alguma forma a dinâmica do aquecimento coletivo como constituinte de a gente também gerou desdobramentos diferenciais, em especial no papel assumido por Luciano Moreira. A proposta de exercícios serem sugeridos por uma pessoa diferente a cada dia convergiu para uma pessoa só, ao menos quando ela se encontrava presente. O acervo de movimentos coordenados apresentado por Ângela, assim como sua disciplina no trabalho de aquecimento, fez com que a gente encontrasse regularidade. O oposto da disposição de Ângela fora a de Luciano, que por falta de hábito – e de habilitação, como veio a confessar: “nunca fiz um trabalho assim” – se eximiu de propor qualquer exercício de aquecimento coletivo. Se estes exercícios são constituintes de a gente, esta que Joelson veio a considerar estar perdendo tempo como se perdem parafusos, é por via deles que se dá partida a uma lenta e dispersa montagem por importação e especificação de formas objetivas de produção que, aos poucos dá margem a outro coletivo que assume a eminência de sua atualização: o público. Se, num primeiro momento, as atividades de ensaio se focavam mais no encontro entre atores e na memória da montagem da peça realizada ainda em 2006, cujo suporte é o texto dramático visando levantar mais uma vez cada uma das cenas, o segundo momento que tomo como marca do dia 09 de maio 141 de 2007, o da evidência da perda de tempo, é o da geração de público trazido pelo método de agendamento, isto é, o estabelecimento de estratégias na apresentação de objetos (cenário, iluminação, mesas e caixas de som, dímenes, convites, programação visual, lista de e-mails, cadeiras confortáveis e bonitas, extensão para fios elétricos, etc.) e da criação de datas nas agendas dos outros, convergindo a deles e a d´a gente. Este esforço de acabamento que visa um encontro efetivo que gera a própria economia do teatro, no caso uma prestação de contas com a FUNARTE e o encontro com o público que forma a própria atividade teatral, me permite arriscar a formulação do problema da seguinte forma. Estabelecido o paralelo entre a montagem da peça em níveis experimentais característicos dos ensaios, é constituinte da elaboração dos papéis, tanto os de ofício como os de ficção, a expansão dos níveis de sincronia correspondentes característicos da especialização que o coletivo a gente desenvolve. Pensando nestes termos imagino que este movimento que alia tempo, invenção de pessoas (Duvignaud, 1972) e imposições da impessoalidade, tem relação com o que Gilbert Simondon (1969) apresenta em sua reflexão sobre objetos técnicos, em especial no que tange a especialização dos objetos seguindo diretrizes de consistência e convergência. Seguindo este raciocínio: “A especialização de cada estrutura é uma especialização de unidade funcional sintética positiva, liberada dos efeitos secundários não investigados que amortizam seu funcionamento; o objeto técnico progride por redistribuição interior de funções em unidades compatíveis, realocando o acaso ou o antagonismo da repartição primitiva; a especialização não se faz função por função, mas por sinergia por sinergia; é o grupo sinergético de funções e não a função única que constitui o verdadeiro subgrupo no objeto técnico.” (id.ibid..:34) De repente me reporto aos objetos técnicos e não mais de uma peça, do teatro, de papéis? Sem precisar recorrer à raiz grega do conceito de arte (techné), a evocação do objeto técnico para definir a convergência ótima de esforços exigida por Joelson faz com que eu apresente então qual objeto está em montagem, não sendo preciso muito mais formular, dado que o próprio campo teatral me dá a resposta: o que está em montagem é uma peça, ressonando em profundidade quase que metalúrgica. Mas quando pensamos imediatamente no coletivo de agências que fazem do a gente agente, percebe-se que há mais sendo operado e que fora, após as apresentações, alvo de 142 extensas conversas com alguns componentes do público. Os atores, quando “estão a gente”, também estão por si, segundo sua própria habilitação, isto é, seu desdobramento em papéis. Eles apresentam seu objeto trabalhado. Não falo do corpo, que é trabalhado nos ensaios e não é o objeto em apresentação, isto é, não é o objeto técnico da especificação sinergética progressiva, embora esteja lá como elemento. É a personagem ou a figura que devem ser apresentados, pessoa de ficção, que é posta diante dos olhos que, segundo sua destreza em fazê-lo, dispõe o ator nas apreciações acerca do que foi feito. Lidar desta forma com o problema da apresentação teatral significa tomar a noção de pessoa como objeto técnico que só se põe como tal, como pessoa que se possa encontrar, por se dispor no mesmo grau de especificação sinergética. Considerando a freqüência em que opera a definição de Simondon: “O objeto técnico individualizado é um objeto que foi inventado, isto é, produzido por um jogo de causalidade recorrente entre vida e pensamento no homem. O objeto que é somente associado à vida ou pensamento não é um objeto técnico mas utensílio ou aparelho. Não tem consistência interna, visto que não tem lugar associado instituindo uma causalidade recorrente.” (Id. Ibdi.:60)63 Fazer do ator um oficiante que inventa ou cria64 pessoas a serem identificadas como tal segundo um grau de coerência interna em um ambiente associado e daí abstrair a correlação entre a noção de pessoa e a de objeto técnico. É um tanto demais tratar a noção de pessoa como objeto criado? Há dois pontos a favor deste movimento. O primeiro diz respeito ao suporte técnico dos objetos isto é, a forma dêitica de reconhecimento da agência de uma pessoa. Não é outra referência senão a do próprio Marcel Mauss a sugerir o corpo como objeto técnico mínimo (Mauss:2003:407), justamente onde, como veremos, pousa a fonte da ação humana enquanto tal. Por outro lado, há um desenvolvimento metodológico. Considerando o que se presta a constituir um objeto etnográfico, em especial neste trabalho que aborda o teatro como encontro 63 Uma objeção a esta aproximação seria a de forçar uma situação na qual o teatro seja apresentado como uma máquina. Contudo, se ocorre esta analogia não é por culpa minha. Um intelectual do teatro se adiantou ao publicar, em 2003, The haunted stage: the theatre as memory machine (2006). Contudo, tanto aqui quanto lá, qualquer conclusão a respeito de este ser um encaminhamento mecanicista é inútil pois ao remetermos às máquinas de memória trabalhamos no nível de distinção fundamental das ciências da vida que diferenciam a matéria orgânica da inorgânica, num primeiro momento, pela mesma memória que nos remete à maquinaria orgânica do universo teatral, assim como o faz Simondon com os objetos técnicos. 64 E criar pessoas é um ofício bastante familiar: igrejas, pais, professores, enfim... 143 entre pessoas, o que permite este jogo de conceitos? Fazendo-me valer de uma passagem de Raymond Firth: “O que é admirável sobre tais opiniões populares modernas não é sua liberdade do uso do simbólico, mas da forma aberta pela qual reconhece o uso e chamam-no simbólico.” (1975:21) O mesmo pode ser dito da noção de pessoa, tão recorrente nas províncias da antropologia e seus comentaristas e, contudo, está longe de ser domínio de algum monopólio das Associações Nacionais da disciplina. Não preciso me valer aqui de um informante exemplar que expõe toda uma prática teatral no aspecto sagrado do ensemble de pessoas, como o seria na leitura dos textos de Jerzy Grotowski (1990, 2007). Basta mencionar a etnografia de Ana Amélia Brasileiro da Silva (2004) que revela um outro problema, que é o do imperativo de “conhecer pessoas” do ofício teatral. Isso é desenhado em sua dissertação como uma estratégia de um campo artístico que se define fundamentalmente pela dinâmica do Q.I. (Quem Indica), e conhecer pessoas implica em conhecer somente as que são importantes no meio teatral-televisivo que possam oferecer emprego, encontro esse determinado fundamentalmente pela distinção entre escolas de formação de atores. Contudo, nas possibilidades do ofício teatral, conhecer pessoas apresenta um plano múltiplo de acepções. É inútil ignorar que nas cidades vemos efetivamente pessoas em todo momento e as tratamos como tal, posto que a pessoa é algo que se presta ao saber como um algo-lá dêitico. Aqui a categoria analítica e o termo nativo se confundem quanto ao que se dá ao conhecimento que, tal como circula no meio teatral, “saber é: saber fazer”. Como não lembrar de entrevistas de atores que definem seu “trabalho atual”, sua personagem, segundo o que precisou estudar da vida dos policiais, por exemplo, para fazê-lo bem? A pessoa é referente a quem, ao ator ou ao policial? Ao se tratar de ficção, de nenhum dos dois e de ambos, e este é o ponto, dado que é no encontro entre estas virtualidades que a pessoa de ficção se atualiza. Um corpo humano diante de outro, como é de se ocorrer no teatro, apresenta-se num sistema de modificações que não se encerra no próprio corpo, caso o tomemos como uma unidade estável, e sequer é necessariamente um problema central para a agência teatral, caso seja tomada da mesma forma. Um plano de agências como o teatro segundo sua multiplicidade de efeitos em muito me aproxima de algumas considerações 144 de Alfred Gell (1998) sobre a arte tomada como configuração de um sistema de interações dotado de algumas características, especialmente na articulação de modos de índice de agência com força intencional, transmitidas por via de espaços de condução e em utensílios ornamentados que nos reconduzem ao gaming tímico de Erving Goffman. Centrado na reflexão sobre o papel de mediação prática dos objetos de arte, Gell propõe um sistema de equivalências por via da distribuição da pessoa que opera como causa intencional do efeito que, nesta mediação semiótica, põe em mesmo plano os objetos de arte, as pessoas e os agentes sociais. Desta forma, um corpo humano, se médium de divindade possessora, não é menos objeto de arte que uma estátua ou uma personagem de teatro, o que não significa que uma personagem é um corpo, mesmo que seja visto lá65 – pude interpretar Khlestakov de O inspetor geral mais de um século após sua gênese histórica, o que reforça a elaboração de que o teatro é povoado de mortos e seus fantasmas trazidos à tona por máquinas de memória (Carlson, 2006) distribuidora de pessoas. Visto o problema posto nesta dissertação, cabe reconhecer as modalidades de agência indispensáveis para a elaboração de uma cadeia de reconhecimento de índices de agência, situando a personagem, pessoa de ficção, como objeto técnico e como um meio de encontro. Sobre este desdobramento algumas palavras sobre o projeto maussiano fundador podem apontar para os rumos que tomam esta pesquisa. Seguindo Mauss (2003[1938]:371) “De que maneira, ao longo dos séculos, através de numerosas sociedades, se elaborou lentamente, não o senso de “eu”, mas a noção, o conceito que os homens das diversas épocas criaram a seu respeito? O que quero mostrar é a série de formas que esse conceito assumiu na vida dos homens, das sociedades, com base em seus direitos, suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentalidades.” De certo o que irrompe num primeiro momento é o que qualquer formulação baseada em um sentido possível de noção e conceito pode sugerir. No caso de Mauss, 65 As opiniões sobre as pernas de Leonardo Corajo (ator), quando travestido em um vestidinho curto ao fim de O que nos resta é o silêncio, compõem um caminho de conversação que discrepa das preocupações acerca de sua competência como ator. É um pouco partícipe do horizonte de enunciados sobre ser bom ou mau ator, isto é, se ele consegue ser diferente do que ele é, não ter algo diferente do que ele tem, o que exigiria uma intervenção cirúrgica, uma tatuagem ou coisa do gênero. Não à toa parte do esforço da atividade em teatro contemporâneo se pauta em conceitos como o de partitura e coreografia, que balizam mais o acervo de movimentos significativos do que qualquer outra coisa. 145 assim como de parte significativa da escola dos Anées Sociologiques, a aplicação de investigações de conceitos como os de tempo, espaço ou qualquer outra forma de articular mundo e significado é atravessado pelos critérios de organização social por via de representações mentais, mediadores centrais na fundação da sociologia disciplinar. Não querendo implicar Mauss em uma ortodoxia que talvez não lhe seja peculiar, é certo que esta ligação deve ser evidenciada. Contudo, dois outros momentos de sua produção devem ser lembrados, a saber, de sua preocupação em lidar com a psicologia e outras disciplinas, em especial no cuidado com o efeito físico da idéia de morte sugerida pela coletividade e, como que na colheita de um terreno cultivado, na elaboração de um esboço teórico sobre técnicas corporais. No movimento interno de formulação de problemas quanto ao que diz respeito às idéias, que tem como uma de suas formas os conceitos, não se pode ignorar a força do argumento do efeito e articulação físicos das mesmas. Assim, qual é a diversidade conceito-efeitual (do qual participam a história jurídica e moral dos povos) da idéia de “eu” compreendida nos termos acima sugeridos? É disso que trata o problema, tanto o de Mauss66 quanto o meu. A ressalva se torna valiosa a partir do momento em que prestamos atenção em dois passos lógicos do argumento de Mauss: um, que diz respeito à evolução histórica do problema (Allen, 1996) ao qual não me dedico, e outro, que trata do plano que hoje se convém chamar, mais uma vez, de performático. As considerações sobre os clãs Zuni (Pueblo) quanto ao número limitado de prenomes possíveis explica a disposição de cada ente nomeado como participante do clã no que tange a sua responsabilidade de remeter seus atos ao coletivo nomeador inteiro. Tanto alguns elementos de organização social quanto algumas formas específicas de levar a cabo o papel que lhe é devido, são evidenciados. 66 O artigo de Márcio Goldman (1999) é significativo na defesa deste ponto, a saber, que a articulação dos problemas de ordem classificatória devem comungar do esforço de articulação com as técnicas corporais, o que é próprio do horizonte de um fato social total. Mas a remissão à segunda nota da segunda seção do ensaio de Mauss seria suficiente, lá onde uma verdadeira política da encarnação é sugerida para uma reflexão acerca da ética dos nomes: “Nem Davy nem eu insistimos sobre o fato de que o potlatch comporta, além das trocas de homens, mulheres, heranças, contratos, bens, prestações rituais, em primeiro lugar e em particular, danças, iniciações, e ainda: êxtases e possessões pelos espíritos eternos e reencarnados. Tudo, mesmo a guerra, as lutas, é feito apenas entre portadores desses títulos hereditários, que encarnam essas almas.” (Mauss, 2003:376, nota 02) 146 “(...) uma noção de pessoa, do indivíduo confundido com seu clã mas, já destacado dele no cerimonial, pela máscara, por seu título, sua posição, seu papel, sua propriedade, sua sobrevivência e seu reaparecimento na terra num de seus descendentes dotados das mesmas posições, prenomes, títulos, direitos e funções.”(id.ibid.:375) Vale notar que não estamos falando de um nome por indivíduo, ou sequer por pessoa, dado que a pessoa requerida é um problema de organização total e não simplesmente um tipo de problema lógico entre nome, ostensão e necessidade. Isto implica que o regime de modificação de nomes refaz o sistema de prestações pessoais, o que opera desde novos nomes a reencarnação dos mesmos; no caso de minha pesquisa, quantas vezes é preciso ser chamado por um nome como Vicente Costa Lourenço para levar a cabo as obrigações de ser ator e portar o nome de Lucas Gouvêa? Isto deve ser feito sincrônica e diacronicamente em relação a quais outras formas de agência? É igualmente significativa a fórmula maussiana da extensão da pessoa que faz da propriedade um tanto este duplo vínculo entre o caráter reativo da contigüidade lógica e a esfera do domínio no qual uma pessoa impera, transmitindo-se por extensões as mais variadas, exigindo de Mauss uma nova ressalva: “É preciso acrescentar às listas expostas em “Ethnology of the Kwakiutl” que os pratos, os garfos, os cobres, tudo é brasonado, animado, faz parte da persona do proprietário e da família, das res de seu clã.”(id.ibid.:378) Tudo o que importa para evocar o conceito de pessoalidade, mediador entre seres diversos e formas temporais determinantes (reencarnação, transmissão, herança, sazonalidade) que, diante do anteparo de uma totalidade que é o mundo que é o do caso, evoca sempre um nível impessoal: “Toda essa imensa mascarada, todo esse drama e esse balé complicado de êxtases, dizem respeito tanto ao passado quanto ao futuro, são uma prova do oficiante e uma prova da presença nele do naualaku, o elemento de força impessoal, ou do antepassado, ou do deus pessoal, em todo caso do poder sobre-humano, espiritual, definitivo. O potlatch vitorioso, o cobre conquistado, correspondem à dança impecável e à possessão bem-sucedida.” (id.ibid.:378) 147 A configuração de um tempo de convergência que se anuncia como a forma própria de apresentação de um impessoal teatral concretizado na progressiva elaboração de consistência da gente faz do conta-gotas temporal, que é o calendário linear de atividades, instrumento da especialização do que é propriamente impessoal na constituição da pessoa de ficção encarnada, esta que dura na permanência do espetáculo e que evanesce junto com a dispersão do público quando dos aplausos. Esta dispersão, contudo, significa qualquer coisa menos o cancelamento de sua existência, pois permanece como efeito dado à memória na confecção de marcas sincrônicas. Pude conversar sobre o que pensaram alguns representantes do público acerca do espetáculo e pude encontrar dois tipos de enunciação emergentes: sobre as qualidades da peça e sobre a habilidade dos atores em fazer o que fizeram. No que diz respeito às considerações primeiras, a manifestação de apreço com “gostei” ou “não gostei”, no pretérito, seguiam-se de especificações mais precisas sobre as razões do gostar ou do não gostar, enquadrando a experiência passada num problema de gêneros de classificação: por exemplo, vaudeville astuto; pessimismo típico e inconseqüente. É neste grau de consideração que coincidem espectadores pós-espetáculo e diretor durante os ensaios. Toda a orquestração administrada visa este encontro e, quanto maior a repetição entre o que a gente se propôs e o que encontra o público, mais refinados parecem ser a sintonia e o desdobramento da economia da assistência cuja base é a lenta elaboração de elementos de expansão de sincronia de ações que, para atingir a massa do público, assume proporções impessoais. Quanto aos atores, a diferença entre os mesmos era ressaltada, atribuindo a um ou outro melhor desempenho cuja comparação culminava em hipóteses sobre quem trabalha melhor, como maior acuidade e em maior sintonia com o espetáculo apresentado. Não por acaso a indicação desta melhor performance recaiu sobre os dois atores que há mais tempo trabalham juntos nos moldes de ensaio e proposta de ação: Lucas e Leonardo, de alguma forma melhor conectados diante da gente, os mais entregues ao tipo de fluxo de relações que dá tangibilidade à efêmera presença da pessoa de ficção tal como ela fora provocada, isto é, especificada como forma de presença, de comunicação com consciência-de-si. Independente deste registro sobre o pós-espetáculo, o que devo ressaltar é que, de uma forma ou de outra, o pós-espetáculo já se desdobrava antes do espetáculo re148 estrear efetivamente. Ocorria de haver nos ensaios já um público que antes de estar lá, presente, se punha virtual e disperso, somente disponível segundo táticas de expansão do território teatral específico e pela convergência sucessiva desta dispersão para um plano de consistência. “O plano de consistência conserva apenas os estratos suficientes para deles extrair variáveis que nele se exercem como suas próprias funções.(...) o plano de consistência (ou a máquina abstrata) constrói contínuos de intensidade: cria uma continuidade para intensidades que extrai de formas e substâncias distintas.” (Deleuze & Guattari, 1996:87-88) Não é outra coisa que sugiro senão um contínuo de intensidade entre diferentes formas de encontro (segmentos) que opera exatamente pela distinção profunda entre uma coisa e outra67. Seguir passo a passo na evolução destes movimentos exigiria descrever a montagem das extensões, tanto elétricas quanto corporais, aplicando com maior disciplina a relação entre uma sala de teatro e um laboratório que ensaia para saber de verdade o que revelam por meio de mediadores como o são os papéis de ficção, diagramando sincronia entre movimentos, performance e efeitos de luz oriundos da extensão das redes até o ponto desejado (na referida química dos acertos), de forma a poder encenar até mesmo um pensamento, como os da personagem Vicente Costa Lourenço, que em jogos de sincronia antecipa trechos de seu monólogo final e, numa 67 Neste grau de abstração não é difícil reconhecer o campo de relações possíveis na teoria sociológica, permitindo articular o papel que as abstrações assumem neste tipo de formulação. De alguma forma o que almejo apontar ao estabelecer uma conexão entre impessoalidade e plano de consistência não é outra coisa senão um tipo de indiferença fásica que, em um outro momento e com diferentes conseqüências, fora próprio da reflexão simmeliana acerca do dinheiro, especialmente no que diz respeito às séries teleológicas, tão importantes aqui. Cito: “L´être humain que nous disons dépourvu de caractere a pour trait essentiel de ne jamais se laisser detérminer par la dignité intérieur et substantielle des personnes, des choses et des idées, mais de se faire violenter par la puissance quantitative dont l´impressionnent les particularités. Ainsi de l´argent: détaché de tous les contenus spécifiques et fait de quantité purê il épouse, lui et les hommes gravitant tout autour, cette absence de caractère – l´envers presque logiquement nécessaire des priviléges de la finance, ainsi de la majoration sociale des valeurs monétaires par rapport auz valeurs qualitatives. Cette prépondérance de l´argent s´exprime d´abord dans le fait d´expérience – déjà noté, que le vendeur montre plus d´intérêt et d´empressement que l´acheteur.” (2001:252). No limite, trata-se das condições de participação de massa, horizonte inescapável das considerações acerca da modernidade, que operam um registro dual de diferenciação na indiferença relativa. Resta diferenciar a relação asintótica do simbólico assumida por Simmel (e demais formas de significado sacrificiante-erótico, como nas obras de Bataille, Girard, Leiris e, num sentido kantiano, Durkheim, Mauss e Hubert) em relação às teses do inconsciente lingüístico de figuras de classificação, no caso de Lévi-Strauss, e do horizonte infinitesimal do esquema do double-bind presentes em Bateson e Deleuze & Guattari. Cada uma das formas de indiferença constituinte de diferenciação aponta para um complexo simbólico diferenciado, desafio específico das dificuldades aporéticas da definição da situação das forças de norma e de evento (vide Agamben, 2002). 149 alteração de iluminação (da luz aberta para um só spot sobre Lucas) põe todos para dentro de sua cabeça de ficção. Essa morfologia de presença ficcional que desafia o modelo de proporções anatômicas de um da Vinci (como o Nariz de Gogol) exige que se retome alguns pressupostos para sua criação. Assim, montagem de uma peça de teatro, tal como pretendo sustentar, é suficientemente isso: uma montagem. O nome que desencadeia procedimentos monta uma engrenagem dos vários teatros possíveis: as casas de espetáculo, as histórias escritas em formato dramático, as linhas estéticas, a expressão exagerada de dor ou raiva, os cartazes, os convites etc., fazendo do teatro substantivo e singular uma abstração que, segundo o vocabulário das práticas teatrais, revela uma maquinaria a partir de uma peça. Se me referi à cabeça de ficção de Vicente Costa Lourenço, personagem de O que nos resta é o silêncio, o faço por uma razão. Indico nesta figura que, graças à geração de sincronias cada vez mais intensivas (como as deixas das cenas e as coreografias) e extensas (na conformação de uma agenda comum entre o grupo que se auto-referencia como a gente e seu público-assistente) fora possível, num encontro teatral, colocar a todos dentro da cabeça de Vicente, personagem performatizado pelo ator Lucas Gouvêa. O acabamento dado à cena em um dos ensaios apresenta tanto o grau de intensidade quanto de extensão que são requisitos para formular uma hipotética validade da abordagem da noção de pessoa como objeto técnico teatral, assim como esta hipótese pode se valer da relação impessoal implicada na invenção de pessoas de ficção (personagens) a partir da extensão de sua pregnância técnica. A peça encena, à sua maneira de narração, um fim de festa de casamento do filho de Beatriz Brüchner. Este filho é uma personagem somente narrada. Não há ator ou cena para ele. Já Beatriz foi feita por Ângela Delphim. Toda a ação é conduzida pela situação de fim de festa no qual, aos poucos, as relações entre cada uma das personagens tomam forma, recorrendo a uma série de jogos de apresentação, como o que se passa logo no começo. O público se senta, na sala do casarão, ao redor dos atores sem qualquer proscênio como fronteira. Os atores, ocupando somente metade do salão, ao redor de uma mesa, desempenham suas falas. As personagens versam sobre uma prostituta que Fernando, personagem feito por Leonardo Corajo, vira pelo caminho. Feito isso, um corte se dá. Como no cinema, há uma ruptura na seqüência e o que é dito não participa diretamente dos efeitos provocado pela conversa. A iluminação, que era restrita à metade amadeirada do salão, se expande ao serem acionados todos os pontos 150 de luz. Cada personagem se apresenta falando seu nome e mais alguma coisa sobre sua vida pregressa, presente e progressa. Um por um revelam como e quando vão morrer. Este jogo de movimento dos atores, que é um posicionamento diferenciador de situação de sincronias com os pontos de luz acionados em consonância com as caixas de som, permite outros cortes e outros momentos que constituem a elaboração da apresentação da personagem. Os recursos técnicos elaborados e sincronizados sinergeticamente (implicando ao mesmo tempo toda a diacronia necessária ao procedimento) constituem a situação pela qual a pessoa se apresenta. Sendo assim, é possível abduzir relações por formas diferenciais que se apresentam mais ou menos consistentemente. É o caso da cena, do movimento sincrônico, em que se encenam pensamentos de Vicente. Lembro-me de tê-la assistido na já mencionada segunda montagem da peça, na Casa de Cultura Laura Alvim, sala Rogério Cardoso. No meio de uma fala qualquer, quando era encenado um conflito entre personagens, os atores param de se mover, como se congelados. Uma luz vermelha substitui todos os outros pontos, num corte cromático. Lucas enfia suas mãos nos bolsos do paletó do smoking e derruba uma quantidade enorme de bolinhas de gude. Vi, gostei, mas só fui entender o nexo e estabelecer a ligação de sentido da cena durante os ensaios na Casa da Glória, no dia 26 de maio precisamente. Discutindo a cena, pensando em todas as mudanças que a peça deveria sofrer por haver se deslocado de uma sala de teatro pequena (onde havia cenário) para um casarão secular (onde havia uma locação) em atenção à materialidade do espetáculo, Lucas e Joelson não se sentiam confortáveis com a forma de encaixe que o simples momento de retirar bolinhas de gude apresentava. A luz vermelha fora cortada. Algo deveria entrar em seu lugar. Acrescentaram falas-legenda, isto é, Vicente passaria a dizer, neste momento, trechos de seu monólogo final que mencionam as bolinhas de gude (ou as penas, os cadeados, enfim, objetos que retira do bolso em outras situações homólogas). Fora necessária a produção de entimemas por imagem e texto para esse novo contexto. As bolinhas deveriam dizer ao mesmo tempo em que eram ditas. Uma vez marcada a posição na qual Lucas deveria realizar esta cena, fez-se valer um novo ponto de luz: um pequeno abajur colocado no piso amadeirado em cima de uma pequena estante, colado à enorme coluna que divide o salão. O cone de luz amarela (lâmpada de filamento) projetada em direção ao teto, contrastada ao desligamento de todos os outros pontos, gerava diferença por via de sombras e novos contornos ao movimento e silhueta do corpo de Lucas. O congelamento das outras 151 personagens, promovendo uma diferença de velocidade, acentua esta diferença por sua parca visibilidade, sem desfazer o liame, contudo. Neste momento, Lucas deve dizer; Vicente deve dizer; ambos dizem em baixo tom: Milhares de bolinhas de gude, milhões de bolinhas de gude, dentro da minha cabeça!, no que se segue o acionamento dos demais pontos de luz. Esta fala, que passa a ser a legenda de um momento igualmente ótico, é a situação da cena na cabeça de Vicente, a manifestação de um pensamento seu. Não de Lucas. As bolinhas de gude, salvo escorregão, são sumariamente ignoradas dali por diante. Pertencem a um outro frame, dentro do frame da narrativa da peça. O que antes era uma cena em um silêncio vermelho passou a ser, meses depois, uma antecipação de um monólogo a ocorrer somente no final da peça. É na repetição verbal, mas não performática, que a fala “explica” sem demonstrar e as imagens “mostram” sem apontar (não há dedução ou indução), como é característico da figura do entimema. E a cabeça de ficção não se presta a respeitar qualquer morfologia craniana. Ela se dá no encontro entre presentes, na apresentação de uma personagem cuja eficácia não lhe pertence somente. É luz, som, texto, corpo, ator, direção e púbico em combinação de forças que pertence a todos e a ninguém em específico, próprios à sincronia gerada nas situações de encontro, horizontes da impessoalidade. Detive-me em abordar alguns objetos e mecanismos de referenciamento de endereços como mapas e nomes próprios emplacados em esquinas apresentando um nível básico da atividade teatral pensada como encontro (Goffman, 1961): a dedução semiótica que permite que se saiba e opere ao mesmo tempo os mesmos lugares por parte dos vários agentes que intencionam participar do encontro. O que se apresenta por via da figura do entimema imagético, na forma de explicação não verbal ou de descrição por imagens acústico-visuais (repetição de fala e recursos de cena) é uma alteração, uma modalidade diferente de aplicar diferenças a palavras e movimentos apresentados no tempo-espaço compactos de uma apresentação teatral. Passa a ser necessário induzir, retroduzir e fazer analogias de esquemas68. É quando o sistema de coordenadas que serviu como um mapa até a porta do casarão cede às histórias a serem contadas como referência a um tempo passado. Do ponto de vista fenomenotécnico das práticas de localização, as implicações dos sistemas de coordenadas não cessam, todavia. Mas o desdobramento das técnicas de 68 A referência aos conceitos peirceanos visa não se comprometer com quaisquer ortodoxias em semiótica. Se aqui utilizo uma dada nomenclatura, mesmo que sob polêmica, o faço seguindo alguns princípios de economia de texto na qual viso sugerir um nome para um modo de relação cuja definição me apraz mais do que a ortografia do conceito. 152 encontro por vias dos diversos agenciamentos envolvidos atinge graus de velocidade muito variados, e o tipo de estabilidade que um mapa opera, em grau de movimentações de pouca intensidade, se comparados à velocidade de uma peça teatral, são a própria manifestação do estático (estatístico). Se há toda uma vida para encontrar um endereço num mapa, salvo catástrofe (vale citar o El Dorado, Terra de Preste João e País de Cocanha, procurados eternamente em mapas nunca acabados), no teatro as formas de sentido são enormemente mais efêmeras e velozes e, no entanto, seguem a série de conexões da ordem de endereços num aprofundamento das diferenças específicas. Chega-se a uma casa de espetáculos e se assiste a uma peça em seguida. As mesmas pessoas fazem um e outro em seqüência natural. Neste sentido, me detive fundamentalmente na articulação operada pelos atores observados (os do grupo Dragão Voador teatro contemporâneo) no que diz respeito à sutil confecção de relações propiciadoras de uma agenda comum entre público e peça, assim como da organização da própria apresentação segundo uma ordem de encontros possíveis. Estes encontros, que não são somente um jogo de perde-e-acha, dão luz à delicada tensão entre os assistentes e os que se apresentam em um espetáculo. Afinal, diante uma montagem, como apresentar um conjunto de movimentos e falas coordenados sincronicamente, de forma a apresentar algo que permita ao espectador responder à pergunta: mas sobre o que é a peça? Vale lembrar o corte próprio da forma ficcional, que partindo de uma certa definição reconfigura em frames (Goffman, 1984; Bateson, 1972) elementos que outrora se dispunham a um regime pragmático de comunicação (Costa Lima, 1989) e que, dentro dos novos limites, não mais o fazem da mesma forma. Seguindo a fórmula dos planos de consistência (Deleuze & Guattari, 1996), o que pretendo é mirar os contínuos de intensidade que impõem ao ficcional um potencial de multiplicação do real, e não seu cessar temporário – ao menos não ao pé da letra. A figura da dispersão teatral é suficientemente adequada se pensarmos que, levando em conta o ritmo e a extensão do tempo de trabalho acompanhados, se tornou imprecisa a diferença eficiente entre o quotidiano e o lúdico/teatral, não significando contudo que essa diferença não exista69. 69 Aliás, se considerarmos que a ficção é uma língua secreta falha, com ramificações de publicidade, me faço valer da seguinte passagem “Talvez seja, aliás, uma característica das línguas secretas, das gírias, dos jargões, das linguagens profissionais, das fórmulas repetidas em jogos infantis, dos gritos dos vendedores, a de valerem menos por suas invenções lexicais ou por suas figuras de retórica do que pela maneira pela qual operam variações contínuas nos elementos comuns da língua. (...) ela coloca em estado de variação o sistema das variáveis da língua pública.” (Deleuze & Guattari, 1997:40-41) 153 Ao recorrer ao que há de impessoal para a investigação da atualização da noção de pessoa – que aqui é um tanto um objeto compartilhado – procuro situar o encontro teatral como a constituição de um coletivo consistente, cujas ações, que portam sentido, conduzem não tanto este ou aquele espectador, mas a própria organização da experiência possível no momento teatral70 segundo seu prisma igualmente impessoal. Os seres que Mauss relaciona ao lado de sua remissão passageira ao impessoal (“(...), o antepassado, o deus pessoal, todo caso de poder sobre-humano, espiritual, definitivo.” (2003:378)) apresentam o tempo mítico (que, quem sabe no caso moderno é o tempo profundo) do antepassado, o da realidade relativa ao totem e seu desdobramento cosmológico, ou qualquer coisa que se dê no nível da sobre-humanidade. Vale afirmar que, no que diz respeito ao conceito de pessoa e seu fundo impessoal, ninguém, nem mesmo o indivíduo moderno, está sozinho, apesar da solidão. Espalha-se por seus objetos e por sua própria objetividade, recebendo-os por sua vez segundo sua própria agência (que pode ser física, química, ótica, acústica, mística, estética, patética...). Lastrando esses problemas em minha etnografia, uma peça pode ser pensada a partir da configuração de um espaço cênico, como uma sala qualquer que se especifica (Simondon, 1969:34) segundo a disposição de objetos de cena e objetos para a cena. Nos primeiros listo bolas de gude, penas de ganso, ternos, calças, cadeiras, uma mesa enorme, uma banheira, um trenzinho de brinquedo, alguns batons, um vestidinho laranja, meia-arrastão, um violino, cortinas, fotos do ator Lucas Gouvêa e uma radiografia da atriz Ângela Delphim, entre outras coisas. No segundo tipo de objetos listo a extensão de fios elétricos, a tinta cor de goiaba na parede, os diversos soquetes, a distribuição de pontos de luz num mapa do salão, mesa de luz e de som, um baú para guardar quase tudo, caixas de som, etc. No entanto, esta distinção não é intrínseca aos objetos tomados como coisa, mas segundo variações propriamente semióticas, especificamente tomando a idéia de objeto a partir de uma sobredeterminação formal entre objeto, signo e interpretante. As classes de objeto designam neste corte uma fronteira importante, pois o que ajuda a compor a cena não necessariamente está em cena, apontando para um complexo de agências que não limita a possibilidade de ação 70 A organização da experiência tomada como orquestração de graus de atenção pode ser tomada segundo as lições e aportes de Erving Goffman (1971, 1984). Contudo, alguns dos desdobramentos do tipo de sinergia que são mencionados em Fun in games dependem de um plano de relações mais extenso e intenso do que o considerado por Goffman. Não basta haver pessoas, e o modo de relação do tipo we rationale se dá num prisma propriamente ecológico, no sentido que é a totalidade da presença (presença em e presença com) que permite que os efeitos de som e luz, calor e apreensão (do que não se vê) se façam efetuar. Não por acaso a menção de Simondon (1969) é um tanto indispensável neste debate. 154 significativa à ação de pessoas, mesmo que, tal como no modelo de Gell (1998), possase inferir um complexo de pessoas distribuídas em efeitos de objeto71, mesmo que numa extensão elétrica ou num filamento de lâmpada. Os objetos, no caso, possuem efeitos outros articulados por planos de consistência, que vão desde a eletricidade até a memória, e são objetivamente articulados para a constituição de pessoas em agência, isto é, em performance. Assim, a constituição de um efeito implica em pôr em relação estas duas fronteiras que operam nos pólos da agência teatral entre o espectador e o ator, isto é, entre pessoas, o fundamento da própria economia que especifica o teatro. Afinal, apesar de tudo, há de se pagar/assistir os artistas que, no meio de todo este enorme coletivo de objetos, fazem o que se espera deles: seus papéis. Bem ou mal, não outra coisa: uma personagem, este ser que não surpreendentemente compõe o título de uma das seções do célebre artigo de Marcel Mauss. Ao que parece os atores com quem fiz pesquisa de campo são especialistas, à sua maneira, aos assuntos que dizem respeito à pessoa. Como sói ao meio oficiante, saber significa “saber fazer”. Ao cabo e ao rabo, se um ator sabe como é uma pessoa, monta ações quanto ao como seria se fosse, ou o que deve fazer para fazer essa mesma pessoa por um método qualquer, adentrando no regime do como se ficcional – no caso de o conceito de figura substituir a de personagem. É assim que a faz de ficção e a apresenta segundo as técnicas de apresentação articuladas às técnicas de assistência, visando coincidir de alguma forma o mostrado com o que é visto. Numa acepção semiótica ainda imprecisa, a pessoa é seu objeto técnico. Isso significa que tomada segundo sua apresentação objetiva, como forma de presença, há técnicas de fazê-lo, técnicas essas postas como habilitação, marca burocrática que indica a agência de outros sobre si, reconstituindo sua formação, presentificando a forma futura do passado. Nesse sentido, sugiro que aqui situar o problema em dois graus de agência que permitem discernir o que e quem se assiste, a saber, a do coletivo a gente (tal como formulado no texto apresentado à mesa) e a do individual-pessoal. E isto parte de uma conexão fundamental. Joelson Gusson, diretor da peça, fora enfático: Ator não interpreta. Quem interpreta é o público. O ator faz, age. “O que” se assiste é a peça. “Quem é” assistido são os atores e os envolvidos diretos na produção da peça. Ela 71 Nesse sentido, uma personagem criada por um escritor russo, como Gógol, é tanto uma agência própria e unidimensional (Simmel, 1996) quanto a agência da pessoa de Gogol enquanto a referência da auctoritas literária. 155 mesma indica em um só golpe o sujeito da ação teatral (num modo de possessão da demiurgia burguesa do artista criador72) e o circuito de ofertas e prestações implicadas na atividade de assistência. Num diálogo hipotético, mas repetido à exaustão durante os ensaios (e fora deles), procurar saber sobre qual espetáculo alguém foi testemunha, pergunta-se: o que você foi assistir, dando à peça unidade (começo e fim), tendo como resposta a esta pergunta o título da peça, seu nome próprio. Ou no que diz respeito às personagens, vivos no território ambíguo entre o ser e o fazer (ser-feito): Lucas fazia Vicente, um quem manipulado por criatividade. Contudo, para reunir todos estes elementos em um só encontro, desde os tipos de objetos, os assistentes, os atores e os demais envolvidos, a agência pessoal que dá forma e sentido às personagens implica em mais do que me referir a uma ordem individualista de constituição da pessoa. Digo “mais” porque é uma questão numérica de superioridade que opera no plano que dá contorno, limites, poderes e consistência à pessoa, em particular a pessoa de ficção própria ao ambiente teatral. Há uma multidão existente em virtude de cada ato de personagem que se apresenta sob o signo do encontro que se faz, no espectro da quarta pessoa do singular, esta ainda inexplorada. 72 Que por ser um modo sua atualização pode ser romântica, modernista, social-realista, surrealista, simbolista. Por me referir a modos de fontes de aliança e sentido, como o são certas configurações de ação coletiva, vale levar em conta as repetições problemáticas que dão aos enunciados centros d articulação. Assim, sugerir a burguesia como centro tem como objetivo apontar para uma certa configuração histórica de um modo de humanidade e humanismo, naquela que se funda sob o artifício das representações de representações, ou seja, das formas ordinárias de abstração e seus corpos requerentes. Este é o tema da última parte desta dissertação. 156 III. O BÊBADO E O ILUMINISTA: ALGUNS MODOS DO OBJETO EU 3.1. Passado ascendente e alianças fortuitas De acordo com o ponto de partida desta dissertação não poderia me isentar do ofício de considerar as fontes bibliográficas como acervo privilegiado de escritos disponíveis de forma a elucidar ou utilizar como exemplo alguns dos movimentos ou espécies de raciocínio. De alguma forma, um dos horizontes técnicos da formação de um cientista social passa pelo sutil treinamento de lida com bibliografias, atendendo à lógica de remissão, cronologia, campo conceitual, preferências pessoais e atenção às disputas territoriais próprias do ofício. Lidar com livros e outras formas de ordenação bibliográfica no que tange desde sua disposição de arquivamento até o arquivamento em páginas de passagens e conexões entre documentos, resultam em uma tarefa especializada. De outra forma, significa que não é tarefa para qualquer um. Para ser antropólogo há de se reconhecer formas de dispersão dos acervos de maneira a reunilos em atos mais efêmeros de coletânea e indicação bibliográfica, há de se conhecer a bibliografia exemplar e, quiçá, comentá-la. Esta bibliografia se apresenta segundo o código de apresentação por autoria, segundo zonas de função-autor (Chartier, 1998). Estas zonas que definem as propriedades da antropologia, no caso da disciplina de leitura fundamental desta dissertação, desdobram-se em outras modalidades de referência bibliográfica, fazendo da preparação da escrita uma verdadeira devassa em bibliotecas e arquivos públicos e privados. Respeitando a ordem dos livros, qualquer pesquisador treinado e habilitado deve saber fazer o reconhecimento de acervos. Mas só diante o respeito da ordem dos livros. Não obstante, há de se considerar a edificação das formas de transmissão teórica formuladas. Da função-autor, especialmente a partir do século XVIII francês que vê no valor criativo o registro da propriedade autoral, a elaboração das teorias exemplares, tal como transmitidas, o fazem pelo mesmo suporte bibliográfico, fazendo do sistema bibliográfico uma fonte de teorias de grande alcance, espacial e 157 temporal, dado sua distribuição equivalente às fronteiras da República das Letras. O sistema bibliográfico arregimenta grandes autores, e especialmente no eixo temporal a propriedade do móvel estável dos impressos deve ser aqui posta em relevo. Quando o que está em articulação são exatamente as formas abstratas de valor, tomadas segundo a referência da ordem das referências bibliográficas tão importantes em minha participação como a gente do Dragão Voador teatro contemporâneo, uma outra dimensão da pesquisa de campo se revela, apresentando contornos ressonantes que embaralham os limites da contribuição desta dissertação. O acesso privilegiado ao conteúdo bibliográfico toma a forma de mediação entre campos uma vez que é ele que permite acesso a frases silenciosas de um morto do século XVIII, ancestral do grupo de teatro em questão pura e simplesmente porque em seu prognóstico da atividade teatral Denis Diderot escrevera com clareza, em 1769, aquilo que Joelson Gusson em 2007 quis dizer. E o disse no intuito de citá-lo. Citou-o numa prece73. O valor deste tipo de contribuição, que visa ampliar o escopo das relações presentes nas frases proferidas em vários momentos segundo uma coerência de propósito qualquer, é difícil de precisar. Contudo ignorá-la é emprestar à minha inserção em campo um papel secundário. A ampliação e a orientação dialogam com um aspecto das atividades de composição de cenas muito importante. Valendo-me da definição de Patrice Pavis e seu dicionário para especialistas: “COMPOSIÇÃO DRAMÁTICA: “As artes poéticas constituem tratados normativos de composição dramática. Enunciam regras e métodos para a construção da fábula, o equilíbrio dos atos ou a natureza das personagens. Sua composição se assemelha à da retórica: a disposição-modelo é considerada obrigatória.(...) É possível uma teoria da composição dramática (ou do discurso teatral), desde que os princípios do sistema sejam descritivos e não-normativos, e que sejam suficientemente gerais e 73 “Na prece o crente age e pensa. E ação e pensamento estão estreitamente unidos, brotam em um mesmo momento religioso, num único e mesmo tempo.(...) A prece é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que tem um objetivo e um efeito; é sempre no fundo um instrumento de ação. Mas, age exprimindo idéias, sentimentos que as palavras traduzem para o exterior e substantificam. Falar é ao mesmo tempo agir e pensar: eis porque a prece pertence ao mesmo tempo à crença e ao culto.” (Mauss, 1979:103) 158 específicos para abarcarem todas as dramaturgias imagináveis.(...) A escritura contemporânea, especialmente a pós-dramática e a pós-brechtiana, não mais obedece a uma série de regras de composição, pois estas regras desapareceram desde que se passou recorrer a textos não escritos originalmente para a cena.” (Pavis, 1999:62-63). Não é necessário fazer muito esforço para perceber o quanto a noção de composição aqui formulada é circunscrita a autoria/autoridade do dramaturgo. Parte da premissa de que a composição se detém no procedimento de registro da seqüência formal de intensidades e expressões postas no papel. Contudo, e esta é razão de publicações como o livro de Matteo Bonfitto (2002), o ato de composição é já distribuído como elemento de ofício do ator próprio a sua função politécnica, cuja elaboração define relações em grande parte bibliográficas com uma série de ancestrais definidos e postos em ação por via de sua evocação e citação. Não por acaso, parte significativa das falas dos atores do grupo Dragão Voador é retirado de poemas, trechos de contos e outras fontes literárias transmitidas em trechos recortados e colados em cena. Não por acaso compartilham com seu assessor teórico a prática de citações privilegiadas. Não por acaso têm formação universitária, seja ela completa ou não. Não busco formular nenhuma teoria do parentesco, mas a relação entre o acesso a um sistema bibliográfico exemplar e algumas dimensões do pensamento de Lévi-Strauss quanto ao totemismo em O pensamento selvagem são importantes, especialmente no que tange ao tempo reencontrado, cuja dimensão objetiva na vida e agência dos objetos, permite que se possa saltar, como num corte cinematográfico, ao que fora pensado muito tempo antes. De alguma forma, o livro é uma churinga aranda. “(...) cada churinga representa o corpo físico de um ancestral determinado e é solenemente atribuído, geração após geração, ao vivo que se acredita ser esse ancestral reencarnado. Os churinga são empilhados e escondidos em abrigos naturais, 159 longe dos caminhos freqüentados. Periodicamente são retirados para inspeção e manuseio e, cada uma dessas ocasiões, eles são polidos, engraxados e coloridos, não sem que lhe sejam dirigidas preces ou encantamentos. Por seu papel e pelo tratamento a eles reservado, apresentam assim surpreendentes analogias com os documentos de arquivos que metemos em cofres ou confiamos à guarda de notários e que, de tempos em tempos, inspecionamos com os cuidados devidos às coisas sagradas, para repará-los, se necessário, ou para confiá-los a pastas mais elegantes. E em tais ocasiões, também nós de bom grado recitamos os grandes mitos cuja lembrança é reavivada pela contemplação das páginas rasgadas e amarelecidas: fatos e gestos de nossos ancestrais, história de nossas moradas desde sua construção ou sua primeira cessão.” (Lévi-Strauss, 1998:264) Quem sou eu para negar a tradição – do teatro e da antropologia? O presente capítulo é uma incursão no mundo mítico, dado que conceitual, de Denis Diderot, aquele que disse antes de Joelson dizer, e disse-o claramente. Este é um capítulo de assessoria teórica, como o é de certa maneira toda a dissertação. 3.2. A galhofa do gambá O emaranhado de questões referentes ao que se pode reconhecer o que é digno, é alvo das reflexões que seguem, decerto tímidas. Apontar para a dignidade como uma faculdade universal, fruto de uma história irmanada da cidadania e da declaração universal dos direitos do homem pregando a tolerância absoluta, é apenas uma das faces de um procedimento que tem tudo para ser qualquer coisa, menos um exemplo de linearidade. Tampouco as histórias que se contam são inequívocas. No alvorecer do sensualismo moderno, na articulação acabada de diversas formas de materialismo decisivas para a irrupção da civilização Ocidental, uma vibração sutil fazia dos alicerces dos novos caminhos uma fonte perene de oscilação e, ao fundo desta vibração se ouve: quando age o homem, quem é que age? – pergunta essa remissível ao ator que responde 160 hipoteticamente: “eu!”. Eu quem? – pergunta já elaborada acima, seguindo as intuições preciosas de Marcel Mauss74. O que quero pôr em quadro é simplesmente a força diferenciadora da fala – potencial de conversação, que impõe à mesma um sujeito falante e a eminência de uma crise a qualquer momento, mesmo que não haja qualquer indício de mal entendido. Não é preciso nenhum senhor Prokarchin para evidenciar os problemas evidentes da fala como forma de agência cósmica plena de conexões, disjunções e conjunções entre seres e formas temporais. Pode-se aproximar por via de índios, loucos ou qualquer outro absurdo para culminar na fórmula bem conhecida da desrazão. O que se oferece como mote na presente etnografia é a aparição, nada sorrateira, de Denis Diderot, pela voz evocativa de Joelson Gusson (vide Preleção). A evocação de seu nome, um apelido para as idéias claras que Joelson queria transmitir. Pediu que todos lessem na forma de acesso privilegiado a um autor importante. Na figura de autoria exemplar, significativa em solo disseminador de autorias em todos os ramais de cidadania (crime incluído), o que faz com que um autor, decerto comum, dado que é apenas mais um, se põe em livros, venha ascender em relação ao que tão detidamente discutia os perigos de uma personagem? E porque, para aproximar-me de Diderot e seu poder de locução, preciso comentá-lo, e não tratá-lo como documento historiográfico? Apenas sigo o movimento do próprio Joelson que trata a figura de Diderot como um autor que tem algo a dizer, por escrito, mesmo que as intenções do escrito estejam afastadas em 248 anos do momento preciso da locução: “JOELSON Diderot. Diderot foi um daqueles franceses que foi um dos enciclopedistas e tal, né? E ele escreveu esse texto, o Paradoxo do comediante, na época lá, falando o quanto o teatro dramático, trágico, representativo, e tal, o que é que ele achava que o ator tinha que fazer, né? E tem uma frase nesse texto que eu acho muito clara, muito clara, que ele fala assim, é mais ou menos assim, ele falando, que é um diálogo, né, é... é uma 74 “De que maneira, ao longo dos séculos, através de numerosas sociedades, se elaborou lentamente, não o senso de “eu”, mas a noção, o conceito que os homens das diversas épocas criaram a seu respeito? O que quero mostrar é a série de formas que esse conceito assumiu na vida dos homens, das sociedades, com base em seus direitos, suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentalidades.” (2003[1938]:371) 161 pessoa falando com outra discutindo o que que é o papel do ator... do comediante, do ator, e ele fala assim: o cara; quando termina o espetáculo, o ator, ele está cansado, elétrico, cansado, e o espectador tá triste, digamos num drama, né, e o espectador tá triste, por que? Porque o ator se agitou muito sem sentir nada e o espectador não se agitou e sentiu todas as coisas. Eu acho isso de uma clareza enorme, sabe... GENTE, O TAMANHO DAQUELE GAMBÁ!!!” Daí por diante, Diderot traz clareza e vira uma personagem, palpável o suficiente para que Leonardo Corajo viesse a atiçar o gambá chamando-o pelo nome do enciclopedista. A mesma força da galhofa, que desloca nomes e significa uma presença, faz um elogio da trajetória de um nome que, mesmo aplicado como nome falso, preserva as conexões de evocação. Evocar um ancestral por via de uma citação que transmite clareza concretiza uma força temporal. Caso contrário, bastaria pedir para que cada um fizesse uma leitura do Paradoxo sobre o comediante, em silêncio, fazendo valer a técnica mínima do tipo de comunicação separado do corpo. Mesmo que um livro o seja para todos e para ninguém, o evento de leitura não é predito. É virtual, seja ele qual for. Mas no caso, se cada um simplesmente lesse em silêncio, Joelson deixaria de ser aliado de Diderot, evocado numa prece. No caso, o primeiro poder da citação é o de dizer com clareza aquilo que se gostaria ter dito, mas a expressão é trans temporal, é uma montagem. E este é o gancho que utilizo para trafegar pelas conexões indutivas que, na expressão de Peirce (1977:06), não fará outra coisa senão determinar o valor de uma relação, a saber, com um Iluminista morto a 248 anos de sua citação oral. Os filósofos iluministas de cujo Iluminismo se vangloriam, visam aproximar as ciências e as artes da linguagem vernacular, o que implica em falar e escrever com clareza. Nos textos de philosophes, nada de corolário, escólio e teorema, próprios de um classicismo retrógrado. O tempo voa para os iluministas. Prefere-se conseqüência, observação e proposição (D’Alembert, 1994 [1759]:22). Mas cabe aqui uma ressalva metodológica. Não existem mais falas de iluministas do século XVIII. O que há são falas problematizadas, a que se dispõe pelo registro operado de um travessão ao canto da página, ou na identificação da personagem falante, dando forma às técnicas de leitura que nos permitem reconhecer um diálogo quando este passa diante dos olhos. Há um mundo inexplorável cheio de cavernas e palácios dos quais, ou ninguém sai ou ninguém entra, mas que faz do registro por escrito um entrave no balanço delicado entre o falso e verdadeiro, por um lado, e o que pode e o que não pode ser, por outro. É com este tipo 162 de cautela, quase uma covardia de quem respeita um orixá, que chego a Denis Diderot e a configuração moderna do auto-controle nos seus escritos, auto-controle tema da preleção contra personagem. Se leio sua obra, isto é, um conjunto de encadernações que, se repetidos em forma de impressão e traduzidos como idênticos (identidade conferida pela própria repetição constatável, letra a letra, espaço em branco a espaço em branco), dão em um conjunto de escritos que tem como identidade autoral um nome próprio, o supracitado, o endereço o móvel estável. Leio Diderot numa atitude de transferência, que recebe ao mesmo tempo em que impõe uma rede de implicações, o todo parcial que o nome carrega, numa conjunção significativa. Ponho em comunhão o que Diderot escreveu fazendo do objeto feito a articulação da propriedade diderotiana – e então o texto é dele; preposição e pronome pessoal, “de ele” – adequado à autoria (autoritas), ao mesmo tempo em que assumo lê-lo sem preposição alguma, reconhecendo na escrita impressa não só a propriedade de Diderot, mas ele próprio distribuído pelo conjunto de esforços entre escrever, imprimir, traduzir e distribuir. Os traços que conduzem aquilo que se reconhece como leitura da escrita traz consigo alguma propriedade ritual, algo de mediúnico próprio ao trato com os mortos (todo leitor é meio kardecista). No meio de uma massa de mediações a autoria sutilmente se distribui. 3.3 Dignidade e humanismo: logo antes de Diderot Um dicionário da língua portuguesa de pouca fama, editado em 1986 (Costa & Melo), ao pontuar o verbete dignidade não apresenta um só desenvolvimento mais abrangente sobre o termo sem que sejamos remetidos a alguma idéia de hierarquia75. Como é de seu significado corrente, este conceito impõe ao leitor um significado de gradação e de diferença por via de princípios sagrados relativos à perfeição divina: hieros arché. Isso, aqui, nos remeterá ao Renascimento histórico, em especial quando o verbete do dicionário consultado sugere alguma ligação óbvia entre o que é digno e o que é humano. Óbvia, mas a que preço? A distância cronológica entre o dicionário e a 75 “dignidade, s.f. qualidade moral que infunde respeito; consciência do próprio valor; gravidade; grandeza; modo digno de proceder; respeitabilidade; cargo elevado; cargo especial num cabido; honraria; autoridade; nobreza; princípio moral baseado na finalidade do homem, e não somente na sua utilização como meio; -humana: valor particular que tem todo o homem como homem, isto é, como ser racional e livre, como pessoa; moral da – humana: doutrina segundo a qual o princípio ético fundamental é o respeito da pessoa humana em si mesma e nos outros. (Do lat. Dignitate-, “idi”).” 163 publicação de Oratio de hominis dignitate, de Giovanni Pico della Mirandola (1993[1489]), nosso anteparo respeitoso, um exú para evocar (provocar?) Diderot, não significará aqui outra coisa senão um caminho pelo qual há de se reconhecer a fundação do problema da liberdade e da ação humana como incidente sobre o próprio agente, instituindo com vagar e custo a figura do demiurgo de si tão cara para as formas artísticas modernas. O que desponta na antropologia de Pico della Mirandolla é a exaltação da figura humana e seu mal-acabamento, o que o faz maravilhoso uma vez que desatrelado de necessidades imperiosas e permite sua radical transformação por via do arbítrio. O fizera diante da árvore do fruto do bem e do mal, poderá fazer quando quiser, para bem ou para mal. Diante do paradigma da Queda (tão importante para as formas modernas de objetivação da desrazão76), o renascentista põe à voz de Deus um discurso sobre o mundo criado povoado por baixas formas de vida de grande variação, cada qual posta em seu devido lugar. Ao homem, nenhum que não quisesse. O arbítrio localiza o ser que logo é. “Pelos outros, sua natureza definida é obtida às rédeas das leis que havemos prescrito: a ti (homem), restrição qualquer lhe basta e é teu próprio julgamento, o qual lhe confiei, que te permitirá definir tua natureza. (...) Poderá te degenerar em formas inferiores, que são bestiais; tu poderás, por decisão de teu espírito, te regenerar em formas superiores, que são divinas.” (op.cit.:09) Disse-o Deus. As fontes e os propósitos do arbítrio, que já degenerou em Queda do paraíso, são a evidência de dignidade posta como signo de algo outro, uma vez que jamais especificado por necessidades, ao mesmo tempo que delimita a si-mesma, o que é a humanidade, sempre Outra em relação à natureza, esta disposta em uma cadeia hierárquica que define os seres segundo sua maior ou menor perfeição e que, no sistema de Pico della Mirandola, tem no humano um mediador universal que assume diferentes devires para diferentes disposições do espírito: (quando é)... Vegetativo:devir-planta Sensível: devir-besta 76 Vide Sahlins (2004) 164 Racional: devir-celestial Intelectivo: faz-se anjo e filho de Deus Não há questionamento da unidade de Deus, que é o centro irradiador de existência. O que há é uma indefinição radical do humano cuja multiplicidade do devir advém de uma insatisfação radical que culmina na degeneração a não ser que recorra às formas de se encaminhar à unidade do espírito. Mas não há dúvida, e o próprio Pico della Mirandola é taxativo: por migrar para qualquer natureza, por operar no todo da unidade da criação, o humano é o microcosmo da criação, dado que a definição de si não é oriunda de sua existência primeira, natural (zoé), mas sim de seu agir que comprime tanto sua vontade como a totalidade de suas forças criadoras (bios; Cassirer, 2001:141). E é daqui que partimos para o nosso iluminista. 3.4. Homem, microcosmo Senhorita de L’Epinasse: (...)Doutor, e vós não denominais isso desatino? Bordeu: Perto de vós, certamente. Senhorita de L’Epinasse: Perto de mim, longe de mim, é a mesma coisa, e vós não sabeis o que estais dizendo. Eu esperava que o resto da noite fosse tranqüilo. Bordeu: Isso produz comumente semelhante efeito. Senhorita de L’Epinasse: de modo algum; pelas duas horas da madrugada, ele voltou à sua gota de água, que chamava um mi...cro... Bordeu: Microcosmo. O sonho de D’Alembert – Denis Diderot Imediatamente entramos no pensamento moderno tentando resguardar a identidade das coisas diante das coisas, as coisas diante das palavras em um crescente comércio de coisas e palavras, que passam aos poucos a serem diferentes entre si. É o que nos indicará que, apesar de tudo, Diderot não é um renascentista, apesar de sua herança. A partir daqui a magia é uma superstição, e a criação se define por outras formas em relação à illusio. A dificuldade de proferir a palavra microcosmo da Senhorita de L’Epinasse (amante de D’Alembert) advém de uma seqüência de diálogos escritos por Diderot, que 165 projeta em dialética sua versão de cosmologia universal. Nela “o transporte de um corpo de um lugar para outro não é o movimento, é apenas o efeito. O movimento está, igualmente, quer no corpo transferido, quer no corpo imóvel” (op.cit.:152) permitindo uma indiferença ôntica e uma diferença ontológica absoluta entre um ser humano e uma estátua de mármore, esta eternizada pela pena de Condillac em seu Traité des Sensations. Entendendo a cosmologia como a ordem absolutamente necessária de habitação dos seres segundo suas propriedades particulares, imagino que tipo de condução argumentativa seria necessária para que se pudesse isolar, tal como num laboratório de física experimental – ambiente tão caro a Diderot e a este trabalho -, um marcador diferencial do que é natural e do que é humano na vida humana, assim como a ascendência que define a agência dominante, daquelas que dispõem indícios. Imediatamente há de se resguardar a política dos efeitos, tal como imaginado por Joelson e Candice na Preleção contra a personagem, em como a relação entre movimento, força e transferência, fazem de um gesto um engodo, ou muito pelo contrário. O fundamento do auto-controle tão importante para a consolidação das politécnicas que, por uma ou outra via habilitam a profissão de ator, corteja a temática da relação entre natureza e humanidade que é elaborada segundo caminhos muito sutis e tortuosos e que permitem que retomemos suas dificuldades, apresentando marcas de disjunção e conjunção entre as duas redes cósmicas, o humano e o natural. A bem da verdade, se foi possível retomar aos poucos que os seres humanos estão envoltos por outros seres na natureza, há também estes outros seres que também são humanos, de outras culturas, muitas vezes irracionais. Já estamos falando de momentos decisivos da história da colonização européia que tem nas diferenças entre povos diferenças de civilização, outro problema dominante77 e que se chama progresso. Como parte de abertura de um quadro mais geral, que permite perceber nossa personagem em movimento, um detalhe é importante. Diderot não está sozinho. Escreve ligado a problemas postos que dão forma aos conflitos de sua época culminando em censura, prisão e debates inflamados acerca do papel das ciências, das 77 Apesar de considerar indispensável a ressalva de Pierre Clastres (1978) na qual, apontar para objetos como “culturas sem-x”, como “sem Estado” sugerindo uma carência diferencial, não colabora na investigação do que elas efetivamente fazem e o que há por lá, esta ressalva não desautoriza a antropologia de se ocupar também de culturas de civilização, sem utilizar o termo como unidade comparativa, mas como especificidade absoluta de um processo formal de deflagração de atitudes e pensamentos civis na forma de “civilizados”, isto é, na constituição de uma objetividade de subjetividades que receba e explore o plano de consistência do que é civil. 166 artes e da humanidade. Mas se o objetivo é o de apresentar algumas das formas pelas quais este tipo de diferenças emerge dos escritos de Diderot, assim como viso para ressonâncias para a presente pesquisa de campo, não o faço para elegê-lo herói, mas para registrar uma certa identidade cultural da polêmica na qual é participante e que funda as possibilidades de citá-lo nos termos que Joelson o pôs. Neste sentido: “É preciso reconstituir o sistema geral do pensamento, cuja rede, em sua positividade, torna possível um jogo de opiniões simultâneas e aparentemente contraditórias. É essa rede que define condições de possibilidade de um debate ou de um problema, é ela portadora de historicidade do saber.” (Foucault, 2002:103) Contudo, como afirmei, o que interessa é um confronto entre poucos escritos relacionados de um mesmo autor. Evoco a figura do próprio Diderot que, ao por na voz da Senhorita de L’Epinasse seu esquema, a fez vacilar com uma palavra que faz uma atribuição à gota d’água: microcosmo78. Em minha exposição o philosophe fará a vez de gota d’água, uma vez que sua cosmologia me habilita. Nela “toda coisa é mais ou menos uma coisa qualquer, mais ou menos terra, mais ou menos água, mais ou menos fogo; mais ou menos de um reino ou de outro” (Diderot, [1769]2000b:178) e que tem em sua diferença algumas disposições no tempo, mas ocorre por um princípio bastante diverso do que vemos na oração de Pico della Mirandola. De alguma forma, segundo a prece à Diderot, suas palavras nos aproximam mais de nós mesmos à medida que nos afasta dos demais. Mas quem é que estou procurando neste ritual de leitura? Não parece haver qualquer caminho mais certeiro. O que se desenha na forma de microcosmo do iluminismo que o próprio Diderot nos permite arriscar é o sujeito de toda e qualquer experiência, e a objetividade à qual é sujeito, que toma forma em seus escritos nos quais se manifestam os objetos de savoir-faire79 tão indispensáveis aos vapores da utilidade moderna que o movimentam no trato das ciências e das artes, sua forma de disciplina e de aprimoramento de si e do mundo (Diderot;1989). Mas quem é que aprimora quem, 78 “Senhorita de L’Epinasse: (...)via em uma gota a história do mundo. Essa idéia parecia-lhe grande; afigurava-se-lhe inteiramente conforme à boa filosofia, que estuda os grandes corpos nos pequenos.” 79 “JOELSON - Abriu a cortina. Entendeu? Caiu, quebrou. Um monte de caco de vidro, todo mundo descalço. Não tem como fazer. Né? Vai lá, faz o negócio, limpa, aí tem que ter esse savoir faire de... de que as pessoas sabem que a gente tá fazendo uma peça. Não é? Sabe! As pessoas sabem! Parô! Ó, não tem como continuar.” Preleção contra a personagem, página 88. 167 uma vez que estamos sob efeito da pergunta: quem é que faz quando a humanidade faz? Responder que o espírito é o agente da ação humana é classicismo. O que dizer da ação puramente material, desta que funda questões sobre a materialidade tão importante para o campo polêmico das artes contemporâneas e que soou fundamental para resolver dilemas cênicos como, por exemplo, uma coluna ao meio da sala de espetáculo? A relação desse dilema com o engenho de ator permite algumas considerações prosaicas um tanto banais, mas proveitosas, sobre o que implica fazer algo no iluminismo, assim como seu percurso literário até a provocação de Joelson em sua preleção. Uma vez que no teatro vemos humanos simulando emoções, olhar para o comediante significa atentar aquele que sabe fazer sem ser discípulo de suas afetações. Esta operação é tão relevante que a vemos análoga a trechos inteiros de diálogos sobre cosmologia e história natural, como em O sonho de D’Alembert. São ecos profundos do que encontramos no Paradoxo sobre o comediante, texto seminal sobre a prática teatral. Entre um e outro há um ciclo, uma vibração comum. Na abertura do Paradoxo, escrito quase que no mesmo ano em que os diálogos até então citados, duas personagens (Primeiro e Segundo) conversam sobre uma figura eminente de teatro inglês (Garrick, ator inglês nascido no século XVII) que temia ser vaiada após apresentação de uma peça na presença de sua mulher. Primeiro, que dá voz aos argumentos de Diderot acaba por replicar, após aludir a sua tese acerca do efeito teatral, da seguinte forma: “As vaias sufocam apenas os ineptos. E como formaria a natureza sem a arte um grande comediante, já que nada se passa exatamente no palco como na natureza, e que os poemas dramáticos são todos compostos segundo um certo sistema de princípios?” (Paradoxo do comediante, [1769]2000b:31) Estes princípios que descolam o palco de teatro do que é natural, sem jamais romper com a natureza, aponta para um tipo de aptidão possível ao sistema de Diderot. Mas esta possibilidade é muito cara pois a idéia de sistema de princípios, cuja fonte experimental deve transformar-se em conceitos, abstrações, culminam exatamente no tipo de coisa que “não existe”([1769b]2000 a:208) e que carece de exemplos para que venham a ter concretude. Um sistema de definições matemático sem a referência de trajetória, nada é. Não é outro o procedimento de demonstração de Diderot e suas personagens ao apontar para o controle do imaginário que o palco exige. Esta relação, a do imaginário com o seu próprio controle, é muito delicada e respeita quase como se por 168 um manual a operação de máthêsis ou ordenação do imaginário exposta por Foucault (2002). O dilema que é possível seguir pelas falas de Primeiro, do Paradoxo, dizem respeito à vagueza de propósitos e especificidade que uma peça pode conter e da possibilidade de dois juízos favoráveis a uma apresentação partirem de pressupostos diferentes. É possível elogiar a direção, os atores, ou simplesmente o azul que serve de cenário. Para lidar com este hiato o comediante ideal não pode ser qualquer um. É preciso ser dotado de engenho80, como já dito, e conseguir comungar com seu entorno. É então que transparece o mote deste diálogo. Diz Primeiro: “(...) acho necessário que haja nesse homem (o comediante) um espectador frio e tranqüilo; exijo dele, por conseqüência, penetração e nenhuma sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis.”([1769]2000b:32) Nenhuma sensibilidade! Um tanto estranho para um filósofo tão devotado ao sensualismo e às concepções específicas sobre a preeminência da matéria diante o conhecimento, não fosse um problema muito especial acerca dos objetos empíricos em questão, no caso, uma peça teatral. Dado que escrevo sobre um iluminista a partir de algumas premissas de mediação ritual, é importante ressaltar que adentramos no mundo da modernidade clássica que tem como um de seus principais exegetas Michel Foucault, que vê este período a partir da ruptura com seu passado próximo pela alteração do regime de enunciados (epistémê). Sumariamente, o passado próximo é o do Renascimento de Pico della Mirandola, caracterizado por Foucault como um regime no qual imperam quatro similitudes sintetizadas em quatro operadores epistemológicos: aemulatio, analogia, simpathia e convenientia; sobre os quais não devo passar ao menos sem expor a propriedade maior deste regime, as próprias similitudes. A prática 80 O que nos leva à correlação profunda entre a elaboração dos temas em questão, que aqui dizem respeito às politécnicas nascentes e ao valor dos ofícios segundo a universalização das técnicas. Vale retomar os escritos de Diderot, assim como as reflexões sobre a universalização da leitura (Chartier [2004], Macluhan [1972], de Certeau[1994]) e da universalização em si dos procedimentos técnicos característicos do iluminismo (Simondon, [1969]), que geram um agir em abstrato e então quantificável e, tão importante quanto, apto à troca generalizada. O que remete uma coisa à outra e aprofunda os dilemas entre criação e liberdade se dá exatamente na convergência entre a abstração do valor do tempo de trabalho, assim como de suas formas, a multiplicação das técnicas e seu valor crítico-reflexivo e a amplitude de possibilidades de situação de troca e, no caso teatral, de assistência que exigem do sujeito agente competências de liberdade de tráfego num sistema de abstrações coordenadas (Simmel, 1987). 169 de investigação acerca do mundo na Renascença permitia indiferir os signos escritos e os signos plástico-naturais, de forma que um fosse lido sendo um outro, embora nãoidêntico, sem nenhuma condição que não fosse o correto comentário de textos, suporte no qual se realiza a máxima conheça-te a ti mesmo no qual a natureza divina se revela, e que conduz o ser ao ser-intelectivo. Conhecer é, com efeito, tudo conhecer em si, sendo o homem a justa medida que desvenda conexões ocultas próprias à magia, à astrologia, à kabala, à alquimia e toda sorte de milagres (é época de simonismo). Não por acaso, a noção de mimesis, que é um dos conceitos centrais para o discurso sobre as artes no Ocidente, é um papel de tornassol do processo que procuro apontar, a saber, o da constituição de um modo de agência moderno. Este conceito, tal como presente na tradução latina fruto do esforço renascentista, aparece como imitatio, isto é, imitação da referência, cópia mesmo segundo leis de perspectiva, por exemplo, o que é próprio da eficácia por analogia de emulação e por afecção simpática, que emprestam à humanidade exposta na oração de Pico della Mirandola seu aspecto protéico, camaleônico. Só que esta emulação se referia à busca das leis de representação, próprias dos ensinamentos clássicos divulgados pelo empreendimento humanista em questão, o que evoca uma série de problemas, como o mecenato que impunha às artes uma modalidade de relação e a determinação doutrinária dos símbolos e regras de seu uso. Se a relação mecenas:artista liberal nunca significou exatamente uma relação servil (vide o intenso tráfego dos artistas italianos entre principados no período) “em troca sempre implicou o aspecto de destacar-se, de constituir para o nome do autor uma genealogia “nobre”, separadora do homem de letras da gente vil e vulgar” (Costa Lima, 1995:79) que abre as portas tanto para o reforço de um gradiente diferenciador entre ofícios, assim como para a configuração final da arte cortesã. Da aproximação entre poesia e poder81, vemos que a mesma anda de mãos dadas com a verdade, e portanto com as leis que a regem como princípio. “A vigência das normas, a manutenção da boa ordem, o seu próprio renome não permitem liberalidades. Persuasiva, a palavra poética é integrante da retórica. Mantém-se a consonância romana do poético com o retórico não pela inércia da 81 Vale notar que a ênfase dada à poesia, como a poesia dramática, é consonante ao platonismo vigente em boa parte das teses do período quanto à diferenciação entre os ofícios, assim como a ordem das autorias (Gumbrecht, 1998:74), entre as quais o ofício do ator não exercia nenhuma. 170 tradição senão porque responde à necessidade pragmática do Cinquecento.” (op.cit.:82) O caso do Iluminismo, o próprio território da modernidade clássica, apresenta um desenho que, mesmo que próximo de uma semântica renascentista, dispõe de outra sintaxe do conhecimento. Nas palavras de Ernst Cassirer: “Em vez de se fechar nos limites de um edifício doutrinal definitivo; em vez de restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de axiomas fixadas de uma vez por todas, a filosofia deve tomar livremente o seu impulso e assumir em seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, forma de toda existência, tanto natural quanto espiritual.”(1997:10) O que se apresenta como uma Weltbild iluminista tem par não somente com os aspectos mais evidentes do ecletismo de Diderot e companhia, mas na nova forma de controle das ações que visa impor ao próprio experimentador as rédeas do conhecimento verdadeiro que, vale notar, desde o Discurso do método de Descartes, não se encontra na leitura dos clássicos. Há uma cadeia dos seres, mas ela se estende por todos os lados, e não nos comentários feitos às escrituras ou nos comentários aos comentários feitos às escrituras que têm no homem a medida de todas as coisas, dado que seria o mediador universal. Fornecer um método (caminho) que não seja apriori (Cassirer, op.cit.:26) e que “demonstre a razão nos próprios fenômenos como a forma de sua ligação interna e de seu encadeamento imanente” (id.ibid, idem) é o objetivo das investidas do Iluminismo, em especial no que tange os fenômenos humanos. 3.5. O sistema lá, nós aqui, o mundo mais adiante. Não ser sistemático, mas ter espírito de sistema. Este é o resumo deste primeiro movimento. E nada mais adequado à condução de Diderot. O que emerge nos textos do iluminista, em especial em seu Discurso sobre a poesia dramática ([1758]1986), é um afastamento das poéticas que considera congeladas no tempo, não respeitando o movimento natural das alterações característicos dos seres vivos, dos povos e dos costumes diante o tempo progressivo, anulador da escatologia astrológica (Koselleck, 2006). Aquilo que veríamos como um sistema entranhado se torna o próprio 171 desentranhamento. Ser sistemático (classicismo) é infundir o sistema na indiferenciação entre signo e objeto – o corpo incluído -, permitindo que o sujeito da ação se encontre em ambas as extremidades da operação lógica; o espírito de sistema, ao contrário, evoca antes de tudo a diferenciação do sistema em relação a todo o resto, fazendo da analogia a comparação de diferentes entes a partir de uma atribuição representativa, o que põe o sujeito do conhecimento em seu devido lugar, ao mesmo tempo em que o universaliza como espécie humana, animal. Ao invés de abordar o humano pelas escrituras, vê seu lugar em meio à natureza e sua ordem insondável. O sistema objetivado culmina na necessidade das common measures permitindo “analisar o semelhante segundo a forma calculável da identidade e da diferença.”(Foucault, op.cit:73). A ordem privilegiada é a ordem do pensamento que tem nas analogias a ordenação (máthêsis), isto é, a dissipação da confusão do mundo; valores e objetos já não estão ligados pela necessidade, mas pela contingência relativa, na geração de acervos úteis à comparação, seja ela sistemática ou metódica. Em outros termos, o conhecimento é auto-conhecimento por via do controle da imaginação, dado que as analogias de comparação entre os seres não lhe é determinada, mas atribuída por uma série de relações provisórias ao procedimento de classificação próprias à taxinomia nascente. A despeito de alguns anacronismos importantes em sua obra, em especial no que tange à universalização da noção de gosto, o livro de Colin Campbell (2001) compõe de forma sugestiva aquilo que chama de hedonismo moderno a partir da imagem de artista do sonho que, não bastando como alcunha do autor de O sonho de D’Alembert, aponta exatamente para o engenho do esprit de systéme que tento evidenciar: “O grande homem, se por infelicidade recebeu essa disposição natural (a sensibilidade, ou seja, a extrema mobilidade de certos filetes sensitivos que, como cordas de um instrumento musical, vibram em harmonias cuja repetição é a própria memória), ocupar-se-á sem trégua em enfraquecê-la, em dominá-la, em tornar-se senhor de seus movimentos e em conservar para a origem do feixe todo seu império.”(op.cit.:202). No caso, a origem do feixe é a unidade da atividade da memória, cuja definição é o poder de centro. Neste sistema a peculiaridade do funcionamento do corpo sensível, sensibilidade esta comum entre o humano e o mármore, é o potencial anárquico das afecções que, se descontroladas, agem a esmo seguindo seus próprios princípios de funcionamento. O ser maior se encontraria possuído pelos órgãos, sempre rebeldes; há conexão com as teorias de possessão e transporte (Nahoum-Grappe, 1994) e que, por 172 outra via, ressalta a relação entra posse de si e a moderna cidadania ainda em disputa (Capitan, 2000). A autonomia agentiva de cada um dos órgãos abunda em diferentes escritos de Diderot, revelando diferentes traços de possibilidades, como a memória ativada pela fala da vagina desobediente e, num neologismo, incível em Jóias Indiscretas (1986), da possível reforma da ciência por via da atenção cega, isto é, desprovida do tato da visão na Carta sobre os cegos ([1749] 2000a), ou na simples afirmação da autonomia em O sonho de D’Alembert (op.cit.). O auto-controle culmina exatamente na opressão da manifestação das unidades próprias em prol de uma unidade maior, seguindo a definição de virtude, que é o sacrifício de si-mesmo. O corpo de um ser saudável é aquele em que a livre fruição dos órgãos como um si-mesmo é sacrificada em prol de um bem comum, o que aponta para outra formulação certeira de Campbell de um hedonismo racional, que visa finalidades, que possui um telos de definição atribuída. Não é por outra razão que, seguindo ainda a Preleção contra a personagem (pg. 89), o punch de Leonardo é tão prejudicial à figura que deveria apresentar. Sua postura na cadeira de rodas não firmava, segundo Joelson, nenhuma fragilidade. Tudo porque, por ímpeto, nunca dispunha os dois braços pousados nos braços da cadeira de rodas, mas sim recostava seu corpo num dos lados somente, reforçando uma postura sempre desafiadora. Deste composto, algumas relações entre mundo e representação se fazem necessárias. Em primeiro lugar, um signo é um ato criativo e imaginativo de conhecimento82 que desfaz qualquer autonomia dos símbolos ocultos da Renascença. Em segundo, o signo que operava simbolicamente (por reunião, associação) passa a fazê-lo diabolicamente, isto é, por dispersões e “para que o signo seja o que é, é preciso que ele seja dado ao conhecimento ao mesmo tempo que aquilo que ele significa” (id.ibid.:83) ocorrendo por combinação. Em terceiro lugar, uma vez que o signo é próprio à natureza e ao homem em combinação somente, sua relação atributiva deve prestar serviço à memória e à sua instituição, pois deve ser recordável. É da ordem arbitrária dos signos que se desloca a epistémê moderna, do conhecimento selvagem renascentista. 82 “É este hábito sem-razão (déraison) que possuem, num grau surpreendente, os que adquiriram ou que têm naturalmente o gênio da física experimental; a devaneios dessa espécie é que se devem várias descobertas.” (Diderot([1754]1989:48) 173 Com este pano de fundo83, como não considerar que o método teatral deva buscar alguma constância analógica na desigualdade entre os atores, especialmente que representam com espírito, com sensibilidade? O dilema que enfrentam O Primeiro e O Segundo do Paradoxo sobre o comediante é exatamente sobre a conduta adequada do comediante diante a vaga precisão do poema dramático somada às vicissitudes do palco. Se a repetição da atuação, especialmente quando boa, depende das sensações do ator, como repetir tais condições dramatúrgicas se estas não são pessoais, mas as da peça segundo seu conjunto técnico, que possui ritmos próprios, objetivos ao comediante, e não subjetivos a ele? E o que isto tem a ver com a verdade, se um ator cansado pode apresentar sinais de um ser vigoroso, fazendo-o hipócrita por definição84? Qual o sistema de princípios que ordena a convenção teatral e que exige do ator a forma de ação exigida por Diderot, sem que se retorne ao modelo renascentista, contudo? Preciso aqui evocar uma terceira ruptura, já não mais histórico-filosófica ou epistemológica, mas estética, pois na classificação dos seres, estamos falando da sistematização do drama burguês (Peter Szondi,2004). A primeira consideração específica no que concerne ao tema é a relação complexa que os poetas usufruíam com a tragédia enquanto um gênero, especialmente em sua caracterização nas poéticas, como a Ars grammatica de Diomedes, de IV a.C., de grande penetração no século XVII85, e que tinha como proposição acerca do trágico a necessidade de se reportar à fortuna dos heróis – compostos pela figura duplicada da nobreza – e por recorrer ao efeito do choro, ornamento que nos conecta com o conceito de imitatio, imitação no sentido de cópia. Esta caracterização do trágico fazia do cômico o território do vil (o da vila) e do baixo (idem), gerando uma polarização importante entre o território da nobreza, em cujo período correspondia à equação alegórica 83 “Toda ciência não é senão uma combinação de signos. Excluiu-se a idéia separando o signo do objeto físico, e só ligando de novo o signo ao objeto físico que a ciência volta a ser uma ciência de idéias; daí a necessidade, tão freqüente na conversação, nas obras, de chegar a exemplos. Quando, após uma longa combinação de signos, pedis um exemplo, não exigis de quem fala outra coisa exceto que dê corpo, forma, realidade, idéia ao rumor sucessivo de seus acentos, aplicando a isso sensações experimentais.” (Diderot,[1769]2000 a:208) 84 Aqui vale à pena recuperar a filologia do termo “hipócrita”, do grego hipocrités, cujo verbo referente é hipocrinestai (Duvignaud, 1972:13), que se define pelo ato de representar uma personagem. O hipócrita é o que role-play. Diante isso, não é de se espantar que, a partir da teoria dos feixes sensíveis, Diderot se permita afirmar que os comediantes de respeito “não têm nenhum caráter pois representando todos, perdem o que a natureza lhes deu; e que se tornam falsos, como o médico, o cirurgião, o açougueiro se tornam duros.”([1769] 2000b:62), enfim, se torna um cidadão exemplar (Chartier, 2004; Costa Lima, 1988). 85 Para maiores detalhes, vide Carlson (1997: Prefácio e caps. 2 e 6). 174 (nobreza[ato]) = (nobreza[classe]), e o ambiente doméstico-burguês, fazendo do homem comum agente da vileza, isto é, la cour et la ville. Mas a gradativa desarticulação dos prognósticos do procedimento poético renascentista se abre para a configuração do horizonte ficcional no qual, seguindo o prisma das representações de representações característico que divorciam a palavra dos referentes análogos (Foucault, 2002), prepara o deleite dos objetos de arte, evidenciando que a tragédia é um infortúnio sem desafortunados, isto é, se o espectador sofre não é porque alguém morreu, mas porque a morte da personagem o faz lembrar de algo, o remete às suas próprias emoções86. Põe em questão o “eu” aplicável a uma generalidade infinita de objetos diferentes de outras palavras, dado que não especifica qualquer classe de objetos e dispõe de “eu´s” análogos fornecedores da conjunção própria ao espectador, forma indispensável do enunciado da opinião e da piedade, ou do sofrer reflexivo pelo sofrimento representado formalmente (Boltanski, 1999:66). Isso indica nada mais nada menos do que a possibilidade de dissociação diabólica apontada, na qual a relação de nobreza passa a se deslocar para as ações dramáticas, e não para as dramatis personae, dado que é ficção assumindo seu lugar de direito. Ao mesmo tempo, o espaço doméstico se transforma em um espaço não só possível como também desejável como cenário, dado que é na compatibilização entre efeito e memória (cena memorável!) que a emergência do drama burguês vem a se fixar, traçando a tão delicada identificação entre público e espetáculo. Temos aqui a lenta dissolução da arte cortesã, presa às regras de salão da corte, e passamos ao terreno das questões sobre a ação eficaz e suas variáveis, especialmente na relação de manutenção de um público regular. A condução à poética do drama burguês, tem seu novelo desfeito aqui. Se por um horizonte classicista devemos vincular o heroísmo ao trágico e o doméstico ao cômico, o que dizer da inversão de Corneille com suas tragédie domestique e comédie héroïque, ou de O mercador de Londres, de George Lillo, tragédia que tem como heróis dois mercadores, e como resolução da trama de guerra um acordo comercial vantajoso para as partes envolvidas pelo comércio empresarial (Szondi, op.cit.)? O horizonte 86 Não por acaso, as investigações do teatro referentes às formas de ser culminam em situações as mais diversas. Vale mencionar que, em uma das conversas que antecedem o espetáculo, Candice fez menção a uma amiga que reclamou do tempo e sua duração entre o breu que procede da morte das personagens no desfecho da apresentação, ao som de Anthony and the Johnson´s, e o acionamento geral dos pontos de luz como corte para a apresentação, confessional, dos atores. A avaliação de que fora tudo muito rápido tem um fundamento. Não deu tempo de ela saber quem ela era diante tudo aquilo que havia assistido. Isto dá base para sua queixa. 175 maior, e que corresponde plenamente à percepção de história natural esboçada pela tribo dos iluministas, é que também os reis são homens, tal como Corneille anteriormente dispõe. Na verdade, são homens fundamentalmente, dado que animais e somente animais, mesmo que às vezes lobo do homem ou, por oposição, iluminado e autocontido. Desta nova organização na qual todos os sangues são pardos e perdeu-se o reflexo do azul87, como reordenar o espaço cênico diante suas novas necessidades? O que fazer desta natureza humana que: “(...) se aloja nesse tênue extravazamento da representação que lhe permite se reapresentar (toda natureza humana está aí: apenas estreitada no exterior da representação para que se apresente de novo, no espaço branco que separa a presença da representação e o “re” de sua repetição); que a natureza não é mais do que o inapreensível tumulto da representação que faz com que a semelhança seja aí sensível antes que a ordem das identidades seja visível. Natureza e natureza humana permitem, na configuração geral da epistémê, o afastamento da semelhança e da imaginação que funda e torna possíveis todas as ciências empíricas da ordem.” (Foucault, op.cit:98) Não é outra a preocupação de Diderot ao definir o império da ordem de cena teatral como o da verossimilhança, e não o da verdade, pois o que procura dar vazão é ao que pode ser diante as possibilidades de criação, de gênio, e não a partir das regras que caducam com o vento da história dos povos, ao mesmo tempo em que seriam inúteis ao cultivo das virtudes. Caso contrário os nobres jamais teriam perdido seu lugar na figuração do trágico e as peças não seriam nada mais do que a confusão dos sentidos, razão de sua periculosidade histórica expressa em escritos como os de Platão,Tertuliano, Rousseau, e uma ou outra junta de censura de Estados ditatoriais modernos. A burguesia se torna digna de representação por exaltação na dramaturgia nascente, dado que ela se apresenta agente de si. Mas voltemos aqui ao valor da hipocrisia e à formulação do papel do teatro como promotor de mudanças a partir da elaboração de um quadro (tableu) que 87 Vide Foucault (op.cit.:cap.V) para pôr em pauta como a cor perde valor classificatório, junto a uma série de outras formas sensíveis, na prática das taxinomias. Contudo esta situação é ainda mais pregnante ao situarmos o argumento burguês diante os salões, local de distinção do argumento segundo seu efeito retórico diante máximas muita específicas de decoro. Mas se convidado, o burguês usufruía um espaço comum. É neste espaço comum que as regras e máximas morais concernentes à civilidade e à correta conversação eram postas em prática (Costa Lima, 1988; Chartier, op.cit.) 176 represente representações das condições de vida dos homens, em um horizonte possível de entendimento, fazendo da poesia dramática um elenco de analogias centrais para sua composição. Ao apontar para estas analogias, Diderot tem dois objetivos. O primeiro o de buscar a promoção de um teatro histórico que acompanhe a dinâmica dos valores e alterações que correspondem aos tempos de então, fazendo valer os bons exemplos disponíveis na vida pública – todo sistema abstrato precisa de um -, publicidade esta também vivida pela burguesia, o que a faz fonte de personagens possíveis. O segundo propósito é o que visa bem articular valores e signos próprios a uma mimesis imitativa, mas que tenha na imitação a forma de repetir efeitos – e não referentes – e que consiga nisto promover no teatro uma boa associação88 entre pessoas que jamais se encontrariam não fosse este momento: “A platéia de comédia é o único lugar onde se confundem as lágrimas do homem virtuoso e do perverso. Lá, o perverso se irrita frente às injustiças que cometeria, sente compaixão pelos males que causaria, indignando-se diante de um homem de seu próprio caráter. Mas uma vez recebida a impressão, ela em nós permanece, a despeito de nós mesmos e o perverso deixa o camarote menos inclinado a praticar o mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele.”(Diderot, [1758]1986:43)89 Neste trecho não somente encontramos no philosophe em questão a apologia de uma forma específica de civilidade, não mais pautada pela honestidade e doação de si dos tempos de outrora, mas pelo auto-controle e pela prática da hipocrisia (Chartier, 2004), como encontramos nesta prática teatral um horizonte específico de agência moderna que em muito tem correspondência com a emergência do lazer, tal como os sociólogos Norbert Elias & Eric Dunning (1992) vieram a descrever. Não digo que há uma sociologia da função do teatro que seja transistórica, mas sim que o projeto de conhecimento de Diderot é muito semelhante ao de alguém como Elias, dado que 88 Aqui a relação entre sociedade secreta, privacidade, caixa-preta e linguagens secretas é enorme e procedente. Vide Isabelle Stengers (2002: cap. 05), Koselleck (1999: cap.02), Boltanski (1993), Deleuze & Guattari (1996) 89 Não é preciso dizer que o diagnóstico de Diderot não é, de forma alguma, consensual. Na Carta a D’Alembert, de Jean-Jacques Rousseau, uma posição diametralmente oposta se manifesta. Mas a identidade cultural da polêmica ainda vale, pois não se evita a discussão do teatro como forma de efeito civil. 177 ambos revelam a importância civilizatória da alienação relativa dos sentidos, assim como reconhecem na educação dos sentidos por mímese (seja por excitação-jogo90 sob controle por Elias, seja pela constituição de quadros de memória de analogias fundamentais em Diderot) um método eficiente de influenciar as multidões gerando boas associações (saudáveis, civilizadas), num tipo de relação experimental em que se controle as variáveis, sendo o si-mesmo uma delas. O perigo maior aqui já não são os sinais de fim do mundo, as propriedades do apocalipse. O perigo é a massa fora de controle. Massa de órgãos, de sentidos, de cidadãos. Não se pode negar a existência do perigo. Esta ressonância atinge, em parte, o trabalho do Dragão Voador que, ao final de um espetáculo claustrofóbico e pessimista permite um tempo de apresentação dos atores com falas que os situam como muito diferentes de tudo aquilo que apresentaram. É preciso dar chances ao público-assistente. Seguindo esta lógica, o diálogo dramático deve operar certa honestidade confessional na qual o comediante deve “conhecer os sintomas exteriores da alma de empréstimo(...),dirigir-se à sensação dos que nos ouvem, dos que nos vêem, e de enganá-los pela imitação desses sintomas” ([1769]2000b:66) próprios do que é uma ação honesta. Aproximando o conceito de plano à epistemologia, é possível encontrar em Diderot uma definição que localiza a imaginação na composição destes planos. Se na história (outra forma narrativa) o fato é um dado cujo fundamento é a prova (como na história natural e a erupção das formas de definição do tempo profundo geológico), na tragédia a operação imaginativa acresce nos tópicos de interesse e o poeta deve saber definir a base e o detalhe da composição do plano de cenas (nesta ordem); na comédia pode se inventar tudo. Mas dá-se visível o tipo de ordem planificadora que dispõe o palco mapeado a mapeamentos mais abrangentes e menos específicos. O efeito de realidade que se pretende não é o de refazer o referente, ou sequer prová-lo, como uma situação de corte qualquer, mas de orientar o espírito em cumplicidade com a compreensão, ao mesmo tempo em que seduz os sentidos. Com isto Diderot ([1758]1986:59-73) diferencia o verdadeiro e o verossímil. A verossimilhança é o que permite que um homem possa julgar diferentes produções ao invés de diferentes homens, que são todos iguais como entes, e fazê-lo por via das formas de auto-controle realizadas pela prestimosa técnica. Se as formas de ligação que constituem o plano de uma peça podem ser chamadas de unidade, é tão 90 Lembrando que a excitação-jogo em Elias & Dunning corresponde ao que Szondi (1994) ressalta na formação do drama burguês, ser uma tragédia cujos infortúnios não trazem desafortunados. 178 importante ser possível identificá-lo como unidade de produção quanto perceber que sua poética é devotada a esta unidade. O efeito longevo que serve de aprimoramento dos homens por via da boa associação teatral exige a geração de liames aparentes e sensíveis (Id.ibid:61) fazendo do sistema de representações teatrais um campo experimental gerador de memórias afetivas, induzindo ao espectador a privilegiar campos específicos de sensibilidade em detrimento de outros. É necessário afetar o público aplicando as doses certas, na quantidade certa, especificando que tipo de associações exemplares devem figurar o quadro de virtudes apresentado. É necessário fazer os feixes constituintes do corpo vibrarem rumo ao autocontrole e constância experimentais. O salto para a física experimental, a esta altura um tanto forçado, mostrar-se-á um passo ao lado, pois vamos falar do que ocupa o lugar de Deus na redefinição da dignidade (agência humana): a natureza. “XXIV ESQUEMA DA FÍSICA EXPERIMENTAL A física experimental se ocupa, em geral, da existência, existência das qualidades e do emprego. A EXISTÊNCIA engloba história história, a descrição descrição, a geração geração, a destruição. conservação e a destruição A história é dita dos lugares, da importação, da exportação, do preço e dos preconceitos. A descrição scrição, do interior e do exterior, de todas as qualidades descrição sensíveis. A geração vai desde a primeira origem até o estado de perfeição. A conservação conservação, de todos os meios de fixar este estado. 179 A destruição vai desde o estado de perfeição até o último grau conhecido de decomposição ou de perecimento perecimento; de dissolução ou de resolução. resolução As QUALIDADES são gerais ou particulares. Chamo gerais as que são comuns a todos os seres e que só variam pela quantidade. Chamo particulares as que constituem o ser como tal; estas últimas são da substância enquanto massa ou da substância dividida ou decomposta. decomposta O EMPREGO se estende à comparação comparação, à aplicação e à combinação. combinação A comparação se faz pelas semelhanças ou pelas diferenças. A aplicação deve ser a mais vasta e variada possível. A combinação é análoga ou bizarra.” Denis Diderot – Da interpretação da natureza O principal efeito que o escrito-transcrito procura ter é o de induzir aos que se interessam pela verdade a se unirem contra a resistência da natureza em ser compreendida, mesmo a do próprio corpo. No que diz respeito ao que se dispõe aos sentidos (input), só há caos ou carência de organização, como vimos. Os órgãos sequer se combinam por si de forma coerente, unitária, sem o aparato de memória. Os cegos operam maiores sutilezas com os sentidos que lhe restam demonstrando um estatuto notoriamente totalitário dos olhos na configuração do entendimento (Carta sobre os cegos; Adição à carta sobre os cegos). O sexo, na representação que nos dá a genitália – especialmente a feminina, plena de vapores histéricos – é um constante desafio às regularidades exigidas pelo comportamento civil, fazendo do humano um ser de duas cabeças, ou ao menos duas bocas (Jóias indiscretas, Sobre as mulheres). Diante deste impossível contexto no qual todos os órgãos do sentido parecem querer mandar em si, sem qualquer propensão ao profundo um do espírito renascentista, como fazer da 180 filosofia aliada às artes técnicas e liberais um empirismo qualquer, fazendo do sensualismo uma fonte de discursos sobre a verdade cuja fonte corresponde à relação: a cada órgão dos sentidos, uma vontade? A dignidade do homem, a configuração de sua humanidade dentre esta anarquia é sua memória (Diálogo entre Diderot com D’Alembert, O sonho de D’Alembert). Mas esta não lhe garante que é por si que tudo se faz. A inespecificidade do homem diante a natureza que operava fora de si, como vimos em Pico della Mirandola, passa a ser também uma questão interna, uma vez que externamente o que lhe garante singularidade no iluminismo é sua organização corporal segundo maior número de formas de relação com a natureza circundante ao mesmo tempo em que é capaz de associação de idéias91, princípio da psicologia nascente. O foco, que fora outrora a mediação externa, passa a ser então a organização interna. Interna, mas não especulativa, pois se há confusão quanto aos dados externos, há para os dados internos. “Os homens quase não percebem quão severas são as leis da investigação da verdade e quão limitado é o número de nossos meios. Tudo se reduz a ir dos sentidos à reflexão e da reflexão aos sentidos: entrar e sair de si.” (1986[1754]:35; grifo meu), como se fosse necessário ser possuído pelas outras formas segundo os critérios expostos e então possuí-las em jogo reverso; Laidem habeto, dummodo te Lais non habeat92. Mas que não se considere a observação como forma de ação suficiente: é preciso experimentar uma vez que “a observação exige apenas o uso constante dos sentidos; a experiência exige gastos contínuos”(id.ibid.:45), especialmente na verificação de formas de utilidade e confecção de meios de experiência laboratorial. Não à toa é o cansaço da ação, e suas formas sensíveis de afecção, que o ator deve buscar. Não é outra fonte senão a perseguição da verdade da experiência que busca Joelson, esta do tipo que permitira a Jésser de Souza demonstrar as formas de desconforto como matriz de vozes outras que não as suas. A utilidade antes de tudo, voltado à experimentação e à medida de todas as coisas, de forma que se possa comunicá-la como uma experiência comum e não segundo uma forma pessoal de registrar as memórias afetivas, exige que a percepção de 91 Da associação de idéias, aliada ao método mnemônico herdado das primeiras investigações sobre a especificidade da organização mental humana, culmina na especificidade da humanidade diante a história natural, a saber, a história das nações cujo caminho percorrido perfaz as sendas do progresso. Acúmulo de experiências por via de corretas associações, tal como é a investigação científica do verdadeiro e do falso, é o canal próprio da história da espécie. Para maiores considerações sobre a política e o dispositivo temporal progressivo, vide Koselleck (1996) e Rossi (1992). 92 Tem Laís, de modo que Laís não te tenha. 181 oposições ou analogias possa ser considerada isoladamente e em sua combinação. Diderot então nos oferece logo sete conjecturas que nos permitem aproximação com a experiência científica iluminista e o isolamento de analogias que cumpram critérios de empiricidade comuns a taxinomia. A primeira conjectura deve nos bastar. Versa sobre a diferenciação entre os sexos. O século XVIII é o século no qual se inventa a divisão entre os sexos. Esta que é uma novidade retroativa para muitos é resultado de uma longa desfiguração do princípio da plenitude que difundia hierarquia para todos o recantos do cosmos da cristandade medieval, dotando os seres de graus de perfeição de acordo com o caminho que leva a Deus. As formas de mediação possíveis que Pico della Mirandola descreve como disponíveis ao homem se localiza neste sistema. Diante esta pontuação, na qual o homem vacila entre formas e vem a ser considerado um animal, o que dizer da mulher, e onde ela se encontra neste sistema de elos encadeados? A partir de uma minuciosa investigação anatômica e de uma cuidadosa avaliação das possibilidades explicativas, fez-se o diagnóstico: as mulheres são homens com menor quantum de calor, o que faz de sua genitália uma formação orgânica não projetada para fora, não inflada pelos calores que diferenciam o pênis de uma vagina. As analogias morfológicas vão além dos tubos (Laqueur, 2001: Cap 3). O ponto no qual nos encontramos, no contato mediúnico com o iluminismo articulado no microcosmo Diderot, é exatamente o que culmina em severas redefinições do campo entre os sistemas de explicação e a posição dos sentidos diante a imagem do mundo (weltbild). A diferenciação entre os sexos culmina numa pletora de novos campos de exploração e que tem na pena do nosso iluminista a definição de um modo de operação que permite entrar e sair de si, como vimos. São considerações sobre a placenta na Primeira Conjectura da Interpretação da Natureza e como ela é produzida que geram questões como: ela é resultado das atividades orgânicas da mulher ou dos encontros entre esta e o homem. Curto e grosso: quem faz(em) a placenta? De quem é a agência, quem é o sujeito da ação – qual é a causa? Diante a hipótese de combinação supõe-se que ela tem leis tão rigorosas quanto os da concepção, impondo uma organização constante, como uma boa cidadã da polis iluminista. O que deve ser feito é ir à mola (placenta) e procurar indícios de combinação e, por ser uma combinação, há indícios de diferenças entre substâncias presentes diferentemente nos dois sexos. Caso contrário, a forma ovóide da placenta seria agência puramente feminina e teria na ação masculina repetida a força aplicada somente para seu desenvolvimento. O relato deve 182 atentar para a existência da placenta, de suas qualidades e seu emprego, tal como escrito no esquema da física experimental. Não obstante, a divulgação deve ser finalizada de forma a popularizar a filosofia que, na forma de metafísica experimental, ocupa o cargo de controle dos sentidos por via da educação, procedida pela disseminação da leitura, esta cada vez mais silenciosa e bem aprendida por Joelson-evocador-de-Diderot, e diretor de O que nos resta é o silêncio. O esquema no qual Diderot prepara a física experimental gera um circuito com suas preocupações estéticas propriamente ditas. Da diferença entre a busca da verdade e a da verossimilhança, aquela articulando o que pode ser verdade, e esta somente o que pode ser no que tange ao campo dos efeitos de sentido, vejo nada mais do que uma relação de fases-de-ser próprias ao entrar e sair de si não somente próprias ao serhumano, mas aos seus domínios também. Isso implica em considerar o si-mesmo um domínio, uma propriedade químico-jurídica (Capitan, op.cit.). Na investigação da verdade tal como exposta na natureza lá fora se estabelece uma medida de analogias comparativas que apontam não somente o lugar das coisas, uma vez que as põe em relação em um sistema que não lhes participa, dado o grau de abstração das medidas, o que não permite a estipulação de causas finais e, por conseqüência, uma finalidade substantiva para tudo. Não há sistema que possa ser exprimido em código e na natureza ao mesmo tempo. Assim, há de se conferir liberdade de experimentação e composição de forma que se possa explorar, com gênio, as analogias mais adequadas para a popularização da filosofia que, mediante a educação dos sentidos é o recurso flagrante do processo civilizatório e da universalização da humanidade como uma faculdade a ser exercida, e não mais qualquer evidência segura de dignidade. Se o centro da unidade corporal é a memória, é preciso lembrar-se como é ser humano. Inclusive, há de se evitar as tentações de ser a personagem que se encarna no teatro. O fato de os órgãos estarem em anarquia potencial, coisa, aliás, bem próxima da realidade política prérevolucinária, assim como da emergência da moderna ciência alienista, só aponta para uma situação de risco potencial no qual o controle pode ruir a qualquer momento de indisciplina. Não é preciso reforçar que a distância histórica exige cuidados e que não é por acaso que Joelson Gusson seleciona a prece diderotiana que lhe mais apraz. Anula a fidelidade à autoria do poeta-dramaturgo, dado que participa, como vimos, das inventivas contra o textocentrismo; recusa explicitamente o modelo de perspectiva na composição de um quadro de costumes ao consentir e valorizar uma cena que impõe 183 uma pilastra no meio do caminho da assistência, impedido a visão completa da cena por qualquer ponto de vista; rompe com o acordo tácito com os assistentes ao impedi-los de assistir todo o elenco em cena em cada momento ao dispor cortinas fechadas que transformaram a sala em 5 salas menores. Mas a preservação da dimensão do controle do ator e o fundamento experimental da relação entre ficção e verdade persistem na política dos efeitos materiais, pois é nestes dois domínios que se revela a consistência do “eu” pessoal/possessivo, que se faz segundo um suporte técnico, igualmente agentivo, o que se remete à auctoritas tão relevante para a fisiologia do ator. 3.6. Verdade experimental e ficção Se durante a Preleção contra a personagem Joelson evoca um “lugar de verdade” próprio da busca dos trabalhos da gente e esse tópico fora recebido silenciosamente, sem maiores repercussões, é de se levar em conta a longa história das dificuldades entre o teatro e a verdade. Contudo, a remissão a Diderot, seu exemplo de clareza e a força de apaziguamento que sua citação porta exige que haja maior vagar nas considerações sobre alguns critérios sobre a verdade experimental, em especial como nos procedimentos de cascatas de modernidade (Gumbrecht, 1998; Latour, 1986) que venho tentando apresentar, se atrela ao poder imanente à ficção, poder este a ser utilizado contra ela mesma. Mesmo que contra a personagem. Se em algum momento fiz menção à oração sobre a dignidade humana de Pico della Mirandola, o fiz porque o estatuto humanista de autoria, este que permite identificar agência humana de posse de si e a verdade, porta consigo desdobramentos importantes. O caminho que leva do olhar renascentista (Baxandall, 1991; Panofsky, 1993) e os problemas de fundação da liberdade a partir da responsabilidade humana (Pico della Mirandola, 1993; Duvignaud, 1966; Benjamim, 1984; Cassirer, 2001) tem na elaboração da verdade experimental um terreno fértil de formação de dois campos de força, dois ambientes onde a natureza artificial do homem elaborada por Diderot toma forma e que, por via dos mecanismos de retomada bibiográfica e manutenção dos móveis estáveis de sistemas de perspectiva presumidos (mapas, quadros, filmes), seguem vigentes no campo de agências convergentes à situação teatral abordada. De alguma forma a ladainha diderotiana tem a ver com a novidade de Galileu, pois: 184 “(...) Galileu nos apresenta ao mesmo tempo o problema de um acontecimento e uma primeira exploração de seus seguimentos, da significação que Galileu, tal como ele é criado-situado-produzido pelo acontecimento, lhe confere.” (Stengers, 2002:91) No desenho que confere vitória a Galileu como fundador das ciências modernas de forma inconteste, Isabelle Stengers investiga como uma lei matemática opera dispositivos abstratos para a identificação prática de classes (restritas) dos movimentos acelerados que têm por protótipo o movimento pendular ou a queda dos corpos na ausência de atrito. A fabricação da lei verdadeira, que não é nem um pouco menos verdadeira por causa da invenção, reside em certas propriedades do ficcional nascente, em especial na virada do drama e do romance burgueses. A demonstração do Sistema galileano nos escritos Diálogos sobre dois sistemas mestres de mundo e o Discurso a respeito das duas ciências novas assume a estratégia da dialética platônica. No primeiro dos escritos, ao contrário do que se vê em diálogos de um Dostoievski no século XIX, uma das vozes porta palavras mais razoáveis mesmo que diante a eloqüência dos contendores (o que nos remete a uma fórmula expositiva similar aos diálogos diderotianos, e tantos outros de ambição platônica). No segundo escrito, o Discurso, uma das personagens, a que atende por Sagredo, se indispõe com uma definição abstrata do tipo lei do movimento uniformemente acelerado, praticando um certo grau de ceticismo. Não aceita a relação imediata entre teoremas, proposições e corolários e um apontamento especificado. “Em outros termos, Sagredo é um “relativista” antes do tempo: nenhum autor de proposições abstratas tem meios de arrolar a natureza por testemunha para obter uma decisão favorável, no que diz respeito à sua verdade. A rivalidade dos pontos de vista humanos, puramente humanos, é intransponível. Toda definição é arbitrária. Toda definição, diremos, é uma ficção, que remete a um autor.” (op.cit.:94) Derivar a legislação absolutamente de uma fonte factual não exime o cientista de sua função-autor (Chartier, 1998). Estabelecer a conexão factual implica em algum grau a definição de formas abstratas apropriadas. A fonte desta conexão, já escreve Diderot spinozista, é imaginativa. Representa representações (Foucault, 2002). Sua evocação com vistas à promoção da verdade implica em restrições à liberdade autoral de Deus, 185 caso se fale do ponto de vista de Sagredo. Deus, já havia escrito Étienne Tempier, em 1277, é a manifestação do não-contraditório e exceder o domínio regido pelo binômio fato-lógica é usurpação da autoridade d´Ele. É algo similar à condenação da cobrança de juros entre irmãos perante Deus (Le Goff, 1989). Hipóteses como o vácuo e tragédias de camponês herói são inaceitáveis. O rompimento galileano se dá como insurgência à acusação de autoria humana, dado que habilita a ficção como forma constituinte da razão, o que implica também na destilação de um antídoto contrário à mesma, impedindo que o que diz um cientista galileano possa ser uma ficção. No caso, o paradoxo faz a natureza falar – aliás, como parece ser a natureza dos paradoxos nos escritos abordados neste capítulo. Mas para tal, ao invés de responder porque, instituindo a relação entre evento e causa eficiente, que é Deus, o Não Contraditório, o horizonte se firma na demonstração de procedimentos da ordem do como, definindo as propriedades de movimento dos corpos em demonstrações conjuntivas do tipo como se. Contudo, e este é o ponto, a conjunção científica que afirma a ficção que é, se rebela contra ela de forma a qualificar, pela negação da ficção em sua afirmação ficcional, o que é de fato científico. A autoria e a voz de personagens dará vazão ao cenário, ao campo, ao plano de consistência: o plano inclinado, que multiplicado culmina em diversas formas de engenharia, como a do Plano Inclinado do Outeiro da Glória, vizinho do endereço no qual vim a fazer pesquisa de campo. A composição do cenário das forças decompostas permite que seu autor desapareça dando a vez ao testemunho, à confissão do fato promovido. Nesta montagem por artifício “é o movimento encenado pelo dispositivo, que fará calar os outros autores, que desejariam compreendê-lo de outro modo. O dispositivo opera, portanto, em um duplo registro: “fazer falar” o fenômeno para “calar” os rivais” (op.cit.:104) de forma a engendrar uma boa associação entre os termos-dispositivos. Assim, o contínuo temporal entre efeitos permite ponderar sobre a velocidade instantânea de um objeto em queda como igual e comprável ao passado e ao futuro, futuro esse comunicado em prognóstico objetivo. Inventariadas as variáveis independentes, o plano inclinado define um mundo fictício que obriga, no curso da controvérsia, a utilização de termos do próprio mundo contestado pelo contendor. É um ato de censura e um aprofundamento dispositivo. Enuncia-se por auto-indicação (Iser, 1990). Mas de resto, o que interessa é o silêncio. Enquanto a dinâmica do plano inclinado como ambiente, assim como nos demais ambientes laboratoriais (os de sacro ofício do homo laborans), tem como 186 objetivo fazer cessar a controvérsia acerca de um teorema, uma proposição ou um corolário, gerando um resto estável e silencioso (fenomenotécnico; vide Latour & Woolgar,1997), o ambiente ficcional em sua circulação econômica deve conseguir fazer a fala ressoar, uma das razões pela qual um ator não deve temer, ao contrário de Garrick, a ação da crítica. Se os instrumentos e a instrumentação de isolamento e condicionamento de ambos os ambientes (laboratório e teatro) aceitam sua signagem à huis clos, seus desdobramentos, os efeitos, são de outra ordem. Se no laboratório científico há de se comprovar que, diante certo tópico, pode cessar a agência humana, no teatro moderno em salas93 os recursos silenciosos não fazem outra coisa senão provocar: os textos, os atores, as pessoas – e o faz mesmo que ao custo do silêncio das personagens e dos dramaturgos, autoridades outras, de outro domínio. O teatro, a ficção não-científica, deve gerar encantamento. No universo da autoria generalizada o teatro deve fazer falar a crítica que, não surpreendente, põe a pessoa em segredo ou embaralha suas formas de expressão em pontos codificados tendentes ao segredo, à linguagem secreta ao modo das ficções curriculares. Suprime-a em parte. Nesta que é a regra da civilidade moderna fundada na hipocrisia pública (Chartier, 2004). “”Se, sem ser falso, não se escreve tudo o que se faz, então, sem ser inconseqüente, também não se faz tudo o que se escreve”. Nesta frase de Diderot, a virada histórica se manifesta. A crítica tornou-se tão soberana que continua a imperar mesmo sem as pessoas que a iniciaram. A despersonalização que o indivíduo sofre pela crítica emancipada exprime-se no fato de que ele se torna funcionário da crítica. A manutenção do segredo –condicionada pela política e, princípio, verdadeiro arcanum das Luzes – é submetida à lógica do Iluminismo que, destruindo privilégios, abole tabus. Tudo é arrastado pelo turbilhão da esfera pública.” (Koselleck, 1999:103; vide o nome suprimido na Preleção contra a personagem) 3.7. A interdição do Teatro Laboratório Definir o ambiente de ficção pondo em analogia os laboratórios e as salas de teatro apresentam, a montante, uma facilidade e a jusante, uma complicação. No primeiro caso, a definição do espaço sob controle gera seus próprios termos de 93 Por oposição ao teatro de rua. 187 configuração de ensemble technique que dispõe elementos, indivíduos e encontro naquilo que Friedrich Schiller definira como uma jurisdição apartada do mundo (no caso do teatro). Assim, imediatamente nos deparamos com o ciclo disciplinar da censura, que para operar como controle deve desdobrar possibilidades e constituir formas de confrontação com os objetos censuráveis. O ato de censura não pode prescindir do objeto censurado. Interromper uma peça de teatro em tempos de ditadura exige participação do ensemble, mesmo que para praticar uma disforia profunda como é a implantação de uma bomba num teatro. Esta forma de entender o evento teatral, em especial da forma como presenciei na montagem de O que nos resta é o silêncio tem nas composições sincronizadas e coordenadas em sintopia, uma convergência de mecanismos de efeito cuja adequação funcional pode muito bem ser pensada segundo elementos funcionais dispostos, cada qual em posição singular. Todo o procedimento de fechamento da sala a partir da troca de cores da parede visando fechar a sala, dos pontos de luz estrategicamente localizados para prestar relevância à ação sob foco, a necessidade de uma conexão centralizada da distribuição elétrica em uma mesa com dímeres para que, no movimento de uma só pessoa, os vários componentes alterassem sua intensidade ao mesmo tempo, assim como os longos ensaios necessários para determinar a ligação de tudo isso com a apresentação das personagens, não aponta para outra direção. Fazer especificamente o pretendido com O que nos resta é o silêncio implica em pôr todos dentro da caixa-preta (huis clos), fazer do encontro uma forma de apartamento mesmo que isso não signifique qualquer forma de ilusão representativa. A implicação aqui é simplesmente a da especificação das formas de raciocínio, da organização da experiência, exigidos no cessar do império da dedução. Mas a intimidade entre algumas das práticas teatrais e os modos de verdade experimentais gera uma dificuldade localizada exatamente no embaraço do objetivo dos laboratórios, que é o de fazer cessar a controvérsia específica e deslocar dilemas de abdução e indução para o plano dedutivo básico. Elaborar uma caixa-preta conceitual (Latour, 2000) significa deixar as pessoas fora, dessubjetivar e fazer frutificar as relações de objetividade puras. Pôr as pessoas entre quatro paredes, num quarto fechado inclusive pelas cores numa espécie de sauna cromático-sonora, inverte a proporção, razão da dificuldade sugerida logo acima. De alguma forma os métodos implicados na convergência técnica dos encontros que vim a descrever se situa em várias formas de fluxo próprios à circulação, seja de 188 valores, seja de pessoas, seja de energias, em grande parte localizadas em mapas, tabelas e circuitos. Como é de se supor, este modo de reflexão, em algum grau devedor da cibernética, significa que os pontos de convergência dispõem de entradas e saídas (input e output), caso contrário sua circulação é interrompida. Não é por acaso que um desafio das ficções, especialmente as utópicas, é o fim do tempo de vigência de suas formas, seja no que tange à última página, seja na definição do tempo de espetáculo (2, 3, 4, 6 horas), que logo após seu término se encontram à mercê dos outros autores, os funcionários da crítica de Reinhart Koselleck. O medo de palco é o medo da crítica. No nexo proposto pela tradição da reflexão sobre a noção de pessoa com as formas de presentificação do “eu” como forma conceitual de tal ou qual ilha (Mauss, 2003:371) que, no limite, permite formular o campo de enunciados do sujeito, ou seja, o que é subjetivo, é relevante entender porque Jerzy Grotowski, um dos ancestrais evocados por Joelson Gusson, se permite fazer ressalvas quando qualquer analogia entre teatro, cuja essência é a técnica cênica e pessoal do ator, e ciência experimental é proposta. Quando entrevistado por Eugenio Barba em 1964, Grotowski é questionado sobre a apropriação entre teatro e laboratório, que conduz por analogia a alguma forma de pesquisa científica. Eis sua resposta: “A palavra pesquisa não deveria lembrar sempre pesquisa científica. Nada pode estar mais longe do que fazemos do que a ciência sensu stricto,; e não só pela nossa carência de qualificações, como também porque não nos interessamos por esse tipo de trabalho. A palavra pesquisa significa que abordamos nossa profissão mais ou menos como o entalhador medieval, que procurava recriar no seu pedaço de madeira uma forma já existente. Não trabalhamos como o artista e o cientista, mas antes como o sapateiro, que procura o lugar exato no sapato para bater o prego. O outro sentido da palavra pesquisa pode parecer um pouco irracional, uma vez que envolve a idéia de penetração na natureza humana.” (Grotowski, 1990:24) Os elementos mínimos exigidos para a pesquisa na natureza humana é a presença do ator e a de uma platéia, isto é, o que se apresenta e o que interpreta respectivamente. 189 “Não foi por mera coincidência que nosso Teatro-Laboratório se desenvolveu a partir de um teatro rico em recursos – nos quais as artes plásticas, a iluminação e a música eram constantemente usadas – para o teatro ascético no qual os atores e os espectadores são tudo o que existe. Todos os outros elementos visuais são construídos através do corpo do ator, e os efeitos musicais e acústicos através de sua voz. Isto não significa que não empregamos a literatura, mas sim que não a consideramos a parte criativa do teatro, mesmo que os grandes trabalhos literários possam, sem nenhuma dúvida, ter efeito estimulante na sua gênese. Já que o nosso teatro consiste somente de atores e espectadores, fazemos exigências especiais de ambas as partes. Embora não possamos educar os espectadores – pelo menos, não sistematicamente - , podemos educar o ator.” (id.ibid:28) Esta forma elementar do teatro que determina os modos de pessoas em regimes de co-presença que se desdobram em mil vias e modos, participando tão intensamente nas exigências que Joelson formula na Preleção, em especial no que busca expor da relação material entre espaço, proscênio e atitude de ator, quanto em desenhos geométricos como os propostos por Teixeira Coelho (1980) sugerindo diagramas triádicos mínimos da teatralidade que operam formas de diferenciação de intencionalidade entre atores e público assistente, trazem consigo um modo próprio de modernidade em cascata que, nos escritos de Luc Boltanski (1999), seu problema moral é observado, a saber, o do encontro que leva o espectador a sofrer o sofrimento alheio e, mais adiante, reagir por comentários94. O estímulo ao qual Grotowski se refere não diz respeito a um curto-circuito entre espectador e ator, mas a um sistema de desdobramentos que levam um espectador a estar diante outro espectador logo mais. Lembrando que a tomada de posição sobre algo, mesmo que somente na dimensão da fala, é assumir autoria diante um evento, como o é um espetáculo teatral do qual este juízo se refere. A coalizão entre autorias proporcionada em convergências de juízo aponta para alianças que, para além da relação entre o crítico e os atores em cena, recaem em alianças e controvérsias no ambiente do público, entre os assistentes. Quando Boltanski chama a atenção deste 94 Vale lembrar que, se a piedade dispõe de uma convenção de equivalência entre observante e observado, sua participação no tipo de articulação que diferencia a pessoa moralmente em estâncias de juízo, seu papel é oposto ao da justiça, dado que equalizam e desequalizam desigualmente um mesmo princípio de reflexividade. A piedade, segundo uma apropriação de forças de organização social, oferece um nível indiferente às diferenças que promovem a justiça. A piedade não é injusta. É a-justa. 190 terceiro incluído na relação espetáculo-público (o terceiro incluído é o público ao lado), realiza uma operação semelhante à inclusão do irmão da mãe na elaboração dos sistemas de aliança que, neste grau, confere às afinidades poder de definição em sistemas de parentesco. Na situação da piedade manifesta diante o espetáculo incorpora um quarto grau de observação; a do observador que observa um outro observador e sua observação do sofrimento observado e mimetizado pelo ator. A relevância da formação do público, tanto quanto a formação técnica dos atores, fica clara quando vista deste modo, dado que o movimento sob foco é o das possibilidades de generalização e dispersão de modos específicos de agência teatral. Diante o que o próprio Grotowski define ser o treinamento do ator, não há dúvida quanto a relação existente entre auto-controle e disciplina e seus desdobramento numa assimetria entre os papéis dos atores em relação o público (dicotomia públicoprivado) cujo modo de produção resulta em objetivação do subjetivo95, em muito diferente do procedimento autoral das ciências experimentais tal como apresentado por Stengers (2002). Há de se imaginar a importância da disseminação de cursos de teatro para a implementação de um projeto como o de Grotowski, que forma tanto os assistentes, quanto os atores (eu mesmo cumpri ambos os papéis). Na verdade, ele mesmo o descreve sugerindo a disseminação de uma educação secundária para o ator segundo a criação de uma guilda após fazer menção ao desenho institucional das demais artes que, visando maior plasticidade de suas técnicas, recorrem à educação integral desde tenra idade. Assim, se educado para o teatro, ao invés de piano ou dança: “(...) o aluno deveria receber uma educação humanística adequada, apoiada não num acúmulo de amplos conhecimentos da literatura, de história do teatro e assim por diante, mas num despertar da sua sensibilidade, apresentando-o aos fenômenos mais estimulantes da cultura mundial.” (Grotowski, op.cit.:44) O horizonte internacionalista deste modo de educação certamente pode inspirar algumas considerações acerca de noções relativas a uma civilização Ocidental. Há muito que ponderar sobre a validade de juízos deste escopo e os poucos que fiz espero serem suficientes para a relevância dos problemas apontados. Mas no que espero ter sido suficientemente claro é que o que desponta aqui é uma séria preocupação sobre a 95 O “eu” aplicável a uma generalidade infinita de enunciadores. 191 extensão e a função pública do ator como funcionário do teatro multiplicado, cuja especificidade da convergência a qual pude pesquisar filia-se avessa à fama, que é uma das formas de desfazer a assimetria que é fonte dos poderes do teatro-laboratório, o teatro de pesquisa que permite a oclusão do ponto de fuga privilegiado na vista do assistente. Joelson me escreveu, certa vez, o seguinte: “Uma dificuldade muito grande pra mim é encontrar pessoas que entendam que o trabalho no teatro não tem glamour, tem ralação e um pouquinho de glamour, mas só um pouquinho que fica quase sempre na imaginação de quem está vendo. A maioria dos atores é muito preguiçosa e mente muito pra si mesma. Dostoievski já dizia: “Quem mente pra si mesmo se ofende com facilidade”, daí a gente tem aqueles atores todos melindrados que não sabem ouvir uma crítica, ficam logo pessoalmente ofendidos e o diretor é que passa de grosso. Eu conheço os dois lados deste lugar e posso dizer que os atores têm muito pouca paciência e querem ser reconhecidos o tempo todo, eles querem os créditos o tempo todo. E por outro lado o diretor está sempre sobrecarregado de coisas pra decidir e imaginar e ainda por cima tem que fazer um esforço enorme para não ferir suscetibilidades. É uma faca de dois gumes.” Não à toa, visando obstruir um ciclo vicioso que leva à exposição padronizada uma aliança maldita com o público, Joelson se permite, como diretor, encenar com uma pilastra entre o atore e o público. Mas a pontinha de desejo do glamour, do público incondicional, do controle que leva à constância moral não desaparece. “No entanto, quem não alimenta um desejo secreto de atingir um sucesso estrondoso?” (id.ibid.:39) Quanta apreensão no dia de estréia! Quanto esforço em divulgar! Quanta expectativa em encher o salão da Casa da Glória. Se Grotowski escreve a respeito da aliança entre uma vida santa e outra cortesã, sendo a primeira devotada à abertura para os procedimentos e formas que dispõe o ator completamente à cena, ao local específico, aos desejos manifestos e aos sentidos disponíveis, a outra se deve a um fechamento formal que compactua com os clichês e, diante da autoridade do espectador, anula a responsabilidade e a liberdade autoral do ator, tão duramente conquistada. “Não se trata do problema de retratar-se em certas circunstâncias dadas, ou de “viver” um papel; nem isto impõe um tipo de representação comum ao teatro épico 192 baseado num cálculo frio. O fato importante é o uso do papel como um trampolim, um instrumento pelo qual se estuda o que está oculto por nossa máscara cotidiana – a parte íntima da nossa personalidade - , a fim de sacrificá-la, de expô-la.” (id.ibid.:32) Não é à toa, a memória é tão privilegiada nas técnicas e afazeres, na definição das formas de agência e da centralidade conferida a certos problemas. A batalha contra o textocentrismo e pela difusão autoral da arte de ator culmina em um outro horizonte que, nas preocupações de Diderot, não é outra coisa senão a rebelião contra o poder de centro. Afinal, basear a atividade teatral na disseminação de memórias, como a memória muscular, tal como aprendi na demonstração de Jésser de Souza e no doutorado de Burnier (2001) atualizam uma enorme sucessão de deslocamentos, estes que mal comecei a aprender. A pulsão politécnica de Diderot implica na confirmação da cidadania plena aos ofícios, o que os situa nas principais reinvidicações da burguesia no século XVIII, cuja força ainda não parece ter cessado. Diderot ainda é evocado em prece. Situando o ator como um ente sensível, o que Diderot propunha se encaixa na definição de uma educação do corpo propício ao dever mercantil de repetição de um produto. O que Grotowski, assim como Joelson e os demais na Preleção buscam é uma educação pelo corpo, coisa de outra ordem e que se apresenta como horizonte nebuloso quanto aos seus desdobramentos. Educação essa forjada no treinamento do ator e na figuração do ator santo que, uma vez secularizado, desafia o público. Não se representa mais uma personagem. Dá-se uma forma corporal, uma ação-física, deixando às personagens uma vida ainda mais efêmera, entre os corpos e os objetos, na vida fugaz da atenção imediata do público reunido e encontrado. Toda intencionalidade é uma atitude interpretativa do espectador. É ele quem está nas mãos de quem se apresenta. Mas qual é o sentido de ser educado pelo corpo? Como pensar o privilégio da atenção em relação à concentração, a ação em relação à intenção, a figura corporal em detrimento da personagem, que indicam um envolvimento que leva à negação da possessão por outrem, reforçando a autonomia da agência do “eu” possessor-criador. O que se buscou como horizonte de criação é mais um como eu faço do que como eu faço um eu. Afinal, no intuito de acabar com a instância da personagem, como tanto reforçou Joelson, o que entra em questão é “quem faz o quê?”. É-se o ator que, num ato de entrega, ao sair de si em direção a uma outra autoria, caminha rumo a personagem ou se, ainda em si o ator se apresenta para um púbico, este sim em busca da personagem, 193 mesmo que na busca de censurá-la, fruto do encontro orquestrado peça por peça da montagem? Perguntar sobre quem é que faz o quê na produção teatral, em suas fontes mais banais e dispersas até as mais específicas possível, não visa por fim delimitar qualquer essência fenomenológica do teatro. Tanto porque, muito pouco foi feito nesse sentido. O sentido de todo este investimento em perguntar sobre a dignidade da ação criativa, assim como o sujeito autor (agente), visa o espírito que anima a produção, esforço este que não é conclusivo, mas é oportuno, ao apontar uma cisão, uma identidade de conflito própria das formas de saber-fazer e poder-fazer específicos. 3.8.Por fim. A complexa formulação que enreda os conceitos de pessoa e totemismo, tal como Lévi-Strauss sugere ser a esfera da civilização Ocidental possui um problema de ordem pronominal. O “eu pessoal” não se esgota em locuções que se referem ao falante, dado que é um dispositivo de fala distribuído para outros “eus” falantes. Fala- se “eu” impessoalmente. Recorrer ao individualismo como fonte centrípeta de organização, sugerindo que ou o centro está fora, na morfologia incorporada em ideologia, ou como imediata elaboração do individualismo de seus metodólogos, perde a dimensão de que o “eu” é igualmente uma forma do outro, não só de um tu ou de um nós, eles, mas de algo que se é, recorrente no horizonte do sabe-se lá quem, coisa muito bem definida na noção de objetividade aperspectiva de Boltanski (1999), remissível à quarta pessoa problematizada por Schérer (2000), esta que se é indefinidamente até que seja especificada. Neste sentido, a mesma profundidade com a qual o desenho do subjetivo culmina em incomensurabilidade, não cessam os horizontes de mediação incomensurabilidade entre generalizada pessoas, que, operam até uma mesmo como objetividade fonte de indiferente estabilizando os media de circulação, como o dinheiro, o metro e a escrita (Latour, 1986) de valor de relação indefinida, mas situável. As palavras de Simmel a respeito são sintomáticas o suficiente para que possamos pensar em suas conseqüências, a saber, que ao falar sobre “eu” abro vias para a alteridade se firmar como resposta de haver a primeira pessoa como experiência legítima, que por sua vez serve de 194 fundação para o que “eu” faço e sou – não sou como ele, mas sou eu, tal como ele, ele, este eu que se é. é Reconhecendo no idealismo moderno a dedução do mundo a partir do eu (1987:100), Simmel se pergunta se a alma não se origina do mundo, o mesmo deduzido de si. Esta imagem de mundo implicada na alma, no espírito, e este lastrado numa mesma imagem de mundo que possui suas implicações em formas que levam ao sujeito a saber, traz consigo uma certa imagem de recomeço do esforço de saber, decerto interminável: “Às vistas do pensamento histórico, a alma é, com todos seus conteúdos e suas formas, um produto do mundo – mas deste mundo que é ao mesmo tempo, porque representado, um produto da alma. Ora, se se faz destas duas possibilidades genéticas abstrações rígidas, cria-se uma angustiante contradição. Não vem ao caso se cada um passa por um princípio heurístico que se encontra com o outro em um registro de interação e de substituição recíprocos. (...) Naturalmente, o conhecimento não obedece jamais a este esquema puro, e as duas orientações se misturam de forma fragmentária, descontinuada e aleatória; sua contradição teórica é resolvida por sua transformação em princípios heurísticos, a oposição se dissolvendo em interação, e a negação mútua nesse processo infinito no qual se opera uma tal interação.” 195 Bibliografia AGAMBEN, Giorgio (2007) Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua, Belo Horizonte, UFMG d´ ALEMBERT, Jean le Ronde (1994 [1759]) Ensaios sobre os elementos de filosofia, Campinas, Unicamp ALLEN, N. J. (1996) The category of person: a reading of Mauss´s last essay in CARRITHERS, Michael, COLLINS, Steven & LUKES, Steven. 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Elas hão de se erguer como pó e irromperão em gargalhadas. Amanhã é o dia das visagens, que quedaram pelo batatal. Eu não posso negar que, neste morrer dos brotos, sou culpado. Eu sou culpado! Amanhã é o dia das visagens, que carregam na fronte minha agonia, que possuem minha jornada. Amanhã é o dia das visagens, que como carne dançam sobre o muro deste cemitério me apontando o inferno. Por que preciso ver o inferno? Não há um outro caminho para Deus? Uma voz: Não há outro caminho! E este caminho conduz para além do dia das visagens, ele conduz pelo inferno. Thomas Bernhard (trad. Gabriel Leitão, com pitacos de Rommel Luz e Bernardo Curvelano Freire) 205 Anexo 01. Alianças autorais pregressas levantadas durante O que nos resta é o silêncio Denis Diderot José Geraldo Gerald Thomas Candice Abreu UNIRIO FOMENTA PRODUÇÕES Carmen Zanatta Lucas Gouvêa C.A.L. Joelson Gusson Leonardo Corajo Luciano Moreira Ângela Delphim Celina Sodré ANGEL VIANNA FUNAR TE Jerzy Grotowski 206 Anexo 02. Pôr o teatro no papel, o mapa de cena: disposição espacial do cenário e público com cortinas que dividem a cena, abertas. 207 Anexo 03. Disposição espacial dos pontos de luz dentro do cenário. 208 Anexo 04. Mapa da obstrução: com as cortinas fechadas. Não há a pilastra no meio do caminho. Não no mapa. 209 Luz disposta espacialmente no cenário(01): como uma câmera reage à luz e à entrada do público num dia de espetáculo. Nesta outra forma de pôr o teatro no papel é possível dimensionar efeitos vários de luz e movimento nos primeiros segundos dentro da boca de cena que é um tanto quanto uma garganta. Fotografada do ponto de vista do público. Foto: Paulo Camacho 210 Luz disposta espacialmente no cenário (02): amanhecer de Santa Tereza projetado sobre parede cor de goiaba, que é bonito e fecha o ambiente – Leda se maquia. Foto: Paulo Camacho 211 Luz disposta espacialmente no espaço (03): Fernando à frente, na cadeira de rodas que circula pelo espetáculo e, ao fundo, Beatriz Bruchner ao lado das janelas abertas, ainda antes do convite ao público feito por Vicente: “Vocês não vão entrar?”. Uma caixa-preta (huis clos) onde todos estão dentro: as cadeiras de forro vermelho são destinadas ao púbico. Foto: Paulo Camacho 212 Pilastra ao meio do caminho: tábua corrida e azulejo hidráulico e parede creme. Foto: Bernardo Curvelano Freire O que fora tema de minha primeira impressão quanto a sala, em um dia não muito afastado do dia no qual fiz a fotografia, dizia respeito exatamente a pilastra divisora, cujo desafio culmina em cenas nas quais, para que todos vejam o que é feito, os atores não devem se ver. As relações entre visível e invisível assumem uma constância que o jogo das cortinas da montagem na Casa de Cultura Laura Alvim não adquirira. Passara a ser constante. Ao fundo, o baú que concentra a guarda de boa parte dos objetos de trabalho, desde roupas e figurino até embalagens plásticas com bolinhas de gude e uma mesa de som de fabricação já considerada antiga. As marcas no chão indicam: há outros usuários desta sala, dado que as fitas crepe grudadas no taco pertencem a um grupo que ensaiava um espetáculo de dança e atrás da pilastra afigura-se, irreconhecível, um mural de fotos de um grupo de capoeira angola. Mas já não há marcas reconhecíveis da passagem do ISER neste casarão. 213 Pilastra ao meio do caminho: tábua corrida e azulejo hidráulico e parede goiaba, cor de fechar a sala. Os pontos de luz marcam formas de construção da visão, propiciam o ritmo de olhares e põem o tempo e o espaço em forma coordenada de movimentos deste encontro. Mas ainda assim é possível se esconder por trás da pilastra. Foto: Paulo Camacho 214 Aquecimento em chão quente com cortinas, dobradas, ao fundo. Parede cor de creme (muito aberto para o espetáculo). Candice derruba Leonardo de forma a deitar-se sobre ele num exercício de sincronização em silêncio. foto: Bernardo Curvelano Freire 215 Por uma obstrução ainda maior: Leonardo e Lucas brincam com a luz antes de ensaiar as cenas individuais no nicho destinado à cena do segundo. Com as cortinas fechadas há de se ouvir, mas ver é roubar no jogo, o que é chato, mas não necessariamente disfórico. Foto: Bernardo Curvelano Freire 216