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EDUCAÇÃO MÉDICA CONTINUADA Punção lombar: um exame esquecido The forgotten lumbar puncture Roldão Faleiro de Almeida Ambulatório de Cefaleia do Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais – BH Clínica Neurológica e Neurocirúrgica do Hospital Belo Horizonte – BH Almeida RF. Punção lombar: um exame esquecido. Migrâneas cefaleias 2009;12(1):36-39 RESUMO Com o advento dos exames de neuroimagem, em especial da ressonância magnética (RM) do encéfalo, e da angioressonância magnética (angio-RM) do encéfalo, a punção lombar passou a ser considerada por muitos médicos um exame arcaico, obsoleto, invasivo e até mesmo esquecido. Porém, jamais podemos nos esquecer que este exame ainda não perdeu a sua utilidade, sendo de crucial importância no diagnóstico da hipertensão (e hipotensão) intracraniana, carcinomatose meníngea, encefalite, diferentes tipos de meningites e hemorragia subaracnoideana. Assim sendo, este assunto tem por finalidade chamar a atenção para a crucial importância da punção lombar no diagnóstico de algumas formas de cefaleias secundárias, a despeito da existência dos modernos e sofisticados exames de neuroimagem. Palavras alavras--chave: Punção lombar; enxaqueca crônica; carcinomatose meníngea; hemorragia subaracnoideana; meningites; encefalites; hipertensão intracraniana idiopática; hipotensão intracraniana; cefaleia em trovoada. ABSTRACT With the advent of neuroimaging exams, in special magnetic resonance imaging (MRI) and magnetic resonance angiography (MRA), many physicians started to considering the lumbar puncture as an ancient, invasive and even forgotten procedure. But we must remember that this procedure is crucial in the diagnosis of some conditions as intracranial hypertension, intracranial hypotension, meningeal carcinomatosis, encephalitis, different types of meningitis and subarachnoid hemorrhage. Thus, this subject has the objective to inform about the crucial importance of the lumbar puncture in the diagnosis of some types of secondary headache, in spite of being modern and sophisticated neuroimaging procedures. 36 Key words: Lumbar puncture; chronic migraine; meningeal carcinomatosis; subarachnoid hemorrhage; meningitis; encephalitis; idiophatic intracranial hypertension and intracranial hypotension; thunderclap headache. INTRODUÇÃO Ao abordarmos um caso de cefaleia no qual a anamnese e o exame físico apontam para a possibilidade de estarmos diante de uma cefaleia secundária, pensamos em solicitar o exame complementar que seja ao mesmo tempo o mais elucidativo e o mais prático. Temos ao nosso dispor um rico arsenal propedêutico que vai desde um simples EEG (atualmente exercendo papel mais histórico na investigação das cefaleias), até a biópsia, passando pelos sofisticados exames de neuroimagem e pela punção lombar.1 Deste modo, com o advento da TC do encéfalo e, em especial, da RM e da angio-RM do encéfalo, a punção lombar passou a ser considerada por muitos médicos um exame arcaico, obsoleto, invasivo e até mesmo esquecido. Como consequência da subestimação do punção lombar, poderemos deixar de diagnosticar algumas moléstias, cujo diagnóstico pode depender única e exclusivamente deste procedimento, e a cefaleia não será a exceção. DADOS HISTÓRICOS Em 1891, a punção lombar foi introduzida por Heirinch Quincke na Alemanha e por Walter Wynter na Migrâneas cefaleias, v.12, n.1, p.36-39, jan./fev./mar. 2009 PUNÇÃO LOMBAR: UM EXAME ESQUECIDO Grã-Bretanha, através de pesquisas independentes, visando a redução da pressão intracraniana, com finalidade terapêutica.2 No Brasil, Miguel Couto foi o primeiro médico a realizar a punção lombar (com finalidade diagnóstica) no Rio de Janeiro, em 1897.2 PRINCIPAIS INDICAÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DA PUNÇÃO LOMBAR Hipertensão intracraniana idiopática (HII) Esta síndrome, também conhecida como pseudotumor cerebral, caracteriza-se pelo aumento da pressão intracraniana na ausência de uma lesão expansiva. Dentre os comemorativos que compõem o quadro clínico, figuram-se cefaleia (que aumenta com mudança de posição), escurecimento da visão, tinitus pulsátil, diplopia (envolvimento do VI nervo craniano) e edema de papila, que é o sinal mais consistente.3 O diagnóstico depende única e exclusivamente do aumento da pressão liquórica, na ausência de lesão espaço-ocupante, que deve ser descartada pelos exames de neuroimagem. A despeito do edema de papila ser o sinal de capital importância para o diagnóstico desta moléstia, ele pode, em raras ocasiões, estar ausente, tornando o diagnóstico extremamente difícil. A hipertensão intracraniana idiopática sem edema de papila pode decorrer de um defeito congênito (ou adquirido) da bainha do nervo óptico, elevação intermitente da pressão intracraniana abaixo do limiar para que se forme o edema de papila, ou resolução do edema da papila em consequência da evolução crônica desta síndrome.3 Em suma, se a causa da cefaleia é o aumento da pressão liquórica, a única maneira de saber será através da mensuração da mesma, e, neste caso, o exame mais prático será a punção lombar com manometria. Enxaqueca crônica Dados na literatura mostram que 5% a 14% dos casos de enxaqueca crônica podem evoluir com HII. Ramadan3 cita um caso de um homem de 67 anos, sofredor de enxaqueca, que veio a desenvolver cefaleia postural decorrente de HII (sem edema de papila) com evolução de um ano, sendo, neste caso, a falta do edema de papila atribuída à resolução do mesmo em decorrência da cronificação do quadro. Vieira et al., 4 ao avaliarem 60 sofredores de enxaqueca crônica, com exame de fundo de olho normal, RM e angio-RM do encéfalo normais, constataram que seis pacientes (10%), ao serem submetidos à punção lombar com manometria, Migrâneas cefaleias, v.12, n.1, p.36-39, jan./fev./mar. 2009 apresentavam pressão liquórica acima de 20 cm de água, sugerindo portanto HII. Hipotensão intracraniana Nesta síndrome, a cefaleia é a tônica do quadro clínico, tendo como característica fundamental o fato de surgir e agravar-se na posição sentada ou de pé, melhorando com o decúbito. Os sintomas ocorrem quando a pressão liquórica encontra-se entre 5 cm e 9 cm de água. A hipotensão intracraniana pode ser dividida em duas categorias: espontânea (na qual a evidência de perda liquórica ou de doença sistêmica não é clara), e sintomática, cuja causa mais comum é a punção lombar em si, realizada com finalidade diagnóstica, e a raquianestesia. Neste caso, se a cefaleia é completamente típica, o diagnóstico torna-se inquestionável, não havendo necessidade de se realizar outra punção lombar, mas, se ela for realizada, a baixa pressão liquórica será confirmada.5 Entre outras causas de hipotensão intracraniana, incluem-se traumatismo de crânio, traumatismo raquimedular, craniotomia, raquicirurgia, uremia, desidratação grave, meningoencefalite e septicemia.5 Em relação ao diagnóstico da hipotensão intracraniana, a RM do encéfalo tem-se mostrado um exame muito útil, ao demonstrar espessamento difuso das meninges, com realce pelo gadolíneo.5-7 Porém, aspecto de imagem semelhante pode ser observado em algumas condições tais como meningopatias de origem infecciosa (ou neoplásica), paquimeningite hipertrófica idiopática, hemorragia subaracnoideana, sarcoidose e histiocitose.6 Assim sendo, mesmo em se tratando da hipotensão intracraniana, cujo diagnóstico pode ser fácil quando o quadro clínico é típico, e do emprego da RM do encéfalo como exame complementar, a punção lombar pode ser um procedimento de crucial importância para a exclusão das entidades clínicas citadas acima. Estado confusional associado à febre ou sinais meníngeos (com ou sem cefaleia) Em se tratando de um paciente (em especial, idoso) que chega ao pronto atendimento com o quadro descrito acima, a punção lombar é um exame de crucial importância para excluir a possibilidade de uma infecção intracraniana. Se a TC do encéfalo está disponível, ela deve ser realizada antes da punção lombar, e se a suspeita de meningite bacteriana é forte, deve-se iniciar o tratamento com antibióticos antes que o resultado do exame de líquor esteja pronto, pois o melhor parâmetro para o prognóstico da meningite bacteriana aguda é o 37 ROLDÃO FALEIRO DE ALMEIDA tempo percorrido desde o início dos sintomas até início do tratamento.5 É importante frisar que a punção lombar seja precedida de um exame de imagem (TC do encéfalo) com a finalidade de descartar alguma lesão expansiva que poderia trazer riscos à vida do paciente durante a coleta do líquor, mas, se a suspeita de meningite é eminente, deve-se proceder imediatamente à punção lombar, tendo em vista a grande mortalidade e morbidade associadas a esta doença. Nas meningites crônicas, como a meningite tuberculosa, dor de cabeça intensa e febre com evolução subaguda podem ocorrer isoladamente. A cefaleia crônica diária com evolução progressiva ao longo de semanas a meses, sem febre ou outros achados neurológicos, é a manifestação mais comum das meningites fúngicas,7 e novamente a punção lombar apresenta-se como um exame de crucial importância para o diagnóstico. Carcinomatose meníngea (carcinomatose leptomeníngea) As metástases intracranianas podem assumir três padrões: envolvimento do encéfalo, envolvimento do estojo ósseo e da dura-máter, e o envolvimento das leptomeninges (carcinomatose meníngea).8 A carcinomatose leptomeníngea é uma complicação neurológica que decorre de uma invasão das leptomeninges por células neoplásicas que, por sua vez, originam-se de tumores sólidos (adenocarcinoma de pulmão, melanoma, carcinoma gastrointestinal, adenocarcinoma de mama, neoplasias cerebrais primárias) ou de doenças malignas linfoproliferativas (leucemia, linfomas).9 O diagnóstico baseia-se nos achados clínicos (cefaleia, paralisia de nervos cranianos e estado confusional), exames de neuroimagem, no caso, RM do encéfalo (massas tumorais, hidrocefalia, espessamento das meninges com realce pelo gadolíneo) e exame do líquor, sendo este de grande importância para o diagnóstico definitivo desta moléstia. Neste caso, a questão fundamental para o diagnóstico será o isolamento das células neoplásicas no líquor, o que geralmente não será conseguido na primeira punção. A alteração mais comum ao exame do líquor é o aumento das proteínas, sendo a pleicitose mononuclear e a diminuição da glicose, os achados menos comuns. A pressão liquórica pode estar elevada.10 Hemorragia subaracnoideana espontânea (HSAE) e Thunderclap headache A história de uma cefaleia intensa e abrupta ("a pior dor de cabeça de minha vida") é típica da HSAE, sendo 38 que o início da dor pode estar associado (ou não) à perda transitória da consciência, náusea (e vômitos), déficit neurológico focal ou sinais de irritação meníngea.11 A TC do encéfalo (sem contraste) é a "pedra angular" e deve ser o primeiro exame a ser realizado em qualquer paciente com suspeita clínica de HSAE, sendo que um equipamento de boa qualidade revelará o sangramento em 98% a 100% dos casos quando realizado dentro das primeiras 12 horas, e em mais de 93% dos casos, decorridas 24 horas do evento. Após o sexto dia, a sensibilidade da TC do encéfalo varia entre 57% a 85%.12,13 Se a TC encontra-se normal ou inconclusiva, porém o índice de suspeita é alto, deve-se proceder ao exame de líquor. Neste caso, ao realizar-se a punção lombar, o líquor deve ser colhido em quatro tubos, sendo que os achados consistentes com o diagnóstico da HSAE são o aumento da pressão de abertura e o aspecto hemorrágico do líquor que se mantém uniforme nos quatro tubos.12 A xantocromia do líquor surge geralmente após 12 horas12 e pode manter-se por até 40 dias após o evento.14 A realização da RM do encéfalo na sequência FLAIR (fluid-attenuated inversion recovery) tem se mostrado útil na fase aguda da HSAE. Contudo, as limitações práticas deste exame (custo, duração, gravidade do caso, etc.) não são condizentes com o cenário de um setor de urgência.13 Assim, pode-se dizer que a punção lombar ainda pode ser um exame de crucial importância na confirmação diagnóstica da HSAE. A cefaleia em trovoada primária (primary thunderclap headache) caracteriza-se por uma intensa dor de cabeça de início repentino que atinge a sua intensidade máxima dentro de um minuto, podendo mimetizar a HSAE. Às vezes pode ser difícil diferenciar a primeira ou pior crise migranosa da HSAE, particularmente se a dor ocorre de modo abrupto.7 Diante de um paciente que chega ao pronto atendimento com quadro de cefaleia em trovoada, deve-se realizar TC do encéfalo e exame de líquor (se a TC estiver normal ou for inconclusiva), com o intuito de afastar a possibilidade de tratar-se de HSAE. Novamente a punção lombar apresenta-se como um exame de alta confiabilidade e a sua omissão poder ser prejudicial ao paciente.7 A despeito de alguns trabalhos sugerirem que a thunderclap headache é uma condição usualmente benigna, outros trabalhos têm mostrado o contrário, com relatos de aneurismas não rotos associados a este tipo de cefaleia, sugerindo que ela pode ocorrer em 6,3% destes casos.7 De fato, a verdadeira frequência de aneurismas não rotos em pacientes que apresentam a "cefaleia em trovoada" não é conhecida.7 Deste modo, Migrâneas cefaleias, v.12, n.1, p.36-39, jan./fev./mar. 2009 PUNÇÃO LOMBAR: UM EXAME ESQUECIDO não basta pensar apenas no aneurisma roto e dar o caso por encerrado, porque a TC do encéfalo e a punção lombar descartaram HSAE. Deve-se pensar também (e sempre) no aneurisma não roto, para evitar futuras surpresas desagradáveis. CONCLUSÃO A despeito da punção lombar ter sido introduzida ao arsenal propedêutico neurológico há mais de cem anos, e do galopante avançar dos sofisticados meios diagnósticos da Medicina contemporânea, algumas moléstias, para serem melhor diagnosticadas, ainda continuam dependendo única e exclusivamente deste "arcaico", "obsoleto" (e até mesmo esquecido) exame, e a cefaleia não é a exceção. 11. Vega C, Kwoon JV, Lavine SD. Intracranial aneurysms: current evidence and clinical practice. Am Fam Physician. 2002; 66(4):601-8. 12. Suarez JI, Tarr RW, Selman WR. Aneurysmal subarachnoid hemorrhage. N Engl J Med. 2006;354(4):387-96. 13. Bederson JB, Connolly ES Jr, Batjer HH, Dacey RG, Dion JE, Diringer MN, et al. Guidelines for the management of aneurysmal subarachnoid hemorrhage: a statement for healthcare professionals from a special writing group of the Stroke Council, American Heart Association. Stroke. 2009;40(3):994-1025. 14. Lance JW. Mechanism and management of headache. Fifth edition. Cambridge; 1993: pag. 218. Endereço para correspondência Dr oldão FFaleiro aleiro de Almeida Dr.. R Roldão Rua Castelo de Guimarães, 471 / 401 – Bairro Castelo 31.330-250 – Belo Horizonte-MG E-mail: [email protected] Agradecimento O autor gostaria de externar os seus agradecimentos ao colega Dr. Kleber Augusto do Carmo, neurologista do Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais e do Hospital Madre Tereza – Belo Horizonte, por sua colaboração. REFERÊNCIAS 1. Almeida RF. Quando e como investigar a cefaleia. Migrâneas & Cefaleias 2007;10(4):176-181. 2. Tuoto EA. A história do líquido cefalorraquiano. Anais do XI Congresso Brasileiro de História da medicina. Goiânia ( GO), 2006. 3. Ramadan NM. Intracranial hypertension and migraine. Cephalalgia. 1993;13(3):210-1. 4. Vieira DSS, Mashura MR, Gonçalves AL, Zukerman E, Senne Soares CA &Peres MFP. Presença de hipertensão intracraniana idiopática em pacientes consecutivos com enxaqueca crônica. 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