transições de fases em alimentos – influência no processamento e

Transcrição

transições de fases em alimentos – influência no processamento e
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
ISSN 1517-8595
83
TRANSIÇÕES DE FASES EM ALIMENTOS: INFLUÊNCIA NO
PROCESSAMENTO E NA ARMAZENAGEM
Juliana Tófano de Campos Leite1, Fernanda Elisabeth Xidieh Murr2; Kil Jin Park3
RESUMO
Alimentos são compostos por uma combinação de diferentes componentes e, por essa razão,
geralmente existem em um estado de não-equilíbrio amorfo. A transição vítrea é a principal
transição de fases observada em componentes amorfos e, portanto, a mais comum em alimentos.
A transição vítrea em materiais amorfos ocorre em uma faixa de temperaturas, mas geralmente é
associada a um único valor – a temperatura de transição vítrea (Tg). Essa temperatura varia com
a composição dos alimentos, principalmente com a concentração de água. O conhecimento do
comportamento da temperatura de transição vítrea em função da umidade dos alimentos é
essencial para a determinação das melhores condições de processamento e armazenagem dos
alimentos.
Palavras-chave: transição vítrea, diagramas de estado, atividade de água, plastificação pela
água
PHASES TRANSITIONS IN FOODS: INFLUENCE IN THE
PROCESSING AND STORAGE
ABSTRACT
Food is composed by a combination of several components and, for this reason, generally in at a
non-equilibrium amorphous state. The glass transition is the main phases transition observed at
amorphous materials; therefore it is the most common in food materials. The glass transition in
amorphous materials occurs at a range of temperatures, but it is often referred to the single
temperature value – the glass transition temperature (Tg). This temperature varies with the food
composition, mainly with the water content. The knowledge of the glass transition temperature
behavior in function of the food moisture content is very important to determine the best
conditions for food processing and storing.
Keywords: glass transition, phase diagrams, water activity, plasticizing by water
____________________________
Protocolo 150 Protocolo 100 de 10 /01 / 2005
1
2
3
Doutoranda em Engenharia de Alimentos Departamento de Engenharia de Alimentos – Faculdade de Engenharia de Alimentos –
Universidade Estadual de Campinas. Caixa Postal 6121. CEP: 13083-970. Campinas-SP, Brasil. E-mail: [email protected]
Professora - Departamento de Engenharia de Alimentos – Faculdade de Engenharia de Alimentos – Universidade Estadual de Campinas.
Caixa Postal 6121. CEP: 13083-970. Campinas-SP, Brasil. E-mail: [email protected]
Professor Titular - Faculdade de Engenharia Agrícola – Universidade Estadual de Campinas. Caixa Postal 6011. CEP: 13084-971.
Campinas-SP, Brasil. E-mail: [email protected]
84
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
INTRODUÇÃO
A estabilidade é uma característica
extremamente desejável em alimentos. Ao
adquirir um produto, o consumidor deseja que
ele mantenha a sua qualidade pelo maior tempo
possível,
tanto
do ponto
de vista
sensorial,
quanto
do
microbiológico.
Termodinâmica-mente, um material estável é
aquele que se encontra em equilíbrio com as
condições de temperatura e pressão do
ambiente, de forma que ele não apresente
alterações em seu estado físico ao longo do
tempo.
Compostos,
quimicamente
puros,
geralmente, são estáveis. No entanto, os
alimentos são formados por uma combinação
de diferentes componentes e, por essa razão,
geralmente, existem em um estado de nãoequilíbrio amorfo. Materiais amorfos são
compostos susceptíveis às mudanças de
temperatura e pressão do ambiente, de modo
que pequenas variações nas condições
ambientes podem provocar mudanças de estado
em alguns componentes, causando mudanças
estruturais indesejáveis.
A mudança de fase mais comum em
alimentos é a transição vítrea, que consiste em
uma transição de fase de segunda ordem de um
estado sólido-vítreo para um estado semilíquido gomoso. A transição vítrea de um
composto ocorre a uma certa temperatura,
denominada temperatura de transição vítrea
(Tg), que é variável com a composição do
alimento, principalmente, com o teor de água.
A textura é um dos atributos sensoriais de
maior importância em alimentos e está
diretamente relacionada com o seu estado
físico. Durante o processamento e a
armazenagem, os alimentos estão sujeitos a
uma série de variações na sua composição e nas
condições de temperatura e pressão do
ambiente, as quais levam a alterações no seu
estado físico e, consequentemente, na sua
textura. O conhecimento da temperatura de
transição vítrea em função da concentração de
água é de extrema importância na formulação e
na determinação das condições ideais de
processamento e armazenagem de alimentos, de
forma a manter a qualidade do produto pelo
maior tempo possível.
Diagramas de estado são diagramas de
fase simplificados obtidos pela sobreposição da
curva de transição vítrea (Tg versus
concentração) ao diagrama de equilíbrio,
permitindo visualizar os pontos de transição
Leite et al.
entre os estados sólidos amorfos de nãoequilíbrio da matéria, ou seja, os estados vítreo
e gomoso. Esses diagramas são extremamente
úteis no estudo das transições de fase em
alimentos, pois permitem visualizar a influência
das condições de umidade e temperatura do
ambiente sobre o estado físico dos alimentos.
Por essa razão, são ferramentas indispensáveis
na determinação das condições ideais de
processamento e armazenagem dos alimentos.
O objetivo desse trabalho é demonstrar,
através dos trabalhos científicos, a importância
de se conhecer o comportamento da
temperatura de transição vítrea em função da
concentração de água nos alimentos.
Transições de fase em alimentos
Transições de fase são alterações no
estado físico dos materiais que têm efeito
significativo sobre as suas propriedades físicas.
Existem três estados físicos básicos: sólido,
líquido e gasoso. O termo transição refere-se à
mudança, no estado, provocada por uma
alteração de temperatura ou pressão. As
transições de fase em alimentos ocorrem,
geralmente, como um resultado de mudanças na
composição ou na temperatura, durante as
etapas de processamento ou armazenagem
(Roos, 1995a).
A estabilidade é uma característica
extremamente desejável em alimentos. Ao
adquirir um produto, o consumidor deseja que a
sua qualidade seja mantida pelo maior tempo
possível, tanto do ponto de vista microbiológico, quanto do sensorial. No entanto, os
alimentos são formados por diversos
componentes que estão sujeitos às variações de
condições do ambiente e, consequentemente, a
uma série de alterações que podem resultar na
perda de qualidade e até na completa
deterioração desses materiais.
Termodinamicamente,
um
material
estável é aquele que se encontra em equilíbrio
com as condições de pressão e temperatura do
ambiente, isto é, que não apresenta mudanças
em seu estado físico em função do tempo. No
equilíbrio, a estrutura molecular desses
materiais se encontra organizada da melhor
forma possível, de modo que se obtenha o
menor nível de energia para o sistema. Em
geral, materiais em equilíbrio são compostos
puros, a uma determinada temperatura e pressão
(Roos, 1995a).
Alimentos são sistemas complexos, pois
não são compostos puros, mas sim uma
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
combinação de uma grande variedade de
componentes, tais como carboidratos, lipídeos,
proteínas, fibras e água. De acordo com Roos
(1995a), o estado físico dos alimentos,
geralmente, é governado pela transição de fase
dos seus principais componentes. Uma vez que
a água é o principal componente e diluente, na
grande maioria dos alimentos, ela deve afetar,
significativamente, o estado físico e a as
propriedades dos demais compostos.
A maior parte dos alimentos, assim como
uma grande quantidade de polímeros sintéticos,
existe em um estado de não-equilíbrio amorfo,
que pode ser definido como uma falta de
organização das moléculas, sendo o oposto ao
estado cristalino, o qual se caracteriza pelo
melhor arranjo da estrutura. Esses materiais são,
geralmente metaestáveis, de modo que seu
estado físico e suas propriedades físicoquímicas mudam de comportamento, durante as
etapas
de
processamento,
estocagem,
distribuição e consumo (Roos, 1995a; Slade &
Levine, 1991).
De acordo com Roos (1995a), materiais
amorfos podem ser obtidos como resultado de
diversos processos. Sua formação ocorre,
através de uma mudança no material, a qual
deve ocorrer em uma velocidade, suficientemente alta, de maneira que não haja tempo para
que o produto se ajuste às mudanças que
ocorreram na vizinhança e, portanto, saia do
estado de não-equilíbrio para o estado de
equilíbrio.
Materiais amorfos podem ser formados
em processos onde a temperatura é reduzida
abaixo do ponto de fusão ou quando ocorre
remoção de água por evaporação ou por
congelamento (Slade & Levine, 1991). O
resfriamento rápido de alimentos com alto teor
de água, também, resulta na formação de
materiais amorfos, através de uma diminuição
na mobilidade molecular do material, evitando
a cristalização da água. Materiais amorfos,
também, são obtidos da fusão de polímeros
cristalinos, podendo ser resfriados para um
estado viscoelástico (gomoso) ou para um
estado sólido (vítreo) (Roos, 1995).
Transição vítrea
Em alimentos, a mudança de fase mais
importante, que é característica de materiais
amorfos, é a transição vítrea, que consiste em
uma transição de fase de segunda ordem de um
estado sólido-vítreo para um estado semilíquido
gomoso. Termodinamicamente, a transição
Leite et al.
85
vítrea pode ser definida como uma
pseudotransição de fase de segunda ordem, pois
apresenta características típicas desse tipo de
transição, como mudança na tangente de
expansão do volume (a primeira derivada da
energia livre), a descontinuidade do coeficiente
de expansão térmica e a descontinuidade do
calor específico (segunda derivada da energia
livre). Ela não pode ser classificada como uma
transição termodinâmica verdadeira por ser
afetada pela cinética de formação da forma
vítrea, como as velocidades de aquecimento ou
resfriamento (Roos, 1995a).
A transição vítrea ocorre através de uma
faixa de temperaturas, embora seja, freqüentemente, referida a uma única temperatura. A
temperatura, a uma dada umidade, à qual é
atribuída essa transição é denominada
temperatura de transição vítrea – Tg
(Kauzmann, 1948; Sperling, 1992). Na ciência
clássica de polímeros, a Tg é, freqüentemente,
associada à temperatura do ponto médio
(midpoint) da variação do calor específico do
material (Cp), entre os estados vítreo e líquido
(Wunderlich, 1990). Roos & Karel (1991e)
atribuíram os valores de Tg ao ponto inicial da
transição, por se tratar da temperatura em que
os autores observaram rápidas mudanças na
viscosidade do sistema.
Os valores da temperatura de transição
vítrea de compostos amorfos e alimentos são
mais freqüentemente determinados pela técnica
de calorimetria diferencial de varredura (CDV).
Essa metodologia detecta uma mudança típica
no calor específico da amostra à temperatura de
transição vítrea. O valor da Tg de uma única
amostra depende do seu histórico térmico, de
forma que um mesmo método de análise pode
fornecer diferentes valores de Tg. Geralmente,
o valor considerado como a temperatura de
transição vítrea é a temperatura inicial ou a
temperatura média da faixa de variação de Tg
(Bhandari et al., 1997; Roos, 1995b).
O conhecimento da temperatura de
transição vítrea é de grande importância em
materiais amorfos, pois muitas propriedades
físicas desses materiais podem ser relacionadas
ao seu valor (Slade & Levine, 1991). Em
alimentos, a Tg está diretamente ligada à
alteração de textura dos materiais, que é uma
das propriedades mais relevantes do ponto de
vista sensorial.
Quando materiais amorfos se encontram
sob baixas temperaturas (estado vítreo) eles são
duros e quebradiços, com características vítreas,
similares às observadas em plásticos duros, lãs
de vidro ou biscoitos crocantes (crisp crackers)
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
86
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
(Labuza, 2004; Sperling, 1992). Um aumento
na temperatura pode causar nesses materiais
uma transformação para o estado gomoso, um
estado menos viscoso, à temperatura de
transição vítrea (Tg).
A crocância característica de alimentos
no estado vítreo é altamente desejada em
biscoitos, batatas fritas, cereais matinais e
alimentos desidratados. Já a maciez associada
ao estado gomoso é desejável em alguns
produtos desidratados, como damasco e banana,
e, também, em produtos industrializados, como
é o caso de alguns biscoitos e recheios (Baroni,
2004; Labuza, 2004). A determinação das
propriedades de estado em alimentos, em
função da temperatura e da concentração de
água, fornece informações valiosas no
estabelecimento da formulação, processamento,
embalagem e estocagem para que seja evitada a
mudança de fase (vítreo-gomoso), mantendo o
Leite et al.
alimento na forma desejada para o consumo
pelo maior tempo possível (Roos, & Karel,
1991a).
A teoria da transição vítrea da ciência dos
polímeros pode ajudar na compreensão das
propriedades texturais de alimentos e explicar
as alterações que ocorrem durante o
processamento e a armazenagem, tais como a
pegajosidade, o empelotamento, o amolecimento e o endurecimento (Labuza, 2004; Roos
& Karel, 1991a, 1991b, 1991c, 1991d, 1991e;
Slade & Levine, 1989; Sperling, 1992).
Uma vez que a maior parte dos polímeros
é termoplástica e sujeita a plastificação pela
água, suas propriedades físicas são governadas
pela temperatura e pela quantidade de água
(Slade & Levine, 1991). Na Figura 1, pode-se
observar um diagrama representativo da
transição entre os estados vítreo e gomoso.
Figura 1 – Diagrama representativo da transição entre os estados vítreo e gomosos para um material
amorfo (Adaptado de Labuza et al., 2004)
A partir da observação da Figura 1,
percebe-se que a transição do estado vítreo para
o gomoso pode ocorrer, tanto pelo aumento da
temperatura, como pelo aumento na
concentração do plasticizante, no caso, a
concentração de água (umidade). À temperatura
de transição vítrea ocorre uma mudança drástica
no movimento local das cadeias de polímeros,
resultando em inúmeras diferenças entre as
propriedades dos estados vítreo e gomoso.
Quando um alimento é submetido a um
ambiente de elevada umidade relativa e
temperatura constante, ele absorve água,
havendo um aumento na concentração desse
plasticizante. Com isso, ocorre uma redução na
sua viscosidade e um consequente aumento na
mobilidade molecular, dentre outras modificações. Analogamente, em um material submetido
a um aumento da temperatura acima da Tg, com
umidade constante, observam-se várias
alterações, tais como: aumento de volume livre,
decréscimo da viscosidade, aumento do calor
específico e aumento da expansão térmica
(Kauzmann, 1948; White & Cakebread, 1966).
Dentre as transformações observadas,
aquelas que mais afetam o comportamento dos
alimentos estão relacionadas ao aumento
exponencial da mobilidade molecular e ao
decréscimo de viscosidade (Ross & Karel,
1991; Slade & Levine, 1991). Esses fatores
governam uma série de transformações
estruturais dependentes do tempo e, muitas
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
vezes, relacionadas à viscosidade, tais como:
pegajosidade, colapso (perda de estrutura,
escoamento sob a força da gravidade) e
cristalização durante o processamento e a
armazenagem.
Alimentos que se encontram no estado
vítreo possuem viscosidades muito elevadas, da
ordem de 1012Pa, o que provoca uma
imobilização das moléculas e não permite os
rearranjos necessários para a formação de
estruturas cristalinas. Por essa razão, supõe-se
que tais materiais sejam estáveis abaixo da
linha da Tg. Quando, pela absorção de água ou
pelo aumento da temperatura, os materiais
atingem uma viscosidade entre 106 e 108Pa, eles
começam a apresentar algum tipo de
escoamento (Downton et al., 1982; Roos,
1995a). Conforme um sistema passa do estado
vítreo para o gomoso, sua viscosidade cai de
valores da ordem de 1012 para valores da ordem
de 103Pa, à temperatura de transição vítrea
(Sperling, 1992). A viscosidade reduzida
confere uma maior mobilidade aos reagentes e
às cadeias de polímeros (Labuza et al., 2004).
O aumento da mobilidade molecular
melhora a difusão, resultando em uma
cristalização dos componentes amorfos
dependente do tempo (Bhandari et al., 1997;
Labuza et al., 2004; Roos, 1995a). A
cristalização, por sua vez, causa as mais
drásticas variações nas propriedades físicas de
polímeros alimentícios. Ela pode afetar,
consideravelmente, a estabilidade dos alimentos
e pode promover características de reidratação
em pós, além de afetar as propriedades texturais
(Kim et al., 1981; Roos & Karel, 1992; Roos et
al., 1996).
A porção de volume livre, definida
como a parcela de espaço associada com um
sistema que não é ocupada por cadeias de
polímeros propriamente ditas, também oscila
entre os estados vítreo e gomoso (Labuza et al.
2004). O volume livre disponível em um
sistema vítreo é estimado em valores entre 2 e
11,3% do volume total e acredita-se que esse
valor aumenta substancialmente à temperatura
de transição vítrea, devido a um aumento
dramático no coeficiente de expansão térmica
(Ferry, 1980). Esse aumento no volume livre
deve permitir uma difusão mais rápida dos
reagentes. Baseado no volume requerido para
difusão, o tamanho da molécula difusora
também deve ser um fator importante na
definição das taxas de difusão.
A temperatura de transição vítrea da
maior parte dos componentes alimentícios
solúveis em água (polímeros, polissacarídeos e
Leite et al.
87
proteínas) é elevada e aumenta com o aumento
do peso molecular. Uma vez que esses materiais
tendem a se decompor em temperaturas
menores que Tg, muitas vezes o valor da Tg de
polímeros alimentícios anidros não pode ser
determinado.
O estado físico e as propriedades fisicoquímicas
dos
alimentos
mudam
seu
comportamento durante as etapas de
processamento,
de
distribuição
e
de
armazenagem. A remoção de água por
evaporação
e
a
desidratação
por
imersão/impregnação
ou
congelamento
geralmente resultam na formação de produtos
no estado amorfo (Slade & Levine, 1991).
Efeito da plasticização da água sobre a
transição vítrea em alimentos
Não existem dúvidas de que a
temperatura, a quantidade de água e o tempo
são fatores que têm forte influência sobre o
estado físico e a qualidade de materiais
biológicos e alimentos. De acordo com Labuza
et al. (2004), a partir da década de 60, as formas
mais comuns de deterioração de alimentos; tais
como modificações físicas e fisico-químicas,
crescimento microbiológico e reações das fases
lipídica e aquosa; foram tidas como resultado
da disponibilidade termodinâmica de água, ou
atividade de água (aw), e da quantidade total de
água presente no alimento (Teor de água). De
acordo com Roos et al. (1996), a estabilidade
em alimentos é, significativamente, afetada pela
pressão relativa de vapor d’água, que
corresponde à atividade de água, aw, sob
condições de equilíbrio.
A diferença no potencial químico da
água () entre dois sistemas resulta na troca de
água entre eles. Hyman & Labuza (1998)
Quando uma micro-região atinge valores
superiores ou inferiores ao da aw local, ocorre
uma mudança de estado físico Labuza et al.
(2004).
As isotermas de sorção de água são
curvas que mostram a relação entre a atividade
de água e o teor de água do material, sob uma
temperatura
constante.
São,
portanto,
ferramentas que permitem caracterizar as
relações entre o teor de água de um material e a
sua disponibilidade de água. Estudos de
modelos para as isotermas de sorção são
particularmente importantes na predição da vida
de prateleira de alimentos com teor de água
baixo ou intermediário (Labuza et al., 1970;
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
88
Labuza, 1980; Simatos & Karel, 1988; Roos &
Karel, 1996).
Produtos amorfos, em geral, sofrem
efeito de plasticização pela água. Nesse caso, o
teor de água dos materiais tem forte influência
sobre a sua temperatura de transição vítrea. A
água provoca uma redução drástica na Tg de
polímeros alimentícios (Slade & Levine, 1991),
e mesmo a presença de traços de água pode
significar reduções significativas no valor da
Tg. O efeito plasticizante da água (Roos,
1995b) é típico de carboidratos com baixo peso
molecular, oligossacarídeos, polissacarídeos,
proteínas e polímeros plastificáveis.
A plasticização pela água pode ser
observada pela depressão da temperatura de
transição vítrea com o aumento do conteúdo de
água (umidade), melhorando a perceptibilidade
da transição. A predição da depressão da Tg
como resultado da plasticização pela água é útil
na avaliação dos efeitos da composição dos
alimentos sobre a Tg, uma vez que as alterações
relacionadas à transição vítrea podem afetar o
tempo de prateleira e a qualidade Roos et al.
(1996).
Sobral & Menegalli (2002) relatam que
vários modelos explicam o fenômeno de
plastificação pela água. De acordo com os
autores, muitos consideram que a entrada do
solvente na matriz polimérica causa um
aumento na mobilidade molecular, reduzindo o
valor da Tg.
Roos et al. (1996) afirmam que alguns
modelos de plasticização aplicados em sistemas
poliméricos não são aplicáveis para a
plasticização da água, pois são baseados na
similaridade das propriedades dos compostos da
mistura, o que é raro entre os compostos dos
alimentos. O efeito da água sobre a Tg de vários
alimentos tem sido predito pela equação de
Gordon & Taylor (1952) citados por Zimeri &
Kokini (2003) (Equação 1), a qual foi
originalmente desenvolvida para descrever a
dependência da Tg com a composição binária
de polímeros miscíveis (Zimeri & Kokini,
2003).
Tg 
x1Tg1  kx2Tg 2
x1  kx2
(1)
Leite et al.
Onde xi é a fração mássica do i-ésimo
componente, Tgi é a temperatura de transição
vítrea do i-ésimo componente e k é uma
constante de ajuste. No estudo do efeito da água
sobre a Tg, x1 é a fração mássica de água e x2, a
de sólido.
Couchman & Karasz (1978) basearamse na teoria termodinâmica da transição vítrea
de misturas de polímeros para propor um
modelo de plasticização ilustrado na Equação
2.
Tg 
x1Tg1  (Cp 2 / Cp1 ) x 2 Tg 2
x1  (Cp 2 / Cp1 ) x 2
(2)
Na Equação (2), Cpi é a mudança no
calor específico do i-ésimo componente à
temperatura Tgi.
Comparando-se as equações (1) e (2),
nota-se que a equação proposta por Couchman
& Karasz (1978) é igual à de Gordon & Taylor
(1952) citados por Zimeri & Kokini (2003),
com
k = Cp2/Cp1.
A equação de Gordon & Taylor tem se
mostrado particularmente útil no ajuste de
dados experimentais da Tg e da composição de
açúcares amorfos (Roos, & Karel, 1991b,
1991e; Roos, 1993) e maltodextrinas (Roos, &
Karel, 1991d, 1991e, além de outros
ingredientes e alimentos em geral.
Roos (1993) demonstrou que o uso
combinado da equação de Gordon & Taylor e
dos modelos das isotermas de sorção permite
avaliar a estabilidade dos alimentos sob várias
condições de armazenagem, baseando-se no
fato de que há perda de estabilidade acima da
Tg. O autor sugeriu o uso combinado dos
modelos matemáticos utilizados em isotermas
de sorção e da equação de Gordon-Taylor para
a descrição da plasticização pela água. Os
modelos podem ser ajustados aos dados
experimentais e utilizados para mostrar a Tg e a
isoterma de sorção em um único gráfico, como
pode ser observado na Figura 2, que foi
adaptada de dados experimentais de Joupilla &
Roos (1994) para leite em pó desnatado.
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
Leite et al.
89
Figura 2 – Temperatura de transição vítrea, Tg, como uma função da atividade de água, a w, e isoterma
de sorção a 24ºC leite em pó desnatado. (Adaptado de JOUPILLA & ROOS, 1994)
Roos, et al. (1996) ressaltam que a
relação entre Tg e aw sob uma temperatura
constante fornece um método simples para
predição dos efeitos da umidade relativa
durante a armazenagem sobre a Tg. Tal
predição é de grande utilidade na avaliação da
estabilidade de vários alimentos com baixo teor
de umidade, como pós, cereais, frutas
desidratadas, dentre outros.
Roos (1987) estabeleceu uma relação
linear entre a atividade de água e a temperatura
de transição vítrea. Roos & Karel (1991c) e
ROOS (1993) observaram que essa linearidade
se aplica a valores de aw entre 0,1 e 0,8. No
entanto, para toda a faixa de aw, essa relação é
sigmoidal, como pode ser observado na Figura
2.
As informações contidas na Figura 2
são de grande utilidade na localização de
valores críticos para a atividade de água e para
a umidade, definidos como aqueles que
reduzem a Tg para a temperatura ambiente
(Roos, 1993; Jouppila & Roos, 1994; Roos,
1995a). Na Figura 2, por exemplo, se o leite em
pó for armazenado em um ambiente com
atividade de água de 0,37, ele atingirá uma
umidade de 7,6g/100g de sólidos e a sua
temperatura de transição vítrea será reduzida
para 24ºC. Isso significa que a atividade de
água crítica é de 0,37, pois o produto sofreria
alterações estruturais à temperatura ambiente,
reduzindo o seu tempo de prateleira.
Zimeri & Kokini (2002) estudaram o
efeito da umidade sobre a cristalinidade e a
temperatura de transição vítrea da inulina.
Foram avaliados ambientes com atividade de
água variando entre 0 e 0,93. Os autores
observaram que a temperatura de transição
vítrea da inulina diminuiu com o aumento da
umidade, confirmando o efeito plastificador da
água.
Roos & Karel (1991d), estudando o
efeito da umidade sobre o comportamento
térmico e a cristalização de alimentos amorfos,
também, observaram um decréscimo na Tg com
o aumento de umidade. Zimeri & Kokini (2003)
estudaram o efeito da umidade sobre a transição
vítrea de amido gelatinizado e também
observaram o efeito plastificante.
DIAGRAMAS DE ESTADO
Uma fase pode ser definida como um
estado fisico e quimicamente homogêneo de um
material que se encontra claramente separado
de outra matéria. Uma transição de fase pode
ser observada de uma mudança na energia
interna, no volume, no número de moles ou na
massa. A mudança na fase ocorre como
resultado de uma mudança na temperatura ou
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
90
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
na pressão. Um estado de equilíbrio entre fases
requer que ambas estejam sob as mesmas
condições de temperatura e pressão (Roos,
1995a).
Quando a água interage com um soluto
dissolvido ou com um material amorfo ou
cristalino, a termodinâmica do sistema muda de
tal forma que a energia livre da água sofre uma
redução. Essa situação se manifesta, através de
um decréscimo, na pressão de vapor d’água, na
fase gasosa, de uma redução na linha de
congelamento, em função da concentração de
reagente, bem como de um aumento nos pontos
de ebulição e de fusão de qualquer soluto. Essas
interações representam as condições de
equilíbrio termodinâmico em um ponto de
concentração de água/temperatura e podem ser
utilizadas para construir um diagrama de fases
representativo com três linhas de equilíbrio
(ponto de ebulição, ponto de congelamento ou
Leite et al.
formação de gelo e ponto de fusão ou
cristalização do soluto) (Labuza et al., 2004).
A relação entre os estados físicos, a
pressão, a temperatura e o volume pode ser
mostrada
em
diagramas
de
fases
tridimensionais. Tais diagramas mostram
superfícies que indicam valores para as
variáveis de estado sob condições de equilíbrio.
Nesses diagramas, é possível perceber que, na
maior parte das situações de equilíbrio, duas
fases coexistem, ou seja, existe um equilíbrio
sólido-líquido, sólido-gás ou líquido-gás. As
projeções bidimensionais dos diagramas de fase
são muito úteis para aplicações práticas (Roos,
1995a).
Na Figura 3, observa-se um diagrama
de fase bidimensional esquemático, onde são
mostradas as linhas de equilíbrio para
temperatura e pressão de cada fase. Em
alimentos, um dos diagramas bidimensionais de
maior importância é o da água.
Figura 3 – Diagrama de fase esquemático mostrando as curvas de equilíbrio entre vários estados
físicos e a sua dependência da temperatura e da pressão (Adaptado de Roos, 1995a)
Quando uma curva de transição vítrea
de um componente sólido é inserida em um
diagrama de equilíbrio apropriado, é possível
visualizar os pontos de transição entre os
estados sólidos amorfos de não-equilíbrio da
matéria, isto é, os estados vítreo e gomoso
(Labuza et al., 2004). O diagrama resultante
dessa composição é chamado diagrama de
estado.
Roos (1995a) define os diagramas de
estado como diagramas de fase simplificados
que descrevem a dependência da temperatura de
transição vítrea com a concentração de solutos
ou alimentos sólidos e a relação entre a
formação de gelo e a concentração de soluto
sob baixas temperaturas. De acordo com Franks
(1972), diagramas de estado são a combinação
do convencional diagrama de fase com as
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
curvas de transição vítrea em função da
composição, em uma só figura. A Figura 4
Leite et al.
91
mostra um exemplo de um diagrama de estado
esquemático típico de alimentos sólidos.
Figura 4 – Diagrama de estado esquemático típico de alimentos sólidos (Adaptado de Roos, 1995a)
De acordo com Roos (1995a),
Rasmussen & Luyet (1995) utilizaram os
diagramas de fase para mostrar a dependência
com a temperatura de transições térmicas em
soluções congeladas e Franks et al. (1977) ,
citados por (Roos, 1995a)enfatizaram que o
termo “estado” deveria ser utilizado no lugar de
“fase” devido à natureza de não-equilíbrio do
estado físico de materiais biológicos
concentrados por congelamento.
Em ciências dos alimentos, os diagramas
de estado representam as diversas situações em
que o sistema pode existir como função da
temperatura, da concentração de sólidos, do
tempo e da pressão. Dessa forma, ele pode ser
utilizado como um mapa para a seleção das
melhores condições para o processamento, o
congelamento e o armazenamento refrigerado
de alimentos (Slade & Levine, 1988; Slade &
Levine, 1989).
Os diagramas de estado são importantes
ferramentas no estabelecimento das condições
adequadas de processamento e armazenagem de
alimentos desidratados e congelados. Eles
também podem ser aplicados na definição das
condições apropriadas de liofilização (Roos,
1995a). Segundo Roos & Karel (1991c),
diagramas de estado são particularmente úteis
na caracterização do estado físico de açúcares e
na dependência das temperaturas de transição
com a concentração de água.
Segundo Labuza et al. (2004), os
diagramas de estado podem ser utilizados para
ilustrar algumas mudanças de estado físico de
alimentos em função da umidade (ou
concentração
de
plasticizante)
durante
quaisquer processos de remoção de água
(secagem, cozimento, extrusão, evaporação) ou
mesmo durante a armazenagem. O diagrama de
estado define a região de umidade/temperatura
na qual o domínio do alimento ou ingrediente é
vítreo, gomoso, soluto cristalino, congelado,
etc.
Labuza et al. (2004) ressaltam que uma
complicação na utilização dos diagramas de
estado para alimentos reside no fato de esses
não serem soluções homogêneas ou isotrópicas,
apresentando-se, a nível molecular, como
micro-domínios heterogêneos que nunca
existirão em equilíbrio verdadeiro. Essas
regiões em alimentos podem existir como
líquidos com solutos dissolvidos ou como
sólidos no estado sólido amorfo, que não são
estados reais de equilíbrio e podem resultar em
observações anômalas.
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
92
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
APLICAÇÃO DOS DIAGRAMAS DE
ESTADO EM ALIMENTOS
Um fato extremamente indesejável, no
que diz respeito a alimentos, é modificação
textural. Quem nunca teve a desagradável
sensação de morder um biscoito completamente
murcho? A crocância é uma característica que o
consumidor espera encontrar em todos os
biscoitos do tipo crisp cracker e é essencial para
a sua qualidade. No entanto, quando a
embalagem de biscoito é aberta e fica exposta
às condições ambientes, em pouco tempo a sua
textura se torna macia e ele perde a sua
crocância característica.
As modificações texturais sofridas por
alimentos estão, diretamente, ligadas às
alterações estruturais sofridas ao longo do seu
tempo de prateleira. A água, devido ao seu
efeito plasticizante, é um dos principais
elementos responsáveis por essas alterações.
Durante a armazenagem, muitos alimentos
trocam umidade com o ambiente, o que resulta
em alterações estruturais como a transição entre
os estados vítero e gomoso. É essa a causa da
perda de crocância de biscoitos tipo crisp
cracker pouco tempo após a abertura da
embalagem, se a mesma não for armazenada
corretamente. A troca de umidade com o
ambiente faz com que o alimento passe do
estado vítreo para o gomoso, havendo perda de
qualidade.
O efeito plasticizante da água também
afeta a qualidade de produtos em pó,
principalmente aqueles com alta concentração
de açúcares. Os processos de secagem por
liofilização ou spray dryer, devido à rápida
remoção de umidade, resultam em produtos no
estado vítreo. Açúcares no estado amorfo são
produtos altamente higroscópicos e absorvem
água quando expostos a ambientes com elevada
umidade relativa. Esse processo resulta em
alterações estruturais, como a cristalização e o
empelotamento, que resultarão em produtos
com texturas indesejáveis, como a pegajosa e a
granular, de acordo com as condições de
temperatura e umidade do ambiente. Essas
alterações estruturais são indesejáveis, pois
interferem na habilidade de dissolução e no
escoamento livre dos pós. Além disso, as
transições de fase em pós podem ocasionar a
perda de componentes voláteis ou à oxidação de
Leite et al.
lipídeos encapsulados (Saltmarch & Labuza,
1980; Douwnton et al., 1982; Bhandari et al.,
1997; Labuza et al., 2004). De acordo com
Labuza et al. (2004), atividades de água entre
0,3 e 0,4, à temperatura ambiente, são
suficientes para provocar alterações estruturais
como o empelotamento de pós e a perda de
crocância.
Labuza et al. (2004) apresentaram a
importância do uso de diagramas de estado no
estudo da cristalização de algodão doce, do
endurecimento de biscoitos macios e no
amolecimento de alimentos crocantes. A perda
de textura do algodão doce está diretamente
associada à cristalização do açúcar, ocasionada
pela absorção de umidade. Labuza et al. (2004)
concluíram que o açúcar que forma o algodão
doce (sacarose) cristaliza rapidamente e perde
sua estrutura quando, devido à absorção de
umidade, é levado a ambientes com temperatura
superior à de transição vítrea. Estudos
mostraram que a adição de inibidores da
cristalização, como os açúcares trehalose e
rafinose, pode aumentar o tempo de prateleira
desse produto.
As alterações texturais sofridas por
biscoitos macios (soft crackers) ou por
alimentos crocantes (batatas chips, pipoca, crisp
crackers), durante o processamento e a
armazenagem podem ser melhor compreendidas
através do estudo dos diagramas de estado. Na
Figura 5 é apresentado um diagrama de estado
hipotético, onde são mostradas as regiões de
equilíbrio e as regiões amorfas.
Na Figura 5, um material que se encontre
na posição 1 estará no estado gomoso, como é o
caso de uma massa para biscoitos. Labuza et al.
(2004) citam o exemplo de uma massa de
biscoitos sendo assada. Durante esse processo,
o produto sofrerá um aumento de temperatura,
seguido pela perda de umidade e posterior
refriamento até a temperatura ambiente (linha
pontilhada). O estado físico do material, após o
resfriamento, irá depender da perda de umidade
sofrida durante o processamento. Biscoitos
crocantes (crisp crackers) deverão ser assados
até o estado vítreo (posição 3), ao passo que
biscoitos com textura mais macia, como é o
caso de cookies com gotas de chocolate,
deverão continuar no estado gomoso (posição
2).
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
Leite et al.
93
Legenda:  Posição 1;  Posição 2;  Posição 3
Figura 5 – Diagrama de estado hipotético mostrando as regiões de equilíbrio e as regiões amorfas
(Adaptado de Labuza et al.(2004).
Em alguns alimentos, é possível observar
a co-existência dos estados vítreo e gomoso.
Um exemplo típico Labuza et al. (2004) são os
biscoitos recheados, nos quais o recheio é
macio e encontra-se no estado gomoso e os
biscoitos, mais crocantes, encontram-se no
estado vítreo. Hyman & Labuza (1998)
afirmam que, caso haja diferença entre as
atividades de água dos materiais em contato,
ocorrerá uma troca de umidade entre eles. O
biscoito irá absorver umidade e perder
crocância (deslocamento no diagrama para a
esquerda), enquanto o recheio irá ficar mais
duro e ressecado devido à perda de umidade
(deslocamento no diagrama para a direita).
De acordo com Labuza et al. (2004),
biscoitos macios (soft cookies) são alimentos
com uma umidade final, após assados, entre 7 e
10% e uma atividade de água entre 0,5 e 0,65.
Logo que são retirados do forno, esses biscoitos
são extremamente macios e apresentam alta
mastigabilidade. No entanto, após cerca de 24
horas, eles se tornam secos e com textura dura e
esfarelenta, sem que haja qualquer alteração na
umidade. No caso desses biscoitos, o
endurecimento é provocado pela cristalização
da sacarose, que ocorre durante a vida de
prateleira do produto. Durante a mistura e o
cozimento dos biscoitos, a sacarose se dissolve
e, enquanto a umidade é perdida, ela passa para
o estado amorfo (posição 2, na Figura 5) e
permanece nele enquanto o material se mantiver
acima da temperatura de transição vítrea
(1990). De acordo com o diagrama de estados,
ao longo da vida de prateleira dos biscoitos, a
sacarose dissolvida sofre uma cristalização,
resultando em uma redução do volume de
plasticizante
e
consequentemente,
nas
alterações texturais observadas.
Biscoitos crocantes (crisp crackers)
apresentam alterações na textura com o ganho
de umidade. Katz & Labuza (1981) estudaram a
textura desses biscoitos em função da atividade
de água e observaram que alimentos crocantes
(pipocas, biscoitos de água e sal, batatas chips)
apresentaram alterações texturais quando a
atividade de água excedeu a faixa de 0,35-0,50.
Labuza et al. (2004) afirmam que a teoria da
transição vítrea permite uma melhor
compreensão
das
alterações
texturais
ocasionadas nesses produtos, devido ao
aumento da umidade. Se um material amorfo
existe no estado vítreo, ele é duro e quebradiço,
o que, para alimentos tipo snacks à base de
cereais, representa uma textura crocante ou
dura.
No estado amorfo gomoso, esses
alimentos apresentam uma textura macia e
elástica que pode ser definida como empapada e
é totalmente indesejável. A transição do estado
vítreo para o gomoso ocorre quando o alimento
absorve umidade suficiente para que a sua
temperatura de transição vítrea caia abaixo da
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
94
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
temperatura ambiente, de acordo com o
diagrama de estados. Na Figura 5, a posição 3
representa o alimento no estado vítreo. O ganho
de umidade, a uma temperatura constante, faria
o alimento passar da posição 3 para a posição 2,
se ele estivesse armazenado a uma temperatura
superior à Tg, nessa umidade.
Baroni (2004) ressalta a importância dos
diagramas de estado para as novas formulações,
uma
vez
que
o
conhecimento
do
comportamento dos constituintes do alimento
na região de mudança de estado pode ser de
grande valia na predição de estabilidade e de
mudanças da textura, quando o produto é
submetido a várias condições de temperatura e
umidade relativa. De acordo com a autora, os
diagramas de estado mostram as relações entre
a composição do produto e seu estado físico,
fornecendo informações fundamentais para a
sua adequada formulação, de modo que se
obtenha um produto final sob as melhores
condições de estabilidade e qualidade.
Leite et al.
Chirife, J.; Iglesias, H. A. Equations for fitting
water sorption isotherms of foods: Part 1.
Journal of Food Technology. v. 13, n.3,
p.159-174. 1978.
Couchman, P. R.; Karasz, F. E. A classical
thermodynamic discussion of the effect of
composition
on
glass
transitions
temperatures. Macromolecules. v.11, n.1,
p.117-119. 1978.
Downton, G. E.; Flores-Luna, J. L.; King, C. J.
Mechanism of stickness in hygroscopic
amorphous powders.
Industrial and
engineering chemistry: fundamentals.
v.21, n.4, p.447-451. 1982.
Ferry, J. D.
Viscoelastic properties of
polymers, 3rd edition, New York: John
Wiley & Sons Inc, 1980.
Franks, F.
Water – a comprehensive
Treatise. New York: Ed. Plenum, 1972.
CONCLUSÃO
A transição vítrea é a transição de fases
mais importante em alimentos, pois está
diretamente ligada às alterações estruturais
sofridas durante as etapas de processamento e
armazenagem. Dessa forma, o conhecimento da
variação da temperatura de transição vítrea com
a composição dos alimentos é de fundamental
importância na definição da formulação dos
alimentos, bem como das condições ideais de
processamento e armazenagem, de modo que se
obtenham produtos de qualidade.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à FAPESP, ao CNPq e à
UNICAMP.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Baroni, A. F. Propriedades mecânicas,
termodinâmicas e de estado de tomate
submetido à desidratação osmótica e
secagem. Campinas, 2004. 226f. Tese
(Doutorado em Engenharia de Alimentos) –
Faculdade de Engenharia de Alimentos,
Universidade Estadual de Campinas.
Bhandari, B. R.; Datta, N.; Howest, T.
Problems associated with spray drying of
sugar-rich foods. Drying Technology. New
York. v.15, n.2, p.671-684. 1997.
Franks, F.; Asquith, M. H.; Hammond, C. C.;
Skaer, H. B.; Achlin, P.
Polymeric
cryoprotectants in the preservation of
biological ultrastructure I. Low temperature
states of aqueous solutions of hydrophilic
polymers. Journal of Microscopy-Oxford.
v. 110, n.Aug, p.223-238. 1977. apud Roos,
Y. H. Phase transitions in foods. San
Diego, California: Academic Press, 1995.
Gordon, M.; Taylor, J. S. Ideal copolymers and
the second-order transitions of syntetic
rubbers. I. Non-crystalline copolymers.
Journal of Applied Chemistry. v.2, n.9,
p.493-500. 1952.
apud Zimeri, J. E.;
Kokini, J. L. Phase transitions of inulinwazy maize starch systems in limited
moisture environments.
Carbohydrate
Polymers. v.51, n.2 , p.183-190. 2003.
Hyman, C. Labuza, T. P. Moisture migration
in multidomain systems. Trends in Food
Science and Technology. v.9, n.2, p. 4755. 1998.
Jouppila, K.; Roos, Y. H. Glass transitions and
crystallization in milk powders. Journal of
Dairy Science. v.77, n.10, p.2907-2915.
1994.
Katz, E. E.; Labuza, T. P. Effect of water
activity on the sensory crispness and
mechanical deformation of snack food
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
Leite et al.
95
products. Journal of Food Science. v.46,
n.2, p. 403-409. 1981.
Engineering. San v.24, n.3, p. 339-360.
1995.
Kauzmann, W. The nature of glassy state and
the behavior of liquids at low temperatures.
Chemical Reviews. v. 43, n. 2, p. 219-256.
1948.
Roos, Y. H. Water activity and physical state
effects on amorphous food stabilty. Journal
of food processes and preservation. v. 16,
n. 6, p. 433-447. 1993.
Kim, M. N.; Saltmarch, M.; Labuza, T. P. Nonenzymatic browning of hygroscopic whey
powders in open versus sealed pouches.
Journal of food processes preservation.
Westport. v.5, n.1, p. 49-57. 1981.
Roos, Y. H. Effect of moisture on the thermal
behavior of strawberries studied using
differential scanning calorimetry. Journal
of Food Science. v.52, n.1, p.146-149.
1987.
Labuza, T.; Roe, K.; Payne, C.; Panda, F.;
Labuza, T. J.; Labuza, P. S.; Krusch, L.
Storage stability of dry food systems:
influence of state changes during drying and
storage.
In:
International
Drying
Symposium IDS’2004, 14th, 2004, São
Paulo, Brazil. Proceedings...São Paulo:
Ourograf Gráfica e Editora, 2004. v. A, p.
48-68.
Roos, Y.; Karel, M.
Crystallization of
amorphous lactose.
Journal of Food
Science. Chicago. v.57, n.3, p. 775-777.
1992.
Labuza, T. P. The effect of water activity on
reactions kinetics of food deterioration.
Food Technology. v.34, n.4, p. 36-59,
1980.
Roos, Y.; Karel, M. Applying state diagrams to
food processing and development. Food
Technology. v.45, n.12, p.66-71. 1991b.
Labuza, T. P.; Tannenbaum, S. R.; Karel, M.
Water content and stability of low-moisture
and intermediate-moisture foods. Food
Technology. v.24, n.5, p. 543-544, 546548, 550. 1970.
Levine, H.; Slade, L. Influences of the glassy
and rubbery states on thermal, mechanical
and strcutural properties of dough and baked
products. In: FARIDI, H.; Faubion, J. M.
(Ed.).
Dough rheology and baked
products texture.
New York: Van
Nostrand Reinhold/AVI, 1990. 605p.
Rasmussen, D; Luyet, B. Complementary
study of some nonequilibrium phase
transitions in frozen solutions of glycerol,
ethylene glycol, glucose and sucrose.
Biodynamica. v.10, n.220, p.319-331. 1969
apud ROOS, Y. H. Phase transitions in
foods. San Diego, California: Academic
Press. 1995.
Roos, Y.; Karel, M. Amorphous state and
delayed ice formation in sucrose solutions.
International Journal of Food Science and
Technology. v.26, n.6, p.553-566. 1991a.
Roos, Y.; Karel, M. Phase transitions of
mixtures of amorphous polysaccharides and
sugars. Biotechnology Progress. v. 7, n.1,
p.49-53. 1991c.
Roos, Y.; Karel, M. Plasticizing effect of water
on thermal behavior and crystallization of
amorphous food models. Journal of food
science. v.56, n.1, p. 38-43. 1991d.
Roos, Y.; Karel, M. Water and molecular
weight effects on glass transitions in
amorphous carbohydrates and carbohydrates
solutions. Journal of Food Science. v.56,
n.6, p.1676-1681. 1991e.
Roos, Y. H.; Karel, M. Kokini, J. L. Glass
transitions in low moisture and frozen foods:
effects on shelf life and quality. Food
Technology. v. 5, n.11, p.95-108. 1996
Roos, Y. H. Phase transitions in foods. San
Diego, California: Academic Press. 1995.
Saltmarch, M.; Labuza, T. P. Influence of
relative humidity on the physicochemical
state of lactose in spray-dried sweet way
powders. Journal of Food Science. v. 45,
n.5, p.1231-1236 & 1242. 1980.
Roos, Y. H. Characterization of food polymers
using state diagrams. Journal of Food
Shimada, Y.; Roos, Y.; Karel, M. Oxidation of
methyl linoleate encapsulated in amorphous
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005
96
Transições de fases em alimentos:Influência no processamento e na armazenagem
lactose-based food model.
Journal of
agricultural
and
food
chemistry.
Washington. v.39, n.4, p.637-641. 1991.
Simatos, D.; Karel, M. Characterization of the
condition of water in foods – physicochemical aspects. In: SEOW, C. C. Food
Preservation
by
water
activity.
Amsterdam: Elsevier, 1988. pp. 1-41.
Leite et al.
Sobral, P. J. A; Menegalli, F. C. Transição
vítrea em gelatina de couro bovino. Boletim
da sociedade brasileira de ciência e
tecnologia de alimentos. Campinas. v.36,
n.1, p.35-42. 2002.
Sperling, L. H. Introduction to physical
polymer science. 3rd edition. New York:
Wiley-Interscience, 1992.
Slade, L.; Levine, H.
Non-equilibrium
behavior of small carbohydrate systems.
Pure and Applied Chemistry. v.60, n. 12,
p.1841-1864. 1988.
White, G. W.; Cakebread, S. H. The glassy
state in certain sugar-containing food
products. Journal of food technology. v.1,
n.1, p. 73-82. 1966
Slade, L.; Levine, H. A food polymer science
approach to selected aspects of starch
gelatinization and retro degradation in
Frontiers. In: Millane, R. P.; Bemiller, J. N.;
Chandrasekaran, R. (Ed). Carbohydrate
Research 1, Food Applications. London:
Elsevier Applied Science. 1989. pp.215270.
Wunderlich, B. Thermal Analysis. Boston:
Academic Press. 1990.
Slade, L.; Levine, H. Beyond water activity:
recente advances based on an alternative
approach to the assessmentof food quality
and safety. Critical Reviews in Food
Science and Nutrition. v.30, n.2-3, p. 115360. 1991.
Zimeri, J. E.; Kokini, J. L. Phase transitions of
inulin-wazy maize starch systems in limited
moisture environments.
Carbohydrate
Polymers. v.51, n.2, p.183-190. 2003.
Zimeri, J. E.; Kokini, J. L. The effect of
moisture content on the crystallinity and
glass transition temperature of inulin.
Carbohydrate Polymers. v.48, n.3, p.299304. 2002.
Revista Brasileira de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v.7, n.1, p.83-96, 2005