Cap 22 Teoria ética da virtude
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Cap 22 Teoria ética da virtude
ÉTICA DA VIRTUDE E DESENVOLVIMENTO MORAL DO ALUNO A Génese da Teoria Ética da Virtude A preocupação com a educação do carácter, central na teoria ética da virtude, desenvolveu-se, no Ocidente, desde o tempo de Platão. A este respeito, justifica-se uma leitura aprofundada dos diálogos Apologia, Crito e Gorgias, onde o filósofo de Atenas procede a uma definição, nem sempre coincidente, dos conceitos de bem, de felicidade e de prazer. Essas discrepâncias são uma constante na obra de Platão e não contribuem para o seu enfraquecimento, porque importa olhar para elas como produto de um processo de inquérito racional em demanda de uma cada vez maior aproximação à verdade. Nos diálogos Protágoras e Gorgias, nota-se, igualmente, uma discrepância na definição do conceito de prazer (Annas, 2003), o qual, como sabemos, é um conceito central para compreendermos a teoria ética da virtude e, no fundo, todas as éticas teleológicas. Embora o termo virtude pareça antiquado, as questões sobre o carácter da pessoa e a excelência das práticas ocupam um lugar central na Ética. Essas questões dizem respeito ao que uma pessoa boa deve ser e deve fazer em situações reais de vida. Têm que ver com o carácter e com a acção, não apenas nem sobretudo com o raciocínio, como construtivistas alguns pretendem modelos (Kohlberg, desenvolvimentistas 1984). De entre e essas questões, há duas que têm a primazia: a questão da acção, ou seja, “como devo agir?”; a questão do carácter, isto é, “que espécie de pessoa devo ser?” Podemos fazer, aliás, uma analogia com o sistema de justiça. Como pessoas a viverem num determinado país depositamos a nossa vontade de justiça de duas maneiras: nas leis, que proporcionam as regras necessárias para a vida em sociedade; 1 nas pessoas dos agentes da justiça, que aplicam a justiça. Do mesmo modo, a ética da virtude baseia-se em teorias, que fundamentam e justificam determinadas regras de conduta e na noção de virtude, que proporciona a sabedoria necessárias para aplicar as regras a casos particulares. Na concepção de Platão, as virtudes permitem-nos lidar correctamente com as vantagens materiais da nossa vida, isto é, fazer um bom uso delas. Quer isto dizer que bens do tipo “riqueza” e “saúde” só são realmente valiosos se o indivíduo possuir, na medida certa, as virtudes da justiça, da coragem e da temperança. Aristóteles, na Ética a Nicómaco, definiu, com precisão o conceito de virtude. Assim, a virtude (em grego, aretê) é uma disposição voluntária que visa a excelência, a perfeição. O filósofo distingue as virtudes intelectuais das virtudes morais. Enquanto as segundas têm que ver com a sabedoria e o conhecimento, as primeiras dependem do hábito. A pessoa virtuosa é aquele que sabe o que faz, que escolhe deliberadamente seguir a conduta recta e é capaz de repetidamente executar a rectidão com vontade inabalável. O hábito da rectidão impele o virtuoso a uma disposição natural para ser recto. O hábito é uma segunda natureza. Envolve sentimento e acção. Os bons hábitos, aqueles que asseguram a acção virtuosa, afastam-se do excesso e da deficiência. Procuram o justo meio. A virtude anda, assim, associada ao justo meio. A força de carácter exige que a pessoa encontre o equilíbrio certo entre dois extremos: o excesso (ter algo em demasia) e a deficiência (ter demasiado pouco de algo). O justo meio significa harmonia e equilíbrio. A virtude é alguma coisa que é praticada e aprendida. É um hábito (hexis). E é por isso que Aristóteles, ao contrário de Sócrates, considerava que era possível ensinar as pessoas a serem virtuosas. Sócrates e Platão associavam inteligência ao exercício do Bem na medida em que o mal era encarado como produto da ignorância. Se assim fosse, o conhecimento e a inteligência seriam as qualidades que suportariam 2 a acção recta. Aristóteles afasta-se dessa concepção. Distingue inteligência de sabedoria. A pessoa inteligente é a que conhece os melhores meios para qualquer finalidade possível. A pessoa sabedora é a que conhece quais são os fins que são estimáveis e dignos de apreço. Então, a inteligência não permite, por si só, assegurar a acção recta. A sabedoria, porque permite conhecer os fins estimáveis, é uma qualidade essencial ao exercício da acção recta (Sherman, 1998). Central, também, na teoria ética aristotélica, é o papel dos desejos no processo de tomada de decisões e de passagem à acção. O filósofo faz uma distinção entre desejos bem ordenados e desejos mal ordenados. As pessoas que conseguem controlar os desejos desordenados são pessoas continentes. Daí a importância da continência como uma virtude moral. As pessoas, cujos desejos são bem ordenados, isto é, são ordenados em função do que é bom para elas, são pessoas temperadas. Por último, há pessoas de vontade fraca (akrasia), ou sejam indivíduos incapazes de controlarem os seus desejos. Se tivermos presentes as virtudes da continência e da temperança, é fácil verificar a associação da virtude ao conceito de justo meio. Vejamos: a força de carácter exige que a pessoa encontre o equilíbrio certo entre dois extremos: o excesso (ter demasiado de algo) e deficiência (ter demasiado pouco de algo). Uma pessoa incapaz de ordenar desejos em excesso dificilmente consegue ser virtuosa. Diremos o mesmo de alguém que é deficiente em desejos. No primeiro caso, a pessoa tende a ser caprichosa e inconstante; no segundo, insensível. Outro aspecto importante na teoria ética de Aristóteles é a unidade das virtudes. Para uma pessoa ter uma virtude de carácter, em grande escala, também deve ter outras qualidades, em alguma medida. Veja-se o caso da coragem. A coragem sem capacidade de julgamento é cegueira. A coragem sem perseverança é apostar 3 apenas no curto prazo. A coragem sem um claro conhecimento das nossas capacidades é uma forma de loucura. Façamos, de seguida, uma breve visita a outras virtudes constantes da paleta de Aristóteles e vejamos como elas se explicam à luz da teoria do justo meio. A compaixão significa etimologicamente sentir ou sofrer com o outro. O seu excesso paralisa, na medida em que se constitui na síndrome de “o coração partido”. A sua deficiência anda associada à “dureza de coração” e, portanto, à insensibilidade. A virtude da compaixão ajuda-nos, também, a compreender o papel da emoção na teoria ética aristotélica. Sendo a compaixão uma virtude que anda associada à capacidade para sentir o sofrimento do outro, ela vem carregada de emoção, a qual é necessária para que se estabeleça uma ligação emocional que permita não apenas reconhecer o sofrimento do outro, mas também partilhar com o outro esse sofrimento, procurando dar resposta. O amor, uma virtude essencial na constelação ética de Aristóteles, envolve sentir, conhecer e agir. Quando se ama alguém, tem de se conhecer essa pessoa, tem de se partilhar com ela sentimentos de ternura, cuidado, apreço e respeito e tem de se agir de forma a promover o florescimento dessa pessoa. Repare-se na existência de três componentes essenciais do discurso ético: conhecimento, emoção e acção. Vejamos, de seguida, outra virtude: o amor-próprio. Trata-se de uma virtude que implica ter sentimentos de cuidado, apreço e respeito por si próprio, valorar-se na justa medida e agir de forma a promover o seu próprio florescimento. De novo, a presença do conhecimento, dos sentimentos e da acção. De novo, a virtude encarada como justo meio. O amor-próprio exige um meio-termo, um ponto de equilíbrio entre o excesso e a deficiência. Em excesso, confunde-se com arrogância e narcisismo. A sua deficiência implica uma reduzida capacidade para sentir e uma tendência para a autodepreciação. 4 A amizade é uma virtude central na teoria de Aristóteles. Na Ética a Nicómaco, ocupa mais páginas do que qualquer outra virtude. Ninguém escolhe viver sem amigos, ainda que tenha todos os outros bens é uma afirmação que ressalta na leitura da Ética a Nicómaco. O que é a amizade? Aristóteles dá-nos uma belíssima definição na Retórica: “O amigo é aquele que partilha o teu prazer naquilo que é bom e a tua dor naquilo que é desagradável, pelo teu valor intrínseco e por mais nenhuma razão” (Retórica, Livro II, 4; 1380b36-1381a 5). Aristóteles distingue três tipos de amizade quanto aos fins. Amizade por utilidade, que acaba quando a utilidade cessa: a amizade pelo prazer, que acaba quando a fonte de prazer cessa; a amizade perfeita, que é a amizade que se baseia na partilha de virtudes e em mais nenhuma razão (Aristóteles, 1985). Vejamos, por último, como é que a teoria da virtude se articula com a definição que Aristóteles dá de felicidade (eudaimonia). A teoria ética da virtude filia-se nas éticas teleológicas, ou seja, subordina os processos deliberativos e as tomadas de decisão às finalidades. Na teoria aristotélica, a finalidade última é a felicidade (eudaimonia). Não se confunda, no entanto a eudaimonia com uma estado de alma, com o “sentir-se bem”. Para os gregos antigos, a eudaimonia significa ter uma vida bem sucedida. A eudaimonia não é uma emoção, mas uma actividade que promove a excelência (Barnes, 2000). Dizer que a eudaimonia é uma actividade é o mesmo que dizer que para que uma pessoa floresça, ela tem de agir de uma certa maneira e não apenas sentir determinadas emoções. Florescer como pessoa não é um estado de alma, mas sim um conjunto de actividades que conduzem à excelência e ao sucesso. As virtudes intelectuais e morais, quando bem exercidas, são um instrumento essencial nesse processo de florescimento, ou seja, no processo que permite à pessoa alcançar a eudaimonia. 5 Renascimento da teoria ética da virtude: Desenvolvimentos recentes Elisabeth Anscombe (1958) e Alasdair MacIntyre (1990) são os responsáveis pelo renascimento da teoria ética da virtude a partir do último terço do século passado, depois de as éticas deontológicas terem dominado o pensamento ético ocidental por mais de um século. Ascombe (1958) defendeu e justificou o carácter ininteligível da ética deontológica e o seu desajustamento face à necessidade de agir bem, ou seja, de agir com o objectivo de promover o florescimento da pessoa e não em função de uma ideia apriorística do bem e do mal. Para Ascombe, a virtude só faz sentido quando preenche necessidades humanas. A ideia de agir, não para satisfazer um desejo, uma necessidade ou um querer do indivíduo, mas porque é eticamente correcto fazê-lo, deixou de ter sentido nos dias de hoje. E tem tanto menos sentido quanto mais pluralistas e multiculturais são as sociedades. MacIntyre (1990) recolocou em cena a questão do pluralismo ético, ao afirmar que não existe apenas uma tradição ética, no Ocidente, mas várias. Somos perfeccionistas no desporto e nas artes, utilitaristas na vida diária, lockianos quando se trata de respeitar o direito de propriedade, cristãos quando idealizamos a compaixão, a caridade e a igualdade e kantianos quando afirmamos o valor da autonomia da pessoa e do respeito pelos direitos humanos. MacIntyre (1984) procura responder à questão de “qual é o significado da vida?”, afirmando que o significado depende da pessoa compreender que pertence a várias tradições morais, as quais lhe permitem construir uma narrativa de vida, que depende da existência de padrões de excelência e de práticas apropriadas. A opção por determinados padrões de excelência (virtude, no sentido que a palavra grega aretê possui) e de práticas apropriadas depende não apenas das tradições éticas, culturais e comunitárias (que influenciam 6 o sistema de valores do indivíduo), mas também das finalidades (telos) que o sujeito estabelece para a sua vida. Na concepção da ética da virtude, o telos é, acima de tudo, uma escolha pessoal, em função dos prazeres que o indivíduo elege, no sentido de cumprir a sua noção do que é uma vida boa, e em função das dores que ele pretende evitar. Sendo assim, deixam de ter sentido as concepções apriorísticas do bem e do mal, sejam elas informadas pelas éticas deontológicas, pelas noções de cumprimento do dever, ou em obediência a quaisquer imperativos categóricos ou mandamentos ancorados numa tradição religiosa. Outro importante contributo de Alasdair MacIntyre foi a noção de que existe uma relação, quase simbiótica, entre as tradições culturais e éticas da comunidade e o indivíduo, pelo que as virtudes só podem prosperar em comunidades de certo tipo. Há, portanto, comunidades que favorecem a promoção das virtudes e há outras que as dificultam, na medida em que diferentes tipos de comunidade encorajam diferentes tipos de virtude ou, em casos extremos, promovem o desenvolvimento de caracteres perversos. Esta ênfase colocada no desenvolvimento do carácter, por oposição aos modelos construtivistas que centram a discussão no desenvolvimento do raciocínio moral, faz toda a diferença. Mas, para percebermos a associação entre o desenvolvimento do carácter e a acção moral, importa definirmos e caracterizarmos carácter. Ora, o carácter não é o mesmo que personalidade, embora integre esse conceito. Quando falamos em carácter de uma pessoa, estamos a referir-nos a traços mais ou menos fixos, muitas vezes condicionados geneticamente, e que muito dificilmente podem ser alterados. Para um determinado tipo de carácter, nós podemos associar um determinado tipo de personalidade e esperar um conjunto específico de atitudes. Contudo, se o carácter fosse inteiramente fixado por condicionantes genéticas, de nada valeria a educação ética e seria completamente estéril estarmos a falar de metodologias promotoras 7 do desenvolvimento moral. Na verdade, o carácter pode sofrer aperfeiçoamentos e MacIntyre dá-nos algumas sugestões nesse sentido. É a esse aperfeiçoamento do carácter que a teoria ética da virtude chama de desenvolvimento moral. A reflexão sobre as consequências dos actos, a formação de bons hábitos, através de um processo de “ethical guidance” e o envolvimento comunitário abrem alguma margem de manobra para o aperfeiçoamento do carácter e, como tal, para o desenvolvimento moral do sujeito. Teoria ética da virtude e metodologias de promoção de valores Vejamos, como é que a teoria ética da virtude se articula com a promoção de valores e o desenvolvimento moral do aluno? As metodologias de promoção de valores podem agrupar-se em três tipos: as que se fundamentam nas teorias construtivistas, como é o caso da metodologia de Lawrence Kohlberg (1984), também chamada de “comunidade justa”; as que se fundamentam nas teorias personalistas, como é o caso da metodologia da clarificação de valores; e as que se fundamentam na teoria ética da virtude, como é o caso da metodologia dos 3 Es (Thomas Lickona, 1991). A fundamentação teórica do método dos 3 Es é, sem dúvida, a teoria ética da virtude. Toda a metodologia gira em torno de três estratégias (exortação, exemplo e envolvimento) e cinco objectivos (usar os conteúdos para desenvolver o raciocínio moral; estimular a cooperação; desenvolver o sentido da responsabilidade; superar os conflitos sem violência; promover uma ética do cuidar). O professor assume-se como mentor e modelo e um dinamizador da reflexão ética em torno de grandes narrativas. Os papéis do professor explicam-se pelo facto de o método dos 3 Es considerar que o conhecimento moral exige: reflexão, formulação de juízos e processo de escolha (cálculo racional, deliberação e acção). Os valores éticos percorrem todo o currículo de forma transversal, não sendo de aconselhar a existência de uma disciplina específica 8 para ensinar ética. O ambiente da escola é determinante para o desenvolvimento moral do aluno e um dos principais instrumentos é o código de conduta escolar. São as autoridades escolares e os professores os responsáveis pela elaboração, aprovação e implementação do código de conduta, o qual toma uma opção clara pelo reforço da autoridade do professor, reconhece a importância da linguagem moral e do hábito no processo de desenvolvimento moral. Lickona (1991) considera que existem três componentes no bom carácter: o conhecimento moral, o sentimento moral e a acção moral. O conhecimento exige reflexão, compreensão, formulação de juízos morais e processos de escolha. O sentimento exige auto-estima, empatia, afecto e saber colocar-se no lugar do outro. A acção exige vontade e hábito. São, assim, estas as dimensões fundamentais de qualquer programa de desenvolvimento moral preocupado, não apenas como o desenvolvimento do raciocínio, mas sobretudo com o desenvolvimento do carácter e da acção moral. Bibliografia Annas, J. (2003). Plato: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press Aristóteles (1998). Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional Aristoteles (1985). Nicomachean Ethics. (Introdução e notas de Terence Irwin). Cambridge: Hackett PC Ascombe, G. (1958). “Modern moral philosophy”. In Philosophy. 33, 1-19 Barnes, J. (2000). Aristotle: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press 9 Dahan, G. e Rosier-Catach, I. (2000). La Réhorique d`Aristote: Traditions et Commentaires de l`Antiquité au XVIII Siècle. Paris: Vrin Knight, K. (1999). The MacIntyre Reader. Indiana: University of Notre Dame Kohlberg, L. (1984 ). The Psychology of Moral Development. Cambridge: Harper and Row Lickona, Th. (1991). Educationg for Character: How Our Schools Can Teach Respect and Responsibility. Nova Iorque: Bantam Books MacIntyre, A. (1984). After Virtue. Indiana: University of Notre Dame MacIntyre, A. (1990). Three Rival Versions of Moral Inquiry. Indiana: University of Notre Quintana, J. (1995). Pedagogia Moral. Madrid: Dykinson Ryan, K. e Bohlin, K. (1998). Building Character in Schools: Practical Ways to Bring Moral Instruction to Life. Boston: Jossey-Bass Sherman, N. (1998). Aristotle`s Ethics. Oxford: Rowman and Littlefield Pub. Singer, P. (1993) (Ed.). A Companion to Ethics. Oxford: Blackwell 10