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1 A ÁFRICA TRADICIONAL Maurício Waldman1 A importância do conceito de África Tradicional - enquanto modo de vida e visão de mundo - decorre do fato de que mesmo nos dias atuais grande parte da população do continente vive ou mantém-se sob sua influência, responsável também pelas principais referências do universo religioso e cultural. Ademais, a definição é indispensável para a compreensão de países que como o Brasil, incorporaram enorme contingente de africanos e cuja cultura foi determinada por uma vasta contribuição cultural oriunda do reino da africanidade. No essencial, a África Tradicional associa-se a uma economia aldeã considerada como de “produção suficiente” (vale dizer, autárquica ou autosuficiente), ao qual se associa um modo de vida rigorosamente comunitário. Mais do que em “tribos” ou em etnias, a identidade do continente está centrada no núcleo familiar. A família africana é uma categoria muito ampla, incluindo agregados e pessoas consideradas pelo homem ocidental enquanto parentes distantes, daí, com razão, ser denominada de família extensa. Por sua vez, as religiões tradicionais africanas devem ser analisadas sem Três tambores: na Nigéria e em Salvador preconceito. Muito longe de formarem (Fotografia de Pierre Verger, sem data, in ARAÚJO, 2006:102) um apanhado de superstições, as noções religiosas do continente relacionam-se diretamente com fatos sociais e com a exploração dos recursos naturais, fundamentais para a permanência do modo tradicional de vida 2. Por exemplo, o solo, para a maioria dos povos africanos, era entendido como um bem coletivo, assim devendo permanecer por constituir herança dos espíritos ancestrais. No geral, a aldeia africana mantém uma intensa relação com o meio natural circundante, do qual retira a totalidade dos elementos necessários para a sua vida. A religiosidade encontra expressão em marcas apropriadas diretamente da natureza, como é o caso dos baobás, entendidos como morada dos deuses e dos espíritos. Em muitas regiões do continente, o baobá é assumido como a árvore da aldeia, sendo honrado pelos rituais sagrados. Em vista de sua importância simbólica, mesmo com a desaparição física das comunidades aldeãs tais árvores se mantêm na paisagem, testemunhando as formas de organização do espaço e da sociedade local. O sistema de pensamento africano entendia que tudo no universo se interligava. Era impensável qualquer dissociação da pessoa humana para com o mundo natural, por sua vez uma noção abrangente incluindo a totalidade da criação: animais, vegetais e minerais. Mantinha-se com o solo relações de reciprocidade e de harmonia. Nesta cosmo-visão, o equilíbrio com o meio ambiente não podia ser violado sob pena de provocar, no seio das forças que sustentavam a Natureza, uma perturbação que se voltaria, no final das contas, contra os próprios humanos. 1 Sociólogo (USP), Mestre em Antropologia (USP) e Doutor em Geografia (USP), Maurício Waldman é colaborador do Centro de Estudos Africanos da USP, atuando em consultoria e capacitação em afro-educação. 2 Por exemplo, “Entre os pescadores Tofinu do Benin, a proibição da pesca em certos lugares da Lagoa Nokoné era justificada por constituírem lugar de repouso de uma deusa chamada Anasi Gbégu. Pesquisas posteriores quanto à origem destas interdições concluíram que justamente nessas áreas se reproduziam os peixes capturados nas outras partes da lagoa” (DIEGUES, 1994: 77). 2 Para muitas culturas do mundo tradicional africano, a comunicação dava-se por intermédio da oralidade. O conhecimento era guardado por profissionais como os griots, homens de memória prodigiosa que armazenavam na sua mente milhares de contos, histórias e provérbios. Deste modo, a sociedade tradicional africana, antes de “não ter evoluído para a escrita”, simplesmente optou por não utilizá-la. Recorde-se que do ponto de vista da africanidade, o conceito de analfabetismo é absolutamente estrangeiro. Outra ponderação importante é que a África também constituiu um dos berços da escrita. No continente foram utilizados sistemas de escrita como o núbio antigo, o copta, o tifinagh, o ge’ez e o bamun. Complementando, ideogramas estilizados inventados pelos ejagham da Nigéria e de aforismos como os símbolos adinkra, foram amplamente disseminados e encontram-se em uso ainda hoje. Espacialmente, apesar de existirem milhares de aldeias ajustadas à inferências naturais, isto não significou inexistência de contatos ou de comércio. As trocas externas à aldeia, tribo ou região eram, na maioria dos casos, de volume limitado, tanto pela reduzida quantidade de excedentes e quanto pela dificuldade dos transportes. Mas, apesar disso, as trocas sempre existiam. Isto porque na África, o comércio possuía vários significados, não se restringindo a um papel meramente econômico. Os mercados africanos eram a contrapartida à autarquia da sociedade tradicional, fortificando o sentimento de solidariedade e a consciência do coletivo. Os símbolos Adinkra constituem um sistema de comunicação difundido em Gana e na Costa do Marfim, referindo-se a aforismos dotados de enorme apelo visual. Por exemplo, o desenho acima, formado por dois crocodilos com um estomago comum, procura transmitir a ideia de fraternidade. Instituição típica da sociedade africana, o mercado local, além de responder pela satisfação de necessidades materiais elementares, tais como alimentação, vestuário e utensílios de uso cotidiano, desempenhava uma função integradora, congraçando grupos rivais, servindo de fórum para a arbitragem de conflitos e conclusão de acordos. Não raramente, este mercado estava sob a tutela de uma divindade, possuindo, pois um caráter sacralizado. As feiras constituíam importante evento social. Elas ocorriam em dias previamente estipulados e formavam redes estruturadas em malhas, cobrindo vastos territórios e alcançando pontos muito distantes. Os mercados locais constituíam o núcleo da vida comunitária, locais de informação e difusão das notícias, aonde por excelência se exercia o controle social. Nenhuma novidade era integrada à vida social sem antes passar pela feira. Não admira, portanto que a ambição de qualquer autoridade fosse colocar os mercados locais sob seu controle direto. Exemplificando, no Baixo Benin, não existia evento importante que não fosse celebrado no quadro sagrado da feira, que além do mais, constituía centro de cerimônias concernentes a toda a comunidade (VERGER et BASTIDE, 1992:146). Muitas vezes, a intensidade deste comércio induziu o surgimento de cidades voltadas exclusivamente para o intercâmbio. Todavia, em razão do caráter predominantemente não-mercantil da economia tradicional, estes centros urbanos mantinham um relacionamento seletivo com o resto da sociedade. Não por acaso, estas cidades estavam instaladas em rugosidades naturais que lhes garantiam certo isolamento. Na costa oriental africana, por exemplo, houve uma decidida preferência por ilhas próximas ao Continente, caso das cidades de Quíloa, Pemba, Zanzibar, Pate, Lamu, Moçambique e Sofala. A análise da sociedade, da cultura e da história da África Tradicional deve ser feita levando em consideração toda uma série de particularidades. O surgimento do Estado, por exemplo, ocorreu de forma diferente dos impérios asiáticos ou pré-colombianos. Os Estados pré-coloniais africanos não intervinham na economia, não organizavam a 3 execução de “trabalhos públicos”, não enquadravam a população com vistas à exploração do trabalho e tampouco planejavam ou construíam obras hidráulicas. Em suma: o surgimento de reinos e de impérios como o Monomotapa, Congo, Kanem-Bornu, Mossi, Lunda, Gana, Mali e Songhay, não se deu por conta da organização de grandes trabalhos hidráulicos ou agrícolas, mas esteve relacionada principalmente com o controle do comércio intertribal ou inter-regional, exercido por aristocracias tribais no tráfico de bens de prestígio, de produtos preciosos como o ouro, marfim e peles e de escravos. Na África Negra, as formações estatais não possuíam um caráter “despótico” como seria o caso dos impérios orientais. O “déspota africano”, se é que assim poderíamos denominá-lo, estava, nos diversos reinos e impérios, sujeito a sanções que limitavam consideravelmente sua soberania, bloqueando uma maior concentração de poderes. Naturalmente, não se pode imaginar que estes Estados não expressassem contradições sociais e/ou dessimetrias de poder. O Estado, qualquer que seja a sociedade, sempre é um instrumento voltado para a afirmação de uma hierarquia de mando. Outrossim, isto não significa que o passado do continente estivesse caracterizado por uma harmonia social e ausência de imposição, mas sim, que estas existiam sob outras modalidades e configurações, diferentes das que eclodiram nos demais processos históricos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Emanoel (org.), 2006, Museu Afrobrasil - Um conceito em Perspectiva, Instituto Florestan Fernandes, São Paulo, SP; HAMPATÉ-BÂ, Amadou, 1993, A Tradição Viva, texto mimeo, FFLCH/USP, São Paulo, SP; LEITE, Fábio, 1984, Valores Civilizatórios em Sociedades Negro-Africanas, in Introdução aos Estudos sobre a África Contemporânea, coedição CEA-USP/ MRE (Ministério das Relações Exteriores do Brasil), São Paulo e Brasília; MERCIER, Paul, 1986, História da Antropologia, Editorial Teorema, Lisboa, Portugal; MUNANGA, Kabengele, 1984, Povos e Civilizações Africanos, in Introdução aos Estudos da África Contemporânea, texto mimeo, CEAUSP/MRE, Brasília e São Paulo; VERGER, Pierre et BASTIDE, Roger, 1992, Contribuição ao Estudo dos Mercados Nagôs do Baixo Benin, in “Artigos”, Tomo I, Pierre Verger (org), Série Baianada, nº 9, Editora Corrupio, São Paulo, SP; WALDMAN, Mauricio, 1997. Metamorfoses do Espaço Imaginário - Um ensaio “topo-lógico” relativo ao universo da Cultura, do Espaço e do Imaginário, Dissertação de Mestrado, Depto de Antropologia da FFLCH-USP, São Paulo, SP; WALDMAN, Maurício, 1994, Espaço e Modo de Produção Asiático, in Boletim Paulista de Geografia, nº 72, edição da Associação dos Geógrafos Brasileiros, seção de São Paulo; AO CITAR E/OU REPRODUZIR ESTE TEXTO ACATAR A REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ABAIXO: WALDMAN, Maurício. A África Tradicional, in Geografia para o Ensino Fundamental, Caderno 1, Unidade 1: Continente Africano, Editora Didática Suplegraf, São Paulo, SP, 1999. TEXTOS DE MAURÍCIO WALDMAN RELACIONADOS COM O TEMA MEMÓRIA D’ÁFRICA – TEMÁTICA AFRICANA EM SALA DE AULA, CORTEZ EDITORA, 2007 Saiba mais: http://www.lojacortezeditora.com.br/memoria-africa.html MEIO AMBIENTE & ANTROPOLOGIA, EDITORA SENAC, 2006 Saiba mais: http://books.google.com.br/books/p/senac?id=z4ns-luC4LwC&dq=Meio+ambiente+ %26+antropologia&hl=pt-br&source=gbs_summary_s&cad=0 4 MAURÍCIO WALDMAN - INFORMAÇÕES PORMENORIZADAS Home-Page Pessoal: www.mw.pro.br Biografia Wikipedia English: http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman Currículo no CNPq - Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474
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