Um breve tratado sobre a Distopia 2001 - Morus
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Um breve tratado sobre a Distopia 2001 - Morus
Um breve tratado sobre a Distopia 2001 Darko Suvin McGill University Traduzido por Ana Cecília Araki e Helvio Moraes Resumo Publicado primeiramente em 2003 com o título de "Theses on Dystopia 2001" (in Baccolini, R. & Moylan, T (ed.) Dark Horizons) o “Breve Tratado sobre a Distopia 2001” apresenta uma série de reflexões e teses para o entendimento das noções de utopia, eutopia, distopia, anti-utopia, entre outras, na contemporaneidade, principalmente – levando-se em consideração as “Reflexões preambulares sobre a Distopia 2006” –, com relação à "nova atmosfera", marcada "pela competição de monoteísmos radicalmente dogmáticos sob o capitalismo", que se desenvolve após os eventos do 11 de setembro. Palavras--chave Utopia, eutopia, distopia, disneyficação. Darko Suvin é professor emérito da McGill University, membro da Royal Society of Canada (Academy of Humanities and Social Sciences); pesquisador associado, junto ao Dipartimento di Anglistica, Università di Pisa; membro do Collegio, Dottorato in Italianistica, Dipartimento di Lingue e Letterature Moderne e Comparate, Università di Roma 2 – Tor Vergata; membro do P.E.N. Club italiano (Milão). É um dos nomes centrais no âmbito dos estudos utópicos, principalmente por seu trabalho sobre a ficção científica, do qual se destacam os seguintes títulos: Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre (1979); Positions and Presuppositions in Science Fiction (1988); Defined by a Hollow: Essays on Utopia, Science Fiction and Political Epistemology (2010); In Leviathan's Belly: Essays for a CounterRevolutionary Time (2012) . MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 A Little Tractate on Dystopia 2001 Darko Suvin McGill University Translated by Ana Cecília Araki and Helvio Moraes Abstract Published for the first time in 2003 as “Theses on Dystopia 2001” (in Baccolini, R. & Moylan, T (ed.) Dark Horizons), the “Little Tractate on Dystopia 2001” presents a series of reflections and theses for the understanding of notions such as utopia, dystopia, anti-utopia, among others, in contemporaneity, mainly – taking in account the “new atmosphere”, marked “by the competition of radically dogmatic monotheisms under capitalism” after the events of September 11. Keywords Utopia, eutopia, dystopia, disneyfication. Darko Suvin is Professor Emeritus at McGill University, a fellow of The Royal Society of Canada (Academy of Humanities and Social Sciences); Research associate, Dipartimento di anglistica, Università di Pisa; member at the Collegio, Dottorato in Italianistica, Diptartimento di lingue e letterature moderne e comparate, Università Roma 2 - Tor Vergata; member of P.E.N. Club italiano (Milano). He is one of the most important names in the field of utopian studies, mainly for his works on science fiction theory and criticism, from which we may highlight the following titles: Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre (1979); Positions and Presuppositions in Science Fiction (1988); Defined by a Hollow: Essays on Utopia, Science Fiction and Political Epistemology (2010); In Leviathan's Belly: Essays for a CounterRevolutionary Time (2012). MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 “Usà puyew usu wapiw” (“Indo para trás olhando para frente,” frase e imagem da tribo Swampy Cree tiradas de um porcoespinho em marcha a ré para a fenda de uma rocha [tirado de U. K. Le Guin]) remissas 1. Todos nós no planeta Terra vivemos numa época altamente ameaçada. Talvez os mais ricos entre nós – não mais que 10-15% mundialmente, mas desproporcionalmente concentrados no trilátero EUA-Europa-ocidental-Japão e seus anexos – tiveram o choque de perceber isso amortecido pelo poder do dinheiro e pela ideologia egoísta erigida por ele. Mas até mesmo estes reclamam alto da “criminalidade” e, no geral, da “decadência moral” dos desesperadamente desalmados invadindo seus bairros cada vez mais fortificados. Moralmente nós vivemos numa distopia quase completa – distopia visto que anti-utopia – e materialmente (economicamente) no fio da navalha do colapso, distributivo e coletivo. 2. O utopismo é uma orientação dirigida a um horizonte de formas radicalmente melhores de relações entre pessoas. Ele estabelece vetores de desejo, necessidade e compreensão imaginativa das pessoas direcionados a horizontes radicalmente melhores. Isso estava sendo amplamente discutido nos anos 1960 e 70. Mas no ameaçado hoje (o Jetztzeit de Benjamin), isso é – embora ainda supremamente necessário – insuficiente. Reflexões utópicas, dentro e fora da ficção, agora têm que se encarregar de aberturas que conduzam à diligência: ação. 3. Portanto, temos que falar primeiro de epistemologia (imaginação, semiótica, semântica, arte) e depois de ontologia (aplicação da imaginação em relações de poder realmente existentes, política). “A realidade não é de todo igual ao ser empírico – a realidade não é um ser, é um tornarse... o momento no qual o novo nasce. A realidade é reconhecidamente o critério do pensamento preciso. Mas ela não existe somente, torna-se – não sem a participação do pensamento” (Lukács). 467 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin A) Epistemologia e utopia Introdutório: O discurso em torno de utopia/utopismo não está longe da Torre de Babel. Sua causa ideológica (difamação capitalista de alternativas não-capitalistas) é difícil de abalar. Mas nos convém tentar alterar uma confusão semântica secundária. Deve ser proposto um conjunto de ferramentas necessárias para se falar inteligivelmente, subsumindo minhas próprias tentativas anteriores, além de uma triagem de iluminações críticas em inglês, alemão, italiano, francês e assim por diante. 4. A UTOPIA será definida como: a construção de uma comunidade singular onde instituições sociopolíticas, normas e relações entre as pessoas estão organizadas de acordo com um princípio radicalmente diferente que o da comunidade do autor; essa construção é baseada no estranhamento [estrangement] resultante de uma hipótese histórica alternativa; é criada por classes sociais interessadas em alteridade e mudança.1 Glosa 4a: Essa definição fornece o pano de fundo da tradição decorrente da ilha e do livro de Morus, nos quais as relações entre as pessoas estão organizadas de acordo com um princípio radicalmente mais perfeito do que o da comunidade do autor. Acredito que temos que abandonar o significado e horizonte do utopismo como implicador automático de relações radicalmente melhores. Relações mais perfeitas precisam ser provadas (ou contestadas) para cada caso ou tipo particular de textos. Confundir alteridade radical e perfeição radicalmente maior leva à desordem: incomunicabilidade ou obscurantismo intencional. Glosa 4b: Estranhamento (o formal ostranenie de Shklovsky manifestado na episteme política da Verfremdung de Brecht) é uma estratégia cognitiva de percepção-cum-avaliação baseada no desejo crítico radical. Ele comporta múltiplas possibilidades de anamorfose e eversão de 1 Na obra de Darko Suvin estrangement é um termo recorrente, destacado tanto na definição de utopia acima quanto no seu conceito-chave para a ficção científica, com o cognitive estrangement. Embora essa palavra possa ser traduzida tanto como “alienação” quanto “estranhamento”, sua real dimensão dentro do pensamento de Suvin só pode ser explicada através de sua versão em alemão, Verfremdung, tirada do texto de Bloch “Entfremdung, Verfremdung”. Enquanto Entfremdung seria o simples efeito de alienação como conhecemos em português, Verfremdung é o “apresentar-se como alienante, propositalmente, para se criar um efeito de alienação desvelado, assumido”. Basta lembrar o Verfremdungseffekt, ou efeito de distanciamento, do teatro de Brecht, que deixa claro para o espectador que se está diante de uma obra de arte, dissociando realidade e representação. Como o termo em português para esse procedimento teatral também pode ser “estranhamento”, este parece ser o mais apropriado para o estrangement de Suvin. N. T. MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 468 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 aspectos salientes no mundo do autor e possui como propósito o reconhecimento de que o leitor realmente vive num mundo de valores às avessas. 5. No caso de a comunidade imaginativamente construída não se basear principalmente em princípios sociopolíticos, mas em outros princípios radicalmente diferentes, como biológicos ou geológicos, estamos lidando com a Ficção Científica (FC). A compreensão de que a sociopolítica não pode se modificar sem que todos os outros aspectos da vida também se modifiquem levou a FC a se tornar o locus privilegiado da ficção utópica no século XX. Glosa 5: Isso significa que a ficção utópica é, hoje e retrospectivamente, tanto uma tia independente quanto uma filha dependente da FC. As linhas de consanguinidade começam a se entrelaçar na FC sociobiológica de H. G. Wells, na qual a biologia é sobretudo uma metáfora para classe social. 6. A utopia pode ser dividida nos opostos polares: EUTOPIA, definida no item 4, só que apresentando as instituições sociopolíticas, normas e relações entre pessoas organizadas de acordo com um princípio radicalmente mais perfeito do que o da comunidade do autor; e a simetricamente oposta DISTOPIA (cacotopia), organizada de acordo com um princípio radicalmente menos perfeito. A diferença radical na perfeição é em ambos os casos julgada do ponto de vista e dentro do sistema de valores de uma descontente classe social ou um aglomerado de classes, refratados através do escritor. Glosa 6: Assim como em todas as outras entidades nestas teses, estamos lidando com tipos ideais. Exemplo da proximidade com a eutopia: Utopia de Morus; com a distopia: Мы (Nós) de Zamyatin. 7. A distopia, por sua vez, se divide em anti-utopia e o que chamarei de distopia “simples”. Como observa Jameson, a anti-utopia é uma inversão estrutural da eutopia, “formalmente bem distinta da narrativa distópica”. Uma evolução de tais diferenças será discutida mais extensamente na Tese 23. ANTI-UTOPIA é um locus significativamente diferente que acaba sendo, por fim, uma distopia, mas que é explicitamente projetado para refutar uma eutopia presentemente proposta. É 469 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin uma pretensa eutopia – uma comunidade cujos princípios hegemônicos simulam ser mais perfeitamente organizados do que qualquer alternativa concebível, enquanto nosso representativo “olho-câmera” e nossa representativa valoração descobrem que se trata significativamente de uma alternativa menos perfeita, um pesadelo polêmico. DISTOPIA “SIMPLES” (assim chamada para evitar a invenção de mais um prefixo para “topia”) é uma distopia pura e simples, ou seja, uma que não é ao mesmo tempo uma anti-utopia. Glosa 7a: O intertexto da anti-utopia é historicamente a eutopia “presentemente proposta” mais pronunciada. Por volta de 1915-75 o intertexto era, portanto, o anti-socialismo, mas outros intertextos, tanto anteriores (de Souvestre à Colônia Penal de Kafka) quanto posteriores, de violência militarista ou mercantil, podem prevalecer. O intertexto da distopia “simples” foi e continua a ser, grosso modo, anti-capitalismo radical. Zamyatin, individualista porém crítico vanguardista da sociedade de massa, cavalga em ambos os lados. Glosa 7b: Exemplos de proximidade com a anti-utopia: todos os seguidores menores de Zamyatin, de Ayn Rand a Orwell em diante; da proximidade com a distopia “simples”: Space Merchants de Pohl e Kornbluth (e em geral os “novos mapas do inferno” estadunidenses dos anos 1950-60) ou os filmes Soylent Green e Blade Runner. 8. Mais evidente do que em outros gêneros da escrita, todas as delimitações acima operam somente dentro do tempo-espaço histórico, isto é, dentro da formação social e horizonte irrepetíveis da origem de um texto. É óbvio que para um leitor pós-industrial a estática da Politeia (República) de Platão ou da Civitas Solis (Cidade do Sol) de Campanella traduz o historicamente pretenso horizonte eutópico num horizonte distópico. No entanto, enquanto a eutopia e a anti-utopia se assemelham mais à sátira e ao panfleto (a “anatomia” de Frye) e a distopia “simples” ao romance individualista padrão, na medida em que empregam agentes e cronotopos narrativos, todos permanecem (com todo o respeito a Jameson) estratégias ficcionais solidificadas em gêneros narrativos. MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 470 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 Glosa 8a: Um leitor de Platão, digamos, do século XX, está interpretando em contraposição a um horizonte diferente de experiências e valores, que tudo colore, de modo que a sombra da SS recai sobre a política e a erótica dos guardiões; poderíamos chamar isso de síndrome ou lei “Pierre Ménard”. Glosa 8b: Isso não é um defeito e, sim, um ponto forte dos horizontes e artefatos utópicos: nascidos na história, incidindo sobre a história, eles laicizam a eternidade e exigem serem julgados dentro da e pela história. 9. Por esta razão somente, é obrigatório inserir a declaradamente estranhável sátira na tradição utópica, ao menos desde États et Empires de la Lune [Estados e Impérios da Lua] de Cyrano. Este deu o segundo maior passo nessa tradição: importar para dentro do locus da variação espacial (depois: temporal) da utopia uma organização sociopolítica radicalmente pior e fazê-lo ao esfoliar a estratégia perceptiva e avaliativa do estranhamento num conjunto de microdispositivos profundamente críticos. Histórica e psicologicamente, a distopia é impensável sem – e, via de regra, mesclada com – a sátira. Glosa 9: Exemplo insuperável: As Viagens de Gulliver de Swift; mas os textos de FC do século XX de Lem a Sheckley; Dick e Banks competem um apertado segundo lugar. 10. Usando termos swiftianos: na utopia uma Coisa Que Não É está postulada como sendo (na eutopia, como sendo supremamente valiosa), enquanto na sátira uma Coisa Que É está postulada como sendo desprezível; uma condena o que é por vias indiretas e a outra, por vias diretas. Se a utopia deve ser considerada uma inversão formal dos aspectos sociopolíticos salientes do mundo do escritor e que possui, como propósito, o reconhecimento de que o leitor realmente vive num mundo axiologicamente invertido, a sátira, então, coloca com perspicácia, em primeiro plano, o absurdo inerente e, assim, contraria a categorização doutrinal necessária, mas frequentemente cerimoniosa, da utopia. Acrescenta o Asno ao berço do Salvador e à entrada em Jerusalém. 11. Aqui, como no item 2, nos deparamos com a necessidade de um outro conjunto de ferramentas analíticas. Do termo platônico topos ouranios (lugar celestial) em diante, fica evidente que a localização da utopia, enquanto significante muito importante, é só aparentemente espacial: 471 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin abunda em mapas mas não é fotografável. Nos melhores casos, é menos significativa que a orientação em direção a um ponto em algum lugar na frente do orientado; e, além disso, nem o local a ser alcançado está fixado ou completo: ele segue em movimento. Está, desse modo, situado num espaço imaginário que é uma medida de valor, e é medido como valor (qualidade), ao invés de distância (quantidade). Os elementos necessários para o movimento utópico – no qual a estagnação é a forma zero – são um agente que se move e um espaço imaginário (ou tempo imaginário – mas todas as metáforas para o tempo são espaciais) dentro do qual se move. Os aspectos agenciadores, a serem abordados no fim, tornam acessível a problemática propriamente política de quem é o arauto da utopia/utopismo. Os aspectos pertinentes do espaço são: a) o lugar do agente que se move, seu locus; b) o horizonte para o qual tal agente se move; c) a orientação, um vetor que conjuga locus e horizonte. Glosa 11: É característico do horizonte se mover com a localização do agente em movimento, como demonstrado por Giordano Bruno. Mas, por outro lado, é característico da orientação poder, através de todas as mudanças de locus, permanecer um vetor constante de desejo e cognição. 12. Uma combinatória de locus/horizonte oferece as seguintes possibilidades: 1) H > L: utopia dinâmica ou sem fim determinado; 2) L = H ou L > H: utopia fechada ou estática; 3) L (H = 0): heterotopia; 4) H (L = 0): utopia(ismo) abstrata(o) ou não-narrativa(o). Parece não haver obstáculo quanto à aplicação destes termos (assim como um conjunto adicional de termos de agência) como ferramentas analíticas à gama completa de estudos utópicos – ficções, projetos e colônias. Glosa 12: #1 é a dominância do Horizonte sobre o Locus: o Locus não coincide com o Horizonte, mas interage com ele: contribui para uma utopia dinâmica, aberta (por exemplo, Chevengur de Platonov, The Dispossessed de Le Guin). #2 é um Locus que coincide com ou sorve o Horizonte: contribui para uma utopia dogmática, estática e fechada (por exemplo, a Civitas Solis de Campanella, a Voyage em Icarie de Cabet). #3 é um Locus isolado, sem um Horizonte utópico: contribui para a heterotopia (por exemplo, Foucault e, na ficção, seu discípulo Delany). #4 possui MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 472 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 um Horizonte isolado, sem um Locus utópico; a ele pertence o “pensamento utópico” nãolocalizado, como todos os projetos abstratos, programas utópicos, etc. Tenho dificuldade em enxergar como pode, em qualquer sentido estrito, um horizonte sem locus concreto – sem o cronotopo de Bakhtin (#4) – ser uma narração ficcional, ou um locus sem horizonte (#3) ser uma boa ou má utopia (ainda que possam ser a contradição da narração ou da utopia). 13. Enfim: o que não é discutido convenientemente como utopia, mas como alguma outra quimera? Dentre outras coisas, qualquer construção, eu diria, que não lida significativamente com uma comunidade radicalmente modificada, mas com sonhos de felicidade individual dentro do status quo social (Don Juan) ou fora da sociedade (Robinson Crusoé). Sem dúvida elas também estão de diversas formas conectadas ao utopismo, pelos contrários ou por eversão, mas englobar todos os sonhos de melhora sob a metáfora ilícita da utopia – como em Ernst Bloch, o mais digno de apreço – leva a uma perda de toda clareza explicativa. Apesar de extremamente importante hoje, a Utopia não é o mesmo que o Ser, ou ainda, o Bem Maior. Glosa 13: Muito da extremamente interessante – por outro viés – FC, partindo de Dick, através de Delany até o cyberpunk, coloca em plano de fundo, fragmenta ou mesmo reprime tão fortemente todo tipo de utopismo que, apesar de inescapavelmente escrita entre os horizontes eutópico e distópico, necessitaria de mediações analógicas complicadas demais para serem discutidas apropriadamente aqui. B) Política e distopia B1: Introdutório: Se na Parte A um crítico pode ser formal e impessoal, chamando atenção para as regras de método (sugerindo que delimitações podem ser necessárias), esse dificilmente é o caso das Partes B e C seguintes. Mesmo onde não introduzo expressamente a primeira pessoa do singular, ela está implícita, de modo que as teses seguintes são, na melhor das hipóteses, estímulos para o que pode ser debatido ainda. 473 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin 14. Se a história é um fator criativamente constitutivo dos escritos e horizontes utópicos, então temos também que reconhecer a mudança epistêmica que começou nos anos 1930 e se cristalizou nos 70: o capitalismo coopta tudo o que pode da utopia (menos o nome, que abomina) e inventa seu próprio, novo, dinâmico locus. Finge que é, enfim, uma eutopia realizada (fim da história qualitativa), mas visto que é, na verdade, uma distopia vivenciada patentemente para cerca de 90% da humanidade e subterraneamente para 8-9%, exige ser chamado de anti-utopia. Vivemos numa corrente cada vez mais rápida de um turbilhão de modismos que não melhoram as relações humanas, mas permitem intensificada opressão e exploração, especialmente de mulheres, crianças e pobres, numa “sociedade notavelmente dinâmica que vai para lugar nenhum” (Noble). Os economistas e sociólogos em quem confio chamam isso de Pós-Fordismo e mercado global de commodities – nada regulado para maior lucro do capital, bastante regulado para a alta exploração de trabalhadores. 15. A mobilização e a colonização Pós-Fordista sem precedentes de todos os espaços nãocapitalizados, do genoma aos desejos das pessoas, foram confrontadas com a eficácia insuficiente de religiões ortodoxas (incluindo o cientificismo e o liberalismo). Depois que “a crença tornou-se poluída, como o ar ou a água” (de Certeau), a cultura começou a prover horizontes autoritários de agência e significado. Ela o faz tanto como informação quanto como estética: produção intensiva de informação no horário de trabalho (por exemplo, a biotecnologia, cujo resultado é informação inscrita na e lida a partir de matéria viva) e consumo “estético” no horário de lazer, o último refúgio do desejo. A nova ortodoxia da crença prossegue, assim, “camuflada de fatos, dados e eventos” (de Certeau) ou como imagens da “indústria cultural”. 16. Logo cedo no Pós-Fordismo, Raymond Williams pressentiu os ventos da mudança e chamou atenção para um novo dominante na pragmática bem como na história cultural, no qual a mudança radical (revoluções comunistas) falhara, em grande parte porque o capitalismo conseguiu cooptar a mudança. Este foi além das modas anuais superficiais, consubstanciais ao capitalismo consumista (Benjamin), para um modo totalmente diferente de fazer negócio, que em breve seria conhecido como globalização e Pós-Modernismo. Agora a mudança é permanentemente parte da agenda, mas “principalmente sob a direção e nos termos [acrescento: e em termos] da própria ordem social dominante” (Williams). Isso levou ao grito de guerra “morte aos sistemas”, significando na prática não o que as classes trabalhadoras pretendiam antes ao se oporem ao Sistema, mas acabar com projetos de alternativas que tudo incluem. Aqueles que assumiram o grito MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 474 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 com Lyotard, Vattimo e companhia não queriam dizer que eles mesmos não deveriam formar um sistema de laços institucionais e de outros poderes e que seus escritos não deveriam se tornar a forma crítica acadêmica dominante conhecida como Desconstrucionismo, mas que todo o discurso de integridade e totalidade fosse desde já terrorizado até sua extinção. Os dogmas que seriam encontrados no pseudo-socialismo do tipo soviético foram ferozmente dilacerados, os dogmas do “livre mercado” (no sentido da demolição do controle público sobre imensos conglomerados capitalistas), os quais eu argumentaria que são pelo menos igualmente perniciosos e mortíferos, não foram questionados. Isso se transfere para o utopismo na forma de heurística versus sistemática, notou Williams emprestando termos de Miguel Abensour, continuando a discutir com equidade os pontos fortes e fracos das duas. Glosa 16a: Posso identificar aqui três construções Pós-Fordistas exemplares, todas “estéticas”. Uma é distópica e anti-utópica: a Disneylândia (pontos 18 ao 20); e duas reelaborações de antigos posicionamentos e gêneros, a Utopia Falível e a Distopia Falível (pontos 21 ao 24). Isso já assinala o fato de que a ideologia burguesa hegemônica (na televisão e nos jornais) se manteve firmemente sistemática, ainda que em disfarces atualizados, tais como a disneyficação. Anversamente, o que talvez possa ser chamado de “nova” Esquerda encontrou, durante e depois dos anos 1960, novas maneiras de avançar sob uma aparência heurística. Glosa 16b: É claro que o abrangente constructo distópico é o constructo “informacional” do Pós-Fordismo e do próprio capitalismo global, a baleia assassina dentro da qual temos que viver, mas obedecendo meu ponto 12, não o discutirei diretamente aqui. 17. Entretanto, a heurística quer dizer “servir para descobrir” e não é incompatível com a sistemática, que originalmente é relativa tanto ao “esquema inteiro das coisas criadas, o universo” quanto a um “conjunto de princípios, etc.: um esquema, método” (OED): você pode muito bem descobrir um esquema universal. Isso se tornou rígido no século XIX, quando Engels ironizou que “o „sistema‟ de todos os filósofos... brota de um desejo imperecível da mente humana – o desejo de superar toda contradição”. No lugar disso, a heurística deveria se contrastar com o que os filósofos chamam de modo “ostensivo”: focalizar na formulação correta de uma questão versus disponibilizar o conhecimento recebido. O método heurístico induz o indagador a colaborar para a descoberta da resposta, o que é indispensável em tempos de rápidas mudanças, no aprendiz ou no mundo: ele fomenta um des-cobrimento [dis-covering] ao invés de entregar respostas doutrinais 475 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin (dogmáticas). Não admira que na programação computacional ele passasse a significar cognição por etapas contínuas de tentativa e erro. Mas qualquer docente – ou outro praticante, como um teólogo prático (Bastian) – saberia que você não consegue atingir alguém usando ambos os métodos: somente na base da compreensão existente novos conhecimentos podem ser obtidos. Quando os saberes de vanguarda começaram a agir heuristicamente – como em 1905, quando Einstein não chamou seu trabalho sobre relatividade de teoria, mas de considerações a partir de um “ponto de vista heurístico”, ou mesmo Marx, que não chamou suas considerações de teoria, mas “uma crítica” – estava-se deixando para trás uma sistematicidade impropriamente absolutizada, fechada. Glosa 17: Isso pode ser claramente observado nas eutopias estáticas que infestaram a era Positivista (Mercier, Cabet, Bellamy), que sorveram o horizonte no locus. Elas eram fortemente combatidas pela Direita por causa de seu sistema (em anti-utopias como a de Souvestre) e pela Esquerda por causa de seu método (em eutopias metamórficas como as de Restif ou Morris). B2: Disneyficação como Distopia 18. Um caso (grave) exemplar de abuso distópico de imagens eutópicas são as fábulas e contos de fadas edulcorantes da Disneylândia. Eu a usarei como uma privilegiada pars pro toto do capitalismo e especialmente da lavagem cerebral da massa espectadora estadunidense. Sua ruptura espacial com a vida cotidiana mascara sua intensificação da dominância da mercadoria. Sua energia central é o que chamarei (adaptando Louis Marin) de empatia reprodutiva. Como Benjamin observou, “o relance comercial no coração das coisas destrói o espaço para o livre jogo da visualização” ao abolir qualquer distância crítica. Essa empatia funciona (desvirtuando a elaboração onírica de Freud) pela transferência da ideologização e substituição da mercantilização. Glosa 18a: Transferir a ideologização é a imersão empática continuamente reforçada, a “densa” – topológica e figuradamente concreta – falsa consciência coerente que injeta a versão burguesa hegemônica da normalidade estadunidense nos neurônios das pessoas ao “naturalizar” e neutralizar três campos imaginativos: tempo histórico como o espaço das escolhas alternativas; o(s) MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 476 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 estrangeiro(s); e o mundo natural. O tempo histórico é transformado no mito do progresso tecnológico, enquanto o estrangeiro e a natureza se tornam o primitivo, o selvagem, o monstruoso. Glosa 18b: Na mercantilização de substituição, o Bezerro de Ouro é distribuído na corrente sanguínea psíquica como mercadoria. O corolário ubíquo da Disneylândia é: “a vida é uma permanente troca e um perpétuo consumo” (destaque de Marin); ela mercantiliza o desejo, em particular o desejo pela felicidade como significação ou significatividade. A empatia dinâmica e higienizada na busca pela mercadoria é alegorizada em animais antropomórficos que representam várias inclinações que compõem essa busca. Essas inclinações e posturas estão estritamente confinadas no âmbito “positivo” pequeno-burguês onde, grosseiramente, o Mickey Mouse introduz o bom humor e o Rei Leão, a coragem e persistência, etc. 19. Psicologicamente, a estratégia de disneyficação infantiliza adultos. Suas imagens funcionam como um “cobertorzinho” infantil, produzindo uma demanda constantemente repetida para emparelhar com a oferta constantemente reciclada. A infantilização acarreta uma rejeição dupla. Primeiro, ela rejeita qualquer intervenção no mundo real que fizesse com que a busca pela felicidade fosse alcançável coletivamente: é um devaneio debilitador que apela para o mesmo mecanismo que as performances empáticas e a publicidade. Anversamente e em segundo lugar, ela rejeita qualquer constrição de realidade no desejo do indivíduo, não importa o quão frívolo ou destrutivo. Apegada à dinâmica de consumo de um mercado sempre em expansão, a Disneylândia se mantém profundamente hostil ao conhecimento, o que inclui decisivamente uma compreensão dos limites de qualquer esforço – e em particular do limite, final e pessoal, da morte. A Branca de Neve deve sempre ser magicamente ressuscitada para circular novamente. Glosa 19: “Rua Principal, EUA” [Main Street, USA], a via pública central da Disneylândia, foi construída como uma réplica exata da rua principal da cidadezinha da infância de Walt Disney, exceto de que era, “em cada tijolo, telha e lampião”, cinco oitavos do tamanho normal, além de criar uma sensação de profundidade, encurtando e alongando a percepção, ao possuir cada nível exterior maior que o nível acima: “o efeito pretendido era o de recordar a rua principal da juventude passada de cada adulto... com a perspectiva rememorada da visão de um criança”. Disney passou a maior parte de seus dias dentro de seu apartamento na Rua Principal, “onde ele se colocava junto à janela com lágrimas correndo rosto abaixo enquanto as pessoas caminhavam pelo boulevard de seus sonhos” (M. Eliot). 477 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin 20. Em suma: a armadilha da Disneylândia para o desejo, esse falso Outro, é uma violência exercida sobre o imaginário pelas suas imagens banalizadas. A disneyficação é uma modelagem do investimento afetivo na mercantilização, que reduz a mente ao infantilismo como uma fuga ilusória da morte: uma mitologia. Pode servir como metonímia do que Jameson discutiu como sendo o PósModerno “consumo do próprio processo de consumo”, como na TV. Compra antecipadamente qualquer imaginação alternativa, qualquer possibilidade fértil de uma alteridade radical ou mesmo simplesmente do vaivém dentro e fora de uma história. B3: Eu/Distopia Falível 21. Da delimitação pioneira de Moylan e da riqueza de sua análise dos textos ficcionais e críticos em Demand, eu traço o seguinte esquema para o que prefiro chamar de Eutopia Falível, um novo subgênero dos Estados Unidos nos anos 1960-70: 1) a sociedade da ação textual é eutópica, em contradição patente ou sutil às relações humanas e estruturas de poder da realidade do escritor; 2) esse novo Mundo Possível se revela atormentado por perigos – focando em contradições internas, mas frequentemente incluindo também uma violência hegemônica contrarrevolucionária externa – que ameaça reinstaurar a estratificação de classe, violência e injustiça; 3) nosso herói/heroína, frequentemente um coletivo multifocal, combate essa ameaça com alguma chance de sucesso. Esse formato suplementa a crítica utópica comum da realidade (distópica) do escritor com uma segunda frente contra a involução e a queda da sociedade eutópica. Glosa 21a: Exemplos: a maravilhosa tetralogia de Robert Nichols, Daily Lives in NghsiAltai; Solution Three de Naomi Mitchison; Wanderground de Sally M. Gearhart; a dilogia (agora trilogia) Motherlines de Suzy M. Charnas; a culminação da primeira onda desse formato, The Dispossessed de Ursula K. Le Guin, explicando as duas frentes em seus dois loci, na estrutura entrelaçada dos capítulos e no subtítulo “Uma Utopia Ambígua”; e a obra de K. Stanley Robinson, culminando até agora na Mars Trilogy e em Years of Rice and Salt, as obras-primas da segunda onda, dialeticamente pós-feminista. MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 478 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 Glosa 21b: A base evidente de tais obras nos movimentos contra-hegemônicos nos Estados Unidos e na Europa da época – de ascendências anarquistas, passando pelas feministas, situadas no centro, até outras contraculturais (gay, ecológica, “rainbow” [Rainbow Gatherings]) – é nítida nesse impulso de “uma praga em ambas suas casas”, típico da “Nova Esquerda” anti-Stalinista. É confirmado pelo cessar abrupto de sua primeira onda, com o advento de Reagan, e pelo seu reaparecimento quando o choque do Pós-Fordismo havia sido assimilado. 22. Da delimitação pioneira de Moylan e da riqueza de sua análise dos textos ficcionais e críticos em Scraps, eu traço o seguinte esquema para o que prefiro chamar de Distopia Falível, um novo subgênero que surge tanto do choque do Pós-Fordismo quanto de seu controle imaginativo: 1) a sociedade da ação textual é distópica, numa extrapolação patente ou numa sutil analogia às relações humanas e estruturas de poder da realidade do escritor; 2) esse novo Mundo Possível se revela resistível e modificável pelo(a) nosso(a) herói/heroína, amiúde com grande dificuldade. Nos melhores casos, como em K. Stanley Robinson e Marge Piercy, esse formato começa a manifestar a “periferia” do capitalismo, normalmente o mundo árabe. Anversamente, a fuga para um enclave eutópico como ilusão de suprema felicidade, e, finalmente, fuga para as estrelas, herdado da FC distópica anterior (por exemplo, The Space Merchants), é uma tentação individualista que persiste na FC desde John Brunner (se não A. E. Van Vogt) até Octavia Butler. Glosa 22: Obras representativas são, em minha opinião, The Shore of Women de Pamela Sargent, uma autocrítica excepcionalmente explícita do feminismo separatista, Gold Coast de Robinson, He, She and It de Piercy, Parable of the Sower de Butler e Star Fraction de Ken MacLeod. O grande antecessor é Iron Heel de London, enquanto Island de Huxley já prefigurava a queda da Eutopia Falível para a Distopia Falível. Synners de Pat Cadigan mistura a Distopia Falível com o cyberpunk. Uma variante lúdica na margem é a série “Culture” de Iain M. Banks, começando com Consider Phlebas (1987). A leitora deveria traçar sua própria conclusão a partir da preponderância dos nomes femininos, dentro de um reagrupamento incipiente de oposição ao capitalismo especulativo desenfreado. 23. O impulso epistêmico e político desses dois subgêneros ou formatos parece muito similar, visto que eles refletem sobre causas e implicações de fatais políticas “como sistêmicas” (Moylan), numa interrogação totalizante flexível ou “branda” (Jameson, Suvin “Two Cheers”), 479 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin realizada pela narrativa heurística e épica. Ambos opõem monolitismo e diálogos zelosos. Ambos redundam de volta à realidade do leitor, investindo potencialmente sua desolação com indignada emoção. Suas diferenças decorrem principalmente da diferente estrutura de sentimento cognitivo em seus momentos históricos (isto é bem perceptível na mudança realizada por Robinson entre Gold Coast (1988), especialmente distópico, e Pacific Edge (1990), especialmente eutópico). Enraizado num “pessimismo do intelecto, otimismo do impulso” gramsciano, entrelaçando lampejos de horizontes distantes com a oclusão dentro do ventre da besta, essas são obras híbridas e frequentemente polifônicas. Na ausência pragmática e mesmo no colapso de agências coletivas, tais como partidos centralizados, as obras focam nas escolhas de um ou mais agentes focais, eles mesmos ameaçados e falíveis, que passam por um despertar heurístico a ser acompanhado pelo leitor – não menos em direção a agências coletivas de baixo para cima. Algumas vezes a escolha é formalizada como horizontes de tempo diferentes fluindo para fora de alguma escolha crucial (Russ, Le Guin, Piercy). A Eutopia Falível teve que inventar estratégias textuais mais inovadoras para contrariar a sistematicidade dogmática de sua tradição e criar espaço para a presença da velha hegemonia dentro e fora dos eutópicos. É, portanto, em regra, heurística e patente, adequada para a ação épica e para a articulação da mudança como processo, não como projeto. A Distopia Falível, com uma tradição menor, não possui tal formato rígido a ser rompido, tanto formalmente quanto ideologicamente (ninguém nunca se propôs a tornar real uma distopia): ela pode simplesmente seguir o leito do rio da história social. Já que esse tipo de Distopia pode incorporar, ao invés de – como a Eutopia – contrariar, os procedimentos antecessores, suas estratégias parecem ser mais similares às da FC distópica, partindo de Wells e Čapek, passando pelos “novos mapas do inferno” de Pohl, Vonnegut, Tenn ou Sheckley até Dick e Disch. Glosa 23: Uma oposição polarizada entre a Eutopia Falível e a Distopia Falível assinala novamente, então, que esses são tipos ideais que tornam possível um espectro de possibilidades intermediárias, frequentemente ambíguas. A Eutopia Falível reconhece a ameaçadora dúplice distopia; a Distopia Falível mostra ao menos um lampejo de eutopia como locus de valores opositivos. Um equilíbrio entre horizontes eutópicos e distópicos faz de Female Man, de Joanna Russ, e Dance the Eagle to Sleep, de Marge Piercy – que lidam parcial ou inteiramente com um esforço eutópico falho dentro de uma repressão ferrenha – ancestrais de ambos esses gêneros. Triton, de Samuel Delany, rejeita ambos os horizontes em favor de realçar as micropolíticas de seu MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 480 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 anti-herói e me parece não pertencer a nenhum subgênero. (A categorização de gênero mostra relevância, não necessariamente qualidade, em certas discussões). 24. Em suma, as estratégias do que poderíamos chamar de um utopismo renovado para épocas mais amarguradas e possivelmente mais sensatas, somam-se à panóplia de dispositivos profundamente críticos para a criação de mundos invertidos, cujos aspectos salientes revelam o mundo pragmático do autor como um mundo de regras e valores às avessas e mortíferos. Esse horizonte enriquecido esclarece e ativa o desejo liberador por meio de imagens e ações alternativas – não somente ideológicas – textualmente corporificadas. Em relação à mitologia ilusória da disneyficação (como exemplo de estratégias hegemônicas para a “estética da mercadoria”), uma Lotuslândia para os fatigados, elas antagonizam epicamente. Ao consumo viciante elas conferem criação cognitiva e prática. Através de escolhas narrativas, elas afirmam a possibilidade de uma alteridade radical, de fato, sua necessidade absoluta para a sobrevivência de valores humanos e vidas humanas. Tabela: Mudanças de características utópicas CORPUS LOCUS EXEMPLAR DIFERENTE RUPTURA 1 Morus espaço - distante2 estática corte3 2 Gulliver como acima como acima Livros IV 481 - III– 3 BellamyMorris tempo - futuro estática visão 4 Anti-utopias dos séc. XIX-XX como acima como acima 5 Wells I: Máquina do Tempo e Primeiros Homens na Lua tempo como espaço sociobiológi-co dinâmica máquina 6 Wells outros textos4 Mundos Possíveis5 com um variável diferente em cada invasão de uma realidade diferente6 II: - QUALIDADE UTÓPICA (EU- ou DIS-)1 AXIOLOGIA EM RELAÇÃO À HEGEMONIA melhor organização sociopolítica (E) oposto pior organização sociopolítica (D+/-) oposto melhor organização sociopolítica (E) oposto pior organização sociopolítica (D-) oposto a opor-se: volta à hegemonia organização sociobiológica invertida (D+) oposto mescla dos 5 acima (E) oposto MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin 7 8 9 Disneylândi a (Disneyficaç ão) Eutopia falível Distopia falível espaço - contíguo dinâmica intercalar (dinheiro, montanha russa) Mundo possível do falho/ameaçado E dupla dinâmica: Mundo Possível de D que resiste dupla dinâmica: Mundo Possível intensifica a hegemonia, internament e cindido identificação com desejo por bens consumíveis (D-) intensificado: volta ao extremo da hegemonia luta por E como processo oposto – mas também ao estático E luta contra D oposto Mundo Possível diferente da hegemonia, internamente cindido 1) E = eutopia/eutopismo; D = distopia/distopismo (D- = distopia + anti-utopia, D+ = “simples” distopia) 2) Tomado da Antiguidade, da religiosidade medieval e das narrativas populares (Platão – Dante – Cocanha). Cada nome corresponde a um paradigma – na linha 1, por exemplo, para as “ilhas alternativas” de Bacon, Campanella, etc. 3) Paradigma: o rei Utopus corta o ístmo que conecta Utopia a um continente. 4) Wells I – A Máquina do Tempo e Os Primeiros Homens na Lua; todas as rupturas posteriores são dinâmicas. Wells II – por exemplo, Os Dias do Cometa, O Alimento dos Deuses, Uma Utopia Moderna, Homens como Deuses; enquanto A Guerra dos Mundos contamina Wells I e Wells II. 5) Mundos Possíveis (MP) podem ser qualquer variante de tempo-espaço, inclusive a realidade estética e virtual (tempo-espaço semiótico). 6) Tomado das histórias de horror. C) Ausklang sobre agentes: quem somos? aonde iremos? (inspirado em Gauguin) 25. No final de He, She and It, de Piercy, uma aliança anticapitalista está se formando entre intelectuais munidos de alta-tecnologia e gangues urbanas politizadas formadas por jovens e operários, sob a égide de um eutópico emissário combatente... Ao mesmo tempo em que é inútil obscurecer as diferenças ontológicas entre fato e ficção, ambos participam da, incidem na, e são moldados pela mesma imaginação humana. Parece-me obrigatório encerrar essas teses demasiadamente longas (testemunhos dos tempos confusos os quais passamos e que passam por nós) falando sobre agência, numa breve tentativa de identificar quem MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 482 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 poderia estar aqui falando para quem, neste momento ameaçado sob as estrelas. Minha resposta é (infelizmente, talvez): vários segmentos ou divisões de intelectuais. O que pode, e então deve, fazer um intelectual hoje dentro, sob e contra a distopia? Se eu puder definir esse tipo como alguém que reage, que é responsivo e responsável, uma resposta possível é: não muito; porém, talvez, com muito esforço e muita sorte, isso pode se provar o suficiente. Glosa 25: A definição dialógica Baktiniana acima exclui, evidentemente, a grande maioria daqueles a que os sociólogos chamam de “profissionais”, pessoas que trabalham principalmente com imagens e/ou conceitos e, entre outras funções, “produzem, distribuem e preservam formas distintas de conhecimento” (Mills): os engenheiros de recursos materiais e humanos, os publicitários e os profissionais de “design”, os novos bispos e cardeais da clerezia da mídia, a maioria dos advogados, bem como os fervilhantes enxames de supervisores (nós, professores, somos cada vez mais policiais coadjuvantes mantendo as crianças fora das ruas). Os fundos para todos esses aglomerados de classes de “equipes” “foram tirados do excedente global” (Wallerstein): nenhum de nós tem as mãos limpas. Parece-me que eu mesmo sou pago através de fundos de pensão obtidos de empréstimos ao governo do Québec por bancos alemães ou, em última análise, pela exploração de pessoas como meus ex-compatriotas na Europa Oriental. 26. Esse nosso aglomerado-de-classes mundial e intermediário tem estado, desde 1945 nos principais países capitalistas, materialmente melhor que nossos congêneres anteriores: mas o preço tem sido muito alto. Dentro do novo coletivismo, somos “uma fração dominada da classe dominante” (Bourdieu). Vivemos numa contradição: enquanto essenciais para o enquadramento e policiamento dos trabalhadores, nós mesmos somos trabalhadores – uma posição memoravelmente encapsulada por Brecht na “Canção do Manso Oitavo Elefante”, que ajuda a subjugar seus obstinados irmãos de sangue em A Alma Boa de Setsuan. Imaginando sempre novas maneiras de vender nossa perícia como “serviços” ao produzir e reforçar imagens de marketing da felicidade, nós, decisivamente, damos continuidade ao declínio da autodeterminação das pessoas e do conhecimento não profissionalizado. Somos essenciais na produção de novos conhecimentos e ideologias, mas somos totalmente impedidos de estabelecer a estrutura na qual – e principalmente impedidos de direcionar os usos para os quais – a produção e os produtores estão postos. Nossa profissionalização garantiu para alguns de nós renda suficiente para transformar um salário elevado em minúsculo capital. Não podemos operar sem uma boa medida de autogoverno em nossas aulas 483 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin ou artefatos, mas nós não controlamos as decisões estratégicas sobre universidades ou a disseminação de artefatos. 27. E o que dizer do futuro em queda rápida? Em minha opinião, mas não apenas minha, a esperança de uma eventual superação do hiato de pobreza, tanto mundial quanto dentro de cada país, já não existe. É muito improvável que o compromisso de classe Keynesiano possa ser desmantelado sem enterrar sob sua sequela o capitalismo como um todo. Isso acontecerá explosivamente, por exemplo, numa muito provável Terceira Guerra Mundial, ou através de um lento desmoronamento que geraria colapsos massivos das relações civis e civilizadas, no modelo da presente e latente “guerra fria civil” nos EUA e, certamente, no mundo, relações que são (como a esquecida obra-prima de Disch, 334, previu corretamente) somente equiparáveis com a vida cotidiana do Império Romano? E que tipo de estrutura sucessora aparecerá então? Medos piores e as mais insanas esperanças são permissíveis. A era do individualismo e livre mercado acabou, o presente já é altamente coletivizado, e a demografia, bem como a insegurança, irão fazer o futuro ainda mais coletivizado: a alternativa reside entre os modelos do campo de batalha oligárquico (ou seja, nuclearmente fascista) e uma comuna francamente plebéio-democrática. 28. Nessa perspectiva realisticamente sombria, frente a uma perigosa série de bifurcações em cascata, acredito que nossa corporação liberadora ou interesses de classe enquanto intelectuais são dúplices e interligados. Primeiro, eles consistem em garantir um alto nível de autogestão, a começar pelo ambiente de trabalho. Mas o capitalismo sem uma face humana é obviamente empenhado na “desclassificação estrutural” em larga escala do trabalho intelectual, de nosso “capital cultural” (Bourdieu, cf. Guillory). Não há nada mais humilhante, exceto danos físicos e fome, que a experiência de ser empurrado para a margem dos valores sociais – medido pelo único critério que o capitalismo conhece, nosso valor monetário –, experiência pela qual todos nós passamos no último quarto de século. Aos nossos colegas mais jovens, a empregabilidade keynesiana agora está sendo predominantemente negada, condenados a empreitadas de meio período e sem garantias. O capitalismo avizinha o permanente exército de reserva de trabalho industrial e o de trabalho intelectual. Então, nossos interesses também consistem, em segundo lugar, em trabalhar para tais alianças estratégicas com outros segmentos e classes o que nos permitiria lutar contra a corrente em torno da intimidação militarizada. Isso pode ser mais visível no “capitalismo confuciano” do Japão à Malásia, por exemplo, na sina do tipo campo-de-concentração das jovens mulheres trancadas nas fábricas de lá, mas é bem representado em todas as nossas MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 484 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 “democráticas” fábricas de exploração [sweatshops] e bairros fortificados, bem como nos blocosnações fortificados, proeminentemente nos EUA (ver Harvey). Isso só pode ser combatido pela incessante insistência na significativa participação democrática no controle não só da produção, mas também da distribuição de nosso próprio trabalho, assim como de nossos bairros. Aqui, a fronteira entre os nossos interesses, por assim dizer dissidentes, dentro do campo intelectual de produção e a liberação geral do trabalho como sua única garantia se torna permeável. 29. Os oásis modernistas para os exilados (a Margem Esquerda [Rive Gauche], Bloomsbury, baixo Manhattan, principais campi nos EUA) tomaram o caminho de um Taiti poluído por precipitação nuclear e pandemia venérea: alguns escritores afluentes e famintos à la Pyncheon ou Joyce podem ainda ser possíveis, mas não como uma opção estatisticamente significante para nós. Adaptando o ótimo trecho de Tsvetaeva, “Neste, o mais cristão de todos os mundos/ Todos os poetas são judeus” (V ètom khristianneishem iz vsekh mir/ Vse poèty zhidy), podemos dizer que felizmente todos os intelectuais são em parte exilados da Disneylândia e/ou da distopia da privação, mas somos uma “emigração interior”, para quem a resistência sempre foi possível e agora se torna mandatória. O primeiro passo em direção à resistência à lavagem cerebral disneyficada é “a invenção do desejo chamado utopia em primeiro lugar, junto com novas regras para o fantasiar ou o devanear sobre tal coisa – um conjunto de protocolos narrativos sem precedentes em nossas instituições literárias prévias” (Jameson). É uma produção coletiva de significados, cuja eficácia é medida pelo número de consumidores que é capaz de transformar, em primeiro lugar, em pensadores críticos e não empáticos, e, finalmente, em produtores. 30. Todas as variantes de distopias e/ou eutopias esboçadas acima giram em torno não só da autodeterminação individual, mas principalmente da autogestão coletiva, permitindo e garantindo a liberdade pessoal. Qualquer um que não estiver interessado neste horizonte não se interessará por elas: e vice-versa. Lucca, Setembro de 2001. 485 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 Darko Suvin Referências bibliográficas Referências completas com paginação podem ser encontradas em minhas publicações anteriores, colocadas no fim por data. Minha dívida generalizada com as obras de Raymond Williams e Fredric Jameson não está bem expressa através de uma referência para cada um. Muito do trabalho de Lyman Tower Sargent e de outros colegas da Society for Utopian Studies e de outros lugares também está contido aqui. A seção no final, listando meus trabalhos, é uma manobra para evitar que isso se torne “Um Grande Tratado”; ela foi atualizada em 2015. BASTIAN, Hans-Dieter. Verfremdung und Verkündigung. München: Kaiser, 1965. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1980-87. BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt: Suhrkamp, 1959. BOURDIEU, Pierre. In Other Words. Trad. M. Anderson. Stanford: Stanford UP, 1990. DE CERTEAU, Michel. “The Jabbering of Social Life,” in BLONSKY, M. (ed.). In Signs. Baltimore: Johns Hopkins UP, 1991, 146-54. ELIOT, Marc. Walt Disney. New York: Carol Publ. Group, 1993. ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach..., in MARX-ENGELS. Selected Works in One Volume. London: Lawrence & Wishart, 1968, 594-632. GUILLORY, John. “Literary Critics as Intellectuals,” in DIMOCK, W.C.; GILMORE, M.T. (eds.). Rethinking Class. New York: Columbia UP, 1994, 107-49. HARVEY, David. Justice, Nature and the Geography of Difference. Oxford: Blackwell, 1996. JAMESON, Fredric. The Seeds of Time. New York: Columbia UP, 1994. LUKÁCS, Georg. Geschichte und Klassenbewusstsein. Berlin & Neuwied: Luchterhand, 1968. MARIN, Louis. Utopiques: jeux d'espaces. Paris: Minuit, 1973. MILLS, C. Wright. White Collar. New York: Oxford UP, 1953. MOYLAN, Tom. Demand the Impossible. New York: Methuen, 1986. _____. Scraps of the Untainted Sky. Boulder: Westview P, 2000. NOBLE, David F. America by Design. New York: Knopf, 1977. WALLERSTEIN, Immanuel. Historical Capitalism[, with] Capitalist Civilization. London: Verso, 1996. WILLIAMS, Raymond. Problems in Materialism and Culture. London: Verso/ NLB, 1980. *** MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015 486 Um breve tratado sobre a Distopia 2001 SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre. New Haven & London: Yale UP, 1979. _____. Positions and Presuppositions in Science Fiction. London: Macmillan, & Kent OH: Kent State UP, 1988. _____. “Locus, Horizon, and Orientation: The Concept of Possible Worlds as a Key to Utopian Studies,” in DANIEL, J.O.; MOYLAN, T. (eds.). Not Yet: Reconsidering Ernst Bloch. London: Verso, 1997, 122-37 (agora em SUVIN, D. Defined by a Hollow: Essays on Utopia, Science Fiction, and Political Epistemology. Oxford: P. Lang, 2010). _____. “Novum Is as Novum Does”, Foundation, nº 69 (Spring 1997), 26-43 (agora em SUVIN, D. Defined by a Hollow: Essays on Utopia, Science Fiction, and Political Epistemology. Oxford: P. Lang, 2010). _____. “Two Cheers for Essentialism & Totality”, Rethinking Marxism, 10.1,1998, 66-82. _____. “Utopianism from Orientation to Agency: What Are We Intellectuals under PostFordism To Do?”, Utopian Studies, 9.2, 1998, 162-90 (now in Suvin, Defined by a Hollow: Essays on Utopia, Science Fiction, and Political Epistemology. Oxford: P. Lang, 2010). _____. “Horizon (Utopian)” e “System.” Verbetes em “Lexicon: 20th Century A.D.,” in Public (Toronto), nº 19, 72-75; no. 20, 81-84 (Spring 2000). _____. “Reflections on What Remains of Zamyatin's We after the Change of Leviathans: Must Collectivism Be against People?”, in BARR, M. (ed.). Envisioning the Future. Middletown: Wesleyan UP, 2003, 51-81 (agora em SUVIN, D. Defined by a Hollow: Essays on Utopia, Science Fiction, and Political Epistemology. Oxford: P. Lang, 2010). 487 MORUS – Utopia e Renascimento, 10, 2015
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Darko Suvin is Professor Emeritus at McGill University, a fellow of The Royal Society of Canada
(Academy of Humanities and Social Sciences); Research associate, Dipartimento di anglistica,
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