Os ervais de Mbaracayú, de Paulo C. V. Freire
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Os ervais de Mbaracayú, de Paulo C. V. Freire
1 OS ERVAIS DE MBARACAYÚ por Paulo Cezar Vargas Freire 1 O consumo da erva que os guaranis designavam caá era pouco difundido quando os espanhóis tomaram conhecimento dela. 2 A utilização ritual da erva em Concepción de los Gualachos confirma seu consumo pretérito também por etnias nãoguaranis. 3 Suas origens, no entanto, se confundem com as lendas que contam sua história. 4 A presença de restos de erva nas tumbas de Ancón, na costa do Pacífico, não foi suficiente para confirmar que esse intercâmbio de produtos alimentícios entre guaranis e quéchuas ocorreu três séculos antes da chegada dos espanhóis. 5 A generalização do consumo dessa bebida em cabaças e na falta de termo mais específico para nomeá-la resultou em sua identificação pelo recipiente em que era servida. 6 O termo quéchua mati designava uma cabaça muito utilizada no Alto Peru como recipiente; foi castelhanizado para mate e passou a dar nome à hierba del Paraguay. 7 O consumo da ilex paraguariensis, 8 passando de mão em mão nas rodas de mate, possui o mesmo caráter de convívio que os “cafés” e as “casas de chá” já tiveram. Este caráter se acentua ainda mais pelo simples detalhe de usar-se sempre a mesma bomba, que passa de boca em boca. 9 Detalhe pouco simpático aos cronistas europeus que estiveram na bacia platina. Na Europa, o hábito de tomar chá (tcha, em mandarim) foi difundido apenas no final do século 17, trazido da China pelos holandeses. Chegou 1 Arquiteto e pesquisador, associado efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul e mestre em História Social pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]. As palavras em guarani estão todas com a grafia usada em tempos coloniais. 2 Digo, q. com todo cuidado he buscado su origen entre Indios de 80 y 100 años, y he sacado por cosa averiguada, q en tiépo q estos viejos eran moços no se bevia, ni aun se conoscia, sino de un grã hechicero (MONTOYA, Antonio Ruiz de. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesús, en las provincias del Paraguay, Paraná, Uruguay, y Tape. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639, p. 9). 3 Um dos pueblos das missões jesuíticas no Guayrá. 4 Especialmente, a lenda de Caá-Yari. 5 OBERTI, Federico. Historia y Folklore del Mate. Buenos Aires: Fondo Nacional de las Artes, 1979, p. 47-54. 6 Porongo, em quéchua, ou hy’a, hy’kua, ka’aygua, kaygua, em guarani. Curuguá era uma planta nativa de Mbaracayú que tinha a mesma finalidade. 7 VILLANUEVA, Amaro. El Mate, Arte de Cebar. Buenos Aires: Compañía General Fabril, 1960, p. 31-34. 8 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Aperçu d’un Voyage dans l’Intérieur du Brésil. In: Mémoires du Muséum d’Histoire Naturelle de Paris, n. 9, 1822, p. 307-380. 9 Los Españoles lo sorben por un cañito de plata, en el cual abajo se halla fijada una bolita de plata agujereada por todos los lados para que no llegue a la boca la yerba junto con el agua, lo que es muy perjudicial al estómago. Otros so sirven, bien sea de un cañito de madera o de alguna cañita. Los indios que no hacen ningún uso de este cañito, sorben involuntariamente una cantidad de yerba (DOBRIZHOFFER, Martin. Historia de los Abipones. Tradução para o espanhol de Edmundo Wernicke. Resistencia: Universidad Nacional del Nordeste. v. I, (1784) 1970. De la yerba paraguaya, su origen, preparacion, comercio y usos). 2 ao Brasil no século seguinte. O “chá dos jesuítas”, o mate cocido, feito com erva-mate e açúcar queimado na brasa, ficou conhecido nesse mesmo tempo. 10 Os primeiros produtos do Paraguai que foram enviados para o rei da Espanha consistiram em pães de açúcar, trementina da terra (ou yeí), 11 couros (de anta, de onça e de veado), tecidos de algodão e adobados. Este termo se refere a especiarias, que poderia incluir a erva-mate, porém, ela não foi especificada. Instruções de Juan Ortega ao capitão Ruiz Díaz Melgarejo, em 1567, mencionam a circulação de erva no Guayrá. O procurador das províncias de Guayrá relatou, em documento de 1603, que o comércio de erva havia começado há mais de quarenta anos. 12 O consumo de erva sofreu dura oposição de autoridades coloniais a partir de 1595, que repetiam a argumentação utilizada para atacar o tabaco e o chocolate. O tenente de governador Juan Caballero Bazán proibiu seu benefício nos ervais e o trânsito pelo rio Jejuí. No ano seguinte, o governador Juan Ramírez de Velasco proibiu os comerciantes ou qualquer outra pessoa trocar com índios martinetes por erva ou tabaco, que adquiriam a custo baixo. 13 Os jesuítas chegaram a ameaçar com excomunhão quem consumisse, produzisse ou vendesse erva. 14 Esta disposição tinha como objetivo inibir a utilização do trabalho indígena pelos encomenderos. 15 Após a queda de Guayrá, o consumo se estendeu ao Alto Peru, a Capitanía General de Chile e a Presidencia de Quito. Junto com a coca, reinou entre os mineiros de Potosi. Enquanto a coca raramente era consumida fora de grupos indígenas, o chocolate demorou a difundir-se em setores mais pobres da sociedade colonial. Apesar de produzirem erva nas missões do Paraná desde 1645, que comercializavam em Santa Fe, 16 mais de duas décadas depois, a Congregação Provincial dos jesuítas, reunida em Córdoba, repetiu o pedido da proibição do uso da erva, do tabaco e do chocolate. Essa proibição ao 10 ALLEMÃO, Francisco Freire. Quaes são as principaes plantas que hoje se acham aclimatadas no Brazil? In: RHIGB, 1º trimestre de 1856, t. XIX, n. 21, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1898, p. 572-578. 11 É o nome popular de terebentina, um líquido incolor obtido por destilação de uma resina retirada geralmente de coníferas. A aguarrás é sua essência. 12 OBERTI, Federico. Historia..., op. cit., p. 61-62; Relación Cierta y Verdadera..., de Juan Bautista Corona, Asunción, 12/02/1603, em AGI-Charcas 48, apud GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado Interno..., op. cit., p. 38. 13 OBERTI, Federico. Historia..., op. cit., p. 189. Martinetes era o termo em español para o artesanato feito com penas. 14 Esta yerba y tambien el peten que es tabaco solia ser antiguamente tan odioso el tomarlos en esta tierra que tenian por hombre infame a quien lo tomaba y estaba prohibido con descomunion sino era a los que lo hacian por enfermedad con liçencia del medico: pero despues concorrieron los cabeças en esta ciudad, el uno administrador de este obispado, y el outro Teniente general de governador los quales se dieron a este viçio tan sin rienda que todo el pueblo se fue tras ellos en todos estados y son muy raros los que no tienen este viçio (DOBRIZHOFFER, Martin. Historia de los Abipones..., op. cit.). 15 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Reflexiones en torno a la Yerba Mate (Ilex Paraguariensis). In: Suplemento Antropológico. Asunción: CEPAG/ Universidad Católica “Nuestra Señora de la Asunción”, v. XXII, n. 1, Jun, p. 727, 1987. 16 Ibidem, p. 8 e 14. 3 consumo de erva-mate era extensiva também fora da província Paraquaria da Companhia de Jesus, como nas fazendas do Alto Peru. 17 O vice-reino do Peru, ainda durante a conquista, foi dividido em audiências. As províncias de Buenos Aires, Tucumán e Paraguai ficaram subordinadas à Audiencia y Chancillería Real de la Plata de los Charcas, desde 1566, quando foi implantada, 18 até 1783, durante o vice-reino do Rio da Prata, iniciado em 1776. No intervalo entre 1661 e 1672, estas províncias fizeram parte da Real Audiencia de Buenos Aires, criada por Felipe IV. Depois de décadas da presença espanhola na bacia platina, o rei Felipe III de Espanha, pela cédula real de 1617, dividiu as províncias do Paraguai em duas gobernaciones: del Río de la Plata y la de Guayrá (ou Paraguai). 19 A concretização dessa divisão, no início da década seguinte, foi considerada por Efraim Cardozo como o limite entre os períodos da conquista e colonial. Foi na província de Mbaracayú, no entanto, que se desenvolveu a maior parte da exploração dos ervais silvestres por parte dos colonos espanhóis durante toda a época colonial. Sua área compreendia, a oeste, das nascentes do arroio Guazú, afluente do Ipané-mi, passando pelo rio Aguaraý-guazú, pelo Curuguaty e pelo Corrientes até a serra de San Joaquín; ao sul, até as margens do rio Acaray; na zona leste, até o rio Paraná; e ao norte, pelo rio Iguatemi e, tomando o seu braço que hoje é conhecido por Ijobi (Yhovÿ), 20 até suas nascentes, prosseguia pela serra de Mbaracayú até o arroio Guazú, afluente do Ipané (figura 01). A tradicional luta entre guaranis e gualachos na região facilitou certa concentração do gentio nas antigas povoações dessa província: Mbaracayú 21, Candelaria, Terecañy e Ybyrapariyára, 22 localizadas no caminho Asunción-Guayrá. 23 17 MACERA, P. Instrucciones para el manejo de las haciendas jesuítas de Perú (séc. XVII-XVIII). In: Nueva Crónica, v. II, fascículo 2º, Lima, p. 62, apud: GARAVAGLIA, Juan Carlos. Reflexiones…, op. cit., p. 16. 18 Criada sete anos antes. La Paz ou Porco, La Plata, Potosí e Chicuito eram suas principais cidades. 19 He tenido por bien que el dicho Gobierno se divida en dos: que el uno sea del Río de la Plata agregandole las ciudades de la Trinidad, puerto de Buenos Aires, la Ciudad de Santa Fe, la ciudad de San Juan de Vera de las Corrientes, la ciudad de la Concepción del Río Bermejo; y el otro Gobierno se intitule de Guayrá, agregandole por cabeza de su Gobierno la Ciudad de la Asunción del Paraguay y la de Guayrá,Villa Rica del Espíritu Santo, y la Ciudad de Santiago de Jeréz. 20 Rio Azul, na língua guarani. 21 A população do pueblo de Mbaracayú passou por uma acentuada mestiçagem nos quase 140 anos de sua existência, o que explica as citações das fontes que a consideraram como vila de espanhóis. 22 SÚSNIK, Branislava. Los Aborigenes del Paraguay: Etnohistoria de los Guaranies, Epoca Colonial. Asunción: Museo Etnografico “Andres Barbero”: Escuela Técnica Salesiana, v. II, 1979-1980, p. 32-33. 23 Cf. Súsnik, no triângulo formado pelos rios Itanará e Curuguaty e pelas serras de Mbaracayú (SÚSNIK, Branislava. Dispersión Tupi-Guaraní Prehistórica: Ensayo Analítico. Asunción: Museo Etnográfico “Andres Barbero”, 1975, p. 104). 4 FIG. 01. Mbaracayú. Figura elaborada pelo autor deste artigo a partir das folhas 8 e 9 da Carta do Estado de Mato Grosso e regiões circunvizinhas (RONDON, Cândido Mariano da Silva, 1952). Considerando que a história da yerba del Paraguay se desenvolveu em diversos cenários geográficos, Garavaglia propôs sua divisão no período colonial considerando essa diversidade de ocupação. A primeira, entre a fundação de Asunción e a retirada dos espanhóis e jesuítas de Guayrá e Xerez, compreendeu o contínuo avanço da frente pioneira da Coroa espanhola nessa direção. Quando se iniciaram as reduções jesuíticas, em 1610, o governador Diego Marín de Negrón proibiu o comércio da erva.24 Duas décadas depois, no entanto, a produção tinha-se firmado, tanto que suplantou o açúcar e o vinho nas vendas de Asunción para o mercado interno colonial, 25 ao tempo em que os vinhos de Mendoza substituíram os produzidos nas províncias do Paraguai. 26 No segundo momento, a partir de 1632, o espaço ocupado por beneficiadores e índios encomendados se reduziu à província de Mbaracayú, onde estavam os melhores ervais silvestres. Devido à retirada de Guayrá e depois da vitória de Mbororé em 1641, os jesuítas passaram a ocupar a região entre os rios Paraná e Uruguai, até alcançar a serra do Mar, situação que perdurou até fins do século 18. Nos novos territórios, os jesuítas começaram também a investir na produção de erva. O consumo dessa bebida chegou ao Alto Peru na passagem do Paraguai da conquista para o colonial. A mestiçagem precoce favoreceu o hábito de consumir erva, abarcando todas as categorias 24 OBERTI, Federico. Historia..., op. cit., p. 57-58; 61-62; 89; 94. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado Interno..., op. cit., p. 68. 26 MÖRNER, Magnus. Actividades Políticas y Económicas de los Jesuitas en el Río de la Plata. Buenos Aires: R. P. Centro Editor de Cultura, 2008, p. 21. 25 5 sociais e grupos étnicos, 27 mesmo em uma sociedade em que a distinção hierárquica se fazia até pelo traje. Entretanto, sua difusão por quase todo o tecido da sociedade colonial manteve-se mesmo em áreas geográficas onde não houve intensa mestiçagem. A retirada de Villa Rica para costa abajo em 1676 modificou substancialmente as relações de produção. Este acontecimento caracterizou a passagem para o terceiro momento. Apesar da fundação de Curuguaty em 1715, Mbaracayú perdeu a importância que tinha até então. 28 O rio Tebicuary passou a ser mais utilizado para a exportação de erva, ressignificando a estreita faixa entre este rio e Asunción. 29 O rio Jejuí foi praticamente abandonado como eixo de transporte. A erva-mate passou a chegar a Villa Rica carregada por arrias (tropas de mulas de carga). Com a decidida política de estabelecer fortins nas fronteiras do Paraguai a partir de 1741, houve outro movimento expansivo que ampliou a área ocupada, 30 marcando a transição para o quarto momento. Concepción, fundada em 1773, tornou-se então outro centro ervateiro, intermediando a produção e comercialização da erva. As circunstâncias dos avanços portugueses sobre a conquista espanhola foram delineadas, no primeiro momento, pelos interesses políticos e econômicos da capitania de S. Paulo. Só depois de fracassada a tentativa de instalação da Praça de Iguatemi, o governo da capitania de Mato Grosso preocupou-se em expandir seu território para o sul, abaixo do rio Mbotetey. No entanto, o interesse de portugueses pela atividade ervateira durante o período colonial não ficou caracterizada. O interesse pelas terras dos ervais, este sim foi evidente. Eles, nessa época, não tinham conhecimento para beneficiá-los e, principalmente, ainda não tinham acesso ao mercado colonial da ervamate. Entretanto, a presença de portugueses nos benefícios de Mbaracayú, ou em Curuguaty, revelou a busca pela familiarização com essa atividade. No início do século 19, depois de consolidada a conquista dos Sete Povos das Missões, a província de São Pedro do Rio Grande começou a comercializá-la. Já se havia formado um mercado local para seu consumo. Desde 1804, o comércio da erva-mate começou a ser citado na província de São Pedro do Rio Grande. Em 1820, a exportação de erva da região do 27 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado Interno..., op. cit., p. 40-41. Mariano Molas afirmou que, no lugar onde está em definitivo, foi aprovado por cédula real, dada em San Lorenzo, em 31 de agosto de 1721 (MOLAS, Mariano Antonio. Descripción histórica de la antígua provincia del Paraguay. In: La Revista de Buenos Aires: Historia Americana, Literatura y Derecho. Buenos Aires: Imprenta de Mayo, t. IX, p. 11, 1866). 29 Por el río Tebicuary, se practicaban en los tiempos de oro algunos transportes de yerba que se trabajaba en los yerbales de Villa-Rica, de Yuti y de Caazapá, en piraguas y garandumbas chicas y grandes (MOLAS, Mariano Antonio. In: La Revista..., op. cit., t. X, p. 52-69, 1866). 30 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado Interno..., op. cit., p. 101-102 e 109. 28 6 Iguaçu até Guarapuava se configurou como principal pauta econômica da região, impulsionada pelo revés nas exportações paraguaias. O início da exportação de erva pelo Império coincidiu com a diminuição da produção no regime do ditador Francia, período em que o Paraguai se encolheu numa política de subsistência, abandonando a fronteira norte à própria sorte. Entretanto, o isolamento paraguaio não se iniciou e nem terminou com o governo de Francia. Quando assumiu o governo de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas resistiu em iniciar as negociações para a unificação nacional. Com a concentração do comércio exterior em Buenos Aires, pela proibição da navegação dos rios internos (Paraná e Uruguai) a navios estrangeiros, se assegurava as rendas da aduana para sua província, a principal fonte de arrecadação fiscal. Com um estado nacional, estes impostos deveriam ser federalizados. 31 A livre navegação no Rio da Prata só foi acordada com a Confederação Argentina em 1852, no governo de Carlos Antonio López, doze anos após a morte de Francia e com o fim do governo de Juan Manuel de Rosas, ainda sem a concordância da província de Buenos Aires. Pelo lado brasileiro, aos poucos, aumentou a quantidade de fazendas de gado em Paranaíba e Corumbá, facilitando a entrada da família Barbosa nos Campos da Vacaria. O interesse do barão de Antonina nessa região (incentivando migrações de indígenas em direção a colônias promovidas por ele na província do Paraná ou pelo governo de Mato Grosso) foi concomitante a esse avanço. O interesse pela posse dessas terras aumentou até desencadear na guerra que mergulhou o Paraguai na pobreza. A atividade ervateira sobreviveu, particularmente, monopolizada nas mãos de alguns grupos políticos, com La Industrial Paraguaya e com a Companhia Matte Larangeira. 31 MÍGUEZ, Eduardo. História Económica de la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2008, p. 148.