OS DISPOSITIVOS DA BIOPOLÍTICA: A LOUCURA COMO
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OS DISPOSITIVOS DA BIOPOLÍTICA: A LOUCURA COMO
OS DISPOSITIVOS DA BIOPOLÍTICA: A LOUCURA COMO EXCEÇÃO NA ALIANÇA ENTRE PSIQUIATRIA E DIREITO PENAL* Romina Moreira de Magalhães Gomes** Resumo Este artigo aborda como a loucura se tornou uma exceção no direito penal, a partir da entrada da psiquiatria no campo jurídico. Com o nascimento da psiquiatria, surge o procedimento do exame que articula o saber psiquiátrico aos mecanismos de controle da periculosidade atribuída ao louco desde o início do século XIX. Os teóricos da psiquiatria buscaram incansavelmente um marcador biológico da periculosidade e possibilitaram que a loucura se tornasse um alvo privilegiado dos dispositivos do biopoder. No Brasil, esse pensamento foi incorporado à legislação que autoriza a manutenção de uma sanção penal perpétua para o louco infrator. Os mecanismos de controle se renovaram a partir da descoberta dos neurolépticos e da reforma psiquiátrica. No campo da psiquiatria forense, os medicamentos vêm-se tornando um recurso necessário ao tratamento compulsório determinado ao louco infrator, o qual se supõe garantir o controle da periculosidade, em detrimento da responsabilização e da singularidade. Palavras-chave: Louco infrator. Exame de cessação de periculosidade. Medicamentos. Biopolítica. Responsabilidade. Quando um psicótico comete um ato considerado criminoso, via de regra, o Poder Judiciário o absolve, por considerá-lo inimputável e incapaz de receber uma pena. Aplica-se uma sanção penal denominada de medida de Este trabalho resulta de uma pesquisa que vem sendo realizada no doutorado do Programa de PósGraduação em Psicologia, Área de Concentração em Estudos Psicanalíticos, da UFMG, sob a orientação do Professor Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira. A constituição desse tema de pesquisa não teria sido possível, não fosse a abertura de um novo campo de prática e investigação por Fernanda Otoni de Barros-Brisset, Um fundador, que, no ano de 2000, criou o PAI-PJ – Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário, no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, e que sustenta, com sua vivacidade, ao longo desses 13 anos, o desejo de continuidade dessa prática instigante. Extrair as consequências desse novo modo de pensar o crime e a loucura em suas relações com o direito é o que move esta pesquisa. ** Psicóloga judicial do PAI-PJ – TJMG. Doutoranda em Psicologia, área de concentração em Estudos Psicanalíticos, pela UFMG. * Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 81 Palanque dos fundamentos segurança, prescrevendo-se um tratamento compulsório por tempo indeterminado, que pode resultar em uma condenação perpétua.1 A aplicação dessa forma de sanção penal fundamenta-se em conceitos originados no início do século XIX, na França, particularmente no conceito de periculosidade, que conduziu os magistrados a se absterem de penalizar os psicóticos infratores, entregando-os à psiquiatria criminal, para que os confinasse no asilo, perpetuamente (BARROS-BRISSET, 2009). O exame psiquiátrico ligado à medicina legal era, desde suas origens, no século XIX, uma prática que instruía os processos criminais e permitia a entrada dos alienistas como detentores de um saber que prometia torná-los aptos a intervirem sobre o louco criminoso. Mas se tratava de um sistema que possuía apenas a porta de entrada por meio da avaliação dos especialistas e acolhimento dos casos para tratamento no asilo. Era um sistema sem porta de saída, na medida em que se indicava, como tratamento da questão, a internação definitiva (FOUCAULT, 2001). O pensamento jurídico francês repercutiu na Europa e nas Américas, cujos países incorporaram os preceitos que até hoje fundamentam a intervenção da psiquiatria nos crimes cometidos por psicóticos (BARROSBRISSET, 2009). No Brasil, esse pensamento foi incorporado ao Código Criminal do Império, de 1830, o qual, posteriormente, foi reformulado em alguns de seus aspectos pelo Código Penal de 1940. Nessa nova lei, que contempla os crimes cometidos por loucos, apareceu o instituto jurídico da medida de segurança e a possibilidade de limitá-lo, colocando um fim a essa sanção por meio do exame psiquiátrico, denominado “cessação de periculosidade”. Entretanto, a lei não previa um tempo máximo de duração da medida, deixando abertura para que o psicótico infrator permanecesse ad aeternum sob a custódia do Poder Público, em cumprimento de medida de segurança. A característica da temporalidade indeterminada não foi modificada. Nenhuma das reformas do Código Penal subsequentes contemplou essa questão, que permaneceu inalterada desde 1940. Um caso acompanhado por equipe interdisciplinar do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ, do Tribunal de Justiça A medida de segurança é aplicada após a absolvição imprópria do acusado, sendo, por isso, designada como uma sentença absolutória imprópria. Mas é inegável o seu caráter de sanção penal, que pode estender-se por toda a vida de um acusado, o que não deixa de fazer dele um condenado. Trata-se, assim, de uma condenação revestida de absolvição. 1 82 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes do Estado de Minas Gerais,2 atualiza alguns dos principais aspectos dessa questão, mostrando o efeito desregulador de uma lei que, é preciso dizer, pode apresentar-se como caprichosa. João foi “aviãozinho” do tráfico e recebeu uma medida de segurança de internação. Passados 11 anos da data em que foi apreendido, permanecendo dois anos e oito meses internado e, nos anos subsequentes, respondendo à medida de segurança em meio aberto, não havia cometido mais nenhum ato e se encontrava inserido no PAI-PJ. Compareceu a uma perícia em instituição psiquiátrica da cidade de Belo Horizonte para se submeter ao exame de cessação de periculosidade. Na perícia, foi questionado sobre sua vida, seu crime e seu tratamento. Afirmou à junta de dois peritos que “não toma medicação, pois seu corpo não aguenta mais. Já tomou quilos e parou porque os remédios corroem seu estômago, destroem seu corpo por dentro”. João havia-se tratado ao seu modo. Abandonara o tráfico e as drogas desde que vira um conhecido injetando cocaína no pênis. Passou a se dedicar a reconstruir seu mundo, que havia desmoronado após um acidente nas ruas da cidade, o que ocasionou o desencadeamento da psicose. O desmoronamento se dava quando saía de casa desacompanhado: as ruas afundavam, desapareciam. Com a oferta de um acompanhante terapêutico, pôde reorganizar seu mundo e revisitar os espaços urbanos que conhecera quando jovem. Interessava-se por caminhar nas ruas do centro da cidade, visitar praças, museus e exposições de arte. Diante de alguns objetos da arte contemporânea, pôde expressar à acompanhante que “arte, cada um tem a sua”. A especificidade do caso levou-me a comparecer diante dos peritos, após o exame de João, para testemunhar que havia acontecido um tratamento e uma mudança de posição do sujeito com relação ao ato. João afirmava que foi preciso distanciar-se do tráfico e da destruição que ele promove. Ver um conhecido injetar cocaína no pênis “foi o fim, foi a degradação do humano”, segundo ele. Desde então, não vendeu nem usou mais drogas. Buscou na própria cidade os elementos que lhe permitiram reerguer-se e reerguê-la, segundo sua própria arte. Um dos peritos, referindo-se ao abandono do uso da medicação por João, afirmou, entretanto, que “não existe tratamento da psicose sem o uso de A equipe que acompanhava o caso, à época, era composta por mim, psicóloga, Alessandra Duarte, acompanhante terapêutica, Maria Clara Azevedo, assistente jurídica, e Márcia Anunciação Lazarino, assistente social. 2 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 83 Palanque dos fundamentos fármacos”. A cessação da periculosidade não lhe foi concedida. João ouviu o resultado do exame, comunicado pela assistente jurídica do programa, em que os peritos recomendaram o uso contínuo de neurolépticos e a inserção em programa de permanência dia de um serviço de saúde mental da cidade. Escutou atentamente e afirmou: “Eu não sou bandido! Posso até fazer esse tratamento e tomar a medicação. Mas o juiz tem que garantir que isso um dia vai ter fim!”. Que a lei não se apresente como um capricho! É o que se pode escutar a partir da fala desse sujeito. Mas não é o que de fato acontece no campo jurídico em sua aliança à psiquiatria criminal. Nossa Constituição Federal prevê, para qualquer cidadão, a inexistência de prisão perpétua no Brasil. Mas o instituto jurídico da medida de segurança se apresenta aí como uma exceção, como bem mostrou Barros-Brisset (2009). É preciso remontar às raízes desse estado de coisas, para que possamos entender como foi possível constituí-lo e mantê-lo durante tanto tempo. Uma lei caprichosa subsistiu, passados mais de 200 anos da época em que surgiram seus fundamentos. Para chegarmos até eles, é necessário perguntar por que os loucos passaram a ser considerados inimputáveis e, consequentemente, irresponsáveis, fazendo-se uma exceção no pensamento jurídico contemporâneo. É preciso perguntar, ainda, a que a exigência do uso dos fármacos, como parte de um tratamento standard, vem responder. Foi justamente aliado ao surgimento do conceito de periculosidade que teve início o procedimento do exame, cuja ideologia subsiste e ainda impera no mundo contemporâneo. A avaliação é uma ideologia que demanda às práticas “psi” fazerem parte de sua engrenagem, para funcionarem como dispositivos normalizadores, contribuindo para que os homens se tornem úteis e, em última instância, consumidores potenciais. No que se refere aos psicóticos infratores, a ideologia da avaliação age como um convite a essas mesmas práticas, para que contribuam para a sua submissão aos dispositivos normalizadores. Assim, os loucos podem-se tornar dóceis e seguirem sendo objetos controlados, de modo a não acarretarem perturbação à ordem pública. Os psicóticos infratores representam uma pequena, mas importante parcela de consumidores dos quais se demanda que consumam, obrigatoriamente, os medicamentos psicotrópicos, testemunhando o nascimento de uma nova modalidade de controle. Nos laudos psiquiátricos que pretendem avaliar sua periculosidade e atuar preventivamente para impedir novos atos, 84 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes encontramos a indicação compulsória de tratamento que jamais pode prescindir da medicação psiquiátrica. Voltemo-nos ao momento em que esse procedimento se iniciou. Com o surgimento da medicina mental no século XIX, a psiquiatria passou a se encarregar dos loucos como objeto de controle. Sua intervenção no campo jurídico provocou o abandono da noção de responsabilidade penal, no que se refere aos psicóticos infratores. Ao serem tomados na posição de objeto, os loucos se viram desprovidos da possibilidade de responder por sua posição de sujeito. A medicina mental foi fundada por Pinel, alienista que propôs a ideia de que os loucos portariam um déficit moral resultante de lesão das faculdades morais. De acordo com Barros-Brisset (2009), ao considerar que a etiologia da alienação mental decorria de uma lesão localizada no âmbito das faculdades morais, concebendo-a como déficit moral, Pinel favoreceu que a loucura fosse tomada como potencialmente perigosa. Suas ideias possibilitaram uma alteração do Código Penal,3 que passou a considerar os loucos como uma exceção, por não mais serem considerados capazes de responder pelos atos criminosos. Essa alteração abriu espaço para a intervenção dos psiquiatras, instituindo-se o procedimento do exame nos processos em que o réu era suspeito de alienação mental. Pinel considerou que os loucos não poderiam responder pela via da razão, por serem portadores de um déficit moral que os tornava propensos à perversão moral e a alojarem em si o mal. “Este pensamento lançou as bases para articular que o déficit permanente promovido por lesões cerebrais estaria intimamente associado a uma tendência ao mal” (BARROS-BRISSET, 2009, p. 103). Pinel contribuiu, de forma decisiva, para que a loucura começasse a ser lida como uma patologia, ao sistematizar as diferentes apresentações clínicas da alienação a partir da observação clínica. Abriu caminho para que se inscrevesse o tratamento da loucura no âmbito da higiene pública. Propôs o tratamento moral como terapêutica da alienação mental, cujo objetivo seria dominar, por meio de procedimentos morais e físicos, as ideias e os atos dos insanos de acordo com os parâmetros da razão. O isolamento era indicado por se supor que produzia efeitos terapêuticos. Esse autor acreditava que a repressão de comportamentos violentos e a dominação dos alienados no Barros-Brisset (2009) aponta que o código penal francês de 1795 foi revisto em 1810, após a publicação do livro de Pinel, Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. 3 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 85 Palanque dos fundamentos interior do asilo deveria ser parte do tratamento, que envolvia o desenvolvimento de técnicas de controle necessárias para torná-los dóceis (PINEL, 1800/2007). A psiquiatria nascente conquista, com Pinel e seus seguidores, um espaço de intervenção, preparando o terreno onde poderá caminhar, voltando-se à ação preventiva. O exame, também invenção do início do século XIX, é o dispositivo que se encarregará de articular esse saber, essa nova forma de conceber o louco infrator, aos dispositivos de controle da loucura, considerada, a partir de então, como doença mental. Foucault (2001) afirma que a patologização da loucura deixa de ser necessária na segunda metade do século XIX, com o conceito de degeneração proposto por Morel. A psiquiatria pôde, então, deixar de lado a promessa de cura e começar a dirigir seus esforços para as propostas de prevenção e precaução. Morel (1857) definiu a degenerescência como um desvio do tipo normal que deveria seguir em direção à continuidade da espécie. Propôs que a degeneração é um estado doentio com causas hereditárias, mas que podem ser influenciadas por circunstâncias exteriores ligadas à vida social e às contingências de modo geral. Na degeneração, a moral não pode dominar o corpo, uma vez que a vontade seria impotente para alcançá-lo. Barros-Brisset (2009) nota que Morel abriu caminho para uma associação da delinquência à degeneração, que foi concebida como um desvio irreversível do tipo normal e um perigo à vida social: Verificaremos, também em Morel, um esforço de classificação dos indivíduos e localização de seu risco potencial para a humanidade. Sua teoria terminou por tentar responder à pergunta jurídica sobre a função do Estado na proteção de prováveis riscos à sociedade de forma geral. Morel apresenta a loucura como um risco potencial (BARROS-BRISSET, 2009, p. 132). O risco estaria no fato de o degenerado apresentar uma pequena ou nenhuma possibilidade de apropriação de valores morais. A autora ressalta que Morel introduziu, desse modo, uma nova maneira de apresentar a vinculação entre o desvio moral e a lesão, que preservaria e recrudesceria as dimensões do perigo e risco já colocadas no campo de interseção com o discurso jurídico. Assim, a ideia do déficit moral de Pinel restou preservada. Morel propôs, finalmente, que a medicina mental se constituía em um saber apto a 86 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes oferecer ao direito um projeto higienista, por ele denominado de “profilaxia defensiva”. Com o aumento da população em áreas urbanas e o surgimento da mão de obra industrial, o corpo social emergiu como um campo de intervenção médica, devido ao aparecimento das questões biológicas ligadas às populações humanas, tais como aumento da natalidade, mortalidade, condições de moradia e fenômenos patológicos como epidemias. Os psiquiatras da época consideravam que as condições insalubres de vida podiam levar à loucura. Além disso, o louco era tomado como fonte de perigos para os outros, para si mesmo e para sua descendência, na medida em que se supunha uma transmissão hereditária da loucura (FOUCAULT, 2006). Dessa forma, foi colocada em questão a continuidade da transmissão de características que foram associadas ao perigo, a partir da emergência da protociência psiquiátrica. Surgem dispositivos de segregação e projetos voltados à profilaxia. Uma vez que a degeneração implicava a impossibilidade de cura, a prevenção e a precaução contra os perigos que foram associados à loucura se tornaram os principais objetivos a serem perseguidos pelo saber psiquiátrico. Para Foucault, A psiquiatria, na virada entre os séculos XVIII e XIX, conseguiu sua autonomia e se revestiu de tanto prestígio pelo fato de ter podido se inscrever no âmbito de uma medicina concebida como reação aos perigos inerentes ao corpo social. Os alienistas da época puderam discutir interminavelmente sobre a origem orgânica ou psíquica das doenças mentais, propor terapêuticas físicas ou psicológicas: através de suas divergências, todos eles tinham consciência de tratar um ‘perigo’ social, seja porque a loucura lhes parecia ligada a condições insalubres de vida (superpopulação, promiscuidade, vida urbana, alcoolismo, libertinagem), seja porque ainda ela era percebida como fonte de perigos (FOUCAULT, 2006, p. 9). O corpo passou a fazer parte dos cálculos do poder e tornou-se alvo da política. Os dispositivos de controle do corpo e da vida puderam, assim, começar a operar. Foi a partir dessas ideias que surgiram as políticas higiênicas e eugênicas, com a proposta de alcançar melhorias na população das cidades e nas raças, tendo como objetivo a obtenção de uma progênie mais “saudável”. É o corpo da sociedade que se torna, no decorrer do século XIX, o novo princípio. É este corpo que será preciso proteger, de um modo quase médico: [...] serão aplicadas receitas, terapêuticas como a eliminação dos doentes, o controle Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 87 Palanque dos fundamentos dos contagiosos, a exclusão dos delinquentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos ‘degenerados’ (FOUCAULT, 1989, p. 82). Desse modo, o corpo social ganhou realidade biológica e se constituiu em um campo de intervenção da medicina. Com as disciplinas, surgem saberes normativos com pretensões de prever o futuro, propondo intervenções que visam prevenir e precaver-se contra os perigos que julgavam ameaçar o corpo social. A psiquiatria, sobretudo a partir de Morel, com o conceito de degenerescência, consolidou-se como saber capaz de intervir sobre a loucura como forma de vida anormal e fonte de perigos sociais. Na trilha aberta pelas disciplinas, o capitalismo, desde seus primórdios, como aponta Foucault (1989), dirigiu seus investimentos à dimensão biológica do corpo, que se tornou, desse modo, uma realidade biopolítica. Para que se pudesse garantir a oferta de força de trabalho, a vida em sua dimensão biológica e a saúde da nação passaram a fazer parte dos cálculos do poder soberano, como problemas a serem tratados. Esse poder soberano pode decidir sobre o estado de exceção, ou seja, sobre a vida e a morte. Agamben (2003) define o estado de exceção como um terreno anômico, “onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei. Essa força de lei é seguramente um elemento místico, ou melhor, uma ficção pela qual o direito tenta anexar a anomia” (AGAMBEN, 2003, p. 3). Esclarece que a exceção não é sem relação à norma. Ela designa um caso singular excluído da norma geral, que é, contudo, capturado no ato mesmo de exclusão. O estado de exceção porta uma vocação, que é a de garantir a articulação entre dois elementos heterogêneos: o nomos e a anomia, a lei e as formas de vida. Agamben (2002) recupera essa ideia em Carl Schmitt, para dizer que a soberania, como estado de exceção, passou a ser lugar comum na vida moderna e contemporânea, transformando a política em um “aparelho de morte”. Nesse sentido, o autor concebe o totalitarismo moderno como “a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal” (AGAMBEN, 2002). O campo de concentração seria o espaço absoluto da exceção, ou seja, daqueles que foram banidos pela lei e se tornaram, por isso, extermináveis.4 Lembremos, com Foucault (2005), que o poder de morte que Vejam-se também, por exemplo, as medidas tomadas pelo governo americano após o 11 de setembro de 2001, por meio de decretos que apresentavam “força de lei” (AGAMBEN, giorgio. Pontos cegos do ocidente. Folha de São Paulo, 16 mar. 2003). 4 88 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes surge com o biopoder inclui também a morte indireta. Nesse caso, poderíamos incluir a morte política, a expulsão, a exclusão, a rejeição. Indo ao encontro da lógica capitalista e da nova demanda dos mecanismos de poder, os teóricos da psiquiatria propuseram, na segunda metade do século XIX, que os degenerados representavam um grande problema a ser pensado e solucionado. Uma vez que não podiam ser curados, dever-se-ia impedir sua reprodução, excluí-los ou até eliminá-los, em nome da “proteção da espécie humana” com relação a uma degradação que se supunha crescente. Em consequência, as técnicas políticas começaram a proceder a uma espécie de animalização do homem. De acordo com Agamben (2002), “surgem então, na história, seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja a simultânea possibilidade de proteger a vida e autorizar seu holocausto” (AGAMBEN, 2002, p. 11). Agamben (2002) considera que o capitalismo pôde-se desenvolver graças ao controle disciplinar realizado pelo biopoder. Foram as disciplinas que, com a criação de tecnologias adequadas, puderam oferecer ao biopoder os corpos dóceis necessários ao seu desenvolvimento. O autor chama a atenção para o fato de que a vida nua e a política fizeram uma aliança na modernidade e organizaram secretamente suas ideologias. Com Lombroso (1876/2007), esse programa é levado às suas últimas consequências. Os sinais que se supunham indícios de demência moral eram buscados no corpo: nas medidas do crânio e da mandíbula, na assimetria facial, na ausência de pelos no corpo, na insensibilidade à dor etc. Esse autor propunha que essas características ligadas à delinquência eram transmitidas geneticamente. Acreditava que a demência moral e a disposição ao crime possuíam uma vinculação indissolúvel e podiam ser explicadas por uma tendência que remontava aos atos de crueldade da primeira infância dos delinquentes. Para estes, sugeria a criação de casas de abrigo perpétuo, onde a educação teria o objetivo de sufocar tais tendências (LOMBROSO, 1876/2007). Barros-Brisset aponta que Lombroso sintetizou as teses psiquiátricas de Pinel e seus seguidores: Suas teses sobre o homem delinquente foram responsáveis pela entrada triunfal da psiquiatria no campo jurídico. Lombroso, com suas ideias, inaugurou os princípios e fundamentos que animariam a fundação da escola positiva do direito penal, onde a natureza patológica do criminoso antecede o exame do delito, num contraponto definitivo à escola clássica de base beccariana (BARROS-BRISSET, 2009, p. 136). Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 89 Palanque dos fundamentos A autora considera, entretanto, que o terreno já se encontrava preparado para receber essas teses no campo do direito, pois a demência já havia sido considerada uma exceção no Código Penal a partir das ideias de Pinel. A proximidade com relação não somente às concepções propostas por Pinel, mas também às propostas por Morel, torna-se evidente em sua obra. Barros-Brisset (2009) nota que as ideias de Lombroso sintetizavam o esforço de mostrar que a psiquiatria seria o saber apto a intervir junto aos criminosos, prescindindo da intervenção jurídica, uma vez que a generalização da doença como causa do crime fez desaparecer o crime como tal: tudo girava em torno da questão patológica, e o crime foi substituído pela doença. O reincidente no delito penal manifestaria, na repetição dos atos delinquentes, seu caráter doentio, sobre o qual apenas a psiquiatria teria condições de intervir. Mas, ao mesmo tempo, Lombroso supunha que não se deveria esperar que o tratamento alterasse a condição do criminoso nato. A condução desses casos deveria seguir na direção do isolamento perpétuo, devido ao seu perigo intrínseco e sua impossibilidade de correção. No texto As mais recentes descobertas e aplicações da psiquiatria e antropologia criminal (citado pelo editor de LOMBROSO, 1876/2007), o autor chegou a indicar o extermínio dos delinquentes considerados de alta periculosidade. A partir das intervenções de autores como Pinel, Esquirol, Morel e Lombroso, Foucault assinala que, cada vez mais, a psiquiatria do século XIX investiu na busca de marcadores patológicos que poderiam distinguir os homens perigosos: loucura moral, loucura instintiva, degeneração. Esse tema do indivíduo perigoso deu origem, com a escola italiana, não somente à antropologia do homem criminoso, mas também à teoria da defesa social, representada inicialmente pela escola belga. Outra consequência apontada pelo autor seria uma transformação da noção antiga de responsabilidade penal. Se anteriormente a imputabilidade requeria que o autor do delito fosse livre, consciente, sem apresentar indícios de loucura e crises de furor, doravante a responsabilidade passa a exigir mais do que essa forma da consciência, exige que o ato seja inteligível e possa explicar a conduta criminosa, integrando-se ao caráter e aos antecedentes do infrator. Faz-se necessário encontrar a determinação psicológica do ato, para que o autor possa ser tomado como penalmente responsável. Se o ato apresenta-se como gratuito e indeterminado, surge uma tendência a desculpá-lo. Foucault nota aí a existência de um paradoxo: “a liberdade jurídica de um 90 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes sujeito é demonstrada pelo caráter determinado de seu ato; sua irresponsabilidade é provada pelo caráter aparentemente não necessário de seu gesto” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Apesar das críticas à antropologia criminal, Foucault considera que suas ideias não desapareceram, ao contrário, enraizaram-se no campo do direito penal, mantendo-se preservadas algumas de suas teses principais, a partir de uma mutação ocorrida no direito. Assim, a noção de responsabilidade pôde ser dispensada, a partir da intervenção da psiquiatria junto ao direito penal, como uma noção inadequada para se pensar a criminalidade (FOUCAULT, 2006). Além disso, foi decididamente autorizado, desse modo, o seu isolamento perpétuo. No Brasil, na virada do século XIX para o XX, alguns autores se destacaram por difundir as ideias de Morel e Lombroso. Vou recuperar, aqui, as ideias de dois desses autores que se sobressaíram por suas concepções hiegienistas e eugênicas, a saber, Raimundo Nina Rodrigues e Francisco Franco da Rocha. As ideias propostas por este último autor acabaram influenciando a Reforma do Código Penal ocorrida em 1969, como veremos. Nina Rodrigues foi um grande divulgador das ideias de Morel e Lombroso em terras brasileiras. Em 1894, publicou o livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil e, posteriormente, realizou vários estudos sobre a loucura na raça negra. Afrânio Peixoto informa-nos, no prefácio a essa obra de 1894, que Nina Rodrigues tornou-se conhecido internacionalmente e chegou a ser reconhecido por Lombroso como o “Apóstolo da Antropologia Criminal no Novo Mundo”. Nas primeiras páginas do livro, encontramos uma dedicatória aos italianos Lombroso, Ferri, Garofalo, e aos franceses Lacassaque e Corre. O livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil busca investigar as causas que poderiam provocar alterações da imputabilidade, levando em conta fatores biológicos e sociológicos. Nina Rodrigues considerava que: A cada fase da evolução social de um povo, e ainda melhor, a cada fase da evolução da humanidade, se comparam raças antropologicamente distintas, [às quais] corresponde uma criminalidade própria, em harmonia e de acordo com o grau do seu desenvolvimento intelectual e moral (NINA RODRIGUES, 1894, p. 50). O autor considerava o postulado da vontade livre, como fundamento da responsabilidade penal, uma ideia absurda em um contexto social Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 91 Palanque dos fundamentos heterogêneo. Acreditava na existência de uma evolução mental dentro da espécie humana e que as “raças inferiores” traziam uma impulsividade primitiva que levava aos atos violentos e antissociais. Questionava a aplicação da responsabilidade penal de modo igual às diferentes raças: “pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam por seus atos perante a lei com igual plenitude de responsabilidade penal?” (NINA RODRIGUES, 1894, p. 111). O autor continua: Porventura se pode conceder que a consciência do direito e do dever que têm essas raças inferiores seja a mesma que possui a raça branca civilizada? – ou que, pela simples convivência e submissão, possam aquelas adquirir, de um momento para o outro, essa consciência, a ponto de se adotar para elas conceito de responsabilidade penal idêntico ao dos italianos, a quem fomos copiar o nosso código? (NINA RODRIGUES, 1894, p. 112). Essas considerações levaram-no a concluir que não se pode equiparar a responsabilidade penal fundada na liberdade da vontade dos indivíduos de raças inferiores e dos indivíduos de raças brancas civilizadas. O autor acreditava que a mestiçagem produzia uma degradação das qualidades físicas e morais existentes nas raças puras e que seria transmitida geneticamente. Os mestiços, segundo ele, seriam mais predispostos às doenças mentais. Acreditava, ainda, que o meio social podia contribuir para a degeneração no âmbito físico e moral, que seria transmitida aos descendentes. De acordo com as condições do meio, as características agressivas ligadas aos instintos primitivos poderiam reaparecer. Partindo dessas ideias, empreendeu estudos empíricos sobre as relações que supunha existir entre raça, degenerescência, patologias mentais e crime. Seguindo os passos de Lombroso, Nina Rodrigues buscava identificar os estigmas em autores de delitos, visando classificá-los como “criminoso nato” ou “criminoso de hábito”. Suas ideias subsistiram com o higienismo e ganharam força com o movimento eugenista brasileiro, na primeira metade do século XX. Francisco Franco da Rocha foi também um grande propagador das ideias de Morel e Lombroso, no Brasil. Publicou várias obras e artigos em jornais, podendo ser reconhecido como um militante que buscava transmitir uma visão higienista, preconizando a moral, a ordem e o progresso, propagando ideias positivistas como científicas. No contexto dessa militância higienista, empenhou-se em difundir a necessidade de isolamento dos loucos em 92 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes hospitais especializados. Lutou pela construção do Asilo-Colônia de Juquery, inaugurado em São Paulo em 1898. Em 1905, publicou o Esboço de psiquiatria forense, livro destinado a orientar os psiquiatras em suas relações tanto com a justiça quanto com o procedimento do exame. Franco da Rocha buscou, nesse texto, delimitar a esfera de atuação da psiquiatria forense, propondo que seu objetivo é “determinar a existência ou não existência desse estado mórbido cerebral, a fim de poder o juiz, de acordo com a opinião dos peritos psiquiatras, aplicar as determinações dos códigos” (FRANCO DA ROCHA, 1905/2008, p. 153). O autor referia-se a Lombroso como um estudioso que produziu verdadeira revolução no campo do direito penal, ao mostrar as relações entre os dementes e os criminosos. Preconizava a necessidade de defesa da sociedade com relação aos alienados infratores, em detrimento da aplicação da punição pelo direito: Passando às questões criminais, não somos mais felizes. A mais justa das concepções da nova escola penal – basear o direito de punir na defesa da sociedade, julgar, portanto, o delinquente pela sua temibilidade – ainda é uma simples aspiração – isso mesmo para uma parte dos juristas atuais. Os códigos ainda são inspirados pelas velhas doutrinas do Direito Criminal. Na prática, vemos a todo o momento apelarem os advogados para o estado de mal epiléptico, manifestado por seu equivalente psíquico, como dirimente da responsabilidade criminal. O resultado é um absurdo inqualificável: o júri reconhece a irresponsabilidade, e volta para o seio da sociedade um indivíduo que se acha em condições de assassinar a A ou B, em plena rua, sem motivo algum. Eis aí o que dispõe o nosso Código Penal. Da vítima ninguém mais se lembra. É uma lástima este estado de coisas! (FRANCO DA ROCHA, 1905/2008, p. 154). Desse modo, Franco da Rocha contribuiu para a propagação das ideias de Lombroso no Brasil, propondo uma ampliação da esfera de atuação dos psiquiatras forenses. Buscava apagar, ao mesmo tempo, toda a possibilidade de responsabilização de qualquer portador de transtorno psiquiátrico, incluindo os epilépticos. O erro estaria em tomar o direito de punir como aplicação da pena, e não como defesa da sociedade, o que descrevia como a causa de todo mal: Castigar ou tentar corrigir a criminosos que tenham praticado atos puníveis em consequência de moléstia será realmente incompreensível, porque nesses casos o ato criminoso tem o caráter de um desastre. Entretanto, ninguém nega que é Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 93 Palanque dos fundamentos preciso remover a causa do desastre, para que ele se não repita. E tão evidente o é, que dispensa demonstração. Os fatos, porém, aí estão para indicar que há necessidade de se chamar para eles a atenção dos poderes competentes (FRANCO DA ROCHA, 1905/2008, p. 154). Fazendo referência ao artigo 29 do Código Penal de 1890, que previa que os isentos de culpabilidade por motivo de doença mental deveriam ser entregues às famílias ou conduzidos a hospitais especializados, se seu estado mental assim o exigisse, levando-se em conta a segurança da sociedade, Franco da Rocha considerou que: Os médicos peritos não podem mentir à sua consciência, declarando responsáveis tais criminosos. Eles dizem o que a ciência ensina. Os juízes, porém, não sabem servir-se do artigo 29 senão nos casos de loucura contínua e espetaculosa, quando, no entanto, esse artigo lhes abre a porta a um procedimento corretíssimo. Se eles confiam nos peritos para indagar se o criminoso é ou não doente, por que não lhes confiar também o encargo de verificar se o mesmo é ou não perigoso à sociedade? (FRANCO DA ROCHA, 1905/2008, p. 162). Esse autor propunha que os criminosos, sob suspeita de alienação mental, pudessem ser entregues a um perito por tempo indeterminado, para que fossem observados, “e, no fim de um, dois ou três anos, teria ciência perfeita da índole do doente, e poderia então responder se ele era ou não perigoso à sociedade” (FRANCO DA ROCHA, 1905/2008, p. 162). Qualquer semelhança não parece ser mera coincidência! A lei que mais tarde viria substituir a que instituiu o Código Penal de 1890 incorporaria textualmente as indicações de Franco da Rocha. Com o novo Código Penal de 1940, surgem as medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro. O texto da lei previa que esse instituto jurídico teria tempo indeterminado, o que significa ausência de limite temporal, só podendo ser extinta mediante o exame de cessação de periculosidade. O Código de 1940 passou por uma reforma em 1969, quando o tempo mínimo para o cumprimento da medida de segurança passou a ser de um a três anos. Essa reforma manteve o exame de cessação de periculosidade, para verificar se o louco infrator teria condições de retornar ao convívio social, e só assim poderia ter a medida extinta. Posteriormente, esses aspectos não foram modificados, e a lei manteve-se preservada em sua essência. A história mostra que esse dispositivo 94 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes jurídico-psiquiátrico continuou a permitir o isolamento perpétuo e a manutenção da sanção penal durante toda uma vida, pois os loucos, via de regra, eram tomados como intrinsecamente perigosos. Proponho que a medida de segurança possa ser tomada como um verdadeiro estado de exceção continuado que fora incorporado ao direito penal, a partir de um programa biopolítico. Os loucos não são considerados sujeitos de direito, uma vez que se apresentam como uma exceção aos direitos fundamentais previstos na Constituição. Trata-se de um programa de desresponsabilização, que autoriza um modo de condenação perpétua dos psicóticos infratores. Como foi mostrado, esse foi o programa da biopolítica que passou a operar na segunda metade do século XIX, com Morel e Lombroso, e que tem como objetivo antecipar o surgimento do perigo atribuído à loucura, autorizando toda sorte de medidas de precaução contra essa pretensa periculosidade. Agamben (2002) indica que a manutenção dos mecanismos de controle biopolítico se faz em nome da preservação da vida. Isso justificaria a continuidade de um estado de exceção em que os direitos fundamentais podem permanecer suspensos. Não é raro escutarmos como justificativa para essas atrocidades a ideia de que é preciso proteger o louco, para que não coloque em risco a própria vida e a dos demais. Isso autoriza, muitas vezes, a sua permanência na condição de isolamento, sem um tratamento singularizado que leve em conta a arte de cada um, como ensinou nosso paciente João, e que poderia viabilizar o laço social. No início da segunda metade do século XX, surge uma nova modalidade de controle dos corpos, que permite torná-los dóceis: a descoberta dos neurolépticos. É indubitável o valor dessa descoberta para muitos psicóticos, que encontram na medicação um modo de tratamento. O que interrogo aqui é seu uso indiscriminado e normalizador da loucura, a despeito de outros recursos de tratamento aos quais um psicótico pode recorrer. A que essa proposta de uso generalizado de medicamentos para a loucura vem responder? Conforme indica Antônio Teixeira (2010), foi justamente a descoberta dos neurolépticos, em 1952, que permitiu, a partir dos anos 80 do século XX, o início do rompimento com os dispositivos de segregação surgidos no século XIX. O isolamento dos loucos nos manicômios passa a ser interrogado e pode ter início o seu fim. Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 95 Palanque dos fundamentos Franco Basaglia, ao visitar um manicômio na cidade mineira de Barbacena, em 1979, notou que os loucos que ali viviam se encontravam em um verdadeiro campo de concentração. Essa constatação nos leva a recuperar a ideia de que os campos de concentração foram o principal dispositivo da política totalitária nazista, que visava alcançar a supressão do sujeito e de quaisquer manifestações da contingência, conforme mostrou Hannah Arendt (1979). O programa maior do controle totalitário nazista seria reduzir o sujeito à condição de objeto. Não é muito diferente o que se passou com a loucura após a intervenção de Pinel e o nascimento da psiquiatria. A constatação de Basaglia, aliada às ideias que interrogavam a ordem vigente,5 originou um movimento social denominado luta antimanicomial e a reforma dos hospitais, que começaram a ser substituídos pelos serviços abertos e territorializados em saúde mental. Entretanto, a queda dos muros dos hospitais psiquiátricos não representou o fim dos mecanismos de controle da loucura. Os medicamentos vêm-se tornando objeto de consumo como outros. François Dagognet nota que os remédios se tornaram um objeto fetichizado pela medicina contemporânea, a ponto de seu uso se tornar universal, até mesmo religioso. Eles valem “para tudo e contra tudo, em todos”, alcançando uma forma de uso que nada pode restringir (DAGOGNET, 2011, p. 83). No campo da psiquiatria forense, os neurolépticos vêm-se tornando um recurso o qual se supõe garantir o controle da periculosidade, a despeito das singularidades dos tratamentos empreendidos por cada sujeito. Os modos de controle se renovam em torno desse objeto irresponsável que se tornou o louco para os psiquiatras forenses e para o direito penal brasileiro. A exigência de consumo de fármacos para todos os psicóticos pode-se inscrever, nesse contexto, como um modo de controle capaz de normalizar a loucura, considerada, ainda nos dias de hoje, como potencialmente perigosa. Para concluir, retomo uma ideia que podemos considerar como um ponto de partida para a psicanálise, prática que somente pode operar a partir da consideração de que todo sujeito é responsável. Fala-se muito em humanização do tratamento do louco, mas se tende a esquecer que essa humanização As ideias de Michel Foucault foram uma grande referência nos anos 70, autor que também visitou o Brasil e contribuiu para que se começasse a questionar o modo como os loucos eram tratados. 5 96 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes implica não tomá-lo como objeto e reconhecer a existência de um sujeito singular, cujo tratamento deve ser também singularizado. Essa foi a proposta levada por Fernanda Otoni de Barros-Brisset ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com a criação do PAI-PJ, no ano de 2000. Ainda há várias questões que me mobilizam a continuar na via aberta pelas ideias desses pensadores que permitiram interrogar esse estado de coisas. Gostaria de finalizar deixando uma dessas perguntas, que me parece fundamental: seria possível ao Poder Judiciário reconhecer o louco como sujeito responsável, diferentemente do que se tem passado desde o século XIX? Biopolitics’ devices: madness as an exception to the alliance between psychiatric and criminal law Abstract: This article treats how madness became an exception in criminal law, since psychiatry entrance in the legal field. With the birth of psychiatric, born the exam procedure that articulates psychiatric knowledge to mechanisms of dangerousness control associated to people with mental diseases since XIX beginning. Theorists from psychiatry search hard a biological marker of dangerousness and enable madness became a prime target to the biopower’s devices. In Brazil, this understanding was incorporated to the legislation that allows a maintenance of a perpetual penalty for the mad transgressor. The mechanisms of control renews from neuroleptics discover and from psychiatric reform. In forensic psychiatry medication became a necessary resource to compulsory treatment given to the mad transgressor who is supposed to assure the control of dangerousness, instead of responsibility and uniqueness. Keywords: Mad transgressor. Exam of cessation dangerousness. Biopolitics. Medicines. Responsibility. Les dispositifs de la biopolitique: la folie comme exception dans l’alliance entre la psychiatrie et le droit pénal Résumé: Cet article aborde comment la folie se tourne une exception du droit pénal, à partir de l’entrée de la psychiatrie dans le camp juridique. Avec la naissance de la psychiatrie, surgit la procédure de l’examen qui articule le savoir psychiatrique avec les mécanismes de contrôle de la dangerosité attribuée au fou depuis le début di XIXème siècle. Les théoriciens de la psychiatrie recherchent sans cesse um marqueur biologique de dangerosité et ont rendu Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 97 Palanque dos fundamentos possible que la folie se tourne la cible privilégiée des dispositifs du biopouvoir. Au Brésil cette pensée fut incorporée à la législation qui autorise l’entretien d’une sanction pénale à perpétuité pour le fou délinquant. Les mécanismes de contrôle se renouvellent à partir de la découverte des neuroléptiques et de la réforme de la psychiatrie. Dans le camps de la psychiatrie juridique, les médicaments deviennent un recours nécessaire au traitement obligatoire du fou délinquant ce qui est supposé garantir le contrôle de la dangerosité, au détriment de la responsabilisation et des singularités. Mots-clés: Fou délinquant. Examen de fin de dangerosité. Biopolitique. Médicaments. Responsabilité. Los dispositivos de la biopolítica: la locura como excepción en la alianza entre la psiquiatría y el derecho penal Resumen: Este artículo aborda como la locura se tornó una excepción en el derecho penal, a partir de la entrada de la psiquiatría en el campo jurídico. Con el nacimiento de la psiquiatría, surge el procedimiento de examen, que articula el saber psiquiátrico a los mecanismos de control de la peligrosidad atribuida al loco desde el inicio do siglo XIX. Los teóricos de la psiquiatría buscaron incansablemente una marca biológica de la peligrosidad, posibilitando que la locura se volviera el blanco privilegiado de los dispositivos del biopoder. En Brasil, este pensamiento fue incorporado a la legislación que autoriza el mantenimiento de una sanción penal perpetua para el loco infractor. Los mecanismos de control se renovaron a partir del descubrimiento de los neurolépticos y de la reforma psiquiátrica. En el campo de la psiquiatría forense, los medicamentos vienen convirtiéndose en un recurso necesario en el tratamiento compulsivo definido para el loco infractor, suponiéndoles el garantizar el control de la peligrosidad, en detrimento de la responsabilización y de las singularidades. Palabras-clave: Loco infractor. Examen de cesación de peligrosidad. Biopolítica. Medicamentos. Responsabilidad. Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 98 Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 81-100, mar./ago. 2013 Romina Moreira de Magalhães Gomes AGAMBEN, Giorgio. Pontos cegos do ocidente: a zona morta da lei. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 mar. 2003. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1979. BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni de. Gênese do conceito de periculosidade. 2009. 186 f. 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