A pegada da épica céltica na toponímia galega

Transcrição

A pegada da épica céltica na toponímia galega
A p eg ad a
da épica céltica
na toponímia galega
p o r Hi g in o M a r t i n s Es t e ve s
C a p ít u lo 2 9 d o liv r o
AS TRIBOS CALAICAS
O ciclo do Ulster, conservado na tradição irlandesa,
abriga a memória da épica do antigo mundo céltico.
As suspeitas de Thurneysen e De Vries nesse rumo
ainda não ancoraram em documentos do continente.
Que estas notícias abram o caminho às pesquisas na
toponímia das outras Célticas da Europa.
(Em corpo 14 os textos que falam na épica.
Em corpo 12 o contexto não pertinente.)
A P EGA DA
DA ÉPICA CÉLTICA
NA TOPONÍMIA GALEGA
Na Terra dos *KWARKERNOI-QVARCERNĪ, entre Minho e Lima, Arcos de Valdevez e Cela-Nova
(Cap. 29 de AS TRIBOS CALAICAS. Em corpo 12 as partes não pertinentes, em 14 as que falam na épica.)
1. Notícias da tribo
a) Plínio III 28: “Simil modo, Bracarum XXIIII civitates CCLXXXV capitum, ex quibus, praeter ipsos
Bracaros, Coelerni, Calaeci, Equaesi, Limici, Querquerni, citra fastidium nominentur.”
(Do mesmo modo o [convento] dos Brácaros [tem] 24 tribos de 285.000 cabeças, das quais, além dos
Brácaros, cabe nomear sem fastio os Bibalos, Coelernos, Calaicos, Equésios, Límicos e Quarquernos.)
Sendo a lista quase perfeitamente alfabética, não cabe atribuir muita importância à vizinhança no texto
dos Límicos, mas de facto eram vizinhos, como se deduz doutras fontes.
b) Ptolomeu II 6, 46:
Κουακερνjν ~Υδατα Κουακερνjν
Quacernorum Aquae Quacernorum
(dos Quacernos [a vila das] Águas dos Quacernos)
Põe-nos junto dos Λουαγκjν (Luancos) e dos Λουβαινjν (Lubęnos), que a meu ver são a mesma
tribo com o nome diversamente transcrito.
c) A lápide de Chaves (79 d.C.) inclui-os em ordem alfabética: Quarquerni.
d) O Itinerário Antonino põe na via 18 (de Braga a Astorga) Aquis Querquernis (abl.-loc.).
Pois que a tribo medeia entre Aquis Originis (Banhos de Rio-Caldo, Lóvios) e Geminis (Sandiães para
os mais dos autores), cabe vê-la perto de São Joam dos Banhos, na beira destra do Lima, concelho de
Bande, dado que nos dá um ponto certo do território tribal. Sabemos as águas serem então geralmente
fronteiras, e logo vemos os Quarquernos entre Lima e Minho ao oeste dos Límicos, aos que pertencia
Geminis, a mansão seguinte.
e) O Anónimo Ravenate traz a forma corrupta Aquis Cercenis.
Estamos entre Minho e Lima, arredor de São João dos Banhos, logo estamos na Terra de Cela-Nova,
com meia comarca da Baixa Lima, com a Serra do Leboreiro e o oriente do distrito de Viana do
Castelo além do Lima. Aí é que esculcaremos.
2. Que nome agacha a grafia latina Quarquerni
Qual a forma original do étnico? Pedra de Chaves Quarquerni, Plínio Querquerni, Ptolomeu Cuacerni,
Itinerário de Antonino Querquerni, Ravenate Cerceni, apontam a *KWARKERNOI.
a) O fonema inicial era labiovelar. Não se vê possibilidade de fonema velar com uau.
b) As formas velhas e a local (Chaves) têm A na primeira sílaba. As outras harmonizam vogais.
c) A sílaba primeira tinha R implosivo. O texto ptolemaico é que alterou (Müller).
d) O segundo -quer- não era labializado, mas mera grafia latina do tempo em que -cer- já palatalizara. O
calaico, penso à lenição, contudo não fricativizava as oclusivas palatais.
Sói ver-se aí o lat. quercus, mas num endoétnico não é possível: o homólogo céltico era *(H)ERKU-1.
É possível uma tribo nomear-se por uma árvore emblemática (caso lémavo), mas aqui improvável. A
latinização rápida é incrível num nome que cifra o orgulho tribal. Um par de topónimos próximos
sugere outra via semântica, mas isso impõe um rodeio.
1
Conforme o nome céltico do bosque hiperbóreo, (silva) Hercynia (*HERKŪNIIĀ).
3. Longo percurso na procura do étimo: Serra do Leboreiro e Penagache
A toponímia galega não só regista religião e mitos; também pasmosas pegadas da epopeia
céltica guardada no irlandês Ciclo do Ulster. Thurneysen e de Vries viram o cariz pancéltico
do ciclo, mas a tese ainda não ancorara em dados continentais. Leboreiro é a velha forma de
lebreiro (lebrel, lebréu, lebré) “cão de caça”. Há aí uma raça de cão de pastor reconhecida,
mas é efeito secundário do topônimo; não há paralelos de uma espécie animal dar nome a
um território; nem os emblemas do poder (leão, águia) atingiram tal honra. Lembremos que
“cão” (cf. hoje lobo) foi no orbe indo-europeu metáfora-sinónimo do “guerreiro”, cf. alem.
Wolf, hisp. Lopo. Na proto-história os cães não só caçavam com os homens, lutavam a par
deles e eram muito estimados. Eis, para Jan de Vries2, a chave simples do nome do herói
do Ulster, CúChulainn “Cão de Culann” Os frades recopiladores da epopeia, influídos da
tradição bíblica, creram preciso justificar o nome, no Oriente injurioso, e idearam o festim
de Culann para conjurar o opróbrio insinuado. Na sincrética Europa cristã, o cão já não foi
considerado instrumento bélico, mas continuou honrado como auxiliar da montaria.
A vida breve é rasgo muito sublinhado no mito indo-europeu do herói. Na infância
defronta o dilema da vida breve gloriosa ou da longa obscura. O herói (Aquiles, Sigfrido,
CúChulainn) opta sempre o primeiro. A sociedade antiga condicionava os varões (que não
parem) para entregar a vida na defesa da tribo, oferecendo a glória em compensação. Os
moços lançados no ver sacrum eram adolescentes; daí em gaélico ser “cachorro” quase a
metáfora do herói, primeiro do guerreiro novo, depois de qualquer, mesmo velho: gaélico
ant. cuilén, mod. coileán (< *KOLIGNOS). O excurso por cães e cachorros teve por intuito
levar-nos ao monte Penagache, um dos mais altos e o mais central da Serra do Leboreiro.
Porque Penagache vem certamente do latim vulgar *Pinna Cattuli “a pena do Cachorro”.
4. A respeito de Cattulus e Cachorro (só para escrupulosos)
O valor do étimo de Penagache faz-me insistir. Copio parte do contributo ao III Congresso Internacional da
Língua Galego-portuguesa na Galiza3 que não saiu nas Atas, que foca O Mistério do Gato.
As interjeições de estrutura complexa têm origem léxica, depois opacada. Nos Cantares de Rosalia temos
gache!, gáchi!, para afugentar gatos. Gache! está em Sarmento (ColVFG, p. 252) e o carácter galego geral
reflete em todos os vocabulários. Há variantes: gáchi!, gáchis!, gach! Se se tenta dar com o étimo, surgem
poucas formas. Ao cabo fica *gattuli, similar ao gattula de Oribásio (= “•τταγην = francolim, galinácea),
var. f. de *cattulus, étimo pacífico de cacho(rro). *Cattulus é forma vulgar, afetiva, de catulus “cachorro,
cria animal; cria de cão, cadelo”. Na interjeição *gattuli era o nominativo pl. (por gattuli hic sunt!) para
acautelar circunstantes, que a par escorrentava a turma felina. Ao opacar-se, depois de interjecionalizada,
só ficou o afugentamento. É *gattuli diminutivo de gattus-cattus “gato”? Ordenemos separando questões:
a) A alternância latina C-/G- dá-se em vozes de origem forasteira. O latim virava para G as oclusivas
prepalatais surdas doutras línguas, fonologicamente não homólogas das próprias velares surdas: célt.
K’ALLAIKOS > καλλαικός, gallaecus. Isto sugere catulus ser empréstimo (o que não é provável) ou ter
sido reputado tal, opinião mais verossímil.
b) A geminação de *cattulus, que é hipocorística, expressiva, de função próxima da dos diminutivos,
pelos sentimentos que as crias suscitam. É fenómeno que explica muitos casos: a alternância kalaikoskallaikos e a génese do sufixo proto-românico -itto-.
c) O significado original de catulus. Cf. Ernout Meillet, antes foi “cria de animal em geral” e só depois,
sob a influência paretimológica de canēs, -is, passou a ser “cria de cão”.
d) A etimologia de catulus. Incerta (Ernout-Meillet), descarta-se elo com canēs. A meu ver, canēs vem
da raiz *ken- “novo, jovem”, e não de *kwon- “cão”, e catulus seria diminutivo só de leve anómalo.
2
3
Jan de Vries, Heroic Song and Heroic Legend, Oxford University Press, Londres, 1963, pág. 74.
Celebrado em Vigo, em Outubro-Novembro 1993.
Tornemos ao elo de *gattuli e gattus-cattus “gato”. Lecoy, tratando do nome de peixe cast. cacho “barbo”
(DCECH I, 729, n. 6), cria o seu étimo *cattulus ser diminutivo de cattus “gato”. Coromines descrê disso
por ser cattus tardio e o sufixo arcaico. É; mas, insistindo no elo que a realidade de gache! instala, cabe
perguntar que é o que acontece ao inverter os termos e considerar cattus derivado regressivo de *cattulus?
Lembre-se catulus e *cattulus ser “cachorro” e “cachorro de cão”. Sabe-se os pequenos mamíferos ignotos, quadrúpedes, penugentos, a falta doutro receber o nome de “cadelinhos, cãozinhos”. O gato doméstico,
trazido da África nos últimos séculos antigos, exótico, bem pôde receber o nome *cattulus, com valor de
“cachorro” (o primeiro contacto doméstico sói ser com crias), ou de “cadelinho”, ou com os dous unidos.
Gache! (< *gattuli) reforça a atribuição e a sequência catulus > *cattulus > *gattulus > gattus (cattus).
Das outras etimologias de gato, nenhuma é firme. Indo-europeia não há. Fala-se da céltica, de africana
ou fono-simbólica. Esta não persuade; a africana, pelo berço provável do animal, busca apoio em formas de
línguas do continente que ao cabo podem vir do latim. A céltica funda-se na antiguidade das formas insulares, que vêm dalém do séc. V. Mas, sem elo indo-europeu, torna a incerteza da língua donde se tomou.
Mas cabe lembrar que a alternância da oclusiva inicial aponta a origem extralatina das vozes envolvidas,
e é aí onde o factor céltico tem algo a ver. Coromines aponta agudamente a abundância de catu- “combate”
em antropónimos bimembres ter gerado no céltico hipocorísticos (redução a esse só membro e geminação
expressiva do -T-), com efeito registados: o mais claro é Cattos, de Caturix (“rei do combate”), paralelo a
Eppos, de Eporēdorīx (“rei das carreiras de cavalos”). A importância de Cattos transparece no germ. Chatti.
Havia afins, como Cattonios, mas é mais importante Cattos, antropónimo familiar e afetuoso, que arrastava
algo do valor “agressivo” a par do tom carinhoso. Por força, em terras bilíngues, o antropónimo enredava-se
na forma latina similar: cattus, de *cattulus, na que se sentia uma desinência diminutiva. Ao crescer na casa
a cria felina e por sua vez ter crias, passou a cattus por falsa regressão. Antropónimo céltico e nome latino
não se fundem imediato; nas terras bilíngues influíram-se paretimologicamente nos dous rumos. O lat. cattus
“gato” soaria folclorização fabulística do animal, com o harmónico “aguerrido” do antropónimo céltico, e
este, Cattos, antes de perder-se, cobraria matizes “felinos”.
A nota “aguerrido, agressivo” vai com a índole do gato. Apesar de catus ser latim vulgar, ao passar pela
paretimologia Cattos, cobrou a pronúncia prepalatal surda da oclusiva inicial da voz céltica. O sotaque céltico era oportuno em voz popular e expressiva. Daí a bifurcação: onde a fonologia latina antiga prevalecia, o
C- prepalatal surdo passou a G, como dizem Ernout-Meillet; às avessas, onde o latim pesava menos, a mor
parte das Gálias, o C- velar latino foi substituído de todo, em latim, pelo prepalatal, ficando logo surdo.
Cattus-gattus tinham a par de si os “diminutivos” *cattulus-gattulus, dos que era velho o primeiro, o
lídimo primitivo; o segundo, variante de *cattulus gerada por simetria com os “positivos”. A realidade de
gattulus, além do nosso gache!, prova-a o gattula de Oribásio.
Cattus-gattus era o felino doméstico (e antes o montês), e por assimilação outros seres, mesmo aves.
*Cattulus-gattulus servia para as crias... do gato, do cão e de quanto animal quis vir emaranhar o embrulho.
É o só jeito de entender o cúmulo atrapalhado de dados que a questão levanta. Que não acaba nestas palavras.
No DCECH I, agachar, vejo Sainean ter visto há muito, em estudos que não vi, os nexos de cattulus-gattulus
com gacho, agachar. Cuido serem claros, mas quadra revisá-los, por não ser opinião comum. O étimo
vigente de agachar (coactāre, frequentativo de cogere), apesar de pacífico, não lhe vai às línguas hispanas,
como nota Coromines. As incoerências vão-se ao vê-lo vindo de gacho, adjetivo antiquado para “abaixado,
inclinado para abaixo”4, como em castelhano, que dantes seria “pequeno, que não levanta do chão” e, como
substantivo, “cachorro”. Gacho será variante de cacho, ao que não sabemos se pôr asterisco. Que o galego
gacho se une a cacho, sabe-se pelo arag. cacho, cat. catx, e outros com o valor de “penso para abaixo”.
Coromines cria o cast. gacho ser deverbal de agachar, por documentar-se depois. A dificuldade resolvese com as mesmas razões por ele arguídas para explicar o também tardo primeiro documento de agachar:
carácter expressivo-popular, em voz não própria da língua escrita formal. Este cariz era mais forte no nome
que no verbo derivado, abstrato, no que a memória da cousa, o cachorro, era mais fraca, o que fez precoce a
entrada na escri-ta. Isto supõe a existência primitiva de gacho “cachorro”, não registada mas verossímil.
Agachar seria no início “fazer-se *gacho; fazer-se pequeno”, “esconder-se”. O valor atual é “inclinar-se
para abaixo; encolher-se; ocultar-se; esconder-se”. (A)cachar “esconder” não se pode separar. A opinião
geral tira-o do fr. cacher, que viria do lat. *coacticare. Não entramos nesta etimologia, composta para suster
4
Hoje só galego, com o valor do cast. (decerto por influxo deste, mas apoiando, não emprestando). Gacheiro
(Lugo e NE brasileiro), de gacho, nota a existência antiga. Port. gacha “rede” é outra testemunha.
a autoctonia do verbo francês. O certo é que parecem mais próximos os dous verbos galego-portugueses,
fónica e semanticamente, o que tolhe separá-los. Não é casual a equação com caçapo-acaçapar. *Gachoagachar seriam antes “cachorro” e “fazer-se pequeno e invisível qual cachorro”; caçapo-acaçapar são
“cria de coe-lho” e “fazer-se pequeno e invisível como um caçapo”.
Daí virão cacheiro “que se oculta”; São Jurjo de Piquim gacheiro “pessoa ou animal pequeno que cabe
em qualquer parte”; NE Brasil gacheiro “agachado, acaçapado”, Paraíba “estreito, apertado”; cachear
“buscar, registar na busca do oculto” (antes “buscar o *cacho oculto”). Agregamos duas palavras à série:
o castelhano gachas “papas” e o português cachaça. Aquele alude às papas “com mais líquido que farinha”,
farinhas gachas, pousadas no fundo. Cachaça é “aguardente feita de borras do melaço”; chave é borras
“fezes, sedimentos, o que vai ao fundo”. Cachaça “bebida feita de *cachos ou *cachas” supõe um sinonimo
preliterário de borras, ou mera variante antiga do desusado gacho: borras *cachas.
Fora derivados de *cacho-*gacho, vejamos outro fóssil próximo de gache!: a interjeição cache! para
afugentar porcos, do lat. *cattuli. O porco é velho conhecido dos indo-europeus; o gato, um recém-chegado.
Daí opor-se as iniciais de *cattuli-gattuli. Aludir à espécie com o nome para as crias cuido eu que acusa o
interesse dominante nos leitões e a deriva para os nomes destes na designação da espécie, cf. Benveniste. É
possível na família alguns sobejar e muitos outros faltar ao encontro, mas importava atacar a questão, que
lá longe Sainean descobrira e nós desenterramos ao topar com o húmil gache!
Cabe destacar o valor dos dados galego-portugueses para resolver o resistente problema etimológico,
que atinge muitas línguas. Aliás, dá confirmação da importância das interjeições, fósseis linguísticos, para
penetrar zonas aliás inacessíveis. Além disso, caso de dar certa a hipótese, nova luz ilumina um grupo de
outras palavras aparentadas, básicas, do âmago do idioma, qual agachar. O progresso logrado a partir da
palavrinha obrigaria a revisar casos até agora supostamente ligados com o nosso, mas que não se lhe
podem vincular (salvo que tomassem do nosso): refiro-me ao fr. cacher.
5.
As contorções do Cachorro
O herói central da epopeia pancéltica na tradição gaélica é Cú Chulainn “Cão de Culann”
(*KŪ KALUNĪ “Cão de Kalunos”)5. Culainn-KALUNĪ pode não ser pancéltico; *KŪ sim é.
Recebia outros nomes, como *KOLIGNOS “cachorro”. É estoutro, doutra tradição: Setanta,
antes de receber o de Cú Chulainn. Setanta6 vem do nome dos Setantii, célt. *SETANTIOI,
os moradores do britano Lancashire. A epopeia tinha muitas tradições; uma delas fazia-o
vir dessa tribo. Não imos narrar a epopeia; só farejar o rasto na terra dos *KWARKERNOI.
Um rasgo de CúChulainn é de vertiginoso aarcaismo, a riastrad “contorção”7, que lhe vinha
ao entrar em fúria. O exagero mítico do fenómeno tem clara impronta arcaica. Atribui-selhe origem indo-europeia, mas só a tradição hibérnia conservou a sua memória.
a) Eriçava-lhe o cabelo.
b) Um fio de negro sangue, alto qual mastro de navio, brotava-lhe do coruto da cabeça.
c) Sumia-lhe um olho (um grou não poderia picar-lho); o outro saltava-lhe na face.
d) Outros pavorosos câmbios ocorriam nos seus membros (costas, braços).
e) Brotava-lhe da testa o lón laith. Para alguns a “luz do herói”, uma luz da testa, mas
os textos descrevem-na como uma pedra de amolar brotada na fronte.
Uns rasgos são claros, outros obscuros. Dos cabelos hirtos dizem que, a abalar-se uma maceira riba deles, cada cabelo pungiria uma maçã; moedas da Gália mostram a cena. O olho
5
*KALUNOS lê-se em inscrições ogâmicas. Do tema *KALU-/KALLU- “testículo”; do próximo *KALLUKOS vêm
vozes célticas para “verrão; garanhão” (gaél. cullach, br. calloc’h).
6
Às vezes Sétanta (*SĒTANTIOI), por paretimologia de sét “caminho” (< *SENTUS m.). O mero SETANTIOI pode
vir da raiz *sē- “longo; tarde”, aqui com o valor de “longos, lançais”.
7
De *RĒXSTRATUS, nome verb. de riastr- “(con)torcer” (< *RĒXSTRA-), v. denominativo do nome *RĒXSTRO-,
não testemunhado em gaélico; sim em brit. (galês rhwystr). Para Vendryes, da raiz ie. *reig- “tirar, torcer”.
único arremeda o do divino pai Lugus ao entrar na batalha. A luz do herói seria a fereza do
olhar ou, melhor, um falo frontal que algumas estatuinhas gaulesas mostram. O que importa
mais é o fio de sangue, talvez imagem da pressão sanguínea. Este rasgo pré-histórico assoma também no tufo ou crina dos capacetes da mor parte dos povos de língua indo-europeia,
sobretudo os remotos: povos do mar, hetitas, micénicos, romanos, etc. Tal rasgo, familiar
na leitura da Ilíada, não teve a devida atenção. Não nota condição equina; procura plasmar o
rasgo da ira terrível do guerreiro em transe de posse bélica.
6.
Etimologia de Quarquerni-*KWARKERNOI
Fora quercus, vamos ao céltico, a língua autóctone. A consultar o conhecido, no gaélico
ant. há várias palavras, parentes entre si, que se parecem com o étnico: coirce, cuirce “tufo,
cresta”; cairche “pelo, crina da cauda”; corc “cabeleira”; cur[c]ach “espécie de penteado”
(hápax); e enfim currac “capuz”. Fala-se na origem ignota. A reconstrução tem incertezas,
sobretudo no cariz labiovelar ou das oclusivas, que se pode discernir pela comparação ou o
rasto de colorido das vogais contíguas. Apoiamo-nos visto *KWARKERNOI.
Coirce, cuirce “tufo”, de *KWARKIO-. Daí cuircec “de cresta de cabelos (< *KWARKIKKO-).
Cairche “crina da cauda; flama” (var. cairce, primitiva ?); de *KWARKIO- sem labializar.
Derivado cairc(h)ech adj. “cabeludo” (< *KWARKIKO-), subst. “cauda, tufo” ( *KWARKIKOS).
Corc “cabeleira”, de *KWARKO-.
Curach “penteado”, mod. corrach “id.; cresta”, de *curcach (O’Rahilly), de *KWARKĀKON.
Daí o não antigo curracach “cucullatus”; se fosse antigo, fora *KWARKĀKKĀKO-.
O grupo é coerente, no formal e semântico. Baseia-se no ant. *KWARKO- “tufo, cresta,
cabeleira ostensível”. O adj. arc. *KWARKIO- fez-se substantivo; sucedeu-o *KWARKIKO-.
Virá da raiz indo-europeia *kwer- “fazer (aparecer)”, relativa à magia das formas (lit. këras
“magia, encanto”) e ao espetacular (gr. τέρας “prodígio, monstro”). O célt. *KWARKO- “tufo,
cresta no coruto” virá do ie. *kwerko- “que é feito aparecer; que se mostra”.
Alumia *KWARKERNOI? É, seria *KWARKERINO- ou *KWARKERĒNO-, de *KWARKERO-,
coletivo ou abstrato de *KWARKO-. Seria “os dos (capacetes ornados de) tufos, de tufos a
figurar o negro sangue que se eleva do coruto da cabeça” 8. A tribo sentia-se identificada
com o herói pancéltico, o Cachorro de terrível ira. Não acabam aqui os rastos da epopeia.
7. Limite ocidental
Situada Aquis Querquernis, vimos o linde norte no Minho, o sul no Lima. No oeste a raia ia pela estrada
portuguesa 101. Justo na metade sul dessa raia era fronteira antiga o rio Vez, cujo curso vai quase todo de
norte a sul, salvo no breve trecho inicial, que vai de leste a oeste. Onde vira há o lugar chamado Extremo,
que firma a fronteira. Ao norte de Extremo, nasce um regato do que não sei o nome, a correr ao norte e desaguar no Minho ao oeste de Monção. Aí iria a raia antiga. Portanto, a terra tribal abrangeria no oeste todo o
concelho de Melgaço, quase todo Monção (até o regato) e quase todo o concelho de Arcos de Valdevez. O
nome mais grado é Vez. Os nomes dos rios calaicos eram epítetos da deusa, temas em A, ou genitivos de
temas em O (Sor < *SORĪ, Cabe < *Capī, Sil < *SĪLĪ, Eu(ve) < *ALBIĪ).
8
“Tão alta, grossa, tão forte, potente e tão longa qual o mastro dum grã navio era a reta corrente de negro sangue
que se erguia do mesmo coruto da cabeça e virava em mágica névoa, fusca qual o fumo dum palácio ao vir um rei a
ser atendido na tardinha dum dia de invernia.” (Táin Bó Cualnge, cf. Livro de Leinster, ed. de Cecile O’Rahilly, Dublin
Institute for Advanced Studies, 1970, linhas 2290-2294).
É o caso do Vez. Não é o lat. vix “vez”, sem senso; nem o célt. *WĒXS “clã”, cujo genitivo
*WĒKOS daria *vegos. Dous *WĒKOS homófonos há: “dívida” e “corvo”. Vários nomes tinha
o corvo: o principal era *WĒKOS (gaél. fiach); *BRAN(N)OS, o mais velho. Vez foi o g. *WĒKĪ
“(rio) do Corvo”. Corvo e lince eram teofanias de Lugus, deus-rei. Lugus é “Lince”, mas era
corvo também. O Pseudo-Plutarco narra a fundação de Lião: ΛοØγον τÎν κόρακα καλοØσι
“(os gauleses) chamam a Lugus o Corvo” 9. É coerente? Lugus era o pai do Cachorro.10
8. Limite oriental
No leste abrange a Terra de Cela-Nova e a Baixa Lima ao norte deste rio, com precisões a fazer. Correria
a raia (silvosa) pelo Minho até a foz do Arnoia, remontando este depois, provavelmente até a foz do Sorga
(< *SORIKĀ “a do fluxo, corrente”) e do Orilhe (< *ORITLĪ “do pequeno linde”). No Monte de Bande a raia
vira incerta. O regular seria pô-la no rio Cadões, mas é difícil deixar fora o concelho de Bande, sempre
unido aos Banhos. Terra de trânsito talvez, terra de ninguém pensa para os quarquernos, mais montesinos
que os límicos. Goim [guĩ] (< *GONI “matança, batalha”) já será límica. O adjacente Trarigo virá de *TRĒRĪGON “através dos reis” ou *TARES-RĪGON “além dos reis”. Nem sei destes reis, nem é certa a tradução:
*TRĒ e *TARES eram preposições de acusativo; aqui com regime de advérbios; no céltico tardo não seria
inusitado. Abrangeria os concelhos de Cortegada, beira sul do rio Arnoia no concelho de Arnoia, Gomesende, Ramirãos, Cela-Nova, Ponte-Deva, Padrenda, Quintela de Leirado e Vereia, que em geral fazem
parte da Terra de Cela-Nova. Também entram os concelhos da Baixa Lima, ao norte do rio, todo Entrimo,
a fita norte de Lóvios, Lobeira e a mor parte de Bande.
9.
Ainda mais aspectos cânidas: Quinjo, Lobeira, Penagache
A raia entre Entrimo ourensano e portugueses Melgaço e Arcos de Valdevez vai no Leboreiro,
rio nado entre a Serra do Leboreiro e Castro Leboreiro. Em Entrimo, a par do rio Leboreiro
é o Monte (do) Quinjo. Se Leporarius é latino, Quinjo-*KUNISIOS ou *KUNĒSIOS “canino” é
céltico e resgata a voz que Leporarius traduz. O concelho de Lobeira, na aba leste da Serra do
Leboreiro, foi Luparia. Alhures Luparia é a deusa como Deusa do Mundo Inferior; Leboreiro
e Quinjo aqui dão contexto a Lobeira e o valor não é “Loba”, mas de “(Terra) do Lobato”.
Penagache foi o vulg. Pinna Cattuli, mas o perfil céltico de “Pena do Cachorro” justifica
buscar o texto local que veio traduzir. Já víramos uma palavra para “cachorro”, *KOLIGNOS
(> cuilén > coileán). *KANAWŪ, -WONOS também era “cachorro; herói”; deu o gaél. cana,
cano e galês médio ceneu, galês mod. cenau, pl. cenawon, igual valor. Quanto a pinna, talvez foi escolhido pela proximidade fónica de célt. BENNĀ “pico, cume; pináculo; corno,
ponta; ponta de lança”11. Logo Pinna Cattuli > Penagache será tradução do célt. *BENNĀ
KOLIGNĪ ou *BENNĀ KANAWONOS. A Serra do Leboreiro era *MONIOS KUNISIOS.
9
Pouco dá que o escritor grego o chame LŪGOS, com tema O, em vez do reto LUGUS. Trata-se dum forasteiro que
não conhecia o céltico, salvo por referências. Daí a confusão de tema. OY era obrigado por já soar I o ipsilo.
10
Na Táin, CúChulainn, canso e ferido na solitária defesa do Ulster, vê vir um homem feito e alto, de cabeleira
loira riça, manto verde e fivela de prata branca, com escudo negro de umbo de bronze branco e lança de cinco pontas.
Ninguém lhe fala, nem ele se dirige a ninguém, qual se no arraial das quatro partes da Irlanda não o vissem. “É um
dos meus amigos dos sidhe que vem a condoer-se do meu sofrer.” Ao chegar aonde CúChulainn, falou-lhe e doeuse dele. “És bravo, CúChulainn!” disse. “Não fiz nada fora do comum” disse CúChulainn. “Venho ajudar-te” disse
o herói. “Quem és?” disse CúChulainn. “Sou teu pai dos sidhe, Lug mac Etlenn.” “Pesa-me o sangue e preciso
cura.” “Dorme agora, CúChulainn” disse-lhe, “em fundo repouso em Ferta in Lerga por três noites e três dias; no
entanto lutarei por ti contra os exércitos.” A cena lê-se só na Táin do Livro Amarelo de Lecan e do Livro da Vaca
Parda (Lebor na hUidre), mais velha e breve que a do Livro do Leinster.
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Só difere na sonoridade da oclusiva inicial, porque o E breve céltico fechado se identifica com o I breve latino aberto.
BENNĀ documenta-se no Cantobennicus mons (Gregório de Túrones, Hist. Franc. II, 21), Bennācus, perto do lago
10. Miscelânea de toponímia fluvial
Minho terá o grau zero de *mei-/moi-, que fala no intercâmbio. No proto-gaél. era *MOINIS f. “tesouro”; em
britónico, *MĒNO- “riqueza” (ie. *mei-). *MINO-, zero, “riqueza, tesouro” deu o adj. Minios “do tesouro”.
Lima foi LIMIĀ, com grau reduzido da raiz ie. *lēi- “fluir” e suf. -MĀ. LIMIĀ é adjetivo do subst. LIMĀ
“fluxo”, que vive no minhoto água de lima “água corrente de lameiro”12. LIMIĀ seria “a (deusa) do fluxo”.
Orilhe virá de *OROS “borda”, de origem obscura. Há incerteza por na beira ter uma aldeia nos mapas
chamada Ourilhe. Flutuação similar à de ourela? A desinência céltica de diminutivo -TLO- é homóloga
da latina -culu- e por força convergiram.
Interessa Cadões, afim a cadoiro (*caditōriu-) e queda (*cadita; *caditu- por cāssu-). Logo cadões foi
o vulg. *caditōnes “cascatas”. É rio e lugar. Entrimo foi *INTERAMMION “entre rios” (Coromines); um
de muitos, decerto não o da Pedra de Chaves.
O Deva é DĒWĀ “deusa”. Os montes a leste são Serra da Moura num mapa atual, o de Fontão diz-lhe
Silva Obscura. Um nome fala na deusa (moura = antiga e pagã), o outro nota a raia, usualmente silvosa.
Por Vereia, Cela-Nova e Ramirãos, o Tunho vai dar no Arnoia. Virá de *TUNNION “(rio) dos odres”,
genitivo do pl. de *TUNNIO-, adj. de *TUNNĀ “pele” (< *tondā, raiz ie. *tend- “cortar”), homófono de
*TUNNĀ “onda”, de origem controversa mas decerto diversa.
11. Centros
Aquae Quarcernae (Ptol. ~Υδατα Κουα[ρ]κερνjν, Itin. Aquis Querquernis), em São Joam dos Banhos de
Bande, traduzirá *LOUTRĀ KWARKERNĀ. Diz-se tomar banho ou tomar as águas, duas tradições de verter.
Banhos está perto de *LOUTRĀ, latinizado lautra, a forma registada. De marginal passou a central pela via.
Castro Leboreiro, em Melgaço, assinala um castro e já vimos Leboreiro ser tradução.
É lícito tentar o resgate da forma que Castrum Leporarium veo traduzir. Víramos Quinjo
vir do adj. *KUNISIO- ou *KUNĒSIO- “canino, cânida”. Se buscamos o nome específico de
“cão de combate ou caça”, aqui mais próprio, nas neocélticas temos formas aptas: gaélico
árchú, g. árchon, e galês aergi, do célt. *AGROKŪ, AGROKUNOS, composto de *AGRON13
“carniçaria, perseguição” e *KŪ, KUNOS “cão”. Se Castro Leboreiro é “castro do Lebrel ou
Cão de caça”, não “Castro Canino”, dantes seria *AGROKUNÓBRIXS. Pela posição central
e sentido, Castro Leboreiro-*AGROKUNÓBRIXS pôde ter sido o centro político da tribo.
Entrimo é “entre rios”, o que fala dos rios Agro e da Montanha. Chegou a Entrimo por *Entereimu, de
*Enterämmiu, que foi o calaico *INTERAMMION, e antes *INTERAMBIOM.
Em Cadões, na raia tribal, achou-se lápide que nomeia a gentilidade-clã dos Acondei
(por Accondii, *AKKONDIOI14) e seu Castello Meidunio (abl.-loc. sg.). Este agacha um célt.
*MĒDÓNION, talvez *MĒDONIÓBRIXS. A grafia EI tenta notar vogal longa, no tempo latino
em que estas caducaram. São tentativas hesitantes; quer notam Ī (seilensis por sīlēnsis), quer
Ē, como talvez aqui. Ponho O céltico fechado por U latinizado aberto. Que significará?
de Garda; no gaél. benn “pinna”, usado em topónimos para “cume” (Benn Étair “Howth, Dublin”; galês médio bann
“id.”, também toponímico (Y Bann, Bannau Brycheiniog); br. bann; prov. banno “corno”, topónimos La Banne. O
gaulês teria os dous tratamentos vocálicos, benna e banna (< *bhend- e *bhnd-). Céltico-germânico.
12
No cap. 30, dos límicos, chegamos a outro resultado.
13
Da raiz ie. *ag- “conduzir” no matiz “empuxar; perseguir”. Coincide o tema lat. e gr. agro- “campo” e remotamente daí vêm todos. O tema greco-latino foi antes “lugar ao que se conduz o gado”. O céltico é “carniçaria, perseguição” do sentido inicial de “perseguição venatória; caça”. Depois também “combate”.
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De AD- intensivo, KOM e raiz *dhē- “pôr”, e valor “de muitos parentes”, cf. gaél. cundu “parentesco, consanguinidade” (< *KONDIŪ, KONDIONOS) e scr. sandhi “união”. *KUNDION- coletivo supõe *KUNDIOS “coabitante,
parente”. Acondei tem tratamento latino regular do encontro I vogal e I semiconsoante, cf. lancea, de *LANKIIĀ.
O ant. gaél. miad n. (*MĒDON) era “orgulho, altivez, pompa exterior”, “honra, dignidade
(fama objetiva)”. Pela semântica difícil, acrescento lat. fastus: “Oppidum do Orgulho”. Mas
a etimologia indo-europeia, que a tem, não é fácil. Porque a raiz ie. *(s)mei- “rir” é também
“sentir-se superior”. É semanticamente complexa como o riso é 15. Em céltico e sânscrito
(extremos na geografia lingüística) subsistiu o valor subjetivo; noutras línguas, o objetivo.
É hipótese de Pedersen16, que aduz, dum lado, gr. μειδιάω “eu rio”, φιλο-μμειδής “risonho”,
letão smaida “rir”, eslavo ant. smíjate sę “rir”, ingl. smile, e scr. smáyate “ri”, e, doutro, scr.
smayah “arrogância, orgulho” e ví-smayate “vangloria-se, mostra-se arrogante”.
Há outros testemunhos célticos da raiz, na variante apofónica (s)moi-: o tema verbal gaél.
moid-, também com -d-, “louvar, proclamar” (freq. reflexivo, “louvar[-se]” = ”proclamar a
superioridade [própria]”), “ameaçar, reprochar” (“proclamar superioridade própria acusando
a inferioridade do interlocutor”).
Cuevilhas diz que perto de Cadões (logo do Castellum Meidunium), há um castro dito
a Coroa, que inda no séc. X diziam Castro de Vemes. A meu ver é próximo de *MĒDONION
e talvez se possa deduzir a forma antiga. A desinência -es é quase sempre fruto do ablativolocativo plural latino dos temas em O ou A. Aliás, Ve- pode ser a preposição e prefixo célt.
WO (< *upo), que no céltico hespérico dissimila em WE, cf. celto-lat. verēda e *WEÞANTION
> Betanços. A Coroa está próxima de *MĒDONION, pode conter o tema *MĒDO-. Proponho
um céltico-latino *Vemēdīs, cujos detalhes escapam. Seria oxítono, *Vemês, antes *Vemêes.
WO, WE, preposição de acusativo e de ablativo, deixa supor várias bases: *WE-MĒDŪS (ac.
pl.), *WE-MĒDON (ac. sg.), *WE-MĒDOBO (abl. pl.), *WE-MĒDŪ(D) (abl. sg.). Mas também
pode ser mero prefixo no tema, quer dizer, *WEMĒDON; isto é provável. Não sei a situação
da Coroa, mas arrisco-me a supô-la sita ao norte do Castellum Meidunium: *WE-MĒDON “ao
norte do Orgulho”, com valor velho de Norte como “lugar inferior, oposto ao sol meridiano”.
Enigma é Quéguas, lugar de Entrimo. Conterá o tema KUN- no princípio, mas o final é
obscuro. Talvez *KUNÉWIKĀS, acusativo célt. de *KUNÉWIKES “clãs do Cão”, com o passo
de leuca-leuga para légua, trás a queda da postónica: *Cunéugas > *Cũeuas > Quéguas.
A incerteza não atinge o tema inicial, sita Quéguas entre o Quinjo e a Serra do Leboreiro.
Bangueses, em Vereia, parece étnico da repovoação, vindo de Banga, do Carvalhinho. Banga não cabe
neste capítulo, mas virá do célt. *BANDWIKĀ “a (vila?) de BANDWIĀ”, e deste epíteto da deusa também
vem Bande. Este será o genitivo lat. *Band(u)iae. O epíteto durou na Kalláikia e na Lusitânia todo o tempo
pagão, assimilado às Tutelae. Logo protetora da tribo, talvez com aspectos da primeira função dumeziliana.
Trado, do concelho de Ponte-Deva, interessa. Nem se refere a um trado gigante nem a um pequeno. O
lat. taratrum tomou-se do célt. *TARATRON, que com vocalismo analógico, vem da raiz *terĕ- “esfregar,
girar furando”. O topónimo vem duma raiz homófona que é “cruzar” e deu lat. trāns e célt. *TARES. Trado
15
A cultura baniu da consciência o facto antropológico do riso, essencial e complexo. Cabe defini-lo experiência
súbita e profunda de grata superioridade ou superação, perante o espectáculo de um mal percebido alheio, acompanhada de reflexos fisiológicos e cenestésicos. Se só os humanos rimos, sendo fenómeno irracional, será coto evolutivo de processo biológico em nós mudado. O lado físico (contrair músculos faciais, arreganhar dentes) nota ser
herança, fora de contexto, do arreganhar dentes do predador carnívoro ante a preia encurralada. Prazer, superioridade, mal externo, reflexos, tudo nota cariz arcaico. Tenho visto nojo visceral ante a explicação (não minha; de Hobbes)
ao ouvi-la por vez primeira. Vê-se ao riso cariz “humano e espiritual”. Pois sim, é, porque em nós o riso está libertado
daquele cenário restrito e pode aplicar-se a contextos mais amplos e variados, pode abstrair-se. Pode uma pessoa rir
de si mesma, o que nota inteligência; há sorriso doído, compassivo, humanista; há riso estulto do estúpido que se crê
superior; há riso sarcástico e cruel, mais perverso que animal. Há tantas quantas possibilidades de desenvolvimento
tem a condição humana. Mas, ao cabo, é grato sentimento de superioridade e libertação. Riam eternamente os olímpicos na Ilíada, que ao cabo eram vistos como super-homens isentos da condição mortal.
16
Zeitschrift für Celtische Philologie, Halle, XVII, 31.
está justo na beira do Deva e por ali passa o velho caminho que abeira o Minho pela banda esquerda. O feitio
exato do topónimo velho é incerto. Talvez *TÁRATRO-, que é provável apesar doutras possibilidades. O
sufixo de instrumento pode se referir a uma ponte, “aquilo que atravessa”.
12. Caracterização do território e da linhagem da tribo
É paradoxo que a terra hoje dedicada à preservação da natureza, portanto pouco povoada, fosse dantes a mais
densamente habitada: a Serra da Peneda e zona de Castro Leboreiro. Às avessas, as beiras do Minho e do
Lima, tão povoadas hoje, antes seriam espessa selva marginal. A lenda do Lima (Esquecimento ou Oblivio)
robora ao certo tal cariz. Disse-se Luparia ter a ver com cães bélicos, mas não cabe descartar o sincretismo
ao situar-se na beira do Lima. Aí há duas aldeias e um rio pequeno chamados Grou. Todo o mundo indoeuropeu via nesta ave o guia no caminho ao Além, como ensina qualquer manual de mitologia. O Arnoia
aflui ao Minho no concelho de Cortegada. Este, como vimos alhures, nota lugar de ensino druídico, logo
isolado e silvático. Cela-Nova foi também de facto um druidato cristão fundado por São Rosendo para se
purificar, ao jeito costumado na Idade Média, em sítios afastados e tranquilos. Se atina Fontão, pela beira
esquerda do Arnoia estava a Silva Obscura (que será a Serra da Moura).
A que ramo céltico pertenceriam os quarquernos? Não há bases para decidir, mas a fitar o forte acento
épico, arcaico, sem desconhecer cariz pancéltico à epopeia, talvez no futuro devamos conjeturar a filiação
halstática e goidélica, não gaulesa, a mais arcaizante.
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