Victor Exegese-Levítico25 8-17
Transcrição
Victor Exegese-Levítico25 8-17
SEMINÁRIO TEOLÓGICO SERVO DE CRISTO VICTOR LUIZ PINTO FONTANA MONOGRAFIA EXEGÉTICA: LEVÍTICO 25.8-17 SÃO PAULO, SP 2011 1. Análise de Detalhes 1.1 Contextos Literário e Histórico Falar em um contexto histórico para qualquer passagem do livro de Levítico é uma tarefa árdua quando se leva o trabalho a sério. O assunto passa por uma discussão de críticas da fonte e da forma para determinar a data de redação e a maneira como o escrito foi originalmente composto1. Embora, a intenção aqui não seja de entrar em detalhes sobre teorias documentais, não se devem ser omitidos detalhes que possam contribuir com a discussão. A posição aqui assumida de olhar para a Escritura da maneira como a recebemos e iniciar o trabalho exegético a partir do material que temos disponível. Assim, temos que o contexto é o do recebimento da Lei no Sinai, logo após a fuga do povo de Israel do Egito. Temos motivos para pensar assim, mesmo que fosse questionada a autoria do livro como sendo mosaica. Dizemos isto porque o próprio texto do livro de Levítico cita Moisés em diversas oportunidades como o recebedor das instruções de Javé para que fossem passadas ao povo. Assim, pensamos na comunidade judaica itinerante no deserto, ainda sem terra, mas com grande expectativa a respeito do cumprimento integral da promessa de um lugar para que o povo se assentasse. Estando no deserto, o tema central do livro é o da santidade. O texto responde à pergunta: Como pode um Deus santo habitar no meio de um povo impuro? Com esta tônica, o autor investe boa parte da legislação estabelecendo regras sobre pureza e impureza. É neste contexto que ele desemboca no capítulo 25, colocando-o em meio a uma série de mandamentos sociais que são aceitos como o Código de Santidade. As ordens de Javé naquele trecho envolvem padrões éticos que vão desde hábitos sexuais e conjugais até relações econômicas. A maneira como a legislação se configura faz um contraponto, essencialmente, às marcas culturais encontradas tanto entre os egípcios, que o povo acabara de abandonar, quanto entre cananeus e habitantes da mesopotâmia, com quem os israelitas estavam prestes a fazer contato2. Destas manifestações contra-culturais, o Ano do Jubileu é certamente uma das mais impactantes. Nas civilizações da Antiguidade Oriental, as terras eram não apenas propriedade de poucos, mas também definidoras de classes, não sendo raro, que fosse toda a terra de propriedade de um único monarca. Aqui, não apenas todos têm direito à terra, mas a legislação tenta fazer com que a terra fique distribuída sempre de maneira razoavelmente equânime. 1.2 Limites da Passagem O trecho entre os versos 8 e 17 do capítulo 25 de Levítico dão início à lei do Jubileu, que só termina no verso 55. Como uma subseção da lei, um parágrafo, a divisão parece ser bem estabelecida, como sendo a essência do que trata a lei e seu fundamento principal. Do verso 18 em diante, o discurso se torna direcionado para as implicações da lei, especialmente em seu aspecto econômico. 1.3 Análise Literária (Gênero e Sintaxe) Como no restante do livro, a literatura legal é o estilo adotado pelo autor. Nota-se alguma diferença entre o tipo de texto legal como o que estamos acostumados contemporaneamente, objetivo, com artigos e parágrafos. Assim, uma dificuldade inicial que pode ser enfrentada pelo leitor contemporâneo é que esta descrição da Lei não busca uma objetividade pura, como em uma legislação ocidental. Um bom exemplo disto é o paralelismo que se encontra de maneira mais facilmente identificável no verso 9: “Então façam soar a trombeta no décimo dia do sétimo mês; no Dia da Expiação façam soar a trombeta por toda a terra de vocês”, repetindo a mesma mensagem de maneira consecutiva, mas de forma diferente, trocando “décimo dia do sétimo mês” por “Dia da Expiação”. Esta característica mais poética do legislador deve se transformar de dificuldade em virtude do texto, que não apela para este tipo de estética por acaso. Diferentemente da objetividade fria de uma constituição ou de um código penal, a Lei aqui é carregada de uma emotividade que confere calor ao texto. É como se a redação tivesse sido feita para, na sua própria leitura, já proclamar libertação ao lado daqueles que tocariam as trombetas anunciando o Ano do Jubileu. 1.4 Palavras-chave Algumas das palavras presentes no texto dão boas dicas da mensagem que o autor procura passar. Elas também sugerem que o legislador não busca apenas a compreensão do leitor, mas parece que ele procura provocar algum tipo de sentimento ou sensação em quem lê a passagem. Semanas de anos. Esta expressão é a tradução mais comumente encontrada para o original shabbâth, mesma palavra usada para “sábado”, o dia do descanso. Aqui, faz referência ao ano do descanso, o Ano Sabático descrito no trecho imediatamente anterior a esta passagem. Trombeta e Jubileu. São duas palavras no hebraico. yobhel para Jubileu e shôphâr para trombeta. O jubileu é o chifre do carneiro, que poderia se converter em uma trombeta. O shôphâr é uma trombeta feita com o chifre de um carneiro. O uso repetido das duas palavras traz à tona que a libertação deve ser proclamada em alto e bom som. Libertação. Ou liberdade em algumas traduções. No original hebraico, d’rôr. Esta palavra aparece apenas aqui no Pentateuco. Aparece também em Jeremias 34.8 e Isaías 61.1, sendo apenas estas as oportunidades em que o termo é usado no Antigo Testamento. Em ambas as passagens nos profetas, o termo parece estar carregado de emotividade, fazendo referência a este próprio momento climático do Jubileu. Expiação. O Jubileu é anunciado no Dia da Expiação. A palavra pode ser também traduzida como satisfação. É o elemento substitutivo da redenção, o pagamento de uma dívida ou ofensa. O Dia da Expiação (Yom Kippur) era o eixo cerimonial sobre o qual gira o livro de Levítico, era o dia em que todo o povo era liberado da culpa de suas transgressões contra Deus. A dívida era paga. No ano do Jubileu homens, a exemplo de Deus, no Yom Kippur, perdoavam os seus devedores. 1.5 Problemas e desafios para a tradução As diferentes traduções desta passagem para o idioma português apresentam divergências majoritariamente estéticas ou de estilo, não havendo conflito de ordem semântica entre elas. Dentre estas diferenças destaco o uso de kâdash no verso 10. Algumas versões traduzem como “consagrem” e outras como “santificareis”. Claro, consagrar aparece exatamente com o sentido de santificar, mas pessoalmente, prefiro usar o verbo santificar, já que “consagrar” e “consagração” são termos que têm hoje, na língua portuguesa, um campo semântico mais amplo, podendo confundir o leitor. 2. Ideia central Com base no evento libertador do êxodo, Deus ordena o anúncio da libertação social e econômica, com a finalidade de não haver exploração ou dominação no meio de seu povo. 3. Esboço exegético O trecho fala da instituição do Ano do Jubileu, em que seriam contados sete Anos Sabáticos e, então, ao final de 49 anos seria proclamado perdão das dívidas e restauração das propriedades vendidas aos seus donos originais, em mais um ano de descanso. Aquele ano deveria ser sagrado, assim como um sábado, e nada deveria ser plantado ou colhido. Apenas o que a terra produzisse espontaneamente poderia ser consumido. Como a terra seria periodicamente devolvida ao seu proprietário original, o trecho orienta ao vendedor que estipule o preço da terra baseado no número de colheitas. Ou seja, se a venda é realizada em momento próximo da chegada do Jubileu, ela deve ter um preço baixo, porque restarão poucas colheitas antes que seja devolvida. Caso estivesse longe o Ano do Jubileu, o preço da propriedade seria mais alto. Por meio destas recomendações que regulam as principais transações econômicas de uma nação que viveria predominantemente da produção agropecuária, Javé estabelece sua vontade para a vida social na terra da promessa: que os judeus não explorem uns aos outros, mas que procedam corretamente, dando aos bens vendidos o valor devido e não levantando vantagem sobre situações que a Lei estabelecida possa proporcionar. O final da perícope, “mas temerás o teu Deus; porque eu sou o Senhor vosso Deus” (Lv 25.17), forma uma sequência familiar para o leitor de Levítico: “porque eu sou o Senhor, que vos tirei da terra do Egito”, que aparece em pelo menos sete oportunidades3. Além de proclamar a libertação da escravidão do Egito de maneira a não reproduzir o modelo na nova terra, a afirmação de Deus nesta recordação enfatiza que cabe ao judeu agir como servo na terra prometida, que é de propriedade de Javé. Ele a concede ao povo como suserano, Senhor da terra. 4. Comentário Exegético 4.1 Tradução Definitiva Lev 25:8 "Contem sete semanas de anos, sete vezes sete anos; essas sete semanas de anos totalizam quarenta e nove anos. Lev 25:9 Então façam soar a trombeta no décimo dia do sétimo mês; no Dia da Expiação façam soar a trombeta por toda a terra de vocês. Lev 25:10 Santifiquem o quinquagésimo ano e proclamem libertação por toda a terra a todos os seus moradores. Este lhes será um ano de jubileu, quando cada um de vocês voltará para a propriedade da sua família e para o seu próprio clã. Lev 25:11 O quinquagésimo ano lhes será jubileu; não semeiem e não ceifem o que cresce por si mesmo nem colham das vinhas não podadas. Lev 25:12 É jubileu, e lhes será santo; comam apenas o que a terra produzir. Lev 25:13 "Nesse ano do jubileu cada um de vocês voltará para a sua propriedade. Lev 25:14 "Se vocês venderem alguma propriedade ao seu próximo ou se comprarem alguma propriedade dele, não explore o seu irmão. Lev 25:15 O que comprarem do seu próximo será avaliado com base no número de anos desde o Jubileu. E fará a venda com base no número de anos que restam de colheitas. Lev 25:16 Muito os anos, preço maior, poucos os anos, preço menor, pois o que ele está lhes vendendo é o número de colheitas. Lev 25:17 Não explorem um ao outro, mas temam ao Deus de vocês. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. 4.2 Comentário 8-9. A primeira Lei relativa ao trabalho dada no Sinai faz menção justamente ao sábado e, consequentemente, ao descanso. De certa forma, todas as festas descritas nos capítulos anteriores do livro têm algum tipo de relação com o trabalho e com a terra, já que obedecem um calendário ordenado pelas colheitas. Contudo, os que se apresenta a partir do verso 8 do capítulo 25 é o primeiro – talvez o central – código que regula as relações sociais de trabalho na sociedade israelita. De acordo com o texto, que logo antes descrevia o Ano Sabático, sete semanas de anos seriam contadas, ou seja, depois de sete anos sabáticos, haveria mais um ano de repouso. Um ano em que nada seria plantado, nem colhido. O povo deveria comer aquilo que crescesse naturalmente ou o que fora estocado em anos anteriores. Algo como o ano sabático dos anos sabáticos, num descanso ainda mais amplo do que aquele já radical proposto nos sete primeiros versículos do capítulo 25. Para entender o contexto, é necessário lembrar que era comum que os trabalhadores rurais, já próximos da marginalização, passassem por eventual dificuldade financeira. Isto se transformava em uma dívida, que, se não fosse paga com dinheiro, deveria ser redimida com trabalho, fundamentando a escravidão por dívida. Outra situação comum era que uma pessoa para quitar ou pagar parte do débito arrendasse sua propriedade. O descanso mais amplo é o perdão de todas estas dívidas. O fato de esta legislação centralizar-se sobre o shabbâth, na figura textual das semanas de anos, deve trazer uma série de implicações à interpretação do texto que se segue. A primeira delas é o estabelecimento de que o trabalho na terra prometida é santo e, portanto, suas relações e a maneira como deve acontecer são algo que pertence a Javé, o Senhor do sábado. Ele é o dono da terra, o dono do sábado e o dono das relações de trabalho no povo de Israel. A segunda diz respeito ao primeiro sábado descrito no Pentateuco. O descanso de Deus após a Criação. Ser generoso, não esgotar a terra, nem esgotar seus empregados, perdoar dívidas, deixar que o servo retorne à sua família, abrir mão da terra arrendada, nada disso fará que alguém passe fome. Deus criou o mundo cheio de recursos naturais que proclamam sua Glória e mostram sua provisão de sobrevivência ao homem. Caso fosse necessário fazer mais alguma coisa, Ele não teria descansado no sétimo dia. Um terceiro aspecto diz respeito à dádiva que é a Lei. No sábado, a legislação é algo oferecido por Graça. Nele, Javé concede a libertação no seu sentido mais pleno. É o sábado a manifestação de que a Lei divina é um presente, pois ali, Ele não oprime Israel com um duro código de conduta, mas o presenteia com o tempo livre4. É, portanto, a libertação das amarras do tempo, da pressa e da ansiedade desvairada. O quarto ponto e talvez um dos mais importantes é a ligação feita pelo autor entre o sábado e a libertação. Esta não é a única passagem em que o descanso e a liberdade são relacionados desta forma. Em Deuteronômio 5.15, por exemplo, o dia do repouso é instituído como maneira de lembrar a libertação da mão opressora do Egito. A igreja primitiva liga o dia à ressurreição de Cristo. Daí, o fato de toda a cerimônia se iniciar no Dia da Expiação se torna extremamente simbólico. No dia em que o povo era liberado de sua culpa, a libertação física, material e observável seria anunciada e cumprida. Assim como os rituais descritos pelo legislador representam e indicam para além do ritual em si, o Jubileu tem importância em si mesmo, mas também aponta para uma realidade mais ampla. É uma manifestação tangível de uma libertação que não precisa – nem deve – ficar somente nas categorias da abstração. Existe ainda uma discussão a respeito do Ano do Jubileu ser realizado durante um ano inteiro após o Ano Sabático ou se seria apenas um período mais curto dentro daquele mesmo ano. Robert Noth5 e Gordon Wenham6 tentam explicações neste sentindo, sugerindo até mesmo que o Jubileu seria, na verdade, um período de 49 dias. O motivo para tentar fazer deste período algo mais curto parece ser o fato de dois anos serem tempo demais para que o povo fique sem produzir alimento na terra. Dependendo da maneira como se contasse o início do Jubileu, poderia haver até um nono ano sem colheitas. O argumento neste sentido perde um pouco de força quando o examinamos à luz da lógica interna do texto. Mais adiante, o autor faz questão de deixar claro que Javé continua sendo o Deus provedor e que aumentaria as colheitas no sexto ano para que o povo pudesse passar pelo período do Jubileu com suas necessidades supridas. Por que ele faria menção de um suprimento extra se o período de Jubileu era só de 49 dias? 10. A ideia de consagrar, tornar santo, o ano do Jubileu não surpreende o leitor de Levítico. Santidade é, afinal, o grande tema de todo o livro. Esta frase dá o tom de que aquele ano específico é separado para o Senhor, assim como o sábado seria e, portanto, requer condições especiais. Aqui começam as instruções mais gerais a respeito dos procedimentos dados a respeito do Ano do Jubileu – que seria o retorno dos homens escravos às suas famílias e terras e o retorno das terras arrendadas à família originalmente possuidora daquele bem. A formulação da sentença mais genérica é poderosa no seu sentido poético e estético e sintetiza da maneira mais simples possível a ordenança de retorno: “...quando cada um de vocês voltará para a propriedade da sua família e para o seu próprio clã”. Estas orientações gerais, ao longo do capítulo, vão ganhando contornos mais específicos, mas desembocam sempre no eixo central desta passagem que é a ideia de “proclamar libertação”. Como o profeta Jeremias percebeu, a proclamação é parte integrante e central para a simples existência e função de Israel (Jr 34.13-17). Israel deveria ser uma nação para ser admirada entre todos os povos da terra. Esta admiração viria dos pontos distintivos dela em relação às outras. Daí todo o Código de Santidade de Levítico fazer oposição aos usos e costumes do Egito, dos cananeus e dos povos da Mesopotâmia. Destas confrontações com traços culturais dos povos vizinhos, a quebra na relação de domínio entre senhor e servo é das mais chocantes. O rompimento mais escandaloso com a cultura da época chega e vem de maneira estrondosa. Deveria ser anunciado. É um ano de anunciação no fim das contas. Jubileu, no original hebraico, poderia significar apenas cordeiro, ou talvez o chifre dele. Mas por meio do soar da trombeta, que poderia ser este próprio chifre, o nome ganha todo um novo sentido. É dia de celebração. É tocado em altíssimo e bom som para que todos pudessem escutar. Todos devem ver, todos devem ouvir aquele que seria o Ano do Jubileu para o povo de Deus. A maneira como o verso é escrito, inclusive, dá esta ideia de algo dinâmico, de agitar a vida de qualquer pacífico vilarejo ou grande cidade da Antiguidade Oriental. O “proclamem libertação por toda a terra a todos os seus moradores” dá a nítida impressão de, ao som das primeiras trombetas, pessoas saindo de suas casas, celebrando o retorno de um pai, um avô, distante da família há anos para pagar uma dívida, falando umas às outras da dádiva divina da libertação. Outros percorrendo as cidades, como entregadores de jornais, aos gritos de “Extra!”, dizendo a todos que chegou o dia em que suas propriedades voltariam a ser suas. Aquilo seria a manifestação visível de como Deus libertou do Egito e de como Javé continua libertando do pecado. Um detalhe curioso é que esta manifestação deveria ser proclamada por toda terra a todos os seus moradores. Não era boa notícia apenas ao endividado. Não era boa nova apenas a quem arrendou as terras por problemas financeiros. Não era libertação conhecida apenas por uns moradores judeus da região. Uma vez estabelecidos na terra firmada por Javé, os judeus proclamariam a libertação para todos escutarem, inclusive os moradores da terra que não eram judeus. O testemunho de Deus aos povos por meio de Israel se dava no cumprimento da Lei por parte dos israelitas. A Lei era tão radicalmente graciosa que seu simples cumprimento era suficiente para apontar para o Deus que estabelecia aquela legislação. Na figura do sábado, mais uma vez se torna mais simples entender como funciona a graça dentro da lei de Levítico. O que se vê no decorrer do livro é uma espécie de crescente na amplitude de uma liberdade imerecida provisionada por Deus. No estabelecimento do dia do repouso, Javé concede a dádiva do tempo livre, que ganha em amplitude com o Ano Sabático. No Jubileu, a Graça é amplificada pelas trombetas e se torna uma manifestação da redenção difícil de ser rivalizada. É o sábado absoluto. É o descanso para a alma de saber que a dívida terá um fim, que a terra voltará e que a miséria não prevalecerá. Se a cada semana, um sábado dava o descanso físico, o Jubileu era o fornecedor do repouso integral, da mente e do coração. Este repouso integral é a libertação da qual fala o capítulo. O termo utilizado (d’rôr) é raríssimo e, como vimos acima, aparece apenas três vezes em todo o Antigo Testamento. Nas duas outras vezes em que ele aparece, os autores Jeremias e Isaías estão fazendo referência justamente a esta passagem de Levítico. A palavra hebraica está possivelmente associada a um termo acadiano em que a ideia é “liberar de obrigações”. A oposição é radical em relação aos povos vizinhos. Na Babilônia a liberação de obrigações estava nas mãos do rei. Aqui, o Rei já decidiu o que seria feito periodicamente em suas terras de princípio7. 11-12. Assim como o Ano Sabático, um ano que fosse santo não teria plantação ou colheita e, portanto, seria mais um ano de descanso das terras e, claro, dos trabalhadores. Desta forma, os israelitas estavam autorizados a comer aquilo que nascesse naturalmente da terra ou aquilo que foi estocado durante o sexto ano de produção agrária antes do Ano Sabático e do subsequente Jubileu. O descanso da terra fazia o povo lembrar que Deus era dono da propriedade, da qual eles receberam apenas concessão para utilizar. Assim como Ele é o Senhor do tempo e separou um dia para o descanso do homem, mas também para instituir a sua adoração, Ele é o Senhor do espaço e a terra pertence a Ele. Para além desta questão, o repouso da terra traz, ao menos, mais duas questões interessantes. A primeira diz respeito a uma possível consciência de produção sustentável, em que a terra poderia ser útil para as próximas gerações, uma vez que fosse usada com sabedoria e sem que fosse esgotada em seus recursos. Torna-se ainda mais interessante quando se nota que além dos anos de descanso, as terras já passavam por um rodízio de culturas8. Esta, porém, pode até ser uma ideia verdadeira, mas não parece ser a intenção do autor. O segundo ponto, aparentemente mais ligado com as linhas gerais do texto, é coibir a ganância e o desejo de enriquecimento excessivo no uso da terra. Um bom exemplo disso é a permissão para “comer o que a terra produzir” e a proibição de ceifar, ou fazer a colheita, daquilo que cresceu no campo. O que isto significa? Na prática, é dizer que o dono da terra, naquele ano, não poderá tirar vantagem de ser o dono dela. Ele poderá comer do fruto que nasceu em sua terra, mas não fará colheita nem estoque, de modo que um viajante, um estrangeiro, ou mesmo um vizinho seu que estiver passando por ali, poderá pegar um fruto daquela mesma árvore, sem que antes eles já tenham sido colhidos e estocados. 13-16. As linhas gerais do mandamento do Jubileu vão ganhando os seus contornos mais específicos ao longo do texto. A legislação propõe de modo claro a regulação nas relações de trabalho, no zoneamento de terras produtivas, na distribuição dos meios de produção. Evidentemente, haverá implicações econômicas. Da regulação e suas implicações, surgem situações que poderiam ser vistas como janelas de oportunidade. O texto, então, trata de encerrar toda a janela que seja contra a essência da Lei, ou seja, que promova opressão ao invés de liberdade, ou concentração de riqueza e miséria, opostos à distribuição equânime da terra e à provisão divina. Antes a declaração era mais genérica. Agora, de maneira bastante específica, o legislador deixa claro que não se trata apenas da libertação de quem estava cativo, trabalhando em outra terra para outra pessoa. Não apenas as pessoas voltariam às suas propriedades, mas as propriedades também voltariam aos seus donos originais. Isto se dá ao olharmos com atenção os parágrafos de regulação de compra e venda de propriedades. O texto demonstra certa sofisticação econômica. Se o dono da terra é Deus, ninguém pode vender aquilo que não é seu, ou que lhe foi dado por concessão. Assim, o autor é muito feliz, por esta simples lógica, ao dizer que aquilo que é vendido é a colheita e não a terra em si. A afirmação ainda serve a outro propósito, como regulação econômica que impede a trapaça. O legislador atribui à terra o preço baseado em seu valor de produção potencial e responsabiliza o vendedor e o comprador por calcularem o valor real da terra. Ou seja, se o ano de devolver a terra já está próximo, isto significa um menor número de colheitas em potencial, e se serão menos colheitas, o custo para adquirir aquele espaço deve ser menor. O inverso também é válido. Se faltam muitos anos para o Jubileu, o preço da propriedade pode ser aumentado, pois serão muitas colheitas ainda a serem realizadas. Há ainda um item que demonstra a perspicácia do autor. Quando a Lei responsabiliza tanto o comprador quanto o vendedor da terra, na realidade, ela está colocando o peso desta responsabilidade sobre os ombros daquele que tem maior poder de negociação naquele momento. O mandamento existe justamente para que um não tire proveito do outro e ambos encontrem condições justas de negociação. Desta maneira, o fato de que um dia a terra será devolvida não pode ser usado como um favorecedor de apenas um dos lados em uma negociação. Qualquer transação que coloque em risco a libertação integral deverá ser considerada contra a Lei. 17. Como dito acima, na análise de detalhes, o trecho “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” é suficientemente sugestivo para fazer lembrar ao judeu de quem o tirou da mão opressora do Egito. Se o egípcio era a figura que mais ilustrava a exploração indevida e cruel, Javé, o único que detém a prerrogativa de explorar alguém, coloca-se no papel de libertador. É um duelo de figuras antitéticas, diametralmente opostas. Quando o povo judeu, ou um membro específico da comunidade, opta por agir em prol da exploração e da opressão, ele está se equiparando moralmente ao Egito, que o escravizou. Existe uma polarização de comportamentos. Alguém que teme a Deus como seu Senhor não agirá como o Egito e, portanto, ficará indignado com a exploração alheia. Que teme a Deus proclamará libertação e fará das palavras de sua boca a sua realidade social e econômica. O verso que encerra o trecho resume com excelência a essência da Lei que está sendo redigida. A Lei existe para proteger aquele que por alguma fragilidade esteja próximo da marginalidade e da miséria. 4.3 Significância do texto “Não quero mais saber de lirismo que não é libertação”9. O poeta do nosso tempo exprime o quão importante se tornou o retorno daquele que estava perdido pela escravidão. O lamento poético acima nos mostra que a “proclamação da liberdade” não perdeu um miligrama de sua gravidade, um nanômetro de seu alcance. O anseio do poema constrange o espírito da nossa época: é pela libertação na boca, no lirismo, nas palavras de quem puder falar, escrever, dizer em alto e bom som que o cativeiro foi anulado, a dívida foi perdoada, a fonte do sustento e da vida foi restabelecida. Mas qual será a decepção do pensador mais arrogante quando ele descobrir a real natureza da proclamação? O texto tem muito a falar de liberdade ao libertino travestido de liberal. A libertinagem tira o homem de sua casa, faz com que ele abandone a sua família. A libertação o traz de volta, ao som de trombetas que comemoram sua chegada. O texto tem a dizer ao libertário, disfarçado de libertador. Confrontado com a visão bíblica de liberdade, ele se frustrará ao ver que a Libertação se estabelece no cumprimento da Lei e não pela imposição de mão armada e, muito menos, pela infração. Afinal, que liberdade é esta que torna uma criança cativa da solidão de crescer sem um pai? Não há liberdade no divórcio desvairado. Ou qual a libertação promovida por atos de violência que tolhem o direito e a segurança do fraco, protegido pela lei? Não existe libertação nas Farc, no Sendero Luminoso, no cangaço de Lampião ou no separatismo de Sarajevo. A libertação do Jubileu jamais deixa que a liberdade individual torne cativo o restante da comunidade. A libertação do Jubileu é sempre, em primeiro lugar, soltar as amarras e os grilhões do outro. Mas qual será ainda o desapontamento do observador mais atento, se ele descobrir que as pessoas que proclamam a libertação, oprimem-se umas as outras para satisfazer sua ganância? Ou ainda, exploram àqueles que não são de seu povo e, principalmente os que desejam se tornar parte do povo? Um lirismo que seja libertação não pode ser apenas anunciado, mas deve ser estabelecido no cumprimento das determinações de Deus. O poeta não busca um lirismo que fale sobre a liberdade, mas de um que seja a libertação. O texto bíblico procede da mesma forma. “Não explorem um ao outro, mas temam ao Deus de vocês. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lev 25.17). Com o tanto que a libertação de Levítico tem a dizer ao homem do século 21, é ainda surpreendente que se criem focos que em pouca coisa ajudam para a compreensão do texto e para sua aplicação. Fala-se pouco desta libertação, e o povo continua deficiente em proclamar a liberdade, como no tempo de Jeremias (Jr 34-17). Entretanto, proliferam as discussões sobre a historicidade do Jubileu. E as discussões permanecem inconclusas. Brotam as especulações sobre ser ou não lícito perdoar as dívidas dos países subdesenvolvidos, mas estaria a libertação ao lado de alguém que de modo ufanista briga pela aplicação do Jubileu em Haia, ou ao lado de Zilda Arns, ao alfabetizar as crianças do Haiti? É certo que o Jubileu ainda deixará estas e outras questões inconclusas. NOTAS: 1. Para um entendimento mais detalhado de tais questões, ver os Apêndices sobre: História da Teoria Documental do Pentateuco; A Alta Crítica do Pentateuco no século XX em Merece Confiança o Antigo Testamento? de Gleason Archer Jr. 2. Um bom resumo das estruturas e comportamentos gerais da vizinhança de Israel no período bíblico pode ser encontrado em Samuel Schultz, História de Israel no Antigo Testamento, pp. 14-28. 3. Também se encontra esta formulação nas seguintes passagens de Levítico: 11.45, 22.33, 22.43, 25.38, 25.42, 25.55 e 26.45. 4. Hans Walter Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, p.214 5. Robert Noth, The Biblical Jubilee, After Fifty Years, p.87 6. Gordon Wenham, The book of Leviticus, p.302 7. Robert P. Gordon, Levítico, In: Comentário Bíblico NVI, p.290 8. Walter J. Houston, Leviticus, In: Eerdmans Commentary on the Bible, p.122 9. Manuel Bandeira, Libertinagem, p.14 BIBLIOGRAFIA ARCHER Jr., Gleason. Merece Confiança o Antigo Testamento?. Vida Nova, 1984 BANDEIRA, Manuel. Libertinagem: Estrela da manhã. Editorial Costa Rica, 1998 DOUGLAS, Mary. Leviticus As Literature. Oxford University Press, 1999 GORDON, Robert P.. Levítico, In: Comentário Bíblico NVI, F. F. Bruce (Org.). Vida, 2008 HARRISON, Roland K.. Levítico, Introdução e Comentário, Vida Nova, 1983 HOUSTON, Walter J.. Leviticus , In: Eerdmans Commentary on the Bible, James D. G. Dunn, John William Rogerson (Org.). Eerdmans Publishing, 2003 NOTH, Robert. The Biblical Jubilee, After Fifty Years. Editrice Pontificio Biblico, 2000 OSBORNE, G.. A espiral hermenêutica. Uma nova abordagem à interpretação bíblica. Vida Nova, 2010 SCHULTZ, Samuel. História de Israel no Antigo Testamento. Vida Nova, 2008 STUART, Douglas & FEE, Gordon. Manual de exegese bíblica. Antigo e Novo Testamentos. Vida Nova, 2008 WENHAM, Gordon. The book of Leviticus. Eerdmans Publishing, 1979 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. Editora Hagnos, 2008