As origens historicas da Clinica e suas implicacoes sobre a
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As origens historicas da Clinica e suas implicacoes sobre a
5%0)& As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica The historical development of modern medicine: implications for an approach to psychological problems in the medical practice Fernando Antônio Mourão Flora* RESUMO Os problemas psicológicos são muito comuns nos consultórios dos médicos generalistas. Incluem, pela incidência, os transtornos somatomorfos e os episódios depressivos com sintomas somáticos. Esses distúrbios não apresentam nenhuma patologia orgânica. A Clínica foi, em seus primórdios, classificadora. A doença recebeu uma organização hierarquizada em famílias, gêneros e espécies. O papel do médico era o de descobrir a doença no doente. A doença se apresentava segundo os sintomas e os sinais. A Clínica baseava-se na anatomia patológica e na fisiopatologia. Devido a esta longa tradição secular, que o condicionou a investigar o “orgânico”, o médico não está preparado para cuidar de pacientes com problemas psicológicos. Isso porque não encontra o substrato anátomo e fisiopatológico a que foi exercitado a descobrir. Uma proposta para capacitar o médico generalista a lidar com as emoções na prática médica é o “grupo Balint”. Trata-se de um método de capacitação em seminários de grupo, com sessões semanais e duração de dois anos, fundamentado em apresentação de casos. O objetivo é obter uma mudança de personalidade do generalista, limitada, porém significativa, de maneira a habilitá-lo a cuidar de seus pacientes com problemas psicológicos. ABSTRACT Patients with psychological problems are very common in the offices of general practitioners. Grouped according to their incidence these problems include somatoform disorders and episodes of depression with somatic symptoms. These disorders have no organic basis or known physiological cause. In its early beginnings, medicine and medical regard were classificatory. Disease was organized hierachically into families, PALAVRAS-CHAVE: - Medicina Clínica; - Relação Médico-Paciente; - Somatização; PALAVRAS CHAVE: - Clinical Medicine; - Physician-Patient Relations; - Somatoform disorders. *Médico, Mestre em Saúde Pública, SMS Belo Horizonte, MG, Brasil. 203 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica genera and species. The role of the physician was to Nos exemplos citados acima, o paciente com discover the patient’s disease. The disease presented distúrbio neurovegetativo é um homem de meia-idade itself through symptoms and signs. Medical practice was com problemas financeiros, a senhora emagrecida based on anatomical pathology and physiopathology. perdeu seus sobrinhos, assassinados, e a cliente Due to this secular tradition during which he was dispnéica está em uma crise conjugal devido à infi- conditioned to investigate the “organic”, the physician delidade do marido. Portanto, são pacientes que se is not prepared for providing care to patients whose consideram doentes fisicamente, mas que, inconsci- problems are of psychological nature. The anatomical entemente, apresentam problemas psicológicos co- and physiopathological substrate he was trained to mo causa de seus sintomas. discover is lacking. As estimativas variam; todavia, calcula-se que The “Balint group” represents a proposal for entre um quarto e um terço dos pacientes que re- capacitating the general practitioner for dealing with correm ao generalista estão em uma condição de the emotional in his medical practice. This is done in estresse psicossocial3. O que se constata é que o two-weekly seminars during a two-years’ period, based médico não está preparado para atender a estes on case reports. The objective of this initiative is to casos nem sabe qual conduta adotar2,4. provoke a limited but significant change in the personality Procuremos, inicialmente, delimitar este of the general practitioner for enabling him to provide contingente de pacientes. Pode-se entender por care to his patients presenting with psychological “problemas psicológicos” na prática médica uma problems. ampla rede de patologias, que abarca, pela incidência, os transtornos somatomorfos e os episódios depressivos com sintomas somáticos5,6. Trata-se de uma I. Introdução Um paciente chega à consulta do generalista com o problema de distúrbios neurovegetativos que série significativa de patologias atribuídas à influência exercida sobre o corpo pelas emoções7. o impedem de adormecer; outro se queixa de Um expressivo número de indivíduos rotulados fraqueza, perda de peso e de apetite. Em um aten- como nervosos, neurastênicos, psicastênicos, histé- dimento de urgência, uma cliente apresenta uma “dra- ricos, neuróticos e psicopatas, doentes funcionais, mática” dispnéia, simulando uma crise de asma. Os doentes psicógenos, doentes psicossomáticos pode exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente. apresentar distúrbios funcionais8. Esse é o cotidiano do médico: uma parte de seus Detenhamo-nos aos transtornos somato- pacientes apresenta uma sintomatologia em que não morfos pelo seu mimetismo com as doenças físicas5. é detectada nenhuma patologia orgânica. Muitas Incluem o transtorno de somatização, o transtorno vezes, o médico considera que esses pacientes “não conversivo, o transtorno doloroso, a hipocondria e o têm nada”1 ou que são pessoas “nervosas”, cujas transtorno dismórfico corporal7,9. doenças estão “em suas cabeças”2. A peça teatral O Segundo H. J. Weitbrecht8, os transtornos doente imaginário, de Molière, é uma sátira deste tipo somatomorfos (ou funcionais) do organismo com- de patologia. põem um grupo heterogêneo de distúrbios que não 204 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica apresenta nenhuma patologia orgânica. O primário estabelecida. Esses pacientes requerem mais tempo nestes pacientes é uma atitude ou desenvolvimento de consulta e são considerados “difíceis”, ou no termo psíquico anormais, que secundariamente dão lugar em inglês, doctor shoppers 1. a disfunções vegetativas, vasculares ou neuroendócrinas. Esses problemas clínicos, pois, são freqüentes e associados com altos custos diretos e indiretos. Os transtornos somatomorfos situam-se na Os pacientes com transtornos somatomorfos são fronteira da Medicina e da Psiquiatria. Possuem os submetidos a uma enorme bateria de exames com- atributos seguintes: (a) a tendência do paciente a “ex- plementares e procedimentos diagnósticos inúteis. perienciar” e a comunicar sintomas somáticos; (b) os Os resultados falso-positivos podem levar a trata- sintomas não são sustentados por achados patoló- mentos equivocados, complicações, morbidade des- gicos; (c) o paciente atribui suas queixas a uma doen- necessária e desperdícios7. ça física; (d) o paciente procura ajuda médica para Por se situarem na fronteira entre disciplinas, os sintomas; (e) o estresse psicossocial, assim como existe pouca pesquisa sobre o diagnóstico e o a vulnerabilidade da personalidade ao estresse, pode tratamento dos transtornos somatomorfos. A avalia- ser uma característica associada (embora o paciente ção de seu tratamento pelo generalista pode ser não reconheça e até mesmo negue qualquer ligação considerada como insatisfatória3. Os médicos cen- entre os sintomas e causas psicológicas). O denomi- tram-se no alívio dos sintomas, por meio da prescri- nador comum desses distúrbios é que tendem a se ção de medicamentos, como é o procedimento pa- 4 manifestar como se a anatomia não existisse . A maioria destes pacientes é vista e tratada drão. Várias tentativas terapêuticas acabam não dando resultado, frustrando o médico e o paciente10,11. sintomaticamente por médicos generalistas, por es- A questão a ser elucidada neste artigo refere- pecialistas (não-psiquiatras) ou por adeptos da medi- se à abordagem dos problemas psicológicos (em cina alternativa. São muito comuns nos consultórios sentido genérico) na prática médica e a falta de pre- dos médicos generalistas. Calcula-se em um terço paro dos generalistas para abordá-los. Assim, a pri- o número de consultas em Atenção Primária à Saúde meira pergunta a ser respondida é explicar por que o em que nenhuma patologia orgânica é identificada generalista está despreparado para lidar com estas (na experiência de consultório do médico de família patologias de fundo emocional, tão freqüentes em sua de Waco, Texas, em uma amostra de 1.073 pacientes prática. O meio para decifrar este paradoxo será a foram identificados 120 com transtornos somatomor- análise de discurso do ensaio O Nascimento da Clíni- fos)3. ca, do filósofo estruturalista Michel Foucault. Existe o risco de diagnosticar erroneamente Uma vez explicado o paradoxo, o ponto é um transtorno funcional neurótico onde na realidade como capacitá-lo para cuidar dos clientes com esses existe uma doença orgânica. Não é fácil fazer o diag- distúrbios. Por fim analisa-se o método Balint como nóstico de transtorno somatomorfo. É evocado pelo estratégia para habilitar os generalistas no manejo generalista quando o paciente apresenta, repetida- dos problemas psicológicos de seus clientes. mente, queixas vagas e variadas, sem uma etiologia 205 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica A medicina das espécies patológicas consi- II. O Nascimento da Clínica O médico, condicionado a se ocupar do derava o hospital um lugar artificial, onde a doença “orgânico” por uma longa tradição secular, não está alojada incidia no risco de perder suas características preparado na sua prática cotidiana para lidar com os originais. Ela podia sofrer toda forma de complicação, problemas psicológicos de seus pacientes. Isso que os médicos chamavam de “febre” dos hospitais porque não encontra o substrato anátomo e fisio- ou das prisões. O lugar natural da doença era o da patológico a que foi exercitado a descobrir. É costume, vida: a família. Diferente do internista, que lidava com então, emitir o seguinte juízo, eivado de conseqüên- doenças desfiguradas, o médico que tratava em cias: “O doente não tem nada”. Somente é possível domicílio “adquire em pouco tempo uma verdadeira entender esta postura à luz da história da estruturação experiência, fundada sobre os fenômenos naturais da Clínica através do tempo. de todas as espécies de doenças”15. O papel do mé- O Nascimento da Clínica é o título do livro do dico era o de descobrir a doença no doente, escondida filósofo Michel Foucault12 que faz um estudo arqueo- nele como um criptograma. A doença possuía uma lógico do saber médico ocidental, por meio de uma organização que lhe era própria. O doente era um análise estrutural de seus textos. Procedemos a um “acidente” da doença, o objeto transitório do qual ela sumário de sua obra, apresentada a seguir. se apossava. Segundo Cabanis16: “as diferentes do- Desde a Renascença, ocorreu uma mudança enças servem de texto”. O doente era o veículo por na tradição médica, que vinha desde o século V, na meio do qual este texto se exprimia, às vezes de Grécia, com a longa história dos sistemas, ou seja, forma complicada e embaralhada. Girbal descrevia da influência da metafísica. Pode-se situar o nasci- o domínio clínico17: mento da medicina moderna no final do século XVIII. “Esclarecer o princípio e a causa de uma do- Passou-se a privilegiar o empírico (a percepção) e a ença através da confusão e da obscuridade dos sin- razão, com o abandono das teorias, dos velhos sis- tomas; conhecer sua natureza, suas formas, suas temas e de suas especulações imaginárias. A experi- complicações; distinguir na primeira olhada todas as ência clínica pôs por terra o dogma aristotélico e ini- suas características e todas as diferenças [...]”. ciou o discurso científico. O exame clínico procurava estabelecer a Nos seus primórdios, esta medicina era clas- relação entre os fenômenos, os antecedentes e os sificatória. A experiência médica do século XVIII ocu- distúrbios constatados, de forma a poder pronunciar pou-se, constitucionalmente, de organizar um campo um nome: o da doença. Uma vez feita essa desig- nosológico. Estudava-se “a maneira como a natureza nação, deduzia-se facilmente as causas, o prognós- produz e entretém as diferentes formas de doenças”, tico, as indicações. Tratava-se, portanto, da desco- 13 no dizer de Sydenham . A doença recebeu uma orga- berta de uma “verdade”, escondida, já presente no nização hierarquizada em famílias, gêneros e espé- corpo do doente: o nome da doença. 14 cies. Frier ensinava: “O conhecimento das doenças A clínica consistia na arte de “demonstrar é a bússola do médico; o sucesso da cura depende mostrando”. Cabanis18 assim explicava o ensino mé- de um conhecimento exato da doença”. dico: “O professor indica a seus alunos a ordem pela 206 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica qual os objetos devem ser observados, para serem passivo e tornava-se representação da doença. melhores percebidos e gravados na memória”. A clínica supunha a visibilidade da doença, o Acompanhe-se a descrição das aulas de clínica cirúr- olhar e o objeto entrelaçados pela natureza e pela gica de Desault, em 1781, no Hôtel-Dieu: origem. Era o olhar médico que abria o segredo da “Sob os olhos de seus expectadores, fazia doença e era essa visibilidade que a tornava penetrá- trazer os doentes mais graves, classificava suas vel à percepção. O olhar que observava evitava intervir: doenças, analisava as características, definia a conduta era mudo e sem gesto. A pureza do olhar do clínico a ser adotada, praticava as cirurgias necessárias, estava ligada a certo silêncio que permitia escutar: prestava conta dos seus procedimentos e de seus “Toda teoria silencia ou sempre some ao pé do leito motivos, mostrava as mudanças diárias e apresentava do doente”, na expressão de Corvisart22. Também de- o estado das partes após a cura... ou demonstrava via ser contido o imaginário, que antecipava sobre o sobre o corpo privado de vida as alterações que que se percebia, descobria relações ilusórias e fazia haviam tornado a arte inútil” 19. falar o que era inacessível aos sentidos. O olhar clí- Desde a Renascença, a Clínica foi, provavel- nico tinha esta propriedade paradoxal de ler a nature- mente, a primeira tentativa para fundar uma ciência za no momento em que percebia um espetáculo. Pinel23 fundamentada unicamente no campo perceptivo e assim o descrevia: uma prática guiada pelo exercício do olhar. Segundo “Os sinais exteriores pegos do estado do pul- Petit20: “É preciso, tanto quanto possível, tornar a so, do calor, da respiração, das funções de raciocínio, ciência ocular”. Na tradição médica do século XVIII, a de alteração dos traços do rosto, das afecções ner- doença se apresentava ao observador segundo os vosas ou espasmódicas, da lesão dos apetites natu- sintomas e sinais. rais, formam, por suas diversas combinações, qua- O sintoma ocupava um lugar especial porque dros diversos, mais ou menos distintos ou claramente era a forma sob a qual se apresentava a doença. De delimitados [...]. A doença deve ser considerada como tudo o que era visível, era o mais próximo do essencial um todo indivisível, desde o seu início até o seu tér- e era a primeira transcrição da natureza inacessível mino, um conjunto regular de sintomas característicos da doença. Os sintomas deixavam transparecer a fi- e uma sucessão de períodos”. gura invariável, retraída, visível e invisível da doença. Para Broussonnet21: O exercício da observação clínica abria um novo espaço: o espaço concreto do corpo, massa “Nós entendemos por fenômeno, toda mudan- opaca onde se escondiam segredos, lesões invisíveis ça notável do corpo sadio ou doente; daí a divisão e o mistério mesmo da vida. A medicina dos sintomas entre aqueles que pertencem à saúde e os que engendrou aquela dos órgãos e das causas, uma designam a doença: estes últimos confundem-se clínica com base na anatomia patológica, a idade de facilmente com os sintomas ou aparências sensíveis Bichat. da doença”. A Medicina só podia ter acesso ao que a fun- Por essa simples oposição às formas da saú- dava cientificamente, contornando, com lentidão, os de, o sintoma deixava de ser um fenômeno natural obstáculos da religião, da moral e dos preconceitos. 207 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica Isso até se admitir que o cadáver fazia parte, sem dos órgãos será necessariamente invariável” 25. Da contestação religiosa ou moral, do campo da Medici- mesma forma que as nosologias tradicionais come- na. Morgagni, na metade do século XVIII, não teve çavam por uma definição das classes mais gerais, a dificuldades para fazer suas autópsias. Como o anatomia patológica lançava as bases de uma história Sepulchretum (Bonet, 1700), o tratado de Morgagni das alterações comuns a cada sistema, quaisquer (De sedibus, 1760) procurava estabelecer que a ana- que fossem os órgãos ou as regiões afetadas. tomia patológica fundava a Clínica, que as lesões ex- A questão era como ajustar a percepção ana- plicavam os sintomas. A concepção era de que a ana- tômica à leitura dos sintomas. Corvisart buscava a tomia definia a forma fundamental da espacialização confirmação da nosologia pela autópsia: era preciso local e, por uma relação de contigüidade, as vias da “comparar sempre os fenômenos sensíveis e pró- comunicação fisiológica ou patológica. prios da vida saudável de cada órgão, com as alte- A maior descoberta de Bichat foi um princípio para decifrar o espaço corporal, que era ao mesmo rações que cada um deles apresenta na sua lesão”22. Laënnec26 seguia a direção inversa: tempo intra, inter e trans-orgânico. O elemento “A anatomia patológica é uma ciência que tem anatômico foi deslocado de sua condição primeira por objetivo o conhecimento das alterações visíveis 24 na espacialização, que passou a ser o tecido. Bichat que o estado doentio produz sobre os órgãos do corpo comparava a sua descoberta com a de Lavoisier: humano. A abertura de cadáveres é o meio de adquirir “A química tem seus corpos simples que este conhecimento; mas para que tenha uma utili- formam compostos pelas combinações diversas dade direta [...] é preciso juntar a observação dos possíveis [...]. Igualmente, a anatomia tem seus te- sintomas ou as alterações de funções que coincidem cidos simples que [...] por suas combinações formam com cada espécie de alterações de órgãos”. os órgãos”. Com a anatomia patológica, a relação médico- Os diferentes tecidos eram as matérias- paciente tornou-se uma experiência na qual o olhar primas dos órgãos, mas os ultrapassavam, formando do médico era o elemento decisivo do espaço pato- vastos sistemas nos quais o corpo humano encon- lógico e de sua armação interna. O contato não era trava sua unidade concreta. A análise tecidual de possível senão sobre o fundo de uma estrutura, na Bichat tornava possível estabelecer formas patoló- qual o medical e o patológico se entrelaçavam, do gicas gerais, para além das repartições geográficas interior, na plenitude do organismo. A medicina e a de Morgagni. A anatomia patológica tinha construído cirurgia não eram mais que uma só e mesma coisa, um fundamento sólido: a análise real segundo super- na medida em que o deciframento dos sintomas se fícies perceptíveis. Desenhavam-se, por meio de uma ajustava à leitura das lesões. leitura diagonal do corpo, grandes famílias de doen- O olhar médico passou por uma verdadeira ças, tendo os mesmos sintomas maiores e o mesmo “revolução” (a medicina das reações patológicas) tipo de evolução. Alcançava-se, enfim, um funda- com o tratado de Broussais, em 1816, Examen de la mento objetivo, real e indiscutível, de uma descrição doctrine27. Nele foi exposto um método clínico aplicado das doenças: “Uma nosografia baseada na alteração ao agravo orgânico, que propunha “extrair da fisiologia 208 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica os traços característicos das doenças e discernir, por de seu depoimento a respeito de seu estado interior, uma análise cuidadosa, os apelos muitas vezes con- o interrogatório de seus antecedentes patológicos e fusos dos órgãos doentes”. Esta medicina de órgãos familiares, de seu perfil pessoal, dos diversos apare- afetados comportava três momentos: 1) determinar lhos do organismo, o exame físico e os exames com- qual órgão estava em sofrimento, o que se faz a partir plementares. Nas palavras de Sournia28: dos sintomas manifestos; 2) “Explicar como um órgão “Para poder propor a cada um de nossos do- entra em sofrimento” e 3) “Indicar o que é preciso entes um tratamento perfeitamente adaptado à sua fazer para que deixe de sofrer”. Broussais tinha fixado doença e a ele mesmo, nós procuramos ter uma idéia o último elemento da “maneira de ver” do clínico. objetiva e completa de seu caso, reunimos num pron- A evolução histórica e concreta do olhar médico moderno havia acabado a sua estruturação. tuário que lhe é pessoal (sua “observação”) a totalidade de informações que dispomos sobre ele. Nós o “observamos” da mesma maneira que nós observamos os astros ou uma experiência de laboratório”. III. A tradição clínica e os seus efeitos Vamos revisitar o texto de Foucault e procurar O olhar clínico, além de herdar uma “ordem extrair, a partir da proto-clínica do século XVIII, os pela qual os objetos devem ser observados para efeitos sob o conhecimento, as habilidades e as atitu- serem melhor percebidos e gravados na memória”, des do médico nos dias de hoje. prossegue com o hábito de recolher os sinais e os Vimos que, na Renascença, ocorreu uma ver- sintomas da doença. O doente é a fonte primária das dadeira mutação do saber médico, com a recusa das informações, que são processadas pelo observador. teorias, o abandono dos velhos sistemas e da meta- Seu discurso dá acesso à percepção que possui do física da Idade Média. Em seu lugar, passou-se a próprio corpo e de suas alterações. O exame “físico” valorizar o empírico, a experiência clínica. Era o início (em inglês, médico é physician), método de investi- da Ciência moderna, que nos dias atuais tem sua gação do espaço concreto do corpo, guarda toda sua expressão mais estruturada na chamada Medicina centralidade enquanto exercício da habilidade do Baseada em Evidência. O termo evidência expressa clínico na identificação dos sinais patológicos, mesmo o que é comprovado cientificamente, o que é demons- com todos os avanços científicos dos exames com- trado experimentalmente. plementares. É uma etapa indispensável da experiên- Essa é a habilidade essencial que foi transmitida desde os primórdios da Clínica: observar as cia clínica, usando praticamente os mesmos meios que a invenção de Laënnec29. evidências, o que pode ser percebido. A advertência No plano do conhecimento, a influência da me- subtendida nesta instrução é de que devem ser conti- dicina classificadora, calcada no modelo botânico, dos: o imaginário, a teoria, o que é inacessível aos perpetuou-se até hoje. O conhecimento das doenças, sentidos. A prática deve ter base no exercício do “olhar”. apesar do acúmulo de informações, é um saber indis- Isso está emblematicamente expresso na pensável para o clínico. O trabalho investigativo, desde chamada “Observação clínica”, o roteiro de sistema- o primeiro olhar sobre a aparência do paciente, de- tização das informações sobre o paciente, por meio sencadeia o raciocínio clínico e constitui um “vai e vem” 209 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica entre as informações colhidas e a memória do apren- os distúrbios orgânicos; quando se deparam com as dido pelo médico. Cada caso é a montagem de um dificuldades emocionais de seus pacientes, encon- quebra-cabeças e, com o auxílio de um raciocínio hi- tram-se despreparados para abordá-las. Esta é a potético-dedutivo, o clínico vai estabelecendo a rela- necessidade que levou aos seminários sobre “proble- ção entre os fenômenos, comparando com o que sabe, mas psicológicos em Medicina Clínica”, organizados até descobrir a doença, nomear o diagnóstico e esta- pelo pioneiro, Dr. Michael Balint, psiquiatra e psicana- belecer a terapêutica30. lista. A atitude do médico foi se cristalizando até Vejamos os resultados da investigação sobre chegar ao papel social de um observador neutro, com este tema, efetuada por Balint e compilada em sua a atenção voltada para a doença e os seus múltiplos obra: O Doutor, o seu Paciente e a Doença31. Esta disfarces. Este investigador das pistas que o levam pesquisa levou mais de cinco anos, iniciando-se em a identificar o mal que acomete o doente, incorre, por 1952, na Tavistock Clinic (Londres), e realizada com vezes, no erro de “esquecer” a pessoa por trás da 14 generalistas. doença. Tal é o risco a que o expõe o personagem que A constatação inicial foi a mesma que já tinha encarna, e que foi moldado através de, pelo menos, sido feita nos primórdios da Clínica: existe uma três séculos. clivagem entre a ciência médica tal como é exercida Então, o médico adquiriu uma segunda natureza que o condicionou a aceitar somente o que pas- nos hospitais e a prática geral que se faz no consultório do generalista. sa pelo crível do empírico, da percepção. Uma das Os especialistas-professores dos generalis- mais poderosas influências que herdou foi a valori- tas nas escolas de Medicina inclinam-se a diagnosti- zação do conhecimento extraído da morte e consubs- car patologias no âmbito de suas especialidades, até tanciado na anatomia patológica. A autópsia permitiu porque não atendem longitudinalmente. As doenças que o olhar clínico penetrasse no espaço interno do descritas pelos “rótulos” da medicina hospitalar, corpo, para assim constatar as lesões nos órgãos. nestes casos, não ajudam o generalista a compreen- Chegamos, pois, ao comentário de Foucault: “o cadáver aberto e exteriorizado é a verdade interior der os verdadeiros problemas com os quais se defronta. da doença, é a profundidade exposta da relação Nos consultórios dos generalistas, os proble- médico-paciente”12. Nele estão sintetizados os princi- mas dos pacientes apresentam-se, muitas vezes, pais efeitos da tradição clínica sob o médico de hoje: sob a forma de “uma doença da pessoa inteira”. Os a habilidade aguçada da percepção (o olhar clínico), casos analisados revelam que algumas pessoas não o conhecimento racional do “espetáculo” da doença, conseguem enfrentar as dificuldades de suas vidas em toda a sua crueza concreta (“orgânico”), e a atitu- e “fogem” ficando doentes. de neutra de observador/investigador dos fenômenos A estimativa é de que pelo menos um quarto patológicos do corpo humano. dos pacientes consultados sejam casos psicológicos. IV. O doutor, o seu paciente e a doença Se o médico tem a oportunidade de vê-los no início Os médicos foram habilitados para lidar com 210 do processo patológico, pode perceber que tais pa- Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica cientes “oferecem” ou propõem diversas doenças, ente a “organizar” a sua doença em torno do desvio até que se fixam a uma doença precisa e “organiza- encontrado. O passo seguinte será convencer o pa- da”. No entanto, os generalistas, influenciados pelos ciente da utilidade da prescrição para os seus sin- especialistas, evocam preliminarmente um diagnósti- tomas, embora precise de algo diferente. co “orgânico”, mesmo quando as evidências apontam O outro recurso utilizado pelo generalista para um problema psicológico. Os médicos conside- diante de um “caso difícil ” é o de encaminhar o ram que a doença física é mais séria e perigosa que paciente ao(s) especialista(s) para um diagnóstico uma doença funcional. Conhecem mais as patologias mais preciso (“perpetuação da relação professor- orgânicas e, então, sentem-se seguros, em um terre- aluno”). Em toda situação deste tipo, em que o doente no mais firme do que quando se deparam com altera- “oferece” uma doença “atípica” ao generalista, le- ções funcionais ou psíquicas. As doenças são catalo- vando-o a pedir ajuda ao especialista, ocorre uma gadas em uma sorte de classificação hierárquica, cor- “colusão no anonimato” ou de “diluição de responsa- respondendo à gravidade das lesões anatomopato- bilidades”. O sentido desta expressão é a de que o lógicas. paciente pode ser referenciado a diferentes especia- Cada médico tem um modelo ideal do com- listas, sem que ninguém assuma a responsabilidade portamento que deve adotar uma pessoa quando está por ele enquanto pessoa. O doente vira um prontuário doente. Esta missão ou “função apostólica” se ex- impessoal, freqüentemente circulando entre diferen- pressa em sua conduta. Trata-se da tendência do tes especialistas, que também se confundem diante médico de alimentar expectativas ilusórias sobre o de um quadro rebelde a se encaixar nos rótulos ou paciente, com base em seus próprios valores. Espera esquemas. O generalista, que não deveria deixar de enquadrá-lo em um diagnóstico e “convertê-lo” às conhecer as conseqüências das condutas dos espe- virtudes da medicalização. cialistas, acaba por delegar suas responsabilidades. O roteiro habitual seguido pelo generalista é Assim, podem ser tomadas decisões vitais – às ve- dominado pelo medo de deixar passar alguma doença zes após terem sido consultados diferentes especia- física. O receio é o de fazer um diagnóstico de trans- listas –, sem que ninguém se sinta plenamente res- torno funcional neurótico onde possa existir uma do- ponsável. ença orgânica. Utiliza-se de duas estratégias securi- Os doentes cujos distúrbios possam ser zantes: os exames complementares e a referência a atribuídos a prováveis alterações anatômicas e fisio- especialistas. lógicas são de uma categoria superior, enquanto os A “eliminação por exames físicos apropriados” neuróticos engrossam o contingente do que sobrou, constitui uma rotina obrigatória na prática diária. O uma vez realizado o diagnóstico diferencial. O genera- método de escolha é pedir exames complementares lista orgulha-se de ter despistado uma doença física, à exaustão, até que um sinal físico acidental, e muitas mas incomoda-o defrontar-se com uma neurose. Está vezes sem significação, possa ser responsabilizado despreparado para lidar com os problemas psicoló- pela sintomatologia. Esta “resposta” do médico tem gicos. Diante da angústia e da pressão crescente do a conseqüência iatrogênica de induzir, levar, o paci- paciente, pode mesmo se sentir culpado: seus exa- 211 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica mes mais criteriosos não esclareceram a “doença” confiança compartilhadas entre o médico e o pacien- e o tratamento atualizado que instituiu, não trouxe o te, que foram acumuladas, às vezes, durante anos alívio esperado. O paciente, por sua parte, quer saber de convívio. o nome da sua doença, o diagnóstico, a razão da O “remédio médico”, sendo o doutor em si medicação não ter funcionado. Diante desta deman- mesmo uma poderosa “medicação”, é o “medica- da, recebe como resposta que “nada tem”, o que equi- mento” mais usado na prática, mas pode ser decisivo vale a ter a sua “oferta” rejeitada e a ficar com o seu para a cura naqueles episódios em fases precoces problema não resolvido. “desorganizadas”. Muitos casos poderão ser solucio- A solução de Balint já estava contida em sua nados nesses estágios, tornando desnecessário o tese inicial, exposta acima: “Nós pensamos que cer- encaminhamento para psicoterapia com um psicote- tas pessoas que, por uma razão ou por outra, não rapeuta. Trata-se, de fato, de uma psicoterapia breve, podem enfrentar os problemas de suas vidas se li- em que o médico aprende a se servir de si mesmo vram ficando doentes” 31. como instrumento terapêutico, assim como um cirur- O generalista deve ter discernimento para gião usa um bisturi. saber quais são os casos em que é essencial tratar Resta abordar a questão de como os genera- uma doença física e em quais ele precisa ajudar o listas podem adquirir o mínimo de aptidões para lidar paciente a assumir os seus problemas pessoais. com as emoções de seus clientes. Para chegar ao nível de desvelar o que está Comecemos por compreender por que, psico- oculto, é preciso que o generalista proceda a um diag- logicamente, evitam explorá-las. Deixemos de lado a nóstico “aprofundado”, isto é, que contemple os pro- questão de sua formação voltada para o “orgânico” blemas da personalidade global. A metodologia a ou a sua falta de preparo para lidar com as emoções. seguir, “a entrevista prolongada”, implica na habilidade A explicação do autor é que, quando uma pessoa está da “escuta” por parte do médico. doente fisicamente, o clínico está em uma situação É necessário ampliar os limites da anamnese diferente e distante de sua condição, embora se soli- padrão, sem deixar de reconhecer o valor das infor- darize com ela. Mas, quando o paciente está infeliz mações pertinentes assim obtidas, porque “aquele em sua relação com o mundo, o médico pode sentir- que faz perguntas obtém respostas, mas nada além se pessoalmente implicado, devido a seus próprios disso”. problemas. Procura, a partir daí, evitar situações que O generalista responsável pelo paciente deve estar em condições de acompanhar o curso de sua poderiam levá-lo a examinar os seus conflitos pessoais. história de vida, de forma a poder contextualizar uma Segue-se que o generalista tem a necessida- eventual doença psicológica. Só assim pode alcançar de de “uma mudança de personalidade considerável, uma ampla compreensão das “ofertas” de seus ainda que limitada”. Como obtê-la? pacientes, ou seja, fazer um diagnóstico “aprofun- Balint propõe como método seminários de dado”. Trata-se de bem “administrar” o “fundo mútuo grupo, de oito generalistas coordenados por um de investimento”, isto é, todas as experiências e a psiquiatra/psicanalista, em encontros semanais. O 212 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica número foi fixado para proporcionar uma participação relação médico-paciente, das emoções na interação. intensa e um material suficientemente diversificado. É a chamada “contratransferência”, isto é, a forma Isso porque se trata de provocar uma nova atitude no como o generalista utiliza sua personalidade, suas médico, o que implica em expô-lo à situação real e crenças, seu saber, seus modos habituais de reação levá-lo a reconhecer os problemas e as formas que etc. As discussões dos seminários fornecem o motor podem ser empregadas para tratá-los. As discussões da “mudança de personalidade considerável, ainda semanais de casos são as matérias-primas para a que limitada”. O que se produz durante os seminários da relação de cada generalista com os seus clientes. é que o generalista toma consciência de seu envolvi- É possibilitado ao generalista, sob demanda, uma su- mento pessoal e de suas resistências em suas rela- pervisão individual de seus casos, ou seja, uma hora ções com o paciente e com o resto do grupo. por semana de “entrevista particular”. Esses seminários duram dois anos, em ses- Um dos objetivos é o de desenvolver nos mé- sões semanais, capacitando o generalista a tratar dicos a sensibilidade diante dos problemas emocio- uma grande parte dos seus pacientes com problemas nais de seus pacientes, de modo que possam com- psicológicos. Habilitam-no a impedir, com uma inter- preendê-los melhor e com maior profundidade. Um venção precoce, o paciente de “organizar” sua doen- outro é ajudá-los a aprender a empregar esta com- ça em torno de qualquer sinal físico de pouca impor- preensão de forma a obter um efeito terapêutico. Para tância. A profundidade da penetração do generalista alcançar esses fins, é indispensável modificar a perso- no conflito do paciente depende de sua própria nalidade do médico, particularmente quando atua no personalidade, isto é, de sua função apostólica. exercício profissional. Deve aprender a perceber e a Assim, pode chegar a identificar o “conflito” que levou tolerar os fatores emocionais de seus pacientes, que o paciente a se queixar, descobrindo o verdadeiro pro- antes rejeitava ou ignorava, além de aceitá-los como blema em sua vida. Em outras palavras, o generalista dignos de sua atenção. Balint chamou a totalidade é capaz de manejar com competência o “remédio deste processo como “mudança de personalidade limi- médico”, o “medicamento” mais freqüente da prática tada, todavia significativa”. geral. A essência do método de capacitação, o “grupo 32 Por fim, conheçamos a avaliação do método Balint” , é fazer com que o médico tome consciên- dos seminários de discussão em grupo para os gene- cia de toda sua responsabilidade terapêutica, cerce- ralistas32. Dentre os chamados “desertores”, aqueles ando-lhe qualquer rota de fuga; comparar sua manei- que abandonavam os seminários após certo tempo, ra de tratar a seus pacientes com a de outros colegas podem ser descritos os seguintes grupos: os médi- do seminário; utilizar o grupo para demonstrar que cos que padeciam de uma patologia mental grave toda terapia necessariamente implica um tipo especí- (neurose severa ou borderline; os “superiores”, médi- fico de interação entre o paciente e o médico. cos prestigiosos, de profundo “fervor apostólico”, co- O foco está centrado no subjetivo e pessoal, mo possível defesa contra a insegurança; os médicos muitas vezes fora do controle consciente. O mais escrupulosos e sensitivos, que necessitavam de importante nos seminários de grupo é a análise da “receitas” para as situações; os médicos com uma 213 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica ansiedade neurótica diante da mudança; os médicos Mostramos que os fatores estressantes psico- com defesas sólidas e eficazes, que preferiam evitar lógicos e sociais podem se “metamorfosear” em uma série de temas. distúrbios somatomorfos ou outros, camuflando-se Na avaliação de Balint, os generalistas que atrás dos sintomas, e que os esforços terapêuticos acompanharam até o fim os seminários eram médi- são de utilidade duvidosa se as verdadeiras causas cos “natos” ou muito talentosos, que “experienciavam” não forem abordadas.“Uma doença ‘funcional’ signi- uma satisfação “profunda” no exercício profissional. fica que o paciente teve um problema que tentou Citemos dois depoimentos de generalistas resolver com uma doença”31. que participaram dos grupos Balint: “O maior benefí- Os fatores estressantes psicológicos e soci- cio veio de escutar as estórias das relações médico- ais mais comuns na vida adulta abarcam a ruptura paciente contadas pelos outros participantes do de relações afetivas íntimas, a morte de um familiar grupo”33. E ainda: “Acredito que os seminários torna- ou amigo próximo, as dificuldades econômicas, a sa- ram-me melhor em meu trabalho [...]. Posso afirmar úde física precária e os acidentes e a violência que que certamente me ajudaram a lidar com menos atingem a integridade física. Esses fatores desenca- ansiedade com pessoas diferentes ou difíceis” 34. Os deiam distúrbios em pessoas vulneráveis, isto é, com seminários permitiram aos médicos perceber que as maior risco de adoecer. pessoas “difíceis” eram suas semelhantes, que esta- Propusemos o grupo Balint como um método vam pedindo ajuda, e não tentando criar situações que capacita o médico generalista a lidar com as sem saída. emoções na prática médica, por meio de uma “peque- Todavia, o generalista precisa de pelo menos na“, mas significativa mudança de personalidade”32. dois anos de capacitação para se beneficiar de um O objetivo é que saiba se servir do “remédio médico”, grupo Balint. ou seja, de si mesmo, na relação com o paciente. V. Conclusões VI. Referências A moderna concepção sobre a etiologia das 1.Koyazu T. Schematic understanding of the worried doenças é a de que muitos fatores interagem para patient with somatoform disorder. In: On Y. (Eds.) 35 produzi-las . De acordo com este modelo de Engels, Somatoform Disorders. A Worldwide Perspective. os fatores biopsicossociais estão envolvidos nas Keio University: Springer; 1999. p.218-221. causas, manifestações, curso e evolução da saúde 2.Kirmayer LJ. Rhetorics of the body: medically e das doenças. Os papéis relativos dos fatores bio- unexplained symptoms in sociocultural perspective. In: lógicos, psicológicos ou sociais podem variar entre Ono Y. (Eds.) Somatoform Disorders. A Worldwide os indivíduos ou entre os períodos da duração da vida. Perspective. Keio University: Springer; 1999. p. 271-283. Procuramos demonstrar, ao longo deste tra- 3.Couchman G. Approach to the treatment of balho, que os médicos possuem “pontos cegos” em somatoform disorders in general practice. In: Ono Y. relação aos fatores psicológicos e sociais, privile- (Eds.) Somatoform Disorders. A Worldwide Perspective. 36 giando os biológicos, devido à sua formação . 214 Keio University: Springer; 1999. p. 229-231. Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006 Fernando Antônio Mourão Flora As origens históricas da Clínica e suas implicações sobre a abordagem dos problemas psicológicos na prática médica 4.Jablensky A. The concept of somatoform disorders: Paris: Presses Universitaires de France; 1963. p 7. a comment on the mind-body problem in psychiatry. 15.Dupont de Nemours P. Idées sur les secours à In: Ono Y. (Eds.) Somatoform Disorders. A Worldwide donner aux pauvres malades dans une grande ville, Perspective. Keio University: Springer; 1999. p. 3-10. Paris, 1786. Foucault M. Naissance de la Clinique. 5.Tierney Jr LM, McPhee SJ, Papadakis MA. 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Brasília: Ministério da Saúde, Unesco; 2002. p.291-312. Este artigo foi adaptado da Monografia apresentada pelo autor ao Curso de Especialização em Saúde da 216 Rev Bras Med Fam e Com Rio de Janeiro, v.2, n° 7, out / dez 2006